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    PRESERVAR OU CONSERVARA NATUREZA?

    Durante algum tempo, considerou-se a preservao como uma alternativaradical, frente conservao: em vez de aceitar-se a presena humana emdeterminado bioma, mesmo que sujeita a determinadas condicionantes,propugnava-se o isolamento desse bioma, a fim de impedir qualquerinterveno antrpica, recorrendo-se coero se necessrio fosse.

    Hoje em dia, defender a preservao tornou-se muito difcil, por algumas boasrazes:

    em termos de lgica - no momento em que se fixa um limite, ele instantaneamente ultrapassado, passando a existir um alm, emcontraposio ao aqum. Exatamente por resultar de uma operaohumana, esse alm antropizado1;

    em termos da soberania - nenhum Estado soberano pode interditar oacesso de uma poro do territrio nacional a seus cidados, sob pena decoarctar o direito de ir e vir e de converter essa poro num enclave2;

    em termos da ao humana - esta atingiu tal escala que tornou impossvelexistir qualquer rea do planeta infensa a fenmenos globais, a exemplo doefeito estufa, da poluio do ar e dos oceanos, bem como da destruio dacamada de oznio, s para esses fenmenos citar.

    A essas trs razes, se junta uma outra que, embora com reservas, umahiptese em fase de demonstrao:

    no existem biomas e, menos ainda,florestas virgens no mundo,

    dada a ao do Homo sapiens sapiens.O texto que se apresenta tem o intuito de demonstrar essa hiptese, tomandocomo exemplo a Floresta Amaznica, bem como comprovar seu corolrio:

    a depender da qualidade da ao humana,esta pode enriquecer determinado bioma.

    1 No sculo XV, a caracterizao do alm mar foi uma operao mental indispensvel paraque dele se apropriassem os europeus. Afinal, ao pensar numa coisa, o ser humano se

    apropria dessa coisa; quanto menos que seja, pelo prprio fato de coisific-la.2 Mesmo que por conta de um objetivo aparentemente nobre, como seria o caso de preservardeterminada rea em benefcio da humanidade.

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    Cerrado x Floresta3

    H controvrsias a respeito de o que primeiro teria surgido na Amaznia: ou ocerrado, ou a floresta.

    Alguns autores, como o caso de Mrio Guimares Ferri4, no fechamdefinitivamente a questo. Porm, ainda que admitindo a possibilidade, naAmaznia, de casos de invaso de cerrados em reas ocupadas pela floresta,prefere claramente a primeira hiptese, ao comentar que:

    Quanto aos cerrados da Regio Amaznica, eles podemser explicados como relictos de uma poca em que osfatores ambientais condicionavam um domnio muito maisextenso dos cerrados; domnio esse posteriormenteinvadido por florestas, em quase toda a sua extenso...5

    Para valorizar a hiptese da invaso da floresta sobre a rea de cerrados, Ferriargumenta:

    Cerrado no um bioma criado pelo ser humano. uma vegetao rica,com plantas muito especializadas, que no pode ter surgido de 500 anospara c;

    ocorre em reas onde excessiva a presena de alumnio no solo, cujatoxicidade impede a adequada absoro de nutrientes pelas plantas, dando-lhes a aparncia contorcida que as faz parecer como se fossem tpicas de

    regies semi-ridas (o chamado pseudo xeromorfismo). De modo geral, hgua abundante nos Cerrados;

    quanto maior a presena de xido de alumnio no solo, mais rala avegetao. No gradiente

    campo sujo campo cerrado cerrado cerrado,constatou-se que a saturao do solo em alumnio decrescia de 58% nocampo sujo para 35% no cerrado;

    em Emas, Estado de So Paulo, que Ferri comeou a estudar em 1944, aconservao de uma rea redundou num crescimento incomum das rvores(algumas alcanando 12 metros) e notvel acmulo de material orgnico

    3Este tpico foi escrito, originalmente, em 28/10/1998, para discusso interna no mbito daFundao Odebrecht.4 Professor da USP, um dos maiores especialistas em Cerrados e responsvel pelaorganizao de sucessivos seminrios nacionais sobre o assunto, nas dcadas de 60 a 70.5 IV Simpsio sobre o Cerrado: bases para utilizao agropecuria. Editora Itatiaia, USP, BeloHorizonte, S. Paulo, 1977, p.29. Estudos mais recentes tm aventado a alternncia entre

    florestas e cerrados, por conta de mudanas climticas em escala planetria, aventando que aps a ltima glaciao passou a predominar na Amaznia o clima quente e mido e, comele, a floresta sobre os cerrados.

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    num solo menos lavado e menos aquecido. Ou seja, h uma sensvelalterao nas propriedades do solo que pode induzir ao surgimento devegetao menos resistente ao xido de alumnio, como o caso dosexemplares da floresta amaznica;

    a vegetao do Cerrado, alm de menos exigente em termos de solos,parece sob o ponto de vista evolutivo ser mais antiga do que a florestaamaznica, uma vez que se reproduz, principalmente, por propagao eno por sementes; e

    a Bacia Amaznica recente, pois deve ter comeado a formar-se depoisdo soerguimento dos Andes. J os terrenos sobre os quais se assentam osCerrados so muito mais antigos, permitindo inferir que sua vegetaotambm o seja.

    A esses fatores, acresa-se que a floresta amaznica medrou sobre terrenos

    aluvionais, ou seja, sobre terra trazida pelas guas do Amazonas e seusafluentes, com baixa toxicidade em alumnio, e riqueza, ainda por avaliar, emtermos de material orgnico.

    Cabe observar que a agricultura nos cerrados, hoje o grande celeiro nacional,foi viabilizada a partir da dcada de 1970 mediante a reduo da acidez eda toxicidade em alumnio de seus solos. Fatores naturais podem tercontribudo para mudanas semelhantes, h muito tempo e em maior extenso.

    Fatores, ainda, que podem ter sido catalisados mediante a intervenoantrpica.

    Mesmo que todas essas evidncias como prprio da administrao dodissenso sejam questionadas, o importante fixar que um ecossistema no esttico. A depender de condies as mais diversas, um ecossistema podeampliar-se, reduzindo a rea de outro e vice-versa.

    o que est a acontecer de modo perverso, com o crescimento da capoeirasobre o da Mata Atlntica. Alis, tal constatao no coisa nova: conformeCapistrano de Abreu j apontava faz um sculo6, no caso das florestasbrasileiras, a grande inveno do colonizador foi justamente a capoeira.

    O Derrubador Brasileiro

    No se pense que, ao falar em colonizador, se limite esse termo ao europeu.Ele se aplica, inteiramente, ao nacional, que segundo Sergio Buarque deHolanda se comportava e ainda se comporta como um estranho em suaprpria terra. Com terra abundante para gastar, parecendo nossa agriculturauma variante da minerao.

    6 Captulos de Histria Colonial. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira; Braslia, INL, 1976,p.76. H uma edio on linedesse livro, no stio da Biblioteca Nacional.

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    A esse respeito, uma rpida digresso: quando da Independncia, discutiu-secomo deveria ser chamado aquele nascido no Brasil.

    Os mais puristas sugeriram que deveria ser brasiliense, ou brasiliano.

    Vingou, porm, o termo brasileiro, o qual como todas as palavras com sufixoeiro se refere a uma profisso; no caso, o derrubador de pau-brasil.

    Consta que, em meados do sculo XIX, o conde francs Gobineau um dosformuladores da teoria da raa pura e inspiradores dos nazistas teria ditoque o Brasil era constitudo por uma populao toda mulata, com sangueviciado, esprito viciado e feia de meter medo7.

    Feridos os brios nacionais, teve incio,naquele momento, grande discusso arespeito de qual seria o tipo nacional

    brasileiro.

    Almeida Jnior (1850-1899), ento em Paris,bolsista patrocinado pelo imperador, em1879 concluiu o quadro no qual pretendeuretratar o brasileiro tpico.

    sua poca, o quadro fez grande sucesso.Hoje, mais importantes que o tipo fsico, ahigidez e a virilidade do retratado, merecemdestaque o machado em que apia o braoesquerdo e os ps, ambos sujos de carvo.

    Machado que derrubou a mata, por trs dapedra em que descansa, ao lado de umafonte rumorejante, enquanto pita seu cigarrode palha.

    Carvo proveniente da coivara que ateou.

    - Destruir a Natureza ser o destino dos brasileiros?Durante um tempo que est a revelar-se excessivo, e pelo fato de sermoscolonizados culturais, acreditamos que a escassez populacional da Amazniadecorria do fato de ser um Inferno Verde e que o legado dos brasileiros pr -colombianos teria sido a derrubada e a queimada.

    Estudos recentes sobre a Amaznia revelam um passado muito diverso.

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    Vide a revista Nossa Histria, de junho de 2004. Segundo diversas fontes, D. Pedro II,pessoalmente, teria subornado o conde, para que calasse a boca, a respeito do fsico e docarter de seus sditos.

    O Derrubador Brasileiro. AlmeidaJnior, Paris, 1879

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    Arte Rupestre

    Sem a menor idia a respeito das cavernas de Lascaux e Altamira8, que seriamredescobertas sculos depois, os europeus foram surpreendidos pelo nmero

    de stios, muitos deles em locais de perigoso acesso, gravados ou pintados, emrochas, pelos nativos da Amrica.

    Quando no se entende determinada manifestao cultural, a reao mais fcil desqualific-la. Foi o que aconteceu, na Amaznia, considerando os cronistasdos sculos XVI a XVIII que tais desenhos no passavam de garatujas feitaspor ndios ociosos para matar o tempo.

    Assim como ocorreu em outras partes do mundo, as inscries encontradas naAmaznia devem ter sido feitas sob a mesma inspirao mstica e, por isso,dignos de grande respeito.

    8Na Frana e na Espanha, respectivamente.

    A ARTE RUPESTRE NA AUSTRLIA

    O AUTOR E SUA OBRA

    Ronnie Tjampitjinpa

    Sonho da coleta desementes

    As primeiras gravuras e desenhos rupestres da Austrlia datamde cerca de 40.000 anos. Diferentemente do ocorrido em outraspartes do mundo, os descendentes dos que as fizeram continuama praticar a mesma arte, vivendo seu rico significado.

    Para os aborgines, h um tempo do sonho, que tambm umespao paralelo, no qual vivem as divindades que criaram omundo e velam por ele. Essas divindades ensinaram espcieque criaram por ltimo o ser humano a produzir e a reproduzirsua vida, respeitando tudo o mais que existe, nos reinos mineral,vegetal e animal.

    Antes de ser criado seu corpo, o ser humano teve criada a suaalma, podendo essa alma compartilhar com os deuses o mundo

    dos sonhos, seja depois de sua morte, seja nos momentos emque a alma dos iniciados, liberta do corpo, visita o tempo dosonho, de l retornando com ensinamentos transmitidos pelosdeuses, a respeito de sua vida material, social e espiritual.

    Os ensinamentos recebidos dos deuses a respeito do modo decomportar-se com seus semelhantes, bem como as indicaessobre como encontrar fontes de gua e de alimentos. Essesensinamentos so a nica herana que um aborgine pode legara seus semelhantes e s pode faz-lo por meio de rituaismgicos, que iniciam os jovens nos mistrios de sua famlia e osensinam a interpretar o mapa que serve de suporte material aosonho.

    V-se, ao lado, a foto de um conceituado artista aborgine e umade suas obras: as retas representam os caminhos e, os crculos,os locais onde as mulheres podem encontrar as pequenassementes negras, chamadas wakiti, muito apreciadas em suaalimentao. Os caminhos precisam ser trilhados numadeterminada ordem, a fim de que os deuses sejam respeitados e

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    No caso das gravuras e desenhoslticos amaznicos, numa regio topobre em pedras, alm de mapas,eles devem ter servidos, tambm,como pontos de referncia sobre o

    caminho a seguir.

    Durante muito tempo, a pesquisacientfica sobre a Amaznica pr-colombiana limitou-se cermica,pouco valorizando a investigaodos testemunhos gravados oupintados em pedra.

    Foi publicado, recentemente,excelente trabalho, de autoria de

    Edithe Pereira9, relacionandodesenhos e gravuras em pedra, porenquanto restritos ao Estado doPar.

    Apenas no rio Erepecuru e de seustributrios, que alimentam o rioTrombetas, somente neles foramencontrados 28 stios contendoregistros em pedra.

    Notvel que a baciadesse rio tenhanascentes nas Gianas,parecendo tratar-se deum curso dgua quefacilitou a penetraona Amaznia, pela viado Caribe.

    Segundo EdithePereira, apenas noEstado do Par, entreos anos 1980 e 1990foram identificados aolongo ao Amazonas ede seus tributrios 111 stios deocorrncias de arterupestre:

    9Arte Rupestre na Amaznia - Par. Belm, Instituto Paraense Emlio Goeldi; Minerao RioNorte; S. Paulo, UNESP, 2003.l

    mapas do caminho, nocurso do rio Erepecuru?

    Rio Erepecuru e seus tributrios, afluentes do Trombetas

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    ARTE RUPESTRE NO ESTADO DO PAR

    STIOS N

    Bacia do Trombetas 39Bacia do Araguaia - Tocantins 16

    Monte Alegre 14

    Bacia do Xingu 14

    Prainha 7

    Alenquer 5

    reas Promissoras 10

    reas Isoladas 6

    TOTAL 111

    Esses stios, tanto na margem esquerda, quanto na margem direita dosprincipais afluentes do Amazonas e dele prprio, evidenciam uma ocupaohumana muito antiga, que data de 20.000 a 10.000 anos antes de nossa era.

    CermicaA cermica uma das manifestaes de arte utilitria que caracterizam, commaior propriedade, o grau de desenvolvimento das comunidades humanas pr-histricas.

    Os europeus aqui chegados no incio da colonizao viram a cermicamarajoara como uma arte viva.

    Hoje, essa cermica original s vista nos cacos garimpados pelosarquelogos, ou nas contrafaes feitas por artesos paraenses, para venda a

    turistas. Seu significado cultural e religioso perdeu-se na memria dostempos10.

    Todavia, quando da Viagem Filosfica de Alexandre Rodrigues Ferreira,realizada no final do sculo XVIII, comentada mais adiante, a cermicamarajoara era uma obra viva. Na ocasio, vista por inteiro, e no aos cacos.

    10 Deve-se a Paulo Pardal o mrito de ter revalorizado, na memria brasileira, as carrancas doRio So Francisco. Para ele, visvel a alta qualidade esttica das antigas carrancas, feitaspara espantar os maus espritos do Velho Chico. Quando essas carrancas comearam a serproduzidas para turistas, sua qualidade caiu drasticamente. Fato do qual estavam plenamente

    conscientes os artesos locais. Segundo eles, uma coisa era fazer carrancas para exorcizar osdemnios; outra, muito diferente, era fazer carrancas para enfeitar as salas daqueles quemoravam nas cidades.

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    Fica claro na prancha que, alm de apurado senso esttico, os ceramistas

    marajoaras dominavam, de fato, a tecnologia de fabricao: os potes com alatinham de ser resistentes para serem carregados nas mos ou nos ombros.

    Uma cermica com essas caractersticas no poderia ser feita por um povoprimitivo.

    Durante muito tempo, acreditou-se que o ofcio cermico capaz de fazer essasobras teria sido transmitido pelos povos incaicos aos atrasados ndios do atualterritrio brasileiro, tanto mais em decorrncia do fato de que cermicasemelhante era fabricada na atual Amaznia peruana.

    Cermica do Baixo Amazonas, desenhada pela equipe deAlexandre Rodrigues Ferreira. Viagem Filosfica. Braslia, CFE, 1971

    Detalhe: praticidade e resistncia da cermica marajoara

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    Ocorre que o auge do imprio incaico deve ter ocorrido h cerca de 1.000 anosantes de nossa era, enquanto a datao via carbono 14 da cermicamarajoara acusa exemplares fabricados em torno de 8.000 anos a.C.

    Ou seja, o ofcio propagou-se no sentido contrrio do imaginado: da ilha de

    Maraj em direo ao Alto Amazonas.

    Mais elaborada e melhor fabricada que a cermica marajoara, foi a cermicapatajnica, ainda muito pouco conhecida.

    Essa cermica, alm das formas trabalhadas, incorporava um avano tcnicode monta: a argila era misturada com uma esponja encontrada nos rios daregio, o que lhe conferia uma leveza e uma resistncia sem par.

    A descrio mais vivida dessa cermica deve-se ao padre Samuel Fritz, deorigem tcheca, que vindo de Quito chegou a Belm no final do sculo XVII. de sua autoria o primeiro mapa decente do Amazonas e de seus principaisafluentes.

    Mapa que serviria de base para aquele traado por La Condamine,considerado o primeiro feito em bases cientficas.

    Cermica cerimonial dos ndios Tapajs

    Carta do Amazonas pelo padre Samuel Fritz, 1691

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    Economia

    Os povos caadores e coletores, que legaram tantos rastros da ocupao doAmazonas e de seus afluentes, comearam a tornar-se sedentrios por volta

    de 1.000 anos antes de nossa era.De incio, como semi-nmades, seguindo o padro que hoje caracteriza osndios brasileiros: o cultivo de razes, especialmente as da mandioca, queimplicava na derrubada das grandes rvores, na queimada e no subseqenteplantio. Quando se reduzia a produtividade natural do solo, migravam paranovas terras, repetindo o mesmo processo.

    Em seguida, como agricultores estveis, produtores de sementes, tais comoo milho e o arroz-bravo, bem como responsveis pela implantao de lavouraspermanentes, a exemplo do cacau e de outras rvores frutferas.

    Agricultores estveis que complementavam sua alimentao com a pesca,tornada mais abundante por meio de represas por eles construdas, as quais nas pocas de seca mantinham vivos peixes, tartarugas e outros frutos dorio. E, na medida em que cavavam represas, dispunham de aterro para sediarsuas aldeias, mantendo-as secas por ocasio das cheias.

    Graas a fotos areas e de satlites, tem sido possvel localizar os antigosstios que ocuparam, tanto no Baixo, quanto no alto Amazonas.

    Enquanto os astecas, maias e incas, por disporem de pedra abundante,

    deixaram registros evidentes de suas civilizaes, os povos amaznicosserviam-se da madeira e do adobe abundantes, cujos testemunhos foramapagados pelo tempo.

    Na busca da monumentalidade, os povos que trabalhavam com a pedra seexcediam na altura. Os povos amaznicos excediam-se em termos desuperfcie, traando estradas que s recentemente esto sendo identificadas.Dentre elas, conexes de uma aldeia para outra, com 40 ou mais metros delargura. Rasgar estradas de tal porte s se explica pelo fato de que haviaalimentao abundante e era possvel investir na melhoria das condies devida.

    A respeito da alimentao, os cronistas europeus dos sculos XVI e XVIIdeixaram significativos depoimentos.

    Digno de meno, pela suaantigidade, o devido a Pero deMagalhes Gndavo, cronistacuja obra foi aprovada pelo SantoOfcio em 1575: Histria daProvncia de Santa Cruz.

    Diz Gndavo:

    APROVAAM

    Li a presente obra de Pero de Magalhes, por

    mandado dos Senhores do Conselho geral da

    Inquiziam, e nam tem cousa que seja contranossa Santa Fee catholica, nem os bons costumes,

    antes muitas, muito pera ler, oje dez de

    Novembro de 1575.-- Francisco de Gouvea.

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    Primeiramente tratarei da planta e raiz de que osmoradores fazem seus mantimentos que la comem emlogar de po. A raiz se chama mandioca, e a planta deque se gera he de altura de hum homem pouco mais ou

    menos.

    Alm deste mantimento, ha na terra muito milho zaburrode que se faz po muito alvo, e muito arroz, e muitasfavas de differentes castas, e outros muitos legumes queabasto muito a terra.

    Milho, arroz e outros plantios feitos pelos ndios? No entendimento de umbrasileiro de hoje trata-se de coisa inusitada.

    Ainda mais inusitada a chamada terra preta de ndio.

    A terra preta atualmente utilizada em hortas, jardins e vasos de plantas muitocara, pois demanda tempo e trabalho disciplinado de quem a produz.

    Pois bem: lugares h, na Amaznia, nosquais essa terra preta ultrapassa doismetros de fundura.

    De acordo com estudos recentes, aindacarecendo de confirmao, 1cm de terrapreta, resultante da deposio de restosorgnicos produzidos pelo homem, leva10 anos para formar-se.

    Se, de acordo com a segunda figura aolado, h depsitos de terra preta com2,5m de profundidade, tais depsitosdeveriam levar 2.500 anos para seremformados.

    Um prazo dessa magnitude s pode ser

    explicado por uma longa ocupaosedentria, muito diferente daquela hojeseguida pelos atuais povos indgenas.

    Quer dizer, em algum momento dahistria da Amaznia, houve lugar parauma duradoura ocupao agrcola.Ocupao essa cuja existncia somentecomeou a ser redescoberta na dcadade 1980.

    estratificao do solo

    Escavao com 2,5m de terra preta

    Terra original

    Terra preta antrpica

    Material orgnico recente

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    LAVOURAS PERMANENTES ENTREOS NDIOS BRASILEIROS?

    Trabalhos arqueolgicos recentes, que tiveram incio da dcada de 1980, graas norte-americana Anna Roosevelt, demonstraram que a agricultura de razes (mandioca, batata doce

    e inhame, entre outras), praticada nos primrdios da sedentarizao do ndio brasileiro, foram aos poucos perdendo importncia diante do crescente cultivo de sementes, sobretudo domilho e do arroz bravo.

    Rplica de muraquit, feitapor Mestre Cardoso,

    arteso da ilha de Maraj.

    Essas mesmas pesquisas demonstraram que os ndios doBaixo Amazonas desenvolveram espcies mais produtivasde milho, talvez mediante o intercmbio entre os ndios dafoz do Orinoco e, por meio destes, com os da Mesoamrica.

    Os contatos devem ter sido freqentes, inclusive a julgar peladifuso nessas regies dos muiraquits, amuletospossudos pelos estamentos mais ricos, muitos deles feitosde jade, pedra que se imaginava restrita sia, mas muitocomum na Amrica Central.

    Em trabalho pioneiro no campo da Etnobiologia, foireintroduzido, nas aldeias kra, a variedade de milhophypey, que desaparecera na dcada de, substitudo porvariedades comerciais.

    rea de ocorrncia nativa doarroz bravo (oryza

    grandiglumis)

    Em 2003, a organizao italiana Slow Food, premiou otrabalho conjunto dos kra, da EMBRAPA e da FUNAI, poisalm da melhoria das condies nutricionais essareintroduo estimulou a prtica de cerimnias religiosas quehaviam cado em desuso desde a dcada de 1970.

    Afora esta planta, foram identificadas mais de 80 espciesdiferentes, cultivadas pelos kra, demonstrando a variedadede seu saber agrcola.

    Quase esquecidas, voltam a ser valorizadas, pela pesquisagentica, as variedades de arroz bravo, antes largamentecultivado na Amaznia, chamado pelos ndios de milhodgua e que nunca faltaram aos primeiros viajanteseuropeus que percorreram o Grande Rio.

    ARROZ BRAVO

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    Vida Urbana

    Cronistas do sculo XVI e do incio do sculo XVII falaram de aldeias capazesde mobilizar 6.000 arcos; ou seja, igual nmero de homens adultos,

    aparelhados para a guerra. Isso significa que tais aldeias teriam em torno de20.000 ou mais residentes.

    H referncias sobre flotilhas com 200 ou mais canoas, as menores delas com10 ou 12 ndios, as quais, no incio dos anos 1600, chegavam a impedir otrnsito dos europeus pelo Grande Rio.

    Uma fora como essa, com mais de 2.000 guerreiros, providos de munio deguerra e de boca, exigia uma organizao muito superior da que possuem asmais populosas tribos amaznicas de hoje.

    Falam tambm os cronistas a respeito do tamanho das aldeias, de suasdefesas, do nmero de ocas e de suas estradas de acesso.

    A figura acima reproduz uma aldeia J, objeto de expedio punitiva dosportugueses e de seus aliados indgenas, no sculo XVIII, quando os grandesaldeamentos j haviam passado de seu apogeu.

    Mesmo considerando que os ndios dessa etnia no eram os maisdesenvolvidos, a aldeia possua, na segunda metade do sculo XVIII, 156ocas, geometricamente dispostas em torno de uma praa, na qual se

    concentravam as construes comunitrias.

    Aldeia J, no sculo XVIII

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    Alm de uma via principal, que cortava aaldeia, havia mais oito vias secundrias e,circundando o todo, so notadas duas linhasde paliadas.

    Ao lado, detalhe da figura anterior, a lutadesigual entre a arma de fogo e o arco.

    Organizao Social

    No imprios asteca e inca, as obras de irrigao e terraceamento cedoexigiram uma forte organizao social, que redundou no estabelecimento degovernos igualmente fortes.

    No caso da Amaznia, a vastido territorial e a possibilidade de os insatisfeitos

    subtrarem-se a uma autoridade central, inclusive mediante a fuga, conduzirama governos mais frgeis, que se convencionou chamar de cacicados.

    Cacicados que, de fato existiram, conforme testemunho de contemporneos, acomear por frei Gaspar de Carvajal, que esteve no Amazonas, em meados dosculo XVI, e ao qual se deve o seguinte relato:

    Quando chegaram, vimos que cada um tinha um palmo amais do que o mais alto de ns, e eram muito brancos.Seus cabelos chegavam at a cintura. Usavam muitas jias e muitas roupas. Trouxeram muita comida e

    chegavam com tanta humildade que todos ficamosespantados com sua atitude e boa educao; ... edisseram que eles eram vassalos de um Cacique muitoimportante, e que por sua ordem, tinham ido at l parasaber quem ramos, o que queramos e de ondevnhamos11.

    Dentre os cacicados, merecedestaque o tapajnico, cujoaldeamento principal deuorigem cidade de Santarm.Compreendia vrias tribos, deetnias e lnguas diversas, sob asuserania dos tapajs.

    Devido a sua proximidade deBelm, foi um dos primeiroscacicados a ser destrudo.

    Escavaes recentes e a interpretao de fotos de satlites revelaram restosde dezenas de aldeamentos na ilha de Maraj.

    11 Citado por Ronaldo Raminelli, Depopulao na Amaznia Colonial, in XI EncontroNacional de Estudos Populacionais da ABEP, p. 1359. Vide stio da ABEP na Internet.

    O cacicado tapajnico

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    A figura ao lado delimita a rea emque foram encontrados vestgios dosprincipais aldeamentos marajoaras,cuja civilizao deve ter chegado ao

    declnio antes da chegada doseuropeus.

    Somente no stio de Camutins foramencontrados vestgios de mais umadezena de aldeias, dispostas ao ladodo que deveria ter sido uma largaestrada.

    No detalhe da figura anterior, v-se,abaixo, a disposio das aldeias

    cujos restos foram encontrados naregio de Camutins12.

    Tal organizao espacial deixa clara aexistncia de:

    populaes sedentrias;

    um poder minimamente centralizado;

    disposio para realizar inves-timentos duradouros;

    razovel grau de planejamento; e

    capacidade de executar o planejado.

    Cada uma dessas aldeias, segundo osvestgios, devia ter uma populao de3.000 a 5.000 pessoas e se

    interligavam, por intermdio de uma ampla estrada, de traado retilneo.

    A tnica, nessas aldeias, era a existncia de diques e audes para reteno depescado nas pocas de seca e de aterros para que as aldeias se mantivessema salvo das cheias.

    Com uma organizao desse tipo, fica fcil de entender porque foi possvelaprimorar um tipo de cermica to elaborado, como a marajoara.

    As escavaes revelaram, ainda, uma sociedade estruturada em estamentos,sendo as partes mais altas dos aterros reservadas aos mais ricos.

    12 Vide Giovana Girardi, ndios do Brasil, inHistria Viva, julho de 2004, pp. 70-74.

    rea do presumido

    cacicado marajoara

    Detalhe: distribuioespacial das aldeias

    em Camutins

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    A riqueza no assumia a forma de metais preciosos, mas de disponibilidade dealimentos para manter mais dependentes, inclusive escravos.

    De acordo com o testemunho dos cronistas, os cacicados eram organizaesvoltadas para a guerra de conquista, visando incorporao de novos

    territrios e povos; ou seja, o mesmo processo que, na Antigidade, levara constituio dos imprios.

    O poder militar servia, ainda, para manter as tribos mais atrasadas distnciadas terras e guas mais produtivas.

    As escavaes arqueolgicas ainda esto no incio, mas j foram encontradosfortes indcios de outro cacicado na foz do rio Negro, na regio onde mais tardefoi fundada Manaus. Assim como deve ter havido outro, no Solimes,dominado pelos Omguas e, a julgar pelas fotos de satlite, imensas aldeias nocurso do Xingu.

    A continuidade das pesquisas poder confirmar o que apontaram todos osviajantes que l estiveram entre o final do sculo XVII e a primeira metade dosculo XVIII: centenas de aldeias, com milhares de moradores, se sucedendodesde o Alto at o Baixo Amazonas.

    Ocorreu que esse processo civilizatrio foi bruscamente interrompido com achegada do europeu.

    GenocdioEm 1615, os franceses foram expulsos da ilha de So Lus, no Maranho,abrindo caminho para a expanso portuguesa rumo foz do Amazonas, naqual foram rapidamente destrudas feitorias de franceses, ingleses eholandeses, que h muito comerciavam, com os indgenas, as chamadasdrogas do serto.

    Da em diante, os portugueses avanaram rapidamente alm da Linha deTordesilhas, s fazendo alto quando encontraram os postos avanadosespanhis, na regio que hoje integra a Amaznia peruana. Numa fase inicial,esse avano foi facilitado pela unio entre as coroas ibricas, que vigorou noperodo de 1580 a 1640.

    No caminho, a despeito dos protestos do padre Antnio Vieira e das ordensrgias que esses protestos inspiraram, a tentativa de escravizar os ndios deulugar a um dos maiores genocdios que houve na Amrica.

    Em menos de um sculo, segundo estimativas ainda superficiais, morrerammais de trs milhes de ndios, somente por conta do aprisionamento eexpedies punitivas contra aqueles que se rebelavam.

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    Algumas dessas expedies foram documentadas sob a forma de relatrios,dentre os quais j foram identificados os seguintes:

    RELATRIOS SOBRE A PREAO E A PUNIO DE NDIOS 1651-1721

    DATA CHEFE DA EXPEDIO LOCAL/TRIBO

    1651 Bartolomeu Bueno de Atade Rio do Ouro

    1657 Maciel Parente, filho Baixo Rio Negro

    1662/66 Domingos Monteiro Pucu Tupinambs, Conduris e Arawak

    1663 Antnio Arnau Vilela Rio Urubu (*)

    1664 Pedro da Costa Favela Idem (**)

    1664 Idem Rios Urubu e Negro1668/69 Idem Idem

    1669 Francisco da Mota Falco Barra do Rio Negro

    1671 Manoel Coelho Rio Solimes

    1673 Francisco Lopes Idem

    1688 Hilrio de Souza Azevedo Arawak e Carapitana

    1688 Andr Pinheiro Rio Negro

    1691 Joo de Morais Lobo Rios Tapajs e Madeira

    1692 Hilrio de Souza Azevedo Idem

    1706 Francisco Soeiro de Vilhena Rio Tapajs

    1708 Pedro da Costa Rayol Rio Uatum

    1716 Joo de Barros Guerra Rio Madeira

    1721 Diogo Pinto de Gaya Lago Cupac

    (*) expedio destroada pelos ndios.(**) expedio punitiva para vingar o insucesso da expedio anterior, na qual foram

    destrudas mais de centenas malocas.

    Essas expedies eram, inicialmente, anuais, para repor os ndios que morriamou fugiam dos aldeamentos implantados pelos colonizadores s margens doAmazonas e de seus principais afluentes13.

    Entretanto, com a progressiva extino dos ndios, as expedies comearama rarear.

    13A transferncia dos ndios para tais aldeamentos eram chamadas de descimentos.

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    Alm dos ndios mortos em defesa de sua liberdade, muitos deles se findavampelo caminho. Um nmero incalculvel morria em decorrncia da exausto pelotrabalho, da fome e dos maus-tratos. No poucos se suicidavam.

    Era comum que as ndias provocassem o aborto ou praticassem o infanticdio,

    a fim de que seus filhos no padecessem no inferno em que viviam os adultos.

    O padre Joo de Souza Ferreira, que esteve na regio no sculo XVII, assimcomentava como as ndias se recusavam a gerar novos escravos:

    ... uma (escrava) tinha j morto quatro filhos, o primeirocom terra, que lhe ensinou a comer, sendo de 7 anos; osegundo tanto que o pariu, lhe deu com a cabea em umpau, e quando se soube que o tinha enterrado, se foiachar ainda palpitando, mas j incapaz da gua do

    batismo; o terceiro e quarto, com uma erva que bebeu, osdeitou antes do tempo.14

    Por outro lado, criada a oportunidade, ocorriam fugas em massa. Quandoenvolviam o assassinato de colonos, a expedio punitiva era imediata edevastadora.

    Porm, ainda mais letais que as armas de fogo e as condies degradantes detrabalho, era a guerra biolgica: milhes de ndios morreram de varola,sarampo e gripe. Desses, no poucos como o caso dos Omguas praticamente se extinguiram, antes mesmo do contato com os portugueses: osvrus se antecipavam ao colonizador.

    Relataram diversos cronistas, em particular, o efeito devastador da varola, quetornava desertas aldeias inteiras.

    Estima-se que a populao indgena da Amaznia, ao iniciar-se o sculo XVII,era de sete milhes de ndios; ou seja, aproximadamente 60% da populaoatual da Regio.

    No incio do sculo XIX, essa populao estava reduzida a algumas centenasde milhares.

    14 Citado por Ronaldo Raminelli. Depopulao na Amaznia Colonial, inXI Encontro Nacionalde Estudos Populacionais da ABEP, p. 1363.

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    O TESOURO DESCOBERTO NO RIO AMAZONAS

    O manuscrito de padre Joo Daniel, Tesouro Descoberto no Mximo RioAmazonas, s foi publicado na ntegra exatamente dois sculos depois. 15

    No deve causar espcie essa demora.

    Cultura e Opulncia do Brasil por suas Drogas e Minas, de Joo AntnioAndreoni, escrito sob o pseudnimo de Andr Joo Antonil, publicado em1711, foi proibido logo em seguida e teve queimada sua primeira edio. Aobra s foi republicada em 1898, sob os auspcios de Capistrano de Abreu, aquem se deve a descoberta de que Antonil e Andreoni eram a mesma pessoa.

    A Viagem Filosfica de Alexandre Rodrigues Ferreira, mais adiantecomentada, concluda em 1793, s foi publicada em 1971, embora estivesse

    disponvel dentre os manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro,desde 1808.

    A Histria dos Animais e rvores do Maranho, escrita entre 1624 e 1627,s foi publicada pelo Arquivo Histrico Ultramarino, de Lisboa, em 1967; ouseja, 340 anos depois.

    A queima do livro de Antonil e a demora na publicao desse tipo de obrafaziam parte de deliberada poltica da Coroa portuguesa, no sentido de evitar oacesso de estrangeiros a informaes sobre o Brasil.

    Para as autoridades reinis tomarem as decises cabveis, no careciam deobra impressa; bastavam-lhe os manuscritos.

    No caso especfico do padre Joo Daniel, havia ainda agravantes para retardara publicao de seu livro: era um jesuta, preso em Belm na poca em que aOrdem foi expulsa de Portugal e de suas colnias; e sua obra foi escrita nocrcere, em Portugal, onde morreu sem ter culpa formada e julgamento.

    O Tesouro Descoberto, redigido quase todo de memria16, alm de relatar ogenocdio infligido aos indgenas, antecipava o fracasso da poltica adotadapelo Marqus de Pombal, aps a expulso dos jesutas e a implantao do

    regime do Diretrio, em 1755, mais adiante comentado.

    No Captulo 15 da Parte Segunda de sua obra, diz Joo Daniel:

    15Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, BN, 1976, v.95, t. I e II (1975). Devido poca conturbada em que foi impresso e o tipo de publicao, o livro em dois volumes tevereduzida divulgao. Trata-se, porm, de uma das obras mais completas sobre a ocupaoportuguesa da Amaznia. Enquanto este texto estava em preparo, soube-se que a EditoraPerspectiva, do Rio de Janeiro, acabara de lanar nova edio do livro do padre Joo Daniel.Sua leitura ser muito enriquecedora para todos aqueles que querem mais saber sobre a

    histria da Amaznia e discutir sobre a promoo de seu desenvolvimento sustentvel.16 Tanto que foram deixadas em branco, no manuscrito, datas, locais, termos e tribosindgenas, que o autor pretendia completar quando fosse liberto.

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    Da grande fecundidade dos ndios, e da sua numerosa multidoapenas poderemos dar alguma, posto que muito diminuta notcia,para que os leitores possam formar algum conceito, regulando-meno pelo tempo presente, em que eles esto to diminutos, queapenas haver a milsima parte, mas pelo passado, quando eleseram muito senhores das suas terras, e do seu nariz...

    Na verdade que se esgotaria a aritmtica em querer contar toinumervel multido; baste saber que sendo o Rio Amazonas extensopor 1.800 lgoas, todas as suas margens estavam povoadas deinumerveis ndios por ua, e outra banda; e da mesma sorte os rioscolateraes, ribeiras e lagos, em que os ndios eram tantos, comoenxames de musquitos; as povoaes eram sem nmero, e adiversi[da]de de naes, e lingoagens era sem conto...

    Em confirmao expedio punitiva havida em 1664, diz o autor:

    De sorte que s no Rio Urubu, que a respeito dos colateraes se podechamar um regato, queimou ua tropa de ua assentada 700 populosas

    aldeas...

    Para comprovar que o morticnio j vinha de longa data, o autor citacarta que Antnio Vieira endereou ao rei de Portugal, observandoque j, na segunda metade do sculo anterior, a devastao j iaadiantada:

    Em algum tempo cada aldea de ndios ... podia pr em campo, sehouvesse guerras, para cima de 5.000 arcos; e as j domesticadas[mal] passavam, s at o Gurup, pouco acima da foz do Amazona,sde 500 [arcos].

    Em continuao, diz Joo Daniel:E se os coriosos leitores perguntam: como se matava to livremente,e com tal excesso os ndios, podem ver a resposta nos autores quefalam nesta matria. Eu s direi, que havia tanta facilidade nosbrancos em matar ndios, como em matar musquitos...

    17

    O comportamento dos colonos a prova cabal de que a disponibilidade dendios para escravizar parecia infinita: acreditavam que os escravos mortosnum ano seriam repostos ano vindouro, mediante a preao e o descimento demais indgenas.

    Os fatos relatados por Joo Daniel eram do conhecimento das autoridadesportuguesas, assim como a conscincia de serem incuas as ordens rgiasque procuravam reduzir a matana.

    O DIRETRIO POMBALINO

    Em 1750, sobe ao trono portugus D. Jos I, que nomeia o futuro Marqus dePombal como seu primeiro-ministro. Cargo em que se manteve por quase 30anos, at a morte do rei.

    17 Op.cit, pp. 257-259 da edio da BN.

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    Em 1755, Pombal expulsou os jesutasde Portugal e de suas colnias, no quefoi mais tarde seguido pelos reis daEspanha e da Frana e, tempos depois,

    pelo Papa, que extinguiu a Companhiade Jesus.

    Criou Pombal uma Companhia deComrcio para a Regio, nos moldesholandeses e ingleses, e nomeou seumeio-irmo como Governador do Estadodo Gro-Par e Maranho.

    No dois Estados em que estava divididoo Brasil, declarou os ndios vassalos do

    rei, da mesma forma que os colonos;incentivou os casamentos inter-raciais; e

    disps que os ndios deveriam autogovernar-se, por intermdio de seusprincipaes.

    Entretanto,

    diante da rusticidade, e ignorncia, com que at agora fora educados, noterem a necessria aptida que se requer para o Governo, ... haver emcada huma das sobreditas Povoaoens, ... um Director.18

    As aldeias indgenas passaram a chamar-se vilas, com uma organizao espa-cial, poltica e social europia.

    Devido falta de legitimidade, a substituio da autoridade espiritual pelaautoridade temporal, em vez de melhorar, piorou a vida dos ndios.

    De um lado, porque aos diretores no importava educar os ndios, masenriquecer-se o mais rapidamente possvel, tanto mais por serem demissveis,a qualquer momento, pelas autoridades metropolitanas.

    De outro, porque alm de terem de sustentar as autoridades e as tropas

    portuguesas os ndios residentes nas vilas deveriam prestar serviosforados aos colonos durante determinadas perodos do ano. Servios pelosquais raramente recebiam qualquer paga e, em vez de provisria, tal prestaode servios se eternizava, com a concordncia dos diretores, mais simpticosaos colonos do que aos ndios, inclusive pela via do suborno.

    No se pense, entretanto, que vivessem os colonos num mar de rosas. Pelocontrrio, sobreviviam miseravelmente, pois a produtividade da economiaindgena pr-colombiana foi destruda e, em vez de aportarem novas

    18 Vide Diretrio dos ndios do Marqus de Pombal, inhttp://www.ipol.org.br/ler.php?cod=185.Coligido por Rita Helosa de Almeida.

    O marqus de Pombal como promotor

    do comrcio e da navegao

    http://www.ipol.org.br/ler.php?cod=185http://www.ipol.org.br/ler.php?cod=185http://www.ipol.org.br/ler.php?cod=185http://www.ipol.org.br/ler.php?cod=185
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    tecnologias, esses colonos deixaram que se degradassem aquelas trazidas dePortugal.

    Um exemplo tpico foi o da construo naval. As figuras a seguir, desenhadaspela equipe de Alexandre Rodrigues Ferreira, valem mais que mil palavras.

    Em vez de superar o original, a cpiao degradou.

    Ademais:

    a agricultura sedentria regrediu,provocando um atraso de milanos, pois a agricultura desementes foi esquecida, porconta da agricultura de razes, a

    qual em vez de gerar terrapreta gerava queimadas; e

    os ndios mais civilizados foramos primeiros a serem extintos,estimulando os ndios maisatrasados, ainda na fase doneoltico, a ocuparem as terrasmais frteis e as guas maispiscosas.

    Mesmo no caso dos sertanistas quechefiaram as expedies de preaodos ndios, sua histria umacomprovao do fato de que, semriqueza moral no h riquezamaterial que subsista.

    Em obra que ser examinada no tpico seguinte, diz Alexandre RodriguesFerreira:

    No permitia a Justia Divina, que nenhum desses jamaisenriquecesse... No s no tinham casas, em que morarem, masnem plantas, nem roas, nem camisas, com que se vestissem... OsGentios que obedeciam a semelhantes homens viviam na sua naturalbarbaridade. Observavam os costumes nativos sem conhecimentoalgum dos Mistrios da F.19

    difcil ter-se um caso mais expressivo das conseqncias da destruio docapital humano do que o ocorrido na Amaznia, entre os sculos XVI e XVIII.

    Destruio do capital humano que levou conseqente degradao docapital social, do capital produtivo e do capital ambiental da Amaznia.

    19Memrias. Braslia, Conselho Federal de Cultura, 1974, p. 25.

    A canoa portuguesa, ao fundo, e suacontrafao amaznica, frente

    Detalhe 1: canoa reinol

    Detalhe 2: canoa amaznica

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    Para quem desejar se aprofundar a respeito desse tema, recomenda-se aexcelente Histria dos ndios do Brasil, organizada por Manuela Carneiro daCunha e editada pela Cia. das Letras.

    Fato ainda mais grave, o passado da regio foi esquecido, difundindo-se acrena de que os ndios da Amaznia eram um bando de selvagens, aindavivendo na Idade da Pedra, e que a regio era escassamente povoada.

    Engano ainda generalizado e que parece ter-se mantido para aparentar que osbrasileiros nunca se comportaram como os estado-unidenses o fizeram nosculo XIX.

    Ocorre que, quando de nossa Independncia e de nossa tardia Marcha parao Oeste, eram muito poucos os ndios a exterminar. Os colonizadoresportugueses e seus continuadores brasileiros j haviam promovido a limpezatnica, h muito tempo.

    A VIAGEM FILOSFICA

    Alexandre Rodrigues Ferreira nasceu na Bahia, em 1756.

    Doutorou-se na Universidade de Coimbra, na qual exerceu a funo dePreparador de Histria Natural. Essa Universidade havia passado a valorizar asCincias da Natureza, depois da reforma que fora imposta pelo marqus de

    Pombal. Em 1783, reinava a me do futuro D.Joo VI, D. Maria I, a Louca, cujoprimeiro ato foi a demisso dopoderoso primeiro-ministro.

    Naquele ano, Ferreira, nomeadonaturalista, foi incumbido de chefiara expedio Amaznia, que ficouconhecida como Viagem Filosficapelas Capitanias do Gro-Par, Rio

    Negro, Mato Grosso e Cuiab.

    Ferreira e sua equipe aportaram emBelm do Par ainda em 1783,dedicando-se ao estudo da Ilha deMaraj e de outras localidadesprximas a Belm, at o final de 1784.

    Em 1785, a expedio seguiu para oRio Negro, subindo o Rio Branco, emvisita ao atual Estado de Roraima.Retornou a Barcelos, ento capital daCapitania de So Jos do Rio Negro,

    Presume-se que retrate AlexandreRodrigues Ferreira a figura europia

    includa na alegoria que serve defrontispcio a sua obra. Notem-se as

    feies abrutalhadas do ndio ajoelhadodiante do mapa do Rio Amazonas.

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    atual Amazonas, de onde partiu em demanda a Mato Grosso, passando pelosrios Madeira e Guapor.

    Tornou ao rio Amazonas, rumando para Belm, de onde seguiu, em 1793, paraLisboa, depois de quase um decnio de viagem pela Amaznia. O percurso

    que seguiu est assinalado no mapa em continuao.

    Ao longo de quase uma dcada, Alexandre Rodrigues Ferreira abasteceu a

    metrpole com material de interesse comercial e cientfico diligentementerecolhido e tratado, ao mesmo tempo em que seus dois desenhistas, ouriscadores, na linguagem da poca, preparavam centenas de pranchasbotnicas, zoolgicas, etnogrficas, econmicas e arquitetnicas.

    evidente que a misso confiada a Ferreira no se limitava cincia. Visava,sobretudo, produo de informaes acerca da situao poltica, econmica,social e militar da regio e, em particular, que permitissem melhor avaliar osonho que comeara a tomar corpo quando o Marqus de Pombal era primeiro-ministro e, especialmente, depois do terremoto ocorrido em Lisboa, em 1755: atransferncia da capital do reino, da margem do Tejo para a margem do

    Amazonas.

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    No sculo XVII, perdido o comrcio asitico para a Holanda e a Inglaterra, acolnia brasileira convertera-se em esteio da Coroa portuguesa.

    O grfico ao lado mostracomo, no final do sculoseguinte, tal esteio tornara-seainda decisivo20.

    No final do sculo XVIII, oBrasil era responsvel por85% das importaes dePortugal, as quais, malchegavam metrpole, emsua maioria eram

    exportadas.

    Acresa-se, a isso, o fato deque essas importaes eramfortemente taxadas, assimfinanciando a Coroa e o Estado portugus.

    Ao retornar a Lisboa, as autoridades cumularam Alexandre Rodrigues Ferreirade grandes honrarias. Porm, morreu amargurado, pois sua obra no foipublicada e menos ainda, a seu ver, gerou as decises que esperava, emtermos da valorizao da Amaznia.

    Pobre engano! Ferreira levou s autoridades metropolitanas, exatamente, asinformaes que elas precisavam para decidir.

    Diz Alexandre Rodrigues Ferreira, em seu Dirio, a respeito dos ndios:

    Sim, eles no morriam de repente; porm o trabalho e o jejumquotidiano insensivelmente lhes... [propiciava] a morte emdiversos tragos: chega a doena, que h muito est forjada, eneste caso os diretores no os tratam, como os tratavam seus

    padres...21

    Em recenseamento que fez na outrora populosa regio do Rio Negro, onaturalista s encontrou 6.642 habitantes, dos quais 90% ndios.

    Os mapas populacionais, mostrados por Ferreira em seu Dirio, deixam clara ainviabilidade das vilas pombalinas, ao evidenciar a desproporo entre

    20

    Os dados deste e do prximo grfico foram extrados de Roberto C. Simonsen. S.Paulo, Cia.Editora Nacional; Braslia, INL, 1977. Histria Econmica do Brasil, 3. ed., p. 35821 Citado por Romanelli. Op.cit, p. 1371-1372

    85%

    13%2%

    BRASIL SIA E FRICA MADEIRA E AORES

    Importaes coloniais da metrpoleportuguesa em 1796

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    homens adultos e crianas, essas ltimas representando apenas entre 15% a20% da populao total; fato que, demograficamente, uma aberrao.

    Por conta da vontade de Pombal, seguindo o mesmo plano, as vilas indgenasforam erguidas at mesmo nas lonjuras do Rio Branco, no atual territrio deRoraima.

    Retratadas pelos desenhistas da Viagem Filosfica, pareciam distnciaarrumados prespios. Vazias, porm, daqueles que deveriam perpetu-las.

    At ento, sobre a Amaznia, possuam as autoridades portuguesasinformaes geradas pelos jesutas e, por isso, julgadas facciosas.

    Ento, Alexandre Rodrigues Ferreira, um funcionrio disciplinado e leal Coros, forneceu os elementos para comprovar que:

    a poltica pombalina doDiretrio fracassara;

    o esvaziamento

    populacional da Amazniaera irreversvel;

    a produtividade e aproduo atuais erammera sombra do passado;e

    se necessrio fossemudar-se para a Amrica,o Rio de Janeiro seria a

    sede mais adequada.

    32%

    3%

    65%

    RIO DE JANEIRO PAR RESTO DO BRASIL

    Origem das exportaes brasileiraschegadas metrpole portuguesa - 1796

    Vila de So Felipe do Rio Branco

    Vila de Santa Maria do Rio Branco

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    Mudana que a Coroa tornou seriamente a cogitar quando eclodiu a RevoluoFrancesa em 1789 e para a qual estava preparada, quando Napoleo invadiuPortugal, em 1808.

    Quanto ao magnfico prdio que o precavido meio-irmo de Pombal construra

    em Belm, em vez de servir de residncia real, teve seu uso restrito administrao provincial.

    A TRANSUMNCIA AMAZNICA

    Em Formao Econmica do Brasil22, Celso Furtado cunhou o termotransumncia amaznica para descrever o grande fluxo migratrio denordestinos, sobretudo de cearenses, para a Amaznia, tangidos pela GrandeSeca de 1877-79 e outras menores que se seguiram.

    De acordo com a tradio, em 19 de maro, no dia de So Jos, ou chove ouhaver seca.

    No ano de 1877, na vspera, nos mais diversos lugarejos do Cear, apopulao esperou em claro a meia-noite.

    As estrelas brilhavam. No havia no cu uma nuvem sequer... Iniciou-se, logoem seguida, a marcha rumo capital.

    Segundo Marco Antonio Villa, em Vida e Morte no Serto23, citando umcronista da poca:

    "Em 20 de maro de 1877, sem nenhum sinal de chuva, estavaselada a sorte de centenas de milhares de sertanejos... Em poucassemanas j eram mais de 50 mil retirantes em Fortaleza."

    22Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1959, p. 13123 Histria das Secas no Nordeste nos Sculos XIX e XX. So Paulo, Ed. tica, 2000

    Fachada do palcio de governo construdo em Belm, na administrao pombalina.

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    Cegueira noturna, causada pelo enfraquecimento, clera, febreamarela, varola, fome, sede. A utilizao de gua contaminadaagravou ainda mais a proliferao de doenas.

    Centenas de crianas, nuas ou seminuas, com os rostosescaveirados, vagavam pelas ruas de Fortaleza.

    No Cear, milhares de retirantes foram reunidos em campos deconcentrao, onde milhares morreram de fome e epidemias. Umtero da populao de Fortaleza foi contagiada pela varola.

    Enquanto D. Pedro II se dizia disposto a vender as jias da Coroapara ajudar os retirantes, o que no nunca fez, as autoridades emFortaleza descobriram o que fazer: deportar os retirantes para aAmaznia, numa poca em que a borracha comeava a serdemandada no comrcio internacional.

    Os retirantes, embarcados fora, chegavam Amazniaendividados, pois tinham de pagar as despesas de viagem aosseringalistas que os contratavam e permaneciam endividados, at ofim de suas vidas, poispelo sistema de Barraco deviam cadavez mais a seu empregador.

    Foi assim, a um altssimo custo em termos de capital humano, quecomeou a repovoar-se a Amaznia.

    Incapazes os empresrios nacionais de contra-restar uma das mais famosas

    operaes de biopirataria de que se em notcia, a partir da dcada de 1910, aextrao da borracha na Amaznia no conseguiu resistir concorrncia dosseringais plantadas nas colnias europias, especialmente na sia.

    Teve-se, ainda, a fracassada experincia norte-americana em Fordlndia,demonstrando que mesmo aportes ilimitados de capital financeiro e tecnologiaseriam insuficientes para incorporar o Inferno Verde economia internacional.

    At hoje, a saga dos retirantes mediante a qual a lngua portuguesa passou aimperar na Amaznia ainda est por ser contada.

    Um bom ponto de partida seria a indignao manifesta, nos artigos queEuclides da Cunha escreveu sobre a Amaznia, no incio do sculo XX.

    Entrou a economia da borracha em letargia, da qual foi bruscamentedespertada, quando eclodiu a II Guerra Mundial e os japoneses se apossaramdas principais plantaes de hevea brasiliensisno Sudeste asitico.

    Dispostos a pagar qualquer preo, os norte-americanos firmaram um acordocom o governo brasileiro, o qual em apoio aos seringalistas criou o Bancode Crdito da Borracha, futuro Banco da Amaznia, para financiar a produo ea atrao de trabalhadores.

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    Sob os auspcios do famigerado DIP Departamento de Imprensa ePropaganda do Estado Novo, milhares de nordestinos foram novamenteatrados Amaznia, recebendo o patritico nome de soldados da borracha.

    Saram-se bem esses soldados, at que derrotados os japoneses voltou

    ao normal o comrcio de borracha natural e, devido baixa produtividade,foram novamente afastados os brasileiros.

    Noticirio recente d conta da descoberta do desamparo a que foramrelegados esses soldados da borracha, no imediato ps-guerra.

    Isso nada tem de novidade: tal esquecimento faz parte da histria nacional.

    - Quantos, desses brasileiros, ficaram cegos ao defumar o ltex?

    - Quantos morreram, na mais absoluta penria?

    A lenda do Inferno Verde tem data: a chegada dos europeus que, por si eseus descendentes, at hoje no entenderam como possvel ao Homosapiens sapiensconviver com a Floresta.

    E no se trata, essa Floresta, apenas da amaznica, mas de todas as demais,a includa a Mata Atlntica.

    DA INDIGNAO AO

    Ao chegar a Vila Bela, ento capitalde Mato Grosso, AlexandreRodrigues Ferreira encontrou umdocumento de 1759, que transcreveuem parte nas Memrias antesreferidas:

    Era esse vastssimo Pasantigamente povoado de numerosaGentilidade, mas entrando pouco apouco a conquist-la os nossossertanistas, quase que se extinguiram[os ndios].

    A autoridade, com que os sertanistas faziam estas Conquistas era a da cobia.As leis que seguiam, no mtodo de as fazerem, eram as da desumanidade.Porque abalroando as rancharias em que se viam os brbaros, nas bocas de fogofaziam acabar todos os que naturalmente pegavam nos arcos para sua defesa.

    Metiam-se os rendidos em correntes, ou gargalheiras, e depois se repartiampelos Conquistadores, que os remetiam para as nossas Povoaes, em contratode venda.

    Runas de Vila Bela

    primeira capital do Mato Grosso

  • 8/3/2019 Preservar ou conservar?

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    Destas to injustas aes acompanhavam atrocidades inauditas e indignas de se

    referirem.24

    Os fatos relatados, por certo, conduzem a uma legtima indignao moral.

    Mas que s pode ser construtiva, caso com humildade os brasileiros dehoje, em primeiro lugar, reconheam impossvel que:

    a Amaznia brasileira no incio da colonizao europia fosse umdeserto demogrfico, habitado por ndios incivilizados;

    na mesma poca, os ndios fossem em sua maioria nmades, vivendo tonumerosa populao apenas da caa e da coleta, ou, quando muito, deprticas destrutivas como a coivara; e

    como ocorre hoje em dia, as aldeias abrigassem entre 100 a 200 pessoas e

    que fosse possvel existir uma etnia, dotada de lngua prpria, com apenas1.000 ou 2.000 indivduos.

    Em segundo lugar, que procurem aprender como foi possvel, na Amaznia,sustentar milhes de habitantes, sem degradar o Meio Ambiente e, pelocontrrio, a enriquec-lo, graas a um manejo florestal que afastou oscerrados; adensou as florestas com espcies perenes, a exemplo do cacaueiro,das madeiras de lei e das palmeiras; enriqueceu os solos; migrou da agriculturaexclusiva de razes para a produo de sementes; e aperfeioou variedadesmais adequadas e mais produtivas, em suas lavouras de ciclo curto.

    Ao se resgatar, ao nvel atual de tecnologia, os conhecimentos que seperderam, estaria aberto o caminho para uma convivncia harmoniosa entre aNatureza e o Homem, no s na Amaznia, mas nos Trpicos em geral.

    ACVPreservar ou conservar 208/09/2004

    24 Op cit Braslia 1974 Conselho Federal de Cultura pp 27-28