Prestaçao de Serviços a Comunidade

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Jovem Aprendiz Caixa Econômica Federal

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    Maz Ramos Junqueira

    PRESTAO DE SERVIOS COMUNIDADE:

    impacto e (in)visibilidade no cumprimento

    da pena/medida alternativa

    Porto Alegre

    2010

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    Maz Ramos Junqueira

    PRESTAO DE SERVIOS COMUNIDADE:

    impacto e (in)visibilidade no cumprimento

    da pena/medida alternativa

    Dissertao apresentada ao Pr ograma de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Educao. Orientadora: Profa. Dra. Carmem Maria Craidy Linha de Pesquisa: Polticas e Gesto de Processos Educacionais.

    Porto Alegre

    2010

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    DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP) __________________________________________________________________________ J995p Junqueira, Maz Ramos

    Prestao de servios comunidade: impacto e (in)visibilidade no cumprimento da pena/medida alternativa / Maz Ramos Junqueira; orientadora: Carmem Maria Craidy. Porto Alegre, 2010.

    218 f. + Apndices + Anexos.

    Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    Faculdade de Educao. Programa de Ps-Graduao em Educao, 2010, Porto Alegre, BR-RS.

    1. Penas e medidas alternativas. 2. Prestao de servios comunidade.

    3. Responsabilidade. 4. Reinsero social. 5. Educao. I. Craidy, Carmem Maria. III. Ttulo.

    CDU 37.017.4-053.6

    ___________________________________________________________________ Bibliotecria Neliana Schirmer Antunes Menezes CRB 10/939 [email protected]

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    Maz Ramos Junqueira

    PRESTAO DE SERVIOS COMUNIDADE:

    impacto e (in)visibilidade no cumprimento

    da pena/medida alternativa

    Dissertao apresentada ao Pr ograma de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Educao.

    Aprovada em 19 nov. 2010. ___________________________________________________________________ Profa. Dra. Carmem Maria Craidy Orientadora ___________________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Stephanou UFRGS ___________________________________________________________________ Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo PUCRS ___________________________________________________________________ Profa. Dra. Rosangela Barbiani UNISINOS ___________________________________________________________________

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    Para Carlos, meu amor, que esteve ao meu lado desde o incio dessa trajetria. Seu companheiris mo, pacincia e generosidade foram fundamentai s nessa passagem de minha vida.

    Tambm ao Guilher me e a Maria Luiza, nossos filhos, que mesmo antes de nasc erem j s o to amados e proporcionam grandes aprendizagens.

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    AGRADECIMENTOS

    ... minha orientadora, Pr ofa. Dra. Carmem Mari a Craidy, pela acolhida,

    carinho e imenso aprendizado;

    ... Profa. Dra. Mari a Stephanou e ao Prof. Dr. R odrigo G hiringhelli de

    Azevedo, pelos caminhos apontados na discusso do projeto de pesquisa;

    ... aos Juzes da Comarca de Guaba na poca da realizao da pesquisa,

    Dra. Marialice Camar go Bianchi, Dr. Gilber to Schfer, Dra. Tatiana Eliz abeth Michel

    Scalabrin Di Lorenzo e Dr. Ricardo Zem, pelo apoio recebido;

    ... ao Juiz da Vara de Ex ecuo das Pe nas e Medidas Alternativas (VEPMA)

    da Comarca de Porto Alegre, Dr. Clademir Jos Ceolin Missaggia, pela aprovao

    do estudo;

    ... equipe tcnica da VEPMA, especialmente Cedile Maria Frare Greggiani e

    Cleonice Salomo Cougo, pelo acolhimento caloroso e pelas permanentes trocas.

    Sem vocs, o estudo no s eria poss vel. Esper o que nossos laos, tanto

    profissionais quanto de amizade, perdurem por muito tempo;

    ... s entidades conveniadas, parceir as na ex ecuo da prestao de

    servios comunidade, com as quais temos muito a aprender;

    ... direo, funcionrios e mor adores da Associao de Cegos Louis Braille

    (ACELB), que abriram carinhosamente suas portas para a realizao da pesquisa. O

    aprendizado que tive na convivncia com vocs foi importante no s para fins de

    estudo, mas para minha vida pessoal;

    ... colega Ivi Olivieri, que, alm das tr ocas cotidianas no trabalho, contribuiu

    diretamente na coleta de dados;

    ... a Lou Zanetti pela disponibilidade e atenta reviso da escrita;

    ... e aos prestadores de servios que participaram da pesquisa. Desejo qu e

    este trabalho seja seguido de outras iniciat ivas para dar visibilidade a esses sujeitos

    que tm muito a dizer sobre a prestao de servios comunidade.

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    [...] convenci-me de que o velho chavo sociolgico os dois Brasis bem mais qu e um bord o de sgastado, ent oado pel o b aixo clero acadmi co e pelos p orta-vozes caricatos de i deologias pe remptas. H, d e f ato, doi s Brasis, bem debaixo d e nosso s n arizes, viven do em dim enses ou universos inteiramente di stintos, nem semp re intercomunicveis. A maior diferena entre eles q ue a legalid ade democrtica s tem ple na validade para os que habitam o mundo privilegiado das classes superiores. O m aior indicador do abism o que separa a ci dade pa rtida so o compo rtamento policial e a s rea es d a mdia b rutalidade policial. Os d e b aixo s o frequentemente invisveis para os de cima, salvo quando lhes metem medo, produzem incmodo ou passam a representar alguma ameaa, imaginria ou real. (SOARES, 2000, p. 41).

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    RESUMO

    Nesta dissertao apresenta-se a pesquisa realizada junto a Vara de Exec uo das Penas e Medidas Alternativa s (VEPM A) da Comarca de Porto Alegre/RS, responsvel pela execuo da prestao de servios comunidade. Discute-se o impacto dessa pena/medida alternativa na vida dos seus destinatrios, buscando-se privilegiar o seu pont o de vist a. O estudo qualitativo e os dados foram coletados com a combinao de diferentes fontes: observao participante junto equipe tcnica da VEPMA, anlise de documentos in stitucionais, que stionrio a plicado s entidades conveniadas ao Poder Judicir io e estudo de caso de uma dessas entidades, que reuniu observa o participante e entrevistas com dirigentes e prestadores de servios. Os dados so analis ados e interpretados mediante leitura abrangente do real, composta por elementos histricos, sociais, jurdicos, econmicos, polticos e culturais, que perpassam e configuram o c omplexo fenmeno da prestao de ser vios co munidade. O olhar lanado sobre essa realidade, contudo, no procede a uma leitura totalizante, mas procura recuperar a dimenso do sujeito, permitindo identificar os sentidos atribudos, as possibilidades e os limites dessa pena/medida alternativa como forma de educao, responsabilizao e (re)insero social. A pesquis a revela a importncia das entidades conveniadas como contextos pr ivilegiados, nos quais a prestao de servios comunidade ocorre, mediante as mltiplas interaes entre os diversos atores envolvidos, favorecendo a socializao e a vivncia de processos educativos. Nesse am biente, os prestadores tm a possibilidade de estabelecer vnculos, sentirem-se teis, aceitos e integr ados, superando a noo de estigma que carregam os sujeitos que cumprem pena/m edida. O estudo aponta os desafios da (re)insero social e da responsabilizao dos cumpridores, procurando lanar luzes ao aperfeioamento do trabalho. Conc lui-se que a prestao de s ervios comunidade se revela um profcuo campo de possibilidades de transformao dos sujeitos, podendo contribuir para o des envolvimento humano e sua felicidade, objetivos fundamentais da educao. Palavras-chave: Penas e medidas alternati vas. Prestao de servios

    comunidade. Responsabilidade. Reinsero social. Educao.

    __________________________________________________________________________________ JUNQUEIRA, Maz Ram os. Presta o de Ser vios Comuni dade: impa cto e (in)vi sibilidade n o cumprimento da pen a/medida alte rnativa. Po rto Alegre, 20 10. 218 f. + Apndi ces + Anexos. Dissertao (Mestrado em Educao) Pro grama de Ps-Graduao em Educao, Faculdade de Educao, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.

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    ABSTRACT

    This paper presents the research carried out at the Court for the Exec ution of Penalties and Alternative Writ s (VEPMA) of the County of Porto Alegre - RS that is responsible for the execution of the serv ices to be rendered to the community. The discussion approaches the impact of this penalty/alternative measure on the life of their addressees taking their point of view in to consideration. It is a qualitativ e study and the data were collected through the combination of different sources: participative observation close to the VEPMA technical sta ff, analysis of institutional documents, questionnaire applie d to the entities covenant with the Judic iary Power and case s tudy of one of t hese entities that gathered part icipative observation and interviews with the c ontrollers and subjec ts that render services. The data are analyzed and interpreted by means of a broad reading of the real scenario, composed by historic al, social, legal, economi c, political and cultural elements that permeate and configure the complex phe nomenon of rendering services to the community. Nevertheless, the glance launc hed into this reality does not proceed a whole reading but it searches to recover the dimensio n of the subject, that allows identifying the attributed se nses, the possibilities and t he limits of this penalty/alternative measure as a way of educ ation, taking over responsibility and social (re)insertion. The research reveals the importance of the covenant entities as privileged contexts where rendering of services to the community occurs by means of multiple interactions among the several invo lved actors, by favoring the socializatio n and the experience of educative processes. Within this environment, the subjects who render the services hav e the possi bility of establishing bonds, feeling themselves useful, accepted and integrated, overcoming t he stigma notion that they carry upon serving penalty/measure. The st udy point s out the challenges of the social (re)insertion and responsibility charge of the servers in the search of launching lights to the work improvemen t. The conclusion drawn is t hat rendering services to the community reveals itself as a rich field of possibilities for the transformation of the subjects being able to contribute for the human development and joy, the fundamental objectives of education. Keywords: Educational measures. Com munity service. Responsibility . Socia l

    reinsertion. Education. __________________________________________________________________________________ JUNQUEIRA, Maz Ram os. Prestao de Ser vios Comuni dade: impa cto e (in)vi sibilidade n o cumprimento da pen a/medida alte rnativa. Po rto Alegre, 20 10. 218 f. + Apndi ces + Anexos. Dissertao (Mestrado em Educao) Pro grama de Ps-Graduao em Educao, Faculdade de Educao, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.

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    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Avaliaes Disponibilizadas ................................................................... 82

    Quadro 2 Perfil da Instituio ................................................................................. 93

    Quadro 3 rea de Atuao ..................................................................................... 94

    Quadro 4 Vagas Para Prestadores ........................................................................ 95

    Quadro 5 Atividades Desenvolvidas Pelos Prestadores ........................................ 96

    Quadro 6 Atividades Desenvolvidas no Acompanhamento da PSC .................... 100

    Quadro 7 Responsvel pelo Acompanhamento do Prestador.............................. 103

    Quadro 8 Restrio aos Prestadores ................................................................... 118

    Quadro 9 Oferta de Formao aos Prestadores Pelas Entidades ........................ 119

    Quadro 10 Tipo de Formao Oferecida Pelas Entidades ................................... 120

    Quadro 11 Oferta de Benefcios aos Prestadores ................................................ 121

    Quadro 12 Benefcios Oferecidos aos Prestadores ............................................. 121

    Quadro 13 Encaminhamentos dos Prestadores Para Servios da Rede ............. 121

    Quadro 14 Predominncia de reas de Encaminhamentos dos prestadores Para

    Servios da Rede .................................................................................................... 122

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    SUMRIO

    1 SITUANDO A PESQUISA primeiras palavras ........................................ .........13

    2 DIALTICA ASCENDENTE: organizando o quadro terico de referncia ....... 21

    2.1 CONTEXTUALIZAO DO FENMENO: a violncia na sociedade brasileira . 21

    2.2 PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE: o fracasso de um modelo de punio . 33

    2.3 PROPOSTA DE UM NOVO MODELO: penas e medidas alternativas .............. 40

    2.4 FINALIDADES DAS PENAS E MEDIDAS ALTERNATIVAS .............................. 45

    2.5 PRESTAO DE SERVIOS COMUNIDADE ............................................... 49

    2.6 A EXPERINCI A DO PROGRAMA DE PRESTAO DE SERVIOS

    COMUNIDADE NA COMARCA DE PORTO ALEGRE/RS........................ ...............53

    3 DIALTICA DESCENDENTE: caminhos metodolgicos .................................. 58

    3.1 APROXIMAES COM O OBJETO: a construo do projeto de pesquisa ...... 59

    3.2 A CO NSTRUO DA CO RRESPONSABILIDADE ENTRE AS ENTIDADES

    CONVENIADAS E O PODER JUDICIRI O NA EXE CUO DA PRE STAO DE

    SERVIOS COMUNIDADE .................................................................................. 60

    3.3 IMPASSES E DESAFIOS DO PROGRAMA DE PRESTAO DE SERVIOS

    COMUNIDADE ......................................................................................................... 68

    3.4 CONSTRUINDO ALTERNA TIVAS: F rum Rede Social de Penas e Medida s

    Alternativas de Porto Alegre ..................................................................................... 71

    3.5 CONSIDERAES SOBRE AS APROXIMAES COM O OBJETO .............. 74

    3.6 RETOMANDO O OBJETO: NOVAS EXPLORAES NO CAMPO .................. 76

    3.6.1 Limites, Possibilidades e Desafios, na Concretizao da Pesquisa......... 78

    3.6.2 Anlise e Interpretao dos Dados .............................................................. 88

    4 O IMPACTO DA PRESTAO DE SERVIOS COMUNIDADE ...................... 91

    4.1 ENTIDADES CONVENIADAS: cont extos da prestao de servios

    comunidade .............................................................................................................. 91

    4.2 (IN)VISIBILIDA DE DOS P RESTADORES NOS DOCUMENTOS

    INSTITUCIONAIS ................................................................................................. 126

    4.2.1 Acolhimento, Inte grao e No-discriminao condies essenciais para os prestadores ............................................................................................. 128

    4.2.2 Convivendo com uma Realidade Diferente o despertar de valores, sentimento de utilidade e engajamento ............................................................. 132

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    4.2.3 Aprendizagens Profissionais socializao e descoberta d e novas possibilidades ...................................................................................................... 138

    4.2.4 Os Desafios da (re)Insero Social............................................................ 141

    4.2.5 Pagar e Refletir sobre o Delito Cometido p ossibilidades de responsabilizao ................................................................................................ 143

    4.2.6 O Sentimento de Injustia .......................................................................... 145

    4.2.7 Orientao, Apoio e Limites o trabalho da equipe tcnica da VEPMA ............................................................................................................................... 147

    4.2.8 A Liberdade como Valor Fundamental ...................................................... 151

    4.3. UM ESTUDO DE CASO o dilogo com os prestadores ............................ 152 4.3.1 Situando a ACELB ....................................................................................... 153

    4.3.2 A Insero no Campo .................................................................................. 154

    4.3.3 Histrias da Prestao de Servios Co munidade na Memria dos

    Dirigentes .............................................................................................................. 159

    4.3.4 O Olhar dos Dirigentes Lanad o sobre a Prestao de Se rvios

    Comunidade .......................................................................................................... 162

    4.3.5 Itinerrios da Prestao de Servios Comunidade ............................... 168

    4.3.6 O Dilogo com os Prestadores como Desafio .......................................... 173

    4.3.7 O Contexto das Entrevistas ........................................................................ 180

    4.3.8 A Voz dos Prestadores ............................................................................... 184

    5 CONCLUSES ................................................................................................... 204

    REFERNCIAS ....................................................................................................... 212

    APNDICES ........................................................................................................... 219

    APNDICE A - Prestao de Servios Comunidade na Comarc a de Porto Alegre

    RS. Corresponsabilidade com as Entidades Conveniadas .....................................220

    APNDICE B - Segurana com Cidadania na Execuo de Penas e Medidas

    Alternativas ..............................................................................................................235

    APNDICE C - Questionrio ...................................................................................255

    ANEXOS ................................................................................................................. 260

    ANEXO A - XXII E ncontro da Prestao de Servi os Comunidade em Porto

    Alegre/RS ............................................................................................................... 261

    ANEXO B - Modelo de Avaliao da PSC da VEPMA ............................................266

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    1 SITUANDO A PESQUISA PRIMEIRAS PALAVRAS

    Conhecer construir pontes entre o sonho, estrela distante, e o lugar onde me encontro. Rubem Alves

    A presente dissertao de mestrado tem co mo eixo central a exec uo da

    pena/medida alternat iva de pres tao de servios com unidade. Trata-se de um

    tema de relevnc ia social por estar relacionado a grandes preocupaes da

    contemporaneidade: a violnci a, a criminalidade e as respostas dadas pela

    sociedade a esses fenmenos.

    No contexto nacional, vive-se um mom ento significativo da s penas e medidas

    alternativas. Estatsticas recentes revelam que o nmero de pess oas em

    cumprimento de alternativas penais j super ou o da pr ivao da liberdade, inserindo

    importantes desafios nesse campo. Segundo informaes divulgadas pelo Ministrio

    da Justia, no ano de 20 09, 671.068 pessoas c umpriram penas e medidas

    alternativas, contra 473 mil presas1.

    O impactante aumento das alternativ as penais no pas demanda a reflexo

    crtica sobre a sua aplic ao e, principa lmente, sua execuo. A prod uo de

    conhecimentos torna-se fundamental ness e momento histrico, podendo contribuir

    para fortalecer e consolidar um sistema penal alt ernativo (GOMES, 2000) em

    contraponto ao modelo hist oricamente preponderant e, que tem a pena de priso

    como centralidade.

    A realidade das penas e medidas alte rnativas ainda pouco conhec ida no

    Brasil, sendo raros os estudos nessa rea. As pesquisas desenvolv idas at o

    1 Informaes disponveis no site www.mj.gov.br (acesso em 19/05/2010).

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    momento so anlis es mais gerais sobre a sua aplic ao e execu o2, no

    proporcionando uma leitur a que contemple, de maneira mais aprofundada, a viso

    dos sujeitos, especialmente a dos seus cumpridores.

    Os desafios colocados no panorama nacional incidem diretamente na atividade

    que se desenvolve, desde 2002, no cargo de a ssistente social do Poder Judicirio

    do Rio Grande do Sul. No exerccio profissional junto Vara de Execues Criminais

    da Comar ca de Guaba 3, trabalha-se na execuo da prestao de s ervios

    comunidade. A prtic a cotidiana, ao revelar importantes limitaes, possibilidades e

    desafios da realidade das penas e medidas alternat ivas, tambm suscita

    questionamentos e inquietaes.

    Os questionamentos advindos da prt ica junto execuo da prestao de

    servios comunidade convergem para a necessidade de reflexo sobre o impacto

    desta pena/medida na vida dos seus destinatrios . Para alm dos discursos

    inflamados em defes a de qua lquer proposta que s upere as deg radantes condies

    da privao da liberdade, e das finalidades declaradas das alternativas penais de

    educao e ressocializao dos seus destinatr ios, preciso que se reflita sobre o

    seu efetiv o significado, mediante a anlise do real com a ajuda de c ontextos

    tericos. Conforme ressalta Faleiros (2001), essas penas surgem como uma espcie

    de luz no fim do tnel do sistema crim inal, dadas as condies degradantes em

    que a priv ao da liberdade se encontra. Essa luz, entretant o, pode parecer uma

    panaceia, devendo ser mais bem co nhecida par a que possam ser criados

    referenciais analticos que permitam a comp reenso de suas rea is possibilidades e

    limites (FALEIROS, 2001). 2 Em nvel nacional, me rece de staque o L evantamento na cional sob re a execu o das penas

    alternativas (2006) realizado pelo Instituto Latino-Americano das Naes Unidas para a Preveno do Delito e Tratamento do Delin qente (ILANUD) em nove capitai s brasileira s (Bel m, Belo Horizonte, Campo Grande, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Re cife, Salvador e S o Paulo) e no Distrito F ederal. Re centemente foi de senvolvido u m estud o pel o Prog rama das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em p arceria com o Ministrio da Justia, resultando no Relatrio de Pesquisa Penas e medidas alternativas no Distrito Federal, Pernambuco, Minas Gerais e S o Paulo (2008). Embora restrita ao Distrito Federal, a pesquisa coordenada por Faleiros (2001) sobre a execu o das p enas a lternativas ta mbm merece desta que. Difere nte do s demai s e studos citados, que apresentaram um panorama m ais geral, este lt imo possibilit ou uma l eitura m ais aprofundada sobre o a ssunto, buscando contemplar a viso do s diferentes atores envolvidos nas penas e medidas alternativas (familiares, cumpridores, organizaes sociais, operadores do direito, tcnicos e representantes do Conselho da Comunidade).

    3 Com lotao na Comarca de Guaba, desde 2005, a pesquisadora responde, tambm, pelo trabalho tcnico de assessoria aos Magistrados, atuando em diferentes Varas Judiciais.

  • 15

    Como parte do cotidiano prof issional que s e vive, na qualidade de assistente

    social judiciria, o objeto desta pr oposta de pesquisa configura-se algo familiar. Tal

    proximidade na rela o suje ito-objeto, assunto ampl amente debatido nas Cinc ias

    Sociais, discutida por Velho (1978) que relativ iza as noes distncia e

    objetividade, reconhecendo a presena da dimenso subjetiva em qualquer estudo.

    O familiar necessariamente no o conhecido, salienta Velho (1978). A

    realidade da prestao de servios comunidade, embora faa parte da experinc ia

    profissional da mestranda, no s e constitui automaticamente em obj eto de reflexo.

    Necessria a construo de um novo olhar , que rompa com o imediatis mo e as

    urgncias do cotidiano.

    Ao se bus car uma aproxima o com o paradigma reflexivo (PERRENOUD,

    2002)4, a pesquis a parte da experinc ia, na perspectiva de conciliar a razo

    cientfica com a prtica da reflexo na e sobre a ao, relacionando saberes tericos

    gerais com as situaes singulares. Mediante o distanciame nto e a anlis e do

    cotidiano de trabalho, a prtica reflexiva visa c onstruo da capac idade de

    aprender com a ao e de transform-la.

    A construo do objeto de pesquisa, po rtanto, partiu de uma indaga o

    subjetiva e prtica, elaborada a partir da ins ero profissional da mestranda.

    Conforme ensina Marre (1991), o delinea mento desse objeto demanda a ruptura

    com o saber imediato, oriundo da ex perincia concreta, transformando os

    questionamentos suscitados pela prtic a em um problema cientfico a ser

    investigado. necessria a elabora o de um quadro terico de referncia,

    elevando a indagao inic ial a uma dimens o terica. Mediante o dilogo com a

    bibliografia, a questo cercad a com a produo cientfica, processo denominado

    pelo autor de dialtica ascendente.

    4 Perre noud (200 2) a borda a profi ssionalizao d os p rofessores, e specialmente no s aspectos

    relacionados sua form ao, em bora sua s id eias p ossam ser utili zadas p or outras profisses humanistas, como o se rvio soci al. Partindo-se da teoria d e Don ald Sch n, a respeito d o profissional reflexivo, o autor prope a reabilitao da razo prtica, a aprendi zagem por m eio da experincia, a utilizao da intuio e da reflexo na e sobre a ao. Tais pressupostos, aplicados ao ofcio do profe ssor, demandam a incorporao de u m conj unto de com petncias ti cas e metodolgicas, sendo a pesquisa uma das suas estratgias. A pesquisa, portanto, vista de maneira isolada, n o pod e ser confundi da com a p rtica reflexiva, ma s constitui-se em u m el emento significativo para a sua co nstruo, caso os proble mas estudados partam da p rtica e retornem a ela, enriquecendo-a.

  • 16

    Elevada a indagao inicial a um nvel terico, busca-se a operacionalizao

    do estudo. Esse processo , nomeado por Marre (1991) de dialtica desc endente,

    pretende o dilogo com a realidade, tr ansformando o problema formulado em uma

    sequncia de atos operacionais, viabilizando a dimenso emprica da investigao.

    Os processos a dialtica asc endente e a dialtica descendente - no so

    separados, nem definitivos, es tando sujeit os a um permanent e processo de

    construo. Ambas as dialtic as s o combinadas e devem ser continuamente

    pensadas e aprofundadas pelo pesquisador, revelando a dimenso provisria e

    relativa dos conhecimentos produzidos.

    Na construo da proposta de pesquisa, definiu-se a Vara de Execuo das

    Penas e Medidas Alternativa s (VEPM A) da Comarca de Porto Ale gre como

    experincia a ser estudada. Justifica-se esta escolha pelo pioneirismo e pela

    qualidade desse trabalho, reconhecido em mbito nacional. A equipe da VEPMA, h

    aproximadamente duas dcadas, desenvolve o Programa de Prestao de Servios

    Comunidade, considerado o mais bem es truturado pelo Poder Judicirio do Rio

    Grande do Sul e modelo para os profissionais que atuam nas demais Comarcas.

    O processo de elaborao do projeto de pesquisa ocorreu nas interaes com

    a equipe t cnica da VEPMA. Iniciou-se o c ontato com a equipe ainda no primeiro

    semestre de 2008, m ediante reunies c om a coordenadora. O ac olhimento positivo

    do estudo, por parte da VEPMA, com am plo apoio para insero no campo,

    expressou-se, desde o incio, na facilitao ao acesso a docume ntos, a pessoas,

    participao na rotina e em eventos signifi cativos que aconteceram no decorrer da

    construo da proposta de pesquisa.

    A aceitao imediata deste estudo e o acesso privilegiado ao material de

    pesquisa que se obteve relacionam-se a al gumas caractersti cas da equipe da

    VEPMA. Alm da busca pela construo de relaes democrticas, observada

    especialmente no trabalho com as ent idades conveniadas, a equipe atribui

    importante valor produo de conhecimentos, o que se expressa na publicao de

  • 17

    textos e artigos5.

    A partir de setembro de 2008, passou-se a interagir com os demais membros

    da equipe e com representantes das entidades c onveniadas, proporcionando

    excelente troca de experincias e o am adurecimento do problema de pesquisa.

    Entendendo-se que a interao no cam po j se constitua no prprio

    desenvolvimento do estudo, inic iou-se, ento, o registro das atividades em um dirio

    de campo, importante fonte de dados para a pesquisa.

    Na aproximao com a equipe tcnica da VEPMA surgiram contornos

    metodolgicos no-pr evistos inic ialmente na proposta de pesquisa. A abertura da

    equipe possibilitou a adoo da observao participante, mediante o envolvimento e

    a interveno da pes quisadora no cotidiano do trabalho para alm da coleta de

    informaes. Em consonncia com o modelo artesanal de Cincia, proposto por

    Becker (1997), produziu-se mtodos necess rios ao prprio desenvolv imento da

    atividade de pesquisa, haven do uma m argem de improvisao de solues e

    adaptados princpios gerais s situaes especficas.

    A propost a de pes quisa que resultou nes ta diss ertao foi elaborada na

    interao com o movimento de permane nte construo do prprio trabalho d a

    VEPMA. Esse processo obteve resultados concretos importantes que ser o

    abordados de maneira mais aprofundada no item Aproxima es com o objeto de

    pesquisa:

    a participao da pesquisadora do XXII Encontro de Entidades Conveniadas 6, realizado em 22 de out ubro de 2008, na qualidade de palestrante, como

    forma de estabelecimento de vnculo com as instituies, troca de

    experincias e retorno parcial do estudo;

    a produo de um artigo em conjunto com a equipe tcnica 7, possib ilitando

    5 Alm de vrios documentos, a equipe da VEPMA publicou artigos no Relatrio Azul da A ssemblia

    Legislativa d o Ri o Grande do Sul (2000), na Revista Se rvio Social e So ciedade (200 2) e na Revista da Ajuris (2007).

    6 Ver relatrio do evento produzido pela equipe tcnica anexo Dissertao - Anexo A. 7 O artigo produzido em parceria com a equipe tcnica da VEPMA se intitula Prestao de Servios

    Comunidade na Comarca de Porto Alegre/RS: corresponsabilidade com as entidades conveniadas

  • 18

    tanto a sistematizao de resultados parciais da pesquisa quanto a reflex o

    sobre o trabalho desenvolv ido na execuo da pr estao de servios

    comunidade;

    a participao da mestranda, a conv ite da equip e da VEPMA, n o Seminrio Segurana com Cidadania na Execuo de Pe nas e Medidas Alternativas,

    ocorrido no ms de novembro de 2008, na cidade de Vit ria/ES8. O evento foi

    promovido pelo Departamento Penitencirio Nacional do Ministrio da Justia,

    em parceria com o Programa das Naes Unidas para o Des envolvimento

    (PNUD), sendo discutidos os objetivos estratgicos para a construo de uma

    poltica pblica orientada produo de segurana com cidadania;

    o acompanhamento da criao do Frum Rede Soc ial de Penas e Medidas Alternativas de Porto Alegre, sendo iniciada a sua discusso no XXII Encontro

    e fortalecida no Seminrio ocorrido em Vitria.

    Participar das atividades supracitadas, alm da interao mais rotineira com a

    equipe da VEPMA, foi fundamental para a construo da pesquisa. Essas atividades

    favoreceram a articulao do s aber acadmico com a realida de da exec uo da

    prestao de servios comunidade na Comarca de Porto Alegre, c om a sua

    experincia cotidiana e seus diferentes atores, num movimento de busc a pela

    articulao terico-prtica. O evento r ealizado em Vit ria proporcionou um a leitura

    da discusso sobre as penas e medidas alter nativas em nvel nacional, bem como a

    participao da pesquisadora na construo dessa poltica pblica.

    No duplo movimento de imerso na r ealidade e aprofundamento terico, e

    entendendo que o conhecimento se constri at ravs de sucessivas aproximaes, a

    pesquisa objetivou conhecer o impacto da prestao de servios comunidade

    executada pela VEPMA na vida dos seus destinatrios . Este estudo buscou a

    produo de nov os saber es, fundament almente o aprimoramento dessa

    pena/medida alternativa, vi sando contribuir tanto para a construo de respostas

    no somente punitivas, mas educativas, de responsabilizao e (re)insero social

    dos seus cumpridores quanto para o enfr etamento do contexto de v iolncia e

    e se encontra no prelo para publicao no nmero 22 da Revista do Conselho Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria (Apndice A).

    8 As discusses foram registradas pela pesquisadora em Relatrio (Apndice B).

  • 19

    criminalidade em que se vive.

    O estudo procurou contemplar os princi pais atores envolvidos na exec uo da

    prestao de servios comunidade na Co marca de Porto Alegre: a equipe tcnica

    da VEPMA, as entidades conveniadas e os prestadores. Estes ltimos, entretanto,

    foram privilegiados na pesqu isa, pela sua situao de invisibilidade constatada no

    processo de aproxim aes co m o objeto. O desafio de dar voz aos cumpridores

    permeou toda a inv estigao, revelando a necessidade da criao de novas

    iniciativas nesse sentido.

    A estrutura da dissertao compe-se de cinco captulos. No segundo,

    denominado Dialtica Ascendente: organizando o quadro terico de referncia ,

    apresenta-se a construo do quadro terico em que se insere a prestao de

    servios comunidade, t endo-se a anlise da violnc ia como ponto de partida. Por

    se tratar de um fenmeno complexo, a vi olncia s ituada na trama de uma srie

    de relaes, envolvendo questes histricas, econmicas, sociais, polticas, culturais

    e aspectos relacionados dim enso do suje ito. Em seguida, reflete-se sobre o

    fracasso do modelo de puni o baseado na priso, cenr io e m que as penas e

    medidas alternativas sur gem como nova proposta, not adamente a prest ao d e

    servios comunidade.

    O terceiro captulo Dialtica Descendente: caminhos metodolgicos aborda

    os meios e instrumentos utiliza dos na pesquisa a partir do quadro te rico de

    referncia construdo. Relata-se o processo de aproximaes com o objeto de

    pesquisa mediante as interaes da pesquisadora co m a equipe da VEPMA. Dess e

    processo resultou a reflexo sobre a r ealidade da prestao de servios

    comunidade na Comarca de Porto Alegre, s ervindo de guia para as demais etapas

    do estudo. A invisibilidade dos prestadores emergiu como questo relevante,

    influenciando, de maneira decisiva, o design da investigao.

    Os resultados obtidos atravs da pesquisa so apresentados no quarto

    captulo, intitulado O Impacto da Prestao de Servios Comunidade . Analisam-se

    os contextos privilegiados da pena/medida alternativa as entidades conveniadas

    buscando-se a construo de uma viso panormica dessas instituies na

    Comarca de Porto Alegr e. Proc ura-se dar visibilidade aos pres tadores mediante a

  • 20

    anlise de documentos instituc ionais e a realiza o do um estudo de cas o de uma

    entidade, combinando observao participante e entrevistas.

    Por fim, nas concluses incluem-se algumas reflexes e desafios, em

    detrimento de respostas pretensament e definitivas. Reflete-se sobre o im pacto da

    prestao de servios com unidade na v ida dos seus destinatrios , especialmente

    sob o ponto de vista dos prprios suje itos. Semelhante a outros estudos

    (FALEIROS, 2001, GIRARDI, 2007, GOMES, 2008, dentre outros), afirma-se a

    legitimidade das penas e medidas altern ativas, sendo indicados aspectos para

    serem repensados, visando a contribuir para a concretizao de suas finalidades de

    educao, responsabilizao e (re)insero social dos seus cumpridores.

  • 21

    2 DIALTICA ASCENDENTE: ORGANIZANDO O QUADRO TERICO DE

    REFERNCIA

    Digo: o real no est na sada e nem na chegada:

    ele se dispe para a gente no meio da travessia.

    Guimares Rosa

    2.1 CONTEXTUALIZAO DO FENMENO: A VIOLNCIA NA SOCIEDADE

    BRASILEIRA

    A construo de um quadro terico de refer ncia requer a contextualiza o da

    prestao de servios comunidade. Ainda que no se configure objeto es pecfico

    deste estudo, a violncia ponto de partida, pois, a aplic ao das penas e

    medidas alternativas signific a, em term os genricos, uma resposta da sociedade a

    esse fenmeno.

    A violnc ia, resultado de mltiplas determinaes, um fenmeno complexo,

    com contornos imprecisos, mveis, de difcil definio. Devido a sua natureza plural

    e contraditria, configura- se uma rea de convergncia de diversas disciplinas, no

    sendo possvel a construo de um conceito geral e definitivo.

    Arendt (1994) oferece uma conceituao da violncia partindo da perspec tiva

    interpretativa da filosofia. A reflexo da autora situa-se no campo da poltica,

    contrapondo a violncia ao conceito de poder, o qual definido, em sntese, como a

    capacidade humana de agir em conjunto . A afirmao absoluta de um significa a

    ausncia do outro, sendo a violnc ia ensejada pela desintegrao do poder. A

    violncia, portanto, repr esenta a ausncia da democracia, da alterid ade, da

    tolerncia, do respeito e do dilogo.

  • 22

    Ao buscar uma interpretao sociolgic a da violncia, Tavares ( 2009) dec lara

    que o fenmeno adquire novos contornos na contemporaneid ade, passando a se

    disseminar por toda a sociedade. Suas mltiplas formas violnc ia poltica,

    costumeira, violncia de gner o, violnc ia se xual, racista, ecolgic a, simblic a e

    violncia na escola configuram o que o autor denomina proc esso de cidadania

    dilacerada9. Baseado em Foucault, o autor busca a c ompreenso da v iolncia a

    partir do c onceito de microfsica do poder , ou seja, da existncia de uma rede de

    poderes que permeia as rela es soc iais, marcando interaes entre grupos e

    classes sociais. (p. 24). Nessa perspecti va, a violncia com preendida como a

    relao social, caracterizada pelo us o real ou v irtual da for a ou coero que

    impede o r econhecimento do outro pessoa, classe, gnero ou raa provocan do

    algum tipo de dano, configurando o oposto das possibilidades da sociedade

    democrtica. (p. 16).

    Tavares (2009) salienta, ainda, o parado xo da soc iedade bras ileira, porque,

    embora tenha adotado um regime poltico democrtico, tem o autoritarismo presente

    na sua vida social. A sociedade brasileir a, diz o autor, por conseguinte, parece

    aceitar a violncia, ou pelo menos se resign ar com ela, incorporando-a como prtica

    social e poltica, demonstrada nas situaes rotineiras de violncia nas cidades, nos

    campos e florestas brasileiras.

    A anlise histrica, sem desconsiderar a importncia que a violncia assume no

    contexto atual, revela que no se trata de um fenmeno recente. Como diz Gomes

    (2008), tambm no se trata de algo que possa ser eliminado do corpo social, mas

    apenas diminudo a nveis tolerveis.

    Em virtude da esc assez de fontes, os estudos sobr e as soc iedades antigas

    tornam-se praticamente inviveis, conhec endo-se pouco sobre a violncia ness e

    perodo. Mas, na Idade Mdia, a violncia j era uma preocupao social, agudizada

    no perodo da Idade Moderna (BURKE, 2002).

    9 Tavares (2009) conceitua cidadania dilacerada como o re sultado da tecnologia de poder que se

    exerce pelo suplcio do corpo e se expande por causa das dificuldades de consolidao do contrato social na sociedade b rasileira. (p. 13 6). A p ossibilidade de e rradicao d as diversas formas de violncia, para ele, est associada criao de prticas sociais capazes de instaurarem contratos sociais de n ovo tipo, sendo o inve rso da cid adania dil acerada a s lutas soci ais, ca mpo de possibilidade de construo da cidadania concreta, mediante a constituio de espaos sociais que asseguram o direito vida e o respeito difere na, na luta por um processo civilizador ainda inacabado.

  • 23

    importante salientar que a afir mao de que a v iolncia perpassa a histria

    da humanidade no s ignifica a sua explic ao por um vis biolg ico, ou seja, parte

    da natureza humana. Trata-se de um fenmeno histrico e cultural, sendo a vida

    em sociedade o seu espao de criao e desenvolvimento.

    A anlis e do processo de formao sci o-histrica do Brasil revela as

    especificidades da violnc ia em nossa soci edade. A histria do pas fortemente

    marcada pelas c aractersticas dependnc ia externa e ec onomia estruturada no

    latifndio, na monocultura e no trabalho escravo. Dessa ltima caracterstica herdou-

    se a discriminao, a excluso social e a desvalorizao cultural do trabalho manual.

    Desde o perodo colonial poss vel vislumbrar uma espcie de cultura da violncia,

    sendo os segmentos mais vulnerveis os seus principais destinatrios. Os escravos,

    por exemplo, eram considerados no- humanos na s ociedade da poca, sofrendo

    diferentes tipos de violncia, sendo a fsica a mais visvel.

    Em uma leitura sociolgica, Cano (2002) considera a Amrica Latina uma das

    regies mais violent as do mundo, apr esentando altas taxas de homicdio e

    criminalidade10 violent a. Dentre as caus as desse fenmeno, o autor cita a

    urbanizao acelerada, a cons equente destruio das redes soc iais tradicionais, as

    estruturas socioeconmicas desiguais, a disponibilidade de armas de fogo e o alto

    grau de impunidade.

    Ao se analisar a violncia necessrio considerar a sua relao com a questo

    social11, especialmente no contexto brasileiro. Embora o fenmeno no possa ser

    explicado exclus ivamente por esse as pecto, inegvel a importncia da

    desigualdade, das condies precrias de trabalho, do des emprego, da pobreza, da

    10 A defini o de criminalidade, e mbora diretamente relacionada violncia, a presenta

    especificidades. O ato criminoso est disposto na Lei Penal, necessitando ser tipificado. Como toda legislao, a Lei Penal con struda pela so ciedade, refletindo , pelo meno s em parte, os seu s costumes e comportamentos considerados aceitveis naquele momento histrico.

    11 Confo rme Iamamoto (2007), a questo soci al ex pressa de sigualdades e conmicas, polticas e

    culturais das classes sociais, mediatizadas por disparidades nas relaes de gnero, caractersticas tnico-raciais e formaes regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens da civilizao. Dispondo de uma di menso estrutural, ela atinge visceralmente a vida dos sujeitos numa luta aberta e surda pela cidadania (IANNI, 1992), no embate pelo respeito aos direitos civ is, s ociais e p olticos e a os direitos h umanos. Esse processo denso d e conformismos e rebeldias, expressando a conscincia e a luta pel o reconhecimento dos direitos de cada um e de todos os indivduos sociais. (p. 160).

  • 24

    degradao das c ondies de vida e das relaes entre os sujeitos para sua

    compreenso.

    Conforme enfatiza Iamamoto (2007), a re flexo sobre a questo social pas sa

    necessariamente pelo processo de mundializao do capital sob a hegemonia

    financeira e suas repercusses no cenr io nacional. A expanso do capital

    internacional, mediante a amplia o dos mercados e a desregulamentao da

    relao c apital-trabalho, resulta em flex ibilizao ou perda de direitos sociais

    conquistados e polticas pblic as corre spondentes. Nesse movimento, a reforma

    do Estado assume centralidade, sendo perseguida a sua reduo nos gastos sociais

    que visariam satisfao das necessidades das grandes maiorias, pois a prioridade

    do fundo pblico alimentar o mercado financeiro. Nesse cenrio, os investimentos

    especulativos so favorecidos em detrimento da produo, o que se encontra na raiz

    da reduo dos nveis de emprego, do agravamento da questo social e da

    regresso das polticas sociais pblicas. (IAMAMOTO, 2007, p. 143).

    Para a autora,

    [...] vale reiterar que o projeto neoliber al subordina os di reitos sociais lgica oramentria, a pol tica social poltica econmica, em e special s dotaes orament rias. Observa -se uma invers o e uma su bverso: ao invs d o di reito con stitucional imp or e orient ar a distribuio da s verba s oramentrias, o dever le gal passa a ser submetido dispo nibilidade d e recursos. So defini es ora mentrias vistas como um dado n o passvel de questio namento que se torn am parm etros para a implementao dos di reitos sociais implicados na seguridade, justificando as prioridades governamentais. (IAMAMOTO, 2007, p. 149).

    A diminuio do Estado Social tem sido acompanhada pelo aumento do Estado

    Penal como estratgia para a conteno das desordens geradas pelo contexto de

    desemprego, condies precrias de tr abalho e r etrao da proteo social

    (WACQUANT, 2001). No caso brasileiro, tal quadro as sume maior gravidade diant e

    das j citadas desigualdades e da falta de tradio democrtica das instituies.

    Nessas condies, de acordo com Wacquant (2001 ), o aumento da interven o

    policial e judiciria acaba por estabelecer uma verdadeira ditadura sobre os pobres.

    Na mesma perspectiva, Iamamoto (2007) afirma que, no cenrio atual, a

    questo s ocial pass a a ser objeto de viole nto processo de criminaliz ao que

  • 25

    atinge as classes subalternas. A questo social, que tende a ser naturalizada, tem

    suas manifestaes transformadas em programas focalizados de combate pobreza

    ou em expresses da violncia dos pobres, oferecidas como respostas segurana

    e repres so oficial, tendncia que, par a a autora, evoca o passado, quando (a

    questo social) era concebida como caso de polcia, ao invs de ser objeto de ao

    sistemtica do Estado no atendimento s necessidades bsicas da classe operria e

    outros segmentos trabalhadores. (p. 163).

    Faria (2001) analisa os efeitos da reestruturao do c apitalismo e reordenao

    da riquez a no Poder Judic irio brasileiro. Dentre as consequncias s ociais da

    globalizao econmica, o autor destaca que os excludos do sistema ec onmico

    perdem progressivamente as condies materiais para o exerccio dos seus direitos,

    no sendo dispensados, entre tanto, de s uas obrigaes e deveres legalmente

    estabelecidos, inclusive os de natureza penal . Com suas prescries normativas, o

    Estado os integra ao sistema jurdico basic amente em suas feie s marginais isto

    , como devedores, invasores, rus, tr ansgressores de toda natureza, condenados,

    etc. Nesse cenrio de amplia o das desigualdades, o P oder Judicirio tem suas

    funes punitivo-repressivas cada vez mais alargadas, diferente do que oc orre em

    outras reas12. (FARIA, 2001).

    importante esclarecer que trazer t ona a questo social na discusso sobre

    a violnc ia no significa relacionar de forma simplista a pobreza com a

    criminalidade. As autoras Peralva ( 2000) e Zaluar (2002 e 2004), ainda que

    reconheam as fortes desigualdades brasile iras, incluem outros aspectos na an lise

    do fenmeno. Sob a tica de Peralva (2000), por exem plo, o crescimento sem

    precedentes nos ndic es de violncia ocorrido nas ltimas dcad as, especialmente

    na transio democrtica (a partir dos anos 1980), est associado a um processo de

    mutao igualitria que significou a redefinio dos termos do conflito social no

    Brasil.

    12 Conforme o autor, enquanto no mbito do direito econmico e trabalhista vive-se hoje um perodo

    de refluxo, fl exibilizao e desregulao, no dire ito penal e i sto fica ba stante claro na A mrica Latina , tem -se a situao inversa: u ma veloz e intensa definio de novos tipos penais, muitas vezes justificados em nome do combate ao n arcotrfico, ao crime organizado e s operaes de branqueamento de dinheiro ilcito; uma crescente jurisdio e criminali zao de v rias ati vidades em inmeros setores na vida social; o enfraquecimento dos princpios da legalidade e da tipicidade, por meio do recurso a normas com textura aberta; a ampliao do rigor de penas j cominadas e da severidade das sanes; a a plicao quase irrestrita da p ena de priso; e o estreitamento das fases de investigao criminal e instruo processual. (p. 14).

  • 26

    Embora admita que o Brasil tenha enfrentado importantes crises econmicas,

    gerando a manuten o das histricas desigua ldades de renda, Peralv a (2000)

    salienta que ocorreu maior acesso ao consumo, educao, melhorias de

    infraestrutura e maior participa o cultural nas ltim as dcadas. A elevao geral

    das condies de vida da populao produz iu um processo denominado pela autora

    individualismo de massa , contribuindo para a generaliza o de um sentimento de

    igualdade. Esse sentimento, entretanto, confront ado com o preconceito e a

    discriminao, resultando em experincia s cotidia nas dramticas, especialmente

    para os jovens negros e moradores da periferia.

    O paradoxal crescimento da crimi nalidade que ac ompanhou o retorno

    democracia tambm est associado, entre outros fatores, a questes de ordem

    institucional. De acordo com Peralva (2000) , a transio democrtica ocorreu sob a

    forma de uma ruptura progressiva com a ex perincia autoritria, sendo deixadas de

    lado importantes demandas relacionadas reconstruo das instituies

    responsveis pela or dem pblic a, abrindo possibilidades para que a violncia se

    desenvolvesse.

    Peralva (2000) discute, ainda, o sent imento dos jovens, especialmente dos

    moradores de favelas, de viver em situao de extremo risco . Esse sentimento

    suscita condutas de risco como resposta, de modo que antecipar o risco torna-se

    uma maneira de reagir a ele. (p. 87).

    Os riscos ligados violnc ia inegavelmente so vivenciados de modo des igual

    entre os diferentes estratos da popula o, que possuem possibilidades de escolhas

    estruturais e recursos diferenciados par a enfrent-los. Mas a experincia da

    violncia s e generaliz ou por toda a popula o, em nveis que extrapolam o que

    poderia ser considerado tolervel em uma sociedade (PERALVA, 2000).

    Por sua vez, Zaluar ( 2002 e 2004) di scute a violnc ia urbana c ontempornea

    associada ao trfico de drogas. A dimenso ilegal desse amplo comrcio, de carter

    mundial e com caractersticas empresar iais, constitui relaes extremament e

    violentas, abrindo es pao para o trfico de armas de fogo, cuja difuso gerou uma

    espcie de estado de guerra nas grandes me trpoles brasileiras, sendo os jovens,

    especialmente os oriundos das favelas, as suas principais vtimas.

  • 27

    Mesmo reconhecendo a maior vulnerabilidade dos jovens das camad as

    populares, a autora questiona a correlao imediata que pos sa se estabelecer entre

    pobreza e criminalidade. Essa correlao, diz a autora , al m de no explicar o

    problema, contribui para o aumento dos pr econceitos e discriminaes em relao

    aos pobres. Para alm das condies ma teriais da populao, necessria a

    anlise de fatores, por exemplo, os mecanism os institucionais e societais do crime

    organizado, que atravessam classes sociai s, tm organiza o empresarial e no

    sobrevivem sem o apoio de agncias estatais incumbidas formalmente de combat-

    los (ZALUAR, 2002 e 2004).

    Zaluar (2002 e 2004), semelhante a outros autores (PERALVA, 2 000,

    SOARES, 2000, 2004 e 2005, e ADORNO, 2002, dentre outros) destaca o aumento

    do envolvimento dos jovens na violncia e na criminalidade nas ltimas dcadas. Em

    relao s mortes violentas e homicdios no pas, por exemplo, a juventude13 tornou-

    se a principal vtima e o principal agente do aumento dessas taxas (ZALUAR, 2002 e

    2004). A autora explica esse significativo envolv imento dos jovens com o crime

    mediante a busca desenfreada pelo prazer e pelo poder, que produz o fascnio pel a

    posse da arma e a adeso a agrup amentos que desempenham atividades

    criminosas. O denominado etos da m asculinidade, relacionado ao uso da arma de

    fogo, ao dinheiro no bolso, conquista de mulheres, ao enfrentamento da morte e

    concepo de um indivduo completamente autnomo representa, assim, a desejada

    visibilidade para os jovens.

    A relao entre a violnc ia e a possibilidade de visibilidade para os jov ens

    tambm discutida por S oares (2000, 2004 e 2005). S egundo o autor, o trfico

    13 importante salientar que a juventude tem sido discutida por diversos autores das Cincias Sociais

    no sentido da ampliao dos seus critrios de definio para alm da dimenso etria (CARRANO, 2000, FEIXA, 2003, MARGULIS e URRESTI, 2000, dentre outros). No contexto de uma sociedade complexa, so relativiza das as f ronteiras rgi das e ntre as ge raes, em relao a descronologizao do s marcos que delimitam a j uventude. Co mo uma g erao imprecisa, c om limites no-rigorosos, essa categoria condicionada por uma multiplicidade de aspectos etrios, materiais, s ociais, hist ricos e, p rincipalmente, como uma experincia cul tural, revel ando-se heterognea. Ainda que o critrio legal defina uma id ade para o ingresso na vida adulta (18 anos), acarretando consequncias objetivas como a imputabilidade penal, nesta dissertao adota-se um olhar sociolgico para os jovens, entendendo-se a transio para a vida adulta como um processo mais ab rangente, sem d efinies rgid as. Re ssalta-se qu e tais modificaes no entendim ento d a juventude j repercutem n o cam po ju rdico, e stando em debate um proj eto d e lei que p retende instituir o Estatuto da Juventude, garantindo di reitos especficos para a populao ent re 15 e 2 9 anos.

  • 28

    armado de drogas nas favelas pode s ignificar a oferta de recursos simblicos

    compensadores invisibilidade social , especialmente o uso da arma de fogo. Mais

    do que a escassez de recursos materiais para a sobrevivncia fsica, a escassez de

    recursos simblicos para a construo positiva das identidades t ende a lev -los ao

    engajamento em atividades criminosas:

    A fome que l eva ao crime a fome d e algum ser visto, reco nhecido e respeitado, e no a fo me prop riamente dita. Em o utras palav ras, mai s grave que a misria a excluso social. A fome fsica po de conduzir ao desespero e at a ato s extremos, m as difi cilmente leva um a pessoa imerso no mundo do crime (quan do este no se ap resenta como u m modo alterna tivo de vida, mas um m odo de lanar-se morte preco ce e violenta), a n o ser com a mediao d a revolta, qu e, associada falta de perspectivas de identificao positiva, transforma-se em dio duplo, contra si prprio (vazio de valo r) e contra o m undo (no qu al no h e spao para uma integrao que valorize positivamente o portador do dio). (SOARES, 2000, p. 158).

    O Projeto Juventude (2004) revela dados que permitem conhecer as condi es

    em que vivem grandes parcelas dos jovens no Brasil. Em sntese, o documento

    indica aum ento do desemprego, precaried ade da oc upao profi ssional e dficit

    educacional nessa faixa etr ia. Tambm destaca o envolviment o acentuado dos

    jovens em situaes de violncia nos grandes centros urbanos, tanto na qualidade

    de vtimas quanto de autores. Diante dos problemas enfrentados pelos jovens

    relacionados sua insero social, profiss ional e educaci onal, o Projeto Juventude

    (2004) ressalta as especificidades de viver a condio juvenil14 no pas:

    Os p rocessos con stitutivos d a condio j uvenil se fa zem de mod o diferenciado segundo as desigualdades de classe, renda familiar, regio do pas, condi o de mo radia rural ou u rbana, no centro ou na periferia, de etnia, gnero, etc. Em funo d essas diferenas, os recursos disponveis resultam em chan ces mu ito distinta s de de senvolvimento e insero. (p. 12).

    14 Condio juvenil significa a experi ncia comum de viver a juvent ude, compartilhada por todos os

    jovens, ind ependente de sua etnia, g nero, situa o social e eco nmica. Confo rme Margulis e Urresti (2 000), em discusso conceitual so bre as g eraes, esse s ele mentos com uns so identificados como facticidad, ou seja, fenmeno s de o rdem biolgica e cultural rela cionados especificamente idade. Para esses autores, cada generacin puede ser considerada, hasta cierto punto, como pertenciente a una cultura diferente, en la medida en que incorpora en su socializacin nuevos cdigos y destrezas, lenguagens y formas de percibir, de apreciar, clasificar y distinguir. (p. 18). O que o Projeto Juventude permite observar so os diferentes contextos sociais e econmicos em que a juventude brasileira experimenta a condio juvenil.

  • 29

    Krauskopf (2005), por sua vez, destaca o tecido social marcado pela pobreza e

    pelas desigualdades de renda e gnero no c enrio latino-americano e caribenho. A

    autora apresenta o conceito de risco estrutural , que resulta nos comportamentos

    arriscados assumidos pelos jovens. Ess a condio ocorre em locais de extrema

    pobreza, blicos, criminaliz antes, desprotegi dos, com falta de acesso a s ervios e

    escassa ou nula cobertura institucional.

    Nos espa os onde se vive o risco estrutural , conforme Krauskopf (2005), a

    identidade coletiva positiva negada, e os jovens sofrem o esti gma de viverem

    nessas comunidades . No h espaos de ex presso e participao legitimada da

    juventude, o que contribui para o ingresso em atividades relacionadas violncia:

    Quando no h oportunidades de participao construtiva, o ano nimato pior que o reconhecimento que eles obtm com a identidade negativa que lhes i mpingida. A visibilidade at errorizante se torna opo de emancipao e as g ratificaes inten sas so mai s impo rtantes que a preservao da vida. (p. 156).

    Abramovay et al (2002) relacionam a violncia sofrida e prat icada pelos jovens

    latino-americanos situao de vulnerabilidade s ocial15 em que se enc ontram.

    Analisando dados produzidos por difere ntes organizaes internacionais 16, os

    autores alertam para a insegurana, incert eza e exposio a riscos relacionados s

    condies de pobreza, concentrao de ren da e dificuldades de acesso a direitos educao, trabalho, sade e lazer.

    Diversos autores tm discutido o envolvimento de jovens em atividades

    criminosas no somente como busca de renda, mas, principalmente, de visibilidade

    e reconhecimento. Na impossibilidade de conquistar em o direit o participao e,

    consequentemente, a chance de serem vist os, ouvidos e reconhecidos na condio

    15 Vulnerabilidade so cial definid a p elos autores como o resultado n egativo da rela o entre a

    disponibilidade dos recursos materiais ou simblicos dos atores, sejam eles indivduos ou grupos, e o acesso e strutura de o portunidades sociais, econmicas, culturais que p rovm do Esta do, do mercado e da so ciedade. Esse re sultado se traduz em debi lidades ou desvantagens pa ra o desempenho e mobilidade social dos atores. (p. 29). O conceito de vulnerabilidade social, portanto, busca uma explicao para o envolvimento dos jovens com o fenmeno da violncia, contemplando uma m ultiplicidade de fat ores relacionados precar iedade da s co ndies d e vida, d os servios pblicos, falta de opo rtunidades de educao, emprego e la zer e s restritas possibilidades de mobilidade social.

    16 UNESCO, UNAIDS, CEPAL, CELADE, OMS, OPS, entre outros.

  • 30

    de sujeitos, alguns jovens adotam a violnci a como estratgia, configurand o o que

    Sales (2007) denomina (in) visibilidade perversa.

    Alm do envolviment o real dos jovens com o crime, o cenrio estigmatizante

    vivido por eles requer alternativas que ro mpam com esse ciclo vicios o. A viso

    negativa dessa juventude uma important e adversidade enfrentada na construo

    de suas identidades, contribuindo para o quadro de violncia e criminalidade em que

    se vive.

    No debate sobre a violncia, Zaluar (2002 e 2004) considera, ainda, as

    limitaes do funcionam ento do sistema criminal 17. Alm da aus ncia de c ontrole

    dos agentes mais prximos da p opulao (polic iais civis e militares) 18, geradora de

    altos nveis de corrupo e de condutas violentas , a autora aponta o carter

    discriminatrio desse sist ema, que s identifica co mo criminoso o delinquent e

    oriundo das classes populares19. (2004, p. 22).

    A brutalidade e a transgresso s leis por parte da polcia brasileira abordada

    por Soares (2000) 20, Filho, Gall (2002), e Rolim (2006). Chacinas, formao de

    grupos de extermnio, torturas e espancam entos fazem parte da rotina de muitos

    agentes dessas instituies, representando graves violaes aos direitos humanos

    fundamentais.

    Ainda que no e xistam dado s estatsti cos nacio nais q ue possib ilitem a

    17 Sistema Criminal entendido como o conju nto de in stituies diretamente rela cionado s

    atividades d e segu rana pbli ca e d a Justi a Criminal (Polcia Civil, Polcia Militar, Mi nistrio Pblico, Poder Judicirio e Sistema Carcerrio).

    18 Em pesqui sa realizada em cinco esta dos (Rio de Janeiro, So Paulo, Rio G rande do Sul , Minas Gerais e Par), Lem gruber, Musume ci e Ca no (2003) di scutem o co ntrole ex terno da Pol cia n o Brasil. Os problemas das ouvidorias so apontados no estudo, especialmente no que diz respeito sua frgil institucionalizao e resistncia histrica das polticas (militar e civil) a qualquer forma de controle externo de sua atuao.

    19 Vale ressaltar o estudo de Lima (2004) que chama a ateno para outros aspectos que incidem no funcionamento desigual do sistema criminal, como atributos raciais e d e gnero. Nesse sentido, o estudo reali zado p elo autor sobre o f uncionamento da s in stituies do sistema criminal de S o Paulo constatou tratamento diferenado a mulher es e homens, brancos e ne gros, especialmente em relao aos ltimos, para os quais dispensado tratamento mais severo.

    20 Soares (2000), ao relatar sua experincia como Subsecretrio da Segurana Pblica no Governo de Anthony Garotinho no Rio de Jane iro, entre n ovembro de 19 98 a maro de 2000, denuncia a ineficincia, a corrupo e a violncia policial no combate ao crime e as dificuldad es de se romper com e sse modelo . O autor ap resenta a prop osta de um novo sistema d e seg urana pblica , baseado na compatibilizao entre eficincia policial e respeito aos direitos humanos, aos direitos civis e s leis.

  • 31

    avaliao efetiva do sistem a criminal br asileiro na inibio da violnc ia e da

    criminalidade, possvel afirmar a sua inef iccia nesse sentido. Mesmo nos Estados

    Unidos, Inglaterra e no Pas de Ga les, as chamadas taxas de atrito 21 so altas, o

    que faz com que se imagine que no Bras il esses valores sejam muito significativos,

    consideradas as limit aes das suas in stituies (LEMGRUBER, 2002, e ROLIM,

    2006)22.

    Tavares (2009), por s ua vez, chama a at eno para a dimens o mundial da

    crise da segurana pblica, notadamente no que se refere situao das polcias.

    Para o autor, a questo polic ial est inserida em um contexto marcado pela

    ineficcia e ineficincia frente ao crescimento do fenmeno da violncia difusa e dos

    novos traos que caracterizam a criminalidade violenta.

    No que diz respeito s demandas da so ciedade quanto s respostas para o

    contexto de violncia descrito, o aumento do Estado Penal tem se expres sado na

    ideologia da tolerncia zero (WACQUANT, 2001), ocupando cada vez mais espa o

    no Brasil. Originada nos Estados Unidos e tendo Nova Iorque como experincia d e

    maior visibilidade, essa abordagem prope o endurecimento penal como estratgia

    fundamental de enfrentamento da violncia e da cr iminalidade. Nessa perspectiva, a

    represso deve ser ostensiva e genera lizada, inclusive a delitos de pequena

    gravidade, sendo o encarceramento a forma privilegiada de punio.

    A ideologia da toler ncia zero tem recebido merecidas crtic as em todas as

    partes do mundo. Wacquant (2001), ao analis ar o caso norte-americano e europeu,

    caracteriza essa abordagem como forma de gesto policial e judiciria da pobreza

    que incom oda, porque seus destinatrios privilegiados so os pobres e os

    imigrantes. No Brasil, os autores Lemgr uber (2002), Soares ( 2002) e Rolim (2006)

    tm se encarregado de tecer as crticas nec essrias, conforme as espec ificidades

    nacionais.

    21 As taxas de atrito signifi cam a proporo de perdas que ocorrem em cada instncia do sistema de

    justia criminal desde o cometimento de um delito at a responsabilizao do infrator. 22 Rolim (2006 ) cita e studos realizados na Inglaterra e no Pas d e Gales no a no 2000, quando as

    taxas de at rito demon stravam que um em ca da d ez crim es re sultava em alguma sa no. Se inclussem, n essa anlise, as pesquisas de vitimizao (ra ramente reali zadas no Brasil), que revelam os crimes no comunicados polcia, a proporo se elevava para trs a cada 100 crimes cometidos.

  • 32

    Considerando-se a complexidade do fenmeno da v iolncia e da criminalidade,

    composto por um conjunto de elementos e relaes, a dimenso individual no pode

    ser negligenciada na sua anlise. Os autor es Lahire (2004) e Charlot (1996 e 2000),

    crticos das teorias da reproduo 23, resgatam a dimenso do sujeito nos seus

    estudos, contribuindo para a compreenso da construo singular dos indivduos,

    superando, portanto, leituras generalizantes.

    Embora as teorias de Lahire (2004) e Charlot (1996 e 2000) sejam direcionadas

    ao mbito escolar, possvel traar um paralelo com a discusso sobre a violncia e

    a criminalidade. Ambos se debr uam sobre situaes de sucesso escolar nos meios

    populares, contrariando as anlis es es tatsticas que correlacionam o fracasso

    escolar e a origem social. Poder-se-ia perguntar, por exemplo, por que a maioria dos

    jovens oriundos das camadas populares de baixa renda, apes ar de todas as

    limitaes e dificuldades, no se envolve m com a prtica de delitos, construindo

    outras trajetrias de vida24?

    Os autores supracitados, ao recuperarem a dimenso do suje ito, contudo, no

    o situam como um ser autnomo e isolado, mas inserido no mundo, em relao com

    outros seres humanos, que tambm so sujeitos um ser social que age na e sobre a realidade, construi ndo sua biografia no espao do pos svel, traado pela

    sociedade do qual parte. O su jeito, portanto, singular , inscrevendo-se no espao

    social (CHARLOT, 2000).

    A perspectiva terica de Lahire e Charlo t, na qual o sujeito constitui e se

    constitui por mltiplas relaes, possibi lita uma leitura no de oposio, mas de

    articulao entre o indivduo e a sociedade. Lahire afirma:

    23 As teo rias da reprodu o foram d esenvolvidas especialmente no s a nos 1960 e 1 970, sen do

    Bourdieu o seu prin cipal representante na rea da educao. Um dos co nceitos fundamentais de Bourdieu, cri ticado por Lahire e Charlot, o de habitus que, em snte se, signifi ca a s marca s determinantes da origem social nas prticas individuais.

    24 Ventura (1 994), ao convi ver com a F avela de Vig rio Geral, no Rio de Janeiro, observou restrito envolvimento da pop ulao com o cri me, rep resentando me nos de 1%. O a utor relata ai nda a s diferentes trajetria s d e trs jove ns prat icamente da me sma idad e e advindos da mesm a comunidade, questionando: o que levou Djalma a ser otrio, se u irmo a ser bandi do e o amigo Caio a ser socilogo? O soci al no era suficie nte para e xplicar a quelas vocaes. ( p. 107). Otrio, no contexto d o livro, era a f orma como os joven s d enominavam os tra balhadores d a comunidade, em geral inseridos em atividades de pouco reconhecimento e baixa remunerao.

  • 33

    Se as e struturas m entais de um ser social se co nstituem atravs d as formas de relaes sociais e a s e struturas objetivas so u ma medida particular dessa realidade intersubjetiva, desse tecido de interdependncias sociais, com preendemos realme nte, ento, que no se trata de du as realidades diferentes, sen do um a (as estruturas m entais) o pro duto d a interiorizao da outra (estruturas objetivas), mas duas apreenses de uma mesma realidade. (2004, p. 354).

    A violncia e a criminalidade, por fi m, no podem ser compreendidas em si

    mesmas, mas em um context o de rela es complexas que envolvem questes

    histricas, econmic as, sociais, poltica s, culturais e aspectos relacionados

    dimenso do sujeito. As respostas so ciais a esse fenmeno, ou seja, os

    mecanismos punitivos, incluindo a presta o de servios comunidad e, se inserem

    na trama dessas relaes.

    2.2 PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE: O FRACASSO DE UM MODELO DE

    PUNIO

    Semelhantes violncia e criminalid ade, as res postas sociais a es ses

    fenmenos as penas - possuem carte r histrico e social. Acompanham, por

    conseguinte, as transformaes econmica s, polticas e culturais, angariand o

    finalidades diferentes no decorrer do tempo.

    As penas privativas de lib erdade assumem especial importncia na anlis e do

    sistema punitivo, cons iderando-se a sua cent ralidade histrica na poltica penal nos

    ltimos sculos. As alternativas penais, dentre elas a prestao de ser vios

    comunidade, resultam de um movimento internacional vo ltado para a construo de

    novas pos sibilidades de puni o di ante do fracasso do m odelo bas eado no

    encarceramento.

    Os estudos de Fouc ault constit uem-se em uma referncia fundamental na

    anlise das formas histricas de punio, notadamente o seu livro Vigiar e Punir

    (2001). Nessa obra, o autor aborda a genealogia do poder, contemplando a histria

    da legislao penal e dos meios punitivos a dotados pelo poder pblico na represso

    dos crimes, desvelando o processo de construo das penas privativas de liberdade.

  • 34

    Analisa o modo com que a sociedade e o Estado enfrentar am a questo da

    criminalidade nos ltimos sculos, desde a utiliza o da violnc ia fsica (suplcio do

    corpo) at a constituio das instituies penitencirias modernas. O autor discute a

    construo histrica da sociedade disc iplinar, problematizando a puni o como

    mecanismo desta sociedade.

    A priso, segundo Foucault (2001), passa a se constituir na resposta penal por

    excelncia a partir do sculo XVIII. At ento, o sistema penal ancorava-se no

    arbtrio e na crueldade que se c oncretizavam no espetculo do suplcio do corpo,

    objetivando, mais do que a puni o ou a recuperao do criminoso, a demonstrao

    do poder monrquic o. Com a pris o, o objeto da ao punitiva se desloca do corpo

    para a alma, objetivando o cont role da vontade, das dispos ies, do cor ao e do

    intelecto. A disciplina, por tanto, passa a se constitu ir na centralidade da punio,

    configurando o que o autor denomina poder disciplinar.

    As mudanas nas penalidades, segundo Foucault ( 2001), ocorrem em um

    momento histrico europeu com significativa s transformaes cientficas, polticas,

    econmicas e sociais . A punio, nessa perspectiva, no deve ser compreendida

    somente nos seus as pectos repressivos, mas como uma funo social complexa,

    relacionada a processos mais amplos das relaes de poder.

    As transformaes oc orridas no Est ado e na economia, com destaque par a a

    formao do sistema capitalis ta entre os sculos XVI e XIX, co ntriburam

    significativamente para a c onfigurao das novas formas de punir. O

    encarceramento passou a representar a privao de um bem universal e

    quantificvel no tempo a liber dade, des empenhando o papel de transformar os

    indivduos mediante o isolamento e a imposio da moral do salrio como condio

    de sua existncia. (FOUCAULT, 2001, p. 204). Tambm importante destacar o

    papel dos Reformadores do sculo XVIII par a o processo de transformao do

    sistema punitivo, especialmente Beccaria 25, com a obra Dos delitos e das penas

    (1764). O Iluminismo, tendo o referido pens ador como um dos seus principais

    representantes, combateu a pena de morte e as penas corporais, introduzindo o

    25 Alm de Beccaria, Bitencourt (2004) salienta as contribuies de John Howard e Jeremy Bentham

    para a reforma do sistema punitivo.

  • 35

    princpio da legalidade, anterioridade da lei penal , proporcionalidade e

    impessoalidade (GOMES, 2008).

    O Iluminis mo e a Revoluo Francesa pro duziram as leg islaes liberais, de

    modo que, paulatinamente, as penas corpor ais foram substitudas pela pena

    privativa de liberdade. A priso passou, ento, a cons tituir o eixo central do sistema

    punitivo estatal (GOMES, 2000).

    Foucault (2001), contudo, salienta o frac asso da priso como mtodo punitiv o

    desde os seus primrdios. Segundo o auto r, desde as primeiras experincias a

    priso no diminuiu a crim inalidade, provocando a re incidncia e fabricando

    delinquentes, mediante as s uas precr ias condies e o favorecimento da

    organizao dos seus internos. Alm disso , o encarceramento tem efeitos negativos

    sobre o grupo familiar do det ento que, ao cair na misria, tende a cometer novos

    delitos (FOUCAULT, 2001).

    Embora a priso tenha sofr ido s everas crticas desde a sua gnese, pouc as

    foram as modificaes que nela se oper aram no decorrer do tempo, situao que

    levou Foucault a questionar os seus objetivos como instituio punitiva:

    O si stema carcerrio j unta numa m esma figura discursos e a rquitetos, regulamentos coercitivos e proposies cientficas, efeitos sociais e utopias invencveis, prog ramas para corrigir a delinq ncia e mecani smos qu e solidificam a delinq ncia. O pret enso fracasso no fa ria parte do funcionamento da priso? N o deve ria ser i nscrito na queles efeitos do poder que a disciplina e a tecnologia conexa do encarceramento induziram no a parelho de ju stia, d e um a m aneira m ais ge ral na sociedade e que podemos agrupar sob o nome d e si stema ca rcerrio? Se a in stituio-priso resistiu tanto tempo, e em tal imobilidade, se o princpio da deteno penal n unca foi seriam ente que stionado, sem dvida porque e sse sistema carcer rio se e nraizava em profu ndidade e exe rcia fun es precisas. (2001, p. 225).

    Apesar dos reconhecidos problemas hi stricos da priso, ainda hoje ela

    entendida como um mal neces srio, ou, nos termos de Bitencourt (2004), uma

    exigncia amarga, ma s imprescindvel, sendo privilegiada c omo forma de punio.

    Conforme diz Foucault (2001), parece ser a detestvel soluo, de que no se pode

    abrir mo. A priso, port anto, que na perspectiva Il uminista representava a

    humanizao das penas, nunca cumpriu suas promessas. O mal-estar provocado

  • 36

    pela pena de morte e castigos corporais na Idade Mdia ho je sentido em relao

    ao encarceramento um sistema perverso e violador dos direitos humanos.

    Goffman (2003) aborda os efeitos das instituies totais 26 sobre os indivduos ,

    considerando as prises exemplos par adigmticos dos malefcios que estas

    instituies podem causar aos seres humanos. O processo de mortificao do eu ,

    ocasionado pela segregao, inicia-se no ingresso do internado, ocorrendo a

    desaculturao (espcie de destreinamento para a vida social) em casos de maior

    permanncia. Como afirma Bitencourt (2004),

    [...] ningum, em s conscincia, ignora que no h nada mais distante da ressocializao do qu e a priso. Bast a desta car o s novo s hbi tos que o recluso deve adquirir ao ingressar na priso, tais como vestimenta, horrios para tod as a s atividade s pesso ais, formas dete rminadas de an dar pe los ptios, a observao do cdigo do preso: em resumo, a assimilao de uma nova cultura, a cultura prisional. (p. 140).

    A priso, como instituio total, constitui-se em um mundo parte, com regras

    e padres de comportamento prprios. O livro Estao Carandiru (VARELLA, 1999),

    retrato das condies degradantes de uma penitenciria de So Paulo que chegou a

    abrigar nove mil apenados 27, relata o c ontrole da instit uio pelos prprios internos,

    que, mediante hierarquia rigorosa, poss uem poder de deciso sobre a vida e a

    morte28, violando os princpios mais fundamentais dos direitos humanos.

    A desaculturao promovida pelo sistema ca rcerrio acompanhada pelo

    estigma (GOFFMAN, 1988) que carregam os s eus egressos. O estigma tende a

    reduzir a pessoa a uma caracterstica que gera descrdito, considerada um defeito,

    26 Sob a tica de Goffman (2003), uma instituio total pode ser definida como um local de residncia

    e trabalho onde um grande nmero de indivduos com situao semelhante, separado da sociedade mais am pla e por co nsidervel pe rodo de te mpo, leva uma vida fechada e formalment e administrada. (p. 11).

    27 Esta penitenciria, que chegou a ser a maior da Amrica Latina, foi desativada na dcada de 1990, sendo de molidos al guns de seus pavilhes. O processo de d esativao foi desencade ado pelo massacre de 111 presos, no ano de 1992, retratado com detalhes no livro de Varella (1999).

    28 Vale destacar um tre cho do livro no q ual o autor re produz a fala de um deten to sobre o se u poder dentro da in stituio. Bolach a, encarregad o da fa xina do pavi lho qu e ocupava, ap resentava sintomas de estresse diante das suas grande s responsabilidades na resoluo do s conflitos da penitenciria, expressando: No silncio da noite, a mente trabalha solitria porque a deciso final minha e dela depende a sorte de um ser humano. Sou o j uiz do pavilho. S que o j uiz da rua trabalha aquelas ho rinhas dele e vai pra ca sa com o motorista; eu 24 por 48. Ele s tem que julgar se o acusado vai preso; no mximo, dar uma pena mais longa. Eu assino pena de morte. (p. 104).

  • 37

    fraqueza ou desvantagem. Os egressos da priso so percebidos como se

    carregassem uma marca, reduzidos condi o de infratores, gerando dificuldades

    muitas vezes intransponveis para a rea lizao de atividades lcitas quando se

    encontram em liberdade.

    No caso brasileiro, os problemas inerentes privao da liberdade so

    agravados pelas caractersticas de nossa sociedade, notadamente as desigualdades

    sociais e a parca presena do Estado nas polticas pblicas, inclusiv e na rea da

    execuo penal 29. Segundo Wolff (2005), as precrias condies das prises no

    pas so histricas, presentes desde o per odo imperial: precr ia estrutura fsica,

    insalubridade, superpopula o e no-separao dos presos conforme situao

    jurdica (presos provisrios e c ondenados) e gravidade do delito, entre outros

    fatores.

    A realidade prisional do Br asil atesta as profundas desigualdades e a natureza

    seletiva do seu sistema criminal. O perfil da sua populao carcerria

    reconhecidamente jovem, pobre, com pouca escolaridade e qualificao profissional,

    sendo os delitos praticados, em sua maio ria, contra o patrimnio, notadamente

    furtos, roubos e estelionatos (WOLFF, 2005). Os dados divulgados pelo

    Departamento Penitencirio Nacional (DE PEN), rgo do Ministrio da Justia

    (2005), corroboram a seletividade do si stema penal: 82,7% dos pr esos no

    trabalham, 86,5% no possuem profisso definida, 48% so menores de 25 anos de

    idade e 81,9% no concluram o ensino fundamental. Alm de a maioria dos

    detentos no contar com al ternativas laborais nos p resdios, somente 20 % das

    penitencirias brasileiras dispem de es colas, resultando na ociosidade e na

    ausncia de qualquer qualifica o no per odo da privao da liberdade. Embora

    representem altos c ustos aos cofres p blicos, calculados entre R$600,00 a R$

    1.000,00 mensais per capita, os ndices de reincidncia so elevados, em torno de

    85% (GOMES, 2008)30.

    29 Ainda que Bitencourt (2004) afirme que, de modo geral, as mazelas da priso no sejam privilgio

    dos pases de terceiro m undo, ine gvel qu e as profun das d esigualdades bra sileiras acirrem ainda mais as deficincias dessa complexa instituio.

    30 Bitencourt (2004) questiona a afirmao de que a demonstrao do fracasso da priso se expressa nos altos nd ices de rei ncidncia, j que os pa ses latino -americanos no a presentam n dices confiveis (quando os apresentam), sendo esse um dos fatores que dificultam a realizao de uma verdadeira p oltica crimin al. (p.1 61). O auto r p roblematiza, ainda, o to pro clamado efeit o

  • 38

    A precria situao dos presdios contra ria frontalmente o qu e preconiza a Lei

    de Execu o Penal (LEP) 31. Em seu primeiro artigo, esta Lei estabelece como

    objetivo da execu o penal, alm da efetivao das disposi es de sentena ou

    deciso criminal, o de proporcionar condies para a harmnica integra o social

    do condenado e do internado, e so previstos v rios direitos e garantias aos presos

    e internados nas reas da assistncia material , social, jurdica, rel igiosa e nas reas

    da sade e da educao32.

    O sistema prisional brasileiro, diferente das dispos ies legais, assemelha-se

    realidade medieval, no alca nando padr es mnimos civilizat rios. E, diz Faleiros

    (2001), a priso no pas parece estar ai nda em uma era pr-beccariana, no

    atendendo sequer aos requisitos assinalados por Beccaria no sculo XVIII.

    J, Wolff (2005) salienta a pres ena do suplcio nos presdios brasileiros, no

    mais como espetculo, como ocorria na Idade Mdia, mas como ilegalidade. A

    autora se refere, ainda, s torturas fsicas existentes na fase de instruo processual

    como manifestao do poder di sciplinar e vingativ o. A s tortur as ex tralegais, no

    Brasil, so protegidas pelas grades, pela bu rocracia e pelo preconceito so cial que

    carregamos. (p. 111).

    Em relao populao carcerria, o Presdio Central de Porto Alegre o

    maior em funcionam ento no pas, co m populao de aprox imadamente 4,7 mil

    detentos em um espao destinado a 1,4 mil homens. As suas precrias condies

    crimingeno da priso, considerando que, do pont o de vista cientfico, no h como estabelecer com exatido o al cance que a p rivao da libe rdade p ode ter na vida do s indivduo s: no se conseguiu precisar se po de ser m ais importa nte como fator crimingeno a person alidade d o recluso, sua experin cia anterior priso ou o meio so cial em que se desenvolver ao ser liberado. (p. 160 ). De q ualquer maneira, con sensual o ent endimento d e qu e o am biente carcerrio exerce influ ncia prejudi cial ao re cluso, ainda que no se sai ba a dimenso de tal influncia.

    31 Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. 32 O artigo 40 da LEP estab elece o direito integridade fsica e m oral dos condenados e dos presos

    provisrios. O artigo 4 1 detalha o s d emais di reitos de ssa pop ulao: alim entao suficiente e vesturio; atribuio de trabalh o e sua rem unerao; previdn cia soci al; con stituio d e peclio; proporcionalidade na distribuio do te mpo para o trabalho, o de scanso e a recreao; exerccio das atividades profissionais, intelectuais, artsticas e desportivas anteriores, desde que compatveis com a execuo da pe na; assi stncia material sade, ju rdica, edu cacional, so cial e reli giosa; proteo contra qualquer forma de sensacionalismo; entrevista reservada com advogado; visita do cnjuge, parentes e amigos em dias determinados; chamamento nominal; igualdade de tratamento, salvo quanto s exig ncias de i ndividualizao da pen a; au dincia e special co m o diretor do estabelecimento; represen tao e p etio a qual quer autori dade, em defesa de direito e conta to com o m undo exterior por meio d e correspon dncia escrita, d e leitura e d e outro s mei os d e informao que no comprometam a moral e os bons costumes.

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    superlotao, ocios idade e in salubridade levar am o Juiz respons vel pela

    fiscalizao dessas instituies na Re gio Metropolitana de Porto Alegre a

    consider-lo um misto de frica, em guerra civil, e Afeganisto33.

    Hassen (1999), ao realiz ar estudo etnogr fico com presos-trabalhadores no

    Presdio Central de Porto Alegre, na dcad a de 1990, tambm relata os paradoxos

    dessa instituio gacha. Alm de most rar o no-r econhecimento do direito dos

    presos ao trabalho, o estudo c orrobora o carter pernicioso d o encarceramento,

    levando a autora a c oncluir que a priso s faz to rnar os hom ens piores, mais

    cticos, tristes, desanimados, revoltados, quando no mais criminosos ou finalmente

    criminosos. (p. 226).

    A complexidade, as contradies e a perversidade da priso so explic itadas

    por Wolff (2005), que define essa instituio da seguinte maneira:

    A p riso uma i nstituio complexa, cuja p roduo e re produo n o podem ser vi stas a p artir de um nico pri sma; seu pro duto m uito mai s que o cumprimento de u ma se ntena, mais que a tualizao do suplci o, exerccio d e vingana, prticas de retribui o ou de ten tativas de preveno. tudo isto. (p. 93).

    Nas condies desc ritas, a priso, mais do que recuperar, segrega os

    indivduos e se configura em um fator de aumento da viol ncia e da criminalidade.

    Diante do fracasso desse modelo de puni o, urge que o e ncarceramento seja

    imposto somente aos crimes gr aves e em situaes em que a li berdade do infrator

    efetivamente represente risco para a soc iedade34. Para os demais casos, prope-s e

    a aplicao das penas e medidas alternativas 35, que se apr esentam menos

    33 Declarao do Juiz ao Jornal Zero Hora no dia 05 de outubro de 2008. 34 Bitencou rt (2004 ), que d iscute a fal ncia d a pr iso tanto nos seus a spectos preventivos quanto

    retributivos, recom enda q ue a s pen as privat ivas de liberdad e limitem-se s pe nas de longa durao e queles con denados efe tivamente p erigosos e de difcil re cuperao. (p. 2 ), restringindo, portanto, a aplicao dessa penalidade s situaes de reconhecida necessidade.

    35 Tal entendimento, d e a cordo co m Jesus (2000), filia-se te ndncia do Direito Pen al Mod erno deno