PRIMEIRO ENCONTRO DO DESAFIO LITERÁRIO · Ela conhece o estrangeiro Martim, ... deita-se com...

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PRIMEIRO ENCONTRO DO DESAFIO LITERÁRIO 28 DE SETEMBRO DE 2014: José de Alencar, “Iracema” e “Lucíola” No primeiro encontro do Grupo de Leitura que montei em minha cidade, Chapecó-SC, com alguns amigos, tratamos a respeito das leituras programadas para o primeiro mês do Desafio Literário: O autor José de Alencar e as obras “Iracema” e “Lucíola”. José Martiniano de Alencar (1829-1877) cearense, filho de um Senador do Período Regencial, depois de formado em Direito (SP), regressa a corte (RJ) onde inicia sua carreira de advogado e ao mesmo tempo atua como jornalista e dedica-se a política (em 1861 elege-se deputado pelo Ceará). Estreia como escritor escrevendo folhetins (“Ao Correr da Pena”) para o Correio Mercantil em 1853. Na sua vertente regionalista publicou obras como “O Sertanejo”, “Til” e “O gaúcho”. Entre romances históricos destacam-se “As Minas de Prata” e “A Guerra dos Mascates”. Escreveu uma trilogia indianista composta pelas obras: O guarani (publicada inicialmente em folhetins, 1857), Ubirajara (1874) e Iracema (1865), da qual falaremos a seguir. Iracema é o romance que sagrou-se lenda do Ceará. Publicado num período em que a literatura nacional procurava firmar sua autonomia e separação da portuguesa e também reconstruir e exaltar o passado brasileiro. A narrativa da obra lembra um poema em prosa, conforme diriam alguns críticos. Entre os membros do grupo de leitura houve unanimidade: a leitura desta obra é bastante enfadonha. Alguns recordaram o sofrimento que foi a tentativa de ler “Iracema” nos tempos de escola. Para o crítico que inspirou nosso Desafio de Leitura, Rodrigo Gurgel (p.25), é um “ despautério” considerar tal livro a obra-prima de José de Alencar, e ele afirma ainda que tal produção só tem relevância no Brasil. Gurgel cita que a obra Alencariana é exemplo do que acometeu quase todos os escritores românticos do nosso país: “presa ao pirotesco, à idealização exagerada do elemento indígena”.

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PRIMEIRO ENCONTRO DO DESAFIO LITERÁRIO

28 DE SETEMBRO DE 2014: José de Alencar, “Iracema” e “Lucíola”

No primeiro encontro do Grupo de Leitura que montei em minha cidade,Chapecó-SC, com alguns amigos, tratamos a respeito das leituras programadas para oprimeiro mês do Desafio Literário: O autor José de Alencar e as obras “Iracema” e“Lucíola”.

José Martiniano de Alencar (1829-1877) cearense, filho de um Senador doPeríodo Regencial, depois de formado em Direito (SP), regressa a corte (RJ) onde iniciasua carreira de advogado e ao mesmo tempo atua como jornalista e dedica-se a política(em 1861 elege-se deputado pelo Ceará). Estreia como escritor escrevendo folhetins(“Ao Correr da Pena”) para o Correio Mercantil em 1853. Na sua vertente regionalistapublicou obras como “O Sertanejo”, “Til” e “O gaúcho”. Entre romances históricosdestacam-se “As Minas de Prata” e “A Guerra dos Mascates”. Escreveu uma trilogiaindianista composta pelas obras: O guarani (publicada inicialmente em folhetins, 1857),Ubirajara (1874) e Iracema (1865), da qual falaremos a seguir.

Iracema é o romance que sagrou-se lenda do Ceará. Publicado num período emque a literatura nacional procurava firmar sua autonomia e separação da portuguesa etambém reconstruir e exaltar o passado brasileiro. A narrativa da obra lembra umpoema em prosa, conforme diriam alguns críticos. Entre os membros do grupo de leiturahouve unanimidade: a leitura desta obra é bastante enfadonha. Alguns recordaram osofrimento que foi a tentativa de ler “Iracema” nos tempos de escola. Para o crítico queinspirou nosso Desafio de Leitura, Rodrigo Gurgel (p.25), é um “despautério” considerartal livro a obra-prima de José de Alencar, e ele afirma ainda que tal produção só temrelevância no Brasil. Gurgel cita que a obra Alencariana é exemplo do que acometeuquase todos os escritores românticos do nosso país: “presa ao pirotesco, à idealizaçãoexagerada do elemento indígena”.

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Iracema (anagrama de América) é uma índia da tribo dos tabajaras, filhaAraquém, o pajé. Ela conhece o estrangeiro Martim, que acaba hospedado na tribo dostabajaras. Martim é realmente o nome de um dos primeiros colonizadores do Ceará,assim como outro nome encarnado na obra corresponde a um personagem histórico: é ocaso do guerreiro Poti. Martim e Iracema apaixonam-se mas inicialmente vivem o dilemados costumes e crenças da tribo tabajara que prevê que a filha do Pajé deve manter-sevirgem em honra e para manter a proteção de Tupã. O tempo corre e Iracema acabatraindo sua tribo, deita-se com Martim e acaba por guerrear contra os irmãos paraproteger o amor de ambos. Martim tornou-se guerreiro na tribo dos pitiguaras, de ondevinha seu amigo e guerreiro Poti, e recebeu o nome de Coatiabo. Segundo nota da edição,“a História menciona esse fato de Martim Soares Moreno se ter coatiado quando viviaentre os selvagens do Ceará. Coatiá significa pintar” Iracema engravidou e deu a luz a umfilho de Martim em quem pôs o nome de “Moacir”, porém, passando os dias veio afalecer, deixando no coração de Martim o misto da alegria pelo filho e tristeza pela morteda amada. Como era grande a saudade que o estrangeiro sentia da sua terra natal, após amorte de Iracema pegou o menino no colo e partiu de volta para casa.

Martim regressa depois de algum tempo trazendo consigo outros de sua raça. Noúltimo capítulo lemos: “Afinal volta Martim de novo às terras que foram de sua felicidade,e são agora de amarga saudade. [...] Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefebranco, para fundar com ele a mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de suareligião, de negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem. Poti foi o primeiro queajoelhou aos pés do sagrado lenho; não sofria ele que nada mais o separasse de seu irmãobranco. Deviam ter ambos um só Deus, como tinham um só coração.” (p.115)

Creio que mesmo dos mais enfadonhos romances se tiram belos trechos. Algunsdos meus preferidos nesta obra:

1- Quando Martim afasta-se de Iracema e retorna tentando achar justificativapara sua ausência ela diz, “Se a lembrança de Iracema estivesse n’alma do estrangeiro, ela[a lembrança] não o deixaria partir. O vento não leva a areia da várzea, quando a areiabebe a água da chuva.” (p.26);

2- “Teu sorriso, filha do Pajé, apagou a lembrança do mal que eles me querem”(p.51);

3- “Martim se embala docemente; e como a alva rede que vai e vem, sua vontadeoscila de um outro pensamento. Lá o espera a virgem loura dos castos afetos; aqui lhe sorria virgem morena dos ardentes amores. Iracema recosta-se no langue ao punho da rede;seus olhos negros e fúlgidos, ternos olhos de sabiá, buscam o estrangeiro e lhe entramn’alma. O cristão sorri; a virgem sorri; como o saí fascinado pela serpente...” (p.60).

Lucíola, publicada em 1862, inaugura os romances urbanos de José de Alencar.Junto a “Senhora” e “Diva”(1864) compõem um trio que pretende traçar o perfil damulher ideal. Para o crítico Rodrigo Gurgel esta, sim, é a melhor obra de José de Alencar,“ainda que seja uma releitura de A Dama das Camélias” (p.27) e o é tão descaradamenteque o autor coloca este livro nas mãos da heroína, lá pela página 102 (as referências depágina estão de acordo com a edição referenciada no final deste texto), ele diz:

“Era um livro muito conhecido – A Dama das Camélias. Ergui os olhospara Lúcia interrogando a expressão de seu rosto. Muitas vezes lê-se nãopor hábito ou distração, mas pela influência de uma simpatia moral quenos faz procurar um confidente de nossos sentimentos, até nas páginasmudar de um escritor. Lúcia teria, como Margarida, a aspiração vagapara o amor?”

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Lucíola é, então, a história daquele que se denomina “a prostituta arrependida”. Olivro introduz que toda esta história se saberá por cartas que o protagonista, Paulo,tardiamente enviou a uma senhora confidente. Ele se justifica: “Receei também que apalavra viva, rápida e impressionável não pudesse, como a pena calma e refletida,perscrutar os mistérios que deseja desvendar-lhe [...]” (p.11)

Paulo, provinciano, muda-se para Corte onde viverá inicialmente, na companhiado pouco virtuoso amigo, Sá. Num dos primeiros passeios que com ele dá, encontra-se ea primeira vista impressiona-se com a beleza (e algo mais) da heroína, Lúcia. Descobriráem pouco correr do tempo ser ela uma prostituta, o que comprova sua ingenuidade, poisoutro qualquer de primeira olhada notaria. Naquela noite “quando apaguei a minha velaao deitar-me, na dúbia visão que oscilava entre o sono e a vigília, foi que desenhou-se nomeu espírito em viva cor a reminiscência que despertara em mim o encontro com Lúcia.Lembrei-me então perfeitamente quando e como a vira pela primeira.” (p.17)

Em grupo, ressaltamos, como afirma Rodrigo Gurgel, também a comentarista daobra repara: José de Alencar parece preocupado em justificar certos trechos, para aépoca, demasiado “eróticos”. Nota-se no fato de criar uma organizadora mulher para anarrativa (aquela a quem se confiam as cartas de Paulo) e também em citar exemplos deoutras obras com temas “pouco convencionais” como no trecho:

“Entretanto, se a senhora não conhece as odes de Horácio e os amoresde Ovídio, se nunca leu a descrição da festa de Baco e não tem notíciados mistérios de Adônis ou do rito afrodíseo das virgens de Pafos queem comemoração do nascimento da deusa iam certos dias do anobanhar-se na espuma do mar e oferecer as primícias do seu amor aquem mais cedo as cobiçava; se ignora tudo isto, rasgue estas folhas ouantes queime-as […] Se ao contrário apreciou esses trechos admiráveisda literatura clássica, pode continuar a ler, pois não achará imagem nempalavra que revolte o bom gosto: sensitiva delicada dos espíritos cultos.”

Conversando com Lúcia algumas vezes, logo estavam ambos em sua cama. Comoprostituta, Lúcia não se negava a deitar com homens apresentáveis, como mulher, estavaapaixonada por Paulo e recusava-se a receber dele pagamento. Na maioria das vezesincompreendida por ele, as vezes era tida como esnobe, prepotente, avarenta ou fria,enquanto, em fato, queria Alencar nos apresentar um anjo caído.

Todo o enredo se desenrola em três meses, e nessas velozes semanas Lúciaencontra resgate da sua condição pecadora. Vendendo o que tem acomoda-se numa casasimples, num local sossegado. Nega-se terminantemente a voltar a deitar-se com ohomem amado e está convencida que essa penitência faz algum sentido. Comentávamosno grupo com que deformidade ela concebia o cristianismo e com que moralismo semproporções guiava suas decisões. A personagem que Alencar nos tenta transmitir é deuma alma tão caricaturalmente angélica que não é sequer verossímil. Chega a dizer aohomem amado: “Quero unir minha irmã ao santo consórcio de nossas almas. Formaremosuma só família; os filhos que ela te der serão meus filhos também; as carícias que lhefizeres, eu as recebei na pessoa dela!” (p.152)

Rodrigo Gurgel demonstra que Alencar foi incapaz de mostrar o amor ou areligião verdadeira. Para Gurgel Lúcia nunca foi amada por Paulo, mas foi desejada,idolatrada e, diga-se até, endeusada. Apenas isso justificaria que se resignasse a umacastidade imposta pelos caprichos dela e mesmo assim a visitasse todos os dias e atureouvir dela certas sandices como aquela do casamento com a irmã mais nova.

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Uma das razões que impede do casal apaixonado de viver o amor que parecem teré a sociedade e suas palpitações. “O livro caminha na contramão do romantismo, pois aheroína não se liberta das amarras sociais”, e o mesmo acontece ao protagonista, otempo todo impelido, coagido e dirigido pelas opiniões alheias. (p.29) A heroínaconstruída por Alencar, Gurgel atribui adjetivos como: “histérica, neurótica, masoquistae desviada”. O amor de Alencar é anti-romântico, e seu cristianismo, deformado.

Referências

ALENCAR, José de. Lucíola. Comentários e notas de Luciana Miranda Penna. São Paulo:Companhia Editorial Nacional, 2005. (Série Lazuli clássicos)

ALENCAR, José de. Iracema. Comentários e notas de Luciana Miranda Penna. São Paulo:Companhia Editorial Nacional, 2004. (Série Lazuli clássicos)

GURGEL, Rodrigo. Muita Retórica, Pouca Literatura: De Alencar a Graça Aranha.Campinhas, SP: Vide Editorial, 2012.