PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL APLICADO …

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PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL APLICADO AOS CRIMES PATRIMONIAIS SEM VIOLÉNCIA OU GRAVE AMEAÇA A PESSOA Danilo Santos da Purificação 1 Daniel Joau Perez Keller 2 Resumo: O presente artigo discute a descriminalização dos crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça à pessoa, à luz do princípio da subsidiariedade, discutindo se a violação ao património atinge um bem jurídico tão fundamental a ponto de legitimar a intervenção criminal e a possibilidade de outros ramos do direito tutelarem este bem jurídico. Também pretende revelar quais os impactos que a descriminalização destes crimes terá sobre os gastos públicos com as penas privativas de liberdade. Palavras-chave: Direito Penal. Subsidiariedade. Descriminalização. Crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça à pessoa. Abstract: This article discusses the decriminalization of economic crimes without violence or serious threat to the person, the light of the principle of subsidiarity, discussing if the violating heritage reaches a legal so fundamental to legitimizing criminal intervention point and the possibility of other branches of the right tutelarem this legal right. Also willing to reveal what the impacts that the decriminalization of these crimes will have on public spending with custodial sentences. Keywords: Criminal law. Subsidiarity. Decriminalization. Property crimes without violence or serious threat to person. 1 INTRODUÇÃO A sociedade surgiu com a agregação dos seres humanos e com a sua posterior fixação a terra, fazendo com que os indivíduos passassem a ter vínculos uns com os outros, decorrendo deste processo o surgimento também da conflituosidade humana 3 . Portanto os conflitos sempre existiram dentro da sociedade. Rousseau 4 ensina que as primeiras sociedades foram as famílias, existindo um laço natural entre o pai e os filhos que perdura enquanto estes necessitarem para se conservar, e ao se tornar desnecessário com a independência dos filhos, a família só permanece unida pela voluntariedade de seus membros, por convenção. Surge o direito portanto com o próprio surgimento dos homens, pois só existe direito com mais de um sujeitos envolvidos, e com a finalidade precípua de impor limites a ação humana. 1 Graduando em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSal. 2 Professor Orientador. 3 COSTA, Elder Lisbôa Ferreira da, 2009, p.29. 4 ROSSEAU, Jean-Jacques, 2002, p. 24.

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PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL APLICADO AOS CRIMES

PATRIMONIAIS SEM VIOLÉNCIA OU GRAVE AMEAÇA A PESSOA

Danilo Santos da Purificação1 Daniel Joau Perez Keller2

Resumo: O presente artigo discute a descriminalização dos crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça à pessoa, à luz do princípio da subsidiariedade, discutindo se a violação ao património atinge um bem jurídico tão fundamental a ponto de legitimar a intervenção criminal e a possibilidade de outros ramos do direito tutelarem este bem jurídico. Também pretende revelar quais os impactos que a descriminalização destes crimes terá sobre os gastos públicos com as penas privativas de liberdade. Palavras-chave: Direito Penal. Subsidiariedade. Descriminalização. Crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça à pessoa. Abstract: This article discusses the decriminalization of economic crimes without violence or serious threat to the person, the light of the principle of subsidiarity, discussing if the violating heritage reaches a legal so fundamental to legitimizing criminal intervention point and the possibility of other branches of the right tutelarem this legal right. Also willing to reveal what the impacts that the decriminalization of these crimes will have on public spending with custodial sentences. Keywords: Criminal law. Subsidiarity. Decriminalization. Property crimes without violence or serious threat to person. 1 INTRODUÇÃO

A sociedade surgiu com a agregação dos seres humanos e com a sua posterior fixação a

terra, fazendo com que os indivíduos passassem a ter vínculos uns com os outros, decorrendo deste processo o surgimento também da conflituosidade humana3. Portanto os conflitos sempre existiram dentro da sociedade.

Rousseau4 ensina que as primeiras sociedades foram as famílias, existindo um laço

natural entre o pai e os filhos que perdura enquanto estes necessitarem para se conservar, e ao se tornar desnecessário com a independência dos filhos, a família só permanece unida pela voluntariedade de seus membros, por convenção.

Surge o direito portanto com o próprio surgimento dos homens, pois só existe direito com

mais de um sujeitos envolvidos, e com a finalidade precípua de impor limites a ação humana.

1 Graduando em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSal. 2 Professor Orientador. 3 COSTA, Elder Lisbôa Ferreira da, 2009, p.29. 4 ROSSEAU, Jean-Jacques, 2002, p. 24.

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Cesare Beccaria ao explicar a origem das penas e do direito de punir expôs que os homens fatigados de só viver em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para usufruir do restante com mais segurança. A soma destas partes de liberdade em um depósito comum constitui a soberania.

Ninguém faz graciosamente o sacrifício de uma parte de sua liberdade apenas visando ao bem público. Tais fantasias apenas existem nos romances. Cada homem somente por interesses pessoais está ligado às diversas combinações políticas deste globo; e cada um desejaria, se possível, não estar preso pelas convenções que obrigam os demais homens.5

Foi a necessidade que obrigou os homens a ceder uma parcela de sua liberdade; ou seja

cada indivíduo somente concorda em por no depósito comum a menor porção possível, apenas a medida necessária para empenhar os outros à respeitar a sua fruição do restante.

Tornou-se necessário proteger o depósito contra as usurpações de cada indivíduo, pois o

homem tem uma forte tendência para o despotismo, procurando incessantemente não só retirar a sua parte de liberdade do depósito comum, como também usurpar a dos outros. Estabelecendo-se penas para os indivíduos que transgredissem as normas.

A reunião de todas as parcelas de liberdades no depósito comum, constitui o fundamento

do direito de punir. Sendo considerado abuso e não justiça todo exercício de poder que deste fundamento se afaste, sendo ainda injustas por sua natureza as penas que vão além da necessidade de manter o depósito a salvo de violações, e em sentido contrario quanto mais liberdade os indivíduos tiverem mais justas serão as leis e as penas.

Neste sentido podemos perceber que o direito e sobretudo o direito penal não deve

intervir em todos os conflitos sociais, ou tentar regrar todas as condutas permitidas aos cidadãos, pois assim se tornará injusto, por restringir a liberdade das pessoas.

O caráter subsidiário do direito penal é um princípio que deve ser observado e respeitado

para permitir uma vida em sociedade mais sadia e livre. Atualmente temos diversas penalizações e um Poder legislativo que na menor provocação midiática tenta aumentar este rol demasiadamente extenso.

Deve-se repensar esta cultura de criminalização e assumir o caminho contrario

descriminalizando condutas, para evitar que o Direito penal caia em descredito pela impossibilidade de sua efetivação, ou para evitar que o Estado retire totalmente a liberdade das pessoas.

Os crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça à pessoa não tutelam um bem

jurídico que só encontra amparo no direito penal, em verdade o direito penal para estes crimes só se presta à complicar a pacificação dos conflitos sociais gerados pela conduta que o lesionem. Devendo portanto serem estes crimes alcançados pela necessária descriminalização. 5 BECCARIA, Cesare, 2014, p. 16.

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2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

O princípio da subsidiariedade trás a compreensão de que o Direito Penal não cria

condutas ilícitas próprias, autônomas, ele apenas vem robustecer, utilizando-se da sua violenta intervenção, a proteção dispensada à bens jurídicos fundamentais já tutelados pelos outros ramos do direito.6

Como entendia Rousseau “leis criminais, menos que uma espécie particular de leis, são a

sanção de todas as outras”,7 bem como Bentham que proclamaria que “Cada lei civil, forma um título particular que deve enfim desembocar numa lei penal: cada lei penal é a sequência, a continuação, o término de uma lei civil...”.8

O ordenamento jurídico é um só, um sistema, e por este motivo “a ilicitude jurídica é uma

só, do mesmo modo que um só, na sua essência é o dever jurídico”9 conforme ensina Nelson Hungria. Ora uma mesma conduta não pode ser lícita para o direito civil e ilícita para o direito penal, a origem do ilícito, escreve Maurach, é uma só. O ordenamento jurídico não nasce de partes originalmente independentes até formar um todo, mas sim o contrario, pois durante seu desenvolvimento passou por um processo de diferenciação.10 Ainda neste sentido explica Fernández Carrasquilla, que:

... o conceito de ilicitude é unitário, é dizer, é um só e o mesmo para toda a ordem jurídica. Esta concepção unitária da ilicitude jurídica (antijuridicidade) é inconfundível enquanto se mantenha o postulado ‘o que não está proibido está permitido’, e seu corolário de que uma mesma conduta não pode estar proibida (por um ramo do direito) e permitida (por outro) ao mesmo tempo e desde a mesma perspectiva. O que isto significa é que a proibição ou permissão jurídicas de uma conduta por qualquer norma de qualquer ramo do direito é isso simplesmente, ilicitude jurídica, sem qualificativos como os de civil, penal, administrativo, etc., ou seja, que se estende a todo o ordenamento jurídico.11

Entretanto vale advertir que este princípio da unidade da ordem jurídica não pode tornar

todo e qualquer ilícito, assim constituído pelos outros ramos do direito, em um ilícito penal: “... não pode ser ilícito face a lei penal tudo aquilo que for permitido por qualquer outro ramo do direito; mas é inaceitável se com ele se pretender concluir que o que é ilícito à face de um direito também tem de ser à face da lei penal...”.12

Como decorrência lógica deste entendimento se extrai o principal fundamento para a

6 QUEIROZ, Paulo de Souza, 1997, p. 67. 7 ROUSSEAU, do contrato social, apud Queiroz, 1997, p. 68. 8 BENTHAM, Jeremy, apud ROCCO, 1913 apud QUEIROZ, 1997, p.69. 9 HUNGRIA, Nélson, apud Queiroz, p. 69. 10 MAURACH, Reinhart, apud Queiroz, p. 70. 11 CARRASQUILLA, Fernández Juan, apud Queiroz, p. 70. 12 DIAS, Jorge de Figueiredo. p. 17.

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tipicidade conglobante, que estabelece a necessidade de se analisar a tipicidade legal (como sendo a simples adequação da norma penal em abstrato ao fato concreto) e a verificação do alcance proibitivo da norma, que não pode ser considerada isoladamente, mas sim de maneira conglobada, conforme bem explicou Zaffaroni:

... tipicidade implica antinormatividade (contrariedade à norma) e não podemos admitir que na ordem normativa uma norma ordene o que outra proíbe. Uma ordem normativa, na qual uma norma possa ordenar o que a outra pode proibir , deixa de ser ordem e de ser normativa e torna-se uma “desordem” arbitrária. As normas jurídicas não “vivem” isoladas, mas num entrelaçamento em que umas limitam as outras, e não podem ignorar-se mutuamente. (...) o tipo não pode proibir o que o direito ordena e nem o que ele fomenta.13

Seguindo o entendimento de Paulo de Souza Queiroz, deve o Direito Penal portanto

restringir-se a selecionar e sancionar, por sua relevância e intensidade, condutas que já são proibidas pela ordem extra penal, pública ou privada. É o “caráter ulteriormente sancionador” definido por Grispigni.14

A subsidiariedade do direito penal decorre da unidade lógica do direito e da imposição

político-criminal. O direito penal só deve intervir nas hipóteses de extraordinária lesão a bens jurídicos fundamentais, por ser a forma mais violenta de resposta da ordem jurídica, quando as sanções dos outros ramos do ordenamento jurídico revelarem-se insuficientes.

A aplicação da lei penal depende por tanto da vigência das correspondentes prescrições

jurídicas dos outros ramos do direito. Ou seja, a revisão ou revogação das normas não penais, implicarão na revisão ou revogação da norma penal, entretanto a contrario sensu as alterações na lei penal não afetaram a validade das proibições contidas nas leis não penais.15Logo, criminalizar condutas nada mais é do que reprimi-las também penalmente, e descriminaliza-las não significa liberalizá-las, mas apenas reconhecer a inexistência de dignidade penal, ou que seja mais adequada a aplicação das normas não penais.16

Deve-se ainda entender o direito penal como uma das muitas forças que integram o

controle social, pois este está inserido efetivamente no sistema social, vale dizer que a repressão penal só deverá ser aplicada quando as outras soluções formais e informais se revelarem insuficientes, a saber: as convenções sociais, a religião, os costumes, a disciplina trabalhista, a moral, a disciplina familiar e etc. onde são previstas as mais diversas sanções explicitas ou implicitamente para as suas transgressões.17

Tendo em vista que toda a ordem social conta com esses mecanismos primários de

autoproteção, a intervenção do direito penal só se justifica ante a insuficiência daqueles, ou seja,

13 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, p. 435-436. 14 GRISPIGNI, Filippo, apud Queiroz, p. 70. 15 MERKEL, Adolf, [195?] apud Queiroz, 1997, p. 73. 16 QUEIROZ, Paulo de Souza, 1997. 17 Ibidem.

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quando o conflito possuir natureza que exija uma resposta mais grave.18Por outro lado também devemos nos atentar a análise da adequação social, pois “apesar de uma conduta se subsumir formalmente ao modelo legal, não será considerada típica se for socialmente adequada ou reconhecida, isto é, se estiver de acordo com a ordem social da vida historicamente condicionada.”19

O direito penal portanto deve observar o critério da necessidade, só conferindo a sua

tutela aos casos em que for necessário, ou seja indispensável para a proteção do bem jurídico:

A violação de um bem jurídico-penal não basta por si para desencadear a intervenção, antes se requerendo que esta seja absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Nesta precisa acepção o direito penal constitui, na verdade, a ultima ratio da política social e a sua intervenção é de natureza definitivamente subsidiária.20(grifo do autor).

È necessário fazer um balanceamento entre os custos representados pelas penas e os

danos que estas visão prevenir, adotando-se portanto o Utilitarismo com o seu especial efeito de excluir as penas socialmente inúteis.21 Pois “se o objetivo é o da mínima aflição (mínimo sofrimento necessário na prevenção dos males futuros justificar-se-ão somente os meios mínimos, vale dizer, o mínimo das proibições, o mínimo das penas e um mínimo de verdade judiciária”22.

Merece ainda destaque os danos suportados pelo criminoso, conforme pensamento de

Roxin:

A razão pela qual o Direito Penal apenas deve ser empregado quando fracassam todos os outros meios político-sociais de coibição de um comportamento social criminoso reside no fato de que a punição pode prejudicar a existência social do condenado e arrastá-lo para a margem da sociedade, tendo até mesmo um efeito socialmente nocivo. Por isso, deve-se preferir, no lugar da punição, todas as medidas que possam evitar uma perturbação social, mas que tragam para o condenado conseqüências menos incisivas.23 P 8

O direito penal não pode ainda se preocupar em sancionar a imoralidade, a ofensa a

preceitos morais por si só. Deve sim sancionar as condutas que causem um relevante dano social, embora as condutas delitivas possuam um significado moral, existem imoralidades toleráveis, que por esta qualidade não devem ser tuteladas pelo direito penal, se ocupando este apenas com as intoleráveis. Não é função do direito penal moralizar os cidadãos. “A imoralidade, enfim, é condição necessária, porém jamais condição por si suficiente pra justificar politicamente a 18 Ibidem. 19 PRADO, Luiz Regis, p. 149. 20 DIAS, Jorge de Figueiredo. p. 128. 21 FERRAJOLI, Luigi, 2010. 22 Ibidem, p. 244. 23 ROXIN, Claus, p.8.

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intervenção coativa do estado na vida dos cidadão”.24

O Estado, que não tem direito a forçar os cidadãos a não serem malvados, senão só a impedir que se danem entre si, tampouco tem direito a alterar [...] a personalidade dos réus. E o cidadão, se bem tem o dever jurídico de não cometer fatos delitivos, tem o direito de ser internamente malvado e de seguir sendo o que é.25

Por sua vez o princípio da Lesividade acrescenta que não servindo o direito penal a

incutir valores morais aos seus destinatários, mas só a proteção subsidiária de bens jurídicos fundamentais, por meio da aplicação de sanções, deve incidir nas ações humanas exteriores que resultem ou possam resultar, concretamente, em dano a bens de outrem.26

Portanto não deve se prestar o direito penal a sancionar a autolesão, pois todas as pessoas

são livres e dentro do exercício desta liberdade tem a faculdade de dispor dos seus próprios bens jurídicos, desde que não atinja bem jurídico alheio. A punição a ações que gerem a autolesão, serão sanções com base exclusivamente na imoralidade da conduta, e como tais devem ser rechaçadas, porque se constitui numa tentativa de moralização dos indivíduos, enfatizando que “o Estado e o direito devem servir ao homem, e não o contrario”.27

Excetuasse contudo os inimputáveis, visto que não tem consciência dos seus atos sendo

um perigo para si mesmos, devendo nesses casos o estado intervir, não com o direito penal, mais sim com os outros ramos do direito mais adequados ao sujeito e ao fato.

O principio da lesividade, atua como uma afiada navalha descriminalizadora, eficaz para

rechaçar, por injustificados, muitos tipos penais consolidados, ou para restringir sua extensão por meio de mudanças estruturais intensas. É um critério polivalente de minimização das proibições penais, equivalendo-se a um princípio de tolerância tendencial da desviação, capaz de reduzir a intervenção penal ao mínimo necessário, para consequentemente reforçar sua legitimidade e credibilidade 28.

...a ofensividade (ou lesividade) deve estar presente no contexto do tipo penal incriminador, para validá-lo, legitimá-lo, sob pena de se esgotar o Direito Penal em situações inócuas e sem propósito, especialmente quando se contrasta a conduta praticada com o tipo de sanção para ela prevista como regra, ou seja, a pena privativa de liberdade. Há enorme desproporção.29

O direito penal não garante proteção ilimitada aos bens jurídicos que tutela, pois admite

24 QUEIROZ, Paulo de Souza , 1997, p. 95. 25 FERRAJOLI, Luigi p. 223-224 apud Queiroz, Paulo de Souza, op. cit, p. 101). 26Ibidem, op. cit, p. 105. 27 Ibidem, p. 110. 28 FERRAJOLI, Luigi, 2010. 29 NUCCI, Guilherme de Souza. p. 99.

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os seus sacrifícios de maneira lícita em determinadas circunstâncias, à exemplo da legitima defesa, estado de necessidade, exercício regular de direito, estrito cumprimento do dever legal, aborto em caso de estupro, em face de atos preparatórios e etc.

O princípio da reserva legal, nullum crimen nulla poena sine lege, materializa-se com os

tipos penas, que exerce a função de garantia, já que somente se tem por delituoso o fato previsto taxativamente na descrição do tipo penal, que se ajuste ao esquema abstratamente criado pelo legislador.

Esta definição anterior e abstrata de tipos penais não excluirá de sua incidência fatos que,

analisados concretamente, não possuam dignidade penal suficiente. Pois o legislador não tem como prever todas as hipóteses merecedoras de sanção penal, tendo em vista a multiplicidade de situações que podem ocorrer e as limitações naturais da técnica legislativa. “...falta-lhe o poder de prever em que grau e em que intensidade devem tais ações merecer, in concreto, castigo”.30A redação do tipo penal pretende abarcar apenas os prejuízos graves à ordem jurídica e social, porém não pode evitar que entrem também os casos mais leves31.

Queiroz,32 admite que seja afastada a tipicidade de qualquer lesão jurídica, pela aplicação

do princípio da insignificância, porque o bem jurídico tutelado pelo direito penal, no caso concreto, pode não chegar a ser atingido, ou ser atingido apenas de maneira periférica, em mínima intensidade, grau e extensão, sendo o dano tão irrelevante que não assuma a necessária significação penal, tornando-se desnecessário e injustificável o desproporcional castigo proporcionado pelo direito penal.

3 DESCRIMINALIZAÇÃO DOS CRIMES PATRIMONIAIS SEM VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA A PESSOA

Descriminalizar é retirar o caráter criminoso de uma conduta, podendo ela continuar a ser

ilícita, vale dizer, o que se pretende é afastar a competência da Justiça Penal para decidir sobre estas condutas que são penalmente indiferentes por conta de política criminal. O direito penal não constitui o ilícito, conforme explicado anteriormente, e pela mesma razão não pode desconstitui-lo, pois este nasce originariamente na Constituição da Republica e derivadamente na ordem infraconstitucional, alcançando seu ápice de rigor disciplinar no direito penal que tem maior poder sancionador.33

Quando se pretende repreender uma conduta que já é rechaçada pelos outros ramos do

direito através do direito penal, ocorre a criminalização, porém se a conduta criminalizada não possuir a necessária dignidade penal, deixando por este motivo de ser considerada como um crime ocorre a descriminalização. Não se está liberando os comportamentos descriminalizados, pois os outros ramos do direito podem permanecer a considera-los ilícitos e aplicar-lhes as sanções que lhes são próprias. Esta descriminalização pode resultar da edição de uma lei 30 QUEIROZ, Paulo de Souza, 1997, p. 122. 31 ZIPF, Heinz, 1997, apud QUEIROZ, Paulo de Souza, 1997, p. 122. 32 QUEIROZ, Paulo de Souza, 1998, p. 123. 33 Ibidem. p. 143.

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posterior (abolitio criminis), não necessariamente uma lei penal, que revogue as disposições anteriores.34

Os crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça visam proteger o bem jurídico patrimônio, não causando nenhuma lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico distinto. Toda conduta que é criminosa também é ilícita para os outros ramos do direito, caráter ulteriormente sancionador.

O direito penal portanto, conforme já explicado acima, só deve ser acionado para tutelar

os bens jurídicos mais fundamentais, e que efetivamente necessitem de sua proteção, sob pena de tornar a intervenção penal inútil perdendo assim a sua legitimidade.

Verifica-se facilmente que o bem jurídico património já é protegido pelos outros ramos

do direito, principalmente pelo direito civil que considera ilícita a lesão ao património por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência que cause prejuízo a outrem, gerando assim o dever do causador do dano de indenizar o lesionado inclusive moralmente.

Sendo assim todos os tipos penais que visem tutelar apenas o património devem ser

descriminalizados, ou seja, devem deixar de ser tutelados penalmente, sem contudo serem legalizados, continuando a serem considerados ilícitos pelos outros ramos do direito. 4 DAS SANÇÕES EXISTENTES NOS OUTROS RAMOS DO DIREITO (CIVIL, ADMINISTRATIVO E TRIBUTÁRIO)

O Direito Civil trata os danos causados pela conduta culposa de alguém a um direito de

outrem, violando uma norma jurídica legal ou contratual, com a imputação de Responsabilidade Civil, que é simplesmente a sujeição do infrator ao pagamento de uma compensação pecuniária à vítima, caso não possa repor in natura o estado anterior de coisas.35Este tratamento decorre do artigo 186 do Código Civil Brasileiro de 2002, que dispõe: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.36

A sentença penal condenatória torna certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo

crime, conforme inteligência do artigo 91 do código Penal Brasileiro. Entretanto esta regra é desvantajosa para a vítima.37

Para existir a reparação do dano na esfera civil é necessário que o titular do direito lesado

proponha uma ação de conhecimento, para definir o valor da indenização. Nesta ação é possível responsabilizar não só o autor do dano, mais também outras pessoas co-responsáveis, como por exemplo o empregador do autor do dano. Na ação civil ex delicto só poderá figurar como réu apenas o autor do crime, não podendo os herdeiros serem compelidos a indenizar a vítima pois a 34 Ibiden. 35 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. 2012. p. 53. 36 BRASIL, Código Civil. 2002. 37 BRASIL, Código Penal, 1940.

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pena não poderá passar da pessoa do criminoso, não podendo ainda ser executados os responsáveis por não terem figurado no processo crime. Portanto se o lesado desejar obter a reparação do dano por algum co-responsável (exemplo o empregador do autor do dano) deverá ajuíza a ação civil de conhecimento, desde logo, já que a futura condenação penal em nada lhe beneficiará.38

Após a constituição do crédito será necessária à execução do título executivo através da

ação de execução, que tem como objetivo retirar o valor que está no patrimônio do demandado ou dos demandados e colocar no patrimônio do demandante.39 Na execução ocorrerá a penhora de bens do executado e logo em seguida a expropriação destes bens, que consiste na adjudicação, na alienação por iniciativa particular, na alienação por hasta pública e no usufruto de bem móvel ou imóvel.40

Já no direito administrativo a administração pública condiciona o exercício dos direitos

individuais dos cidadãos ao bem estar coletivo, utilizando-se do seu poder de polícia, com atos normativos e atos administrativos aplicando a lei ao caso concreto, com medidas preventivas e repressivas para aqueles que transgredirem as normas, coagindo-os a cumprir a lei. Este poder é dotado de discricionariedade, autoexecutoriedade e coercibilidade.41

O direito tributário por sua vez, também prevê a aplicação de penas pecuniárias para o descumprimento de obrigações tributárias principais e acessórias.42

5 CONCLUSÃO

Compete ao Estado a garantia dos direitos fundamentais, encontrando diversos desafios para a efetivação desses direitos, sobre tudo o problema dos custos. A concretização dos direitos depreende o dispêndio de recursos financeiros.43 É evidente a inexistência de recursos suficientes para assegurar o atendimento de todas as pretensões legítimas dos cidadãos (a garantia de todos os seus direitos) e frente a esta escassez de recursos o estado deve decidir onde os recursos serão empregados. Trata-se, a alocação de recursos, de uma escolha trágica, já que em outras palavras, implica em negação de direitos. Deve-se, portanto fazer uma ponderação entre os direitos que poderão ser satisfeitos e aqueles que serão desatendidos.44

A prática de um crime gera diversos custos para o Estado. Iniciando com a mobilização

do aparato policial, em seguida os custos do processo penal, com todo o aparato do poder judiciário, do Ministério Público, da defensoria pública e não raras vezes também do Poder Executivo, quando existe prisão cautelar, que pode perdurar por meses e até mesmo anos, 38 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. 2012. p. 403. 39 ASSIS, Araken de, 2010. 40 DIDIER Jr., Fredie. et al, 2012. 41 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, 2013. 42 SABBAG, Eduardo. 2013, p. 758. 43 FIGUEIRÊDO NETO, Pedro Camilo de, 2013, p.36. 44 Ibidem, op. Cit. p. 38.

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gerando custos com a manutenção do preso no cárcere e todo o setor administrativo em torno do sistema prisional. 45

Os investimentos feitos em torno do sistema prisional e para o combate ao crime são astronômicos, ultrapassando a casa do bilhão no biênio 2003/200546, bem como o valor de uma penitenciária, que chegou aos vinte milhões de reais. 47 O custo médio mensal do preso no Brasil é de R$ 1.000,00 (um mil reais). 48 Isto revela a relevância da discussão dos custos da pena, pois em um estado que tem recursos escassos e vive fazendo escolhas com base na reserva do possível, qualquer gasto desnecessário é um grande desperdício.

Os custos com o sistema prisional tornam-se ainda mais preocupantes quando constatamos que todo esse investimento além de insuficiente é feito em um sistema falido, vistos como “máquinas de deteriorar” e “fonte indiscutível de desmoralização humana”49 com sua incapacidade para educar o condenado, falta de intimidação aos delinquentes entorpecidos, ainda deixando estigmas no recluso gerados pela passagem na prisão. Diante desta realidade diversos países, assim como o Brasil, buscam substituir a pena privativa de liberdade por medidas alternativas, sobre tudo para os casos de médio e pequeno potencial ofensivo, objetivando com isto afastar estes infratores da prisão, verdadeiro “sindicato do crime”50 em que se entra um criminoso comum e do qual se sai “letrado”. Ou seja é um grande desperdício de dinheiro público.

Por tudo quanto aqui exposto, fica claro e evidente a necessidade de se descriminalizar os crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça a pessoa, tendo em vista que os outros ramos do ordenamento jurídico são suficientes para proteger o bem jurídico património, e quando da sua violação, são eficazes para reparar o dano e penalizar o causador do dano. Ora se é possível o Estado pacificar o conflito gerado pela lesão ao patrimônio apenas se utilizando do direito administrativo para prevenir a ocorrência do dano e do direito civil para reparar o dano que por ventura seja causado, qual a utilidade do direito penal? Nenhuma.

Seja do ponto de vista jurídicos, filosófico ou econômico, os crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça à pessoa devem ser descriminalizados, gerando benéficos para as vítimas de lesões patrimoniais que poderão buscar a reparação do dano nas esferas civis sem depender da esfera penal, podendo inclusive responsabilizar mais agentes pelo dano causado e não apenas o autor do crime, gerando também benefícios para o Estado que economizará com gastos desnecessários nas fases pré-processual, processual e de cumprimento de pena e por fim benefícios para toda a sociedade que gozará de um serviço público mais eficaz e satisfatório com a alocação dos recursos poupados.

45 FIGUEIRÊDO NETO, Pedro Camilo de, 2013. 46 GOMES, Geder, 2008 apud 46 FIGUEIRÊDO NETO, Pedro Camilo de, 2013. p. 42. 47 Ibidem. 48 Ibidem. 49 CARRARA, Francesco, 2002, apud FIGUEIRÊDO NETO, Pedro Camilo de, 2013, p. 35. 50 SOUZA, Percival de S. 2006, apud FIGUEIRÊDO NETO, Pedro Camilo de, 2013, p. 35.

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