Pró-Reitoria de Graduação Curso de Psicologia Trabalho de ... · respeito das teorias sobre o...

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Autor(a): Fabiana Soares Pereira Orientador(a): Dra. Ondina Pena Pereira Pró-Reitoria de Graduação Curso de Psicologia Trabalho de Conclusão de Curso O RECURSO AUDIOVISUAL COMO INSTRUMENTO DE EMANCIPAÇÃO NA SAÚDE MENTAL: UM ESTUDO DA TV SÃ NA ONG INVERSO DE BRASÍLIA. Brasília - DF 2015

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Autor(a): Fabiana Soares Pereira

Orientador(a): Dra. Ondina Pena Pereira

Pró-Reitoria de Graduação

Curso de Psicologia

Trabalho de Conclusão de Curso

O RECURSO AUDIOVISUAL COMO INSTRUMENTO DE

EMANCIPAÇÃO NA SAÚDE MENTAL: UM ESTUDO DA

TV SÃ NA ONG INVERSO DE BRASÍLIA.

Brasília - DF

2015

FABIANA SOARES PEREIRA

O RECURSO AUDIOVISUAL COMO INSTRUMENTO DE EMANCIPAÇÃO NA

SAÚDE MENTAL: UM ESTUDO DA TV SÃ NA ONG INVERSO DE BRASÍLIA

Artigo apresentado ao curso de graduação em

Psicologia da Universidade Católica de

Brasília, como requisito parcial para obtenção

do título de Bacharel em Psicologia.

Orientador(a): Dr. Ondina Pena Pereira

Brasília

2015

Artigo de autoria de Fabiana Soares Pereira, intitulado “O RECURSO

AUDIOVISUAL COMO INSTRUMENTO DE EMANCIPAÇÃO NA SAÚDE MENTAL:

UM ESTUDO DA TV SÃ NA ONG INVERSO DE BRASÍLIA” apresentado como requisito

parcial para obtenção do grau de Bacharel em Psicologia da Universidade Católica de

Brasília, em _______de_________________de__________, defendido e aprovado pela banca

examinadora abaixo assinada:

_________________________________________________________

Prof. Dr. Ondina Pena Pereira

Orientador

UCB

_________________________________________________________

Prof. Msc. Enrique Bessoni

Examinador

UCB

Brasília

2015

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Zilda Luiz Soares e Edson Pereira da Silva, pelo amor, incentivo е

apoio incondicional. Pelas minhas irmãs Michelle Soares Pereira, Caroline Soares Pereira e

Maria Clara da Silva que me dão força е coragem, mе apoiando nоs momentos dе dificuldade

com todo amor e cumplicidade.

Meus agradecimentos аоs amigos Ana Paula de Souza, André Salles, Giana Márcia

dos Santos, Kiki Oliveira, Miriran Vasconcelos, Suely de Andrade, Thais Strieder, Thiago

Moyses e Vitor Ramos, companheiros dе trabalhos е irmãos nа amizade, quе fizeram parte dа

minha formação е me ajudaram a entender quе о futuro é feito а partir dа constante dedicação

nо presente!

Aos parceiros e amigos do Núcleo da TV Sã, Elias Batista, Kéren de Alcântra e Rui

Alves, assim como à Matheus Milane, que me apresentou à ONG Inverso, à Eva Faleiros, à

toda equipe e frequentadores pelo aprendizado e prazer que esta bela convivência me

propicia.

À minha orientadora Ondina Pena Pereira, pelo chamado ao trabalho, pelo suporte,

correções е incentivos, e ao professor Enrique Bessoni, pelas considerações que tornaram o

trabalho ainda mais preciso.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 5

1.1 OBJETIVO ....................................................................................................................... 6

1.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ........................................................................................... 7

1.3 JUSTIFICATIVA ............................................................................................................. 7

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ........................................................................................ 7

2.1 SAÚDE MENTAL ........................................................................................................... 8

2.1.1 Saúde mental no Brasil .......................................................................................... 10

2.2. EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL .............................................................................. 13

2.3. PRODUÇÃO AUDIOVISUAL E SAÚDE MENTAL ................................................. 15

2.4. CLÍNICA POLÍTICA .................................................................................................... 17

2.5. ONG INVERSO ............................................................................................................ 19

2.6. TV SÃ ............................................................................................................................ 21

3 MÉTODO ............................................................................................................................. 24

4 DISCUSSÃO ........................................................................................................................ 24

5 CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 30

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 33

ANEXO A – Entrevista com Eva Faleiros ........................................................................... 36

ANEXO B – Entrevista 1 com Elias Batista ......................................................................... 42

ANEXO C – Entrevista 2 com Elias Batista ........................................................................ 53

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O RECURSO DO AUDIOVISUAL COMO INSTRUMENTO DE EMANCIPAÇÃO NA

SAÚDE MENTAL: UM ESTUDO DA TV SÃ NA ONG INVERSO DE BRASÍLIA

FABIANA SOARES PEREIRA

Resumo:

O presente artigo propõe uma reflexão sobre o uso do recurso audiovisual como instrumento

de emancipação na saúde mental, tendo como base as produções fílmicas da TV Sã, mais

especificamente a produção do filme chamado Família. Tem-se como eixo teórico a

Pedagogia de Emancipação das Inteligências, proposta por Jacotot e apresentada por Jacques

Rancière em seu livro O Mestre Ignorante, assim como a Arqueologia da Loucura

desenvolvida no livro História da Loucura, de Foucault. O trabalho é uma análise sobre como

a prática da pedagogia de emancipação da inteligência se aplicou no cotidiano da produção do

filme em questão pelos produtores da TV Sã, também participantes da ONG Inverso e como

esta se inscreve dentro de uma prática de clínica política.

Palavras-chave: Saúde Mental. Audiovisual. Emancipação da Inteligência. Clínica Política.

1 INTRODUÇÃO

O interesse em escrever sobre o trabalho desenvolvido na TV Sã está relacionado ao

fato de acreditar que teoria e prática devem caminhar juntas, logo, não teria tema mais

pertinente para pesquisar do que esta prática realizada junto à TV Sã desde 2013.

Antes de cursar Psicologia, me aventurei por outras áreas e disciplinas como a

Filosofia, Teatro e Cinema, porém, nos trabalhos relacionados à arte percebi uma vontade

pessoal em conciliá-los com algum tipo de trabalho social.

Em 2011 participei da pesquisa Violência de gênero, potência e diferença: por uma

política feminista de atendimento, coordenada pela Prof.ª Dra. Ondina Pena Pereira, em que

tive a oportunidade de conhecer como seria a atuação em Clínica Política a partir da utilização

6

do audiovisual como instrumento, para que as mulheres construíssem narrativas outras que as

de violência que haviam sofrido até então.

Este trabalho foi um resgate de todos os conhecimentos e áreas em que eu tinha

interesse, unindo o trabalho de Psicologia e arte ao serviço social prestado. Senti-me muito

realizada e grata com a oportunidade de ter conhecido essa possibilidade de atuação em

Psicologia.

Dois anos depois, fiquei sabendo da existência da TV Sã e percebi que estavam

realizando algo semelhante à vivência na qual havia experienciado no trabalho com as

mulheres. De imediato me engajei, além do fato de estar a algum tempo sensibilizada pelas

causas da saúde mental. Na TV Sã encontrei um espaço de aprendizado e realização em que

se uniram minhas paixões, além da convivência na ONG Inverso, me permitindo ter outro

olhar sobre o fazer psi, que se refere ao fazer com, fazer junto.

A presente pesquisa buscou explicitar as contribuições realizadas pela produção

audiovisual no processo de autonomia das pessoas , no ambito da saude mental , no caso

frequentadores da ONG Inverso a partir de suas partipações enquanto produtores e

realizadores do projeto TV Sã. Para tanto será feito o recorte entre a prática fílmica realizada

na TV Sã e o conceito de emancipação de Rancière.

O referido autor, em seu livro O mestre ignorante, defende a igualdade das

inteligências como pedagogia fundamental para a emancipação intelectual que, segundo ele,

“deveria devolver a cada um a igualdade que a ordem social lhe havia recusado”

(RANCIÈRE, 2002, p.15).

Tal pedagogia considera que: “A emancipação e a consciência dessa igualdade, dessa

reciprocidade, permite que a inteligência se atualize pela verificação. O que embrutece o povo

não é a falta de instrução, mas a crença na inferioridade de sua inteligência” (RANCIÈRE,

2012, p.65).

1.1 OBJETIVO

O objetivo deste estudo busca explicitar, com base na teoria de emancipação

das inteligências de Rancière, assim como nas teorias, métodos e práticas da

Clínica Política, a função dessa prática audiovisual como instrumento na

7

construção da autonomia dos usuários dos serviços de saúde mental, de modo a

torná-los socialmente incluídos.

1.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Discutir a função do audiovisual no processo de emancipação e;

Explicitar como o audiovisual pode contribuir para a construção/constituição da

autonomia das pessoas, no campo da saúde mental;

1.3 JUSTIFICATIVA

O trabalho realizado pela TV Sã tem uma proposta política e artística dada pelo

audiovisual. Ela busca em suas produções dar imagem e voz a uma realidade carente de

visibilidade, por meio de uma produção realizada pelos próprios usuários dos serviços de

saúde mental, frequentadores da ONG Inverso e por fim participantes da TV Sã. Observa-se

nesse sentido que o processo de produção audiovisual pode contribuir para mudar a imagem

da loucura, ajudando a reduzir o preconceito, estimulando novas formas de relacionamento e

respeitando as diferenças entre as pessoas na sociedade.

Este trabalho visa também responder à demanda de atividades que complementem as

terapias, ou vão ao encontro daquelas já existentes em saúde mental, como forma de auxiliar o

processo de emancipação dos usuários de saúde mental em suas buscas de construção de

significados que lhes permitam interagir de forma mais autônoma e socialmente integrada. À

medida em que estes mostram seu modo de ver e relacionar-se com o mundo, através da

criatividade, melhoram sua qualidade de vida.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Os elementos a seguir referem-se ao embasamento para as reflexões a serem

contempladas posteriormente nesta pesquisa. Trata-se, portanto, do ponto de partida teórico a

fim de, posteriormente, interagir ante as perspectivas apresentadas por Foucault, Rancière, a

respeito das teorias sobre o Audiovisual e a Clínica Política.

8

2.1 SAÚDE MENTAL

A arqueologia da loucura, segundo o estudo de Foucault, a contextualização crítica do

processo de construção conceitual sobre a loucura/saúde mental e os seus modelos de

interação serão tratadas como ponto inicial deste aporte teórico.

Em “História da Loucura na Idade Clássica”, Foucault (2008) se propõe a estudar,

dentro da história, a possibilidade dos discursos e condutas adotadas em diferentes momentos

que levaram o lunático, o alienado, o tolo do passado à condição de doente mental. A loucura

emerge como objeto de práticas discursivas e não-discursivas, a partir de rupturas, embates e

transformações.

Neste aspecto, Foucault determina como marco zero da história da loucura, a criação

da especialidade médica – intitulada Psiquiatria – responsável pela ruptura entre a loucura e a

doença mental. Neste sentido, esta especialidade é um marco da submissão da loucura pela

razão, percebendo o louco como um doente que precisa de tratamento médico.

No final do século XVII e século XVIII, os “hospitais” eram instituições de caridade,

internavam com o objetivo de manter o controle social. Na França, por exemplo, as ordens

reais de internação, lettre-de-cachet, não distinguiam prostitutas, doentes, mendigos, pobres,

vagabundos, presidiários, enfim, todos estavam em ruptura com a integração social. Foucault

lembra que, se toda preocupação do poder real em torno do controle dos leprosários

desapareceu, o sentido produzido pela exclusão é estendido aos “ociosos” e, dirá:

A lepra se retira, deixando sem utilidade esses lugares obscuros e esses ritos que não

estavam destinados a suprimi-la, mas sim a mantê-la a uma distância sacramentada,

a fixá-la numa exaltação inversa. Aquilo que sem dúvida vai permanecer por muito

mais tempo que a lepra, e que se manterá ainda numa época em que, há anos, os

leprosários estavam vazios, são os valores e as imagens que tinham aderido ao

personagem do leproso (FOUCAULT, 2008, p.6).

A Idade Média inventa a segregação dos leprosos. O Classicismo herda tal lógica de

exclusão e a projeta sobre todos aqueles que, em contexto de crise econômica, parecem

ociosos: a doença deixa de ser a lepra e passa a ser “o improdutivo”. A loucura entra no

horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho e da impossibilidade de integrar-

se ao grupo.

Uma grande virada epistemológica acontece no final do século XVIII e principalmente

a partir do século XIX: aparece a ideia de uma libertação dos loucos do internamento

9

produzido pelo século XVII. O internamento deste último não é um estabelecimento médico,

mas uma estrutura semi-jurídica que, além dos tribunais, decide, julga e executa.

Philippe Pinel e Jean Esquirol são nomes importantes no novo contexto de internação.

Eles desacorrentam os loucos, o que naquela época significa a libertação da loucura. Criam

asilos e clínicas psiquiátricas, desenvolvendo uma nosografia das doenças mentais, totalmente

inspirada nas ciências naturais, tendo sua expressão inicial no Traite Medical Philosophique

sur l’alienation Mental, no ano de 1801.

A doença será entendida como um fenômeno natural, resultado de uma ação do meio

sobre a pessoa. Utilizava-se o método classificatório de Lineu, que tinha como princípio isolar

o louco, para que nada interferisse na observação e, em seguida, classificar, dado o

agrupamento das características. Essa fase é denominada “Psiquiatria Clínica”.

Então se obtém uma associação entre medicina e internamento. No entanto, Foucault

dirá que “É pela concepção do impuro e não por um aperfeiçoamento do conhecimento, que o

desatino foi confrontado com o pensamento médico e isolado da loucura” (FOUCAULT,

2008, p.14).

A loucura ganha um sentido próprio e específico e se instala como objeto de

percepção. Os loucos, dentro dessa nova racionalização, não são mais diferentes em relação

aos outros, mas se distinguem de um para o outro e vão adquirir uma linguagem apenas sua.

Tal modelo é confirmado pela lei francesa de 1838, que legitima a especialidade da

Psiquiatria como saber e autoridade sobre a loucura. O seu princípio é o de isolar para curar,

afastando o louco do convívio social para curá-lo. Os países ocidentais tomaram a lei francesa

de 1838 como modelo. Houve a partir disso a confiscação da loucura pelo olhar médico. É

possível dizer que o conceito de alienado vem da conjunção entre os conceitos de Pinel,

Esquírol e a lei de 1838.

Foucault dirá que a Psiquiatria nasce da prática do internamento, “onde tudo o que há

de estranho no homem seria sufocado e reduzido ao silêncio” (FOUCAULT, 2008, p. 428).

A transformação da loucura em alienação mental criou um problema na nova

sociedade francesa. Como o louco era considerado um sujeito da desrazão, incapacitado por

sua condição de doente, ele encontrava-se alheio às regras sociais. Como consequência de sua

alienação, o louco não era reconhecido como cidadão. Esta situação do alienado apresentava à

sociedade uma série de contradições e necessitava de uma norma jurídica para resolvê-las.

Assim foi elaborada a lei de 1838, que teve repercussões por todo o mundo ocidental.

10

2.1.1 Saúde mental no Brasil

Os problemas de ruptura social começam a ser um tema no Brasil com a vinda da

família real em 1808, que chegam com outras quinze mil pessoas. A cidade do Rio de Janeiro

começa a se desenvolver, pessoas de outras regiões consideram a possibilidade de

crescimento, no entanto tal situação fomenta a pobreza e as doenças. Foram as Santas Casas

da Misericórdia que acolheram tais pessoas, assim como no modelo europeu, antes dos asilos

psiquiátricos.

Em 1829 funda-se a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (SMRJ), que começa a

pressionar o reinado para a criação do primeiro sanatório por sua vez influenciada pelas

iniciativas de Pinel. O Hospício de Pedro II será fundado em 1852, ainda sob a administração

das Santas Casas da Misericórdia. Somente no ano de 1881 o sanatório será passado à

administração médica, inicialmente a um médico generalista, Nuno de Andrade, e em 1886 a

Teixeira Brandão, médico psiquiatra.

Com a inauguração do Hospício Pedro II, surge a primeira lei de assistência (tutelar)

ao doente mental. Na primeira República (1889-1930) houve a abolição do trabalho escravo, o

direito político ampliado com a Constituição de 1891, incluindo o direito ao voto a todos

(excetuando-se analfabetos, mulheres e soldados) e a criação de leis trabalhistas.

Em 1916 foi promulgado o Código Civil, que funciona como uma Constituição,

composta de valores burgueses e de grande impacto para a saúde mental, visto que o louco

não é reconhecido como sujeito nem como cidadão (ver artigos: 5º, 12, 84, 142, 145 e 177).

Nos anos 30 o Brasil se aproxima ideologicamente de ideais alemães, o que trará

impacto também na percepção da saúde mental. Observa-se que a Liga Brasileira de Higiene

Mental traz uma proposta de saúde mental ampliada a uma afirmativa de eugenia. Dentro das

diretrizes da Liga, estrangeiros e negros, por exemplo, não deveriam ter filhos.

O impacto dessa política é de extremo isolamento do “louco”. Porém tivemos nomes

como o de Juliano Moreira que humanizou o tratamento aos doentes mentais. Ele foi defensor

da origem das doenças mentais vinculadas a fatores físicos e situacionais, como a falta de

higiene e o escasso acesso à educação, contrariando o pensamento racista em voga no meio

acadêmico, que atribuía os problemas psicológicos do Brasil à miscigenação. Foi um

importante representante internacional da Psiquiatria brasileira.

11

No período de 1930 a 1964 há uma “cidadania regulada”, com a qual está embutida na

profissão e vinculada aos processos produtivos que sejam reconhecidos pela lei (a carteira de

trabalho, instituída em 1932, foi um documento que funciona como certidão de nascimento

cívico). Entretanto, o doente mental continua sob tutela e excluído. O Código Penal

acrescentou o conceito de periculosidade ligado à figura do louco nesse mesmo período.

Depois da segunda guerra mundial, as iniciativas europeias em saúde mental

influenciaram o Brasil, como por exemplo: os modelos das Comunidades Terapêuticas

(Inglaterra) e a Psicoterapia Institucional (França), que têm por objetivo a transformação da

dinâmica asilar, que teriam características doentias enquanto instituição, devendo desenvolver

práticas terapêuticas.

Igualmente, a Psiquiatria de Setor (França) e a Psiquiatria Comunitária (EUA)

deslocam o ponto central do tratamento para a comunidade. A antipsiquiatria (Inglaterra) e a

Psiquiatria Democrática italiana, que questionam a naturalização da loucura, destituindo a

razão e colocando a loucura “entre” os homens e não “dentro” deles. Tais dinâmicas

amadurecem a luta antimanicomial no Brasil.

Em 1964 houve o golpe militar, logo, a escassez de cidadania para todos. E, com a

Constituição de 1988, consolidam-se os projetos democráticos iniciados nos anos 1970. No

campo da saúde destacam-se: a reforma sanitária, o Sistema Único de Saúde (SUS) e a

reforma psiquiátrica, cuja luta começou em 1978, tendo contado com o apoio da população

em geral, familiares, usuários e amigos.

Em 1980 o Estado reconhece sua dívida com a saúde mental, não por razões políticas,

mas sim conceituais. Entende-se que o portador de transtornos mentais precisa de outro lugar

social, sustentado por uma legislação.

Posteriormente, em abril de 2001, foi promulgada a lei 10.216 (MS, 2002) que dispõe

sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, e redireciona o

modelo assistencial em saúde mental da estratégia de Pinel para o modelo ambulatorial. A

referida lei reconhece a pessoa com transtorno mental como cidadã e sujeito de direito. Esta

lei constitui a Política de Saúde Mental oficial do Ministério da Saúde, bem como de todas as

Unidades Federativas. Ela está dividida em dois grandes eixos: a questão da proteção e o

redirecionamento do modelo assistencial.

Assim, privilegia-se uma rede de saúde extra-hospitalar, que tem por objetivo a

reinserção social do paciente em seu meio. Uma lei sobre a proteção e os direitos das pessoas

12

portadoras de transtornos mentais promove uma nova rede simbólica sobre a doença mental.

É possível compreender que essa lei transforma a memória da lei francesa de 1838.

Os pontos fracos da lei 10.216/01 apontam para a não extinção dos manicômios e, por

se tratar de legislação apenas do SUS, não definiu critérios para a fiscalização de clínicas

privadas. Espera-se que a extinção dos manicômios virá na medida em que a rede psicossocial

em saúde alcançar uma boa maturidade de funcionamento e de conhecimento técnico.

Com relação às Conferências Nacionais de Saúde Mental, estas têm tido um papel

crucial de dar continuidade ao processo, iniciado no Brasil nos anos 70, de crítica ao modelo

hospitalocêntrico de assistência. Além disso, definiu estratégias e rumos na implementação da

Reforma Psiquiátrica a partir dos anos 80, em interlocução com aspirações e experiências já

em implantação em diversos países do mundo.

A III Conferência Nacional de Saúde Mental, teve como objetivo a reorientação do

modelo assistencial em saúde mental que busca inclusão social e a habilitação da sociedade

para conviver com a diferença, desejando superar os hospitais psiquiátricos e

concomitantemente, criar redes substitutivas que promovam a emancipação dos usuários.

Percebe-se a sua qualidade humanista, de adequação aos direitos humanos e reabilitação

psicossocial, mesmo que ainda contenha vários aspectos que denotam uma fase de transição.

A IV Conferência Nacional de Saúde Mental teve um caráter intersetorial. Foram

identificados desafios e lacunas, bem como a complexidade, o caráter multidimensional e

interprofissional dos temas. O desenvolvimento das políticas intersetoriais implica em

políticas habitacionais, de assistência social e direitos humanos.

Em 2003, foi lançada a Política Nacional de Humanização (PNH) que busca por em

prática os princípios do SUS no cotidiano dos serviços de saúde, produzindo mudanças nos

modos de gerir e cuidar. A PNH estimula a comunicação entre gestores, trabalhadores e

usuários para construir processos coletivos de enfrentamento, de relações de poder, trabalho e

afeto que muitas vezes produzem atitudes e práticas desumanizadoras, inibindo a autonomia e

a corresponsabilidade dos profissionais de saúde em seu trabalho e dos usuários no cuidado de

si.

Após 10 anos da PNH - Política Nacional de Humanização, é lançada a Portaria Nº

2.761, de 19 de novembro de 2013, que reafirma o compromisso com a Universalidade, a

Equidade, a Integralidade e a efetiva participação popular no SUS. Propõe uma prática

político-pedagógica que perpassa pelas ações voltadas para a Promoção, Proteção e

13

Recuperação da Saúde, a partir do diálogo entre a diversidade de conhecimentos, valorizando

os saberes populares e a ancestralidade.

2.2. EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL

Rancière: O mestre Ignorante

Rancière (2002) tem como base a biografia de Joseph Jacotot, revolucionário exilado

no século XIX. Rancière lembra o postulado sempre retomado do nosso sistema pedagógico e

político. Há uma desigualdade das inteligências, algumas superiores, capazes de conduzir

outras inteligências, estas menos hábeis.

Ele procura partir do postulado inverso: todas as inteligências são de mesma natureza

e o mestre ignorante é aquele que revela ao outro a sua capacidade de progredir no

conhecimento pela sua própria inteligência, ao invés de embrutecê-lo, tentando lhe transmitir

um saber que ele poderia adquirir sozinho. A instrução é como a liberdade. Ela não se dá, se

conquista.

Jaques Rancière questiona as representações sociais tradicionais. Em meados dos anos

1980 ele se interessa pela biografia de Joseph Jacotot e redige a obra – O mestre Ignorante –

na qual ele propõe o postulado da igualdade das inteligências. Rancière é um discípulo

atemporal de Jacotot, uma vez que os textos do referido revolucionário não haviam sido

reeditados desde 1840. O autor pesquisava o tema da emancipação da classe operária do

século XIX, quando descobre a existência daquele que viria a ser fundamental em seu

postulado. Operários enviavam-lhe seus filhos e alguns deles se tornavam professores

jacotistas improvisados.

A reflexão de Rancière diz respeito à prática de Jacotot. Sua reflexão se orienta entre a

ideia de emancipação operária e a emancipação intelectual. Rancière transpõe para o nosso

presente a atualidade de um contexto intelectual e político distante.

O autor conclui que o ato do mestre que orienta uma outra inteligência a se exercer é

independente da posse de um saber. É então possível a um ignorante ensinar aquilo que ele

não conhece.

14

Jacotot descobre que apenas a relação de vontade a vontade é necessária para

aprender. E mais ainda, o princípio em que a inteligência do mestre deve ser superior a do

aluno é prejudicial. O mestre deve agir apenas como uma autoridade, de acordo com a

vontade que comanda um ignorante a fazer seu caminho, ou seja, de colocar em prática a

capacidade que ele já tem, a capacidade que todo homem demonstrou adquirir sem a presença

de um mentor, a mais difícil das aprendizagens: a de sua língua materna.

Assim a inteligência não é nada mais do que fruto da atenção e da pesquisa, antes de

ser uma combinação de informações. O homem tem ideias quando ele quiser e se ele quiser.

O aluno é sempre um pesquisador e o mestre é antes de tudo um indivíduo que fala ao outro,

que conta histórias e leva a autoridade do saber a uma condição poética de qualquer

transmissão de palavras.

O aluno deverá encontrar seu caminho na direção dessa verdade única. E esse esforço

de transmissão, de comunicação só poderá ser feito se o homem acreditar na igualdade das

inteligências, porque nisso se expressa a vontade coletiva de ser compreendido, ou seja,

contar e provar aos outros que todos são iguais.

Jacotot mostra como o mito da diferença das inteligências se expande para a sociedade

como um todo. Ele percebe a coletividade como uma vasta escola em volta de um projeto

político, submetido às mesmas leis de um projeto pedagógico, aquele de uma ordem de

diferença que tende à igualdade. A ficção pedagógica, erguida na ficção da sociedade, afeta

todos os domínios da vida privada.

A única via a seguir, defende Rancière (inspirado pelas ideias de Jacotot), é ampliar o

número de indivíduos que farão uso de sua razão e saberão, em política, usar a retórica da

melhor forma possível, para anunciar a todos os indivíduos, a todos os pais e mães de família,

o meio de ensinar o que ignoramos.

Assim, ao mesmo tempo em que o ensinamento universal não assumirá jamais o

método tradicional, pois é contrário às instituições, ele também não perecerá, porque consiste

em um método natural do espírito de todo homem, que projeta por si mesmo o caminho de

sua própria verdade.

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2.3. PRODUÇÃO AUDIOVISUAL1 E SAÚDE MENTAL

O Produto Audiovisual corresponde a qualquer obra produzida com os recursos

técnicos de imagem e som, que possua uma narrativa ou não, profissional ou amadora, no

sentido mais amplo da linguagem audiovisual que engloba a ficção, o documentário, o

experimental, o institucional, o educativo, o entretenimento, o noticiário e o comercial.

O Audiovisual é difundido e distribuído por meio de salas de cinema, canais de TV

aberta ou fechada, vídeos por demanda (VOD), mídias de DVD e Blu-Ray, auditórios de

projeção, por aplicativos em telefonia móvel, por canais de vídeos na internet ou em cópias

legais ou ilegais digitais.

Ele pode apresentar inúmeros formatos, sendo estes artísticos, de publicidade,

programas de variedades ou simplesmente dedicados à difusão de informação e notícias. O

Produto Audiovisual artístico pode ser: narrativo; Não-narrativo; Ficcional ou documental;

Pode ser apresentado como longa, média ou curta-metragem; Em obras cinematográficas;

Como séries; Mini-séries; Seriados; Filmes para TV e; Novelas, em obras televisivas.

Todos esses produtos possuem inúmeros gêneros, liberdades de estética e roteiro, e são

construídos por artistas e técnicos, amadores. Existem também aqueles profissionais que

concebem e elaboram a fotografia, direção de arte, som, textura de imagem, edição, e atuação,

no caso de live action (obras com atores reais) ou dublagem, em animações.

O Produto Audiovisual publicitário é encontrado em pequenos vídeos de 15 a 30

segundos na TV, nas chamadas comerciais ou “propagandas”, em formatos maiores na

internet e em cinemas, com o uso de recursos de linguagem em função de um produto externo

à obra. O Produto Audiovisual de variedades e de notícias é exclusivo da TV e da internet. O

primeiro possui inúmeros formatos, geralmente de baixo custo e com plateia, se sustentando

no carisma do apresentador e no roteiro de improvisos. O segundo apresenta modelos mais

conservadores, cujo foco principal é noticiar fatos, informações, tendências e opiniões que

estejam atualizadas e recentes.

O conceito de Audiovisual começou com o cinema, desde seu princípio na era muda,

pois as imagens sempre eram acompanhadas por música ou sons. Depois se expandiu para a

TV, para o vídeo gravado e para a internet. Com o tempo, uma linguagem foi desenvolvida e

consolidada, com muitos “clichês” necessários, indo ao encontro do entendimento e

1 Tópico baseado em informações fornecidas pelo professor e cineasta [email protected].

16

apreciação de seu público. O Audiovisual, como o cinema, se caracteriza por um meio de

comunicação destinado à massa, independentemente de possuir teor artístico ou informativo.

Além da linguagem, foram desenvolvidos conceitos, técnicas, formas de produção,

que se tornaram universais, independente do país em que se produza ou grupo que se

apresente a esta realização.

A produção cinematográfica acontece em quatro etapas distintas: pré-produção,

produção, pós-produção e distribuição. Nessas etapas ocorrem diversos processos, como: A

elaboração do roteiro; Seleção de equipe e elenco; Preparação; Execução das filmagens;

Montagem do material e; Divulgação do produto finalizado.

As obras podem ser ficcionais, nos quais enredos e personagens não correspondam a

situações reais, criados originalmente para o filme ou tomados emprestado de um livro ou

outra obra. Podem ser documentais, de forma que o enredo e personagens correspondem a

situações reais concretas. Ambas podem ser trabalhadas de diversas formas: Com atores

(pessoas interpretando personagens ou interpretando a si mesmas); Com animação; Com

metáforas; Alegorias, cruas, secas, da forma mais criativa possível.

Apesar do enredo, transformado em roteiro, ser o pilar de qualquer obra audiovisual, o

trabalho criativo principal ocorre na direção e nas subdireções específicas. A partir das

narrativas de Shakespeare, o aspecto “como fazer” se tornou mais importante que “o que

fazer”, ponto de destaque qualitativo na obra.

Tanto obras ficcionais como documentais podem ser criativas, pois, ao se recortar uma

fração da realidade em um enquadramento, tudo passa a ser um ponto de vista, um fragmento

de qualquer realidade. Toda pessoa que está em frente a uma câmera, seja um ator ou não,

está interpretando. A câmera interfere na realidade na postura das pessoas, mesmo em obras

documentais.

O Audiovisual, como instrumento de comunicação de realidades e conteúdos

relacionados à saúde mental, tem sua inscrição no Brasil por meio de filmes ficcionais,

documentais e de TVs comunitárias. A TV Pinel torna-se um exemplo interessante acerca do

que se pretende chegar com a TV Sã.

O cinema, também visto como documento e arquivo de registro, constitui-se uma fonte

histórica sobre a temática do louco no manicômio, pois retrata as modificações que se deram

acerca dessa representação no decorrer dos tempos, estabelecendo uma relação entre o filme e

a realidade da sociedade da qual pertence. Observa-se que inúmeros filmes retrataram o

17

manicômio de uma forma negativa, criticando-o e denunciando tratamentos perversos e

desumanos prestados ao louco.

Dessa forma, o cinema é importante como fonte histórica de pesquisa, podendo

produzir questionamentos, reflexões, constituindo-se como arte com vistas a influenciar na

formação de opinião, podendo preceder transformações significativas na sociedade.

Além de ser reflexo de uma época, o cinema pode se apresentar como uma linguagem

metafórica das vivências, do comportamento e do pensamento de um povo, desde o roteiro,

até aspectos mais sutis, como a fotografia, a montagem, os movimentos de câmera, o cenário,

o figurino, construção dos personagens entre outros.

Enquanto TV comunitária o Audiovisual pode servir para construção de um trabalho

coletivo que, segundo Peruzzo (2011), tem como objetivo defender os interesses de uma

comunidade, visando à transformação social para uma sociedade mais igualitária.

Luciana Lobo Miranda, em seu artigo “Consumo e produção de subjetividade nas TVs

comunitárias” (2007), cita a TV Pinel e analisa os processos subjetivos dos usuários do

sistema de saúde mental, quando eles passam de simples espectadores a criadores de Produtos

Audiovisuais. Enfatiza-se o protagonismo na construção dessa narrativa contemporânea, por

meio do vídeo, para falar de seu cotidiano, de suas vidas.

Sendo a TV Sã amadrinhada pela TV Pinel, subentende-se que elas estão nas mesmas

perspectivas de trabalho, pelas quais se busca questionar as formas hegemônicas de

comunicação e transmissão de informação. Tais formas representam o louco e a loucura de

forma estereotipada próxima à periculosidade, ou imediata à invalidez. Tem-se o

compromisso em passar de uma posição como espectador passivo para o sujeito que enuncia,

que é ator de sua realidade e da construção de significado sobre ela.

O Audiovisual se torna dessa forma um instrumento de protagonismo, na medida em

que promove um trabalho coletivo, no qual há: escolhas temáticas, discussão de ideias, troca

de experiências de vida e de conhecimentos, além de colocar esse material em uma

perspectiva comunitária de transformação dos espaços e da sociedade. Observa-se assim um

espaço e o produto de resistência em relação à informação e produção midiática de massa.

2.4. CLÍNICA POLÍTICA

18

O trabalho da TV Sã tem um caráter político de intervenção na saúde, visto que os

sujeitos se engajam em seus processos de cuidado e saem de uma postura passiva a uma

postura ativa. De uma posição vitimizada para uma posição realizadora.

Essa perspectiva da Clínica Política questiona a noção de vitimologia, dada por

Coimbra (et al., 2002, p. 120): “Cremos que a construção do lugar de vitimado faz funcionar

um movimento de despotencialização política e uma rede de transformação das violências

sociais em problemáticas individuais que favorecem o isolamento, constituído no silêncio

solitário.”

Nessa linha de silenciamento se produzem, historicamente, o “doente mental” e o

“subversivo”, que são comumente percebidos: O primeiro ocorre desde uma “falta de razão

normal”, paradigma construído pela ordem médico-psicológica. E o segundo se manifesta a

partir da “falta de uma razão política”, paradigma elaborado pela ordem jurídico-política. A

ambos se destina um tratamento moral (COIMBRA et al., 2002, p. 120).

A clínica nesse sentido deve ser um dispositivo capaz de produzir novos sentidos,

novos modelos de subjetivação que corrompa o modelo dicotômico indivíduo/sociedade.

É necessário lembrar que a enunciação coletiva é resultado de uma produção histórico-

social e se transforma, se desfaz. Essa qualidade deve ser apreendida pela Clínica Política, em

que “[...] a clínica-dispositivo pode intervir de modo a tomar a história pessoal como uma das

linhas que atravessam e são atravessadas pela enunciação de uma época, produzido por um

coletivo-multiplicidade que não pode ser reduzido a noção molar de social." (BARROS, 2002,

p.138).

A filosofia dos dispositivos de Deleuze (1988) fixa essa ideia de apreender o novo. O

grande eixo a ser corrompido, assistida como a lógica atual, seria essa, por separar o social do

individual, e impõe um domínio ao psicológico ou ao capital. A universalidade dos mitos

familiaristas e a construção de inconsciente baseado no individual reduz a clínica a um

paciente e o extirpa de uma construção histórica, reduzindo o exercício a uma atividade

estéril.

A Clínica Política não pode repetir a epistemologia vigente, em que o indivíduo é livre

e solitário, e o Estado é responsável pelo bem comum. Deve – se ater para o fato de que o

cotidiano está imerso em uma massa amorfa de multiplicidades. A economia do desejo e da

política são uma só.

19

2.5. ONG INVERSO

Fundada em 8 de março de 2001. A Inverso - ONG em saúde mental - é uma

instituição de Convivência e de Recriação do Espaço Social, sem fins lucrativos, que tem

como objetivo primeiro a garantia do cuidado e dos direitos dos portadores de transtornos

mentais. Para isto a ONG prioriza três vias fundamentais2 a fim de incluir estas pessoas na

sociedade e para dar visibilidade a este tema na pauta social.

1. Informação/Formação: A informação e a formação, hoje mais do que nunca,

significam poder. Poder de transformação social, de crítica ao modelo econômico e social

hegemônico, produtor e reprodutor da loucura. A busca nesta via está em conhecer mais e de

forma aprofundada as questões da saúde mental. Prioriza-se a saúde e não a doença mental.

2. Cultura: O imaginário social acerca do louco e da loucura é algo a ser trabalhado

cotidianamente. A ONG Inverso acredita que as intervenções culturais, em qualquer

linguagem e a qualquer tempo, podem e devem ser aliadas à discussão sobre as formas de

preconceito, violência, e violação de direitos com relação às pessoas portadoras de transtornos

mentais. Podem também servir à expressão da diferença, intervindo como forma de reinserção

social das pessoas com transtornos mentais.

3. Clínica e Política: A articulação entre a clínica e a política é a busca fundamental da

ONG Inverso. O cuidado, o acolhimento e a escuta destas pessoas em intenso sofrimento

estão baseados na premissa e na aposta de autonomia e cidadania de cada um daqueles que

buscam um espaço para manifestar suas diferenças.

Estes conceitos estão se tornando prática social na existência da ONG Inverso há mais

de 13 anos. Entre os projetos realizados estão: debates em espaços culturais e acadêmicos,

exposições em diversos espaços públicos, oficinas sobre os mais variados temas, participação

em diversos eventos, pesquisa e coleta de informação na área. A ONG Inverso realizou várias

parcerias ao longo desses anos, está a cada dia aumentando sua criatividade e plena de ideias

que a impulsiona em um sentimento de estar ainda apenas começando.

Propõe-se uma entrevista com Eva Faleiros, membro-fundadora da ONG, para melhor

entender a perspectiva de trabalho da ONG.

2 Informações que constam na página da rede social Facebook, principal mídia utilizada pela ONG Inverso.

20

A Inverso é um lugar, um espaço de convivência e de inserção social. Segundo Eva:

“O progresso fundamental que eles valorizam muito é não voltar a ser internado. Nós temos

pessoas lá que nunca mais... A maioria nunca mais foi internada. E dá conta de viver no

mundo, né?” Por exemplo, a pessoa aprende a fazer um café, a se servir. Ela tem

responsabilidades, como a limpeza do que sujou, manter o espaço limpo e cuidar como se

fosse sua própria casa. A ideia é a participação, e o ganho é a autonomia que eles vão

adquirindo aos poucos, neste conviver.

Trabalha-se com oficinas sabendo que esta atividade não é um fim, mas um meio.

Porém, Eva acredita que a proposta de trabalho com oficinas já está esgotada. Atualmente a

proposta é pensar em novas possibilidades e em campos de ação, a exemplo dos trabalhos

realizados na Itália como cooperativas profissionalizantes. Além disso tem por finalidade em

não cristalizar a Inverso como uma instituição e possa oferecer cursos, supervisão de

profissionais, serviços de psicoterapia e de acompanhante terapêutico.

A Inverso tem um modelo teórico sólido capaz de sustentar sua prática. Eva diz que

muitos estagiários se assustam com o fato da instituição não ser tradicional, no que diz

respeito ao trabalho desenvolvido pelo referido instituto no campo da saúde mental; Quando

os estagiários chegam, questionam onde encontram – se os jalecos, prontuários e anamneses.

A Inverso é um local em que se busca uma construção conjunta.

Segundo Eva, ao ser questionada, no tocante à denominação dos frequentadores para

falar das pessoas em estado de sofrimento psíquico, frequentadores da Inverso, ela diz que o

nome – frequentadores – foi uma escolha feita por eles mesmos, porque não concordam com

o termo usuário de serviços de saúde mental.

Ela explica que foi demanda deles a palavra “frequentador” e acrescenta:

“O que eu acho super significativo nisso, porque é uma questão de identidade, eles

chegam lá tudo doentinho, com número de CID. [e perguntam] ‘Eu não quero saber de CID

aqui, aqui ninguém tem CID, qual é o teu nome, pô? E já vou logo dizendo: ‘eu nem conheço

CID.’ Então é sair desse lugar de doente. E essa é a maior dificuldade que a gente tem. É

como ser artesão, como ser ator, né? É completamente diferente. Isso é emancipação: mudar

sua identidade, cara. E outra coisa que acho muito importante é que eles se denominem, não

somos nós, e que critiquem. E que a gente tenha abertura para imediatamente adotar como

eles se denominam.”

21

Com relação ao trabalho da TV Sã na ONG Inverso, Eva afirma que esta parceria não

foi apenas formal. Antes de ter uma base na Inverso, ela havia atuado no Centro Universitário

de Brasília (UniCEUB). Porém nessa instituição não tinha um local específico para as

atividades, as reuniões eram na praça de alimentação e muitas vezes as pessoas se perdiam e

não conseguiam se encontrar. Também não obtinha acesso direto às ilhas de edição, instaladas

no departamento de comunicação.

Outra questão relevante apontada por ela discorre sobre o fato do UniCEUB não

permitir a comercialização dos vídeos e nem a divulgação em diferentes serviços e meios de

comunicação, limitando, dessa forma, a importante atuação da TV Sã na divulgação e na fonte

de renda. O fato de haver um local permitiu que as pessoas se encontrassem para realizar o

trabalho e pensassem juntos em projetos.

Eva lembra que no filme “Efeitos Colaterais”, a Inverso foi o próprio setting, local

onde se realizou toda a produção desde a discussão do tema, elaboração do roteiro, filmagem

e edição. Quanto à necessidade da realização desses projetos de audiovisual realizados pela

TV Sã na ONG Inverso, Eva relata que considera realmente importante esse projeto como

meio para que o frequentador consiga se expressar.

“...acho que ajuda, porque a produção é deles. É um trabalho coletivo.”

A entrevistada ressalta o valor em manter o espaço aberto a todos os interessados em

participar, que queiram criar. “Caso algum dos participantes tenha dificuldade em aceitar a

convivência, é válido lembrar que, no aspecto coletivo, o trabalho é de construção conjunta.

Do mesmo modo, lembrar o processo que ela mesma percorreu para ser participante, a partir

de perguntas como: ‘Quando você quis entrar, como você estava?’; ‘Que oportunidades te

deram?’ E ser muito claro que este é um espaço coletivo, de convivência, a fim de não tirar a

oportunidade de outras pessoas mudarem suas trajetórias de vida como alguns já mudaram.”

2.6. TV SÃ

A apresentação será feita com base na entrevista realizada com Elias Lima,

participante deste canal de comunicação e frequentador da ONG Inverso a serem descritos a

seguir.

22

A TV Sã é um núcleo de comunicação em audiovisual, passando a existir em 2008,

com a vinda da TV Pinel do Rio de Janeiro à Brasília por ocasião de eventos relacionados à

luta antimanicomial em 18 de maio deste mesmo ano.

A TV Pinel ofereceu uma oficina, no UniCEUB, de produção audiovisual para aqueles

interessados em pesquisar, pensar e divulgar o tema da saúde mental. A oficina teve um

caráter prático de produção, ensinando a elaborar roteiro, filmar e editar, resultando na

realização de dois curtas-metragens: “Para o Além”, realizado na Rodoviária, e “Vizinhos do

Barulho”, no Setor Comercial Sul.

O curta “Para o Além”, realizado na rodoviária, como uma espécie de improvisação

em que uma atriz simula estar em crise, buscou mobilizar uma reflexão sobre o que fazer se

uma pessoa entra em crise em um ambiente público. Sobre essa experiência Elias diz:

“A gente ficava com dó porque é muita desinformação. Eles não [a] têm. Ninguém

chega para eles e fala o que precisa ser feito para que uma pessoa com determinado problema

seja cuidada com uma atenção devida.”

O curta “Vizinhos do Barulho” discorre sobre a desigualdade de direitos, a falta de

convivência e a discriminação da pessoa em sofrimento psíquico, quando em momento de

crise em seu apartamento, causando incomodo aos vizinhos pelo barulho. Mas, a questão

percorre sobre os vizinhos que fazem festas, brigam ou colocam som alto. Não estariam eles

também incomodando? Elias provoca, dizendo:

“Me explica, digamos que você faça uma festa e ache que está tudo bem. Aí você se

incomoda com o barulho dessa pessoa. Você acha que deveria ser feito algo com que ela se

calasse? Ou os direitos não são iguais? Percebemos que a sociedade precisa aprender muito

sobre esse assunto. E precisa conviver mais com essas pessoas porque se ela não conviver, ela

nunca poderá dizer o que será melhor para atender essa pessoa quando ela estiver em uma

crise.”

A TV Sã deu continuidade às suas produções na ONG Inverso. Foram realizados entre

2009 até o presente os seguintes vídeos: “Efeitos colaterais”, que faz uma crítica à

medicalização dos serviços de saúde, o filme “Me Escuta, Brasília!” a propósito da marcha da

luta antimanicomial, entrevistando os participantes da mesma marcha sobre questões

relacionadas à saúde mental.

O filme “Ei psiu, não quero o Rivotril!”, do bloco de carnaval de saúde mental

“Rivrotril”, e por último, em 2013, o filme “Família”, que faz uma crítica aos serviços de

23

saúde mental com relação ao suporte e inclusão da família nos serviços de saúde mental. A

intenção é trabalhar em rede, com pessoas ocupando diversos locais na sociedade e não só

com um indivíduo em um local específico de tratamento.

A proposta da TV Sã, segundo Elias, é a de realizar vídeos que promovam a luta pelos

direitos daquelas pessoas que tenham qualquer tipo de transtorno e que possam ser garantidos

perante a lei. Elias acrescenta:

“Nós somos contrários à proposta que venha a fazer da pessoa um meio de lucro

pessoal. Nós queremos a pessoa para ser alguém que tenha como reagir em meio a uma

sociedade capitalista e preconceituosa.”

Elias afirma na entrevista que a TV Sã promove saúde mental:

“Ela ajuda por quê? Porque temos exemplo de pessoas que só em ouvir falar sobre a

TV Sã, tiveram vontade de participar. E saber o que era... e hoje fazem parte, só pelos

exemplos que colocamos para eles. Não foi nada mais, nada menos do que isso. Por quê?

Você ver exemplo de vida é muito melhor do que ver exatamente o eu. Porque o exemplo de

vida você mostra exatamente a capacidade de criação, de participação coletiva com as pessoas

e quando você coloca o eu no meio, você tira as outras pessoas do seu meio. E elas se sentem

meio sem vontade de querer participar mais.”

Com relação aos benefícios que ela pode trazer à pessoa em situação de sofrimento

psíquico, ele acrescenta que a TV Sã pode ajudar tanto no processo de capacitação em um

instrumento de técnica audiovisual, como no entendimento sobre a questão da saúde mental,

que lhes permita adquirir melhor qualidade de vida. Aliado a isso, a intenção é sensibilizar

vontades particulares para um interesse comum de fazer parte, de se conviver e requerer esse

trabalho como meta futura, atualizada no presente por meio da ação, da participação. Por fim,

Elias dirá:

“[...] além do conhecimento, ela ajuda a colocar em prática, porque só o conhecimento

em si, o próprio funcionalismo público tem. Agora a vida pessoal e a prática da vida é que vai

ajudar ela a vencer as barreiras que ela tem no seu dia-a-dia.”

24

3 MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório e descritivo. A base

metodológica é o acompanhamento na produção de audiovisual, através de um relato

etnográfico sobre a produção realizada pelos usuários dos serviços de saúde mental.

O relato etnográfico será uma análise com base nas teorias de Jacques Rancière sobre

a emancipação na produção audiovisual e nas teorias desenvolvidas pela Clínica Política. Tais

perspectivas serão articuladas junto às entrevistas sobre a TV Sã e o processo de produção do

filme “Família”, realizadas com Elias Lima – participante da TV Sã e frequentador da ONG

Inverso.

4 DISCUSSÃO

A prática da TV Sã é um exercício da teoria de Rancière, tomando como protagonismo

o conceito de mestre ignorante. O conceito de mestre ignorante rompe com a ideia tradicional

de saberes e transmissão de saberes, fundada na instituição pedagógica e ordem progressista

das sociedades modernas, na qual se desloca o saber para aqueles à margem da transmissão.

O mestre ignorante de Rancière é baseado na biografia de Jacotot que, uma vez

exilado na Holanda, ensinou seus alunos a lerem em francês sem que ele mesmo soubesse o

holandês. Para tanto, os alunos tiveram acesso direto a uma tradução bilíngue e só falavam

com o professor em francês. Eles haviam aprendido sozinhos com a ajuda do livro e da

interação com a língua francesa.

O fato do professor não conhecer a língua o tirou da posição de mestre explicador e o

colocou como mestre ignorante, tendo de se isentar dos seus conhecimentos e da pedagogia da

explicação, passando a atuar apenas como uma autoridade, uma vontade que convoca a

vontade de outro ser humano, obrigando outra inteligência a se reconhecer.

Instruir pode, portanto, significar duas coisas absolutamente opostas: confirmar uma

incapacidade pelo próprio ato que pretende reduzi-la ou, inversamente, forçar uma

capacidade que se ignora ou se denega a se reconhecer e a desenvolver todas as

consequências desse reconhecimento. O primeiro ato chama-se embrutecimento e o

segundo, emancipação.” (RANCIERE, 2002, p.12).

Na experiência da TV Sã, a figura do mestre ignorante é representada pelos

participantes, que por sua vez transformam as próprias experiências relacionadas ao sistema

25

de saúde mental e suas vivências sociais marginalizadas em conhecimentos e cultura, a partir

da criação e transmissão desse saber pelo material audiovisual.

Na entrevista com Elias Lima, ele relata que sua experiência com a TV Sã teve um

papel de restituição de direitos, cidadania e expressão no que tange ao conhecimento a ser

promovido com relação à saúde mental, restituindo o valor à pessoa em sofrimento psíquico, e

não a estigmatizando. Com relação a esta temática ele diz:

“A TV Sã é a forma através da qual as pessoas podem expressar exatamente os seus

direitos que estão sendo violados e precisam ser devolvidos para o seu viver [...] porque nós

não temos exatamente algo que venha a ser positivo na saúde mental. E por não ter nada

positivo, quando nós criamos um vídeo, nós mostramos justamente aquilo que precisa ser

melhorado dentro da saúde mental.”

Para Rancière (2002, p.16), “a emancipação intelectual deveria devolver a cada um a

igualdade que a ordem social lhe havia recusado e lhe recusaria sempre pela sua própria

natureza.” E citando Jacotot acrescenta que “a igualdade é fundamental e ausente, ela é atual e

intempestiva, sempre dependendo da iniciativa de indivíduos e grupos que, contra o curso

natural das coisas, assumem o risco de verificá-la, de inventar as formas, individuais ou

coletivas de sua verificação.”

Quando questionado sobre o trabalho e as modificações que tiveram ao longo dos anos

na TV Sã, Elias pontua que a principal mudança foi o lugar onde ela se localiza atualmente.

Antes ela funcionava em um ambiente universitário e depois passou a exercer suas atividades

da ONG Inverso. Essa mudança possibilitou um trabalho de desinstitucionalização, ao mesmo

tempo em que motivou pessoas a trabalharem por vontade própria e não por regras. Ele diz:

“Agora me explique, como é que eu vou viver tendo que aparentar ser manicomial, da

mesma forma que o hospital está taxando as pessoas. Por que viver desse jeito é manicomial,

você ficar dependente. Você ficar dependente, não da instituição, mas de um professor como

um vínculo, pois sem o professor ser um vínculo, a edição não era marcada com rapidez. Aí

me explica como é que tem um relacionamento de autonomia? Ela dependia de alguém que

era influente dentro da instituição. Aqui na ONG Inverso nós temos poucas coisas, como uma

câmera que grava, temos um computador, que é ilha de edição e nós também fazemos com

que as coisas funcionem segundo a nossa vontade. Não é de acordo com a vontade de

ninguém.”

26

Para Rancière (2002), a instituição de ensino e o professor são instituições sociais que

impõem um saber e não permitem que a pessoa tenha acesso direto ao que já conhece. O

professor como mestre cria a distância entre o que aprende e o que se deseja conhecer, não

permitindo ao aprendiz ter acesso direto à fonte de conhecimento, ou ao instrumento que lhe

permitirá acessá-lo.

Com base no trabalho de Jacotot, ele cita o livro como um dispositivo. O caso da TV

Sã, por sua vez, esse instrumento não é o livro, mas a possibilidade de acesso à câmera e à

ilha de edição que lhes permite criar.

Rancière trabalha a noção de que o conhecimento vem pela vontade humana de se

comunicar com o outro. A relação ocorre de vontade a vontade, no momento ao qual acontece

o conhecimento. É comparada à criança que aprende a língua materna por adivinhação,

repetição.

Quando foi colocada a pergunta sobre a proposta da TV Sã, Elias coloca:

“Nós somos contrários à proposta que venha a fazer da pessoa um meio de lucro

pessoal, nós queremos a pessoa para ser alguém que tenha como reagir em meio a uma

sociedade capitalista e preconceituosa. Ela tem também a proposta de informar, divulgar em

universidades para que os alunos não se tornem como os médicos, as pessoas que trabalham

na área de saúde mental. Nós queremos que tudo seja renovado, e para que tudo seja

renovado, nós temos como mostrar para eles conhecimentos. E se a sociedade nos aceitar e

quiser aprender sobre o que temos, nós levamos a ela para ela saber o que é, caso seja

necessário. Mas nós não forçamos ninguém a requerer aprendizado, por quê? Porque a pessoa,

ela aprende se ela tem vontade, senão é uma pessoa que não adianta querer lutar com essa

pessoa.”

Quanto a essa visão da sociedade pontuada por Elias, Rancière (2002, p. 151) afirma o

seguinte:

Sabemos que é precisamente isso que define a visão embrutecedora de mundo:

acreditar na realidade da desigualdade, imaginar que os superiores na sociedade são

efetivamente superiores e que a sociedade estaria em perigo se fosse difundida,

sobretudo nas classes baixas, a ideia de que essa superioridade é tão somente uma

ficção convencionada.

Quando Elias coloca a TV Sã e a si mesmo como aquele que produz conhecimento, ele

está agindo segundo o que Rancière (2002, p. 34) coloca a respeito do círculo da potência, no

qual é possível ensinar o que se ignora, usando a sua própria inteligência.

27

Para emancipar um ignorante, é preciso e suficiente que sejamos, nós mesmos,

emancipados; isto é, conscientes do verdadeiro poder do espírito humano. O

ignorante aprenderá sozinho o que o mestre ignora, se o mestre acredita que ele o

pode, e o obriga a atualizar sua capacidade.

A seguinte questão foi lançada ao entrevistado: E o processo de produção em si da TV

Sã, para os participantes, você acha que ele ajuda a pessoa que está em sofrimento? Você acha

que ajuda participar desse processo?

“Ele vai fazendo ela ter conhecimento... Como eu não tinha, porque quando eu entrei

na TV Sã meu conhecimento era quase zero. Hoje em dia, o que eu tenho em conhecimento já

é bem além do que preciso, e as pessoas precisam exatamente se engajarem para poder obter

conhecimento para sua vida pessoal, porque se ela for ter conhecimento, o que vai acontecer

com ela? Ela não vai necessitar ter que fazer nenhum outro tipo de trabalho, só de estar

engajado na TV Sã ela já vai se sentir tão bem que as outras coisas para ela não vai fazer

sentido.”

Elias coloca o trabalho na TV Sã como uma experiência que produz conhecimento e

dá sentido ao seu modo de viver, melhora a qualidade de vida de quem dela participa. Ele

relata seu processo de deixar uma instituição manicomial, em que era medicado e tratado

como doente, e ir para um lugar em que as pessoas não se tratam pelos seus CIDs, nem pelas

suas faltas, mas pelo que elas têm a acrescentar, a contribuir, a provocar, a criar. Essa vontade

foi mobilizadora, no sentido de provocar a vontade e permitir que o conhecimento fosse

acessado e construído.

Quando foi perguntada a Elias sobre a questão da humanização no sistema de saúde,

ele cita uma experiência que vivenciou no hospital São Vicente, de maneira a criticar a

estrutura hierarquizada dessas instituições centradas no médico, estigmatizando a pessoa em

sofrimento como doente sem reconhecer o indivíduo como alguém que também tem

conhecimentos.

Elias lembra que presenciou a cena de um médico destratando um paciente, quando

este lhe dirigiu a palavra. Elias, revoltado, se aproximou da sala onde ocorreu o fato e falou

diretamente ao funcionário do hospital.

“Pedi licença e disse: Doutor, posso falar algo contigo? Ele pegou e falou que eu

poderia. E eu peguei e falei para ele: O senhor não sabe tudo e ainda há de aprender muito

com quem não sabe nada. Foi exatamente isso que eu virei para ele e falei. Por quê? Porque

28

ele se colocou como ‘eu sábio’, ‘sei tudo e você não sabe nada’. Então, esse ‘eu sei tudo’ não

existe. E esse ‘eu não sei nada’, ele já estava com mentira.”

O médico, assim como o professor, é o detentor do saber, aquele que tem uma posição

privilegiada na hierarquia social, por ser alguém que pode explicar o que está acontecendo,

trata como ignorante aquele que padece de algum sofrimento. Rancière (2002) entende a

época das revoluções e a ordem do progresso e das instituições pedagogizantes, que regem

nossas sociedades modernas, como a ordem idêntica à autoridade dos que sabem sobre os que

ignoram.

A instrução foi colocada como forma de reduzir a distância dos primeiros aos

segundos e fornecer aos homens do povo conhecimentos necessários e suficientes para que

pudessem se integrar pacificamente na ordem das sociedades fundadas sob as luzes da ciência

e do bom governo. Neste contexto, Rancière (2002) coloca que o mestre era, ao mesmo

tempo, um paradigma filosófico e o agente prático da entrada do povo na sociedade e na

ordem governamental moderna.

Porém, o teórico acrescenta que quem estabelece a igualdade como objetivo a ser

atingido, a partir da situação de desigualdade, acaba por postergá-la até o fim. E a postura

desse médico reflete justamente a postura do mestre que tenta, na verdade, manter a ordem

instituída da superioridade daqueles que detém o conhecimento científico sobre aqueles cujo

saber popular não é valorizado como tal.

Na entrevista sobre o processo de produção do filme “Família”, Elias fala dos

paradigmas entre saúde mental e família, a partir dos conhecimentos adquiridos no processo

de produção do vídeo. O entrevistado declara sobre sua experiência e reflexões pessoais

válidas para o vídeo:

“Trabalhar com audiovisual, para mim, foi, exatamente, procurar sair de um local que

tenha atendimento de restrição à vida humana e passar a conviver com pessoas que dessem

mais atenção para quem estava necessitando de uma convivência melhor para a vida. Fazendo

com que eu tivesse mais envolvimento e recebendo o respeito que precisava. É bem melhor do

que eu tinha com a minha própria família. Isso foi exatamente a fuga que eu encontrei para

poder sair de determinados problemas da minha vida e entrar para uma vida mais social e

aceitável pela população brasileira”.

E continua:

29

“(...) E isso é algo que me dá prazer por quê? Porque eu sinto mais vontade e o prazer

é muito maior... Por quê? Porque eu sinto que aquilo está sendo valorizado por alguém, e não

desrespeitado pelas pessoas como acontece dentro da própria família. (...) a superação foi com

tão pouco entendimento que nós temos [que] conseguir criar algo que levou pessoas a

perceber uma crítica grandiosa nos seus próprios trabalhos.

(...) eu preciso dar voz às pessoas para que elas possam desenvolver o seu

entendimento em qualquer área. Eu não posso me fechar e achar que A ou B tem que ficar

fora de um entendimento que eu acho que o conhecimento seja só de X ou Y, ele tem que ser

voltado para todos”.

E ainda:

“(...) Muitas pessoas se prendem ao eu do “eu não consigo”. Podemos falar para essas

pessoas que se prendem a isso que tudo o que vai ser feito é [produzido] coletivamente, e que

ela só precisa ter a participação de vontade de aprender a estar em um coletivo entre várias

pessoas para o seu crescimento. Porque se ela não tiver vontade para estar em um coletivo, ela

não vai ter aprendizado em nada.”

Vemos que o dispositivo do audiovisual funciona como um lugar que legitima o

participante, saindo da passividade e invisibilidade social, para um lugar de autoria e

construção coletiva, onde ele se sente um igual, sente vontade e prazer em produzir

conhecimento. Sobre a comunidade dos iguais, Rancière (2002, p. 104) acredita que:

[...] pode – se, assim, sonhar com uma sociedade de emancipados, que seria uma

sociedade de artistas. Tal sociedade repudiaria a divisão entre aqueles que sabem e

aqueles que não sabem, entre os que possuem e os que não possuem a propriedade

da inteligência. Ela não conheceria senão espíritos ativos: homens que fazem, que

falam do que fazem e transformam, assim, todas as suas obras em meios de assinalar

a humanidade que neles há, como nos demais.

Sobre a proposta do filme “Família”, Elias coloca o seguinte:

“E nós fomos mostrar, ao contrário, que o familiar é algo, que é alguém, que é uma

vítima do serviço e que precisa ser resgatado para poder ensinar ou ajudar ensinar, né? Porque

ele [o participante] tem conhecimentos, a família tem conhecimentos que precisam ser usados,

e não rejeitados pela própria área da saúde que sempre deixa eles de lado na hora que vai

fazer o tratamento da pessoa que tenha algum transtorno. Agora as pessoas estão aceitando,

porque elas sabem que é uma realidade”.

30

Rancière (2002, p.38) afirma que a grande mensagem proclamada por Jacotot, quanto

ao seu método de ensino universal, é “que se pode ensinar o que se ignora e que um pai de

família pobre e ignorante é capaz, se emancipado, de fazer a educação de seus filhos, sem

recorrer a qualquer explicador.” E indicou o meio de se realizar esse Ensino Universal:

“aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto, segundo o princípio de que todos os

homens têm igual inteligência.”

5 CONCLUSÃO

A prática da TV Sã tem como função legitimar o conhecimento dos

frequentadores/participantes da ONG Inverso e TV Sã, na medida em que eles compartilham

suas experiências e a partir delas constroem saber e cultura. O sujeito sai da passividade e

invisibilidade social para um lugar de autoria e construção coletiva, onde ele se sente um

igual, valorizando sua vontade e prazer em produzir conhecimento.

A TV Sã é um exemplo questionador e inovador, visto que rompe com alguns

paradigmas tratados por Foucault, como: a epistemologia naturalística, com a qual deu origem

à psiquiatria e aos manicômios em que a realidade era um dado natural, capaz de ser

apreendido, mensurado, descrito e revelado. Também irrompe com o modelo centrado no

saber médico-institucional, que visa colocar o sujeito entre parentes para ocupar-se da doença.

Foucault mostra como a loucura ganha novos significados, de acordo com a

arqueologia de seu tempo. Entende-se que posturas como a da TV Sã podem promover uma

nova lógica de pensar no sujeito e em sua inscrição sociopolítica no mundo.

Dessa forma, trabalhar com o audiovisual pode contribuir para a autonomia das

pessoas no campo de saúde mental, por lhes permitir sair de uma esfera do privado, de

silêncio e vitimização para uma esfera pública, de convivência e construção coletivas, não

mais ocupando um lugar de exclusão socialmente construída.

A TV Sã, nesse sentindo, atende a proposta de clínica política, que por sua vez rompe

com o modelo de clínica tradicional, reconhecendo a pessoa como sujeito de experiência e

não como doente. Os frequentadores da ONG Inverso e participantes da TV Sã produzem

novos sentidos e modelos de subjetividade na medida em que se tornam autores e produtores

de saberes e práticas.

31

Observa-se que o trabalho do audiovisual promove uma emancipação de cunho

intelectual e coletivo, além da produção de novos significados para a saúde mental, uma vez

que, a exemplo de Elias, um novo campo de conhecimento, de valorização e construção de

saberes foi gerado, promovendo a inclusão de saberes vivenciais na cultura.

A ONG Inverso e a TV Sã contribuem do mesmo modo para a desinstitucionalização

da saúde mental. Tais iniciativas valorizam a convivência, o fazer coletivo e a sabedoria

presente em todo aquele que tenha a simples vontade e o desejo de encontrar e permanecer

com outro ser humano. Rancière, em seu livro “O Mestre Ignorante”, recorda que a igualdade

não se concede, nem se reivindica, ela se pratica, ela se verifica.

Há neste fazer uma conscientização política, que se coloca em prática no momento em

que o participante/frequentador extrapola sua vivência de sofrimento pessoal e familiar e

realiza uma nova narrativa de si. Nisso é possível construir um novo espaço de enunciação

com o material audiovisual, significando não só a transformação do cotidiano daqueles que o

produz, como também um caráter de transformação social, visto sua importância de registro

sócio-histórico sobre a saúde mental no Brasil.

RESUMÉ

L'utilisation de l'audiovisuel entant qui instrument de l'émancipation de la santé

mentale : Un étude de la TV Sã à ONG Inverso Brasilia .

Cet article propose une réflexion sur l'utilisation de l' audiovisuel comme un instrument

d'émancipation en santé mentale, sur la base des productions filmiques de la TV Sã, dans le

cas de la production du film intitulé famille. Ayant comme axe théorique la pédagogie de

l'émancipation des intelligences proposées par Jacotot et par Jacques Rancière dans son livre

Le Maître ignorant, ainsi que l'archéologie de la folie développé dans le livre Histoire de la

folie, Foucault. Le travail est une analyse de la façon dont la pratique de la pédagogie de

l’émmantipation de l’inteligence s’applique dans la production cinématographique du

quotidien en question, les producteurs de la TV Sã, aussi des participants de l'ONG Inverso, et

comment celle-ci s’inscrit dans une pratique de clinique politique.

Mots-clés: Santé Mentale, Audiovisuel, l' Emancipation de l’Intelligence . Clinique Politique.

32

33

REFERÊNCIAS

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ou falsa dicotomia? In: In: RAUTER, Cristina; PASSOS, Eduardo; BARROS, Regina

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por uma prática desnaturalizadora na teoria, na ética, na política In: RAUTER, Cristina;

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História e conceito. História, Ciências, Saúde. Rio de Janeiro, v. 9, n.1, p. 25-59, 2002.

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ANEXO A – ENTREVISTA COM EVA FALEIROS

Roteiro de perguntas:

a. Qual é a proposta da ONG Inverso?

b. Fale um pouco da história da Inverso.

c. O que a mobilizou para trabalhar com este projeto de saúde mental?

d. Qual e a proposta terapêutica da Inverso? Você acredita que esta proposta promove

inserção?

e. Quais são os atuais desafios da Inverso?

f. Atualmente existe um projeto na ONG, a TV Sã. Você acredita que este projeto

audiovisual pode auxiliar na emancipação dos usuários?

g. O que você acredita ser importante para autonomia e emancipação dos usuários?

h. Há mais alguma coisa importante sobre o trabalho da ONG Inverso que não foi

perguntada?

Entrevista com a membro-diretora, Eva Faleiros, realizada no dia 14 de novembro de

2014.

- (Eva): Aquele vídeo “Efeitos colaterais”, a Inverso se transformou no setting. Foi lá o lugar

de criação. Desde decidir o tema, o roteiro, o material que eles produziram, as pessoas que

frequentavam também, né. Então não é uma parceria assim, só formal. Porque no Ceub eles

não tinham espaço. Tinha abertura, mas as reuniões eram na praça de alimentação, muitas

vezes a gente encaminhava pessoas para lá e elas se perdiam. E aí a gente disse: ‘Não, vamos

fazer na Inverso’. E hoje em dia parece que há menos dependência de ilha de edição. Pois

hoje em dia se faz até em computador.

Mas uma das coisas é verificar que compromisso formal foi assinado com o Ceub. Por que?

Porque tem sido uma dificuldade. O Ceub não permite a comercialização desses vídeos. Então

você tem uma produção grande de vídeos, as pessoas ficam pedindo. Nós queríamos por em

todos os serviços e outros serviços, nas televisões, e não se pode. Porque tem esse

compromisso com o Ceub. Então isso é uma das questões fundamentais que tem que ser vista.

Porque primeiro a gente faz para divulgar, é importante divulgar. E em segundo seria uma

fonte de renda pra TV Sã.

Parceria antiga e questão de futuro. Como a inverso tem CNPJ, ela pode entrar em editais.

Porque a TV Sã ela não tem CNPJ para entrar em editais.

a) Qual é a proposta da ONG Inverso?

b) Fale um pouco da história da Inverso.

c) O que a mobilizou para trabalhar com este projeto de saúde mental?

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Olha, isso foi uma coisa acidental. Eu era professora da UnB de Metodologia. Toda minha

vida, em 40 anos, eu trabalhei na área da criança, menino de rua, delinquente, abuso sexual,

bom... tudo. E eu em 92 eu ia me aposentar e realmente me aposentei em setembro. E eu

sempre dizia, porque eu sempre tinha feito muita supervisão, de alunos de profissionais, ‘eu

quero fazer supervisão de profissional’.

E eu acho que lá pelo mês de março-abril, eu fui procurada pelas Assistentes Sociais do

Instituto de Saúde Mental que naquela época quem tinha assumido era a A., que queria mudar

o Instituto e realmente foi uma época muito boa. E eles foram pedir para eu dar supervisão.

Eu disse: ‘Olha, não é a minha área. Eu posso ajudar em termo de metodologia.’ E aí fui. Eu

fiz muita supervisão de profissional. É isso que eu digo que é uma das grandes vantagens da

aposentadoria, abrem – se portas e você conhece novas pessoas, novas áreas.

d) Qual é a proposta terapêutica da Inverso? Você acredita que esta proposta promove

inserção?

Para nós terapia é conviver. E o objetivo é realmente inserção social em condições de ser

aceito pela sociedade. O que eu digo para eles é o seguinte: todos nós funcionamos em uma

sociedade que tem regras. Não é só vocês que não podem chegar quebrando, ou brigando,

não, qualquer um. Então, é questão de ser um cidadão né.

Elas vão se inserindo, mas é um processo. Por exemplo: Tu vai ao cinema, aí eu pergunto

assim: ‘Mas eu posso ir ao cinema?’ A gente sai, vai em exposições, vai... E tem uns que já

foram embora da Inverso que é tudo que a gente quer. É que um dia não exista a Inverso. O

progresso fundamental que eles valorizam muito é não voltar a ser internado.

Nós temos pessoas lá que nunca mais... A maioria nunca mais foi internada. E dar conta de

viver no mundo, né. Por exemplo, fazer um café, se servir, ‘tô com vontade de beber uma

água’, a água tá na geladeira e eles decidem o que vai ser o lanche...

E isso tudo tu não tem em uma internação. Então na internação tu tem o ganho secundário, é

que tu fica em uma situação de bebê. A comida tá pronta, tu não tem que lavar o chão, tu não

tem que varrer, tu tem então esse ganho assim, de autonomia, que é muito importante. E

também de se expressar né, porque eles escrevem muito, muito.

e) Quais são os atuais desafios da Inverso?

Bom, não sei se você está sabendo que nós vamos a Triege. Então, justamente, porque nós

vamos a Triege? Como nós vamos? É que há uns 2 anos atrás, eu recebi o telefonema da Ana,

que tava chegando em Brasília. Ela me disse: ‘Olha, eu morei 24 anos na Itália, eu trabalhei

17 anos com a equipe do basaglia, ela ficou viúva e voltou. E eu tô querendo me envolver

com a saúde mental. Eu vi que tinha um Caps na rodoviária, entrei lá, perguntei e eles me

deram seu contato.’ Aí a Ana se engajou, tá engajadíssima no movimento. Aí, um pequeno

38

grupo de 4 a 5 pessoas, e no fim nós vamos 20. Então, a gente... Eu acho. E agora quando nós

fizemos eleição da diretoria, porque nossa diretoria é um colegiado...

Na diretoria tem eu, o Th. e sempre tem ou um usuário ou um familiar. E é a T., que é usuária,

que está [no colegiado], chegou muito depressiva, voltou a dirigir, fez o curso de história, e

ela tem muita experiência, como auxiliar de enfermagem, de 20 e tantos anos. E aí, quando

houve agora a eleição da nova diretoria nós já vamos fazer a passagem para a Nova Inverso.

Nós vamos ver coisas lá que são diferentes, eles [em Triege] trabalham muito em

cooperativa. Vamos visitar os serviços. E tem um grupo jovem que foi formado lá na Inverso,

e que, a partir do ano que vem, a gente vai fazer uma comissão pra pensar a Nova Inverso.

Está no momento de mudar, talvez vai ser uma cooperativa de profissionais.

- (Fabiana): Quais pontos vocês estão querendo mudar?

- (Eva): Eu acho que essa questão de oficina tá meio esgotada. Eu acho que tem muitas

vantagens, mas a gente quer [mudar] agora. Para nós a oficina, a atividade é um meio, ela não

é um fim, né... Então eu acho que informática vai ter que continuar, mas o que a gente pensa

que a gente vai ver lá também é que eles funcionam em cooperativas. Já não é ‘Eu tô só

fazendo uma coisa para mim me entreter, para conviver.

Lá parece que tem diferentes cooperativas. Tem cooperativa de limpeza, de jardinagem, de

trabalho com tecidos. Eles têm, por exemplo, [e] o pessoal tá muito querendo fazer, um tipo

de um bar, restaurante encontro. [Trata-se de] Cooperativa de profissionais, porque os

profissionais são voluntários. A gente acha que a Inverso pode oferecer cursos, pode oferecer

supervisão. Pode oferecer serviços psicológicos, acompanhante terapêutico. Aí é outro passo.

É sair um pouco. Porque, por exemplo, se a gente tiver um grupo que quer trabalhar com

jardinagem, a gente faz convênio com uma prefeitura de quadra ou uma organização de

serviço, e eles vão estar trabalhando. Porque a gente começou a perceber que a Inverso é um

pouco um lugar de referência.

Por exemplo, nós temos acompanhantes terapêuticos, mas tem pessoas que são acompanhadas

que nunca colocaram os pés na Inverso. Porque eles precisam, nos solicitam, e nunca nem

foram. Nós temos o grupo de familiares. Tem um pai que freqüenta, [e] que o filho nunca foi

na Inverso. Então ela vai oferecer esses serviços, sabe? Então eu acho que ela está no

momento! Três anos, já tem experiência sistematizada, porque quando a gente começa com

modelo teórico, mas a gente não sabe como é essa prática. Mas em 13 anos a gente vai

aprendendo, né. E formamos pessoal, gente jovem. Eu mesma vou ficar só... escrevendo,

frequentando, porque eu tenho 76 anos, vou fazer 77 anos. E tem gente formadíssima

caramba.

Então eu acho que isso que é importante, que as instituições não se cristalizem. Claro que a

gente veio formando, né. Tu tem a prática, foi aprendendo, teve gente que fez mestrado,

doutorado, se produziu muito TCC. Então agora vamos, agora é com vocês. Todos os

estagiários quando chegam lá, eles ficam muito surpresos... ‘Cadê o jaleco?’, “Cadê o arquivo

com os prontuários?’, ‘Cadê as anamneses?’.

39

Então parece no começo até a Inverso era criticada, viu, por esses antigos aí: ‘Mas que porra

é essa? Isso é uma desorganização!’. Mas é porque a gente tem uma linha teórica sólida.

Então nós estamos é construindo essa prática antimanicomial. Porque uma coisa é a teoria,

outra coisa é a prática, e com a participação deles [dos participantes]. É eles que estão

dizendo, ‘Olha, nós não somos usuários, não.’, ‘Não, essa oficina a gente não quer mais.’

Eu acho que tem que ser contemporâneo. Eu valorizo muito essa questão da informática, viu.

Porque é contemporâneo isso. Você quer estar inserido. Então, a inclusão digital faz parte da

inclusão hoje. É uma coisa nova eu... Informática eu entrego é pra jovem, porque eu sou

praticamente analfabeta. Suzana ficou muito surpresa, porque a Suzana entende muito de

informática. Que eles descobriram coisas que eles ensinaram para ela. Então todos os

estereótipos que são ilógicos, que não diz coisa com coisa, que não são capazes de nada, caem

por terra.

Tem um TCC de uma... Ela é até nossa voluntária, ela é Assistente Social, se formou na

Católica, e nós fizemos juntos, junto com a orientadora de lá. O TCC dela, o nome dela é L.

A.. É muito bom, tem lá na Inverso. Lá na Inverso tem uma parte da biblioteca que tem muita

coisa de Saúde Mental, viu.

Uma das coisas que sempre me surpreendeu na Inverso foi que a grande maioria dos

frequentadores, são do sexo masculino e muito pouca, quase nenhuma, sobre a questão do

homem doente mental, que é totalmente da mulher. Porque a mulher socialmente [falando] ela

é doméstica, ela é do [âmbito] privado, o homem é do [âmbito] público. E a mulher sempre

fica em casa fazendo alguma coisa, e o homem, se ele não tem trabalho, um lugar na

sociedade, ele... Como dizia o L.,: ‘O que eu fazia era ir para os bares beber e quebrar tudo,

ou ficar em casa, me masturbando e embebedando...’. E aí a L. se interessou por esse tema.

Ele fica na inatividade e desqualificado, totalmente, não presta pra nada. E ela trabalhou a

questão do lugar. Que a Inverso é um lugar, porque o homem não tem lugar. Qual é o lugar do

homem pô?! O homem não tem lugar. É muito lindo esse trabalho dela.

f) Atualmente existe um projeto na ONG, a TV Sã. Você acredita que este projeto

audiovisual pode auxiliar na emancipação dos usuários?

Eu acho que ajuda, porque desde a pintura do tema... Eles que escolhem o tema, né. Depois o

roteiro, depois as diferentes atividades que tem né. Então ajuda porque a produção é deles. É

um trabalho coletivo e mesmo entre eles não pode ter preconceito. [Por exemplo] ‘Fulano não

pode... Fulano não pode participar!’ ‘Uai, porque que não pode participar?’, ‘Porque eu tenho

dificuldade com fulano’. Pera lá, pô! Não é esse o princípio da Inverso. Porque nós nunca

dissemos em oficina nenhuma que tu não pode participar. Tu é que vai ver se você quer

participar. Tem uns que vão em diferentes oficinas e vê se querem ou não querem.

Porque o quê que as pessoas querem? Elas querem criar. Quando você quis entrar como é que

você estava? Que oportunidade te deram? E ser muito claro, isso aqui é um coletivo. O espaço

é de convivência. É nosso papel de ajudar as pessoas a saírem de um lugar de hostilidade para

40

com o outro de imposição e resistência a se aprimorar, e é um coletivo. E dizer quando isso

acontecer: ‘Você quer que fique um grupo fechado?’ É uma história de vida, e não podemos

tirar a oportunidade de outras pessoas mudarem de trajetória. Dar palavra para eles é

interessantíssimo, por exemplo, (...) perguntar a trajetória da pessoa, ‘O quê que tu era?’, ‘O

quê que tu pensava?’, ‘O quê que tu fazia?’, ‘Como tu te sentia?’.

- E quanto à denominação ‘usuários’? Qual a denominação por eles utilizada, frequentadores

ou participantes?

Foi demanda deles a palavra ‘frequentador’. O que eu acho super significativo isso, porque é

uma questão de identidade. Eles chegam lá tudo doentinho com número de CID. ‘Eu não

quero saber de CID aqui!’, ‘Aqui ninguém tem CID, qual é o teu nome, pô?’ E já vou logo

dizendo eu nem conheço CID. Então é sair desse lugar de doente. E essa é a maior dificuldade

que a gente tem até eles... É como ser artesão, como ser ator né, é completamente diferente.

Isso é emancipação: mudar a sua identidade, cara. E outra coisa que eu acho muito importante

é que eles se denominem, não somos nós. E que critiquem e que a gente tenha abertura para

imediatamente adotar como eles se denominam.

g) O que você acredita que seja importante para autonomia e emancipação dos

usuários?

A gente usa muito as palavras, participação, autonomia, cidadania. Quando houve um curso

do Ministério da Saúde com o I. da UnB – é um curso de Especialização em Saúde Mental,

360 horas, a cada 2 anos, é só pra funcionário – e ele [I.] me pediu para dar um curso dizendo

que ele quer trabalhar com eles, os indicadores de alguns conceitos. ‘Porque tu diz

participação, cidadania o quê que [é] isso? Como é que tu mede?’ E a gente adiantou, viu?

Bastante... Trabalhou em grupo isso. Você vai poder medir.

E eu tive também umas alunas que fizeram TCC sobre autonomia da renda. ‘Você tem

renda?’; ‘Da onde vem essa renda?’; ‘É você que dispõe dessa renda?’; ‘Você está com

tutela?’; ‘Você que está decidindo?’; ‘Quem é que tem o seu cartão?’; ‘Essa renda é uma

mesada, uma aposentadoria, ou um benefício social bom?’. Aí com relação à renda. E a gente

fez também em relação à mobilidade no espaço: ‘Você anda sozinho?’; ‘Você pega ônibus?’;

‘Você tem acompanhante?’; ‘Você dirige o seu carro?’; ‘Você anda sozinho na rua?’. Então

são indicadores... Então é muito importante pensar [nos] indicadores de autonomia, de

cidadania. Meu marido, o Vicente, trabalha muito com a questão de idoso... Então eles têm

uma distinção entre autonomia e independência... Então isso são conceitos que já estão

trabalhados, sabe. Na Saúde Mental são outros indicadores, como a questão de higiene

pessoal.

41

- (Fabiana): O que você acredita ser importante para a autonomia? Você me falou

sobre as questões dos indicadores e também da trajetória, poderia desenvolver um

pouco mais, por favor?

- (Eva): Sim, perguntar: Como é que foi a sua trajetória? Por exemplo, esse rapaz que foi

internado muitas vezes, que ele era dependente de drogas, ele disse aqui na Inverso pra mim é

uma preparação para o mundo. Como é que você se relacionava no hospital psiquiátrico? Com

quem? Não tem palavra, não tem.

Me lembro quando a gente fechou a Clínica Planalto, que as pessoas foram lá pro Instituto de

Saúde Mental, elas queriam que tivesse número na cama. É a questão da identidade com a

questão do nome, não tem apelido. Isso a gente viu muito com adolescente em conflito com a

lei, eles tem nome de guerra, acabou o nome de guerra, é o seu nome. Por exemplo, nós temos

lá o T., que é um homem grande que o povo ficava chamando ele de Toninho, não acabou

com essa história de inho aqui, cara. Então tem que ter atenção do que é no detalhe.

h) Há mais algum ponto importante sobre o trabalho da ONG Inverso que não foi

perguntado?

Na Itália eles trabalharam com políticos para [realizarem] mudanças, trabalharam com

sindicatos... Nossos sindicatos estão cheios de pessoas com problema de Saúde Mental, (...)

Acho importante retomar a importância da luta política. Porque luta política é isso, quando tu

tem força tu avança, quando não tem, tu te retira para se organizar. Não te retira porque atirou

a toalha, não, mas para aumentar a força, para ir pro ataque com força, para aumentar o

campo de atuação. Política é isso, é correlação de forças. E você tem que analisar a

conjuntura. O que é a conjuntura? A correlação de força. Quem é que está com força.

O Aliska era maravilhoso, ele começava sempre com uma luta fácil de ganhar. Porque aí dá

força para tua organização ou para tua articulação. Tu não vai logo querer uma coisa, que não

tem nem estrutura para ser realizado, que tu não tem força nem interesse político. Ele trabalha

com conflito, por exemplo, [os] negros nos Estados Unidos era muito depreciado, teve um

prefeito que chamou eles de comedor de melancia, e eles foram na frente da casa do prefeito e

comeram um monte de melancia e deixaram uma imundície.

Aí você pega o próprio preconceito e o inverte, e o que fica? fica a cena, né. Fica a imagem,

um painel, para pessoa mesmo. E aí, chama imprensa. Ele cria a situação. Primeiro lugar,

[por] que é uma surpresa. Tem que trabalhar com força, um dos princípios, é isso. Do que

aparentemente é uma coisa desfavorável, tu transforma aquilo em algo favorável... Comedor

de melancia. Ninguém vai dizer que negro não come melancia. A ação é coletiva.

Ok , obrigada Eva!

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ANEXO B – ENTREVISTA 1, COM ELIAS BATISTA

Roteiro de perguntas ao participante:

1. Elias, você está na TV Sã desde o início, e participa ativamente desse projeto. O que é

para você a TV Sã?

2. Como começou a TV Sã?

3. Quais as modificações que tiveram nesses anos de TV?

4. Qual a proposta da TV Sã?

5. O que te motivou e ainda te motiva a trabalhar nesse projeto?

6. Você acredita que este trabalho auxilia o usuário de saúde mental? De que forma?

7. O que está faltando hoje nos serviços de saúde e na sociedade para incluir a pessoa em

situação de sofrimento psíquico?

8. Como a sociedade vê o usuário de saúde mental?

9. Você acredita no novo projeto antimanicomial do SUS?

10. O que você acha da luta antimanicomial?

11. Você acredita na clínica ampliada?

12. Você acredita que a TV Sã promove saúde mental?

Entrevista com o membro-fundador da TV Sã, Elias Batista.

1. Elias, você esta na TV Sã desde o início e participa ativamente desse projeto. O que é

para você a TV Sã?

A TV Sã é a forma que pessoas possam expressar exatamente os seus direitos, que estão

sendo violados e precisam ser devolvidos para o seu viver.

2. Como começou a TV Sã?

A TV Sã é um núcleo de comunicação que surgiu exatamente em 2008, com a vinda da TV

Pinel do Rio de Janeiro. Eles vieram para Brasília dar uma oficina no UniCEUB, para que as

pessoas pudessem aprender o que era Saúde Mental, e desenvolver esse papel sobre Saúde

Mental. E foi exatamente nessa oficina que eu fui parar, por intermédio de algumas pessoas

que faziam parte do São Vicente de Paulo.

O desenvolvimento da TV Sã, ele veio primeiro com a construção através da oficina dada pela

TV Pinel, eles nos ensinando como elaborar vídeos. Ficamos em dois locais aqui dentro do

DF. Um na rodoviária e outro no Setor Comercial Sul. Nós fizemos dois vídeos enfatizando o

que seria o aprendizado em Saúde Mental e discriminação. Porque o foco desses vídeos eles

se colocam exatamente nesse patamar. Que nós somos pessoas que, devido o cotidiano, nós

sempre mostramos exatamente os problemas. Quando nós criamos um vídeo, nós mostramos

justamente aquilo que precisa ser melhorado dentro da Saúde Mental.

43

2.1 A oficina durou quanto tempo?

A oficina durou cerca de uma semana.

2.2 Quais foram os momentos dentro da oficina?

Teve um primeiro momento dentro do UniCEUB. Nós ficamos lá cerca de três dias,

conversando, dialogando com o pessoal da TV Pinel, sobre como agir e como criar os vídeos.

Depois que nós dialogamos, nós fomos para [a] prática.

A A. fez um personagem de uma pessoa que estava com um transtorno. O vídeo do Setor

Comercial Sul mostra uma briga de vizinhos, que é o filme “Vizinhos do barulho”. E o quê

acontece? Pessoas querem fazer festas nos seus fins de semana, mas se uma pessoa que tenha

qualquer tipo de transtorno fizer algum barulho em um prédio, que você more, você se

incomoda com o barulho daquela pessoa. Me explica: digamos que você faça uma festa e ache

que está tudo bem. Aí você se incomoda com o barulho dessa pessoa. Você acha que deveria

ser feito algo com que ela se calasse? Ou os direitos não são iguais?

Percebemos que a sociedade precisa aprender muito sobre esse assunto. E precisa conviver

mais com essas pessoas, porque se ela não conviver, ela nunca poderá dizer o que será melhor

para atender essa pessoa quando ela estiver em uma crise. Seja ela convulsiva ou [tenha]

crises de querer se cortar, que é denominado borderline e isso são coisas que eles cometem

normalmente como se fosse uma doença normal. E aí você pensa [por] que uma pessoa chega

a fazer isso... Muitas vezes não é porque ela queira, mas porque ela não está tendo o cuidado

necessário para sua própria vida.

Na rodoviária o filme foi “Para o Além”... Esse vídeo era uma pessoa mostrando que quando

ela tava com um determinado problema, o que acontecia com ela? Ela não queria falar com

ninguém. E por ela não querer falar com ninguém, as pessoas que passavam perto dela

achavam que ela ficava precisando ser levada para um hospital para que ela pudesse ser

consultada. Porque ela estava ficando pirada, tinha que ser levada para o hospital São Vicente

de Paulo, que deveria chamar a polícia... E outras pessoas falam barbaridades, mas depois que

descobriam que aquilo era uma encenação aí voltavam atrás na sua fala.

A gente ficava com dó porque é muita desinformação. Eles não tem [informação]. Ninguém

chega para eles e fala o quê que precisa ser feito para que uma pessoa com determinado

problema seja cuidada com uma atenção devida. Buscou-se mobilizar uma reflexão sobre o

que fazer se uma pessoa entra em crise em um ambiente público.

2.3 Como foi o processo para se fazer os vídeos?

Foi um aprendizado. Foi exatamente eles mostrando para gente como é que filma. Ensinaram

como mexer na câmera, como era para atuar, fazer roteiro, filmar. E no dia da filmagem

deram mais informações. Quem fez a filmagem foi um rapaz que é funcionário do UniCEUB

que trabalha com filmagem. Pois nós tínhamos parcerias do UniCEUB.

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2.4 Quem eram os participantes da oficina?

Alunos de Psicologia, a professora T., pessoas como eles chama atualmente, participantes do

serviço em Saúde Mental, no caso eu, o J., profissionais da saúde participando, a A., que é do

Serviço Social. Ela esteve presente em um dos vídeos. Quando falaram que deveriam levar

uma pessoa para o São Vicente ela não perdoou, ela resolveu falar o que é um Caps, aí

começou a mobilizar a cabeça dele para parar de pensar em manicômio, porque a cabeça dele

era manicomial. No vídeo do Setor Comercial Sul, ela virou para ele e falou... ela não teve

paciência. Como a fala dele era de manter lugares como o São Vicente de Paulo, ela não

gostou, porque a luta dela é justamente contra.

2.4 O que se busca promover com a realização desses vídeos ?

Nós buscamos promover exatamente o conhecimento das pessoas. Porque muitas pessoas não

sabem o quê que é exatamente saúde mental. Elas sabem que existe o São Vicente de Paulo. E

para eles é só o que interessa e é o único serviço que existe no Distrito Federal. Não sabem

que é necessário esses serviços substitutivos, não sabem que é preciso criar Caps em cada

regional aqui no Distrito Federal. Eles não sabem que essas pessoas precisam ser cuidadas ao

ponto das famílias participarem, serem chamadas pela equipe para que eles sejem

conhecedores dos problemas que podem ser resolvidos por eles, por eles ficarem mais tempo

com essa pessoa em casa. Pois ela é quem fica o tempo todo com a pessoa que sofre algum

tipo de transtorno.

2.5 Pela sua percepção o que é a TV Sã para você?

Bom isso nós vamos ter que buscar pontos, pois a TV Sã... Ela no seu princípio tinha um

número grandioso de participantes, principalmente da psicologia. Hoje nós temos cerca de 5 a

6 pessoas. Mas já esteve momento em que só teve duas pessoas, eu e a A... Até ela desistir e

ficar somente eu.

3. Quais as modificações que tiveram nesses anos de TV?

Oficina em maio de 2008... Semana do [dia] 18 de maio criou – se o vídeo. As modificações

foram: no princípio, a TV Sã tinha cerca de 40 pessoas de diversos cursos do UniCEUB.

Quando viemos fazer o vídeo “Efeitos colaterais” na Inverso, [em] 2009; Depois foi feito um

filme da marcha da luta antimanicomial, que vieram pessoas de todo o Brasil, [em] setembro

de 2009 a fim de 2009. Até 2009 tinha 40 pessoas.

Nesses 2 anos nós nos reuníamos no UniCEUB. Tudo o que queríamos fazer tinha haver com

o UniCEUB, pois lá tinha a ilha de edição, tinha câmeras para ajudar na hora das filmagens,

45

pois a gente criava o roteiro e as pessoas iam fazer o que quisessem, seje participar do vídeo,

filmar ou até... Depois que filmou o da marcha, houve uma decadência. A maioria estava no

final do curso e tinha que se preocupar com o Trabalho de Conclusão de Curso e aí não

conseguiam estar ativos. Outros passaram em concurso público.

Você participa, faz por vontade, por coração, pelas pessoas que tenham dificuldade em saúde

mental. Em 2010 teve a produção da marcha do carnaval, em 2011 ainda tínhamos vínculo

com o UniCEUB e fizemos a produção de um DVD com todos os filmes até então produzidos

pela TV Sã.

E depois a ideia era a de promover esses vídeos, apresentando – os. Depois a TV Sã veio para

a Inverso, pois os jovens que vinham dos programas do prisma do UniCEUB, início do

aprendizado de Saúde Mental, eles não querem trabalhar. Ficavam aqui sem fazer nada, eles

queriam só ficar ouvindo história da TV Sã, e TV não é história, é ação. Em 2013 novas

pessoas entraram, e retomamos às atividades com o filme “Família”.

Essa nova configuração a pessoa não faz por obrigação, pois muita gente fez só para constar

para currículo. Nós ficávamos na praça da alimentação do UniCEUB esperando os alunos que

não se mobilizavam para realizar algo. Então sem vínculo então com o UniCEUB, pois você

ficar dependendo de marcar horário com a ilha de edição e dependente de um responsável

para marcar a data para poder usar a ilha de edição, ninguém merece, né.

No UniCEUB nós tínhamos sempre regras a cumprir, nós dependíamos sempre de uma

professora para fazer por nós, tais como, ela que marcava a ilha de edição, pois se não tivesse

influência dela nós não conseguiríamos que a edição fosse marcada um pouco mais rápido,

porque se não fosse assim, não tinha. Agora me explique, como é que eu vou viver tendo que

aparentar ser manicomial da mesma forma que o hospital está taxando as pessoas.

Porque viver desse jeito é manicomial, você ficar dependente. Você ficar dependente, não da

instituição, mas de um professor como um vínculo, pois sem o professor ser um vínculo, a

edição não era marcada com rapidez. Aí me explica como é que tem um relacionamento de

autonomia. Ela dependia de alguém que era influente dentro da instituição.

Aqui na ONG Inverso nós temos poucas coisas, como uma câmera que grava, temos um

computador, que é ilha de edição e nós também fazemos com [que] as coisas funcionem

segundo a nossa vontade. Não é de acordo com a vontade de ninguém.

3.1. Como a TV Sã se encontra hoje?

Ela se encontra com pessoas que queiram participar do projeto sem se preocupar se estão

recebendo notas para ser avaliada por professores. Não são pessoas que estejam como

estudantes preocupadas com avaliação dos professores. No caso da TV Sã as pessoas vem por

vontade própria, não fica taxativo, as pessoas são livres. No dia que não podem – que nem já

aconteceu de eu estar em GO e não poder ir, e querer entregar a chave da Inverso para outro

46

participante e essa pessoa não quis... E eu fiquei bobo, eu fiquei achando assim, que isso cria

uma barreira.

A TV Sã se reúne todas as sextas a partir das 14h às 16h. O projeto que ela está

desenvolvendo hoje é a família. A ideia é de que a família precisa ser tratada para que aja

melhoria na saúde mental, porque sem um tratamento da família, você não vai ter como fazer

com que a família se vincule ao trabalho com essa pessoa que tem transtorno. Ela se afasta

dessa pessoa. Ela vai querer ficar o tempo todo criticando essa pessoa, ou tratá-la com muito

dengo, a ponto dela ser muito mimada e não ter como viver a própria vida, que é uma das

coisas que estraga a pessoa. E isto são coisas que devem ser colocadas para elas.

Estamos trabalhando essa ideia começando pelos profissionais, porque nosso pensamento é

que quem tem conhecimento é exatamente o profissional. O profissional ele sabe tudo o que

estudou, exatamente o assunto, e a equipe ao trabalhar esse aspecto. Ela pode ajudar a família

a entender e fazer com que ela trate com mais humanização o seu filho, para que ele não seje

discriminado perante a sociedade.

Atualmente nós estamos terminando o vídeo sobre família. Ainda falta a fala dos familiares,

porque é a fala deles que vai mostrar exatamente o problema. E eles precisam justamente

falar.

A TV Sã nunca parou. Ela teve um tempo sem produzir filmes, mas sempre com atitudes

antimanicomiais.

4. Qual a proposta da TV Sã?

A TV Sã é um núcleo de comunicação, que a nossa luta é exatamente para fazer com que os

direitos daquelas pessoas que tenham qualquer tipo de transtorno possam ser garantidos

perante a lei. E baseando nisso a nossa proposta é fazer do que está prescrito, e não cumprido,

algo que venha a ser efetivado.

Nós já fizemos documentários, como o vídeo “Me escuta Brasília”, da rodoviária. Nós

fizemos algo que mostrasse os efeitos da medicação no ser humano, que é algo que faz mal, e

as pessoas continuam achando que ganhar dinheiro é só o que basta. Nós somos contrários

justamente com esse tipo de proposta. Nós somos contrários à proposta que venha a fazer da

pessoa um meio de lucro pessoal, nós queremos a pessoa para ser alguém que tenha como

reagir em meio a uma sociedade capitalista e preconceituosa.

Ela tem também a proposta de informar, divulgar em universidades para que os alunos não se

tornem como os médicos, as pessoas que trabalham na área de Saúde Mental. Nós queremos

que tudo seja renovado, e para que tudo seje renovado nós temos como mostrar para eles

conhecimentos. E se a sociedade nos aceitar e quiser aprender sobre o que temos, nós levamos

a ela para ela saber o quê que é, caso seja necessário.

47

Mas nós não forçamos ninguém a requerer aprendizado, por quê? Porque a pessoa, ela

aprende se ela tem vontade, senão é uma pessoa que não adianta querer lutar com essa pessoa.

5. O que te motivou e ainda te motiva a trabalhar nesse projeto?

Exatamente ter como denunciar foi a forma como eu vi o trabalho e me interessei. Por quê?

Porque fui informado. Eu procuro ver e mostrar o que está acontecendo. Não adianta que eu

não fico parado esperando ninguém fazer por mim. Eu vou atrás para tentar solucionar ou

pensar como solucioná – lo.

O que me motiva é ter que ouvir da minha própria família coisas que eu sei que eu não sou. E

eu querer mostrar para elas que eles precisam de entendimento... Só que para eles terem

entendimento eu preciso que a lei seje modificada e seje cumprida. E ao fazer com que essa

lei seje cumprida, eu farei com que eles tenham esse entendimento. (...) Porque eles tratam

como se eu quisesse aparecer, porque tem pessoas que tem esse problema.

Eu quero mostrar para eles que essas pessoas que tem esses problemas, não só elas, mas os

familiares, podem ter o mesmo problema, e se eu não mostrar isso para eles, eles não vão

aprender nunca. Eles não sabem lidar com essas pessoas e ainda tratam com diferencial, ao

ponto delas se sentirem mais mal ainda.

Se eu tivesse conversando com minha irmã, eu não conseguiria conversar rápido e ela estaria

dizendo para eu falar mais rápido e eu falaria mais devagar, ela acha que eu estou falando

lento propositalmente. Sinto falta de respeito, de amor, que ela não me dá. Ela falou: ‘Você só

está nesse negócio que você faz para ficar aparecendo, para você ser melhor do que os outros,

e colocou tanta crítica que aquilo foi pesando em mim, a ponto deu me sentir mal e quando eu

me sinto mal...

Outro dia no movimento, eu falei um pouco mais alto com uma psicóloga, pois ela estava

falando coisas que estava me ofendendo. Aí teve um rapaz que é usuário de álcool e outras

drogas, só que ele não tem conhecimento nenhum, ele tinha vindo visitar aqui, e era a segunda

vez, parece, que ele tinha vindo aqui. Ele frequenta o Caps de Santa Maria, ele falou para eu

calar minha boca, porque a única pessoa que estava fazendo alguma coisa pela Saúde Mental

eram os psicólogos que estavam aqui, e eu não sabia de nada e que eu tinha que ficar calado.

Quando ele falou isso... Aquilo doeu lá dentro, que eu saí daqui de dentro e não suportei... Eu

saí para poder chorar. Porque aquilo ali foi humilhante, porque você ouvir exatamente da

pessoa que você está procurando fazer algo por ela, ela te tratar com discriminação. Só que

por um lado eu entendo que ele não me conheça... E nessa hora eu não agüentei. Eu falei para

eles aqui: ‘Oh, desculpa, mas eu não fico mais nessa reunião!’.

E saí, porque só de lembrar... Olha como meu corpo fica, tremendo, porque isso é algo que

acontece comigo, se eu começo a sentir algo que me fez mal... Aquele sentimento vem e faz

com que meu corpo fique como se eu estivesse alcoolizado. Eu me sinto assim, como se eu

não tivesse valor nenhum, e que tudo que eu estivesse fazendo naquele lugar. E como eu não

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podia partir pro confronto com ele, porque ele não sabia de nada, eu preferi calar e evitar que

ele fosse mais massacrado. Depois alguém falou para ele e ele na outra reunião veio me pedir

desculpa por tudo que me havia falado. A minha irmã, ela não sabe falar, porque o meu pai foi

pai de criação dela, ela coloca toda a culpa de todos os problemas dela no meu pai.

6. Você acredita que este trabalho auxilia o usuário de Saúde Mental? De que forma?

Ela ajuda, por quê? Porque temos exemplo de pessoas que só em ouvir falar sobre a TV Sã

tiveram vontade de querer participar e saber o quê que era e hoje fazem parte. Só pelos

exemplos que nós colocamos para eles. Não foi nada mais nada menos do que isso, por quê?

Você ver exemplo de vida é muito melhor do que você ver exatamente o [seu] eu. Porque o

exemplo de vida você mostra exatamente a capacidade de criação, de participação coletiva

com as pessoas, e quando você coloca o ‘eu’ no meio, você tira as outras pessoas do seu meio,

e elas se sentem meio que sem vontade de querer participar mais.

6.1. E o processo de produção em si da TV Sã para os participantes, você acha que ele

ajuda a pessoa que está em sofrimento? Você acha que ajuda participar desse processo?

Bom, ele [o processo] vai fazendo ela [a pessoa] ter conhecimento, como eu [que] não tinha...

Porque quando eu entrei na TV Sã, meu conhecimento era quase zero, [e] hoje em dia o que

eu tenho em conhecimento já é bem além do que preciso. E as pessoas precisam exatamente

se engajarem para poder obter conhecimento para sua vida pessoal, porque se ela for ter

conhecimento, o que vai acontecer com ela? Ela não vai necessitar ter que fazer nenhum outro

tipo de trabalho, só de estar engajado na TV Sã ela já vai se sentir tão bem que as outras

coisas para ela não vai fazer sentido.

6.2. Além do conhecimento, de que outra forma ela ajuda?

Bom, além do conhecimento ela ajuda a colocar em prática né, porque só o conhecimento em

si, o próprio funcionalismo público tem. Agora a vida pessoal e a prática da vida é que vai

ajudar ela a vencer as barreiras que ela tem no seu dia-a-dia.

6.3. Você pode dar um exemplo de que forma ela te ajudou?

De que forma? Bom, ela me ajudou... No princípio eu era exatamente uma pessoa que foi

deixada no São Vicente de Paulo várias vezes seguida pela própria família. Depois de ser

deixado lá, tive um acompanhamento justamente de uma pessoa, que essa eu não tenho como

esquecer na Saúde Mental, que é a A., pois ela, mesmo como Assistente Social ela procurou

fazer por onde para eu ter um atendimento que não deixava faltar o que eu necessitasse para

não ter tantas crises consecutivas. E buscou com que a minha vida melhorasse já que minha

vida não era junto com minha família.

Eu era sozinho e ainda de favor, e [por] ela conseguir algumas coisas que eu necessitava, eu

consegui ter independência. E a TV Sã foi isso, que ela me deu também, pois, quando eu fazia

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parte da oficina de tecelagem, que é uma oficina do São Vicente de Paulo, foi a A. e uma

terapeuta ocupacional que era diretora das oficinas que me chamou. Ela chamou outras

pessoas, mas como os outros meninos estavam muito medicados e não conseguem, só eu e o

J. tivemos coragem de sair de dentro do São Vicente.

6.4. E vocês foram como? Vocês dois combinaram, pegaram ônibus e foram ou

combinaram com outras pessoas?

A gente já tinha o passe livre (eu tenho 8 passagens por dia). A A. me conseguiu isso,

conseguiu com que eu tivesse o cartão passe livre interestadual, não dá vontade de sair

viajando não? Não... Eu não gosto de viajar muito sabe por quê? Porque o único lugar que eu

fico viajando é para casa de familiares. Eu vou pra Goiânia, depois para Tocantins e depois

para o Ceará. Meu pai não vê eles, eu fui. (...) A A. permitiu esse trabalho de buscar a família

e chegar na TV Sã.

A A. acha que, porque como eu tenho esses benefícios, eu tenho coisas demais e não sei

aproveitar o que eu tenho. Ela acha que eu não aproveito minhas coisas e não fico comprando

roupa nova, comprando isso, comprando aquilo. Eu tenho um salário de mil e poucos reais.

Eu não pago passagem, aí nesse nível é que ela coloca. Que eu poderia ter aquele tanto de

roupa nova, porque o pensamento dela é porque como eu sou homem, sou solteiro eu tenho

que gastar com um monte de roupa pra ficar saindo. Mas metade do meu salário é só de

aluguel, aí o que acontece, ela só faz crítica.

Depois que eu estava lá depois de algum tempo, mudou a terapeuta ocupacional. Aí veio

outra, e o que é que falaram para mim? Falaram pra mim que eu tava muito inteligente. Que

eu não precisava mais ser atendido lá nas oficinas do São Vicente.

O problema deles é o seguinte: eles têm para eles que, se você sabe um mínimo de coisa,

você não precisa de atendimento. E no entanto você fica sofrendo com essa discriminação que

a sociedade coloca. Porque eu ainda sou obrigado a ter que ir lá ainda.

6.5 De que forma então a TV Sã ajudou?

A TV Sã me ajudou fazendo com que eu tivesse coragem para poder reivindicar o que é

direito não só meu. O que me trouxe conhecimento foi a TV Sã. No início eu não conhecia o

movimento. Quando a TV Sã veio para [a] Inverso, aí eu comecei a me engajar também no

movimento pró Saúde Mental.

7. O que está faltando hoje nos serviços de saúde e na sociedade para incluir a pessoa em

situação de sofrimento psíquico?

Responderei em uma palavra: Humanização. E é exatamente a palavra que o pessoal do São

Vicente de Paulo não gosta, por quê? Porque quando eu mostrei o que estava escrito na lei...

A lei 965 do Distrito Federal, ela fala sobre humanização na Saúde Mental, e quando eu falei,

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teve uma pessoa que virou pra mim e disse que aquele nome tava errado, que não podia ter

humanização. Quem disse isso foi uma funcionária do São Vicente, ela disse que não era para

ter aquele nome não. Como uma crítica ao que estava escrito.

Sem humanização o que acontece com eles? Eles não conseguem respeitar o próximo. Eles

não conseguem ver no próximo a semelhança de si próprio. Eles não conseguem ver que essas

pessoas... Não é um problema delas ter uma diferenciação entre um e outro. Eles não

conseguem ver qualidade que é o que devemos olhar nas pessoas. Porque o que devemos

olhar nas pessoas é exatamente suas qualidades, mas eles começam exatamente pelos defeitos.

E aonde é que está a humanização? E olhar essa dificuldade como forma de ajudá-lo e

respeitar a sua falta que eles não tem para com o viver deles. Que não é algo que seje para eles

serem tratados diferenciados, mas sim respeitados, por quê? Porque eles são pessoas

exatamente que são menos produtivos por uma pequena falta, mas são capazes de coisas que

eles, que se dizem capazes, não chegam a conseguir fazer.

7.1 O que você vê no serviço de saúde, na sociedade que você não enxerga humanização?

Em que formas de atuação do serviço de saúde, em que formas de atuação da sociedade

que você identifica que não há humanização?

Quando eu vejo trabalhos em lugares em que deveriam tratar as pessoas com respeito, e eles

os trata exatamente falando alto demais com aquela pessoa, como se aquela pessoa tivesse

que se rebaixar, só por ser alguém que estava recebendo um atendimento. Isso já se torna algo

errado. Uma outra forma de desrespeito que eu vi foi a pouco tempo atrás, dentro do São

Vicente de Paulo, um rapaz não sabia porque ele estava em uma oficina de cartazes, ele estava

mexendo com desenhos, ele não sabia porque ele estava nessa oficina.

E ele foi fazer uma pergunta para a pessoa responsável, só que ele chamou ela de Doutor, e o

funcionário tratou ele com grosseria e eu prestei atenção. Eu estava bebendo água de frente a

porta em que ele estava fazendo o trabalho dele. O menino saiu para fora da sala, pois ficou

chateado; eu, como não tenho nem um pingo de paciência de ver uma pessoa maltratar esse

tipo de gente assim, eu não pensei duas vezes. Quando eu parei de beber água, eu cheguei na

porta e tratei ele da mesma forma que o rapaz tinha feito.

Pedi licença e disse: Doutor, posso falar algo contigo? Ele pegou e falou que eu poderia. E eu

peguei e falei para ele: O senhor não sabe tudo e ainda há de aprender muito com quem não

sabe nada. Foi exatamente isso que eu virei para ele e falei. Por quê? Porque ele se colocou

como ‘eu sábio’, sei tudo e você não sabe nada. Então, esse ‘eu sei tudo’ não existe. E esse:

‘eu não sei nada’, ele já estava com mentira. E eu perdi a minha paciência com aquilo. Porque

a forma como ele tratou o menino eu não deixei. Eu fui lá virei para ele e falei pra ele. Não

gosto.

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8. Como a sociedade vê o usuário de saúde mental?

Bom, ela deixa de ver essa pessoa. Porque ela não quer relação com esse tipo de gente. Ela

quer viver a vida dela e quem quer viver a sua... É como se ela quisesse dizer, ‘que se

exploda!’. Vai viver tua vida que eu cuido da minha. Não me importa a sua vida. Eu tenho

que viver a minha vida. Além disso a sociedade nunca sabe como ajudar uma pessoa que

tenha qualquer tipo de transtorno. E não procura informação. Pra ela a informação só é

naquela área que eu preciso. Porque se eu preciso de um concurso público em uma

determinada área, eu vou estudar para aquilo, o restante não me importa, não vai me fazer

nenhuma falta, não me será útil. Então dali para frente, eu só preciso só viver minha vida e os

outros que se fodam, não tenho que se preocupar com quem tem problema, com quem tem

isso, com quem tem aquilo, eles pensam dessa forma. Pensam que as pessoas são ninguém.

9. Você acredita no novo projeto antimanicomial do SUS ?

Bom, os projetos do SUS... Não que eles não sejem projetos, no papel, bons. Porque no papel

ele é um ótimo projeto. Mas tem uma questão: como eu convivo com as pessoas da área de

Saúde Mental dentro do Ministério da Saúde, vou para as reuniões que tem na área em Saúde

Mental, eu chego, eu não deixo de falar, eu mostro o quê que está errado no que eles estão

falando. E é em âmbito nacional.

O que eu acho errado é os estados ou, no caso o Distrito Federal, não se mover. Porque a

petição é como eles me falam. Ela tem que vir do estado. Ela tem que vir do Distrito Federal

para que eles cumpram com o que precisa ser feito. O Distrito Federal não pede nada para que

faça acontecer projetos que venha a beneficiar a área em Saúde Mental. E nisso fica tudo

parado. Eles fazem de acordo com a petição do estado.

A crítica é o atendimento. Quando a pessoa passa em um concurso público, ela nem saber

para onde vai ela não sabe. Ela é jogada na área de Saúde Mental. Muitas das vezes sem

saber.

O que eu sinto falta em um Caps é equipe, o número de funcionários para equipe é muito

pequeno. E é sempre colocado o médico como o centro. E é algo que nós devemos parar com

essa mania. Porque o médico não é o dono do saber. Ele é apenas alguém que estudou um

pouquinho a mais, mas o que ele sabe e o que outros profissionais sabem é que irão fazer com

que a pessoa tenha uma melhor qualidade de vida. Não vai ser só o saber médico que vai

ajudar essa pessoa.

9.1 Você acha que melhorou os atendimentos na transição dos manicômios para o Caps?

Bom, aí eu discordo. Porque é como eu já falei para o A., ele é da área dos Direitos Humanos.

Não adianta ter aumentado de um para cinquenta e um Caps no Brasil, se a saúde mental não

for trabalhada. Se eles não trabalharem a desinstitucionalização da pessoa dentro da Saúde

Mental, por quê? Porque eles estão transformando em manicômio o Caps. Por quê? Porque o

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médico continua fazendo a mesma prática que nos hospitais psiquiátricos, e isso se torna

manicomial. Isso para a sociedade é ruim.

10. O que você acha da luta antimanicomial ?

Bom, Brasília tem muito conhecimento na área, mas só conhecimento não vai adiantar. Ela

vai ser nula se essa prática não for exercida. Ela se torna vã em uma causa a ser vencida. A

forma que ela poderia colocar em prática é, no mínimo, tentar dialogar com os governantes.

Se não houver acordo, que é o que não está acontecendo, nós partimos para a parte principal,

que é a do Ministério Público. Que a gente não pode deixar que as coisas sejem de acordo

com o que querem, e sim de acordo como que é vigente na lei.

No Brasil não é só um movimento. Você só vê a prática em Minas Gerais, São Paulo, Curitiba

e pelo que me parece é só. Eu fico achando que precisa mais ação. Não adianta ser um

movimento sem ações. Podemos engajar no Ministério Público com ação popular para vencer

as coisas que não existem no Brasil, e se eles não nos dar opção eles vão ter que arcar com as

consequências.

11. Você acredita na clínica ampliada?

Pelo que vejo está muito aquém. Não vejo como propor algo sem antes resolver os problemas

que já existem. Vejo como um meio de tampar buraco que não foi solucionado por outros

meios. Essa autonomia deve ser passada com conhecimento, e sem conhecimento não adianta

que eles não vêm ao serviço de jeito nem maneira.

12. Você acredita que a TV Sã promove Saúde Mental?

Sim, porque nós lutamos justamente para mostrar exatamente o que a maioria deles falam

contrário ao nosso pensamento. Nós mostramos que o serviço não está sendo aderido de

forma capaz de tratar com humanização, nós mostramos que eles precisam de mais

entendimento para humanizar o serviço, e muitas vezes eles até se chocam conosco porque

eles não veem em nós uma crítica. Eles não gostam da crítica e por isso não gostam da TV Sã.

12.1 E para as pessoas que participam, você acha que, participando, ela pode ter uma

autonomia, uma qualidade de vida melhor? De que forma você acredita que ela ajuda as

pessoas que participam?

O processo de participar da TV Sã pode ajudar tanto no processo de ajudá-los a ter

capacitação como entendimento para ter uma vida melhor. Porque ao entender o quê que é

uma causa que é deles mesmos é que eles vão ter vontade de fazer parte e requerer aquilo

como uma meta futura.

Ok, Obrigada, Elias!

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ANEXO C – ENTREVISTA 2, COM ELIAS BATISTA

Entrevista sobre sua “vivência” no processo de produção do filme “Família”.

1. Para você, o que significa trabalhar com audiovisual?

2. Para você foi importante participar da produção do filme Família? Por quê?

3. Nos processos de roteiro, filmagem e edição quais foram os desafios e superações?

4. O que você aprendeu no processo de produção do filme “Família”? O que você já sabia e o

que você ficou sabendo depois?

5. Quais são as qualidades que você percebeu serem imprescindíveis em uma pessoa para a

produção do filme?

6. De que forma o trabalho nesta produção influenciou sua vida?

1. Para você, o que significa trabalhar com audiovisual?

Bom, para mim significa exatamente mostrar os problemas que... É fazer com que pessoas

que necessitem desse tipo de vivência, possa ter dos seus profissionais, um melhor

atendimento para sua própria vida.

Bom o audiovisual significou para mim exatamente o vencimento de um local que me

tratavam como, quer dizer, que me tratavam não, né? Mas que tratam pessoas de forma a fazer

elas acharem que estão sendo em um tratamento para saírem da dependência de um

manicômio e virem trazer elas para a vida.

Eu com o audiovisual consegui me livrar do que era o São Vicente de Paulo e hoje não

necessito de atendimento com relação a oficinas que existem lá dentro do próprio São Vicente

de Paulo. E vim parar na Inverso, porque vi que aquele local não era mais adequado para

quem estava querendo crescer na vida. E precisava lutar por coisas melhores. É fazendo né, a

ter que mostrar para os próprios funcionários daquele local que o pensamento deles com

relação ao atendimento psiquiátrico, e eles tem formação de quem quer tratar o ser humano

com desprezo e voltado só para o pensamento salarial. Eles não pensam no ser, eles pensam

no que eles recebem e eu perdi minha paciência e tive que falar isso dentro do hospital

psiquiátrico.

Esse processo de trabalhar com audiovisual foi vitória atrás de vitória, e não me deixou mais

ter pensamentos fechados para uma vida presa nem que seja relacionada à família, já me

trouxe pessoas que eu vejo gostar de mim só pelo que eu faço.

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Bom, trabalhar com audiovisual para mim foi exatamente procurar sair de um local que tenha

atendimento de restrição à vida humana e passar a conviver com pessoas que dessem mais

atenção para quem estava necessitando de uma convivência melhor para a vida, fazendo com

que eu tivesse mais envolvimento e recebendo o respeito que precisava. É bem melhor do que

eu tinha com a minha própria família. Isso foi exatamente a fuga que eu encontrei para poder

sair de determinados problemas da minha vida e entrar para uma vida mais social e aceitável

pela população brasileira.

É exatamente o quê? Poder sentir que eu possa mostrar coisas que as pessoas não pensem que

sejem desqualificadas, e receber o respeito pelo que eu estou fazendo. E não ficar a vida toda

sendo criticado pelas coisas que para alguns seja sem valor algum, mas que eu receba o

respeito e o amor de muitas pessoas que convivem, né, comigo. Ter pessoas que me respeitam

como uma pessoa que procura fazer algo por eles e me aceita sem ter briga, não me trata com

desfeita.

E isso é algo que me dá prazer por quê? Porque eu sinto mais vontade e o prazer é muito

maior, por quê? Porque eu sinto que aquilo está sendo valorizado por alguém, e não

desrespeitado pelas pessoas, como acontece dentro da própria família.

2. Para você foi importante participar da produção do filme “Família”? Por quê?

Para mim foi prazeroso, porque desde o início ao fim eu fui um dos pontos chaves para

existir. Esse vídeo, na hora da escolha do tema, eu bati na tecla que nós deveríamos estar

mexendo nessa área sobre família. Eu quis que a própria Inverso fizesse parte do nosso

trabalho sobre família, que era o ano todo que a TV Sã iria atuar nesse tema, mas poucos

quiseram dar atenção. Mas mesmo assim nós continuamos no nosso tema, seguimos e

conseguimos criar o vídeo tão esperado por nós. Vencemos esse aspecto e já temos como

mostrar pra sociedade exatamente o que eles precisam aprender sobre o tratamento para uma

pessoa que necessita de ser amada.

Para mim, participar da produção foi mostrar o que é necessário para alguém, pois ela precisa

de afeto, precisa ser amada, e não é se afastando do convívio familiar que você vai destruir o

problema. Você vai causar mais problemas se você afastar aquilo.

Porque muitas vezes a família não tem condições de aprender a cuidar de alguém, isso nós

temos sempre. Mas quando ela quer ser cuidada, ela vai atrás de quem quer mostrar melhor

essa proposição, para ela evitar as crises que acontecem no meio familiar. Mas no caso da

minha, eles não dão o braço a torcer. Eles se acham sempre corretos e querem mostrar isso

para mim como se eu não soubesse nada. Eu sei os problemas que minha família tem, e sei

que eles não estão certos na hora que eles vão querer me prejudicar. Que eu tenho

conhecimento suficiente para eu poder não ter necessidade de ficar sendo apontado o dedo.

Porque se eu não tivesse conhecimento, eu não teria capacidade de participação de um vídeo

55

como esse sobre a família. Eles me acham incapaz de qualquer coisa e acham que eu quero

ser o coitadinho na vida.

Só que um coitado conseguiria criar alguma coisa? Uma pessoa que vivesse a vida

dependente de alguém, criava alguma coisa? Não? E eu provei exatamente ao contrário. E

com base no que eu consigo, muita das vezes as pessoas começam a me criticar, e quando eu

chego próximo das pessoas que eu convivo verdadeiramente, até elas ficam chateadas, por

quê? Porque muitas das vezes eu sou obrigado a sair de próximo deles e querer o convívio de

pessoas que são bem opostas.

Que foi o caso do que minha irmã falou para mim mesmo. Ela falou para mim que amigos

passam e família continua para o resto da vida. Mas se a família continuar sendo como ela

acha que é família, eu acho que ela não é família. Eu acho que ela se torna um inimigo. Neste

momento eu prefiro os amigos, porque eles estão sendo muito mais pessoas que se relacionam

comigo do que a minha família.

3. Nos processos de roteiro, filmagem e edição quais foram os desafios e superações?

Bom, no processo nós tivemos exatamente a parte em que ficamos necessitados de uma única

pessoa. Aquela parte foi a única parte que me deixou sem muita força. Foi a parte a ter que

editar o vídeo. Nós criticávamos juntos, ao mesmo tempo, com relação à escolha do nome. E

ao mesmo tempo nós tivemos essa superação com o tempo né? Montamos uma coisa, mas

chegamos à conclusão que precisaríamos mudar até a questão do próprio tempo, né.

Agora vai nos faltar justamente ter como montar os desenhos que atualmente nós não temos,

né? Porque os desenhos são os principais que o Rui precisa trazer, porque aqui nessa parte, só

ele entende, né?

Na parte de criação do roteiro foi tudo bem. Na parte de desenvolver, teve seu tempo para

fazer determinadas coisas, e por fim acabamos que pensamos ter terminado, mas entramos em

acordo que era do jeito que a gente estava pensando. E precisamos mudar algumas coisas que

era muito aparentemente banal, né, no nosso vídeo.

O roteiro nós tivemos a parte de criação com muita participação, tanto de familiares como de

pessoas que participam aqui da ONG né. Nós tivemos pessoas que tiveram a própria vontade

de participar da execução do vídeo; tivemos que envolver e chamar familiares para poder

participar de depoimentos do vídeo e; tivemos que mostrar os próprios profissionais na sua

execução de trabalho.

Nós tínhamos terminado o vídeo em um aspecto e fomos criticados com relação ao vídeo né.

E com a crítica que nós recebemos, tivemos que montar um vídeo no pensamento que eles

achavam ser contrário ao nosso, mas não contrário ao nosso pensamento. Isso criticando

exatamente o pensamento negativo que eles têm. Tiveram críticas de pessoas que trabalham

no serviço de saúde, dizendo que o nosso vídeo estava sendo muito fechado ao ponto de dizer

que não tinha profissionais que fizesse coisas boas dentro da área da saúde. E nós dentro da

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área da saúde colocamos alguns desses profissionais para dar depoimento sobre essa área de

melhoria com relação ao atendimento à família.

No processo nós tivemos que pensar em algo que [seria] criativo para o desenvolvimento do

vídeo. Tivemos a base dos problemas de familiares, com relação à pessoa que tenha

problemas em Saúde Mental, que foram criadas arbitrariamente, né... Foram coisas que eu

sofri no meu passado, que foi passado no vídeo, só que as pessoas não conseguem perceber

que fui eu quem coloquei a minha vida ali. No vídeo nós tivemos também parte de história de

familiares que foram colocadas. A H. passava muita raiva com relação aos profissionais de

saúde da Clínica X e nós mostramos no vídeo.

A filmagem nós filmamos cada local, nós tivemos uma parte específica, né... Tivemos

filmagem em shopping, filmagem em casa de familiares; tivemos filmagem em faculdade, na

ONG Inverso. Os desafios foi as pessoas lembrarem de fazer falas que tinham a ver com o

roteiro, e a superação foi com tão pouco entendimento que nós conseguimos criar algo que

levou pessoas a perceber uma crítica grandiosa nos seus próprios trabalhos.

Na edição foi poder superar cada um dos problemas que é passado por pessoas que são

familiares ou a própria pessoa que tenha o problema né. A maior dificuldade foi nós não

termos em determinados momentos como retratar o aspecto principal que nós queríamos

como palavras que fugiam em momentos que não podiam fugir. Às vezes não tinha como. Às

vezes fomos obrigados a aceitar certas imagens que viesse no mínimo amenizar o que

acontecia né.

Tipo quando ele não consegue lembrar do nome do diagnóstico. Foi uma parte da gravação

que não tinha como arrumar na edição, então tivemos que aceitar a fala em que ele repetia o

tempo todo é uma receita, é uma receita, é uma receita. Eram situações que já tinham sido

filmadas e não dava para recortar, era o que tinha. Mas o filme funcionou, porque se teve

criticas é porque ele funcionou.

O processo de criação foi algo que nós fizemos tudo junto né... Nós dialogamos em grupo e

fizemos com que as histórias que cada um trouxe fizessem parte de um vídeo que nós

pretendíamos lançar e mostrar sobre os problemas que sofre a família; na área de não terem os

seus direitos prevalecidos com relação aos seus próprios familiares, seus próprios filhos,

porque são deixados à parte. É um trabalho que deveria ser conjunto também entre familiares

e pessoas que tenham algum problema em Saúde Mental.

O processo foi de, sempre em grupo, criar as suas partes e ter opinião formada de: eu preciso

dar voz às pessoas para que elas possam desenvolver o seu entendimento em qualquer área.

Eu não posso me fechar e achar que A ou B tem que ficar fora de um entendimento, que eu

acho que o conhecimento seja só de x ou y, ele tem que ser voltado para todos.

4. O que você aprendeu no processo de produção do filme “Família”? O que você já

sabia e o que você ficou sabendo depois?

Eu não consigo ver assim algo que eu tivesse dificuldade de fazer, a não ser parte da edição

que nós fizemos e ficou um pouco cansativa, né. Mas o que eu sabia era que era algo que

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precisava da coletividade das pessoas para que o vídeo pudesse existir. Precisávamos da

participação de familiares para que o vídeo existisse, porque sem uma família não tinha como

nós mostrarmos um vídeo que ia ficar aparentemente uma brincadeira a nossa apresentação. E

buscar familiares para poder depor, e terem coragem de mostrar a sua dificuldade, é algo que

mostra na realidade o que eles precisam para a sua vivência e que precisamos ter mais amor

para essas pessoas.

5. Quais são as qualidades que você percebeu serem imprescindíveis em uma pessoa

para a produção do filme?

A doação do que você tem para poder fazer, porque, como nós sabemos, o que fazemos não é

algo que ganhamos para poder fazer, e sim algo voluntário e se você não se doar, não tem

como você realizar nada. Além de ter vontade e se querer pessoas envolvidas na nossa área,

[isso] faz com que pessoas que conhecem trabalhos como o que a TV Sã já teve, faz e já fez

possam lucrar exatamente o respeito de muitas pessoas que agem dentro da própria área do

governo.

Muitas pessoas se prendem ao ‘eu’ do ‘eu não consigo’... Podemos falar para essas pessoas

que se prendem a isso que tudo o que vai ser feito é coletivamente e que ela só precisa ter a

participação de vontade de aprender a estar em um coletivo entre várias pessoas para o seu

crescimento. Porque se ela não tiver vontade para estar em um coletivo, ela não vai ter

aprendizado em nada.

6. De que forma o trabalho nesta produção influenciou sua vida?

Bom, aí eu vou voltar exatamente na questão que eu já falei para você. Isso influenciou

porque foi algo que nós fomos, na maioria do tempo, rejeitados por todos né. Nós fomos

pessoas que estávamos fazendo algo que muita gente não tem vontade de querer bater de

frente com aquele assunto, porque é um assunto muito importante, o assunto família. E as

pessoas tem que trabalhar, por quê? Porque como a maioria das pessoas são da área do

funcionalismo público, eles não devem bater de frente com a falta do problema, eles querem

exatamente achar que o familiar é ainda o principal culpado. E nós fomos mostrar ao

contrario, que o familiar é algo; que é alguém; que é uma vítima do serviço e que precisa ser

resgatado para poder ensinar ou ajudar [a] ensinar, né. Porque ele tem conhecimentos, a

família tem conhecimentos que precisam ser usados e não rejeitados pela própria área da

saúde, que sempre deixa eles de lado na hora que vai fazer o tratamento da pessoa que tenha

algum transtorno. Agora as pessoas estão aceitando, porque eles sabem que é uma realidade.

Ok, muito obrigada, Elias!

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