PROCESSO DE MONOPOLIZAÇÃO JURÍDICA NA BAIXA … · conceitos (positivismo conceitual) e um...
-
Upload
hoangquynh -
Category
Documents
-
view
215 -
download
0
Transcript of PROCESSO DE MONOPOLIZAÇÃO JURÍDICA NA BAIXA … · conceitos (positivismo conceitual) e um...
1
PROCESSO DE MONOPOLIZAÇÃO JURÍDICA NA BAIXA
IDADE MÉDIA PORTUGUESA: D. PEDRO I (1357-1367)
SCHIAVINATO, Rodrigo Barbosa (PIC/UEM)
José Carlos Gimenez (UEM)
INTRODUÇÃO
Dentre as características políticas do século XIV, decorreu a unidade de
poder em contraste com a diversidade dos costumes. O elemento unificador era
a instituição, em que um único conjunto de leis englobaria o poder central, as
funções públicas e os costumes. Apesar da Coroa não se opor aos costumes
locais, o poder central estava assumindo progressivamente o papel de última
instância judicial. (KRISTCH, 2002)
Naquele contexto, a justiça foi considerada função do rei, numa época em
que as instituições políticas e econômicas estavam em processo de centralização,
passando do controle senhorial para o controle da máquina administrativa real.
Os soberanos gradualmente passaram a perceber que, além do poder político e
econômico, a justiça era uma forma de afirmar e aumentar a autoridade.
(STRAYER, 1969)
Partindo do geral para o particular, temos no reino de Portugal o reinado
de D. Afonso IV, pai de Pedro I e que antecedeu o governo deste último. O
período ficou marcado pela progressiva centralização da justiça nas mãos da
administração central do reino. (SARAIVA, 1988)
2
O rei D. Pedro I continuou e aperfeiçoou o processo de centralização do
poder jurídico-político. Como representante de uma instituição, o rei deveria
usar o poder a ele concebido para garantir o equilíbrio político da sociedade que
governava, de modo que suas atitudes confirmassem seu papel de árbitro, pois
mesmo suas aptidões pessoais foram consideradas por Fernão Lopes como
quase que sacerdotais. (GUIMARÃES, 2004)
Para Pedro I, as leis deveriam ser mantidas e fiscalizadas, a justiça
deveria ser rápida e as sentenças sempre justas. O rei deveria ser amado e
manter o povo na justiça e no direito. Conhecido como “o justiceiro sem
afeição”, D. Pedro praticava a igualdade no direito e a ninguém perdoava os
erros. Amado pelo povo por suas atitudes enérgicas em relação ao
cumprimento da lei, D. Pedro proporcionava uma imagem de confiança em
relação aos súditos ao revelar a existência de uma instituição preocupada com a
integridade da ordem. Procedendo assim, o povo preferia um rei sádico e cego
na aplicação uniforme da lei a um outro qualquer contemporizador e parcial.
(SOUSA, 1993).
Em teoria, o rei deveria ser o guardião e o defensor da lei, se outros
aplicassem a justiça, apenas na condição de juízes nomeados pelo próprio
monarca. Acontece que na prática, os senhores de terras, ainda detentores de
poder dentro de seus domínios, detinham a função jurisdicional. O processo de
centralização monárquica combateu o poder judicial disperso em diferentes
mãos. (SOUZA, 1993)
O poder judicial era disperso entre o rei, os senhores de terras e senhores
municipais. Essa dispersão era característica dos sistemas políticos feudais, em
que a mistura dos poderes obrigaram os monarcas a lutar pela unificação dos
reinos para melhor concentração de força. (SOUSA, 1993)
Ao analisar os processos de transformações jurídicas em Portugal, em
que os reis vinham tomando medidas para tornar a justiça “pública”, nos
ocorreu de entender o porquê dessas transformações, de como as bases
3
materiais (economia, política, cultura) da sociedade portuguesa se estruturaram
para permitir esta centralização da justiça.
Na época de Pedro I, a ordem assentava-se no medo e o poder político
era identificado com o poder de coerção. A justiça era tônica da política interna
do monarca, que ao punir ele mesmo os crimes, cumpria a função que se
esperava de um rei. Este procedimento fez de D. Pedro I a autoridade e a força
com poderes acima dos clérigos e dos nobres. (SOUZA, 1993)
É preciso ressaltar que o conhecimento das leis em Portugal no período
de D.Pedro I não estava disponível para todas as camadas da população. Como
exemplo temos a profunda dificuldade que os reis portugueses da primeira
dinástica encontraram para criar e aplicar novas leis, essas que a população
tentava impedir, pois se chocavam com as tradições populares. (SOUZA, 1993)
REFERENCIAL TEÓRICO
A linha teórica das instituições e da História política foram as correntes a
explicar o tema proposto. Compactuamos com aspectos da inter-relação
humana em setores como o econômico, político e social, pois ao ter como
pressuposto a idéia de História total, analisamos a instituição jurídica articulada
em uma realidade social. (FERNANDES, 2000)
A História política enquanto caminho a ser seguido foi no intuito de
buscar uma problemática bem definida, abordagem proposta por Marc Bloch e
que deixa de se prender aos acontecimentos como fatos isolados, procurando
maior aprofundamento em seu objeto de estudos. (FERNANDES, 2000)
Apesar do recorte cronológico do trabalho se referir ao rei D. Pedro em
particular, maior importância foi auferida ao coletivo do que ao individual, sem
no entanto deixar de fazer de D. Pedro I um dos pólos da pesquisa. Segundo
Armindo Souza em livro organizado por José Mattoso, a abordagem histórica
que ajuda o historiador é a coletiva, a social e não a individual. (SOUZA, 1993)
4
Nossa preocupação foi com os resultados da prática jurídica concreta.
Segundo Manuel Hespanha, a história das instituições é mais do que a história
das fontes e mais do que a história das leis. A história das instituições deve ser
feita mediante a “observação” da repetição dos fenômenos jurídicos.
(HESPANHA, 1982)
A concepção historiográfica que entende que a justiça pode ser entendida
como simples construção intelectual separada da realidade social, concebe o
direito como um sistema de normas (positivismo legalista), um sistema de
conceitos (positivismo conceitual) e um sistema de valores (jusnaturalismo).
Ambos os sistemas são considerados superiores à realidade social, delegando
um caráter de perfeição à ordem jurídica. (HESPANHA, 1982)
O governante e os juristas não possuem poder suficiente para a criar a
idéia de direito e nem para fixar esta idéia na sociedade. Apesar, ainda cabe ao
soberano criar a idéia de justiça, mas somente aceitação do meio social. A idéia
de justiça, ao contrário do que concebem os historiadores “legalistas” do direito,
não pode ser posta em prática sem a aceitação da sociedade. (BURDEAU, 2005)
Para a justiça funcionar enquanto instituição é preciso que sua idéia
esteja inserida na sociedade e que o poder jurídico se materialize de forma
impessoal na figura do representante. A idéia de direito significa regras
preestabelecidas de organização da vida em comum e não mera construção de
princípios filosóficos superiores. É verdade que muitas leis são interpretações
de conceitos caracterizados como superiores e universais, mas o sucesso da
prática dessas normas só será alcançado a partir do momento que determinada
lei se tornar uma regra social. Uma regra social, para se tornar regra jurídica,
precisa de uma inteligência que a precise e a formule, uma vontade que a
imponha e uma coerção que a sancione. Porém, apenas quem detém o poder de
fato possui condições de tornar determinada norma uma regra jurídica.
(BURDEAU, 2005)
5
(...) para se compreender o que são, para que servem e como funcionam as instituições jurídicas, necessário se torna conhecer os problemas sociais de que elas arrancam, as tensões que à volta delas se geram, o peso relativo dos grupos sociais nelas comprometidos, os valores sociais dominantes (...) É preciso, por outro lado, ter a consciência de que rara é a norma jurídica que resolve uma questão puramente “técnica”; quase todas elas abordam problemas políticos e têm conseqüências também políticas. (HESPANHA, 1982, p.24)
Nesta pesquisa observamos a relativa autonomia da instituição
jurídico/legislativa portuguesa em relação à história social geral. O objetivo da
instituição jurídica é manter a coesão social através da imposição de um
conjunto de regras destinadas a resolver os conflitos entre os indivíduos. A
aplicação da justiça está condicionada pelas instituições jurídicas, portanto, é
necessária a análise autônoma (mesmo que de forma relativa) dessas
instituições. (HESPANHA, 1982)
OBJETIVOS
Este trabalho pesquisou as práticas jurídicas medievais portuguesas no
reinado de D. Pedro I e suas conseqüências políticas na sociedade lusitana. O
reinado de Pedro I foi singular em relação à política jurídica central, em
processo de monopolização e centralização do poder régio em detrimento do
enfraquecimento da nobreza.
Os objetivos consistiram em análises conjunturais com especial atenção
nos estudos das instituições medievais portuguesas. Analisamos a instituição
“justiça” no processo de centralização política que acompanhou o reino de
Portugal. Por outro lado ainda, o estudo pretendeu discutir como a justiça e a
sua aplicação eram apreendidas pelos segmentos da nobreza, do clero e das
camadas mais baixas da sociedade.
Este trabalho pretenderá contribuir com a historiografia existente acerca
do rei D. Pedro I partindo do problema de como a justiça de seu reinado se
6
mostrou na prática, mas não se esquecendo de verificar as construções teóricas
do direito medieval que influenciaram as concepções do rei e dos juristas de sua
época.
Com o intuito de mapear a influência da política jurídica do rei D. Pedro
no processo de monopolização e centralização da casa real portuguesa, esta
pesquisa poderá contribuir nos estudos sobre o período singular da história
ibérica que foram os dez anos em que o rei D. Pedro I governou.
METODOLOGIA
A documentação conhecida sobre o período em diálogo com uma
bibliografia atualizada nos ajudou a formular uma síntese sobre a problemática
levantada. Apesar do reinado de Pedro I ter sido relativamente curto (10 anos),
a documentação reunida e publicada deste período não nos impediu de levantar
reflexões a respeito das opções de governo tomadas por este rei. (PIMENTA,
2005)
Segundo Marc Bloch, no estudo da História devemos transformar a fonte
em documento para, em seguida, transformar o documento em problema.
Seguimos os preceitos deste autor em termos de pesquisa, que consistem na
observação, na crítica e na compreensão mediante hipóteses levantadas perante
a observação dos documentos. (BLOCH, 2002)
As fontes analisadas para a elaboração do trabalho compõem-se de
crônicas, documentos de chancelarias e documentos avulsos publicados em
estudos sobre o tema. Destaque para os livros Cortes Portuguesas: Reinado de D.
Pedro I, Chancelarias Portuguesas, Ordenações Afonsinas e Crônica de D. Pedro I,
documentos que reúnem materiais sobre o recorte temporal apresentado na
pesquisa.
De fundamental importância para o tema se encontra uma edição única
das Cortes de D. Pedro. Os capítulos destas cortes retratam queixas e respostas
régias para as Cortes de Elvas de 1361, que segundo Armindo de Souza, fizeram
7
refletir os antagonismos de grupos concebidos hierarquicamente, pois as leis e
os privilégios lusos coexistiam de forma contraditória. Nas Cortes, o clero, a
nobreza e o povo demonstraram certos descontentamentos em relação à política
régia. (SOUZA, 1993)
Os documentos apresentados nas Cortes de D. Pedro estão divididos da
seguinte forma: clero: 33 artigos; nobreza: 2 artigos; povo: 90 artigos; capítulos
especiais de Coimbra: 39 artigos; de Évora: 8 artigos; de Lisboa: 4 artigos; de
Montemor-o-velho: 6 artigos; do Porto: 15 artigos; de Silves: 8 artigos; de Torres:
9 artigos. (PIMENTA, 2005)
Deve-se ter o cuidado de compreender que os portadores às Cortes eram
porta-vozes dos indivíduos que votavam nas jurisdições de vereadores e,
portanto, não eram imparciais em suas leituras. A crítica a ser feita a estes
documentos revela que esta imparcialidade de representação está
fundamentada no jogo de interesses que perduraram nas Cortes de Elvas de
1361. (PIMENTA, 2005)
Nas Cortes, nem todos estavam representados. Havia descontentamentos
tanto ao nível do clero e da nobreza como ao nível do povo. Fica evidente a
disparidade entre uma realidade romântica acerca do reinado de Pedro I e as
limitações reais que o monarca teve de enfrentar no campo político e jurídico.
(PIMENTA, 2005)
Na consulta de outra fonte, também de volume único, temos a Chancelaria
de D. Pedro I. É através da chancelaria que conhecemos as respostas que o rei foi
emitindo para resolver as questões concernentes às Cortes, como também
respostas para questões dirigidas do povo ao monarca. (SARAIVA, 1988)
Há uma certa distância entre as reclamações emitidas ao rei pelas Cortes
e as respostas régias, pois inevitavelmente houve distorções entre as queixas
chegadas e os diplomas emitidos (pelo rei ou por quem o rei mandou escrever).
8
Carvalho Homem1 dividiu os documentos de forma a facilitar o entendimento
dos assuntos decorridos. (PIMENTA, 2005)
A chancelaria está dividida de forma tipológica, incluindo 14 tópicos.
Para o tema, cabe ressaltar o tópico 10 do grupo tipológico denominado de
Fazenda, que foi a fiscalidade2. Segundo o documento, o monarca cobrou, isentou
ou arrendou direitos que possuía. Este documento é válido nas análises sobre a
relação tributação/centralização que a casa real vinha promovendo no reino
português, sendo mais um instrumento nas políticas jurídicas do reino
português. (PIMENTA, 2005)
O tópico 12 do grupo tipológico Administração Geral, chamado de defesa, é
um documento importante para a análise do processo de centralização e
monopolização da justiça nas “mãos” da casa real controlada pelo rei. Segundo
este documento, foram entregues a alcaides guardas de castelos, mediante
pactos de defesa destes senhores tendo em vista os interesses do rei. Esta
atitude, além de controlar os descontentamentos da nobreza, subordinava esta
classe ao rei. Outro tópico importante do documento foi à autorização sobre
armas de fogo que o rei poderia conceder. (PIMENTA, 2005)
Para finalizar, tem o grupo tipológico denominado justiça, que inclui
sentenças sobre jurisdições e sentenças sobre bens. Ainda no campo jurídico
temos as ordenações, documento em que se distinguem feitos civis e deveres do
rei, servindo para estudos nas relações teóricas e práticas da justiça no reinado
delimitado. As ordenações dão respostas que o povo fez chegar ao monarca.
(PIMENTA, 2005)
Na crônica de Fernão Lopes sobre D. Pedro, fonte narrativa datada de
1434, foram dedicados dois capítulos à temática. O capítulo IV, “da maneira que
el-rei Dom Pedro tinha nos desembargos de sua casa”, e o capítulo V, “De algumas
cousas que el-rei Dom Pedro ordenou por bem de justiça e prol de seu povo”, foram
1 HOMEM, Armando Luís de Carvalho. O Desembargo Régio (1320-1433). Porto, Centro de História da Universidade do Porto/Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990. 2 Chancelaria de D. Pedro I, 1984; p. 272 e 400
9
importantes para a pesquisa, pois revelam o caráter de “justiceiro” que D. Pedro
assumiu enquanto governante. (LOPES, 1967)
As fontes narrativas tiveram importância nestes estudos. Ao analisar um
documento deste tipo, tivemos o cuidado de levar em consideração os
interesses pessoais de quem os escreveu. Segundo Marcella Lopes Guimarães, a
Crônica de D. Pedro é a fonte narrativa de maior importância para se conhecer o
monarca aqui referido. (GUIMARÃES, 2004)
Para a elaboração das crônicas, Fernão Lopes utilizou como fontes uma
documentação arquivista e dados da tradição popular. O autor constatou que as
boas leis do reinado de D. Pedro I deveriam ter a perspectiva de uma prática
cotidiana, só assim para separar estas das “más leis”, que apenas funcionariam
no papel. (GUIMARÃES, 2004)
Na Crônica, 23% do texto tratam especificamente da justiça. É este um dos
assuntos de maior importância do livro e que se prende exclusivamente ao rei
D. Pedro I. Nestes escritos, Fernão Lopes trabalha com uma discussão acerca
dos casos representativos de atuação do rei, assim como a preocupação que o
monarca tinha em relação às leis. (GUIMARÃES, 2004)
Segundo as crônicas, grande parte da intervenção de Pedro I na justiça
devia-se a questões morais, como regras para casados, amantes e clérigos. Há
também argumentações em relação à pena capital, em que o monarca era a
favor. Os textos relacionados à justiça revelam a preocupação não só em relação
às leis teóricas, mas como essas seriam aplicadas na prática. (GUIMARÃES,
2004)
Somente a análise da aplicação do direito pode nos dar uma imagem
“fiel” das instituições no período medieval, pois a distância entre a justiça
legislada e a praticada era grande no período do rei D. Pedro I. As dificuldades
de comunicação e transporte criavam modalidades “clandestinas” de práticas
contrárias à lei, práticas proibidas mas ainda freqüentes entre a população.
(HESPANHA, 1982)
10
Nestas diferenças entre teoria e prática, tomamos cuidados em não
generalizar as intenções jurídicas de D. Pedro I tornando-as como universais.
Importante foi um estudo bibliográfico sobre a realidade social portuguesa para
melhor compreensão das fontes, sempre analisadas de forma crítica.
DESENVOLVIMENTO
Ao estudar o processo de centralização que ocorreu em Portugal na baixa
idade média pelo viés jurídico institucional do rei D. Pedro I e de como a
população portuguesa sentiu na prática a monopolização jurídica por parte da
casa real, começaremos o trabalho elucidando algumas conceitualizações a
respeito da noção de “Estado” que vigorava no período que compreende a
baixa idade média no reino de Portugal.
Na idade média pode-se afirmar que o vínculo político da principal
autoridade detentora do poder e os súditos se estabeleciam por uma noção
concreta de laços pessoais. A pessoa que governava um reino possuía ao mesmo
tempo o exercício e a propriedade do poder. Portanto, falar em “Estado”
medieval é concebê-lo como uma prática em que prevalecia o exercício do poder
político por meio da dependência pessoal. Na idade medieval os laços sociais
individualizados prevaleciam enquanto ordem social. (BURDEAU, 2005)
Diferentemente do que ocorreu na Idade Moderna, a noção de Estado
não se aplica ao período de Pedro I. Segundo Mattoso, no século XIV o Estado
era uma idéia abstrata que não atingia a maior parte da população. Apesar da
nação portuguesa existir de fato, a sua idéia não estava inserida no imaginário
coletivo, de modo que apenas o estrato populacional próximo do poder político
obtinha esta consciência. (SOUSA, 1993)
Aquela ausência de uma vinculação política geral e direta entre o rei, o território do reino e a sua população impediam, portanto, que se falasse, nesta época, de Estado, pois este
11
conceito, tal como hoje é entendido, consiste precisamente num vínculo político único e geral, ligando a população de um território a um centro político. (HESPANHA, 1982, p. 108)
Seria inconcebível a justiça do rei D. Pedro I sem um estudo aprofundado
da realidade histórica da sociedade portuguesa do século XIV. Ao passo que a
justiça foi considerada função do rei, deve-se ressaltar as instituições políticas e
econômicas que no contexto da época se solidificavam ao tempo em que se
centralizavam, passando do controle senhorial para o controle da máquina
administrativa real. Os soberanos gradualmente passaram a perceber que, além
do poder político e econômico, a justiça era uma forma de afirmar e aumentar a
autoridade. Por conseguinte, muitos reis passaram a alargar os seus tribunais
para exercer maior controle sobre os senhores feudais. (STRAYER, 1969)
O princípio da justiça se sustenta em normas morais e jurídicas.
Moralmente, a norma indica o que é “justo”, cujo princípio pode ser tanto uma
regra social como uma lei formulada por um legislador. Juridicamente, o
objetivo social exige que a regra da “justiça” seja obedecida. (BURDEAU, 2005)
Na época medieval a justiça “moral” significava acepção de ordem social
e equilíbrio entre grandes e pequenos. O rei justo era o rei que, através do
mecanismo real, promovia a justiça social, zelava pela paz, punia quem
abusasse dos camponeses e garantia o respeito pela propriedade. A justiça era
por excelência a virtude dos reis, em que o retrato do rei ideal reafirmava a
necessidade de que esse fosse justo.
Na idade média havia uma enorme distância entre o direito legislado e o
direito praticado, fato agravado pelas dificuldades de comunicação, transportes,
pela dispersão social do poder e da força e pelas deficiências políticas e
administrativas dos reinos. Ignorar estes fatores e encarar o conceito de justiça
do período de Pedro I como algo superior à realidade social e, portanto,
separado desta, nos remeteria a idéia de justiça do positivismo e do
jusnaturalismo, doutrinas que descrevem a realidade como momentos
estranhos à essência do direito, em que o conceito de justiça seria apenas o
12
objeto externo da regulamentação jurídica. Na Idade Média as leis escritas eram
consideradas apenas fontes de direito, não sendo necessariamente as mais
importantes. (HESPANHA, 1982)
Para entender melhor o modo de organização do poder político
medieval, devemos destacar a personalização dos vínculos políticos, em que a
fidelidade pessoal se confundia com a dominação política. O direito não era
caracterizado, como hoje, pela generalização, mas pela individualização.
(HESPANHA, 1982)
Analisando o recorte historiográfico da longa duração do sistema feudal
inicial (séc III ao séc XIV) temos o período de formação da estrutura jurídico-
política. As relações abstratas Estado-cidadão, típicas do mundo antigo,
cederam lugar à relação senhor-vassalo. O direito geral foi substituído pelos
costumes locais e pelas normas jurídicas especiais, sem no entanto perder a
influência do direito romano. O caráter público da autoridade (que conhecemos
nos dias de hoje) se confunde com a propriedade, delegando um caráter de
natureza privada ao poder medieval. (HESPANHA, 1982) O poder judicial era
disperso entre o rei, os senhores de terras e senhores municipais. Essa dispersão
era característica dos sistemas políticos feudais, em que a mistura dos poderes
obrigaram os monarcas a lutar pela unificação dos reinos para melhor
concentração de força. (SOUSA, 1993)
As lutas entre o rei e os senhores davam-se tanto por motivos de
afirmação do poder civil (no caso dos embates contra os senhores eclesiásticos),
como por motivos de autoridade central, em que as instituições estatais
poderiam vigorar dentro dos domínios senhoriais, em vista que os senhores
laicos podiam ser controlados em casos matrimoniais ou em casos de violência
material (guerras). Na época estudada não ocorria ainda uma luta entre Estados
ou nações e sim uma luta entre a casa do rei e senhorios rivais, marcando uma
fase em que a predominância era da “iniciativa privada”, fazendo com que
essas guerras estivessem sujeitas à dinâmica social inerente a uma luta entre
unidades que competiam livremente entre si. Tanto na alta como na baixa Idade
13
Média, as relações de dominação entre o rei e a nobreza eram empurradas pela
violência física, pela disputa de terras, poder e domínio. Essas disputas de
poder se configuravam além de questões econômicas, sendo
preponderantemente políticas e jurídicas. (ELIAS, 1990)
A casa real lutava para obter um poder geral que lhe proporcionasse
fazer cumprir um direito comum. Com a centralização da administração, um
código jurídico comum foi sendo estabelecido. Esse direito promulgado possuía
força menor do que o direito consuetudinário, que na época “representava” o
poder de Deus, enquanto que o outro representava o arbítrio do ser humano, ou
seja, leis feitas pelos homens. (ELIAS, 1990)
A política monárquica visava à criação de medidas que tirassem das
mãos da Igreja e da nobreza as funções que cabiam ao monarca e que o
legitimassem, lhe auferindo as autoridades necessárias para o controle das leis e
a aplicação da justiça. A política de legitimação necessita de mecanismos de
poder, como a autoridade, que pode ser considerada a virtude reconhecida a
alguém, pela sociedade, de interpretar e dizer os interesses, caminhos e destinos
dela, sociedade, de modo imperativo, absoluto. (SOUSA, 1993)
Na baixa idade média, as políticas dos reis portugueses vinham em
embates contra o poder da nobreza pela afirmação da autoridade para transferir
os monopólios políticos, jurídicos, sociais e econômicos dos senhores feudais
para a administração central. A coroa passou a exercer seu poder frente às
classes feudais, entre outras coisas, na forma da cobrança de impostos, em que o
aparato jurídico-político deveria fornecer instrumentos que legitimassem esta
função tributária. (HESPANHA, 1982)
Como governante, D. Pedro I apenas cumpriu seu papel de orientação da
vida coletiva, papel que cabia ao rei no período estudado. Como representante
de uma instituição, D. Pedro I deveria usar o poder a ele concebido para
garantir o equilíbrio político da sociedade que governava. Suas tendências
pessoais poderiam influenciar na condução do reino, mas estas estavam
subordinadas às funções que o rei deveria desempenhar.
14
O homem que ocupa o centro deve sempre manter o equilíbrio entre
grupos interdependentes que se contrabalançam, independentemente de suas
tendências pessoais. (ELIAS, 1990)
Os governantes podem influenciar a idéia de direito; o conhecimento que têm dos problemas da vida política, o cuidado que devem ter com o bem comum do grupo criam-lhes um dever de esclarecer a opinião pública, de fazê-la compreender a necessidade de certas medidas que, à primeira vista, pareceriam indesejáveis e, assim, rever a idéia de direito aceita. (BURDEAU, 2005, p. 44)
D. Pedro I estava assentado numa estrutura de poder cuja observação
histórica nos fornece as bases de que o rei (governante) possui um poder que
permanece estável, estando este (poder) acima da figura de quem o exerce.
(BURDEAU, 2005) No reino de Portugal, a totalidade do poder não estava
concentrada na pessoa do governante, pois o poder central não deixa de possuir
a própria autonomia, independentemente do uso que o governante faz dela.
O reino de Portugal ainda não possuía uma constituição compreendida
como nos tempos modernos, mesmo assim, o governante só poderia exercer a
autoridade que lhe era delegada, autoridade alicerçada pela instituição central.
Apesar do reino português estar em processo de centralização política, o
soberano deveria estar subordinado à lei, não tendo qualificação para agir senão
na medida em que servisse à instituição. As ordenações legislativas da época
eram o mesmo que o estatuto da instituição criadora de legitimidade, fazendo
com que as vontades dos detentores do poder se subordinassem às leis,
fornecendo ao reino a base estável sem a qual a função governamental ficaria a
mercê dos governantes. (BURDEAU, 2005)
O processo de centralização política do reino de Portugal que garantiu as
bases da política jurídica de D. Pedro nos remete ao ano de 1248, época da
chegada ao poder do rei D Afonso III. Seu reinado foi caracterizado pela
acentuação do processo de transformação do reino em Estado, pois havia muito
tempo que o rei deixava de ser apenas um senhor feudal em meio a tantos
15
outros. As máquinas administrativa, fiscal, judicial e legislativa foram
aperfeiçoadas. O rei D. Afonso III orientou seus esforços para a restauração da
estabilidade do reino, de modo que seus principais feitos políticos oscilaram
entre a contenção das agitações sociais, a regularização de determinados
direitos devidos pelo clero e pelos municípios e a organização dos processos
judiciais.
O governo de Afonso III foi marcado por uma abundante produção
legislativa, marcando a edificação de um primeiro ordenamento jurídico-legal.
(HOMEM, 1999) Até este vigente rei a justiça do reino, de caráter privado, sofria
influência da nobreza senhorial. D. Afonso III promoveu mudanças na relação
central com os tribunais locais, em que os súditos da Corte passaram a poder
apelar contra estes exercendo maior contato da “máquina do rei” com a
população local dos senhorios. (FERNANDES, 2000)
A política de fortalecimento da monarquia de D. Afonso III descontentou
setores do clero, pois o processo de centralização política não pôde conceder os
privilégios que este reivindicava, como isenção dos tributos extraordinários
exigidos pelo rei a todas as ordens. As promessas de submissão do reino ao
papa não se verificaram na prática e constantemente se apresentavam queixas
do clero português a Roma. (FERNANDES, 2000)
O rei que sucedeu D. Afonso III foi D. Dinis (1279-1325), que manteve a
política de subordinação do clero ao poder central. Neste processo, em que a
monarquia fortalecida se impunha cada vez mais aos interesses da Igreja, houve
a possibilidade de D. Dinis aperfeiçoar a jurisdição de sua política, cujos
reflexos foram sentidos na prosperidade econômica do reino.
D. Afonso IV, filho de D. Dinis, chegou ao poder em 1325 após uma
guerra civil em Portugal motivada pela sucessão do trono. Os Conselhos,
interessados na volta da justiça, apoiaram o príncipe. As camadas populares
também apoiaram D. Afonso apoderando-se de algumas povoações. O conflito
pela volta da justiça no reino foi um reflexo dos privilégios que o progresso
econômico proporcionou à nobreza. Como a idéia de justo remontava ao
16
equilíbrio entre as classes, a população portuguesa viu-se sufocada pelo
fortalecimento aristocrata e aderiu ao príncipe D Afonso IV. A guerra civil
portuguesa excedeu os limites de uma disputa de sucessão para dividir o reino
pelo clamor da justiça social. (SARAIVA, 1988)
O Estado deve estabelecer uma igualdade na justiça, uma igualdade de direitos. No contexto social da época, isso significa que o Estado deve realizar uma igualdade na defesa dos direitos quer da burguesia (comerciantes) ascendente quer da velha nobreza (...) no real poderio deve haver um único poder e uma única justiça, igual para todos. (COELHO, 1967, p.25)
Foi neste reinado que a justiça progressivamente se centralizou nas mãos
da casa real, pois o aumento do número de juristas na Corte absorvidos de um
espírito centralizador produziu uma vasta obra legislativa que teve grande
influência do direito romano. Os juízes nomeados pelo rei aos poucos foram
substituindo os juízes locais nomeados pelos Conselhos, culminando na
definitiva proibição no regimento dos corregedores da justiça privada, passando
para as mãos do rei as práticas jurídicas. (SARAIVA, 1988)
Na prática, a designação dos órgãos jurídicos se mostrou através da
nomeação pelo rei de juristas, legisladores e juízes, que aliados a uma política
de centralização jurídica, permitiram que a autoridade central pudesse
concretizar a monopolização que almejava.
Uma das faces mais importantes da produção cultural, entre os séculos
XII e XIV, foi indubitavelmente a reflexão jurídica. Armados com a disciplina
fornecida pelo redescoberto direito romano, os juristas não se limitaram a
recuperar conceitos. Repensaram o direito costumeiro, que poderia ser chamado
de lei quando aprovado pelo consenso dos poderes do Estado, assim como
também ordenaram e codificaram as normas comuns e construíram respostas
para problemas novos. (KRITSCH, 2002)
A preocupação com a justiça nesta época era o mesmo que igualdade
jurídica, no sentido de igual tratamento entre as elites e as classes populares. As
17
principais medidas tomadas no governo de D. Afonso IV foram:
A reforma do modo de actuação parlamentar dos deputados do povo (1331); A reforma da administração da justiça (juízes de fora e corregedores - 1331 e 1332-1340); Medidas inovadoras na organização do desembargo régio (1331-1340); reformas da administração concelhia (cerca de 1340); Repressão de abusos senhoriais (1331, 1334, 1335, 1341 e 1343); Medidas sociolaborais (1349). (SOUSA, 1993, p.487)
No governo de D. Pedro I (1357-1367) a máquina judicial foi
aperfeiçoada. Seu governo foi marcado pela centralização da justiça que se
acentuou no reinado de D. Afonso IV. A política continuou com a escolha dos
juízes pelos Conselhos, bem como a proibição da participação dos clérigos nos
mesmos. No plano municipal, o serviço militar obrigatório passou a ser
financiado com o dinheiro dos nobres. Os cavaleiros-vilãos puderam andar
armados e com seus cavalos por todo o reino sob administração do rei. Na
política pelas liberdades civis, nenhum súdito pôde ser preso sem a confirmação
de sua culpa, coibindo assim ações arbitrárias dos detentores da justiça.
(COELHO, 1967)
Em relação à aristocracia, a política de Pedro I se diferenciou da política
de D. Afonso IV. As medidas de D. Pedro se caracterizaram pelas ações de
ponderação perante os nobres. Tal política de “apaziguamento” com a nobreza
teve como finalidade torná-la cada vez mais dependente do poder central.
D. Pedro I deu continuidade a um conjunto de ordenações de enorme
alcance legislativo em relação ao governo de D. Afonso IV. Ambos os
governantes deram provas de uma eficiente atuação legislativa, em que as
práticas jurídicas foram modernizadas para atingir maior articulação do poder
central com os senhores locais e os Conselhos. (PIMENTA, 2005)
Analisando as medidas de seu reinado, podemos discutir como estes
conceitos se traduziram na prática, pois segundo Jacques Le Goff, houve
progresso das práticas e das instituições judiciárias na baixa idade média, fato
que pode ter influenciado na política portuguesa, apesar da dificuldade em
18
estabelecer de forma rígida o quanto o reino de Portugal acompanhou as
mudanças do restante da Europa. (LE GOFF, 1989)
A justiça “pública” estava em estágio avançado no período de D. Pedro I.
Medidas como a adoção do direito romano com as tentativas de tornar os
julgamentos mais rápidos se aliaram ao fato de a “justiça” neste momento estar
sempre buscando almejar a “verdade”. A garantia processual alicerçada em
bases escritas, de forma que as provas documentais se sobressaíssem sobre as
provas testemunhais, foi mais uma evolução observada na estrutura jurídica
portuguesa referente tanto ao reinado de D. Pedro I como aos reinados de D.
Dinis e D. Afonso IV. (CAETANO, 2000)
Os crimes eram julgados na presença do monarca. A imagem que ecoa na
memória historiográfica é a de um rei justiceiro, apoiado pelo povo e que feria
cruelmente os supostos criminosos para lhes arrancar confissões. Segundo
Fernão Lopes: “Pois deste rei achamos escrito que era muito amado de seu povo, por o
manter em direito e justiça, desi boa governança que em seu reino tinha, bem é que
digamos” (LOPES, 1967, p.52)
As crônicas escritas por Fernão Lopes, grande admirador crítico de D.
Pedro I, exaltam a política interna do monarca, destacando a “justiça” e a função
de executor jurídico que este rei exercia. Fernão Lopes estabeleceu uma teoria
do conhecimento racional, em que a justiça foi analisada de forma laica,
revelando certa inspiração nos escritos de Aristóteles. (COELHO, 1967)
No prólogo da obra, o cronista declarou que “a justiça é necessária ao
povo e ao rei, sem ela não há sossego em nenhuma cidade ou reino”. (LOPES,
1967, p.42) Este pensamento revela o pensamento de alma, cabeça e coração do
povo, em que o rei deveria guardar o direito, a verdade, a justiça, a paz e a
concórdia. Para Fernão Lopes, a voz do rei é também vivificante para a lei que
só pode viver por meio dele. O rei deve fazer valer a lei. (GUIMARÃES, 2004)
Baseado nestes princípios, o cronista escreveu as Crônicas de D. Pedro I
em 1434, portanto, após a época em que viveu o soberano. Segundo Fernão
Lopes, D. Pedro I exigiu imparcialidade dos juízes no reino português, como
19
também os aconselhou a fugir da cobiça para não cair em corrupção. Em época
marcada por transformações jurídicas, não era difícil de imaginar que alguns
procuradores utilizavam práticas contrárias à política “justa” e em benefício do
povo que o rei D. Pedro I acreditava, pois segundo o cronista, os juízes
“prolongavam os feitos como não deviam” e “levavam de ambas as partes, ajudando um
contra o outro”. (LOPES, 1967, p. 54) Nas crônicas de D. Pedro I, não é possível
desvincular a obra “científica” do autor com suas concepções ideológicas, em
vista que Lopes defendia os interesses do Estado português. No que tange à
justiça de D. Pedro I, escreveu Fernão Lopes:
Amava muito de fazer justiça com direito e assim como quem faz correição andava pelo reino; e visitada uma parte não lhe esquecia de ir ver a outra (...) Foi muito mantedor de suas leis e grande executar das sentenças julgadas (...) cá não achamos enquanto reinou que a nenhum perdoasse morte de alguma pessoa nem que a merecesse por outra guisa, nem lhe mudasse em tal pena por que pudesse escapar a vida. (LOPES, 1967, p.46)
Fato significativo no reinado de Pedro I foram as Cortes de Elvas, em que
discussões sobre a necessidade de se voltar ao direito estabelecido pelo rei D.
Afonso IV nas Cortes de Santarém são restabelecidas, em vista que D. Pedro I
restringiu o poder dos Conselhos. Nas Cortes de Elvas, o que provocou
divergências entre D. Pedro I e os setores envolvidos foi o estabelecimento da
pena capital aos advogados que interferissem nos Conselhos. Essa medida do
rei reforçou seu papel de árbitro da nobreza, exprimindo uma certa resistência à
mentalidade “burguesa” que se formava em Portugal, pois os Conselhos
queriam maior liberdade dos advogados para que aprendessem “ciência”
visando aumentar a produção no campo. (COELHO, 1967)
Lutas de poder entre o rei e parte da nobreza de um lado e as
organizações municipais de outro deram o tom das Cortes de Elvas, que podem
ser encaradas como momentos cruciais no reinado de D. Pedro I, pois serviram
como termômetro no campo interno da alta hierarquia portuguesa. Apesar das
20
divergências entre os poderes envolvidos nessas Cortes, foi confirmada a
habilidade de D. Pedro I em manejar com o jogo da política e com o jogo de
poderes que permeiam a governabilidade de um reino, justificando a afirmação
de Fernão Lopes de que nunca houve em Portugal dez anos como aqueles em
que governou D. Pedro. (COELHO, 1967)
A frase de Fernão Lopes pode parecer exagerada, pois Portugal já vinha
em um processo de lutas nobiliárquicas visando à centralização política. As
Cortes de Elvas exprimem um período confuso em que fica difícil determinar o
espaço de atuação entre os poderes locais e centrais.
O povo de nível local que não estava perto do centro político seguia
parcialmente o que a lei mandava. A coerção se dava de maneira virtual, ou
seja, a lei era concebida como “ameaça”. É difícil determinar se a justiça local era
antes de tudo uma síntese do direito consuetudinário aliado às influências da
justiça central controlada pelo rei, pois não está bem delimitada a idéia de que
as apelações que se podiam fazer para o soberano eram um direito ou um dever
concedido à população das classes menos privilegiadas socialmente. (DUARTE,
2004)
O povo se queixava da extrema lentidão da justiça, dos custos para se
obter os serviços jurídicos e da “máfia” dos advogados. D. Dinis e D.Afonso IV
tentaram resolver a situação, porém sem sucesso. Segundo uma ordenação de
D. Afonso IV, os vencedores do pleito saíam prejudicados no final,
comprovando que quem ganhava as causas não era quem tinha razão e sim
quem exercia maior poder, fato que desencoraja os súditos a procurarem a
justiça. (DUARTE, 2004)
O grau de instrução e engajamento político dos súditos é que
estabelecerão a forma de dominação do soberano, pois a idéia de direito não
pode ser posta em prática sem a aceitação do meio social. (BURDEAU, 2005)
Como no período a instrução, a cultura erudita e a conscientização
política não estavam ao alcance da população mais baixa, era pequeno o extrato
social que recorria à justiça proporcionada pelo rei. Muitos não sabiam ler e
21
escrever e se apegavam com maior rigores à tradição popular do que às
ordenações jurídicas. As dificuldades de comunicação entre o poder central e os
súditos locais agravavam esta situação. (DUARTE, 2004)
Independentemente das queixas que chegavam à D. Pedro I, este pouco
tinha o que fazer, pois a sociedade portuguesa (como o contexto europeu)
estava divida em ordens moldadas pelas relações de fidelidade. D. Pedro I só
teria condições de governar se acaso obtivesse certos apoios de grupos que
possuíssem o poder. (PIMENTA, 2005)
As relações conflitivas do rei com a nobreza tiveram sua máxima
expressão nas Cortes de 1361. D. Pedro queria manter a relação de dependência
da nobreza em relação ao poder real, concedendo privilégios sem aumentar no
entanto o seu poder, pois os nobres reclamavam da interferência do poder
central em seus domínios, muitas vezes interferindo nas funções que cabiam aos
juízes do rei. (PIMENTA, 2005)
A política de equilíbrio que regia a sociedade encontrou em D. Pedro I
um esforço para afirmar a autoridade do poder régio enquanto força reguladora
dos três poderes. Para impedir o poder da nobreza, o rei impediu a criação de
novas honras e deixou transparecer certa relação de benevolência, em que a
máquina central deixaria de utilizar o poder judicial em terras senhoriais
sempre que precisasse manter o equilíbrio e a dependência dos nobres.
(PIMENTA, 2005)
Portanto, o manejo do rei Pedro I em lidar com as relações de poder da
sociedade portuguesa, sempre com o objetivo final de aumentar o poder central
para monopolizar de fato as práticas judiciárias, tonificaram este curto reinado,
de apenas 10 anos de duração, estes que foram cruciais para a construção do
poder central real, subordinando os diferentes poderes a apenas um núcleo, o
rei, árbitro da sociedade.
CONCLUSÃO
22
Estudar os conflitos entre os poderes que vigoravam na época nos faz
ressaltar os pressupostos teóricos que davam suporte ao monarca. Por fim, é
válido analisar o porquê da função real neste momento estar se laicizando e se
centralizando, como é de suma importância analisar a ideologia que dava
suporte a estas práticas régias.
O rei era o mais alto senhor do território português, imbuído de um
direito natural no qual estavam sujeitos todos os súditos. Estes deveriam exercer
seus deveres perante o monarca em troca do pacto da proteção. Os deveres do
rei basicamente eram a chefia militar, a realização da justiça, a proteção da
Igreja e o desenvolvimento do território. (CAETANO, 2000)
A realização da justiça era uma obrigação fundamental da realeza, de tal modo que o rei que a não cumprisse era considerado indigno da função (...) Fazer justiça é um dever de amplo conteúdo que inclui a paz do rei, a proibição de vinganças, a repressão dos malfeitores e o castigo das injustiças. (CAETANO, 2000, p.207)
Este texto pretendeu enfocar o lado institucional das práticas jurídicas
medievais no período demarcado. Foi mais coerente priorizar a conjuntura
política da época do que conceituar sua estrutura. Mas isso também não
significa que o conceito de justiça medieval não tenha tido sua importância, pois
os reis usaram de bases teóricas para legitimar suas práticas.
É válido o estudo que compreende o final da Idade Média, época
marcada pela centralização política e pela mudança para uma mentalidade de
caráter “burguês”. As transformações deste período fizeram refletir por muitos
séculos na Europa e, ainda hoje, não há diferenças significativas nas
demarcações políticas da Península Ibérica em relação ao período
compreendido em nossa pesquisa.
REFERÊNCIAS
23
BURDEAU, Georges. O Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2005. CAETANO, Marcelo. História do Direito Português. 4ed. Lisboa/São Paulo: Ed. Verbo, 2000. CHANCELARIAS PORTUGUESAS. D. Pedro I (1357-1367). (coord.) MARQUES, A. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1984. COELHO, Antônio Borges. Cronica de D. Pedro I: organização, prefácio e notas. Lisboa: Portugália Editora, 1967. CORTES PORTUGUESAS. Reinado de D. Pedro I (1357-1367). (coord.) MARQUES, A. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1988. DUARTE, Luís Miguel. A Justiça Medieval Portuguesa (Inventário de Dúvidas). Lisboa: Universidade do Porto/Faculdade de Letras, 2004. ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. FERNANDES, Fátima Regina. Comentários à Legislação Medieval Portuguesa de D. Afonso III. Curitiba: Juruá Editora, 2000. GUIMARÃES. Marcella Lopes. Os protagonismos do Cruel e do Cru, antes dos favoritos de Fernão Lopes e Pero Lopez de Ayala. História: Questões e Debates. Curitiba: Editora UFPR, 2004. HESPANHA. Antonio Manuel. História das Instituições: época medieval e moderna. Coimbra: Livraria Almedina, 1982. HOMEM, Armando Luís de Carvalho. Rei e estado real nos textos legislativos da idade média portuguesa. Lisboa: Universidade do Porto, 1999. KRISTSCH, Raquel. Soberania: A construção de um conceito. Imprensa Oficial. São Paulo: FFLCH/USP, 2002. LE GOFF. Jacques. A Bolsa e a Vida: Economia e religião na Idade Média. 2ed. São Paulo: Editora brasiliense, 1989. LOPES, Fernão. Crônica de D.Pedro. Lisboa: Portugália Editora, 1967. PIMENTA, Cristina. D. Pedro I. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005.
24
SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. 12ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1988. SOUSA, Armindo. Realizações. Historia de Portugal: a monarquia feudal (1096-1480). (coord.). José Matoso. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 483- 566. STRAYER, Joseph. As Origens Medievais do Estado Moderno. Editora Gradiva, 1969.