Processos de formação para criadores em dança: o desenvolvimento de habilidades sensório-motoras...

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  • Dana, Salvador, v. 2, n. 2, p. 67-80, jul./dez. 2013 67

    Marila VellosoProfessora do curso de Dana do Campus II da UNESPAR. Professora do sistema Body-Mind Centering. Artista da dana e produtora na rea. E-mail: [email protected]

    Processos de formao para criadores em dana: o desenvolvimento de habilidades sensrio-motoras como aspecto coevolutivo a procedimentos de criao

    Resumo

    Esse texto apresenta como objeto de pesquisa, habilidades sensrio-motoras (NE, 2004)

    entendidas como necessrias ao artista que pesquisa em dana por meio de prticas cria-

    tivas. Parte-se do pressuposto que o desenvolvimento de uma pesquisa artstica em dana

    ocorre como um processo coevolutivo entre os procedimentos selecionados para investigar

    uma hiptese, e as habilidades no corpo como capacidade sensorial e motora que so

    desenvolvidas enquanto se investiga e experimenta. A metodologia se configura por reviso

    bibliogrfica dos autores (NE, 2004) e (THELEN, 1995) e pelo levantamento de algumas

    habilidades que se pautam na experincia artstica e docente da autora. Visa-se estabelecer

    parmetros para a formulao de estratgias de ensino para o criador em dana ao mesmo

    tempo em que enfatizar a importncia da estruturao de projetos e de programas continu-

    ados de formao para este recorte, o que se concluiu como necessrio.

    Palavras-chave: dana contempornea; formao para criadores; habilidades sensrio-mo-

    toras; pesquisa em dana.

    Educational process for dance creators: the development of sensory-motor abilities as an coevolutive aspect of creative procedures

    Abstract

    The present research aims at investigating the sensory-motor skills (NE, 2004) which we

    believe are necessary for artists to study dance through creative practices. It is also based on

    the presupposition that the artistic dance research development is a co-evolutionary process

    between the procedures selected to investigate hypotheses and body skills, mainly sensory

    and motor, developed during the investigation experiences. The research used a bibliograph-

    ic review methodology focusing on two authors, (NE, 2004) and (THELEN, 1995), and a

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    survey of some skills based on the research author artistic and teaching experiences. Its

    main objective is to establish parameters addressed to formulate teaching strategies that

    can help dance creators and, at the same time, emphasize the importance of structuring

    the development of specific projects and programs.

    Keywords: contemporary dance; education for creators; sensory-motor abilities; dance

    research.

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    Introduo

    Dados do Relatrio da Edio 2009-2010 do Programa Rumos Ita

    Cultural Dana que analisou o processo de formao do artista nessa

    rea e na da Msica demonstram, segundo a responsvel Liliana Segnini

    (2011), que a formao em dana no Pas se d por diferentes formatos em

    cursos livres, academias, conservatrios e em cursos superiores de dana

    ocorrendo ao longo da vida dos profissionais. Em Segnini (2013), um dos

    aspectos afirmados o das formas heterogneas de formao para o artis-

    ta, que encontra ao longo de seu percurso profissional diferentes modelos

    e formatos. Sendo que vrios desses artistas partem de outras reas de for-

    mao que no a dana.

    Ento, a formao, tanto a do artista quanto mais especificamente a do

    coregrafo, feita ao longo de vrios anos e se configura por meio de dis-

    tintos formatos de cursos, e, portanto, de contextos e de metodologias hete-

    rogneas. Por um lado, esse contexto de diversidade na formao que usu-

    almente se d ao longo da vida, porm com interrupes nos formatos que

    so distintos, aponta para uma demanda de continuidade em propostas

    pedaggicas especficas direcionadas a quem deseja se formar como criador.

    H escassez1 de formao continuada para esse recorte na dana e de

    estudos acadmicos e de sistematizao sobre como se desenvolvem am-

    bientes, sistemas e (ou) propostas de formao para o criador em dana,

    assim como estudos que sistematizem habilidades que se tornam necess-

    rias conforme vo se transformando os pressupostos para criar em dana,

    ao longo do tempo.

    Sob outro ponto de vista que se aproxima da questo da formao em

    relao ao campo profissional de atuao de artistas, o relatrio (SEGNINI,

    2011) apresenta um indicador que aponta o nmero de ocupados como co-

    regrafos e danarinos no Brasil, que chega a ser 1/3 do nmero de atores

    e diretores, e em relao aos compositores e msicos, esse nmero atinge

    aproximadamente 1/6. Houve um aumento no nmero de ocupados como

    coregrafos e danarinos entre os anos de 2003 e 2007. Isso leva a pensar

    que diversos projetos artsticos e que estimulam a criao em dana, mes-

    mo quando no vinculados a instituies de ensino e (ou) a certificaes,

    tm possibilitado uma capacitao aos interessados em atuar profissional-

    mente como coregrafos/criadores.

    Esta anlise inicial visa apresentar aspectos de um contexto macro so-

    bre a formao para criadores em dana que abarca tanto alguns indicado-

    res quanto uma reflexo sobre ambientes e condies existentes para que

    1 Essa reflexo se restringe formao desse profissional no Brasil sendo importante considerar que em pases como a Frana, a Holanda, a Sucia, a Alemanha e a Blgica possvel encontrar cursos de maior durao dedicados exclusivamente incluindo de graduao formao do criador. Em Amsterdam a School for New Dance Development tem foco central para o coregrafo e para o desenvolvimento de novos modos de criar. Na regio de Paris, o Centre National de La Danse se ocupa de uma responsabilidade com a educao Cultura Coreogrfica. Em Bruxelas, a P.A.R.T.S. organiza um currculo com dois focos: um na formao do artista e danarino e outro na investigao para o trabalho criativo. Sem contar a existncia de inmeros centros coreogrficos na Europa. Quanto a mestrados: h o Programa de Mestrado em Coreografia mantido pelo DOCH da Universidade de Artes de Estocolmo; o Mestrado em Coreografia, pela AHK Amsterdamse Hogeschool voor de Kunsten; o Mestrado em Artes Solo/Dana/Autoral (SODA), pela Universitt der Knste Berlin.

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    este tipo de formao ocorra. O intuito desta reflexo inicial o de enfatizar

    a importncia da estruturao de espaos, de programas, de projetos de for-

    mao e da sistematizao de conhecimentos que so produzidos durante

    processos de criao e na relao ensino-aprendizagem.

    Nesse sentido, o que este texto desenvolve a seguir, parte da experin-

    cia na realizao do Curso-residncia em dana contempornea de carter

    investigativo,2 realizado em 2013, e interessa considerar que do mesmo

    modo como so importantes iniciativas para desenvolver projetos artsticos

    destinados a jovens coregrafos, so tambm relevantes projetos que anali-

    sem e produzam conhecimento sobre como se elaboram e (ou) podem ser

    formulados e conduzidos processos de formao para o artista da dana,

    especialmente o criador.

    Coevoluo como pressuposto para nortear processos de formao para criadores

    A experincia vivenciada no curso-residncia que foi destinado a criadores

    em dana possibilitou a experimentao e refinamento de algumas habi-

    lidades que sero apresentadas no decorrer deste artigo. Cabe considerar,

    que o intuito no o de formular uma receita ou determinar qualidades e

    habilidades mnimas para desenvolver criao em dana, at porque definir

    um formato nico se afasta da ideia de desenvolvimento de uma aborda-

    gem, estilo e esttica pessoal de cada artista a partir de referenciais prprios,

    de particularidades fsicas e de interesses. Porm, ao considerar as mudan-

    as em entendimentos sobre dana arraigados na rea por muito tempo,

    como o da habilidade e domnio tcnico e virtuosismo para o corpo que qui-

    sesse danar bem com treinamentos privilegiando esforos da percia

    exausto parece importante discutir quais habilidades emergem como

    necessrias ao artista que cria e interpreta sua prpria criao. Ou que se

    prope a pesquisar em dana para estruturar uma criao.

    Esta reflexo parece pertinente a partir do momento em que um en-

    tendimento do que criar e danar bem no parece servir ou fazer sen-

    tido a partir de inverses de lgica que acabaram virando de cabea para

    baixo pressupostos para criar e danar. Caberia, portanto, levantar habilida-

    des sensrio-motoras visando avanar em um pressuposto que vem sendo

    considerado por vrios autores3 na rea da dana como a questo da per-

    cepo e da ao e, tambm, das habilidades sensrio-motoras? Existiriam

    habilidades comuns desenvolvidas ou a serem desenvolvidas a artistas

    criadores em dana?

    2 Projeto contemplado pela Carteira Formadores no Rumos Dana, pelo Ita Cultural, em 2013.

    3 Queirz (2012); Greiner (2012; 2013); Santana (2011); Vellozo (2011), entre outros.

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    Mesmo sabendo que criaes em dana no necessariamente se

    apoiam na presena fsica do corpo na cena, este continua sendo o ambiente

    em que se configuram as estruturas de pensamento e de seleo para a cria-

    o. Portanto, como pensar e formular propostas de formao para um corpo

    que produz muitas vezes em si mesmo, e simultaneamente, procedimentos

    e habilidades para criar e danar?

    O pressuposto de que, ao desenvolver procedimentos de criao

    para estruturar uma pea de dana ou coreografia, o artista que cria e dana

    sua prpria criao tambm desenvolve habilidades especficas no corpo.

    O processo de investigar e explorar procedimentos para criar se coadapta

    s habilidades corporais e vice-versa. Isso, partindo do conceito de coevo-

    luo o qual implica a simultaneidade na evoluo entre duas espcies, ou

    no caso, entre dois fatores quando esses tm um processo em comum de

    desenvolvimento e (ou) proximidade relacional.

    Ao se desenvolver um dos fatores como os procedimentos de cria-

    o, ocorrem coadaptaes no corpo que possivelmente iro promover co-

    adaptaes nos procedimentos, ideias e modos de estruturar uma dana.

    Entende-se que h uma reciprocidade e codependncia no processo de evo-

    luo de uma investigao em dana entre o que se configura como proce-

    dimento investigativo e se estrutura coreograficamente, e o que se habilita

    no corpo do artista.

    O corpo coevolui do mesmo modo que o processo de criao intera-

    gindo e provocando ajustes no modo de fazer e de entender esse processo

    como uma rede em construo. Um processo que funciona por meio de

    respostas adaptativas desenvolvendo habilidades sensrio-motoras emergi-

    das de um modo de entender que pode ser considerado conforme (NE

    2004) tanto perceptual quanto conceitual.4 Pode-se agregar, segundo Lakoff

    e Johson (1999, p.20): Se os conceitos forem corporalizados desse modo

    forte como pensamos, as conseqncias filosficas so enormes. O lcus da

    razo (inferncia conceitual) seria o mesmo do lcus da percepo e do con-

    trole motor, os quais so funes corporais.

    Nessa rede de construo, relevante considerar que h um conhe-

    cimento que se produz a exemplo de um sistema dinmico, conforme

    Thelen (1995, p. 3): no o crebro, dentro e encapsulado; ao contrrio,

    o sistema todo incorporado que consiste do sistema nervoso, do corpo, e do

    ambiente... antes, uma estrutura que mutuamente e simultaneamente

    influencia mudanas... antes, eles se desdobram no tempo real de mudan-

    as continuas no ambiente, no corpo, e no sistema nervoso. como se um

    4 Ver mais no artigo de Christine Greiner: Rediscutindo a natureza da percepo, no Caderno Mil Planaltos, de julho de 2012.

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    tipo de conhecimento fosse sendo produzido e no qual essa apreendncia

    de habilidades est continuamente coevoluindo com ele.

    Esse aspecto coevolutivo pode contribuir, portanto, para o estabeleci-

    mento de parmetros para a formulao de estratgias de ensino para o cria-

    dor em dana ao mesmo tempo em que pode ser levado em considerao

    para a estruturao de programas de formao continuados.

    De todo modo, este texto, ainda, se baseia em uma prtica de ensino

    na disciplina denominada Abordagens e Lgicas da Dana5, que aguou

    a necessidade de estabelecer o pressuposto mencionado e, de questionar

    primeiramente quais habilidades emergiam como necessrias quando se

    estimulava o aluno a estabelecer um processo de criao com autonomia a

    partir de uma dana que se conceituava como contempornea e de carter

    investigativo6, baseada em investigao e no levantamento de procedimen-

    tos para tanto.

    Quais propostas pedaggicas e quais habilidades sensrio-motoras

    mais do que apenas pensar em uma ou outra estratgia metodolgica

    poderiam oferecer subsdios especficos e efetivos ao criador ou aprendiz

    na criao?

    Sobre habilitar habilidades

    So vrios os aspectos a serem considerados quando o assunto so habili-

    dades sensrio-motoras. Definindo a partir do referencial proposto por Alva

    Ne (2004) pesquisador da percepo e cincias cognitivas, deve-se consi-

    derar inicialmente a relao entre percepo-ao. Interessa considerar que

    percebermos e agirmos dizem respeito ao que fazemos ou ao que

    sabemos fazer, algo que determinado pelo que estamos prontos para

    fazer e que atualizamos continuamente no tempo, fazendo. Os verbos per-

    ceber e agir do modo imbricado, como prope Ne (2004), habilitam capa-

    cidades e so refinados por exerccio contnuo sensrio-motor.

    Para o autor (2004), as habilidades so responsveis por produzir

    ao perceber-agir o conhecimento sensrio-motor to relevante e que con-

    siste em possuir habilidades prticas. Por isso, o papel fundamental que

    essas habilidades tm em relao s capacidades cognitivas que envolvem

    conhecimento. Para Ne (2004), os conceitos observacionais que so de

    outra ordem so conceitos, porm esses so constitudos, em parte, por ha-

    bilidades sensrio-motoras.

    5 Matria ministrada no curso de Dana da Faculdade de Artes do Paran/UNESPAR pela autora, nos ltimos trs anos e que faz parte do Currculo novo desse Curso.

    6 Nome que mantenho aps conversa com Fabiana Dultra Britto, entre 2005 e 2009, para denominar o perfil de dana desenvolvido no Programa de Iniciao Pesquisa em Dana Contempornea, na Casa Hoffmann Centro de Estudos do Movimento, em Curitiba, naquele perodo.

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    A medida de como essas relaes ocorrem no corpo no ainda pas-

    svel de ser analisada nesse texto por ser um campo de estudos complexo

    e em construo, principalmente por envolver as pesquisas acerca do sis-

    tema nervoso. Porm, para Ne (2004), quando experienciamos algo, a ex-

    perincia se d como se apresentasse um perfil sensrio-motor definido,

    sendo vivenciada como algo cuja aparncia ir variar de modos precisos,

    conforme ela se move em relao a algo ou em como esse algo se move em

    relao a ela. H um domnio prtico implcito desses padres de mudan-

    a que permitem apreciar uma experincia ou objeto de um determinado

    modo que no de outro.

    Aproximando um pouco mais essa discusso de estudos sobre o siste-

    ma nervoso, sabe-se que as atividades corporais tm a funo de desenhar

    nossos circuitos neurais que constroem os padres neurais, o que, segun-

    do Damsio (2009), ocorre em uma interface constante e dinmica com as

    atividades do corpo.

    De um ponto de vista neurolgico, em grande parte, os mapas neu-

    rais so estveis durante toda a vida contribuindo para que a percepo

    seja acurada e confivel. Porm, tambm so constantemente atualizados e

    aprimorados conforme exigem as informaes sensoriais (aquelas que vo

    sendo reconhecidas como informao e com a qual o corpo pode estabele-

    cer contato ou relao) como um estmulo sensorial.

    Do mesmo modo como essas atualizaes ajudam a compreender o

    surgimento de um membro fantasma (RAMACHANDRAN, 2004), essa

    continuidade entre perceber e agir e em se atualizar conforme propomos e

    (ou) vivenciamos situaes, e nos movemos em relao s informaes no

    ambiente, acaba por poder habilitar outras capacidades no corpo. Habilitar,

    contudo, requer um exerccio continuado, inclusive, de refinamento e para

    tanto importante espaos que privilegiem programas de formao volta-

    dos para o desenvolvimento de certas competncias especficas.

    Quais habilidades sensrio-motoras podem ser desenvolvidas em artistas que criam e danam seus prprios trabalhos?

    Partindo da experincia como docente e orientadora de trabalhos de pes-

    quisa prtica em dana, algumas habilidades sensrio-motoras foram con-

    sideradas inicialmente necessrias ao criador que tem como pressuposto

    investigar e levantar procedimentos para criar.

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    Uma primeira habilidade a de se pr em contato e de estabelecer re-

    lao com as informaes que forem selecionadas no ambiente (de ideias

    a procedimentos criativos ou atividades, calor, rudo etc.), pois nossa capa-

    cidade de perceber-agir exercitada no momento em que movimentamos

    nossos sentidos (audio, viso, olfato, paladar, tato, proprioceptores de

    distintas especificidades) pondo em relao o aparato corpo com qualquer

    uma dessas informaes que selecionarmos. Parece que uma habilidade

    de explorao sensorial, espacial, temporal, afetiva, comportamental, mo-

    tora, necessria em alguma medida a um corpo que cria em dana. E

    que pode ser refinada:

    A sensao suavemente integrada com capacidades para pensar e

    para mover; ento, por exemplo, naturalmente viramos nossos olhos a

    objetos de interesse, e modulamos nossas sensaes com movimento

    de um modo que seja responsivo ao pensamento e a uma situao...

    e o estimulo variar conforme voc se move ou ir se mover. (NE,

    2004, p. 6)

    Por esse pressuposto, o corpo pode habilitar uma disponibilidade f-

    sico-corporal (que no apenas de energia para se mover ou tomar inicia-

    tivas), mas de conhecimento sobre modos de se mover e de estabelecer

    relao com um determinado foco de ateno. H que se considerar sob

    esse aspecto, que isso ocorre durante o processo de reconhecimento e de

    seleo das informaes, no sendo dado a priori como um modelo. O que

    significa dizer que h incertezas no percurso de uma pesquisa e explorao

    com a qual o corpo deve saber lidar e que neste texto ser tratada a incer-

    teza como uma qualidade implcita a esse tipo de processo.

    Assim como a incerteza, as qualidades de curiosidade, de especulao,

    de autonomia e de iniciativa sero consideradas importantes para o desen-

    volvimento de um processo de criao. E, portanto, podem ser tomadas em

    considerao no momento de se pensar em refinar habilidades sensrio-mo-

    toras para o criador em dana e no momento de se programar estratgias de

    ensino e de formao.

    Ao mesmo tempo, a percepo a de que algumas habilidades vo se

    habilitando ou sendo exigidas conforme se deseja compreender maneiras

    de se estabelecer uma relao. Isso quer dizer: ao mesmo tempo em que

    no se sabe como a relao ser estabelecida, at porque essa se d expe-

    rimentando e em tempo real (termo melhor delimitado posteriormente),

    existem aspectos da explorao que podem ser exercitados ao longo de um

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    processo de formao. Afinal, nem toda habilidade emerge de uma hora

    para outra.

    Desde movimentos das mos (ou outras partes do corpo) ao explorar

    o toque em um objeto em diferentes planos, quanto da viso para olhar por

    diferentes ngulos carregando o corpo a garganta, o quadril, as vrtebras

    etc. para outros pontos de vista incluindo uma habilidade de dobrar/fletir

    o corpo em diferentes planos espaciais; do mesmo modo como se afastar ou

    mesmo se aproximar do objeto/informao selecionado. Assim, habilitando

    o corpo a explorar por caminhos e posies desconhecidas. Um corpo que se

    habilita inclusive a lidar com a incerteza de at onde pode chegar a cada vez

    que se pe em relao com alguma informao.

    Porm, ao pensar em uma formao para o criador em dana, no

    cabe apenas uma preocupao ou foco em habilidades para ampliar a ex-

    plorao do movimento. Habilidades compositivas parecem ser to neces-

    srias quanto qualquer outra. Sob este aspecto menciona-se a necessidade

    de refinar a habilidade de selecionar informaes durante uma explorao

    do movimento quando se deseja compor e (ou) estruturar uma improvisa-

    o compositiva ou que leve a uma estruturao coreogrfica. Ao mesmo

    tempo em que o corpo estar ampliando suas possibilidades investigativas

    pelo movimento, este ter que em certo momento selecionar, manter e (ou)

    transformar informaes.

    A partir desta demanda, a compreenso de que uma atividade corpo-

    ral no dissociada de uma atividade mental, e mesmo de uma estrutura de

    pensamento, torna esta discusso de ordem mais elaborada. Considerar que

    apenas um exerccio corporal j d conta de atuar em uma estrutura de

    pensamento pode vir a ser to correto quanto pode ser equivocado subesti-

    mar a necessidade de um pensamento associativo que contribua para enten-

    der a estrutura de pensamento em vigor quando se explora em movimento

    ou se deseja exercitar e (ou) desenvolver uma habilidade sensrio-motora.

    Em outras palavras, mover o corpo acreditando que a estrutura de

    pensamento e a do modo de se mover no esto imbricadas pode ser equi-

    vocado. Na experincia com alunos e artistas percebe-se a necessidade de

    associar questes sobre como se move um corpo e estruturas de pensa-

    mento utilizadas para mover o corpo, enquanto se move o corpo. Um es-

    tudo terico e (ou) prtico no garante a compreenso no corpo dos seus

    modos de compreender como se move ou de compreender como associa

    ideias em uma composio. O estudo e pensamento associativo entre uma

    habilidade e outra do que se habilita na fisicalidade e do que se entende

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    no jeito de estruturar uma criao parece ser necessrio caso seja conside-

    rada uma abordagem coevolutiva entre esses mecanismos.

    Estudo este, que cabe ser desenvolvido em um processo de formao

    que considere: direcionamentos visando facilitar o pensamento associativo

    por meio da articulao entre distintos conhecimentos; atividades indi-

    viduais e coletivas em processos colaborativos que contribuem para o re-

    conhecimento de padres perceptivos e de estruturas de pensamento; para

    a problematizao de questes e para o estabelecimento de outros tipos

    de relaes. nesse sentido, que vislumbrar espaos de formao como

    programas artsticos, escolas, programas de graduao e de ps-graduao

    para o criador em dana parece pertinente para oferecer subsdios de for-

    ma substancial e continuada aos artistas que desejam ser criadores e no

    apenas intrpretes. H muito a ser investigado, estudado e habilitado pelo

    criador ao mesmo tempo em que faltam ambientes e programas especifi-

    camente direcionados para esta funo.

    Partindo de um ponto de vista especfico com foco corporal, um dos

    exerccios do coregrafo David Zambrano,7 a partir de uma relao que

    essa autora estabelece e que pode exercitar, em parte, essa habilidade de as-

    sociar, se estrutura por propor a explorao de todo corpo indo em direo

    a diferentes pontos no espao a partir da ponta dos dedos das mos simul-

    taneamente com os olhos (que acompanharo a direo do movimento),

    em um movimento que sempre repete a ao de aproximar os dedos ao

    tronco na altura do corao, e, de retornar para fora, em direo a diferen-

    tes pontos no espao guiados pelas mos acompanhadas pelos olhos.

    O que se sente, quando se exercita desse modo, um movimento que

    explora continuamente um aproximar e afastar do centro do corpo que se

    direciona pela prpria mobilidade dos braos e das mos para infini-

    tos pontos possveis no espao (naturalmente esse exerccio pode ser des-

    dobrado para iniciaes em outras partes do corpo como a ponta dos ps).

    Esse movimento pode carregar o centro do corpo, usualmente centra-

    lizado e estabilizado pela coluna, para outras possibilidades de apreenso

    das informaes do ambiente mudando constantemente a cabea, o olhar

    e o corpo de lugar. Consequentemente, mudando o ponto de vista do cor-

    po para se relacionar com alguma informao selecionada. Isso no caso de

    voc recortar, nesse exerccio, apenas um foco de ateno.

    Porm podemos achar que um danarino ou artista j faz isso muito

    bem simplesmente pelo fato de que sabe danar. Independente da tc-

    nica. Mas aqui a sutileza de saber danar pode nos fazer tropear. No

    significa apenas se mover em direo a, mas uma habilidade mental e

    7 David Zambrano, venezuelano que mora atualmente em Amsterdam coregrafo e educador na rea da Dana. J atuou em 40 pases e trabalhou com mais de 25.000 estudantes. Entende a improvisao como arte e coreografia.

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    corporal de imaginar, de sentir e de perceber outras possibilidades de aces-

    so informao ou objeto selecionado com condies lgicas e fsicas de

    faz-lo, e de inverter situaes a partir do que vivencia e observa; e no mo-

    mento em que experiencia e observa, em tempo real. A mesma habilida-

    de, s que direcionada para a compreenso de uma lgica de pensamento

    quanto a um modo de criar, tambm se faz necessria.

    Por outro lado, e por razes como a necessidade de resoluo e seleo

    do que se faz e por quanto tempo se faz e como se faz enquanto se

    improvisa na explorao ou em cena se faz necessrio aprofundar o enten-

    dimento sobre o conceito de tempo real to comumente utilizado atual-

    mente por artistas e professores da rea. Porm, cabe perguntar: o que coim-

    plica o uso do conceito tempo real nos estudos e exploraes do corpo e do

    movimento em dana e como detonador de procedimentos para desenvolver

    uma criao artstica? Quais parmetros devem ser considerados, partindo

    desse conceito para criar procedimentos e prticas de explorao para a cria-

    o artstica em dana? Quais habilidades se fazem necessrias ao criador-

    -intrprete para saber lidar, com certa preciso, com a imprevisibilidade em

    ter de selecionar alternativas para sua estruturao coreogrfica em tempo

    real enquanto improvisa?

    Quanto ao conceito de tempo real, este utilizado para compreender o

    sistema cognitivo como sistema dinmico que se desdobra por meio de mu-

    danas constantes no ambiente, no corpo e no sistema nervoso. Contempla

    o entendimento de escalas de tempo de ao em que ocorre a elaborao de

    conhecimento ao longo da vida de um indivduo e que tem substancial po-

    tncia durante o desenvolvimento ontogentico, na infncia. Tempo real diz

    respeito escala de tempo de segundos e minutos, porm parte da mes-

    ma dinmica de escalas de tempo de atividades que ocorrem em semanas,

    meses e anos. (THELEN, 1995) Carrega em sua durao, passado, presente

    e possveis escalas de futuro, numa mesma cpsula de tempo e por isso sua

    compreenso na ao danada requer uma espcie de refinamento.

    Cabe ainda questionar: como refinar a habilidade sensrio-motora de

    observar as alteraes que ocorrem em tempo real durante as exploraes

    de movimento e a capacidade de manter o foco para aquilo que se torna

    necessrio no corpo?

    E em que medida habilitar os sentidos e a percepo pode gerar coe-

    rncia como procedimento para refinar o corpo e o movimento quando o

    que se quer investigar na criao provm de entendimentos sobre aspectos

    do Tempo e da Cognio como tempo real? Essas perguntas embasam

  • Dana, Salvador, v. 2, n. 2, p. 67-80, jul./dez. 2013 78

    possibilidades de estudo e do desenvolvimento de habilidades e de propos-

    tas para a formao do criador em dana.

    Outra habilidade levantada durante os estudos da autora a do corpo

    em permanecer por mais tempo em um procedimento de criao. Como

    manter o foco de ateno e a explorao por mais tempo no corpo? Por

    30 segundos, 5 minutos, 15 ou 30 minutos continuamente? Por duas horas?

    Quais habilidades esto em questo quando se deseja permanecer em uma

    explorao de movimento para testar um palpite8 ou efetivamente dar tempo

    para que algo acontea e at mesmo, se transforme no tempo, no movimen-

    to, na sensao, na percepo de que aquela dinmica proposta e testada faz

    sentido? Inclusive, para que outra habilidade seja habilitada no corpo?

    Isso diz respeito a manter um aumento gradual do tempo de per-

    manncia do corpo em uma mesma proposta de explorao ou em um

    mesmo procedimento de criao. Ao observar praticantes exercitando essa

    dimenso de trabalho corporal foi possvel visualizar uma qualidade da

    ateno corporal que se exercita e se torna habilidade e que demanda foco,

    resistncia fsica e mental, engajamento na proposta criativa e certa capa-

    cidade de insistir.

    Outras habilidades vm sendo examinadas e exercitadas pela autora

    ao sistematizar uma proposta pedaggica que abranja vrios aspectos que

    se desdobram da necessidade de articular procedimentos de criao ao de-

    senvolvimento de habilidades sensrio-motoras para o criador-intrprete

    que ao mesmo tempo em que dana/explora, produz seus procedimentos

    de criao.

    Para concluir, enfatiza-se a necessidade de se planejar e instituir pro-

    gramas especficos para o criador em dana. no tempo e por meio de

    estratgias de estudo e de pesquisa, que modos de explorar o corpo, o mo-

    vimento e possibilidades criativas em dana podem se estabelecer coevo-

    lutivamente. Do mesmo modo, necessrio tempo para a emergncia de

    outros modos de perceber, agir e de se relacionar com as informaes sele-

    cionadas para explorar, investigar e compor em dana. Ressalva-se, ainda,

    que os dados apresentados inicialmente neste texto, alm de demonstra-

    rem um aumento no nmero de profissionais artistas da dana, apontam

    para a necessidade da existncia de programas especficos e continuados

    para o criador na rea.

    8 Palpite conforme entende Vera Mantero, artista da dana portuguesa, a ao de especular, formular hipteses de propor ideias para criar. Ver mais no artigo de Velloso (2012): Modos de ver, ler e criar para estruturar um solo.

  • Dana, Salvador, v. 2, n. 2, p. 67-80, jul./dez. 2013 79

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