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Psiquiatra e psicanalista dos mais respeitados da classe médica portuguesa, Carlos Amaral Dias é uma personalidade cativante. Possuidor de uma sólida cultura clássica, tem um percurso de vida cheio. Em entrevista a Homem Magazine explica quem procura hoje a Psicanálise, encanta-se com a fineza da escrita de Freud, revela por que aderiu ao Movimento Liberal Social e confessa a sua predilecção por charutos cubanos. »Protagonistas Prof Amaral Dias 32-35 5/2/07 15:23 Página 32

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Psiquiatra e psicanalista dosmais respeitados da classemédica portuguesa, Carlos

Amaral Dias é umapersonalidade cativante.Possuidor de uma sólidacultura clássica, tem um

percurso de vida cheio. Ementrevista a HHoommeemm MMaaggaazziinneeexplica quem procura hoje aPsicanálise, encanta-se com a

fineza da escrita de Freud,revela por que aderiu ao

Movimento Liberal Social econfessa a sua predilecção por

charutos cubanos.

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Durante a semana,praticamen-te não tem tempo de sabore-ar os Coronas ou os Reserva2005 Hoyo de Monterreyque tanto aprecia. Os charu-

tos são um prazer que exige tempo mas a queo Professor Doutor Carlos Amaral Dias só sepode permitir ao fim de semana. Durante osrestantes dias, neste capítulo, o psiquiatra epsicanalista leva uma vida "espartana",mas de-dica-se intensivamente à clínica. Àssegunda e terça-feiras, recebe os pa-cientes no consultório da Duque deLoulé, em Lisboa, das 8 da manhã àmeia-noite, a quarta,normalmente,édedicada à vida universitária,tambémde forma intensa, das 8 da manhã às11 da noite,à quinta-feira,de novo noconsultório, para leituras científicasou outras, à sexta-feira, manhãs noconsultório, ao sábado à tarde há oprograma de rádio, e, finalmente, sá-bado e domingo são consagrados aler e estudar. Deste horário preen-chido ficou de fora a escrita, mas os22 livros de que é autor confirmamque também precisou de arranjar es-paço na agenda para eles, sejam osdestinados à classe médica (psicote-rapeutas e psicanalistas) ou,nas obrasde divulgação, o público em geral.Pegue-se num título ao acaso: "FreudPara Além de Freud" em dois volu-mes, que mereceu uma edição espa-nhola, já esgotada,e está prestes a sereditado em língua inglesa. O pai daPsicanálise é matéria inesgotável eprazeirosa que faz desfiar um ror dehistórias e sabedorias.O interesse ge-neralizado pela obra do médico neu-rologista,150 anos depois do seu nas-cimento, dá justeza à afirmação de que "Freudse é expulso pela porta, reentra pela janela".Naquela sua obra,Amaral Dias faz uma releitu-ra contemporânea das questões que Freud le-vantou à luz da actualidade. "Era um homemde coragem.Escrevia com uma grande elegân-cia literária,não é por acaso que recebeu,emvida,o Prémio Goethe,que era uma distinçãoliterária.Mas sendo literário,a fundamentaçãopara a compreensão da histeria e neurose de-pressiva, o luto patológico, o masoquismo, sópara dar alguns exemplos, ainda se mantémpouco alterável, outros mudaram muitíssimona Psicanálise."Em síntese, existem "dois" Freud: antes e de-pois de 1920. "A fase de mais fascínio para otempo dele,em que Freud constitui um modeloconceptual e teórico baseado nas perturbaçõesda sexualidade, dizendo que o sintoma é um

conflito entre aspectos sexuais reprimidosque faz remontar à primeira infância,dura atécerca de 1920. Depois disso, Freud vira tudoporque a clínica lhe confirmou que não era as-sim.No lugar da sexualidade aparece a angús-tia, enquanto sinal de perigo, o eu organiza asdefesas perante a angústia e o sintoma sóemerge quando há uma falha de relação entrea angústia e a defesa." O primeiro Freud maissedutor, porque corresponde a uma fantasia

salvística para a humanidade,e o segundo,commais consciência da complexidade do apare-lho mental,sabendo que há questões que têmde ser elaboradas ao longo da vida e o que fazo analista é dar instrumentos para o fazer."Narelação homem-mulher,a sexualidade é talveza relação mais nobre do ponto de vista emo-cional. Portanto, seguramente as disfunçõessexuais continuam a ser um problema com-plexo, com cerca de 40% dos homens e mu-lheres – o que é uma dose substantiva – comdificuldades sexuais."Não existindo hoje o en-quadramento social da época de Freud, so-mando-se o avanço nas neurociências e asdescobertas da genética que passam a elucidarde outro modo a compreensão do "por den-tro" dos indivíduos,o que mudou afinal? "Essasdescobertas não são antagónicas e o mais cé-lebre dos neurocientistas, o Professor Antó-

nio Damásio,o que tem feito ao longo de todaa vida é que Freud tinha razão.A sua obra éuma elaboração do ponto de vista das neuro-ciências das descobertas de Freud do pontode vista psicanalítico."No seu consultório,Amaral Dias pratica psico-drama psicanalítico, que é uma terapia grupal,psicoterapia face a face,a psicanálise enquantotécnica clássica, e a psicofarmacologia. Mas,alerta o Professor, "a psicoterapia contempo-

rânea,onde se incluem os tratamentospsicoterapêuticos e psicanalíticos, nãoé um pronto-a-vestir,é uma alfaiataria",o que é o mesmo que dizer que cadapaciente é um caso e a abordagem seráfeita "por medida".Cada vez mais pro-curam o divã do psicanalista e o psi-quiatra pessoas que não têm uma do-ença mental constituída, como umaesquizofrenia, uma psicose maníaco-depressiva e uma patologia borderline,mas problemas do quotidiano de or-dem emocional que não são capazesde resolver sozinhas. Mais fácil serácompreender através do exemplo ci-tado: "Um casal tipicamente tradicio-nal,com um filho único,aluno brilhantea estudar nos EUA, procura-me por-que é capaz de lidar com a anunciadahomossexualidade do rapaz. O anún-cio foi uma catástrofe emocional paraestas pessoas,não que o seja a homos-sexualidade, mas o seu súbito anúnciofez cair as expectativas dos pais.Este éo género de caso por que mais meprocuram." Uma crise emocional numcasal ou um estado depressivo emconsequência de um conflito laboralsão outros exemplos. Claro que nãoterá uma resposta medicamentosamas o abuso dos "químicos" é uma

preocupação. "O estado calamitoso da distri-buição dos psicofármacos na sociedade portu-guesa deve-se a uma intervenção demasiadoprecoce, livre e muitas vezes mal adequada."

Um 'ninho' liberalNum país sem características associativas,emque essa vertente da cidadania é pouco prati-cada,o aparecimento de um movimento socialé facto raro. Carlos Amaral Dias aderiu aoMovimento liberal Social, de constituição re-cente,e confessa que "pela primeira vez,desdeo 25 de Abril, considerou que encontrou um'ninho'".Movimento de jovens quadros,na fai-xa etária dos 20 aos 30 e poucos anos, alinhacom os Liberais Democratas Europeus,a ter-ceira maior força no Parlamento Europeu, etem por lema "Mais liberdade,menos Estado".

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"Têm uma visão liberal do mundo e esse étambém o meu ponto de vista:acreditamos naeconomia de mercado concorrencial, numadiminuição do papel do Estado, e que os me-lhores têm de se diferenciar pela sua qualidadee, portanto, numa fortíssima presença desseaspecto criativo que está ligado ao sujeito indi-vidual". De momento, não está em projectoque o Movimento Liberal Social se constituaem partido, há, segundo esclarece AmaralDias,uma "ambição reflexiva",mas aponta afi-nidades com o Partido Liberal holandês, "oexemplo mais prototípico do que é um parti-do liberal.“Do ponto de vista económico,emPortugal, estaria no centro-direita, mas doponto de vista social está mais à esquerda queo Bloco de Esquerda." Posições liberais em re-lação à eutanásia,drogas leves,casamentos en-tre homossexuais, redução do papel doEstado no sistema de saúde e intervenção

mais activa de seguradoras,etc.são alguns dostemas que o movimento discute e sobre osquais é possível tomar contacto através dorespectivo site (www.liberal-social.org)."A ra-dicalidade do Movimento Liberal Social reto-ma a filosofia do movimento liberal do princí-pio do século XIX: de facto o liberalismo éisso." Para quem viveu com forte envolvimen-to o Maio de 68, o percurso desde então foiregido,sobretudo,por uma insaciável vontadede aprofundar conhecimento e esclarecer ofenómeno político. "O 'É proibido proibir' doMaio de 68 mantém-se no Movimento LiberalSocial. Hoje penso que a filosofia de Marx jácontinha as sementes do totalitarismo, bastaler o Manifesto Comunista.O meu afastamen-to foi radical, mas como sou perfeccionistanão descansei enquanto não percebi tudo,tivede ler Marx,Lenine,Trotsky,etc.,até perceberque era um mundo de utopias mentirosas que

deram origem à maior distrofia contemporâ-nea: Mao Tsé Tung matou mais pessoas que a2ª Guerra Mundial, o totalitarismo da UniãoSoviética era uma vergonha..." Ser membro daInternational Political Science Associationconfirma o interesse que o Professor desdesempre manteve pela compreensão do fenó-meno político.

Discussão em famíliaA discussão é um estímulo constante que pra-tica com os filhos desde que eles são peque-nos.Os três mais velhos,filhos de um primeirocasamento, situam-se politicamente em cam-pos distintos:Henrique,economista,gere a clí-nica privada que o avô legou em Coimbra, "épróximo do Partido Socialista", Joana,psicólo-ga e a mais mediática, é conhecida como acti-vista do Bloco de Esquerda,e Leonor,a estudar

“Anossa identidade nacional é muito curiosa.Durante muito tempo, antes das auto-estradas da informação, Portugal, na

periferia, não participou nos movimentos daReforma e da Contra-Reforma, a crise que abala aEuropa com o aparecimento da obra de MartinhoLutero, Calvino, etc., não toca a realidadeportuguesa, para dar um exemplo de um períodoessencial na história do pensamento europeu.Também a Renascença não nos toca de uma formaavant-garde. Como nos passam ao lado,consequentemente, fenómenos que estão ligado aoadvento do conhecimento das ciências, o Século dasLuzes, a racionalidade kantiana – tudo isso chegatarde e a más horas e nem podia deixar de chegarporque Portugal era um canto, a parte mais ocidentalda Europa. É certo que a nossa identidade emtermos geográficos existe desde muito cedo, notempo do Império Romano esta zona já estavadelimitada como hoje. Mas, sempre, o paradoxo: porum lado, lentidão na chegada do pensamentoeuropeu, e por outro, empurrados por Castela parao lugar marítimo. O olhar para o mar marcou muitoa nossa história, é um olhar saudoso, criou-nostambém uma enorme rotatividade do ponto de vistadas nossas identidades geográficas. O Manuelino dáconta dessa situação. A nossa música mais típica, ofado (que quer dizer destino) é marcado pelacircularidade das nossas relações com o mundo quefomos descobrindo. Há quem pense que o fado éuma canção dolente de origem brasileira, repetida,por sua vez, para Cabo Verde, sob a forma demorna.A identidade nacional também é marcadapela com a forma que, desde o princípio, osassumem fluxos migratórios. As famílias italianas e asjudaicas emigram em conjunto; na família portuguesa,a emigração era masculina (basta ver as obras deFerreira de Castro ou Torga): o homem emigrava esó depois mandava ir a família, ou mantinha cá a

família e regressava. Mesmo nas emigrações maisrecentes, nos anos 60, é assim que se passa. Essarelação construiu uma forma muito singular do serportuguês, marcando uma fortíssima idealização daimagem paternal. Há um estudo da ProfessoraCeleste Malpique, professora jubilada do Instituto deCiências Bio-Médicas Abel Salazar, que mostra comonas crianças da Afurada, uma zona pobre perto doPorto, com fenómenos migratórios muito intensos,existia uma relação muito próxima da mãe e aidealização muito elevada do pai. É um mundo quecaricaturiza a história mítico-simbólica deste canto daEuropa. As deusas femininas sempre forampreponderantes sobre os deuses masculinos. Aimagem da mulher é de per si muito forte. Umsintoma da relação homem-mulher que sedesenvolveu no sul da Europa foi o machismo decaracterísticas latinas. Enquanto no Norte da Europase desenvolveu um feminismo muito forte, aqui asmulheres já detinham o poder, um poder emocional,relacional, simbólico. A migração acentuou estefenómeno bem como a saudade, palavra única queaparece pela primeira vez no Leal Conselheiro de D.Duarte. Tudo isto marcou a identidade“melancoliforme” portuguesa. Portugal é um país emque a tristeza ocupa um lugar central nas emoções.Não é uma tristeza patológica, mas uma tristezacomunicativa, que tem a ver com as idealizações quese foram construindo. Nunca abandonámos acaravela, a idealização das descobertas não parou,está no Padrão dos Descobrimentos de Salazar, naPonte Vasco da Gama. Ou seja, sempre a localizarno passado um período em que fomos bons,vivemos um fantasma do passado sem capacidadepara perceber que esse passado só faz sentido se setransformar em presente De vez em quando temospicos eufóricos em que pensamos que voltámos aser como no tempo de D. Manuel... A idealizaçãonum mundo perdido é um fenómeno depressivante."

PORTUGAL NO DIVÃ

"SOMOS TRISTONHOS"

//CARLOS AMARAL DIAS

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em Inglaterra, "tem uma posição muito próxi-ma da minha e seria claramente uma pessoado Movimento Liberal Social". Divergem nasopiniões e isso para o pai "é fantástico",ele que"odiaria ter um filho igual,sinal de que não tinhatido criatividade,tinha sido um péssimo pai,cri-ando filhos por cissiparidade, ora as plantas éque se reproduzem assim..." Qualquer delesherdou do pai uma sede do conhecimento quese aprende nos livros. "Tenho o privilégio deserem muito meus amigos e podermos discu-tir e ter divergências.É-me inconcebível quan-do uma criança começa a ter curiosidade so-bre o mundo que não lhe agarre na mão e nãolhe vá mostrar as estrelas. Estou sempre aexercitar as crianças, a colocar-lhes parado-xos, ter conversas aparentemente malucas, aobrigá-las a pensar, muito mais do que dar-lhes respostas." Terá, já, levado a filha mais pe-

quena, Carlota, de 4 anos, a ver as estrelas...Carlos Amaral Dias tem hoje uma bibliotecacom cerca de quarenta mil títulos (espalhadospelas casas de Lisboa,Paris,Vale do Lobo),e alémda ensaística que mais lhe interessa,dá-se ao luxode ler obras "esquisitíssimas" (como teólogos mu-çulmanos do século VII!) porque ao longo da vidaleu praticamente tudo quanto importa.

Bases de conhecimentoA sua relação com os livros começou muitocedo e de um modo sui generis.Houve um tio,irmão mais novo do pai,dono de rara cultura esensibilidade, que, apercebendo-se da fortecuriosidade que manifestava em relação aomundo que o rodeava,cuidou de sistematizara aprendizagem do sobrinho Carlos.Aos 10anos lia Shakespeare e os clássicos da literatu-

ra grega."Não construí a minha relação com acultura de forma auto-didáctica, tive uma ori-entação muito sistemática, que me facilitou avida e me deu uma paixão 'patológica' pela lei-tura." Entusiástico coleccionador de arte (pintura e escul-tura),mantém em paralelo um interesse particular por ou-tro tipo coleccionismo, o dos relógios e das canetas.Máquinas do tempo são mais de duzentas, estãorepresentadas todas as marcas que contam,co-mo Patek Philippe, Vacheron Constantin,Girard-Perregaux, mais teima em preferir osRolex."Posso estar sem os usar durante anos ebasta uma 'sacudidela' para voltarem a traba-lhar! Com as canetas, o mesmo – tenho Par-ker, Sheaffer,Namiki,Omas,Waterman –,masno momento de pegar numa,a escolha cai in-variavelmente sobre a Montblanc.É como nosautomóveis,os meus carros são Mercedes,osmais fiáveis."«

A SUA RELAÇÃO COM OS LIVROS COMEÇOU MUITO CEDO E DE UM MODO SUI GENERIS. HOUVE UM TIO, IRMÃO MAIS NOVO DO PAI, DONO DE RARA

CULTURA E SENSIBILIDADE, QUE, APERCEBENDO-SE DA FORTE CURIOSIDADEQUE MANIFESTAVA EM RELAÇÃO AO MUNDO QUE O RODEAVA, CUIDOU DESISTEMATIZAR A APRENDIZAGEM DO SOBRINHO CARLOS. AOS 10 ANOS LIA

SHAKESPEARE E OS CLÁSSICOS DA LITERATURA GREGA.

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