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Indaial – 2021 PSICOPATOLOGIA, MEDICALIZAÇÃO E SAÚDE Profª. Nislândia Santos Evangelista 1 a Edição

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Indaial – 2021

PsicoPatologia, Medicalização e saúdeProfª. Nislândia Santos Evangelista

1a Edição

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Copyright © UNIASSELVI 2021

Elaboração:

Profª. Nislândia Santos Evangelista

Revisão, Diagramação e Produção:

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri

UNIASSELVI – Indaial.

Impresso por:

E92p

Evangelista, Nislândia Santos

Psicopatologia, medicalização e saúde. / Nislândia Santos Evangelista – Indaial: UNIASSELVI, 2021.

220 p.; il.

ISBN 978-65-5663-851-5ISBN Digital 978-65-5663-846-1

1. Psicanálise. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo da Vinci.

CDD 616

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aPresentaçãoOlá, acadêmico! Seja bem-vindo ao Livro Didático Psicopatologia,

Medicalização e Saúde, que foi elaborada para permitir a compreensão, a partir de diferentes óticas e com um olhar sensível, de conceitos e questões específicas da psicopatologia, uma área em constante diálogo com as deman-das próprias da psicopedagogia.

Na Unidade 1, serão tratados conceitos e diretrizes que abordam a área da Psicopatologia, seus históricos, suas fissuras, suas transformações, tipos de abordagens e os principais documentos que servem como norteadores de práti-cas. Será discutido como o conceito de loucura mudou com o passar do tempo e como os aspectos sociais, políticos e morais influenciam na forma como percebe-mos e interpretamos os comportamentos dos indivíduos. Algumas abordagens da Psicologia também serão apresentadas, indicando que, dependendo de como compreendemos o indivíduo, as práticas, em termos de saúde mental, possuem técnicas e manejos diferentes. Por fim, veremos a avaliação e o diagnóstico na área da saúde, especificamente para o campo da Psicopedagogia.

Na Unidade 2, estudaremos algumas especificidades da interseção entre Psicopedagogia e Psicopatologia, como essa relação foi construída e transformada, em conjunto com as demandas sociais e com as atualizações que os campos tanto da saúde quanto da educação passaram com o decorrer do tempo. Nesse sentido, também serão abordados alguns termos de inter-venção medicamentosa para transtornos de aprendizagem e/ou desenvol-vimento, pensando a partir de aspectos técnicos e sociais dessa questão e apontando algumas problemáticas e cuidados a serem utilizados.

Por fim, na Unidade 3, estudaremos diferentes possibilidades para a avaliação psicopedagógica. Nesse interim, será abordada a importância do respeito à alteridade e de um olhar mais atento à diversidade, captando desde aspectos lúdicos até casos de neurodiversidade. Além disso, veremos breve-mente algumas considerações que o psicopedagogo deve ter nas relações com os sujeitos, aprendentes e responsáveis, no manejo do laudo e do pós-laudo.

Bons estudos!

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Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novi-dades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagra-mação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilida-de de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assun-to em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos!

NOTA

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Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complemen-tares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento.

Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!

LEMBRETE

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suMário

UNIDADE 1 — PSICOPATOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E PSICOLÓGICOS ....................................................................................................... 1

TÓPICO 1 — ASPECTOS SOCIAIS E HISTÓRICOS DO NORMAL E DO PATOLÓGICO ........... 31 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 32 AS VÁRIAS FACES DA LOUCURA ............................................................................................... 4

2.1 LOUCURAS DA IDADE MÉDIA OU CAÇA ÀS BRUXAS ..................................................... 62.2 LOUCURAS DA RENASCENÇA OU A PERDA DA RAZÃO ............................................... 92.3 LOUCURAS DA PSIQUIATRIA OU A DOENÇA MENTAL ................................................ 12

3 LOUCURAS NO SÉCULO XX OU ASCENÇÃO E QUEDA DOS MANICÔMIOS ............ 143.1 LOUCURAS NO BRASIL E OU O RECONHECIMENTO DE DIREITOS E CIDADANIA ......... 16

RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 20AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 21

TÓPICO 2 — DIFERENTES CONCEPÇÕES E ABORDAGENS DA PSICOPATOLOGIA ....... 231 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 232 ABORDAGENS DA PSICOPATOLOGIA .................................................................................... 23

2.1 ABORDAGEM PSICANALÍTICA .............................................................................................. 242.2 ABORDAGEM COMPORTAMENTAL E COGNITIVA ......................................................... 292.3 ABORDAGEM EXISTENCIAL E HUMANISTA ..................................................................... 37

3 O NORMAL E O PATOLÓGICO: CONCEITUAÇÃO E COMPREENSÃO .......................... 413.1 CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO ................................................................................................ 42

RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 44AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 45

TÓPICO 3 — AVALIAÇÃO, DIAGNÓSTICO E PSICOPEDAGOGIA ..................................... 471 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 472 CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO ........................................................................................................ 47

2.1 ENTREVISTAS CLÍNICAS ......................................................................................................... 482.2 DOCUMENTOS NORMATIVOS ............................................................................................... 49

3 CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO E A PSICOPEDAGOGIA ................................................... 503.1 AVALIAÇÃO E DIAGNÓSTICO EM PSICOPEDAGOGIA ................................................... 513.2 QUESTÕES ESPECÍFICAS DA PSICOPEDAGOGIA ............................................................. 54

LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 57RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 61AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 62

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 64

UNIDADE 2 — PSICOPEDAGOGIA E PSICOPATOLOGIA ..................................................... 67

TÓPICO 1 — A RELAÇÃO ENTRE PSICOPEDAGOGIA E PSICOPATOLOGIA ................. 691 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 692 INTERSEÇÃO ENTRE ESCOLA E SAÚDE ................................................................................. 70

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2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA IDEIA DE HIGIENE ................................................................. 712.1.1 Higienização e Racismo: uma via de mão única ............................................................ 72

2.2 A CONSTRUÇÃO DA INFÂNCIA NORMATIZADA ........................................................... 803 PSICOPEDAGOGIA E PSICOPATOLOGIA: HISTÓRICOS, CONTEXTOS E CONCEITOS ................................................................................................................................... 86RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 90AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 92

TÓPICO 2 — PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM E PSICOPATOLOGIA ............................ 951 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 952 NOMENCLATURAS PSICOPEDAGÓGICAS ............................................................................ 95

2.1 TRANSTORNOS DA APRENDIZAGEM .............................................................................. 1012.1.1 Transtorno da Linguagem Escrita ................................................................................... 1012.1.2 Dislexia ................................................................................................................................ 106

3 TRANSTORNOS NA MATEMÁTICA ...................................................................................... 1074 TRANSTORNO DA MEMÓRIA .................................................................................................. 1095 TRANSTORNO DE DESENVOLVIMENTO AUTISTA (TEA) .............................................. 1116 TRANSTORNO DO DEFICIT DE ATENÇÃO/HIPERATIVIDADE .................................... 114RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 116AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 117

TÓPICO 3 — MEDICALIZAÇÃO DA APRENDIZAGEM ........................................................ 1191 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 1192 MEDICALIZAÇÃO DA VIDA ..................................................................................................... 119

2.1 MEDICALIZAÇÃO DA VIDA ESCOLAR ............................................................................. 1233 MEDICALIZAÇÃO: CRÍTICAS E REFLEXÕES........................................................................ 125

3.1 OS PAPÉIS DE RESISTÊNCIA E A PSICOPEDAGOGIA ..................................................... 128LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 130RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 135AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 137

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 139

UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA ................................................ 143

TÓPICO 1 — DIFERENTES INSTRUMENTOS PARA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA .............................................................................................. 1451 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 1452 TÉCNICAS E INSTRUMENTOS DE AVALIAÇÃO ................................................................. 1473 EOCA ................................................................................................................................................. 1504 TÉCNICAS PROJETIVAS PSICOPEDAGÓGICAS ................................................................. 151

4.1 DOMÍNIO ESCOLAR – PAR EDUCATIVO ........................................................................... 1554.2 VÍNCULOS FAMILIARES – OS QUATRO MOMENTOS DE UM DIA ............................. 1574.3 VÍNCULOS CONSIGO MESMO – FAZENDO O QUE MAIS GOSTO .............................. 1604.4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS PROVAS PROJETIVAS .................................. 162

5 DIAGNÓSTICO OPERATÓRIO .................................................................................................. 1636 TESTES PSICOMÉTRICOS ........................................................................................................... 164

6.1 TESTES DE DESEMPENHO E INTELIGÊNCIA .................................................................. 1656.2 TESTE GESTÁLTICO VISOMOTOR DE BENDER ................................................................ 166

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7 SÍNTESE DE INSTRUMENTOS PARA AVALIAÇÃO DE APRENDIZAGEM .................. 166RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 169AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 170

TÓPICO 2 — ALTERIDADE COMO NOVOS COLÍRIOS: O LÚDICO E A DIVERSIDADE ...... 1711 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 1712 O LÚDICO NAS INTERVENÇÕES ............................................................................................ 172

2.1 A HORA DO JOGO ..................................................................................................................... 1772.2 SESSÃO LÚDICA CENTRADA NA APRENDIZAGEM ...................................................... 1792.3 O JOGO DE AREIA PSICOPEDAGÓGICO (JAP) ................................................................. 181

3 A ALTERIDADE COMO ABORDAGEM E COMPREENSÃO .............................................. 1843.1 A NEURODIVERSIDADE ......................................................................................................... 1843.2 OS MOVIMENTOS PRÓ-CURA E ANTICURA .................................................................... 188

4 CONSIDERAÇÕES ......................................................................................................................... 190RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 191AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 192

TÓPICO 3 — CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES NO LAUDO E PÓS-LAUDO ...................... 1931 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 1932 CONSIDERAÇÕES SOBRE O LAUDO ...................................................................................... 194

2.1 O REGISTRO ............................................................................................................................... 1963 RELAÇÕES E COMUNICAÇÕES COM A FAMÍLIA E COM A ESCOLA .......................... 1984 DEVOLUTIVA .................................................................................................................................. 2015 PSICOPEDAGOGIA: O ELO ENTRE EDUCAÇÃO E SAÚDE ............................................. 204LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 206RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 216AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 217

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 219

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UNIDADE 1 —

PSICOPATOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E

PSICOLÓGICOS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• conhecer os aspectos históricos da loucura;

• entender algumas abordagens psicológicas e como elas compreendem o ser humano;

• identificar alguns tópicos gerais sobre o processo de avaliação e como alguns instrumentos são utilizados;

• compreender o uso de documentos normativos para diagnóstico e ques-tões específicas da Psicopedagogia.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – ASPECTOS SOCIAIS E HISTÓRICOS DO NORMAL E DO PATOLÓGICO

TÓPICO 2 – DIFERENTES CONCEPÇÕES E ABORDAGENS DA PSICOPATOLOGIA

TÓPICO 3 – AVALIAÇÃO, DIAGNÓSTICO E PSICOPEDAGOGIA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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TÓPICO 1 — UNIDADE 1

ASPECTOS SOCIAIS E HISTÓRICOS

DO NORMAL E DO PATOLÓGICO

1 INTRODUÇÃO

É importante entendermos que o que conhecemos, em termos teóricos, clí-nicos e acadêmicos, ou em termos vulgares, sobre loucura faz parte do imaginário e da construção social, fecundada e difundida com o decorrer do tempo. Assim, a história da loucura tem que estar sempre localizada num contexto social e político próprio de cada época e, na mesma linha, do que consideramos “normal”. Essas concepções estão sempre emaranhadas com o contexto moral, político, social, te-órico e, até mesmo, com a cosmovisão da época ou da cultura.

Há diferentes formas de compreender a psicopatologia, tanto a partir da lupa histórica como a partir de abordagens psicológicas, nas quais há outra imensi-dão de possibilidades interpretativas. Neste tópico, focaremos no caráter histórico para, posteriormente, abordar as diferentes perspectivas. Veremos algumas trajetó-rias do conceito e do manejo da loucura no decorrer do tempo, abrangendo tanto a ótica da exclusão social quanto a ótica da reintegração social. Por fim, conhecere-mos, brevemente, alguns aspectos para diagnóstico e avaliação do paciente.

O termo psicopatologia é de origem grega, composto pelas palavras “psy-chê”, “pathos” e “logos”, que significam, respectivamente, psiquismo, sofrimento e conhecimento, resultando em um conhecimento sobre o sofrimento psíquico (CECCARELLI, 2005). Inicialmente, psicopatologia foi um termo criado por Je-remy Bentham, em 1817, que reconheceu a necessidade de uma “psychological pathology” (patologia psicológica). Ao longo do tempo, foram usadas outras ex-pressões, como psicopatologia geral, psicologia anormal, psicopatologia clíni-ca, psicologia patológica, psicologia da anormalidade e psicologia do patológi-co, sendo o termo mais empregado e amplamente aceito psicopatologia – mais adiante, entenderemos um pouco do processo até surgir essa conceituação.

A saúde como bem-estar integral, ou seja, tanto físico quanto mental e social, é uma definição cunhada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1946, considerada um conceito inovador, por um lado, devido à amplitude que conseguiu abarcar, mas que, por outro lado, também pode ser uma fragilidade, visto que não tem uma orientação objetiva (GAINO et al., 2018).

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2001), cerca de 450 milhões de pessoas, no mundo, padecem de enfermidades neurop-siquiátricas, como transtornos mentais ou neurobiológicos, ou então problemas psicossociais como os relacionados com o abuso do álcool

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UNIDADE 1 — PSICOPATOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E PSICOLÓGICOS

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e das drogas, atingindo prevalência pontual ao redor de 10%. Além disso, aproximadamente 24% de todos os pacientes atendidos por pro-fissionais de atenção primária têm um ou mais transtornos mentais (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014).

Nesse cenário, a importância da compreensão, em termos amplos, dos trans-tornos psicológicos é essencial para que o profissional da área de psicopedagogia te-nha uma atuação consciente, com base em estudos e dados da área da psicopatologia. Desse modo, inicialmente, abordaremos as faces da loucura no decorrer do tempo.

2 AS VÁRIAS FACES DA LOUCURA O termo “psicopatologia” ainda é usado em diferentes sentidos, para desig-

nar diferentes tipos de comportamento, sendo estudado a partir de diversas aborda-gens e autores e se mantendo em constante atualização – considerando que a história e a cultura estão sempre em movimento e, portanto, os termos e os conceitos para pensar e aplicar o que é o “normal” e o que é “patológico” também se atualizam.

Pode-se falar, de maneira geral, que o campo da psicopatologia inclui uma variedade de fenômenos que associamos, historicamente, à “doença men-tal” (DALGALARRONDO, 2019). Esses fenômenos incluem vivências, estados mentais e padrões comportamental, que apresentam tanto uma esfera individual e singular, uma dimensão própria e, por outro lado, conexões complexas com ideias da psicologia sobre normalidade (DALGALARRONDO, 2019).

Dito de outra forma, não se pode compreender ou explicar tudo o que existe em um ser humano por meio de conceitos psicopatológicos. As-sim, ao se diagnosticar Van Gogh como esquizofrênico (ou epiléptico, maníaco-depressivo ou qualquer que seja o diagnóstico formulado), ao se fazer uma análise psicopatológica de sua biografia, isso nunca explicará totalmente sua vida e sua obra. Sempre resta algo que trans-cende à psicopatologia e mesmo à ciência, permanecendo no domínio do mistério (DALGALARRONDO, 2019, p. 28).

Percebemos que seria injusto e, sobretudo, antiético limitar a experiência e a jornada de um indivíduo a um diagnóstico psicopatológico, optando-se por com-preender que essa é apenas uma das tantas esferas possíveis de um indivíduo. Por isso mesmo, o estudo da área revela a importância para os profissionais que lidam com o tema sobre cuidado, atenção, intervenções e manejos necessários.

Vicent Van Gogh foi considerado um dos maiores pintores de todos os tem-pos, tendo produzido mais de 2 mil obras durante seus 37 anos de vida. O artista foi ca-racterizado como um homem incompreendido, atormentado, intempestivo e com dis-

INTERESSANTE

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túrbios comportamentais. Seu legado é tão representativo que, em 1973, em Amsterdã, na Holanda, seu país-natal, foi criado um museu para abrigar suas criações. Dessa maneira, não só suas obras como sua vida geram muita curiosidade até os dias de hoje. Outro fato interessante sobre o artista foi ele não ter alcançado reconhecimento em termos simbóli-cos e artísticos nem em termos materiais, enquanto era vivo. A fama e o reconhecimento de seu trabalho vieram apenas no post mortem. Uma de suas obras mais famosas, “Noite Estrelada”, é a única pintura noturna da série de obras da vista do quarto do hospício Asilo Saint-Paul, onde ficou internado nos últimos anos de sua vida.

FIGURA – A NOITE ESTRELADA, DE VAN GOGH

FIGURA – FILME COM AMOR, VAN GOGH

FONTE: <https://bit.ly/3vGNytD>. Acesso em: 29 ago. 2021.

FONTE: <https://br.pinterest.com/pin/310748443033929357/>. Acesso em: 29 ago. 2021.

Van Gogh foi tema de diversos livros, filmes e documentários, sendo o mais recente Com amor, Van Gogh, uma animação biográfica feita em stop motion, utilizando pinturas a óleo sobre a tela, para replicar a técnica que o autor utilizava em vida. Para realização das pinturas, 125 artistas trabalharam para pintar os 65 mil quadros individuais do filme, sendo cada sequência inspirada por pinturas específicas de Van Gogh. O elenco jogou cenas em conjuntos rudimentares, então isso foi projetado para telas, quadro a quadro e pintado. Os cineastas optaram por usar pintores classicamente treinados sobre animações tradicio-nais. Assim, fica demarcada a importância e a relevância de Van Gogh, o que, em alguma medida, transcende qualquer diagnóstico psicopatológico que o artista teria.

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Não obstante, se quisermos apresentar uma cronologia – que estaria, cer-tamente, com lacunas –, podemos pensar a partir de “fases da história” para com-preendermos também “fases da loucura”. Consideramos, assim, que a loucura (o patológico) sempre existiu, mas a forma e o conteúdo que se ressaltavam muda-vam de acordo com o contexto. Assim, na Idade Média, por exemplo, pensamos em termos de demonologia e caça às bruxas; na renascença e na idade moderna, pensamos a partir da (perda da) razão. Veremos, mais adiante, um pouco sobre essas outras épocas, para que seja possível compreender a fluidez desse termo e o quanto se conecta com modo de operar da sociedade.

2.1 LOUCURAS DA IDADE MÉDIA OU CAÇA ÀS BRUXAS

A forma como uma sociedade lida com a anormalidade depende muito dos valores ali impregnados, como suposições sobre a vida e o comportamento humano. No período medieval, sobretudo na baixa Idade Média (séculos XI a XV, ou seja, no final desse período), o que chamavam de “anormalidade” ou “loucu-ra” tinha causa atribuída a preceitos sobrenaturais e demoníacos, com tratamento envolvendo preces e exorcismos (HOLMES, 1997).

A chamada “demonologia” diz respeito à crença de que forças sobrena-turais e diabólicas atuam sobre o comportamento humano, causando a anormali-dade (a loucura). Mesmo antes da Idade Média, há evidências, em forma de rolos de papiro e monumentos, apontando que egípcios, árabes e hebreus acreditavam que a loucura seria decorrente de fontes míticas, como deuses raivosos, maus es-píritos e castigo divino (HOLMES, 1997). Na verdade, também no Império Persa de 900 a 600 a.C., todos os transtornos físicos e mentais eram considerados mani-festações demoníacas (BARLOW; DURAND, 2015).

No entanto, devemos considerar que, nessa época, outros fenômenos tam-bém eram atribuídos à ira dos deuses, como tempestades, inundações ou incên-dios. Dessa forma, a partir da cosmovisão e da compreensão de mundo da época, era esperado que também o “desvio” da norma dos comportamentos humanos, ou o contágio de alguma doença, também fosse associado a entes “superiores”. Essa concepção de loucura/anormalidade a partir de uma ótica mítica tem íntima relação com o imaginário popular, presente ainda nos dias atuais, sobre a eterna batalha entre o bem e o mal.

Durante o último quartel do século XIV, religiosos e autoridades laicas apoiaram as superstições populares, e a sociedade passou a acreditar na realidade e no poder dos demônios e das bruxas. A Igreja Católica se dividiu, e um segundo segmento, com a inclusão de um papa, sur-giu no sul da Franca para competir com Roma. Em reação a essa cisma, a Igreja Romana lutou contra o mal no mundo que acreditava estar por trás daquela heresia (BARLOW; DURAND, 2015, p. 8).

A batalha entre o bem e o mal, nesses termos, encontrou regozijo na forte opinião popular, política e religiosa do sobrenatural. Desse modo, para compre-endermos o contexto, com a pobreza elevada e um alto índice de mortalidade

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TÓPICO 1 — ASPECTOS SOCIAIS E HISTÓRICOS DO NORMAL E DO PATOLÓGICO

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(devido, entre outras coisas, à peste bubônica que assolou o continente europeu no século XIV), as pessoas recorriam às ervas e ao contato com a natureza, o que era costume na época (FEDERICI, 2004).

No entanto, com a ascensão do capitalismo e o surgimento da ciência, es-sas práticas, realizadas sobretudo por mulheres mais velhas e pobres, passaram a ser especuladas como “mágicas” ou “bruxarias” (FEDERICI, 2004), embora já não fossem bem-vistas ou recebidas, quando se levava em conta o novo paradigma que se fortalecia naquele cenário, pois recorrer à natureza poderia ser considera-do algo “irracional”, devido às diversas mudanças que ocorriam naquela altura histórica, mudança demográfica, mudança nas formas e nos meios de produção, no crescimento das cidades e no surgimento da ciência. Desse modo, a população recorria, como último suspiro, às divindades que regiam aquela realidade, o que causava, a um só tempo, medo e segurança.

Para compreender melhor esse período histórico, recomendamos a leitura de Calibã e a Bruxa, de autoria de Silvia Federici, em que há um esquema interpretativo que esclarece duas questões históricas muito importantes: a execução de centenas de milha-res de “bruxas” no começo da Era Moderna e o surgimento do capitalismo coincidindo com essa guerra contra as mulheres. O livro aborda o período de transição que envolve mudanças radicais na força do trabalho, nos meios de produção, na cosmovisão da po-pulação e em uma série de novos conflitos sociais e políticos. Era um cenário como um caldeirão fervente, em que tantas mudanças ocorriam simultaneamente, o que resultou em uma série de violências para legitimar as novas concepções impostas. Posto isso, o desenvolvimento da ciência, da medicina e do capitalismo são peças-chave. Essa compre-ensão é importante para que se compreenda o quanto as questões de loucura, patologia e transtornos mentais estão histórica e intimamente imbricadas com as demais transforma-ções políticas e sociais. Nenhuma de nossas concepções atuais nasce num vazio social, pelo contrário, são séculos de lentas transformações. Hoje, o que fica no imaginário po-pular sobre bruxas são estereótipos de filmes e desenhos animados, mas, em outra época, era símbolo de perigo social e, para tal, justificava-se um genocídio que durou quase um século. Além disso, é preciso esclarecer que a ideia de bruxaria existia apenas como re-tórica religiosa e política, para cassar e controlar as pessoas que não seguiam as normas ou buscavam algum tipo de controle contraceptivo ou curas através das ervas medicinais.

DICAS

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UNIDADE 1 — PSICOPATOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E PSICOLÓGICOS

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FIGURA – CAPA DO LIVRO DE SÍLVIA FEDERICI, CALIBÃ E A BRUXA

FONTE: <https://bit.ly/3ntTfal>. Acesso em: 29 ago. 2021.

Como reação aos comportamentos das mulheres que já não eram aceitáveis, como uso de medicamentos e controle da natalidade, passaram a ser considerados como “bizarros” e possuídos pelos demônios. Assim, esses indivíduos que fugiam da norma, especulados como “dominados por maus espíritos”, eram considerados responsáveis por qualquer infortúnio experimentado pelos moradores da cidade. Por exemplo, se uma vaca parasse de dar leite, se algum animal fugisse e/ou se a plantação de alguém não vingasse, acreditava-se ser obra de algum dos indivíduos possuídos, principalmente mulheres, que eram tidas como bruxas. Os tratamentos incluíam exorcismo, em que diversos rituais religiosos eram desenvolvidos para livrar vítima dos maus espíritos. Outras abordagens incluíam tosar o cabelo da ví-tima em formato de cruz e amarrá-la a um muro próximo ao adro de uma igreja, de maneira que pudesse se beneficiar ao ouvir a missa (BARLOW; DURAND, 2015).

Antes de mais nada, toda uma literatura de contas e moralidades. Sua origem, sem dúvida, é bem remota. Mas ao final da Idade Média, ela assume uma superfície considerável: longa série de “loucuras” que, estigmatizando como no passado vícios e defeitos, aproximam-nos todos não mais do orgulho, não mais da falta de caridade, não mais do esquecimento das virtudes cristãs, mas de uma espécie de grande desatino pelo qual, ao certo, ninguém é exatamente culpável, mas que arrasta a todos numa complacência secreta. A denúncia da loucura tor-na-se a forma geral da crítica (FOUCAULT, 1978, p. 18).

Essa foi a época em que a Inquisição teve o seu apogeu, com apoio do Estado e da Igreja, apoiado em um imaginário popular sobre a batalha entre o bem e o mal. A convicção de que a bruxaria e as bruxas eram causas da loucura e de outros ma-les continuou durante o século XV. Essa crença de “possessão”, bruxaria e poderes “demoníacos” também foi, anos depois, um contributo para a lógica e as estratégias

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TÓPICO 1 — ASPECTOS SOCIAIS E HISTÓRICOS DO NORMAL E DO PATOLÓGICO

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FIGURA – UMA FORMA DE CARTAZ, ESCRITO EM LATIM, QUE DESIGNA A CAPA DO LIVRO O MARTELO DAS FEITICEIRAS

FONTE: <https://bit.ly/3jAUpzK>. Acesso em: 29 ago. 2021.

para a colonização dos povos das Américas e da África, que não eram reconhecidos como humanos, mas como selvagens, considerados sem alma e “menores” por sua forma de compreender o mundo material e divino (FEDERICI, 2004).

O livro Malleus Maleficarum, ou o Martelo das Feiticeiras, é de autoria de Heinrich Kraemer e James Sprenger, na Alemanha, entre 1486 e 1487, dois inquisitores na baixa Idade Média. Essa obra é uma espécie de manual para identificar, prender e torturar as pessoas acusadas de bruxaria. Embora não seja oficialmente pertencente à Igreja, os inquisitores podiam utilizar o livro como diretriz e guia. De acordo com historiadores, em-bora não haja um consenso, a estimativa é que milhões de pessoas foram executadas, das quais quase 85% eram mulheres. Esse material é importante para a compreensão história de uma época e os artifícios utilizados para conseguir alcançar o objetivo.

UNI

2.2 LOUCURAS DA RENASCENÇA OU A PERDA DA RAZÃO

Essa margem entre o fim da Idade Média e Início da Renascença, proposta para fins didáticos, ressalta também a ascensão da ciência e da medicina como for-ma de guiar as compreensões de mundo, de indivíduo e de sociedade. Nessa linha,

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o tratamento oferecido à loucura, àqueles que fogem das normas, não mais será a partir de exorcismos ou técnicas desenvolvidas pela igreja. A mudança na forma de se perceber a loucura coloca a medicina como peça-chave e fundamental para o tratamento e o estudo da cura das doenças nervosas. A partir desse estudo, do desenvolvimento de técnicas para compreensão da loucura, desse fértil domínio do saber, do desenvolvimento de uma linguagem e de uma métrica para o comporta-mento humano, nascerá a possibilidade de uma psiquiatria da observação, de uma psicologia, de um internamento e, posteriormente, também da psicopedagogia.

O filósofo Michel Foucault, em uma de suas pesquisas, aborda o tema da história da loucura e aponta-nos para a reconfiguração do social. Dito de outra for-ma, no início da Idade Média, havia uma quantidade, em franco crescimento, dos casos de lepra, de forma que havia um local específico para alojar leprosos. Essa medida continha a contaminação ainda maior da doença. A lepra, na alta Idade Média, era o verdadeiro temor e terror da população que, de acordo com Foucault (1978), um a cada cem parisiense teve contato com a doença. O fato da diminuição radical da doença deixou estes espaços de internação ao léu e só foram de fato re-avivados quase dois séculos depois, onde a loucura, por assim dizer, tomou conta do medo e do imaginário popular e assim vemos, novamente, reações de divisão, de exclusão e de purificação dos indivíduos (FOUCAULT, 1978).

Trata-se de recolher, alojar, alimentar aqueles que se apresentam de espontânea vontade, ou aqueles que para lá são encaminhados pela autoridade real ou judiciária. E preciso também zelar pela subsistên-cia, pela boa conduta e pela ordem geral daqueles que não puderam encontrar seu lugar ali, mas que poderiam ou mereciam ali estar (FOUCAULT, 1978, p. 56).

Desse modo, a partir da Renascença, podemos perceber um delineamento maior do internamento, tal qual na Idade Média, quando os leprosos eram se-gregados, porém, agora, o público-alvo era outro (FOUCAULT, 1978). Contudo, temos que ter em mente que o gesto de aprisionamento, de internamento, carrega um leque de significados para além da questão clínica em si, pois também há camadas sociais, políticas, religiosas, econômicas e morais (FOUCAULT, 1978). Essas esferas e a forma como nos relacionamentos com a loucura, com a dita anormalidade, depende sempre do conjunto da história e da cultura. Assim, mui-tas vezes, a prática do internamento está condicionada a faltas morais, conflitos familiares e libertinagem, sendo, então, o internamento a medida social adotada para ser a casa da loucura (VIEIRA, 2007).

É nesse quadro que, ao final do século XVIII, aproximam-se duas figu-ras que tinham permanecido por muito tempo estranhas uma a outra: o pensamento médico e a prática do internamento. Essa aproximação não aconteceu devido a uma tomada de consciência de que os internos eram doentes, mas por um trabalho violento que se realizou através de um defrontamento entre o velho espaço de exclusão, homogêneo e uniforme e esse espaço social da assistência que o século XVIII frag-mentou. Com a vitória desse último, a loucura ganha um estatuto pú-blico e o espaço do confinamento é criado para garantir a segurança da sociedade contra os seus perigos (VIEIRA, 2007, p. 18).

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O filósofo e historiador Michel Foucault, em seu livro História da Loucura, des-vela e analisa sobre as modificações do discurso sobre a loucura na Idade Média e no Re-nascimento, mostrando alguns pontos de clivagem e outros pontos de continuação, como temos visto no decorrer do texto.

ESTUDOS FUTUROS

FIGURA – CAPA DO LIVRO A HISTÓRIA DA LOUCURA, DE MICHEL FOUCAULT

FONTE: <https://amzn.to/30UFUQR>. Acesso em: 29 ago. 2021.

Essa transformação na forma de compreender e manejar a loucura, em termos sociais, com criação de instituições e o desenvolvimento de todo um ar-senal do saber também foi acompanhado pelas artes, pinturas e literatura, espe-cialmente (FOUCAULT, 1978). Nesse sentido, compreende-se que a loucura, na altura da Idade Média, consistia em perceber o mal – e a morte – aproximando-se do indivíduo para, em alguma medida, libertá-lo. Com o passar do tempo, o foco estava na denúncia de que há loucura em toda parte e que disso nem mesmo a morte os salvaria (FOUCAULT, 1978).

O pintor Bosch representou, no vasto de sua obra, esse imbricamento entre a Nau dos Loucos e o perigo, sempre próximo, semprea à espreita, ou seja, a loucura sempre ao lado e esta, por sua vez, representada por meio da devassidão e do caos (FOUCAULT, 1978). Lembremos, contudo, que esta época histórica também apre-sentava uma série de drásticas transformações sociais que colocam em xeque todo um estilo de vida e um esquema de crenças sobre si, sobre o outro, a vida e a morte.

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A pintura Navio dos Loucos, do artista holandês Hieronymus Bosch (1450-1516), feita em óleo sobre madeira, por volta de 1495, apresenta uma crítica, de forma alegórica, sobre os costumes da sociedade da época: a devassidão e a profanidade, in-clusive no clero, o jogo e o álcool. Entre os protagonistas estão uma monja franciscana e um clérigo pobre e transgressor, que se encontram distraídos. Essa pintura foi feita num período de grande crise religiosa e social.

INTERESSANTE

FIGURA – PINTURA RENASCENTISTA DO ARTISTA BOSCH, EM QUE HÁ ALGUMAS PESSOAS CANTANDO, DANÇANDO E BEBENDO, ENTRE ELAS FIGURAS REPRESENTANTES DO CLERO

FONTE: <https://www.ex-isto.com/2020/01/navio-dos-loucos.html>. Acesso em: 29 ago. 2021.

2.3 LOUCURAS DA PSIQUIATRIA OU A DOENÇA MENTAL

Com o desenvolvimento das sociedades e a transformação que o conceito e a compreensão da loucura, a medicina ganhou cada vez mais espaço com seus métodos e técnicas clínicas. Desse modo, a psiquiatria teve cada vez mais acen-tuada relevância para o entendimento moderno do que seria loucura (SCHNEI-DER, 2009). Agora enquadra-se o conceito no bojo de uma doença mental. Ou seja, o que antes era reconhecido como bruxaria ou perda da razão, agora tem um nome que é regido por uma área do saber (a medicina) e está relacionado com adoecimento do próprio corpo. Assim, uma série de nomenclaturas e descrições são elencadas a fim de medir e mesurar a mente humana. Ainda nesse pensamen-to, consagra-se a ideia de cura, pois assim como a medicina sara as doenças do corpo, também cura os males da mente (SCHNEIDER, 2009).

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Nesse interim, os “transtornos mentais” passaram a ser a sustentação da construção psiquiátrica, com perspectivas teórico-epistemológicas, cuja determi-nação é organicista, muitas vezes de base genética, a partir de uma perspectiva essencialmente individualista e universalizante (SCHNEIDER, 2009). Um ponto de fragilidade, portanto, está na desconexão da psiquiatria e de seus conceitos com as relações sociais dos sujeitos, associando, quando feito, de maneira superficial.

Assim, a psiquiatria, em seu início, com esse caráter pouco humanizado, des-dobra-se em práticas de internação, cujo sofrimento humano é incitado em nome da ciência e na crença de “concertar” e de “endireitar” o sujeito que da norma se desviou.

Tais concepções desdobram-se nas práticas da internação e em diversas te-rapêuticas, indo inicialmente do acorrentamento, passando pela aplicação de banhos quentes e frios, pelo tratamento moral, pela lobotomia, pelos choques insulínicos e elétricos, até a vasta e indiscriminada administração de psicofármacos, a partir dos anos 1950 (SCHNEIDER, 2009, p. 63).

Em O Nascimento da Clínica, Michel Foucault aborda como a medicina tem sua base na análise e observação clínica dos casos, desenvolvendo a descrição de sinais e sintomas para realizar o diagnóstico. Isso coloca os pensamentos e os quadros clínicos, de maneira classificatória, em seu início. No entanto, com o decorrer do tempo, a medicina desenvolve uma perspectiva experimental e cien-tífica, o que consolidará a clínica moderna, pautada, sobretudo, na anatomia e na patologia do século XIX, sob forte influência dos pensamentos iluministas que saúdam a razão e o controle total do corpo como sinal de civilização.

Assim, a loucura não é mais uma bruxaria ou uma associação a algo mítico, passando a ser considerada uma doença que deve receber um diagnóstico classi-ficatório e um tratamento “adequado”, que passa a ser um objeto de intervenção exclusivo da medicina, tendo o aval para medicar e internar (SCHNEIDER, 2009). Esse movimento coloca a interpretação do que é loucura no crivo do modelo ana-tomopatológico, buscando explicações da doença mental em fatores externos como lesões ou disfunções médicas, as quais se encontrariam no “corpo físico”, procu-rando, assim, o aspecto orgânico da loucura. Na medida em que não se encontram, em termos palpáveis, esses fatores objetivos para a doença mental, a medicação de psicotrópicos passa a ser uma prática comum, à medida que controla alguns sintomas em alguns casos. Essas práticas medicamentosas ocorriam, em seus pri-mórdios, a partir de tentativas, incertas, que poderiam incorrer ao erro. No caso de acerto medicamentoso, quase arbitrário, então, estabelecia-se o diagnóstico.

Hipócrates é considerado o pai da medicina, mas, na clínica psiquiátrica, o francês Philippe Pinel (1745-1826) ocupa esse lugar. Com a psiquiatria de Pinel, a medicina passou a responder sobre os fenômenos patológicos, rompendo a vi-são religiosa predominante desde a Idade Média (PACHECO, 2003). Dando con-tinuidade aos passos de Pinel, conservando o pressuposto de que a doença men-tal teria causas morais e físicas, Jean-Étienne Esquirol (1772-1840) foi defensor de uma análise detalhada e apurada das síndromes psicopatológicas (PACHECO, 2003). Até hoje, permanecem elementos de sua nosografia – por exemplo, suas subdivisões da mania em piromania, cleptomania etc.

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Antoine-Laurent Bayle (1799-1858), em sua tese Pesquisas sobre as doenças mentais, buscava provar que a alienação mental seria oriunda de uma inflamação crônica em uma das meninges, também podendo ser ocasionada por uma gastrite ou gastroenterite crônica. Além disso, apresentava a ideia de que a loucura pode-ria ser determinada por uma gota irregular (PEREIRA, 2009). Ele foi o primeiro profissional a descobrir a causa anatômica de um estado de alienação e, a partir de seu estudo, outras pesquisas procurariam identificar as causas orgânicas de todas as doenças mentais.

Na Alemanha, podemos destacar nomes como Wilhelm Griesinger (1817-1868) e Emil Kraepelin (1856-1926). Griesinger acreditava que as “doenças psíqui-cas eram disfunções do cérebro” e a “insanidade” representava apenas um sintoma de patologia cerebral. Procurando construir uma psiquiatria empírica baseada no modelo médico, Griesinger defendia que esta deveria transcender as descrições pu-ramente sintomáticas ao modo francês e ainda levava em conta a personalidade anterior ao desenvolvimento da doença (WANG; LOUZA NETO; ELKIS, 1995).

Kraepelin apresentou diferentes classificações para a loucura, demarcan-do aos poucos, novas categorias nosográficas no campo psiquiátrico. Sua inten-ção era identificar um quadro clínico e criar uma taxonomia para as psicoses. Kra-epelin também tornou possível o desenvolvimento das bases de dados clínicos (BERRIOS; HAUSER, 2013).

As práticas desses médicos já se caracterizavam como a definição de psi-copatologia. Entretanto, apesar de alguns fenômenos já observados nos doentes mentais, a psicopatologia, enquanto disciplina científica, foi nomeada a partir de Karl Jaspers, em 1913.

3 LOUCURAS NO SÉCULO XX OU ASCENÇÃO E QUEDA DOS MANICÔMIOS

Se, por um lado, a loucura é uma produção histórica e social mediada por discursos, práticas, representações e sabres sobre o estado mental dos pacientes, por outro lado, o sofrimento psíquico, atualmente, exibe, em alguma medida, a ideia de incapacidade e improdutividade, podendo gerar constrangimento aos indivíduos, inclusive nas instituições que recebiam esses sujeitos, como em hos-pitais psiquiátricos e manicômios (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014). Nesse contexto, a reforma psiquiátrica tem foco em intervenções com equipes multidisciplinares, com vistas à melhoria da qualidade de vida e à cidadania do indivíduo (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014).

A representação história do conceito de loucura, portanto, está imbricada com o surgimento de manicômios e hospitais psiquiátricos. Assim, percebem-se diferentes funções do manicômio, sendo a mais antiga a recolhida de loucos e outras minorias, isolando-os em prédios antigos e mantidos pelo poder públi-co, por grupos ou instituições religiosas (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES,

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TÓPICO 1 — ASPECTOS SOCIAIS E HISTÓRICOS DO NORMAL E DO PATOLÓGICO

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2014). Por conseguinte, surgiram hospitais psiquiátricos para que esses sujeitos tivessem um tratamento médico adequado, ainda que os profissionais desses lo-cais não tivessem uma formação médica, o que causava verdadeiros problemas.

A partir do século XIX, surgem instituições que acolhem apenas doentes mentais, a fim de um tratamento médico especializado e sistemático em instituições chamadas de manicômios. No entanto, as condições estruturais desses espaços eram precárias e, como em outras épocas, os pacientes não tinham, necessariamente, um diagnóstico de doença mental. A população enclausurada era, como em outras épo-cas, minorias e populações socialmente vulneráveis ou estigmatizadas, como epiléti-cos, homossexuais, prostitutas, entre outras pessoas que não seguiam a norma.

Esse cenário é sustentado, no âmbito da produção de conhecimento, pela influência do pensamento de René Descartes, que elevava e condicionava a razão como forma “correta” da existência humana (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVA-RES, 2014). Logo, aquele que foge da razão, que é guiado a partir de uma desra-zão, não tem condições para cuidar de si e, ainda nessa via, também não possui condições para conviver em sociedade. Assim, os tidos como “loucos” eram en-clausurados em manicômios/hospitais psiquiátricos, como forma de assistência social, considerando que são desvalidados e sua existência é, em alguma medi-da, deslegitimada (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014). Nesse sentido, as internações, além de arbitrárias, eram muito violentas, privando o sujeito de liberdade e mantendo-o enclausurado.

O Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci, é baseado numa famosa pas-sagem do arquiteto romano Vitrúvio, um tratado de arquitetura em que, no terceiro livro, descreve as proporções do corpo humano masculino. Esse caráter de medição do corpo se estendeu também para medição da mente e da vida, e, de forma geral, influenciou o pensamento do filósofo René Descartes.

INTERESSANTE

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FIGURA – O HOMEM VITRUVIANO, DE LEONARDO DA VINCI

FONTE: <https://bit.ly/3nsI8P5>. Acesso em: 29 ago. 2021.

3.1 LOUCURAS NO BRASIL E OU O RECONHECIMENTO DE DIREITOS E CIDADANIA

Esse contexto tem sua fertilidade e brotamento na Europa, não obstante, essa forma de se relacionar com a loucura e com esses sujeitos chegou também ao Brasil, onde o pensamento colonial e ocidentalizado imperava e aguçava formas de tratamento desumano. Contudo, após a Segunda Guerra Mundial, diversos movimentos se levantaram contra essas formas teóricas e práticas de se pensar e relacionar a loucura. Esses movimentos defendiam perspectivas humanizadas em relação à saúde mental (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014).

A reforma psiquiátrica no Brasil encontrou brotamento no período de redemocratização do país, embora sua idealização já estivesse sendo fertilizada décadas antes, porque, além da redemocratização, o país também passava por uma transição na fase sanitarista, colocando a responsabilidade de saúde para os Estados. Assim, a partir da década de 1980, surgiram novos serviços de assis-tência, como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), que são como membros do pensamento de uma Reforma Psiquiátrica Brasileira (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014), cujo atendi-mento parte de diferentes frentes e profissionais, nos quais não há o princípio de internamento, mas, pelo contrário, de socialização e cidadania.

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A assistência é definida como de atenção integral, e o serviço propõe atividades psicoterápicas, socioterápicas de arte e de terapia ocupacio-nal – enfoque multidisciplinar. O sofrimento psíquico deve ser pen-sado no campo da saúde coletiva, tendo em consideração os diversos contextos em que o indivíduo está inserido como a família, o trabalho, cultura, contexto histórico, entre outros. [...] Os serviços substitutivos foram os principais avanços da Reforma Psiquiátrica, trazendo alter-nativas de tratamento com o objetivo de, principalmente, não repro-duzir as bases teórico-práticas do modelo psiquiátrico clássico [...]. É notável, que a presença dos CAPS/NAPS refletiu uma mudança na concepção de tratamento dos pacientes psiquiátricos; onde antes a única instituição que receberia esses pacientes – com a função de reco-lher/excluir – eram os manicômios/hospitais psiquiátricos (FIGUEIRÊ-DO; DELEVATI; TAVARES, 2014, p. 130).

Esse contexto é ressaltado, ainda mais, devido à Luta Antimanicomial que influenciou a criação do Projeto de Lei nº 3.657, proposto, em 1989, pelo Depu-tado Federal Paulo Delgado, sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais, regulamentando a internação psi-quiátrica compulsória, indicada apenas quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

O livro O Holocausto Brasileiro, de autoria de Daniela Arbex, conta a história de algumas pessoas que foram enclausuradas no “Colônia”, o maior hospício do Brasil, lo-calizado em Barbacena, Minas Gerais. No Colônia, morreram quase 60 mil pessoas, entre as quais cerca de 70% tinham diagnóstico de doença mental por serem homossexuais, prostitutas, meninas grávidas que haviam sido violentadas e esposas que os maridos deci-diram internar. Essas pessoas eram, a um só tempo, enclausuradas e abandonadas, mor-riam de fome, de frio e de choque. A autora chama esse período de holocausto, devido ao genocídio contra as pessoas que fugiam à norma. Vale a pena a leitura para conhecimento de uma fase obscura do Brasil, em termos de saúde mental, e para que, com essa consci-ência, essa fase não encontre terreno fértil para que se repita.

ESTUDOS FUTUROS

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FIGURA - FOTO DE VÁRIAS PESSOAS DEITADAS EM MACAS OU SENTADAS NO CHÃO, AMONTOADAS; A IMAGEM ESTÁ EM PRETO E BRANCO E PASSA UMA IDEIA DE TRISTEZA

FONTE: Arbex (2013, p. 157;159)

Ainda com intuito de regulamentar essa situação, foi instituída a Lei Na-cional da Reforma Psiquiátrica, Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001 (BRASIL, 2001), sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, re-direcionando o modelo assistencial em saúde mental. Com isso, foram estipula-das mudanças tanto em relação ao tratamento quanto à compreensão de loucura na sociedade. Nesse sentido, pensa-se a loucura não mais como um elemento que deve estar excluído e posto à margem da sociedade, pelo contrário, essa nova con-cepção coloca os sujeitos e a ideia na rua e em socialização, com questionamentos e discussões sobre os sujeitos tidos como “loucos”, que passam a ser reconheci-dos como cidadãos que possuem direitos (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014). Assim, a Reforma Psiquiátrica previu a proteção e a garantia de direitos a pessoas portadoras de transtornos mentais e criticou o modelo hospitalocêntro e enclausurador imposto anteriormente. De acordo com a Lei nº 10.216/2001, são direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I- ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâ-neo às suas necessidades;

II- ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;

III- ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;IV- ter garantia de sigilo nas informações prestadas;V- ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclare-

cer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;VI- ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;VII- receber o maior número de informações a respeito de sua doença

e de seu tratamento;VIII- ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasi-

vos possíveis;IX- ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saú-

de mental (BRASIL, 2001).

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TÓPICO 1 — ASPECTOS SOCIAIS E HISTÓRICOS DO NORMAL E DO PATOLÓGICO

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Certamente, a implementação dessas leis é essencial para o combate à es-tigmatização de pessoas com transtornos mentais na sociedade. Contudo, esses movimentos políticos não representam uma resolução imediata em relação aos manicômios, porque, como mostramos no anteriormente, esse é um tema que atravessa séculos e as formas de exclusão são sempre renovadas. Assim, parte do problema está nas concepções e nas representações de loucura na sociedade, no processo de subjetivação e nas transformações sociais e políticas (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014). Como era de se esperar, esse movimento não apre-senta resultados imediatos.

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Neste tópico, você aprendeu que:

RESUMO DO TÓPICO 1

• As concepções de loucura mudam de acordo com a época histórica.

• Na Idade Média, concebiam a loucura a partir dos termos de possessão de-moníaca.

• A caça às bruxas foi, entre outras coisas, consequência de transformações sociais, sendo impulsionada pelas esferas religiosas, políticas e científicas.

• No Renascimento, a loucura é concebida como ausência da razão.

• Para a Psiquiatria, a loucura é percebida como doença mental.

• A Reforma Psiquiátrica trouxe uma ideia de humanização para o tratamento de transtornos mentais.

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1 Existem trajetórias no conceito e no manejo da loucura no decorrer do tem-po, da ótica da exclusão social à ótica da reintegração social. Sobre a trajetó-ria histórica da psicopatologia, assinale a alternativa INCORRETA:

a) ( ) No período medieval, sobretudo na baixa Idade Média, o que chama-vam de “anormalidade” ou “loucura” tinha causa atribuída a preceitos sobrenaturais e demoníacos.

b) ( ) No início da Renascença, o tratamento oferecido à loucura, àqueles que fogem das normas, era a partir de exorcismos ou técnicas desenvolvi-das pela igreja.

c) ( ) A partir do século XIX, surgem instituições que acolhem apenas doen-tes mentais, a fim de tratamento médico especializado e sistemático em instituições chamadas de manicômios.

d) ( ) A psicopatologia, enquanto disciplina científica, foi nomeada a partir de Karl Jaspers, em 1913.

2 A partir da década de 1980, no Brasil, começam a surgir novos serviços de assistência, como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), que são como membros do pensamento de uma Reforma Psiquiátrica Brasileira. Com base na reforma psiquiátrica brasileira, analise as sentenças a seguir:

I- A Lei Nacional da Reforma Psiquiátrica, Lei nº 10.216/2001, dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

II- A Lei nº 3.657, proposta, em 1989, pelo Deputado Federal Paulo Delgado, defendia a extinção progressiva dos manicômios.

III- Dois fatores essenciais e que apresentaram resultados imediatos foram a reforma, um movimento político, e a implementação das leis.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.b) ( ) Somente a sentença I está correta.c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.d) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.

3 A Lei Nacional da Reforma Psiquiátrica, Lei nº 10.216/2001, propôs mudan-ças em relação ao tratamento e à compreensão de loucura na sociedade. Com relação à pessoa portadora de transtorno mental, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Não ter acesso aos meios de comunicação para não atrapalhar o tratamento.( ) Ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração.

AUTOATIVIDADE

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( ) Receber o menor número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento.

( ) Ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – V – V – V.b) ( ) F – V – V – V.c) ( ) F – V – F – V.d) ( ) V – V – F – V.

4 As concepções de loucura e doença no século XV são diferentes das do sé-culo XIX. Disserte sobre quais são essas diferenças nesses períodos.

5 Foi com a psiquiatria de Pinel que a medicina passou a responder sobre os fe-nômenos patológicos, rompendo a visão religiosa predominante desde a Idade Média. Emil Kraepelin (1856-1926) contribuiu com o entendimento que temos hoje sobre psicopatologia. Disserte sobre as contribuições de Kraepelin.

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TÓPICO 2 — UNIDADE 1

DIFERENTES CONCEPÇÕES E ABORDAGENS

DA PSICOPATOLOGIA

1 INTRODUÇÃO

Anteriormente, vimos um pouco sobre a loucura a partir de uma perspec-tiva histórica. Neste tópico, abordaremos como a psicopatologia pode ser com-preendida a partir de diferentes teorias, que influenciam também a forma como serão conduzidos o diagnóstico e o tratamento.

A psicopatologia percorreu um caminho difícil para ser uma disciplina autô-noma, sendo uma ciência recente, influenciada pela psiquiatria, pela psicanálise e pela psicologia (FERNANDES, 2003). Segundo Jaspers, em psicopatologia, há dois objetivos possíveis de conhecimento: os fenômenos psíquicos (singulares) e dinâmicos.

Os fenômenos psíquicos implicam uma psicopatologia estática, que pode ser subjetiva ou objetiva. Na psicopatologia estática, é preciso descartar qualquer teoria ou conceito precedente para colher o vivido pelo outro, tal como se apre-senta intuitivamente, numa compreensão por identificação com ele. A psicopato-logia objetiva estudar os aspectos externos dos estados psíquicos, como a postura, o discurso, a mímica facial etc., e seu método não visa a uma compreensão, mas a uma explicação (PESSOTTI, 2006).

Os fatores dinâmicos se preocupam com eventos intrapsíquicos nem sem-pre passíveis de explicação.

Essenciais à psicopatologia, então, são as teorias e as descobertas da Psico-logia, que também é responsável por uma série de instrumentos utilizados para o diagnóstico de pacientes. Por isso, veremos algumas abordagens referentes à psicologia e como essas teorias compreendem o indivíduo e suas patologias.

2 ABORDAGENS DA PSICOPATOLOGIA

Como discutido anteriormente, há diversas formas de se perceber a doen-ça, a normalidade e os comportamentos humanos. Para compreender um pouco mais sobre essa diversidade no campo teórico, destacamos três das principais abordagens da Psicologia, apresentando um panorama geral de como são e em que se baseiam a construção dessas teorias e como elas percebem o sujeito em situação de adoecimento mental.

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UNIDADE 1 — PSICOPATOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E PSICOLÓGICOS

Não há hierarquias entre as abordagens, em termos de relevância, sendo importante destacar formas diferentes de se perceber o sujeito – todas têm contri-buições para a área da Psicologia, assim como também são passíveis de críticas, pois, nos campos acadêmico e científico, é necessário percebermos lacunas para, assim, conseguirmos transformações.

2.1 ABORDAGEM PSICANALÍTICA

A psicopatologia dinâmica ocupa-se das relações dos fenômenos psíquicos com outros eventos: as relações psíquicas, que são compreensíveis e têm como exemplo o fracasso que gera depressão, e as explicativas, como a ingestão de álcool que leva à irritabilidade e à fadiga. Com isso, Jaspers conclui que é possível tentar uma explicação do comportamento do louco, mas a sua loucura ou o seu mundo delirante é inacessível à compreensão (PESSOTTI, 2006).

Para a Psicanálise, os afetos são de suma importância, pois, a partir deles, as condutas e os traumas dos indivíduos passam a ficar condicionados, estando afeto e ação intimamente imbricados em conflitos e desejos inconscientes. Logo, sintomas e síndromes, para a psicanálise, podem gerar um quadro diagnóstico de psicopatologia (DALGALARRONDO, 2019).

O sintoma é encarado, nesse caso, como uma “formação de compro-misso”, um certo arranjo entre o desejo inconsciente, as normas e as permissões culturais e as possibilidades reais de satisfação desse de-sejo. A resultante desse emaranhado de forças, dessa “trama confliti-va” inconsciente, é o que se identifica como sintoma psicopatológico (DALGALARRONDO, 2019).

Sigmund Freud foi o precursor da psicanálise, área que surgiu no século XIX, na Europa, num contexto de crescente casos de histeria. Tendo como referência Jean Martin-Charcot (1825-1893) e Josef Breuer (1842-1925), Freud passou a aderir à hipnose como estratégia de tratamento aos casos de histeria, começando a delinear sua teoria de que conteúdos inconscientes podem adoecer o corpo. No manejo da hipnose, Breuer pedia que os pacientes descrevessem seus problemas, conflitos e medos durante o transe e, ao final da sessão, embora muitas vezes melhorassem o quadro, eles não se lembravam da descrição que haviam feito, ou seja, essas lem-branças estavam além de suas consciências (BARLOW; DURAND, 2017).

As teorias de Freud e Breuer foram possíveis graças às observações sistemá-ticas que realizaram sobre os casos de histeria. Um dos mais emblemáticos (e clássicos) dessa época foi o de Anna O., em 1985, uma jovem cuja saúde do corpo física indicava estabilidade e nenhum problema, mas que, aos 21 anos de idade, enquanto cuidava de seu

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pai doente e nas horas que passava ao lado do pai, durante o dia, desenvolveu uma série de sintomas físicos, como perda da visão, da audição e da fala, além da impossibilidade de comer e paralisia de braços e pernas e algumas alucinações. Com observações cons-tantes e foco em um sintoma de cada vez, Breuer induziu a paciente ao estado hipnótico, em que suas memórias eram revividas em forma de símbolos abstratos. Assim, ao mesmo tempo em que determinados eventos da infância contribuíram para o surgimento dos sin-tomas, relembrar esses eventos também contribuiu para a melhora de Anna O. Esse é um caso que consta no livro Estudos sobre a Histeria, de autoria de Breuer e Freud.

Além disso, o filme Freud Além da Alma conta a história do início da psicanálise e os de-safios que Freud enfrentou para apresentar e legitimar para a comunidade acadêmica sua nova teoria de desenvolvimento humano.

FIGURA - IMAGENS DE BREUER, ANNA O. E FREUD

FONTE: <https://bit.ly/3Go0UQ6>. Acesso em: 29 ago. 2021.

A partir de um arsenal de observações, acompanhamentos e tratamentos, Freud desenvolveu um modelo psicanalítico, que aborda o desenvolvimento e a estrutura de nossas personalidades. Nesse interim, dependendo de como sujeito consegue lidar (ou driblar) seus conteúdos psicológicos, pode desenvolver quadros de transtornos psicológicos. A visão psicanalítica de indivíduo é, em grande medi-da, determinista, sendo o sujeito dominado por forças inconscientes. A psicanálise é uma das correntes mais importantes da psicologia e suas ideias são de grande influência e importância para o século XX, quando passou a olhar para si, para a in-fância e para a sexualidade a partir de novos termos (DALGALARRONDO, 2015).

De acordo com Barlow e Durand (2015, p. 18), há três principais facetas da teoria psicanalítica:

(1) a estrutura da mente e as distintas funções da personalidade, que as vezes se chocam umas com as outras; (2) os mecanismos de defesa com os quais a mente se defende desses choques ou conflitos; e (3) os estágios do desenvolvimento psicossexual precoce que oferece os subsídios para nossos conflitos internos.

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Por essa via, a estrutura da mente é composta por id, ego e superego. O id diz respeito à fonte de nossos desejos sexuais e agressivos, e, por isso, opera a partir do princípio do prazer. Quando vemos uma criança em seus primeiros me-ses de vida, pensando a partir de uma perspectiva psicanalítica, dizemos que ela é “puro id”, no sentido de que ela busca apenas alcançar seus desejos. Isso porque o id opera a partir de um “processo primário” de informação, sendo irracional, emocional, ilógico e repleto de fantasias.

O superego, por sua vez, é formado com base em princípios morais, pois sua construção depende também da cultura na qual o indivíduo está inserido, tendo uma forte carga de noção civilizatória; o que for considerado bom, respon-sável, ético e moral, será por onde o superego caminhará. Por isso, os conteúdos impulsivos, agressivos e/ou sexuais do id, marcados pelo princípio do prazer, não chegam integralmente ao superego, que é mais rígido e tem sua formação a partir das lógicas sociais.

O ego, por outro lado, é regulado a partir do princípio da realidade, pois processa as informações decorrentes de um “processo secundário”, enfatizando o uso das cognições de pensamento, com racionalidade e lógica. O ego é responsá-vel por mediar as informações e os conflitos entre id e superego, tendo, portanto, uma função conciliadora entre os desejos e a realidade. Desse modo, caso essa mediação do ego seja bem-sucedida, o sujeito pode alcançar realizações, levar uma vida criativa e com bem-estar. Caso contrário, ou seja, se o superego ou o id tornar-se mais enfatizado, forte ou rígidos, o conflito intrapsíquico domina, abrindo espaço para o desenvolvimento de transtornos psicológicos.

FIGURA 1 – INDICAÇÕES DA ESTRUTURA DA MENTE DE ACORDO COM A PSICANÁLISE: ID, EGO E SUPEREGO

FONTE: Barlow; Durand (2015, p. 19)

Essa espécie de “batalha psíquica” em que o ego é um mediador entre id e superego pode, ocasionalmente, causar ansiedade, devido a pressões que o ego pode sofrer nessas mediações. A ansiedade, nesse sentido, é entendida como um sinal para que sejam postos em ação alguns mecanismos de defesa, que são

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“processos protetores inconscientes que mantem sob controle as emoções primi-tivas associadas aos conflitos, de maneira que o ego possa continuar a funcionar adequadamente” (BARLOW; DURAND, 2015, p. 19).

Os mecanismos de defesa são utilizados por todos nós e a forma como lida-mos e enfrentamos os conflitos é essencial para compreendermos alguns quadros de psicopatologia. Alguns exemplos de mecanismos de defesa são descritos como:

• negação: recusa reconhecer algum aspecto da realidade objetiva ou da experiência subjetiva que é visível para outras pessoas;

• deslocamento: transfere um sentimento sobre um objeto (ou uma resposta a ele) que causa desconforto para outra pessoa ou objeto, geralmente menos ameaçadores;

• projeção: atribui falsamente os próprios sentimentos, impulsos e pensamentos inaceitáveis para outra pessoa ou objeto;

• racionalização: encobre as verdadeiras motivações de atos, pen-samentos e sentimentos por meio da elaboração de explicações confortadoras para si mesmo, mas incorretas;

• formação reativa: substitui comportamentos, pensamentos ou senti-mentos por outros que são diretamente opostos àqueles inaceitáveis;

• repressão: bloqueia desejos, pensamentos ou experiências pertur-badores da mente consciente;

• sublimação: direciona sentimentos ou impulsos potencialmente mal adaptativos para se tornarem comportamentos socialmente aceitos (BARLOW; DURAND, 2015, p. 19).

Por exemplo, numa situação hipotética de um ambiente de trabalho, em que o chefe é grosseiro e agressivo com o funcionário, o qual, devido a sua po-sição hierárquica ou a sua forma de resolver conflitos, não pode responder na mesma proporção; ao chegar em casa, esse funcionário pode deslocar o tal con-flito para uma outra relação, como brigar com esposa ou filhos, uma vez que sua posição no ambiente doméstico permite e aceita tais ações. Por outro lado, se ele liberasse essa tensão e esse conflito do ambiente de trabalho compondo um dese-nho ou uma melodia, ele estaria sublimando o conflito, dando contornos criativos e socialmente aceitos a essa situação.

Nesse sentido, um dos principais objetivos de um tratamento psicanalíti-co tradicional é trazer à consciência material o que foi reprimido, ou seja, o que está no inconsciente. Para isso, há diversos métodos adotados, como o método de “associação livre”, utilizado desde os primórdios da psicanálise, em que o sujeito diz literalmente tudo o que lhe vem à mente, como nos casos de histeria.

Os tratamentos mais atuais com a psicanálise exploram aspectos do “self”, que são inconscientes e que o sujeito não reconhece, de modo que o terapeuta desempenhe a função de estudar como os sujeitos revelam e influenciam esses conteúdos que vêm à tona. De toda forma, o foco do tratamento psicanalítico está na exploração das experiências emocionais do indivíduo (atuais ou passadas), de seus mecanismos de defesa, de seus relacionamentos íntimos e de suas fantasias de maneira geral (sonhos, devaneios etc.).

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A teoria de Freud influenciou o mundo e firmou-se como um novo para-digma da mente, embora seja considerada a versão “clássica” ou “ortodoxa” da psicanálise. Diversos outros autores contribuíram com a teoria psicanalítica, po-dendo-se citar, inicialmente, Carl Jung (1875-1961), um estudante de Freud e que rejeitou algumas das ideias deste, formando seus próprios pensamentos (BAR-LOW; DURAND, 2015).

Jung era um proeminente discípulo de Freud, mas rejeitou diversos as-pectos sobre conotação sexual da teoria de seu mestre, apresentando o conceito de “inconsciente coletivo”, que seria um conhecimento acumulado historicamen-te, passado de geração para geração, armazenado profundamente na mente dos indivíduos, da sociedade e da cultura (BARLOW; DURAND, 2015). Nesse senti-do, ele aborda muitos aspectos dos desejos espirituais e religiosos, dando a eles tanta importância quanto aos desejos sexuais, aproximando-se de ideias míticas da existência humana. Por algum tempo, Jung também estudou noções da caba-la, do tarot e mandalas, percebendo padrões da natureza que surgem em nossos sonhos. O trabalho com mandalas ficou amplamente conhecido e é utilizado até hoje em alguns centros de reabilitação. Além disso, também abordou traços está-veis da personalidade, como introversão e extroversão.

Psiquiatra alagoana, Nise da Silveira (1905-1999) foi uma das maiores repre-sentantes da corrente junguiana no Brasil. Jovem médica, formada pela Universidade da Bahia e psiquiatra principiante no hospício da Praia Vermelha, Nise da Silveira sempre ou-sou; esquerdista, atuante na União Feminina do Brasil, foi presa pela ditadura getulista, ao lado de Olga Prestes e Elisa Berger. Também foi expulsa do Partido Comunista, pelo crime inafiançável de suposto trotskismo. Nise da Silveira equilibrava-se entre as estruturas rígidas das instituições e sua inegável vocação para a marginalidade. Seu feito mais celebrado foi ter transformado honestas e sedativas atividades de terapia ocupacional em vias libertárias de realização estética para os internos do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. Foram esses trabalhos artísticos dos internos que culminaram na criação do Museu de Imagens do Inconsciente, em 1952, do qual parte do acervo veio a ser apresentado em São Paulo, em 2000, na mostra Brasil 500 anos. Em 1955, Nise fundou, no Rio de Janeiro, um grupo de estudos sobre C. G. Jung, que viria a se tornar um centro aglutinador de todos que bus-cavam caminhos alternativos aos diversos discursos hegemônicos que, então, dominavam o campo “psi”. Já em 1956, preocupada em resgatar a dimensão humana dos denomina-dos “loucos”, Nise da Silveira criou a Casa das Palmeiras, instituição pioneira de acolhimen-to, de portas sempre abertas, e que, na opinião de um de seus primeiros clientes, seria “um cantinho que iria modificar o mundo”.

Em 2015, foi lançado um filme biográfico em sua homenagem Nise: no coração da loucura, que conta uma pouco de sua história, por ter proposto uma nova forma de tratamento aos pacientes que sofrem da esquizofrenia, eliminando o eletrochoque e a lobotomia. Ao longo da história, vemos como seus colegas de trabalho discordam do seu meio de tratamento e a isolam, restando a ela assumir o abandonado Setor de Terapia Ocupacional, no qual dá início a uma nova forma de lidar com os pacientes, através do amor, da arte e de mandalas.

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FIGURA - NISE DA SILVEIRA, MULHER NA FAIXA ETÁRIA DOS 60 ANOS

FONTE: <https://bit.ly/3EgwRIw>. Acesso em: 7 abr. 2021.

2.2 ABORDAGEM COMPORTAMENTAL E COGNITIVA

O modelo comportamental (ou modelo cognitivo-comportamental; ou mo-delo de aprendizagem social), a partir do século XX, ganhou cada vez mais desta-que com sua proposta pragmática, experimental e baseada em evidências e obser-vações. Desse modo, percebemos a diferença e a distância entre esse modelo e a psicanálise, uma vez que esta valoriza e investiga processos intrapsíquicos, lançan-do uma teoria sobre estrutura abstrata da mente que regularia o comportamento. O modelo comportamental, em contrapartida, trabalha essencialmente com as pos-sibilidades que o contexto oferece, não estando ligada, em um primeiro momento, a investigações ou especulações sobre questões do comportamento que não podem ser mensuradas a partir de observação e experimento (BARLOW; DURAND, 2015).

Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936) foi um dos pioneiros a investigar sobre o condicionamento clássico. O experimento mais conhecido de Pavlov consistia em examinar por que os cachorros salivavam antes receberem sua comida. As-sim, estudou como ocorria a condição da presença de um evento particular, ou seja, um estímulo. No caso de Pavlov, observou-se que os cachorros, ao ouvi-rem os sons dos passos do assistente de laboratório, já começavam a salivar, pois os passos indicavam que, no momento seguinte, a comida seria servida. Dessa forma, havia um condicionamento da resposta (salivar) do cachorro de acordo com as condições (passos) do ambiente. Posteriormente, Pavlov passou a utilizar um metrônomo para que a observação fosse mais fidedigna. Não obstante, se o estímulo é lançado sem que seja oferecida a comida por um longo período, o condicionamento perdia a eficácia, ou seja, o cachorro já não apresentava mais a resposta (BARLOW; DURAND, 2015).

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FIGURA 2 – IVAN PAVLOV

FIGURA 3 – WATSON

FONTE: <https://bit.ly/3CdWgSv>. Acesso em: 29 ago. 2021.

FONTE: <http://www.psicologiavirtual.net/2018/01/ivan-pavlov-autor.html>. Acesso em: 29 ago. 2021.

O psicólogo John B. Watson (1878-1958), influenciado por Pavlov, é consi-derado o fundador da abordagem comportamental (behaviorista). Watson tinha como base teórica a ciência natural e não partia de pressupostos de introspecção, pois acreditava que esses métodos não seriam quantificáveis, tendo como metas a previsão e o controle do comportamento, e dando ao behaviorismo o status de ciência empírica radical.

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O PEQUENO ALBERT

Em um dos mais famosos e controversos experimentos, Watson e Rosalie Rayner, uma de suas alunas, estudaram o medo com o pequeno Albert, um menino de 9 meses de idade. Os pesquisadores deram a Albert um ratinho branco, totalmente inofensivo, e a criança não apresentou medo, pelo contrário, gostava de se divertir com seu animal de estimação. No entanto, como parte do estudo, todas vezes que Albert ia em direção do rato para pe-gá-lo, soltavam um barulho alto atrás dele. Com isso, após cinco tentativas de pegar o rato, Albert mostrou os primeiros sinais de medo. Além disso, a criança passou a demonstrar medo de outros animais, como um coelho, por exemplo, e também a apresentar medo de qualquer objeto branco peludo, como até mesmo a barba do Papai Noel. Obviamente, os critérios éticos dessa pesquisa são, atualmente, amplamente discutidos e certamente ela não seria aprovada nos dias de hoje, mas, ainda assim, foi um marco para a área, tanto em termos de experimento quanto de aprendizagem sobre ética na pesquisa.

INTERESSANTE

FIGURA - O PEQUENO ALBERT CHORANDO COM UM COELHO EM SEU COLO

FONTE: <https://bit.ly/3Gosr3W>. Acesso em: 29 ago. 2021.

Mais tarde, outro teórico trouxe mais contribuições para o campo. Burrhus Frederic Skinner (1904-1990) teve uma vasta produção na área e elaborou conceitos como o “condicionamento operante”, um tipo de aprendizagem em que o comportamento muda em função do que se segue ao comportamento (BARLOW; DURAND, 2015). Em outros termos, um condicionamento é operante porque sua ação recai sobre o ambiente e este é modificado de alguma maneira. Um exemplo disso seriam alunos chamados de “rebeldes”, que gritam e fazem travessuras durante a aula e recebem algum tipo de estímulo por isso, geralmente alguma advertência do professor (BARLOW; DURAND, 2015).

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Para Skinner, o mais eficiente, nesse caso, seria não oferecer nenhum tipo de feedback/reforço para a criança e, assim, esse comportamento seria eliminado, porque Skinner não acreditava que a punição fosse adequada para a aprendizagem. O autor aborda mais em termos de não oferecer estímulos, por mais difícil que seja, para que o comportamento não se repita. Contudo, houver estímulo, mesmo que seja na forma de advertência, há probabilidade de o comportamento voltar a ocorrer.

FIGURA 4 – SKINNER SEGURANDO, EM SUAS MÃOS, UM POMBO. ATRÁS DELE, VÁRIAS CAIXAS COM POMBOS REPRESENTANDO OS EXPERIMENTOS QUE REALIZAVA

FONTE: <https://bit.ly/3baQRzC>. Acesso em: 29 ago. 2021.

Nesse sentido, a partir da perspectiva behaviorista, quase tudo o que fa-zemos socialmente está contextualizado e interfere na forma como outras pessoas responderão, pois um comportamento gera consequência no outro (BARLOW; DURAND, 2015). Skinner também trabalhava com experimentos em animais, pois considerava que, a partir de estruturas mais simples, poderíamos também entender as mais complexas. Desse modo, há um procedimento chamado de “modelagem”, que diz respeito ao processo de reforço por aproximações sucessi-vas do resultado ou comportamento que se deseja. A partir dessa perspectiva, os comportamentos do indivíduo são frutos da aprendizagem, sejam os socialmente aceitos ou mal adaptativos.

Por exemplo, se você quer que um pombo jogue pingue-pongue, pri-meiro ofereça uma bolinha de comida toda vez que ele mover a cabeça para uma bola de pingue-pongue lançada na direção dele. Gradual-mente, você faz o pombo mover a cabeça cada vez mais para perto da bola de pingue-pongue, até que a toque. Por fim, receber uma bolinha de alimento e condição para o pombo rebater a bola com a cabeça. Pavlov, Watson e Skinner contribuíram de forma significativa para a terapia behaviorista na qual os princípios científicos da psicologia são aplicados a problemas clínicos (BARLOW; DURAND, 2015, p. 25).

A perspectiva comportamental considera que estímulos específicos e ge-rais, e respostas regulam os comportamentos observáveis e verificáveis dos in-divíduos. Dessa forma, essa perspectiva dará especial importância e principal enfoque para esses comportamentos, diferentemente da visão psicanalítica, que

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considera os comportamentos incitados a partir da esfera inconsciente. Para a visão comportamentalista, há leis e determinantes que direcionam o aprendiza-do, dependendo dos estímulos, ou seja, das possibilidades do contexto, podemos modular o comportamento (DALGALARRONDO, 2015).

Assim, em termos de tratamento de transtornos psicológicos, os terapeutas concentram seus esforços em modelar novos comportamentos e auxiliar os sujeitos a se desprenderem de comportamentos mal adaptativos. Nesse sentido, a ideia é aprender a associar uma nova resposta para um estímulo que, geralmente, provoca uma resposta mal adaptativa. Um método comumente utilizado é a “dessensibi-lização sistemática”, na qual é realizado um contracondicionamento em estágios graduais, para que a resposta ao estímulo seja outra. Por exemplo, se um indivíduo tem medo de cobras, pode ser sugerido que ele imagine uma cobra ao longe e, en-quanto isso, o terapeuta trabalha para outro tipo de resposta, que envolve também o relaxamento do corpo e o controle da respiração. Dessa maneira, aos poucos, em pensamento, ele passa a se aproximar da cobra, podendo chegar ao estágio de poder se encontrar pessoalmente com uma cobra para que o trabalho seja mantido.

Por isso, é considerada em estágios, primeiramente em situações hipoté-ticas, pois, em termos hierárquicos, o medo é menor, estabelecendo, assim, uma conexão entre a imagem e o relaxamento. Os profissionais que trabalham nessa área, costumeiramente, passam deveres de casa para seus clientes, como manter um registro detalhado dos comportamentos que tentam mudar. Dessa forma, o sujeito tem mais consciência e controle dos seus próprios comportamentos.

Além disso, a teoria behaviorista também se encaixa no modelo tradicio-nal no campo da Educação, devido a sua base epistemológica de conhecimento partir da experiência, com base em pressupostos da Psicologia que se desenvol-via marcada, também, por influência das ciências naturais e necessidade de ob-jetividade, como o primeiro laboratório de Psicologia, fundado por Watson. O psicólogo americano Skinner propõe uma teoria comportamental a partir de re-forços, estímulos ou eliminação de comportamentos. Com sua caixa de aprender, maximiza a importância da técnica mais que o comportamento ou sentimentos.

Skinner desenvolveu a chamada “Máquina de Ensinar”, uma tecnologia desen-volvida com o intuito de facilitar e individualizar as aprendizagens dos estudantes. Uma das características desse aparelho é funcionar, tal como propõe a teoria behaviorista, a partir de estímulo e reforço. Caso o estudante dê a resposta correta, recebe um reforço imediato. Esse aparelho requer um material planejado, no qual cada problema serve de enunciado para o próximo, dos problemas mais simples aos mais complexos. Embora individualize o processo de aprendizagem, considerando que cada estudante fica em uma máquina, re-duzindo, assim, a interação entre os estudantes, a máquina de ensinar de Skinner, como a

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teoria do psicólogo, pressupõe uma participação ativa do estudante, que está no controle da máquina. Esse instrumento gerou polêmicas e críticas devido ao caráter mecânico que percebe e ressalta a aprendizagem.

FIGURA - UM ESTUDANTE UTILIZANDO A MÁQUINA DE ENSINAR

FONTE: <https://bit.ly/3EdIwHP>. Acesso em: 29 ago. 2021.

Associada a uma perspectiva comportamental, a perspectiva cognitivista considera as cognições essenciais do funcionamento mental. Assim, as cognições são essenciais para o funcionamento mental e as alterações desse sistema podem indicar um quadro de psicopatologia. Dessa forma, a teoria behaviorista enfatiza o comportamento e a teoria cognitiva enfatiza os pensamentos. Geralmente, essas duas teorias, com seus arsenais de técnica, são utilizadas simultaneamente, sendo cada vez menos comum serem trabalhadas separadamente. Logo, ao passo que o comportamento é analisado de acordo com as contingências do contexto, o pen-samento do sujeito também é levado em consideração.

Para a teoria cognitiva, os transtornos psicológicos podem ser produtos de pensamentos disfuncionais. Dessa forma, uma meta é a mudança de pensa-mentos e o desenvolvimento de emoções mais adaptativas. Nesse interim, os “pensamentos automáticos” dizem respeito a um sistema de crenças já arraigado, de maneira tão potente que o indivíduo, muitas vezes, não percebe os padrões de pensamento e comportamento estabelecidos. Esses pensamentos também estão imbricados em “atitudes disfuncionais”, ou seja, crenças negativas sobre si mes-mo. Portanto, devemos considerar que todos, em alguma medida, temos pen-samentos e atitudes disfuncionais, mas o problema é quando a intensidade e a frequência podem causar sofrimento ao indivíduo.

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FIGURA 5 – DEFINIÇÕES DE ATITUDE DISFUNCIONAL, EXPERIÊNCIA E PENSAMENTO AUTOMÁTICO

FONTE: Whitbourne; Halgin (2015, p. 120)

FIGURA 6 – REESTRUTURAÇÃO COGNITIVA

FONTE: A autora

Para a perspectiva cognitiva, a pessoa com transtornos psicológicos desen-volve crenças que assumem uma forma irracional sobre si, sobre suas relações, sobre seus potenciais e sua visão de mundo em geral. Essas crenças, muitas ve-zes, são externas e debilitam o emocional do indivíduo, tornando-o apegado aos “deveres” ou sendo punitivo consigo mesmo (KRAUSS; HALGIN, 2015, p.120).

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Assim, pensamentos disfuncionais podem gerar emoções disfuncionais, de forma que o tratamento visa a uma reestruturação cognitiva, com foco nesses pensamentos e nessas emoções. Essa reestruturação cognitiva é um trabalho do te-rapeuta, o qual deve questionar essas crenças e pensamentos disfuncionais, dando sugestões de outras atitudes possíveis perante as mesmas situações. Mais uma vez, podemos usar o exemplo do medo de cobra, em que são realizados exercícios para trabalhar o pensamento, simultaneamente, com o relaxamento, para que esse não seja um gatilho para tensões e rigidez (KRAUSS; HALGIN, 2015, p. 120).

Transpondo para o ambiente escolar e os métodos de aprendizagem, a teoria comportamental-cognitiva (TCC) oferece muitos subsídios, materiais e téc-nicas para auxiliar o aprendente. Muitas vezes, o sujeito não aprende por não ter determinados pré-requisitos. Por exemplo, se uma criança está no quinto ano do ensino fundamental e não sabe ler, nem sempre significa que tenha um problema ou um transtorno psicológico, pode não ter sido alfabetizado nem ter tido acom-panhamento. Nesse contexto, pode-se injetar na criança muita insegurança sobre sua capacidade de aprender, gerando medo e receio de tudo que diga respeito ao ambiente escolar. Nessa perspectiva, o trabalho do psicopedagogo é fundamental tanto para acompanhar e realizar um nivelamento quanto para oferecer auxílio para melhoria desse sistema de crenças, mostrando novas possibilidades, poten-ciais e capacidades do aprendente. Isso funciona tanto trabalhando no sistema de crenças quanto oferecendo outros tipos de reforço e estímulo comportamental (KRAUSS; HALGIN, 2015, p. 120).

Um dos materiais utilizados na abordagem da TCC é o Baralho das Emoções: Acessando a criança no trabalho clínico. Trata-se de um instrumento facilitador de acesso às emoções das crianças na clínica psicológica. Ele possui 21 cartas com características gráficas específicas para meninos e outras 21 cartas específicas para meninas. Cada uma das cartas descreve – em desenho – uma determinada emoção. O instrumento visa a acessar, com mais propriedade, as emoções infantis durante o período de avaliação, assim como também durante todo o processo de tratamento. Mesmo que tenha sido idealizado e desenvolvido por terapeutas cognitivo-comportamentais, o baralho pode ser utilizado de acordo com a criatividade e a necessidade de cada profissional, não importando a orienta-ção teórica que fundamente seu trabalho.

DICAS

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FIGURA - CAPA ILUSTRATIVA DO BARALHO DAS EMOÇÕES

FONTE: <https://bit.ly/3Ce3KVr>. Acesso em: 29 ago. 2021.

Nesse sentido, na TCC, o foco é que os clientes tenham maior controle sobre seus comportamentos, pensamentos e emoções funcionais. Para isso, os profissionais adotam uma série de técnicas para focar e desenvolver a consciência dos sujeitos em relação aos seus próprios pensamentos (KRAUSS; HALGIN, 2015, p. 120).

2.3 ABORDAGEM EXISTENCIAL E HUMANISTA

A perspectiva humanista percebe o indivíduo a partir de suas motiva-ções e através da busca por autorrealização e significado da vida. Assim, essa abordagem concebe o indivíduo com base em suas conquistas, e não em seus déficits. Fundamentados nessas premissas, teóricos e clínicos humanistas consi-deram suas ideias um afastamento do foco tradicional da psicologia, pois o cerne está mais nos comportamentos positivos, tendo o transtorno psicológico como resultado de um potencial humano que foi restringido (KRAUS; HALGIN, 2015).

Nesse sentido, a perspectiva humanista não trabalha com uma perspecti-va experimental e laboratorial com animais nem parte de um pressuposto abstra-to da estrutura da mente. Dois nomes de grande referência para a psicologia hu-manista são Carl Rogers e Abraham Maslow, que, no século XX, formaram uma espécie de “terceira força” dentro do arsenal teórico e prático da psicologia, que se distanciava dos preceitos da psicanálise e do behaviorismo. Essa modalidade exalta o sentido de ser humano, focalizando os valores, as crenças e a capacidade de refletir sobre as próprias experiências próprias da humanidade.

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Carl Rogers (1902-1987) desenvolve a “teoria centrada na pessoa” focali-zando no que há de singular em cada indivíduo e também na potencialidade de cada um ter suas realizações e coragem de enfrentamento honesto da realidade e do mundo. Nesse sentido, esse teórico concebe que uma pessoa bem ajustada tem uma autoimagem coerente com suas experiências e funciona com plenitude, ou seja, é capaz de usar ao máximo seus recursos psicológicos.

Se posso proporcionar um certo tipo de relação, o outro descobrirá dentro de si mesmo a capacidade de utilizar aquela relação para cres-cer, e mudança e desenvolvimento pessoal ocorrerão. Por crescimento, Rogers entendia movimento na direção da autoestima, flexibilidade, respeito por si e pelos outros. Para Rogers, o homem é incorrigivel-mente socializado em seus desejos (KRAMER, 1997, p. IX).

Nessa perspectiva, os transtornos psicológicos podem ser desenvolvidos no início da vida, em consequência de um cenário de criticidade, exigência e violência. Por isso, as pessoas podem desenvolver ansiedade e cometer erros em busca de uma aprovação que não chega devido a “condições de valor” que pais impõem aos filhos (KRAUSS; HALGIN, 2015). Assim, muitos adultos procuram sempre satisfazer as expectativas dos outros, buscando um amor que é mediado através de alguns critérios e requisitos. As relações que caminham por essa via podem, de fato, adoecer os indivíduos.

Em 1961, a publicação de Tornar-se Pessoa trouxe a Carl Rogers um inespe-rado reconhecimento nacional. Pesquisador e clínico, Rogers acreditava que estava se diri-gindo a psicoterapeutas e, somente após esse fato, descobriu que “estava escrevendo para pessoas – enfermeiras, donas de casa, pessoas do mundo dos negócios, padres, ministros, professores, juventude”. Carl Rogers acredita que as pessoas precisam de uma relação na qual sejam verdadeiramente aceitas. Para o autor, quando o homem é mais plenamente homem, ele é merecedor de confiança.

ESTUDOS FUTUROS

FIGURA – CAPA DO LIVRO TORNAR-SE PESSOA, DE CARL ROGERS

FONTE: <https://bit.ly/3GwtFun>. Acesso em: 29 ago. 2021.

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TÓPICO 2 — DIFERENTES CONCEPÇÕES E ABORDAGENS DA PSICOPATOLOGIA

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Abraham Maslow (1908-1970) é outro teórico da perspectiva humanista que desenvolve sua abordagem voltada para a noção de autorrealização, que diz respeito ao potencial que o indivíduo pode alcançar para o crescimento psicoló-gico. Nesse sentido, Maslow postula sobre como pessoas realizadas conseguem ter percepções de si e do mundo de maneira mais ajustada, sendo capazes, por isso, de encontrar e de desfrutar formas de prazer e estimulação em suas ativida-des diárias (KRAUSS; HALGIN, 2015). Assim, o autor desenvolveu um esquema piramidal, vastamente difundido, e que influencia, além do cenário terapêutico, diversas outras instituições e empresas.

A pirâmide de Maslow é definida a partir da hierarquia das necessidades num movimento em que as pessoas estão mais propensas e abertas a experimen-tar determinadas autorrealizações, na medida em que conseguem realizar suas ne-cessidades básicas/fisiológicas (comida, bebida, sono e sexo). Nesse sentido, uma pessoa que não satisfez suas necessidades básicas também não consegue alcançar autorrealização nos demais níveis. Por outro lado, com esses critérios fisiológicos supridos, o indivíduo pode passar a pensar, se preocupar e se movimentar para outros tipos de necessidade e realização; no segundo patamar, está a modalidade “segurança” que abarca tanto o copo como moradia, saúde e propriedade.

O terceiro nível de necessidade diz respeito ao amor e relacionamento, que pode vir de diferentes tipos de relações interpessoais, como família, ami-zade ou parceiro sexual. Tendo todos esses suportes, o quarto nível diz respeito à estima, num sentido de confiança e respeito por si e pelos outros. O segundo, o terceiro e o quarto níveis de realização dizem respeito a uma “realização psi-cológica”. O quinto e último patamar da pirâmide é propriamente a realização pessoal, que abarca os demais citados e garante ao indivíduo uma plenitude e um sentido de autorrealização pessoal plena, sem preconceitos e com aceitação dos fatos e das relações que o envolvem.

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UNIDADE 1 — PSICOPATOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E PSICOLÓGICOS

FIGURA 7 – PIRÂMIDE DE MASLOW EM CINCO DEGRAUS

FONTE: <https://centraldofranqueado.com.br/blog/piramide-maslow/>. Acesso em: 29 ago. 2021.

A abordagem existencial tem como grande influência a abordagem hu-manista, pois também considera o indivíduo em sua existência singular, tendo, sim, aspectos naturais e biológicos, mas, sobretudo, histórico e humano. Nesse sentido, cada ser é construído por meio de uma experiência extremamente sua, particular de cada sujeito, e é no contato com o outro, nessa abertura de diálogo e compartilhamento da existência, que se constrói seu destino. Assim, um quadro psicopatológico, um transtorno mental, é visto como um modo de existir no mun-do, que pode ser trágico e caótico, numa construção de destino particularmente dolorosa, mas, ainda assim, essa existência não deve ser reduzida a uma disfun-ção biológica ou psicológica (DALGALARRONDO, 2015).

De maneira geral, o modelo humanista e existencial não oferece tantas informações sistemáticas sobre o campo da psicopatologia, pois seus proponen-tes não realizaram pesquisas voltadas para transtornos mentais. Pelo contrário, é uma teoria que enfatiza as experiências singulares e não quantificáveis, reforçan-do que as pessoas são diferentes entre si e cuidando para não lançar padrões uni-versalizados de comportamento. Além disso, muitos estudos da perspectiva hu-manista estavam voltados para pessoas que alcançaram a autorrealização (como Gandhi), visto que essa abordagem tem uma visão positiva do humano.

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TÓPICO 2 — DIFERENTES CONCEPÇÕES E ABORDAGENS DA PSICOPATOLOGIA

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3 O NORMAL E O PATOLÓGICO: CONCEITUAÇÃO E COMPREENSÃO

Como vimos anteriormente, as questões sobre normalidade/anormali-dade são delicadas e passam por crivos sociais, pois, historicamente, receberam uma grande carga valorativa. Nesse sentido, muitas vezes, o termo passa pelas noções do que é “bom” ou “ruim”, “aceitável” ou “inaceitável” socialmente.

Ademais, o comportamento de um indivíduo e seu estado mental tam-bém são determinados pelas contingências do contexto, não sendo fatos neutros ou determinados por si nem mesmo alheios aos interesses e às preocupações hu-manas. Nesse sentido, a classificação de normal/anormal ou saudável/patológico é também social. De modo geral, as atitudes sociais em relação às pessoas que foram classificadas com algum diagnóstico de doença/transtorno mental variam de um desconforto a um preconceito evidente. Podemos perceber isso através da linguagem, do humor e do estereótipo que retrata os transtornos psicológicos, passando pelo medo, violência, perigo e estigma. Isso resulta em discriminação social, que implica ainda mais sofrimento ao sujeito.

Por exemplo, classificar patologias a alguém com orientação do desejo eró-tico homossexual ou cuja identidade de gênero é transgênero afeta marcadamente milhares de pessoas reais, afeta diretamente seus comportamentos, seus pensamen-tos, suas relações com os outros e com a sociedade em que se está inserido (DAL-GALARRONDO, 2015). Em um passado recente, essas pessoas eram classificadas como doentes/anormais, mas, com luta e consciência, já não constam mais nos ma-nuais de diagnóstico psiquiátrico. Logo, esse processo de classificação caminha de mãos dadas com a sociedade como um todo, em muitos casos. Nesse caso, especi-ficamente a sociedade, depois de muito debates, reconheceu que não há patologia na homossexualidade e, portanto, não é algo que deve ser passível de tratamento.

De maneira similar, em alguns sistemas políticos opressivos, pessoas que não concordavam ou lutavam contra esse sistema eram diagnosticadas com transtorno psicológico quando, na verdade, era uma forma de aplicar violência e silenciamento na população (KRAUSS; HALGIN, 2015). Assim, os critérios de diagnóstico, além de clínicos e focados em diretrizes estabelecidas, também pas-sam pelo crivo social, político e histórico.

Há outros casos de psicopatologia que são mais extremos, com alteração mental e sofrimento para o sujeito, que não tem controle sobre determinados as-pectos de si, como demências avançadas, psicoses graves ou deficiência intelectu-al profunda. Nesses outros casos, o delineamento e as fronteiras para determinar a patologia não são tão problemáticos, embora o tratamento para esses casos con-tinue tendo grande influência social e política. Tendo essas questões em conside-ração, o conceito de normalidade em psicopatologia está imbricado à própria de-finição do que é saúde e doença/transtorno mental (DALGALARRONDO, 2015).

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UNIDADE 1 — PSICOPATOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E PSICOLÓGICOS

3.1 CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO

Atualmente, há alguns critérios que o campo da saúde mental utiliza para realizar diagnósticos. A “significância clínica” diz respeito a que grau determina-do comportamento indica prejuízo mensurável ao indivíduo, além de, em algu-ma medida, conseguir predizer comportamentos futuros ou respostas a um tipo de tratamento. Também se avalia o quanto o comportamento é fruto de disfunção no desenvolvimento de processos psicológicos, biológicos ou de desenvolvimen-to, além de esse comportamento estar associado ou não a algum sofrimento ou incapacidade significativo.

Em estudos de psicopatologia, avaliam-se causas biológicas, como alteração no funcionamento do sistema nervoso, dano cerebral ou exposição a estímulos ambientais nocivos; causas psicológicas, como distúrbios nos pensamentos e sentimentos; e causas socioculturais, como discriminação de classe social, renda, raça, etnia, gênero ou sexualidade (KRAUSS, HELGIN, 2015).

QUADRO 1 – ESTUDOS DE PSICOPATOLOGIA: CAUSAS BIOLÓGICAS, PSICOLÓGICAS E SOCIOCULTURAIS

BiológicasHerança genética

Mudanças fisiológicasExposição a substâncias

PsicológicasExperiências de aprendizagem passadasPadrões de pensamento mal adaptativos

Dificuldades de enfrentar estresse

SocioculturaisPolíticas sociaisDiscriminação

Estigma

FONTE: Krauss; Helgin (2017, p. 38)

Nesse sentido, o termo “biopsicossocial” é usado para se referir a esse im-bricamento entre as esferas biológicas, psicológicas e socioculturais, que podem desempenhar ou incitar sintomas num indivíduo. Na perspectiva biopsicossocial, o indivíduo é percebido sempre em transformações, e o exame clínico, portanto, deve ser multifacetado, observando aspectos físicos, genéticos, contextuais e singulares.

Há alguns critérios elencados por Paulo Dalgalarrondo (2019) em seu li-vro Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais:

• Normalidade como ausência de doença: normalidade como ausência de sin-tomas ou sinais de doença. Esse conceito seria dúbio e precário, pois se baseia em uma “definição negativa”, ou seja, a normalidade por aquilo que ela não é, pelo que lhe falta (saúde).

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TÓPICO 2 — DIFERENTES CONCEPÇÕES E ABORDAGENS DA PSICOPATOLOGIA

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• Normalidade ideal: lança-se uma utopia, um ideal, uma ideia abstrata do que seria o “normal”, “sábio”, “evoluído”. Isto é, claramente, uma construção social que pode ser arbitrária e dogmática, dependendo, assim, mais da adaptação do indivíduo às normas sociais, morais e políticas do que a um quadro de sintomas.

• Normalidade estatística: identifica-se norma e frequência, de acordo com da-dos estatísticos e quantitativos da população geral, como peso, altura, horas de sono etc. Assim, o normal seria aquilo que se observa mais frequentemente em determinada população e aqueles que fogem desses padrões podem ser considerados anormais ou doentes. O ponto fraco desse modelo é justamente o fato de que não é porque é frequente que é, necessariamente, saudável, as-sim como não é porque é raro ou infrequente que é patológico.

• Normalidade como bem-estar: considera-se saúde/normalidade como “com-pleto bem-estar físico, mental e social”. Esse conceito é criticável por ser de-masiadamente amplo e utópico.

• Normalidade funcional: baseia-se em aspectos funcionais qualitativos, no sentido de que é considerado patológico o sintoma que torna o indivíduo disfuncional, produzindo sofrimento nele e no grupo social.

• Normalidade como processo: consideram-se os aspectos dinâmicos do desen-volvimento psicossocial, das desestruturações e das reestruturações ao longo do tempo, de crises, de mudanças próprias a certos períodos etários. Esse con-ceito é particularmente útil na chamada psicopatologia do desenvolvimento relacionada com psiquiatria e psicologia clínica de crianças, adolescentes e idosos. Nesse caso, também é especialmente útil para a psicopedagogia.

• Normalidade subjetiva: enfatiza-se a percepção do indivíduo em relação ao seu estado de saúde, suas vivências e suas experiências subjetivas. Em termos psicopatológicos, esse conceito pode ser criticado, pois há quadros em que os indivíduos podem se sentir muitos saudáveis e felizes, como no caso da fase maníaca do transtorno bipolar.

Portanto, ressaltamos, mais uma vez, a complexidade de pensar e formular aspectos sobre a normalidade. Há várias formas de perceber isso e todas podem apresentar algum tipo de lacuna, o que serve para que estejamos sempre atentos para não rotular ou estigmatizar os indivíduos.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• A psicopatologia percorreu um caminho difícil para ser uma disciplina au-tônoma, sendo uma ciência recente e que teve influência da psiquiatria, da psicanálise e da psicologia.

• Sigmund Freud foi o precursor da psicanálise, que teve brotamento no século XIX, na Europa, num contexto de crescente casos de histeria.

• Para a Psicanálise, a estrutura da mente é composta por id, ego e superego.

• O modelo comportamental (ou modelo cognitivo-comportamental ou mode-lo de aprendizagem social), a partir do século XX, ganhou cada vez mais des-taque com sua proposta pragmática, experimental e baseada em evidências e observações.

• A perspectiva humanista percebe o indivíduo a partir de suas motivações e através da busca por autorrealização e significado da vida.

• Carl Rogers (1902-1987) desenvolveu a “teoria centrada na pessoa”, que fo-caliza no que há de singular em cada indivíduo e também na potencialidade de cada um ter suas realizações e coragem de enfrentamento honesto da rea-lidade e do mundo.

• Abraham Maslow (1908-1970) é outro teórico da perspectiva humanista que desenvolveu sua abordagem voltada para a noção de autorrealização, ou seja, ao potencial que o indivíduo pode alcançar para o crescimento psicológico.

• O comportamento de um indivíduo e seu estado mental também são determi-nados pelas contingências do contexto, não sendo fatos neutros ou determi-nados por si nem mesmo alheios aos interesses e às preocupações humanas.

• Em estudos de psicopatologia, avaliam-se: causas biológicas, como alteração no funcionamento do sistema nervoso, dano cerebral ou exposição a estímu-los ambientais nocivos; causas psicológicas, como distúrbios nos pensamen-tos e sentimentos; e causas socioculturais, como discriminação de classe so-cial, renda, raça, etnia, gênero ou sexualidade.

• O termo “biopsicossocial” é usado para se referir a esse imbricamento entre as esferas biológicas, psicológicas e socioculturais, que podem desempenhar ou incitar sintomas num indivíduo.

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1 De acordo com Barlow e Durand (2015), há três principais facetas da teoria psicanalítica. Por essa via, a estrutura da mente é composta por id, ego e superego. Sobre essa estrutura, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) O id diz respeito à fonte de nossos desejos sexuais e agressivos.b) ( ) O ego é formado a partir de princípios morais, tendo uma forte carga de

noção civilizatória.c) ( ) O superego é o composto a partir do princípio da realidade, pois pro-

cessa as informações com base em um “processo secundário”.d) ( ) O superego tem uma função conciliadora entre os desejos e a realidade.

2 Mecanismos de defesas são processos protetores inconscientes, que man-têm sob controle as emoções primitivas associadas aos conflitos, sendo um recurso utilizado por todos nós. A forma como lidamos e enfrentamos con-flitos é essencial para compreendermos alguns quadros de psicopatologia. Sobre os mecanismos de defesa, analise as proposições a seguir:

I- A racionalização encobre as verdadeiras motivações de atos, pensamentos e sentimentos.

II- A negação bloqueia desejos, pensamentos ou experiências perturbadores da mente consciente.

III- A projeção atribui falsamente os próprios sentimentos, impulsos e pensa-mentos inaceitáveis para outra pessoa ou objeto.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.b) ( ) Somente a sentença II está correta.c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 A psicopatologia pode ser compreendida a partir de diferentes teorias. So-bre as diferentes abordagens, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) A abordagem comportamental trabalha essencialmente com as possibili-dades que o contexto oferece.

( ) A perspectiva comportamental não considera que estímulos específicos e gerais, e respostas regulam os comportamentos observáveis e verificáveis dos indivíduos.

AUTOATIVIDADE

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( ) A perspectiva humanista percebe o indivíduo a partir de suas motivações e através da busca por autorrealização e significado da vida.

( ) Para a abordagem psicanalítica, os transtornos psicológicos podem ser produtos de pensamentos disfuncionais.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – V – F.b) ( ) F – V – V – V.c) ( ) F – V – F – V.d) ( ) V – F – V – V.

4 Atualmente, há alguns critérios que o campo da saúde mental utiliza para realizar diagnósticos, sendo alguns elencados por Paulo Dalgalarrondo em seu livro Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais. Cite quais são esses critérios e seus significados.

5 Em psicopatologia, segundo Jaspers, os objetivos possíveis de conhecimen-to são os fenômenos psíquicos (singulares) e dinâmicos. Disserte a respeito do fenômeno dinâmico.

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TÓPICO 3 — UNIDADE 1

AVALIAÇÃO, DIAGNÓSTICO E PSICOPEDAGOGIA

1 INTRODUÇÃO

Neste tópico, abordaremos, de forma geral, alguns aspectos da avalição e do diagnóstico para casos de acompanhamento de pacientes, ressaltando, tam-bém, um pouco sobre o manejo de entrevista, uma vez que esta é um dos princi-pais meios pelos quais a avaliação do paciente é realizada. A entrevista é o ponto chave e central da avaliação diagnóstica em psicopatologia e, acoplada à observa-ção cuidadosa do indivíduo, torna-se um dos principais instrumentos de conhe-cimento e manejo de informações valiosas para o diagnóstico clínico.

Especificamente no campo da Psicopedagogia, também são realizadas en-trevistas e avaliações, e, ainda que seja em caráter institucional, alguns manejos e aportes teóricos são similares às práticas clínicas. A Psicopedagogia busca au-xiliar nas dificuldades de aprendizagem, observando sintomas, desenvolvendo atividades para intervenção e para diferentes modalidades de aprendizagem.

A forma com que cada indivíduo lida e entra contato com o objeto de conheci-mento e com as aprendizagens, em geral, é íntima, particular e singular. Com a iden-tificação de como o aprendente lida com isso, o psicopedagogo poderá realizar uma intervenção adequada. Assim, essas atuações demandam extrema responsabilidade por parte do profissional, que deve ter um olhar multifacetado e sem preconceitos.

2 CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO

Na avaliação em Psicopedagogia, é necessário que o profissional tenha uma postura útil e criativa para extrair informações e conhecimentos do indivíduo. O principal aspecto de avaliação diagnóstico, em psicopatologia, é a anamnese, ou seja, o histórico dos sinais e dos sintomas que o indivíduo apresenta ao longo de sua vida, contendo antecedentes pessoais, familiares, meio social e comorbidades em geral.

Veremos, de forma mais detalhada, a anamnese na Unidade 3 deste livro didático.

ESTUDOS FUTUROS

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UNIDADE 1 — PSICOPATOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E PSICOLÓGICOS

Alguns aspectos que devem ser avaliados nessa fase são (DALGALAR-RONDO, 2019):

• Avaliação física: um aspecto fundamental na avaliação global do indivíduo, além de investigar comorbidades e histórico de doenças, é avaliar a condição física no sentido social, como vestimentas e higiene.

• Avaliação neurológica: baseia-se, sobretudo, no exame neurológico. No caso da psicopedagogia, cabe ao profissional solicitar exames para um neurologista ou um neuropsicólogo, considerando que alguns são realizados por profissionais específicos, inclusive no que diz respeito a uma série de testes psicológicos que apenas o psicólogo pode aplicar.

• Avaliação psicológica (ou o psicodiagnóstico): imprescindível no auxílio ao diagnóstico da psicopatologia, pois está presente em quase todos os aspectos, como testes de personalidade, inteligência, cognição social, atenção e memória.

Algumas dessas questões são específicas para a área da saúde, mas o campo da Psicopedagogia tem como referência tanto a saúde como a educação, portanto, é necessário que a prática leve em conta os conhecimentos produzidos em ambas as áreas. O profissional psicopedagogo deve estar atento às singularidades e às necessidades de cada caso e cada contexto.

2.1 ENTREVISTAS CLÍNICAS

As entrevistas realizadas para diagnóstico em psicopatologia são funda-mentais para o profissional que trabalha com saúde mental. Esse instrumento deve ser aprendido, mas seu manejo, de fato, se dá de maneira intuitiva. Parte disso também depende da capacidade do profissional em acolher o paciente em sofrimento, saber ouvir suas dificuldades e sua trajetória de vida sem julgamen-tos. É claro que, para que a entrevista seja realizada, depende também do pa-ciente, de sua personalidade e de seu estado mental e emocional, além de suas capacidades cognitivas (DALGALARRONDO, 2015).

Ademais, o contexto institucional também influencia o andamento da entre-vista, como um centro de saúde, um CAPS, uma escola, um consultório particular, entre outros. Atrelado a isso, ainda os objetivos da entrevista serão significativos e, em alguma medida, determinantes, para o encaminhamento da entrevista – se é para um vínculo terapêutico, para entrevista psicoterápica, orientação familiar, acompanhamento psicopedagógico etc. (DALGALARRONDO, 2019).

Na entrevista inicial, realiza-se a anamnese, que se trata de um reconhecimento de dados pessoais, sociodemográficos, queixas ou problemas, histórico, antecedentes, morbidades somáticas, hábitos, uso de substâncias químicas, história de vida do indi-víduo e da família (DALGALARRONDO, 2019), englobando, especialmente no caso da psicopedagogia, as etapas de desenvolvimento do indivíduo, sobretudo no que diz respeito aos processos de aprendizagem. Essa é uma etapa tanto para coleta de infor-mações como para maior conhecimento do caso e do indivíduo em questão.

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TÓPICO 3 — AVALIAÇÃO, DIAGNÓSTICO E PSICOPEDAGOGIA

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Na área da psicopedagogia, é preciso estar atento para os locais e as for-mas de aprendizagem do indivíduo. Nesse sentido, é recomendado que se evite, por parte do entrevistador, posturas rígidas, julgamentos morais, atitudes exces-sivamente neutras ou frias ou, por outro lado, reações exageradas e hostilidades. É preciso executar a escuta e o acolhimento.

2.2 DOCUMENTOS NORMATIVOS

Atualmente, dois principais documentos normativos na área da saúde mental são:

• A quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), publicado pela American Psychiatric Association, apresenta uma classificação de transtornos mentais e critérios associados elaborada para fa-cilitar o estabelecimento de diagnósticos mais confiáveis desses transtornos. Com sucessivas edições ao longo dos últimos 60 anos, tornou-se uma referên-cia para a prática clínica na área da saúde mental, dividido em conjuntos de transtornos que estão relacionados ou mais “próximos” uns dos outros.

• A Classificação Internacional de Doenças (CID) é um sistema de diagnóstico da Organização Mundial de Saúde (KRAUSS; HALGIN, 2015), um instrumento epi-demiológico que conta com 110 nações-membro e está em sua décima edição.

FIGURA 8 – DIVISÃO DO DSM-5

Categoria Descrição Exemplos de diagnósticos

Transtornos do neurodesenvolvimento

Transtornos que em geral se de-senvolvem durante os primeiros anos de vida, principalmente envolvendo desenvolvimento e amadurecimento anormais

Transtorno do espectro do autismo Transtorno específico da aprendizagem Transtorno de déficit de atenção/ hiperatividade

Espectro da esquizofrenia e outros transtornos psicóticos

Transtornos envolvendo sinto-mas de distorção na percepção da realidade e prejuízo no pen-samento, no comportamento, no afeto e na motivação

Esquizofrenia Transtorno psicótico breve

Transtorno bipolar e transtornos relacionados

Transtornos envolvendo hu-mor elevado

Transtorno bipolar Transtorno ciclotímico

Transtornos depressivos Transtornos envolvendo humor triste

Transtorno depressivo maior Transtorno depressivo per-sistente

Transtornos de ansiedade

Transtornos envolvendo a experi-ência de intensa ansiedade, preo-cupação, medo ou apreensão

Transtorno de pânico Agorafobia Fobia específica Transtorno de ansiedade social

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UNIDADE 1 — PSICOPATOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E PSICOLÓGICOS

Transtorno obsessivo-compulsivo e transtornos relacionados

Transtornos envolvendo ob-sessões e compulsões

Transtorno obsessivo-com-pulsivo Transtorno dismórfico corporal Transtorno de acumulação

Transtornos relacionados a trauma e estressores

Respostas a eventos traumáticos

Transtorno de estresse pós--traumático Transtorno de estresse agudo Transtorno de adaptação

Transtornos dissociativos

Transtornos nos quais a inte-gração normal de consciência, memória, sentido de self ou percepção é perturbada

Transtorno dissociativo de identidade Amnésia dissociativa

Transtornos de sintomas somáticos e transtornos relacionados

Transtornos envolvendo queixas recorrentes de sintomas físicos que podem ou não estar associa-dos com uma condição médica

Transtorno de ansiedade de doença Transtorno conversivo

FONTE: Krauss; Halgin (2015, p. 29)

Vale ressaltar que o DSM-5 é o documento norteador de práticas e diag-nósticos no campo da Psicopatologia. Nesse sentido, para um diagnóstico de ca-sos referentes à aprendizagem, os critérios devem, certamente, ser coerentes com aqueles estabelecidos no documento. Os manuais de diagnósticos de transtornos mentais atuais têm como modelo e base a perspectiva médica e, embora nem to-dos concordem com esse modelo, trata-se dos documentos normativos atuais e que guiam os profissionais. Uma das problemáticas de manuais normativos está relacionada com a possibilidade da tendência a se estigmatizar um conjunto de comportamentos tidos como “doenças”.

3 CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO E A PSICOPEDAGOGIA

No que diz respeito à atividade do Psicopedagogo, é de suma importância compreender os termos clínicos dos quadros de psicopatologia, porém, há algumas questões específicas dessa área, que trabalha essencialmente com indivíduos em situação de aprendizagem. Nesse sentido, a psicopedagogia está sempre num “en-tre-lugar”, de um lado recebe contribuições da saúde e, de outro, do campo da edu-cação. Assim, muitas vezes, os diagnósticos e as intervenções para esse campo não têm uma característica clínica, como no caso da psicologia e da psiquiatria (ORTIZ, 2009). Por isso, abordaremos alguns pontos do diagnóstico em psicopedagogia.

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TÓPICO 3 — AVALIAÇÃO, DIAGNÓSTICO E PSICOPEDAGOGIA

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3.1 AVALIAÇÃO E DIAGNÓSTICO EM PSICOPEDAGOGIA

A psicopedagogia, de maneira geral, oferece mais enfoque em diagnóstico e tratamento de crianças e adolescentes, embora também haja acompanhamento em outras faixas etárias e períodos da vida. Desse modo, pensando no público infanto--juvenil, precisamos observar, primeiramente, o motivo que levou a criança e/ou o adolescente até a busca pelo psicopedagogo (PAÍN, 1985). O paciente, assim, pode ter vindo por encaminhamento do psicólogo, do professor, por preocupações dos pais ou outro motivo. De todo modo, é necessário compreender a queixa inicial.

De acordo com Fernández (1991, p. 35), “para poder chegar a uma con-clusão acerca da existência ou não de patologias estruturadas no aprender (sinto-ma-inibição-transtornos de aprendizagem reativa), nossa visão é orientar-se pela relação do sujeito com o conhecimento”. Assim, embora as bases dos diagnósti-cos estejam focadas na psiquiatria e na psicologia, no caso da psicopedagogia, é necessário que haja interrogações focadas na aprendizagem, como “quais os recursos disponíveis?”, “o que significa aprender para o aprendente e para a fa-mília?”, “qual é sua modalidade de aprendizagem?” (FERNÁNDEZ, 1991).

Nesse cenário, um dos instrumentos para a avaliação do aprendente são as expressões gráficas, considerando que esta é uma das principais formas de co-municação que as crianças utilizam. Com adolescentes, como a expressão verbal é imperante, podemos utilizar uma entrevista livre, na qual o adolescente comu-nica como se sente em relação ao problema que o levou à consulta (ALVAREZ, 2009). Outras técnicas de avaliação são utilizadas no âmbito da psicopedagogia, como (ALVAREZ, 2009, p. 78):

• Teste da figura humana: tem como objetivo avaliar a busca de uma imagem de si mesmo, papéis sociais, preocupação com o corpo etc. Como complemento, po-de-se também sugerir que a criança ou o adolescente relate o que ele desenhou.

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UNIDADE 1 — PSICOPATOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E PSICOLÓGICOS

FIGURA 9 – DESENHO DE UM ADOLESCENTE DE 14 ANOS REPRESENTANDO UMA FIGURA HUMANA

FONTE: Alvarez (2009, p. 80)

• Teste da família prospectiva: tem como objetivo perceber como a criança e/ou o adolescente se prospecta e percebe sua família. Pode-se pedir que desenhe a família fazendo alguma atividade no período de cinco anos. Com isso, o psi-copedagogo pode avaliar como o sujeito percebe os papéis estabelecidos pela família e quais são seus projetos de vida. Além disso, isso fornece informações para a realização da intervenção psicopedagógica.

• Teste visão do futuro: trata-se de uma técnica que trabalha tanto com expres-sões gráficas como verbais. Solicita-se que o adolescente desenhe a si mes-mo, realizando alguma atividade num futuro, cinco ou dez anos. Isso serve para que o psicopedagogo tenha uma visão de como o adolescente percebe a si, quais suas expectativas, ambições e preferências em termos vocacionais. Avalia-se tanto o desenho quanto a escrita, os pontos que convergem e que se contradizem. A técnica foi desenvolvida por Silvia Gelván de Veinstein, especialista em orientação vocacional.

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TÓPICO 3 — AVALIAÇÃO, DIAGNÓSTICO E PSICOPEDAGOGIA

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FIGURA 10 – DESENHO DE UM ADOLESCENTE DE 17 ANOS REPRESENTANDO QUATRO PES-SOAS, DOIS ADULTOS, DUAS CRIANÇAS E UM CACHORRO ASSISTINDO A UM PÔR DO SOL

FONTE: Alvarez (2009, p. 85)

• Avaliação do desempenho escolar: uma avaliação geral do aprendente deve ser realizada, como o tipo e o grau de dificuldade, se é parcial ou generalizada, tem-porária ou permanente, se o aprendente possui alguma metodologia ou estraté-gias de estudo. Para isso, é de fundamental importância que o psicopedagogo entre em contato com os responsáveis e com o local onde o aprendente estuda.

São várias as possibilidades de instrumentos para que seja realizada a avaliação da criança e do adolescente, assunto que será abordado com mais profundidade na Unidade 3.

ESTUDOS FUTUROS

De todo modo, após a aplicação dos instrumentos de avaliação, o psicopedagogo passa elaborar hipóteses sobre o problema e quais estratégias que podem ser utilizadas caso a caso. É claro que esses movimentos, por serem hipotéticos, sempre estão sujeitos à revisão; são etapas nas quais podemos conhecer o contexto geral do aprendente e não devem ser rígidas ou cristalizadas, a fim de não se correr o risco de não perceber sutilezas do contexto ou do problema.

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UNIDADE 1 — PSICOPATOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E PSICOLÓGICOS

3.2 QUESTÕES ESPECÍFICAS DA PSICOPEDAGOGIA

Quando pensamos especificamente no caso da psicopedagogia, o diag-nóstico deve levar em consideração aspectos escolares e, dentro disso, a produção do aprendente e as oportunidades reais a ele oferecidas, o que depende, muitas vezes, de qual classe social o indivíduo está inserido. Nesse sentido, é preciso tomar muito cuidado para que, na prática psicopedagógica, sejam observados os alunos de baixa renda de acordo com seu contexto, e não com padrões estipu-lados e normatizados do que se deve saber sobre determinada faixa etária. Isso porque, muitas vezes, os estudantes de baixa renda são estigmatizados, no que diz respeito à aprendizagem, como deficientes e incapazes quando, na verdade, apenas não tiveram as possibilidades e os pré-requisitos de aprendizagem (PON-TES, 2010). Então, é importante lembrarmos que os critérios diagnósticos dos ma-nuais oficiais, como DSM-5, não devem estar deslocados dos contextos em que a prática psicopedagógica se efetiva, pois, como vimos anteriormente, a história da loucura é carregada de questões morais e marginalizantes.

Outro aspecto está associado ao papel do psicopedagogo na instituição escolar. Esse profissional não tem as respostas prontas, justamente porque é pre-ciso observar e avaliar o contexto e esse movimento deve ser realizado de forma interdisciplinar, em parceria com os demais profissionais da escola, como gesto-res, professores, alunos, família, equipe técnica etc. (PONTES, 2010).

Nesse sentido, em relação ao diagnóstico, o psicopedagogo deve observar as narrativas da instituição e identificar os atores e os papéis desempenhados por eles. Assim, ao adentrar numa instituição, ele deve observar as manifestações simbólicas e visuais do local, como cartazes, murais, painéis, materiais feitos pelos alunos ou ou-tros que constem no local. Além disso, também há as manifestações comportamen-tais, como as normas e os hábitos ali empregados, tanto entre os profissionais como entre os alunos. Isso serve também para que o psicopedagogo perceba os elementos da cultura organizacional presentes na instituição (PONTES, 2010). Desse modo, o diagnóstico psicopedagógico deve ser sempre voltado para um contexto mais amplo.

O desafio e o conselho da história da psicopedagogia é ficar atento aos diagnósticos classificatórios sobre as aprendizagens, porque isso pode gerar um conflito, considerando que a área não possui um quadro nosológico específico. O risco de um diagnóstico classificar e rotular um estudante é, entre outras coisas, fragilizar a possibilidade de ver as avaliações e os diagnósticos como hipóteses passíveis de revisão (ORTIZ, 2009). Por outro lado, assumir a possibilidade de diagnóstico enquanto hipótese, e não como classificação, permite refletir e ques-tionar rótulos que podem ofuscar a visão do horizonte possível para os aprenden-tes. Posto isso, algumas dicas sobre o objetivo do processo de avaliação e diagnós-tico, segundo Susana Ortiz (2009, p. 68), são válidas:

• Promover sua utilização no terro do respeito e da ética, evitando situações e manipulações diagnósticas;

• Considerar os recursos, as potencialidades e as estratégias cogniti-vas de cada sujeito, evitando colocar um “eixo” em suas carências;

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TÓPICO 3 — AVALIAÇÃO, DIAGNÓSTICO E PSICOPEDAGOGIA

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• Discriminar as situações de fracasso na escola daquelas que pos-sam ser consideradas como dificuldades individuais;

• Promover investigações que documentem e permitam elaborar conceituações nos campos da psicopedagogia.

Assim, fica explícita a complexidade que é o diagnóstico psicopatológico no campo da psicopedagogia, pois, além de serem necessários o conhecimento, a linguagem, a história e os documento relacionados com a área, é essencial que o profissional esteja localizado e atualizado nas questões específicas da psicope-dagogia. Se, por um lado, o DSM-5 é fundamental para que seja possível fechar um diagnóstico, por outro, a psicopedagogia tem caminhado no sentido de não rotular os aprendentes, passando a observar e compreender mais as diferenças de contexto. Dessa maneira, considera-se a pluralidade e a singularidade das situa-ções, em vez de perceber a aprendizagem de maneira universalizada ou unifor-me, pelos estágios de desenvolvimento e aprendizagem, o que não corrobora com a realidade, considerando as imensas desigualdades que vivemos.

Com esses aspectos em mente, pode-se pensar no diagnóstico psicopedagó-gico como uma parte importante do processo educativo e do papel que o psicope-dagogo desempenha em termos de prevenção, predição, classificação e de certas ca-racterísticas do aluno e do seu contexto. O diagnóstico, nesses termos, é um processo de recolhimento de informações, que tem por objetivo possíveis dificuldades e, com isso, tomar decisões de intervenção adequadas para melhorar a situação do apren-dente (MOLTO; SANZ; DEVESA, 2006). Com isso, há diversas funções do diagnós-tico, que depende de cada caso e também da abordagem utilizada pelo profissional.

QUADRO 2 – FUNÇÕES DO DIAGNÓSTICO

FONTE: Adaptado de Molto; Sanz; Devesa (2006, p. 33)

Relação entre função e objetivo do diagnóstico psicopedagógicoFunções Objetivos

Descrição Conhecer ou identificar as características do aluno e do contexto

Apreciação Comprovar o progresso do aluno em sua aprendizagemPredição/classificação Tomar decisões sobre atuações educativas

Reestruturação Situar o aluno no grupo adequado a começos do processo de aprendizagem

Prevenção Reorganizar a situação atual ou futura para efetuar uma evolução positiva

Correção Analisar as necessidades para chegar a uma adequada tomada de decisões sobre a conveniência de implementar um programa de intervenção

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UNIDADE 1 — PSICOPATOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E PSICOLÓGICOS

Nesse sentido, o processo diagnóstico tem um caráter científico, porque utiliza métodos científico para realizá-lo, como formular objetivos, hipóteses, re-conhecer e analisar os dados, tendo como instrumentos e técnicas específicas da área para obter resultados. Além disso, o tipo de diagnóstico depende também de qual enfoque teórico o psicopedagogo adota, pois implica também como ele per-cebe o indivíduo e quais estratégias utilizará. No Quadro 2, há alguns exemplos de possibilidades de enfoques.

QUADRO 3 – EXEMPLOS DE POSSIBILIDADES DE ENFOQUES

FONTE: Adaptado de Molto; Sanz; Devesa (2006, p. 33)

Psicométrico Evolutivo Comportamental Cognitivo

Enfoque Quantitativo Estudo de casoQualitativo

Estudo do compor-tamento humano ob-servável

Estudo das Cognições

Objeto de Estudo

Diferença entre os indivíduos

Diferenças intraindividuais

Estudo de condutas desadaptativas

Estudo dos processos cognitivos

Método Correlacional Descritivo

Dinâmico-explicativo

ObservacionalExperimental Experimental

Ênfase No resultado No processo Nas condutas obser-váveis

No processamento de informações

Técnica Testes Escalas de desen-volvimento

Registros do compor-tamento

Simulação de proces-sos cognitivos

O diagnóstico psicopedagógico pode ser considerado um estudo científico do comportamento de um aluno ou de um grupo de amigos, tendo por base critérios e bases científicos. Por isso, o diagnóstico exige uma prática sistemática em termos de organização e geração de dados. No entanto, o diagnóstico também é um processo que se mantém aberto a novas interpretações e possibilidades de que novos dados podem surgir. Por isso, é um processo complexo, que requer a participação de alguns profissionais, como fisioterapeuta, professores, fonoaudiólogos, neurológica, entre outros (MOLTO; SANZ; DEVESA, 2006).

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TÓPICO 3 — AVALIAÇÃO, DIAGNÓSTICO E PSICOPEDAGOGIA

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LEITURA COMPLEMENTAR

O MÉDICO HIGIENISTA NA ESCOLA: AS ORIGENS HISTÓRICAS DA MEDICALIZAÇÃO DO FRACASSO ESCOLAR

Paula Carla Silva do Vale Zucoloto

O presente artigo se refere à pesquisa acerca das origens históricas do discurso da medicalização do fracasso escolar das crianças das classes popula-res. Para vários pesquisadores no campo da educação, o fracasso escolar, que se refere às dificuldades de escolarização das crianças das classes populares, têm sua origem na baixa qualidade de ensino da escola pública brasileira, no descom-promisso do Estado com a educação do povo, nas políticas públicas educacionais que são feitas de maneira autoritária e desrespeitam professores e alunos, no pre-conceito existente para com o aluno pobre e sua família, enfim, na reprodução no cotidiano da escola dos conflitos inerentes à sociedade de classes, através de práticas e relações escolares que produzem as dificuldades de escolarização.

Tendo como pressuposto que a escola é uma instituição social que repro-duz o conflito de classes da sociedade que a inclui e, desse modo, a compreensão das relações escola-sociedade de classes é o pano de fundo que permite um ou-tro entendimento do que se passa nas escolas públicas de ensino fundamental: a sua dimensão política. Parte-se, portanto, de uma postura crítica à psicologia que desconhece a realidade escolar e atribui a causa dos problemas de escolarização às crianças e suas famílias, explicando o fracasso escolar como consequência de deficiências biopsicológicas individuais.

A história das explicações do fracasso escolar tem demonstrado a relação entre o discurso científico que explica o fenômeno e a ideologia dominante, de acordo com a qual só obtêm sucesso os mais aptos, os mais capazes, culpando os alunos pobres e suas famílias, justificando assim a desigualdade social e igno-rando os determinantes escolares e políticos das dificuldades de escolarização. Dentre as explicações para o fracasso escolar, se destacam aquelas que atribuem patologias às crianças que não aprendem ou não se comportam conforme a ex-pectativa da escola: as explicações medicalizantes ou patologizantes.

Medicalizar o fracasso escolar é interpretar o desempenho escolar do alu-no que contraria aquilo que a instituição espera dele em termos de comportamen-to ou de rendimento como sintoma de uma doença localizada no indivíduo, cujas causas devem ser diagnosticadas. A perspectiva da medicalização do fracasso escolar persiste hoje no cotidiano da escola e atribui patologias às crianças das classes populares com dificuldades de escolarização, culpabilizando-as por suas dificuldades, a despeito de pesquisas que põem em questão as relações causais entre distúrbios físicos e psicológicos, de um lado, e rendimento escolar, de outro,

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UNIDADE 1 — PSICOPATOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E PSICOLÓGICOS

e que, colocando o foco nos fatores intra-escolares e dando voz às crianças pro-venientes das classes populares, mostram que elas são, em sua grande maioria, crianças capazes de aprender.

Profissionais como psicólogos, fonoaudiólogos, psicopedagogos, entre outros, adotaram o modelo médico, o que levou autores como Collares e Moysés a sugerirem a substituição do termo “medicalização” por outro mais abrangente, qual seja, “pato-logização” das dificuldades de escolarização. Moysés refere-se a duas versões prin-cipais da patologização das dificuldades de escolarização que permanecem até hoje: o fracasso escolar considerado como consequência da desnutrição, o que é atribuído mais frequentemente às crianças das classes populares e o fracasso escolar considerado como resultado da existência de disfunções neurológicas, tais como os distúrbios de aprendizagem, a hiperatividade, a disfunção cerebral mínima, a dislexia.

Collares e Moysés apresentam resultados de pesquisas que invalidam a relação de causalidade entre desnutrição e fracasso escolar e que podem ser re-sumidos em dois argumentos contrários a esta crença: as crianças que chegam às escolas públicas são portadoras de desnutrição leve, de primeiro grau, sem alterações no cérebro e em sua capacidade de aprender, por outro lado, a alfabeti-zação é um processo que requer o uso das funções intelectuais superiores simples diante do potencial cognitivo do ser humano.

Com relação às “disfunções neurológicas” ou “distúrbios de aprendiza-gem”, essas autoras demonstram que há uma longa trajetória de mitos, estórias criadas, fatos que são perdidos ou omitidos naquilo que denominam a história real e não contada dos “distúrbios de aprendizagem”. Questionam a existência desses “distúrbios” pela falta de comprovação científica, uma vez que argumen-tam que mesmo após cem anos de terem sido aventados pela primeira vez por um oftalmologista inglês, nada foi comprovado. Sendo essas pretensas doenças neurológicas jamais comprovadas devido à inexistência de critérios diagnósticos claros e precisos como exige a própria ciência neurológica, conservando concei-tos vagos e abrangentes demais (p. 29). A patologização da educação consiste em um reducionismo biológico, que é explicar a situação e o destino de indivíduos e grupos através de suas características individuais, desse modo esconde os de-terminantes políticos e pedagógicos do fracasso escolar, isentando de responsa-bilidades o sistema social vigente e a instituição escolar. Como decorrência dessa concepção, é o indivíduo o maior responsável por sua condição de vida e destino, as circunstâncias sociais e políticas teriam influência mínima.

A psicologia aderiu ao modelo médico de atendimento da queixa escolar e esta continua sendo a psicologia hegemônica, visto que a psicologia escolar tradicional ainda explica o fracasso escolar pela via da patologização e, desse modo, as explicações patologizantes do fracasso escolar continuam generalizadas na cultura escolar. O discurso pregnante é o da deficiência ou da doença, os pro-fessores explicam que os alunos não aprendem porque são incapazes, deficientes ou doentes mentais. Essas crenças dos professores geram a demanda por profis-sionais de saúde e tornam possíveis as condições para que a prática do psicólogo escolar na chave da psicopatologia continue a proliferar no âmbito do atendimen-

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TÓPICO 3 — AVALIAÇÃO, DIAGNÓSTICO E PSICOPEDAGOGIA

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to ao escolar. Diante da constatação que a medicalização do fracasso escolar está em pleno curso, surgiu a importância de investigar as origens históricas desta medicalização, perguntando- se sobre o papel que o discurso médico exerceu na construção dessa perspectiva de explicação das dificuldades de escolarização.

Lima investigou a constituição histórica do discurso médico sobre a Saú-de Escolar no estado de São Paulo e identifica a higiene escolar como primeiro constituinte desse discurso. A higiene escolar resultou, segundo esse autor, da interseção de três doutrinas:

a da polícia médica, pela inspetoria das condições de saúde dos en-volvidos com o ensino; a do sanitarismo, pela prescrição a respeito da salubridade dos locais de ensino; a da puericultura, pela difusão de regras de viver para professores e alunos e interferência em favor de uma pedagogia mais “fisiológica”, isto é, mais adequada aos corpos escolares aos quais se aplicasse (p. 85).

Segundo Lima, as primeiras interferências do Estado brasileiro em relação à questão da saúde nas escolas, a partir de 1850, foram tentativas de controle das diversas epidemias no Rio de Janeiro, e a escola era “apenas mais um lugar onde se reunia gente, que precisava ser fiscalizado, igualando-se a tantos outros locais onde isso acontecia, sem nenhuma primazia” (p. 88). Depois de 1900, é que a questão da higiene escolar ganha impulso, “culminando em sua institucionaliza-ção, na década de 10, em alguns estados brasileiros” (p. 88).

A origem de um discurso científico brasileiro mais independente dos se-tores hegemônicos e umbilicalmente ligados aos grupos agrários está no século XIX, de acordo com Schwarcz (1993). Com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil em 1808, foram criadas instituições culturais como as Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, as Faculdades de Direito em Pernambuco e em São Paulo, os Institutos Históricos e Geográficos e os Museus Etnográficos. Essas instituições possibilitaram a reunião dos primeiros cientistas brasileiros, leitores da produção científica europeia, principalmente. Dentre esses cientistas, destacaram-se os médicos e o papel que a medicina desempenhou na sociedade brasileira na segunda metade do século XIX e no período da 1ª República.

Gondra afirma que, na segunda metade do século XIX, a medicina tem sua órbita de interesse e competência ampliada, e o campo educacional emerge como campo conformado pelo discurso médico, uma vez que os médicos passam a definir regras para a organização e funcionamento da educação escolar. Não há consenso, porém, entre historiadores da medicina e da educação sobre a presença efetiva dos médicos no corpo social durante o Império. Gondra9 e Freire Costa defendem que a presença médica na sociedade com esse objetivo de higienização social teria ocorrido no Império, portanto no século XIX. Por sua vez, Lima, Ste-phanou e Patto afirmam que apenas no século XX teve início a inserção efetiva dos médicos na sociedade brasileira.

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UNIDADE 1 — PSICOPATOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E PSICOLÓGICOS

Todos os autores concordam, por outro lado, que ao ampliar os espaços de sua competência, a medicina gerou o fenômeno descrito como medicalização da sociedade, embora discordem quanto ao período em que se dá a presença dos médicos na gestão social. Gondra investigou as representações médicas acerca da educação e concluiu que um determinado modelo de organização escolar foi gestado no interior da ordem médica no século XIX, baseando-se em diversas fontes, dentre as quais se destacam as teses médicas do Rio de Janeiro que abor-dam questões educacionais. A partir da sua análise, afirma que a educação estava ligada ao projeto civilizatório ocidental, pois para os médicos higienistas era ne-cessário formar o homem, dominando a natureza na qual se encontrava inscrito e domando a sua própria natureza.

Evidencia que a educação era a medida e o remédio para o objetivo de “instaurar uma ordem civilizada nos trópicos” (p. 410). Constata a presença do interesse privilegiado dos médicos pela questão educacional com o objetivo de que através da educação poderia ser produzido um homem e uma sociedade regenerados. A ideia de regeneração do povo brasileiro através da educação em uma escola higiênica diz respeito à influência das “teorias” raciais no pensamen-to médico a partir de 1870. Essas “teorias” (darwinismo social e evolucionismo) procuravam explicar as desigualdades sociais como desigualdades naturais, de-correntes de diferenças biológicas entre as raças e coube aos intelectuais brasilei-ros uma interpretação própria dessas “teorias”.

Com o objetivo de dar continuidade à investigação das origens históricas e à compreensão das condições de produção dessa versão medicalizante da escola, que está na origem da patologização dos problemas de escolarização, em geral, e das crianças das classes populares, em particular, a presente pesquisa procurou analisar o discurso médico sobre a escola nas teses inaugurais da Faculdade de Medicina da Bahia na segunda metade do século XIX. Esse artigo se deterá sobre os objetivos específicos de investigar, nas teses selecionadas, as concepções de higiene pública e de higiene escolar e do papel do médico na escola.

FONTE: Adaptado de ZUCOLOTO, P. C. S. do V. O médico higienista na escola: as origens históricas da medicalização do fracasso escolar. Revista Brasileira Crescimento e Desenvolvimento Huma-no, v. 17, n. 1, p. 136-145, 2007. Disponível em: https://bit.ly/3Enzicp. Acesso em: 29 ago. 2021.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

CHAMADA

• O principal aspecto de avaliação diagnóstico, em psicopatologia, é a anamnese.

• As entrevistas realizadas para diagnóstico em psicopatologia são fundamen-tais para o profissional que trabalha com saúde mental.

• Atualmente, dois principais documentos são Manual Diagnóstico e Estatísti-co de Transtornos Mentais (DSM-5) e a Classificação Internacional de Doenças (CID), que é um sistema de diagnóstico da Organização Mundial da Saúde.

• Diagnóstico psicopedagógico deve ser sempre voltado para um contexto mais amplo. O desafio e o conselho da história da psicopedagogia é ficar atento aos diagnósticos classificatórios, no que diz respeito às aprendizagens, porque isso pode gerar um conflito, pois não há um quadro nosológico específico para a área de aprendizagem.

• Diagnóstico psicopedagógico é uma parte importante do processo educativo e do papel que o psicopedagogo desempenha em termos de prevenção, predi-ção, classificação e de certas características do aluno e do seu contexto.

• O processo diagnóstico tem um caráter científico, porque utiliza métodos científicos para realizá-lo.

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1 Técnicas de avaliação são utilizadas no âmbito da Psicopedagogia, que tra-balham tanto com expressões gráficas como verbais. Entre essas técnicas, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Teste da família prospectiva.b) ( ) Avaliação do desempenho escolar.c) ( ) Teste visão do futuro.d) ( ) Teste da figura humana.

2 O Manual e Diagnóstico Estatístico em Transtornos Mentais (DSM) está em sua quinta versão e é um dos principais documentos que norteia as práticas para o diagnóstico psicopatológico. De acordo com o DSM-5, analise as pro-posições a seguir:

I- Transtorno de estresse pós-traumático é considerado um transtorno de an-siedade.

II- Transtorno do espectro do autismo é considerado um transtorno do neu-rodesenvolvimento.

III- Transtorno de adaptação é considerado um transtorno relacionado a trau-ma e estressores.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As proposições I e II estão corretas.b) ( ) Somente a proposição I está correta.c) ( ) As proposições II e III estão corretas.d) ( ) Somente a proposição III está correta.

3 A avaliação em psicopedagogia deve pautar-se em critérios clínicos e tam-bém levar em consideração alguns aspectos sociais. Classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) É fundamental avaliar a condição física no sentido social, como vestimen-tas e higiene.

( ) Na avaliação, é necessário que o profissional tenha uma postura útil e criativa para extrair informações e conhecimentos do cliente.

( ) A avaliação neurológica não é feita em nenhum caso da psicopedagogia.( ) O diagnóstico deve estar dentro dos critérios dos documentos normati-

vos oficiais.

AUTOATIVIDADE

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Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – V – F. b) ( ) F – V – V – V.c) ( ) F – V – F – V. d) ( ) V – V – F – V.

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UNIDADE 2 —

PSICOPEDAGOGIA E PSICOPATOLOGIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender a relação entre fracasso escolar e problemas de apren-dizagem;

• entender as noções de eugenia e darwinismo social a partir de uma pers-pectiva crítica;

• diferenciar a dificuldade de aprendizagem do transtorno de aprendizagem; • compreender as nomenclaturas, causas e sintomas de diversos transtor-

nos de aprendizagem; • utilizar a perspectiva crítica com relação ao alto índice de diagnóstico e

medicação para casos de TDAH; • entender a aprendizagem a partir da alteridade, e não do déficit.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A RELAÇÃO ENTRE PSICOPEDAGOGIA E PSICOPATOLOGIA

TÓPICO 2 – TRANSTORNOS DE APRENDIZAGEM

TÓPICO 3 – MEDICALIZAÇÃO DA APRENDIZAGEM

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Na Unidade 1, vimos alguns aspectos específicos da psicopatologia, ori-gens e complexidades. Agora, partiremos para alguns tempos que relacionam a psicopatologia, ou seja, a percepção de uma doença mental, com o ambiente escolar. Você já parou para tentar fazer esta associação? Afinal, o que uma coisa tem a ver com a outra? Como que a ideia de uma psicopatologia, orginalmente surgida, estudada e difundida a partir de médicos e profissionais específicos da saúde mental, alcançou o campo escolar, tendo cada vez mais participação e legi-timando práticas e saberes?

Para aprofundar essas questões, voltaremos um pouco a alguns marcos históricos que contribuíram para um cenário de patologização da vida escolar e, é claro, também em alguns pontos nos quais a Psicopedagogia, alinhada aos saberes da Psicologia, da Pedagogia e da Medicina, ganhou espaço como uma possibilida-de a mais para pensarmos em tempos de saúde e possibilidades dos aprendentes.

De todo modo, o que temos sempre ressaltado neste livro diz respeito a um olhar atento e sensível, que compreenda o contexto dos aprendentes, a fim de localizá-los num tempo e num espaço que delimita ou amplia possibilidades de aprender. Com isso em mente, podemos repensar também algumas questões que dizem respeito às patologizações no âmbito da aprendizagem.

Nesta unidade, abordaremos sobre a aproximação entre as áreas e como

esta aproximação foi permitida e possibilitada a partir de políticas e percepções de mundo que validavam um tipo de comportamento e um tipo de saber em detrimen-to a outros. Assim, marcaremos historicamente como as áreas da saúde e da me-dicina se imbricaram e ainda se retroalimentam. Com isso, também postularemos sobre alguns contextos que permitem e fertilizam o aparecimento e consolidação de “problemas” de aprendizagem, contudo, veremos estas perspectivas de forma a aguçar também nossa criticidade. No Tópico 2, veremos algumas especificidades dos transtornos de aprendizagem, vinculados aos manuais diagnósticos e classifi-catórias. Abordaremos sobre estes transtornos em linhas gerais. Por fim, no Tópico 3, abordaremos especificamente sobre a medicalização dos processos educativos e a necessidade de voltarmos o olhar para o indivíduo, não para seus sintomas.

TÓPICO 1 —

A RELAÇÃO ENTRE PSICOPEDAGOGIA E

PSICOPATOLOGIA

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UNIDADE 2 — PSICOPEDAGOGIA E PSICOPATOLOGIA

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2 INTERSEÇÃO ENTRE ESCOLA E SAÚDE

Considerando o contexto escola-saúde, uma questão interessante é pensar se existe algum médico trabalhando nas escolas ou se um aluno foi encaminhado para o médico devido a uma situação escolar? Por isso, refletiremos sobre essa aproximação entre saúde e medicina e baseada nas teorias em que se firmaram nos saberes educacionais e nas práticas sociais.

Um ponto inicial sobre o processo de higienização na escola refere-se ao problema do fracasso escolar que, para diversos autores (PATTO, 1999; FER-NANDEZ, 1999; ZUCOLOTTO, 2007) está relacionado com as dificuldades das crianças de baixa renda, com poucas aquisições e poucos acessos a capitais cul-turais e materiais e que contam com um ensino de escola pública brasileira em descompromisso com a qualidade para estas populações (ZUCOLOTTO, 2007).

Isto relaciona-se, por um lado, a áreas do saber (medicina e psicologia, por exemplo) que desconhecem a realidade escolar e, assim, atribuem diagnósticos pau-tados em manuais que tem um caráter universalizado. Desse modo, explicam o fra-casso escolar a partir de uma perspectiva “naturalista”, atribuindo deficiências biop-sicossociais individuais em casos que, muitas vezes, trata-se apenas de falta de acesso a determinados bens de consumo, ou o conhecimento de alguns pré-requisitos para que se possa avançar na aprendizagem, entre outros fatores (ZUCOLOTTO, 2007).

A Psicologia e a Psicopedagogia, em seus primórdios, aderiram ao mo-delo médico de atendimento a queixa escolar. Hoje, certamente, há perspectivas críticas a esse modelo, embora ainda seja este o modelo dominante. Assim, o dis-curso predominante é aquele que pensa a partir da deficiência, da doença e da incapacidade. Precisamos pensar, portanto, nas ideias que vigoram no Brasil re-lativamente às dificuldades escolares que se manifestam predominantemente em crianças pertencentes às classes de baixa renda, ou seja, setores mais empobre-cidos da população. Contudo, para que possamos compreender esse fenômeno, precisamos também compreender como o modo dominante de pensar a escolari-dade tem como referência e constituição países da América do Norte e da Europa durante o século XIX adiante (PATTO, 1999).

Desse modo, pensamos a partir de uma perspectiva crítica em relação a um discurso que está sempre endossando a ideologia dominante e ao sucesso dos mais aptos e capazes que, por vezes, tiveram também mais condições tanto de acesso quanto de permanência nos espaços de formação. Com um discurso que culpam alunos e famílias pobres, ignorando fatores determinantes para dificuldades escola-res, surge, então, um enviesamento das práticas e das percepções das situações dos aprendentes e da logística geral do funcionamento escolar (ZUCOLOTTO, 2007).

Essas considerações são importantes para pensarmos sobre a Psicopeda-gogia e a Psicopatologia para nossa compreensão, em termos sociais e históricos, da construção dos nossos saberes e, assim, estarmos atentos às nossas práticas.

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Dessa maneira, compreendendo como se deu a construção de higiene escolar e, com isso, a ideia de uma normalidade que precisa ser alcançada na escola, con-seguimos também não cair em velhas armadilhas de categorizações simplistas.

2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA IDEIA DE HIGIENE

O mundo tal como conhecemos hoje, com a construção de cidades, com organizações estatísticas sobre vida e morte da população, escolas como direito de toda população, limpeza das ruas, coleta de lixo, direitos trabalhistas, entre outros, é uma construção social moderna. Um dos impactos para a transformação de uma realidade predominantemente rural para a construção e urbanização das cidades surge com a indústria.

Durante o século XIX, as cidades eram caracterizadas, em grosso modo, pela industrialização, urbanização e migração da população dos setores rurais em busca de emprego nos setores urbanos. A esta altura, as cidades eram superpovoadas, sem infraestrutura que suportasse tamanhas e radicais mudanças em sua estrutura (PAT-TO, 1999). Nesse cenário, configurava-se um ambiente caótico onde a insegurança dominava a vida dos trabalhadores e a miséria estava sempre à espreita.

A visão de mundo que se consolida a partir deste período apresenta duas principais vertentes: de um lado, a crença na razão e na ciência como símbolo de progresso individual e social; e, por outro lado, um projeto liberal onde haveria, supostamente, igualdade de oportunidades a todos, com forte ensejo aos estados nacionais, ou seja, o nacionalismo, que ganha espaço e impulso para uma im-plantação das redes públicas de ensino na Europa e na América do Norte, mais tarde também consolidadas no Brasil (PATTO, 1999). Podemos pensar, portanto, que a ideia de uma escola universal surge, inicialmente, como projeto das classes dominantes por depositar na razão e na ciência o progresso da humanidade, ou seja, escola como grande salvaguarda da nação.

Desse modo, a escola passa a ser uma instituição e um instrumento para uma ideia de unificação nacional, que possibilita um caminho para mais igualda-de social, além de maiores chances de mobilidade social (PATTO, 1999). Portanto, a partir da ideia da escola como instituição que promove e formaliza saberes e, com isso, abrangendo o leque de oportunidades para a saída da miséria, passa a ser desejo também pelas classes trabalhadores, vendo neste meio uma forma de escapar, por vias legais e socialmente aceitas, de uma melhor condição de vida.

Por um lado, portanto, havia um crescimento das cidades e uma busca por organização e limpeza geral. Por outro lado, havia a possibilidade de mobilidade social através da escolarização. A união destas duas vias levou a algumas concep-ções estereotipadas das pessoas a partir de sua origem, em termos de localização geográfica, em termos culturais ou em termos de classe social. A partir daí, muito do que foi elaborado em nome desta “organização” e “limpeza” baseou-se em um cientificismo recheado de julgamentos morais, como é o caso do racismo presente nas teses sobre raças e nas práticas de higiene na escola.

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2.1.1 Higienização e Racismo: uma via de mão única

A dinâmica da sociedade capitalista sofria diversas modificações, no sé-culo XIX, haja vista novas estratégias utilizadas em termos de concorrência entre produtores, onde o monopólio e os oligopólios suprimem as possibilidades do pequeno produtor, que não possui recursos para competir em pé de igualdade com indústrias maiores e mais estruturadas. Dessa forma, organizam crescimen-to do capital financeiro para além do mar, rumo à África e à Ásia, com a proposta de viabilizar formas de produções mais baratas, onde poderiam explorar a maté-ria-prima e mão de obra a custo baixo (COSTA, 1987).

Não obstante, ao chegar em novos territórios, o europeu depara-se com sociedades organizadas de formas avessas àquelas comuns no Ocidente e inicia um processo de modelagem de comportamentos e crenças convergentes com os ideais do capitalismo e com as noções de civilidade. Na prática, isso significou coibir expressões que remetessem às tradições locais para dar lugar aos valores do colonizador como referência máxima de evolução e modernidade (COSTA, 1987). O crescimento econômico que os industriais almejavam passa a ser possí-vel, mas ainda é necessário justificar a dominação e exploração truculentas das colônias, o que se faz valer, nessa altura, através do uso oportunista do discurso evolucionista de Charles Darwin.

O darwinismo social caracteriza-se pela noção que as sociedades se desen-volvem e evoluem numa lógica inspirada na teoria da evolução biológica das espé-cies animais, de Charles Darwin, e, nesse sentido, há um fluxo em que um estágio social inferior “dá lugar” a um estágio superior (COSTA, 1987). Assim, a sociedade europeia do século XIX é posta – pelos próprios europeus – como superior às so-ciedades encontradas do outro lado do oceano, o que se cristaliza como verdade e oferece subsídios e teorias para aplicar e desenvolver sua exploração sob um véu de possibilidades de crescimento, evolução e civilização, um “manto humanitário”.

Os principais cientistas sociais positivistas, combinando as concepções organicistas e evolucionistas, inspiradas na perspectiva de Darwin, entendiam que as sociedades tradicionais encontradas na África, na Ásia, na América e na Oceania não eram senão fósseis vivos, exempla-res de estágios anteriores, “primitivos”, do passado da humanidade. Assim, as sociedades mais simples e de tecnologia menos avançada, deveriam evoluir em direção a níveis de maior complexidade e pro-gresso na escala de evolução social, até atingir o topo: a sociedade in-dustrial europeia (COSTA, 1987, p. 50).

Nesse sentido, no bojo de teorias e ideias que fervilham a partir do século XIX, a publicação de “Origem das Espécies”, de Chales Darwin, contribui para o endosso de teorias racistas que buscam elementos nesta teoria evolucionista para sua afirmação e legitimação. Por este viés, a teoria de Darwin, foi usada como jus-tificativa para a ideia de uma hierarquia social e, desse modo, validar uma série de violências contra povos que não cumpriam os critérios abstratos estabelecidos pela classe dominante e intelectual sobre o que seria um ser humano e como

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deveria ser a civilização (PATTO, 1999). Vale ressaltar que essa teoria de Darwin foi utilizada como base, mas não foi a intenção do autor, que formulou sobre a evolução das espécies, transportar suas ideias para o campo social e cultural.

A aplicação da teoria de Darwin para o universo social, ou seja, a crença de que haveria uma seleção dos mais aptos socialmente, resulta numa leitura e interpretação dos indivíduos a partir de uma ótica biologizante, quase mística, da vida em socieda-de (PATTO, 1999). Desse modo, quando pensamos em darwinismo social, atribuímos uma série de práticas racistas que colocam o homem branco e europeu como régua e modelo que deve ser seguido e, assim, não reconhecemos diferenças, alteridades, sin-gularidades de outros povos e culturas. Não obstante, a sociologia, a antropologia e a psicologia que se oficializam a partir desta época estão imbuídas desta ideologia domi-nante, legitimando a ideia da desigualdade social e racial como algo inerente, natural.

Contudo, um dos perigos impressos nestas abordagens surgiu a partir de concepções de mundo colonizadas e racistas sobre a hierarquia entre indivídu-os e culturas. As ideologias racistas, que foram também impregnadas na forma como se compreendem a aprendizagem escolar, teve sua divulgação mais intensa a partir do século XIX e seu apogeu entre 1850 e 1930.

No marco das sociedades industriais capitalistas, o racismo, antes de ser uma ideologia para justificar a conquista de outros povos, foi muitas ve-zes uma forma de justificar as diferenças entre classes, principalmente nos países em que a linha divisória das classes sociais tende a coincidir com a linha divisória das raças, o que significa afirmar que de serviu como “arma na luta de classes”. A confusão entre raças e classes sociais atinge tais proporções no século XIX que, segundo Moreira Leite (1976). a “luta de raças” passou a ser considerada “o motor da história” no âmbito das nascentes interpretações raciais da História. Por esta via, justificava-se a dominação e a exploração, preservando-se o ideário liberal que só na apa-rência era inconciliável com as teses racistas (PATTO, 1999, p. 53).

Um grande precursor de ideias – baseadas na origem das espécies, de Darwin – que hierarquizam os indivíduos a partir de uma ótica de diferenças bio-lógicas e “objetivas” foi Francis Galton (1822-1911), pertencente à abordagem de uma “psicologia diferencial”, ou seja, pautava-se em investigações quantitativas e experimentais sobre as diferenças existentes entre indivíduos e grupos. Galton realizou uma transposição das ideias de Darwin e seus princípios evolucionistas para o campo social, dando revelo aos aspectos de variação, seleção e adaptação das capacidades humanas. Ele pretendia demonstrar, com suas pesquisas, que as aptidões naturais eram herdadas assim como os aspectos físicos dos indivíduos.

No decorrer de suas atividades intelectuais, Galton transitou pelas quatro vertentes da psicologia das diferenças individuais: dedicou-se ao estudo da biologia, e a investigações nas áreas da estatística (contri-buindo significativamente para o desenvolvimento das noções de dis-tribuição normal, significância estatística e correlação), da psicologia experimental (através da pesquisa, em laboratório, das manifestações psíquicas) e dos testes psicológicos (criando vários testes e medidas de processos sensoriais precursores dos testes de inteligência). O objetivo principal era medir a capacidade intelectual e comprovar a sua deter-minação hereditária (PATTO, 1999, p. 59).

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Para além disso, um dos objetivos de Francis Galton era, de fato, contri-buir para o destino da humanidade pautado na ideia de eugenia, ou seja, uma “ciência que visava controlar e dirigir a evolução humana, aperfeiçoando a es-pécie através do cruzamento de indivíduos escolhidos especialmente para este fim (PATTO, 1999). Não obstante, estas ideias de Galton ganharam fertilidade na comunidade científica, sendo, inclusive, referência para pesquisas em psicologia diferencial até meados do século XX.

O documentário Homo Sapien 1900, do diretor Peter Cohen, da Suécia, estreado em 1998, aborda os ideais eugênicos, a busca pela limpeza racial e a construção de uma raça superior defendidos, principalmente, no início do século vinte, sobre os contextos europeu, norte-americano e soviético. Devemos pontuar aqui que a ciência da eugenia, desenvolvida por Francis Galton, foi criada sob a influência da leitura do livro “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin; acreditando que as capacidades humanas eram basicamente influenciadas pela hereditariedade, e não pela educação. Utilizando-se de imagens surpreendentes, muitas destas inéditas, o documentário enfoca este comportamento racista sendo reforçado sob um argumento de que a ciência estava a favor de tais preceitos. Propondo uma seleção mais eficiente e rápida que a seleção natural, a fim de aperfeiçoar a sociedade, medidas como incentivos financeiros a casais favoráveis e, ao mesmo tempo, programas de esterilização e eutanásia, eram consideradas. Além disso, a o filme mostra a fundamental importância da medicina e da arte tanto para efetivar medidas quanto para afetar num nível subjetivo o que se considera belo e aceitável na sociedade.

FONTE: <https://bit.ly/3CvoAA5>. Acesso em: 14 out. 2021.

DICAS

FIGURA – FILME HOMO SAPIENS 1900

FONTE: <https://bit.ly/3pCDUXO>. Acesso em: 14 out. 2021.

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Com essas ideias fervilhando a partir do século XIX, o ambiente escolar foi um dos terrenos onde tais teorias ganharam espaço, passando pela preocupação com a superdotação ou a subdotação intelectual, baseado também nos estudos e nos testes psicológicos de Galton. Desse modo, a Psicologia sedimentou uma visão de mundo biologizante, considerando que os testes de inteligência favoreciam os mais ricos e, assim, reforçava a ideia de darwinismo social onde os mais capazes ocupavam também os melhores lugares sociais (PATTO, 1999). É claro que neste bojo, era ignorado que nem todos tinham as mesmas oportunidades de acesso a bens culturais e materiais, além de nem todos conseguirem a permanência nos es-paços de prestígio social, como a escola, por exemplo. Assim, estas visões passam a ser vistas como preconceituosas pois consideram suas interpretações tendo, a priori, um ponto de chegada essencial e esperado pelos profissionais de saúde mental.

Dessa forma, a explicação encontrada para muitos casos de dificuldade de aprendizagem estava imbricada a duas ideias: de um lado, as ciências biológicas, como a medicina, com ideais organicistas, como temos visto até aqui; e, de outro lado, as ideias da psicologia e da pedagogia na passagem do século que passa a buscar uma visão menos determinista, passando a considerar mais as influências do ambiente. Ainda assim, os primeiros especialistas a focarem nas dificuldades de aprendizagem foram os médicos.

Essas teorias que embasavam especialistas no final do século XVIII e século XIX em muito contribuíram para o desenvolvimento da medicina e das ciências biológicas, sobretudo na área da psiquiatria. Assim, havia detalhados manuais com classificações do que seria normal e o que seria anormal. Os problemas de apren-dizagem, neste ínterim, passaram a tomar corpo e ocupar espaços nos manuais e nas instalações médicas, chamando as crianças que não aprendiam de “duros de cabeça”. Assim, o problema da anormalidade passou dos hospitais para as escolas e as crianças que apresentavam dificuldades de aprendizagem eram chamadas de “anormais escolares” e as causas para tais dificuldades eram procuradas em causas orgânicas e biológicas, com endosso a partir da eugenia e do darwinismo social.

A partir da Primeira Grande Guerra, a preocupação com a educação das crianças, de forma classificatória, passa a ganhar mais ênfase nas ciências e no campo social, de modo a investigar os super e os subdotados na população infan-til, a fim de oferecer uma educação escolar. Neste contexto, os testes psicológicos ganham mais legitimidade, ingressando nas escolas.

Especificamente no Brasil, com vinda da Corte Portuguesa para o Brasil, a partir de 1808, foram criadas instituições educacionais e culturais para dar conta e abarcar o repertório exigido pela Corte. Dentre estas instituições, destaca-se as Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. Estas instituições pioneiras no Brasil tinham como grande referência, principalmente, o discurso científico eu-ropeu, sendo a área da medicina um dos maiores destaques a partir da segunda metade do século XIX, quando tem seus campos de atuação ampliados, abarcando também o campo educacional, com vias de definição de regras, organização e for-mas de educação. Com a ampliação da área de atuação da medicina, surgiu tam-bém o fenômeno descrito como medicalização da sociedade (ZUCOLOTTO, 2007).

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A medicalização da sociedade brasileira, de acordo com Freire Costa, refere-se ao fato de que a Medicina e o Estado firmaram um compro-misso de higienização das cidades e das populações, pois o Estado reconheceu que a ordem e o progresso sociais dependiam da higieni-zação destas. Os médicos, influenciados pela literatura européia, vol-taram-se para a realidade da falta de higiene urbana e começaram a tratá-la em teses apresentadas às Faculdades de Medicina a partir de meados do século XIX. É neste contexto que surgem as teses de douto-ramento defendidas nas Faculdades de Medicina, tendo como tema a higiene escolar (ZUCOLOTTO, 2007, p. 139).

Esse discurso estava imbuído de teses sobre a regeneração do povo brasi-leiro através da educação de uma escola higienizada. Este pensamento tem como base as influências das teorias raciais (racistas) no pensamento científico a partir de 1870. Estas teorias ficaram conhecidas como darwinismo social e pensavam em culturas e indivíduos a partir de uma noção de evolução, onde o ponto de re-ferência era sempre o homem branco, civilizado e letrado, tal como era comum na Europa. Ao ser transferida esta mentalidade para os espaços sociais brasileiros, como a escola, e ao não se alcançar este ideal de “homem evoluído” devido a di-ferenças sociais e culturais, a linha de corte do que seria um “homem civilizado” abarcou boa parte da população, pois consideravam pessoas pobres, periféricas, negros e índios como estando muito abaixo no nível da evolução. Desse modo, desigualdades sociais eram atribuídas a deficiências naturais que eram decorren-tes de causas biológicas entre raças. Neste ínterim, começamos a compreender a patologização em massa de uma parcela da população que está na margem, ou seja, que estas teorias evolucionistas não alcançam (ZUCOLOTTO, 2007).

De todo modo, devemos ressaltar que o tema da higiene escolar está den-tro do tema mais amplo de higiene pública e higiene geral que estava cada vez mais em voga com o advento da urbanização das cidades, onde se pensava em termos físicos das ruas e dos espaços, a fim de gerar menos doenças na popula-ção. Com isso, algumas teses da Faculdade de Medicina da Bahia, entre os anos de 1869 a 1898 foram analisadas e sintetizadas por Zocolotto (2007, p. 6), a saber:

QUADRO 1 – HIGIENE PÚBLICA

FONTE: A autora

Teses Conteúdos1869 A higiene pública é definida como prevenção de doenças

1885 Concepção de higiene como preservação da saúde do corpo e do espírito

1886 A concepção de higiene escolar se dirige para o objetivo de elevar a nação brasileira à altura das nações civilizadas através da escola higiênica

1898Intuito de aperfeiçoamento da raça, denotando a influência das “teorias” raciais no pensamento médico. A higiene como a “magna questão” que soluciona o “problema social”.

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Essas são algumas sínteses do discurso que estava em vigor sobre a higiene pública e escolar no século XIX. Nas teses de 1869 e 1885 a higiene seria uma ne-cessidade das escolas em geral para, com isso, diminuir o índice de adoecimento de crianças. Tem, assim, um caráter de saúde pública, com vias de prevenção da propagação de epidemias. A terceira tese, de 1898, contudo, a concepção de higiene muda de um foco de higiene pública para a concepção de elevar a nação brasileira à altura das nações e dos homens civilizados. Assim, a preocupação já não é apenas com o bem-estar de todos, mas a um objetivo maior que estaria imbricado à forma-ção de toda uma geração e o que se espera dela em termos sociais. Essa preocupa-ção com uma higiene que também é social e estética, ganha uma força e legitimida-de junto ao discurso de progresso da nação, de forma que um projeto de uma escola higiênica passa a ter grande importância e repercussão (ZUCOLOTTO, 2007).

Essas teses, além de serem um registro histórico sobre o tema de higiene escolar no Brasil, também se caracterizam como um momento de constituição de um discurso médico sobre a educação. A esta altura histórica, a escola era vista, a partir deste discurso médico, como um lugar propício para a disseminação de doenças nas cidades brasileiras (ZUCOLOTTO, 2007).

Assim, inicialmente, as avaliações dos “anormais escolares” eram realizadas de acordo com avaliação médica, o que se tornou um equivalente a avaliação intelec-tual nos primeiros anos do século XX (PATTO, 1999). Os testes de QI, por exemplo adquiriram grande importância e símbolo de verdade sobre a capacidade dos in-divíduos. Na década de 1930, com o advento de um sistema educacional brasileiro unificado, os médicos passaram a fazer parte também do corpo docente das Escolas Normais, onde realizavam formação dos profissionais da educação. Para exemplifi-car esta base, o médico e antropólogo Arthur Ramos, discípulo de Nina Rodrigues, abriu centro e clínicas de higiene mental e escolar, além de dar importância às crian-ças que “não aprendiam”, numa perspectiva de patologização, chegando também a escrever o livro “A criança problema”, em 1939 (ZUCOLOTTO, 2007).

É importante salientar que estes médicos-psicólogos tão atuantes a partir da década de trinta, formaram-se pessoal e profissionalmente no início do século, na mesma época, portanto, em que circulavam, com grande prestígio, as teorias racistas em suas formulações brasi-leiras e quando se esboçavam os primeiros “retratos psicológicos” do brasileiro, que tinham como pano de fundo os pressupostos da supe-rioridade da cultura europeia e da raça branca (PATTO, 1999, p. 106).

Não obstante, havia, já nessa altura, uma consideração pela influência am-biental no desenvolvimento da personalidade e, portanto, também da aprendi-zagem nos primeiros anos da criança. Esta dimensão afetivo-emocional transfor-mou a nomenclatura na qual a criança era interpretada de modo que de “criança anormal”, passou-se a considerar como “criança problema”, tal como no livro de Arthur Ramos. Para este autor, não bastava que fossem analisados os componen-tes físicos e hereditários dos indivíduos, também era necessário que se avaliasse os meios de desenvolvimento pelos quais passaram e, assim, a associar os “desa-justes” da criança com seu ambiente familiar, ressaltando no ambiente a falha, o

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que ainda caminhava de mãos dadas com o ideal eugênico, pois eram as famílias mais pobres que menos tinham suportes e capitais para oferecer às crianças, res-saltando-se, assim, as desigualdades sociais.

FIGURA 1 – ARTHUR RAMOS

FONTE: <https://bit.ly/3pBm6wj>. Acesso em: 14 out. 2021.

As publicações que carregam em seu título a expressão “criança problema”, a partir da década de 1930, operavam numa concepção que buscavam, a partir do arca-bouço da psicologia clínica e da psicanálise, os desajustes familiares que explicassem os “problemas” infantis. Ou seja, se antes estas avaliações estavam predominante-mente atreladas à uma avaliação e aos instrumentos da medicina, com pautas orgâ-nicas e genéticas, agora expandem-se para outros campos e influência, embora ainda carregadas de juízo de valor e em sintonia com os ideais das classes dominantes.

O filme O Contador de Histórias conta a história de Roberto Carlos que aos seis anos de idade foi levado por sua mãe para viver na FEBEM. Vinda de uma família pobre de Belo Horizonte, nos anos 1970, ela acredita nas propagandas do governo militar, que afirmam que a instituição é o meio mais seguro das crianças terem um bom futuro. Lá, porém, Roberto encontra o contrário daquilo, e logo aprende a fugir, roubar e usar drogas. Com 13 anos, já é considerado um caso perdido na fundação.Quando o menino é recapturado em uma de suas 132 fugas, ele conhece Margherit, uma pe-dagoga francesa que está fazendo uma pesquisa com crianças brasileiras. Apesar da insistência da diretora da FEBEM para que ela estude o caso de crianças que se recuperaram, a pedagoga acredita que Roberto pode ser produtivo para ela. O menino, no entanto, não parece querer colaborar, e faz de tudo para evitar as insistentes aproximações da francesa. Quando ele usa a violência para afastá-la, a mulher percebe que pode ter feito a escolha errada.

DICAS

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Disposta a mudar o foco de suas pesquisas, Margherit é surpreendida por Roberto, que invade sua casa após sofrer um grande trauma. Assustado e sem ter para onde ir, ele se re-fugia no único lugar onde recebeu algum cuidado nos últimos anos. Ela, porém, também fica com medo do que pode esperar daquele encontro. Com cuidado, a pedagoga tenta dar uma segunda chance ao menino e vai conquistando a confiança dele, que aos poucos mostra ter uma grande imaginação. A convivência com Margherit faz com que Roberto contradiga todas as expectativas, tornando-se um grande contador de histórias.O Contador de Histórias é baseado na história real de Roberto Carlos Ramos, que aos 13 anos foi adotado pela pedagoga francesa Margherit Duvas, formou-se pedagogo e é considerado um dos dez maiores contadores de histórias do mundo. Ramos estudou na França e retornou ao Brasil, onde passou a lecionar e adotou 25 crianças. O filme é dirigido por Luiz Villaça.

FIGURA – FILME O CONTADOR DE HISTÓRIAS

FONTE: <https://bit.ly/2ZqoHi2>. Acesso em: 14 out. 2021.

O filme ilustra como a mudança de contexto pode determinar, em grandes medidas, a forma o indivíduo vai se relacionar com a aprendizagem. Da casa da mãe, foi para uma instituição que o tratava como “delinquente” devido a cor de sua pele. Deste contexto institucional, passou a morar com uma pessoa que confiava e acreditava na expansão de repertório e possibilidade. Essa mudança e essa confiança continuaram com Roberto Ramos por toda a sua vida, que continua contando sua história e afetando outros. Isso é exemplo de como as dificuldades de aprendizagem podem estar além de fatores orgâni-cas e o quanto o meio pode intervir.

FONTE: <https://bit.ly/3pBn8bF>. Acesso em: 14 out. 2021.

Sobre o ponto para que a recorrência de dados que apontam negros e trabalhadores pobres com índices inferiores e sistematicamente mais baixo nos testes psicológicos passa de racial (em termos biológicos) para cultural, a psicolo-gia diferencial teve grande influência. Isso porque a psicologia diferencial tinha também como referência conhecimentos acumulados pela antropologia cultural. Devemos ter atenção voltada, contudo, para os modos de perceber diferentes cul-turas (PATTO, 1999). Dessa forma, se uma cultura não é vista a partir dos pró-prios termos, história, modos, artefatos e linguagens, mas é vista tendo como pa-

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râmetro outra cultura e esta, por sua vez, caracterizada como superior, o risco e a armadilha que corremos é considerar como “primitivos” ou “atrasados” aqueles que não participam da cultura dominante. Assim, começa a ser fertilizado, tanto nas teorias como nos meios sociais, o mito de raças ou indivíduos inferiores que gerariam e grupos familiares patológicos e desajustados, recaindo sobre as crian-ças que apresentavam dificuldades de aprendizagem.

No entanto, quando passa a tratar do que chama de “fatores sociais” da repetência na escola primaria, ela nos surpreende duplamente: pri-meiro, pela incoerência que introduz em seu raciocínio, ao passar a atribuir as principais dificuldades da escola pública a características externas a escola e localizadas no aluno e em seu ambiente familiar e cultural; em segundo lugar, pela maneira preconceituosa e estereoti-pada como vê os integrantes das classes subalternas, certamente por-tadora do preconceito racial confirmado pelas teorias racistas em vigor nos meios intelectuais brasileiros até pelo menos a década anterior e pelas teorias racistas em vigor nos meios intelectuais brasileiros até pelo menos a década anterior e pelas teorias antropológicas que as sucederam, cuja influência sobre a maneira de pensar as diferenças sociais foi muito mais duradoura. Impressiona, de qualquer forma, o tom moralista que impregna suas observações a respeito do que supõe ser a vida na pobreza e suas supostas consequências para a escolarida-de das crianças pobres (PATTO, 1999, p. 119).

Nesse sentido, ou seja, com a criação de teorias de cunho evolutivo que clas-sificam o desenvolvimento em níveis hierárquicos, a psicologia do desenvolvimen-to contribui para normas que sejam transformadas em fatos e consideradas natu-rais, partindo – ou apoiando-se – de valores morais socialmente estabelecidos. Por este ângulo, conceitos como competência ou habilidade funcionam como forma de expectativa e exigência, proveniente da racionalidade ocidental, sem considerar o componente histórico e contextual de que se fala, pois, cada criança desenvolve-se num tempo e sociedade com uma história específica, o que a faz ser permeável às questões sociais e culturais do lugar e tempo que habita (JOBIM; SOUZA, 1996).

Essas construções teóricas – que também são sociais, políticas, geográficas etc. – tem referência a partir de várias frentes e fontes que exaltam um caráter de hierarquia entre indivíduos. Dito de outra forma, diversos saberes convergem para uma forma de perceber o mundo, a partir do século XIX, que está focada numa universalização e numa medição de corpos e comportamentos. A ideia de infância foi também essencial para a construção da sociedade moderna tal como conhecemos hoje, isto porque a criança passa a ser o centro da família e da escola, surgindo, assim, diversas produções de conhecimento para averiguar e assegurar um crescimento “saudável” e “seguro” para todos.

2.2 A CONSTRUÇÃO DA INFÂNCIA NORMATIZADA

Paralelo a um cada vez mais crescente racismo científico, também havia a busca por uma normalização da infância (grosso modo, esta busca por norma-tização abarca todas as áreas da vida moderna). Nesse sentido, a garantia de um

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tipo de progresso social dependia, em grande medida, de como as gerações se comportariam e, para isso, a educação das crianças passou a ser um ponto cada vez mais importante, sendo, assim, a família e a escola, as instituições que tute-lam a criança, de suma importância, tendo cada vez mais material científico com informes e estudos sobre o que é ou não indicado para cada faixa etária. Num viés histórico, um autor que demonstra o caráter social da infância é Philippe Ariès (1981) que, em seus estudos, demonstrou como a relação com as crianças era substancialmente diferente na Idade Média e início da Renascença e, não obs-tante, como as modificações que as estruturas sofrem.

Até o século XIII, de acordo com Ariès (1981), não havia especificações próprias da infância e crianças eram vistas como adultos em miniatura, com res-ponsabilidades e participação nas atividades da época (como jogos e danças), além da inexistência da escola como instituição obrigatória em determinada ida-de. O sentimento de infância, ou seja, a ideia de que a criança possui especificida-des e pertence a uma categoria geracional, é oriunda da modernidade. Anterior a isso, não havia diferença de “mundos” entre adultos e crianças.

A obra História Social da Criança e da Família, de Philippe Ariès, é um câno-ne na área acadêmica que se debruça sobre a construção da ideia de criança, infância e família modernas. O autor faz sua análise a partir de diversos documentos, como diários, músicas, fotos, além da iconografia da idade média.

DICAS

FIGURA – LIVRO HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA, DE PHILIPPE ARIÈS

FONTE: <https://realitasdotnet.wordpress.com/2015/05/25/>. Acesso em: 14 out. 2021.

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O primeiro sinal de sentimento de infância surge com a paparicação, nos anos iniciais das crianças, pelos adultos, como fonte de divertimento. No entanto, moralistas e eclesiásticos da época consideravam tais posturas ultrajes a partir da concepção de imaturidade e ausência de alma da criança. Desenvolve-se, então, a necessidade de moralizar e disciplinar a criança em múltiplos aspectos, o que modifica o cenário e as relações com adultos (ARIÈS, 1981).

Portanto, de forma gradativa, coube à família o cuidado e a responsabili-dade com as crianças, que consistia em incutir os valores necessários para ascen-são social ou espiritual. Ademais, emerge a criação da escola como atividade im-posta diariamente a determinada faixa etária que, nas palavras de Ariès (1981, p. 11), tratou-se de “[..]um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderiam até nossos dias e ao qual se dá o nome de escolarização”.

Para entender os processos das mudanças e nuances das concepções de infância através dos séculos numa abordagem da história e da filosofia da edu-cação, Boto (2002) postula sobre a noção renascentista de infância e puerilidade para dois dos principais teóricos clássicos da filosofia da educação: Comenius e Rouseau. No período da Renascença, para os humanistas (século XVI), a criança era vista como ser incompleto e nela havia a promessa para a maturidade, no entanto, com pouca fundamentação e muito amplitude, de forma que as críticas em relação às proibições ou permissões pareciam flutuantes, onde e deve oferecer liberdade e dar-lhes freios, simultaneamente.

Em verdade, os humanistas da Renascença eram contra a ideia de insti-tucionalização da infância, de colocá-la nos termos de uma escolarização, pois temiam as proximidades com a escolástica. Não obstante, suas receitas de educa-ção estavam impressas a noção de incompletude e do mestre como autoridade a quem se deve obedecer.

A partir do século XVI, o conjunto de civilidades expandia-se ao criar novas necessidades, espaços e concepções no pensamento da época, de forma a lançar normas comportamentais aos indivíduos de formas cada vez mais ex-pressas e, ressalta-se, entre outras coisas, a necessidade de desenvolver o autoco-nhecimento, a solidão, a amizade, o bom gosto (BOTO, 2002). Esse conjunto de condutas voltadas para o bom comportamento, para o cortês, no âmbito social e privado, de acordo com alguns humanistas – como Erasmo, autor de A Civilida-de Pueril – deveria ser universalizado.

A criança, fruto da noção de civilidade, precisa saber administrar essa série de condutas, as quais apropriaria de um modelo previamente determinado para tornar-lhes “bons adultos”. Nesse sentido, o pioneirismo de Erasmo é apon-tado por demonstrar que a “a civilidade leva a puerilidade”, que seria a fase da criança que já tem domínio da fala e repertório de vocabulário que seriam erigi-dos com o desenvolvimento de estudos (BOTO, 2002).

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A discussão sobre escola e criança teve influência das reflexões humanis-tas, mas, a esta altura, a família nuclearizava-se num processo lento e gradual. Por conseguinte, deixou de ser a família de linhagens e parcerias para voltar-se para si mesma, “são os tempos modernos”, é tempo de falar sobre o amor de família. A criança pueril está no centro e destino para o código de condutas necessários para considerá-la civilizada.

Além da família e da produção de teorias, os jesuítas contribuíram com o pensamento humanista na forma de organização do repasse de conhecimento, com o mestre como autoridade e um saber voltado para questões mais amplas, como ponderação e equilíbrio. No entanto, a idealização da criança com a criança de car-ne e osso gerava sensações ambíguas, visto o paradoxo entre expectativa e reali-dade (BOTO, 2002). Assim, no amor que crescia dos adultos pelas crianças, surgia a necessidade de cuidar-lhes de forma que técnicas e aparatos são desenvolvidos para que quaisquer marcas de espontaneidade infantil sejam eliminadas.

Os tempos e os espaços organizados e controlados também são frutos da modernidade. Se a escola da Idade Média não continha o rigor e não exigia a frequência diária, a criação da escola moderna está intimamente relacionada com os tempos de trabalho. Assim, tira-se da juventude o controle sobre o próprio tempo, organiza o conhecimento que será repassado em período e duração já pre-viamente determinados tendo como objetivo o conjunto de condutas necessárias para o bom funcionamento da sociedade moderna.

Socializar as crianças torna-se, portanto, peça essencial para manutenção da ordem vigente e terreno fecundo para a normalização da infância. Algumas teorias de desenvolvimento infantil foram impulsionadas e vulgarizadas pela Psicologia, Pediatria e Pedagogia; com propostas e abordagens que convergem com o paradigma vigente, pois oferece “leis” universalizantes sobre o desenvol-vimento infantil que serve como instrumento para preparação moral e cognitiva das crianças na sociedade adulta (QVORTRUP, 2009).

Tal modelo é emergente do século XIX, e possui um caráter positivista, onde a criança é vista como receptor que internaliza e adapta-se aos conhecimen-tos repassados. Nas teorias que abordam a infância há, portanto, a necessidade de localizar em que estágio de desenvolvimento a criança está, bem como antecipar quais serão as próximas aprendizagens em termos de crescimento e aquisições de novas capacidades. Nessa lógica, garante-se a criança ingressa na sociedade adulta e a infância, período considerado imaturo e desprovido de conhecimentos, superada com sucesso (QVORTRUP, 2009).

Então, a forma como se percebe a criança, social e cientificamente, muda de acordo com fatores múltiplos, como culturas e períodos históricos. Nesse sen-tido, a construção das teorias de socialização onde a criança é preparada para a idade adulta por ser considerada um ser a-social, é um modelo emergente no século XIX, que impulsionou algumas abordagens de desenvolvimento infantil, cujo caráter são funcionalistas e individualistas que, quando vulgarizadas, prin-

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cipalmente, pela Psicologia do Desenvolvimento e pela Pediatria, imprimem teo-rias comportamentais e biológicas para guiar os conhecimentos sobre as infâncias e as relações com as. Para Sarmento (2004), a normatividade ou institucionaliza-ção da infância na modernidade foi produzida através de quatro grandes eixos:

• A criação de instâncias públicas de socialização, especialmente a expansão da es-cola pública e do ensino obrigatório, em finais do século XIX. A escola, portanto, como o dispositivo criado para encerrar a infância do ponto de vista das catego-rias que a pedagogia e a psicologia educacional elaboraram para construí-la.

• A reestruturação da família em torno do “desenvolvimento da criança” e para o qual convergem os estímulos e a prestação de cuidados de proteção e edu-cação. Assim, ser criança é ir para a escola, é brincar, é morar com os pais, é não ter responsabilidades etc.

• O surgimento de saberes periciais sobre a infância (a pediatria – e a puericul-tura-, a pedagogia, a psicologia do desenvolvimento e a psicopedagogia), que irão suportar cientificamente a exclusão das crianças da sociedade adulta e sua circunscrição a “tempos/espaços” definidos e delimitados (escola, casa da família). Os princípios e teorias destas disciplinas, informados por preocupa-ções políticas e sociais, levaram à normatização e normalização da infância na modernidade sob a égide da objetividade e da neutralidade científica.

• A administração simbólica da infância, que prescreve regras implícitas e explícitas que cerceiam ou orientam tanto as ações das crianças quanto dos adultos que com elas entram em contato.

Por essa via, as infâncias, tal como conhecemos, são marcadas e classifica-das, desde o seu nascimento, com uma série de práticas e saberes que refletem sobre o desenvolvimento saudável da criança. Há os saberes disciplinares, há documen-tos oficiais, há deveres dos pais e dos Estado, como manter a criança na escola, por exemplo. O que acontece, portanto, com a criança que não se enquadra nos saberes, no que conhecemos por desenvolvimento, que estão à margem daquilo que os do-cumentos sobre direitos defendem? A essas crianças falta a capacidade de aprender ou, inúmeras vezes, faltam a quem a avalia um olhar mais contextualizado?

Desse modo, quando pensamos numa infância normatizada e que está plenamente de acordo com os quadros de desenvolvimento ou, “melhor”, está além das expectativas esperadas para sua faixa etária, em qual criança pensamos? Ou qual criança imaginamos, de antemão, que não se enquadraria? Será que há mesmo apenas um tipo de desenvolvimento, um tipo de aprendizagem? Acredi-tamos mais na pluralidade!

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O livro Kindred: laços de sangue, da autora Octavia Butler, conta uma história de ficção científica cuja protagonista e narradora é Dana, uma mulher negra estaduniden-se, trabalhadora fabril e escritora que residia no ano de 1976. No entanto, Dana passou a fazer viagens no tempo para o período de escravidão nos Estados Unidos, pré-guerra de secessão. Estas viagens no tempo se mostraram sofridas para a protagonista, que em um escalão de desigualdades sociais, estava no patamar mais baixo, sendo uma mulher negra no período escravagista. Para a sua vantagem, utilizou-se no fato de saber ler e escrever, assim passou a lecionar para o filho do dono da casa, Rufus Weyllin. Ainda assim, tinha uma rotina de mulher escravizada e sofria as consequências disto, mesmo que tivesse a educa-ção, a liberdade e as leituras críticas do século XX. Convivendo com outros negros escra-vizados, fez contatos e estabeleceu relações, de forma que um certo dia uma das crianças escravizadas pediu que Dana também o ensinasse a ler e a escrever, assim quem sabe poderia assinar a própria libertação. Embora a alfabetização da criança negra e da criança branca não seja o foco da história, conseguimos relacionar com facilidade sobre o quanto as desigualdades de oportunidades diferem nas possibilidades que estarão ao alcance de cada um. Desse modo, enquanto para Rufus Weyllin, ler e escrever seria praticamente uma questão de honra, para Nigel, a criança negra escravizada, este ato o colocava em imenso perigo por violar as regras sociais da época. Com este cenário, podemos pensar e lançar paralelos e reflexões sobre o quanto as desigualdades podem limitar experiências. Ficou interessado nesta viagem no tempo com muitas doses de reflexão social? Lembre-se que ficção aguça nossa imaginação e compreensão do abstrato.

DICAS

FIGURA – OCTAVIA BUTLER (À ESQUERDA) E CAPA DO LIVRO KINDRED: LAÇOS DE SANGUE (À DIREITA)

FONTE: <https://bit.ly/2XLjCzQ>. Acesso em: 14 out. 2021.

Por essas perspectivas, passamos a ter uma compreensão mais histórica e crítica da infância, o que permite uma prática psicopedagógica localizada no con-texto em que atua e com uma sensibilidade que busque suportar as contradições que por vezes se apresentam.

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3 PSICOPEDAGOGIA E PSICOPATOLOGIA: HISTÓRICOS, CONTEXTOS E CONCEITOS

Considerando que abordamos sobre a interseção entre educação, higiene e psicologia, agora nos deteremos, mais especificamente, no campo da Psicope-dagogia, que teve seu nascimento na Europa do século XX. Inicialmente influen-ciada pela perspectiva psicanalítica lacaniana, impressa no primeiro Centro de Psicopedagogia do Mundo. Desse modo, vale ressaltar também que o termo “psi-copedagógico” foi utilizado como uma expressão mais assertiva do que “médico--pedagógico” que, como vimos estava em voga no século XX.

Desse modo, em seu estado embrionário, a Psicopedagogia centrava seus objetivos na reeducação em crianças e adolescentes que apresentavam dificul-dade de comportamento no ambiente familiar ou escolar. Esse movimento de reeducação estava voltado para tratar dificuldades de aprendizagem, avaliar e classificar desvios comportamentais, baseado, sobretudo, na Psicologia, na Psi-canálise e na Pedagogia. Portanto, o foco e o modo de perceber os aprendentes estava de acordo com o modelo “médico-pedagógico”. Isto também se evidencia no fato de que nos primeiros centros de Psicopedagogia, o médico era o respon-sável pelos diagnósticos dos sujeitos, (muito embora a equipe fosse interdiscipli-nar) a partir de testes de QI, análise ambiental, história pregressa, condições de vida e métodos educativos (RAMOS, 2009). Desse modo, a reeducação olhava e percebia as aprendizagens a partir das faltas, dos déficits, visto que procurava estabelecer relações e regularidades com grandes grupos de sujeitos, geralmente classificados a partir de suas faixas etárias (BOSSA, 1994).

A Psicopedagogia Curativa, a partir de 1948, designa-se como análise de

casos que vão além do problema de comportamento em crianças e/ou adolescen-tes que não apresentavam casos de deficiências físicas, mentais ou sensoriais, mas ainda assim apresentavam problemas de aprendizagem. Nesse sentido, a Psico-pedagogia Curativa atuava com foco na reeducação, a fim de que os sintomas de dificuldade de aprendizagem fossem eliminados.

A Argentina, a partir da década de 1960, foi o país cujas ideias mais in-fluenciaram o desenvolvimento do campo da Psicopedagogia no Brasil, embora chegasse de maneira marginal, considerando o período histórico de ditadura em diferentes países da América Latina. De todo modo, as referências também es-tavam de acordo com o modelo médico-pedagógico. Desse modo, inicialmente a finalidade da atuação em psicopedagogia, em território brasileiro, dava-se no âmbito da atuação nos problemas relativos às disfunções neurológicos ou ao que ficou chamado como “Disfunção Cerebral Mínima”, percepção de problemas de aprendizagem com base numa visão organicista e patologizante.

No caso do Brasil, estas teorias que carregavam um fundo biológico ser-viam, no campo político, para dissimular uma série de mazelas e problemas edu-cacionais, onde os indivíduos, e sobretudo as crianças, eram responsabilizadas por problemas ou negligências sociais. Nesse cenário, e influenciados pelo cienti-

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ficismo da época, pais e professores passaram a tomar este discurso como verda-de, procurando médicos para que as dificuldades de aprendizagem de crianças e adolescentes fossem avaliadas sob uma perspectiva clínica.

Contudo, transformações passaram a ocorrer e alguns profissionais da psi-copedagogia passaram “perceber que toda relação educacional envolve uma rela-ção transferencial entre envolvidos e que ela faz parte da intervenção, produzindo efeitos” (RUBINSTEIN, 2006, p. 20). Em outras palavras, a reflexão sobre os efeitos da aprendizagem passa também pelo lugar e postura do “ensinante”, não mais focada apenas em fatores biológicos ou ambientes próximos. Desse modo, o que começou como uma ideia de reeducação construiu-se sob o viés sensível e multi-disciplinar. Nesse sentido, o essencial é que se compreenda o processo de apren-dizagem e, a partir disso, compreenda-se também a dificuldade de aprendizagem.

O psicopedagogo, antigo professor, ex-reeducador, continua interes-sado no processo de aprendizagem, porém seu foco de atenção agora não está em uma ação que faça desaparecer diretamente diferentes or-dens de dificuldades. Cabe ao psicopedagogo compreender obstáculos existentes para, através da intervenção, promover sua dissolução. [...] Em síntese, a aprendizagem é um processo complexo, que envolve toda uma gama de componentes. Assim, a compreensão das dificuldades de aprendizagem exige capacidade de considerar os múltiplos fatores en-volvidos. A Psicopedagogia utiliza-se de uma visão holística e sistêmica para compreender um sujeito cognoscente (RUBINSTEIN, 2006, p. 26).

Portanto, nesses termos, a prática não está focada na falta, mas é guiada a partir de uma compreensão de processo. Além disso, se antes o foco estava em técnicas, testes e diversos instrumentos que medem e mensuram as aprendizagens, agora a Psicopedagogia coloco o enfoque da aprendizagem na relação do sujeito nesse processo. Desse modo, leva-se em consideração a multiplicidade e a comple-xidade de fatores envolvidos no processo de aprendizagem, que passam, sim, por aspectos biológicos, mas não negligenciam fatores culturais, sociais e linguísticos.

Para ampliar a compreensão tanto da escola quanto da aprendizagem, no Qua-dro 2 listamos as quatro funções sociais que a escola desempenha (PAÍN, 1985, p. 11).

QUADRO 2 – AS QUATRO FUNÇÕES DA EDUCAÇÃO

FUNÇÃO OBJETIVO

MATENEDORA

Manter e reproduzir uma série de normas e condutas que garante, assim, a continuidade da espécie humana. Esta continuidade do comportamento humano realiza-se através da aprendizagem.

SOCIALIZADORA

Utilizar de utensílios, da linguagem, do habitat e, assim, a formação de um indivíduo social que é pertencente a um grupo com signos e significados próprios.

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REPRESSORAControlar e reservar para conversar e reproduzir de-terminadas limitações de determinados grupos so-ciais.

TRANSFORMADORA Mobilizações emotivas oriundas do estudo que podem incitar transformações e rupturas.FONTE: Adaptado de Paín (1985)

Dessa forma, de acordo com o Quadro 2, as quatro funções da educação es-tão presentes na aprendizagem, de modo que o sujeito que não aprende, não realiza estas funções. À psicopedagogia cabe a união destas funções de forma integradora. Além disso, também podemos pensar em algumas dimensões que a aprendizagem alcança no processo de desenvolvimento, abarcando desde aspectos biológicos, cognitivo e sociais (PAÍN, 1985) e como há o intercâmbio entre eles, podendo haver também interferências dependendo do contexto e da história do aprendente.

A semiologia psicológica da aprendizagem normal baseia-se na pre-missa de que o desenvolvimento psicológico se constrói a partir da interação de fatores genéticos e biológicos, orgânicos e ambientais. Os fatores biológicos moldam as tendências temperamentais do indiví-duo. Os fatores orgânicos pressupõem um aparato orgânico e neuro-lógico íntegro. Os fatores ambientais compreendem um ambiente faci-litador, representado, na etapa inicial da vida, pela vinculação com a figura materna, ou representante desta, e pela sua função de cuidador e de parâmetro da realidade para o bebê. A partir destas premissas, instala-se a capacidade de aprender (MOJEEN; COSTA, 2016, p. 87).

Com o expandir e as transformações das práticas em psicopedagogia, pas-sou-se também a considerar o corpo e os afetos no processo de aprendizagem, além de considerar o papel e o vínculo estabelecido com aquele que ensina (FERNAN-DEZ, 2012). Desse modo, considera-se que, para aprender, é necessário que haja ao menos dois personagens, quais sejam, o ensinante e o aprendente. Por este viés, o sujeito que aprende tem em consideração seu organismo herdade, o corpo constru-ído especularmente e uma inteligência que também foi construída em interação. Além destes fatores, também influi a aprendizagem a arquitetura do desejo.

A aprendizagem é um processo cuja matriz é vincular e lúdica é sua raiz corporal; o desdobramento criativo põe-se em jogo por meio da articulação inteligência-desejo e do equilíbrio assimilação-acomoda-ção. No humano, a aprendizagem funciona como equivalente funcio-nal do instinto. Para dar conta das fraturas no aprender, necessitamos atender aos processos (à dinâmica, ao movimento, às tendências) e não aos resultados ou rendimentos (sejam escolares ou psicométricos) (FERNADEZ, 2014, p. 48).

Reforçamos essa perspectiva pois ela considera o sujeito que aprende a partir de sua singularidade que, não obstante, é carregada por uma série de fa-tores e complexidades que tornam toda sua jornada, seus erros, seus fracassos e seus acertos únicos pois localizados e percebidos a partir de seus próprios ter-mos. Ou seja, não pautando-se, a priori, a partir de resultados estratificados ou em

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TÓPICO 1 — A RELAÇÃO ENTRE PSICOPEDAGOGIA E PSICOPATOLOGIA

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normas estatísticas, embora estes meios tenham lugar nos processos de avaliação, o acompanhamento do psicopedagogo a partir de uma visão holística e relacional não encerra sua análise em dados de bases unicamente objetivas.

Assim, podemos refletir sobre a situação de uma criança que não aprende. De um lado, o problema de aprendizagem que determinada criança sofre tam-bém condiciona seu meio, a instituição escolar ou a família, a relacionar-se com esta criança a partir deste olhar. O manejo que se dá, a partir do foco do problema de aprendizagem, pode ser diverso, indo desde termos carregados de juízo de valor, como por outro lado, uma perspectiva relacional. Desse modo, o que está nas relações impregnadas? A criança que aprende tem medo, tem inseguranças, qual o papel desta criança na estrutura familiar e na escola? Afinal, se pensarmos a aprendizagem apenas em termos de organismo e inteligência, qual seria, neste caso, a relevância da família? Contudo, mesmo dentro de um contexto específico, a criança apresenta suas próprias originalidades. Lembremos, como vimos no decorrer deste tópico, que recorrer às causas ou fórmulas fáceis pode levar a uma interpretação da aprendizagem que marginaliza os diferentes.

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Neste tópico, você aprendeu que:

RESUMO DO TÓPICO 1

• A Psicologia e a Psicopedagogia, em seus primórdios, aderiram ao modelo médico de atendimento a queixa escolar.

• A escola passa a ser uma instituição e um instrumento para uma ideia de unificação nacional, que possibilita um caminho para mais igualdade social.

• Por um lado, portanto, havia um crescimento das cidades e uma busca por organização e limpeza geral. Por outro lado, havia a possibilidade de mobili-dade social através da escolarização.

• O darwinismo social caracteriza-se pela noção que as sociedades se desen-volvem e evoluem numa lógica inspirada na teoria da evolução biológica das espécies animais, de Charles Darwin

• A teoria de Darwin foi usada como justificativa para a ideia de uma hierar-quia social e, desse modo, validar uma série de violências contra povos que não cumpriam os critérios abstratos estabelecidos pela classe dominante e intelectual sobre o que seria um ser humano e como deveria ser a civilização.

• O ambiente escolar foi um dos terrenos onde tais teorias ganharam espaço, passando pela preocupação com a superdotação ou a subdotação intelectual, baseado também nos estudos e nos testes psicológicos de Galton.

• As infâncias, tal como conhecemos, são marcadas e classificadas, desde o seu nascimento, com uma série de práticas e saberes que refletem sobre o desen-volvimento saudável da criança.

• A psicopedagogia centrava seus objetivos na reeducação em crianças e ado-lescentes que apresentavam dificuldade de comportamento no ambiente fa-miliar ou escolar.

• A Psicopedagogia Curativa, a partir de 1948, designa-se como análise de ca-sos que vão além do problema de comportamento em crianças e/ou adoles-centes que não apresentavam casos de deficiências físicas, mentais ou senso-riais, mas ainda assim apresentavam problemas de aprendizagem.

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• As quatro funções da educação, mantenedora, socializadora, repressora e transformadora, estão presentes na aprendizagem, de modo que o sujeito que não aprende, não realiza estas funções

• Para aprender, é necessário que haja ao menos dois personagens, ou seja, o ensinante e o aprendente

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1 O problema do fracasso escolar, para diversos autores, está relacionado com as dificuldades das crianças de baixa renda, com poucas aquisições e poucos acessos a capitais culturais e materiais e que contam uma um ensino de escola pública brasileira um descompromisso com a qualidade para estas populações. Sobre o problema do fracasso escolar, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A razão pelo fracasso escolar é que as crianças de baixa renda não têm interesse pelo ensino.

b) ( ) As razões para o fracasso escolar são poucas e estão isoladas umas das outras.

c) ( ) As áreas do saber (medicina e psicologia, por exemplo) desconhecem a realidade escolar.

d) ( ) Atribuir diagnósticos pautados em manuais que tem um caráter universalizado eliminaria os problemas enfrentados pelas crianças no processo de aprendizagem.

2 Durante o século XIX, as cidades eram caracterizadas, grosso modo, pela industrialização, urbanização e migração da população dos setores rurais em busca de emprego nos setores urbanos. Com base nas mudanças ocorridas nesse século, analise as sentenças a seguir:

I- A ideia de uma escola universal surge, inicialmente, como projeto das classes dominantes por depositar na razão e na ciência o progresso da humanidade.

II- As tradições locais foram levadas em consideração para obter crescimento do capital financeiro.

III- Darwin, traduziu em sua teoria a hierarquia social, ou seja, as sociedades mais simples e de tecnologia menos avançada, deveriam evoluir em direção a níveis de maior complexidade e progresso na escala de evolução social.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.b) ( ) Somente a sentença I está correta.c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.d) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas.

3 A aplicação da teoria de Darwin para o universo social, ou seja, a crença de que haveria uma seleção dos mais aptos socialmente, resulta numa leitura e interpretação dos indivíduos a partir de uma ótica biologizante. Sobre o exposto, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

AUTOATIVIDADE

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( ) Um dos objetivos de Francis Galton era contribuir para o destino da humanidade pautado na ideia de eugenia.

( ) Para a realização dos testes de inteligência nas escolas era levado em consideração que nem todos tinham as mesmas oportunidades de acesso a bens culturais e materiais.

( ) As dificuldades de aprendizagem das crianças eram procuradas em causas orgânicas e biológicas.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – V – V .b) ( ) F – V – V .c) ( ) F – V – F .d) ( ) V – F – V .

4 A forma como se percebe a criança, social e cientificamente, muda de acordo com fatores múltiplos, como culturas e períodos históricos. Levando isso em consideração, Sarmento (2004) produziu através de quatro grandes eixos a normatividade ou institucionalização da infância na modernidade. Quais são esses eixos?

5 Para ampliar a compreensão tanto da escola quanto da aprendizagem, Paín (1985) descreveu quatro funções sociais que a escola desempenha. Cite quais são e seus objetivos.

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UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Como vimos anteriormente, a aprendizagem tem sido vista a partir da interação de fatores orgânicos e sociais que possibilitam ou limitam as ações dos sujeitos aprendentes. Assim, a capacidade de aprender está imbricada a esta base de vinculação e constância afetiva.

Neste tópico, elucidaremos alguns pontos da psicopatologia que cabem especificamente à Psicopedagogia, como a diferença entre dificuldades de apren-dizagem e transtornos de aprendizagem. Essas diferenciações, embora pareçam meramente didáticas, são essenciais nos acompanhamentos terapêuticos e sabê--las pode auxiliar nas possibilidades e criatividades de acompanhamento e inter-venção na prática psicopedagógica.

Abordaremos sobre algumas nomenclaturas específicas da psicopedago-gia e dos transtornos específicos de aprendizagem. Assim, veremos o que contém nos manuais diagnósticos sobre determinados transtornos, quais os critérios de inclusão ou inclusão para que se feche um diagnóstico e quais os pontos teóri-cos mais desenvolvidos sobre determinados transtornos. Isto é necessário pois na área das patologias em geral é imprescindível atuar sem o conhecimento dos cri-térios diagnósticos, ainda que na área da Psicopedagogia geralmente se trabalhe com hipóteses e não com fechamento de diagnósticos.

TÓPICO 2 —

PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM E

PSICOPATOLOGIA

2 NOMENCLATURAS PSICOPEDAGÓGICAS

Como vimos na Unidade 1, a avaliação psicopedagógica busca compreen-der e verificar o nível de desempenho da criança de acordo com o ano escolar, faixa etária e contexto. As áreas comumente avaliadas pela psicopedagogia dizem res-peito a leitura, escrita, matemática e habilidades correlatas. Desse modo, também está no crivo destas avaliações como são as atitudes da criança em relação à escola e à aprendizagem para, assim, fazer correlações entre os diversos fatores e dimen-sões da aprendizagem (MOOJEN; COSTA, 2016). Desse modo, a avaliação psicope-dagógica depende, fundamentalmente, da perspectiva teórica do profissional, pois a partir da teoria surgem diversas práticas e estilos de atuação no campo.

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UNIDADE 2 — PSICOPEDAGOGIA E PSICOPATOLOGIA

O tempo que o psicopedagogo levará para realizar estas avaliações de-pende da queixa apresentada pelos pais, pela escola ou por outros responsáveis ou instituições que tenham encaminhado a criança e/ou o adolescente. Não obs-tante, o ideal é a realização de uma ampla avaliação para que se averigue a real necessidade de atendimento psicopedagógico. Certamente neste processo o en-contro com pais e responsáveis para a realização na anamnese e o contato com a escola são em absoluto primordiais nesta etapa inicial. Para finalizar esta etapa, é necessário que haja um retorno para a família ou responsável informando sobre a hipótese diagnóstica do caso. Com isso, vale ressaltar também que os diagnós-ticos psicopedagógicos têm, em sua essência, um teor clínico e precisam estar devidamente embasados em critérios provenientes de sistemas classificatórios, como a Classificação Internacional de Doenças (CID-10) e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5).

Quando pensamos em diagnósticos no âmbito da psicopedagogia, há vários termos e nomenclaturas que derivam da aprendizagem, como dificuldades, proble-mas, transtornos, distúrbios. Considerando, assim, como o campo da aprendizagem atinge diversas áreas e profissionais, a sintomatologia da área é ampla e diversa. Alguns profissionais, como psicólogos, fonoaudiólogos e psicopedagogos, pensam uma classificação de diagnóstico psicopedagógico a partir de duas categorias, a sa-ber: dificuldades (naturais/primárias ou secundárias) e “transtorno”, este sendo utili-zado nos manuais diagnósticos oficiais para designar uma alteração no quadro.

Nesse momento, pode surgir a dúvida: qual a diferença entre dificuldade de aprendizagem e transtorno de aprendizagem? As dificuldades de aprendi-zagem podem ser experimentadas por quase todos, provavelmente. Acadêmico, você pode refletir se já passou por alguma situação em que aprender determina-do tema ou prático não foi fácil. Isso ocorre sobretudo na escola, uma vez que o pensamento formal é estimulado e nosso organismo está em constante homeos-tase, ou seja, sempre em busca de um equilíbrio pois sempre está aprendendo e desenvolvendo algo novo em interação com os outros e com o ambiente.

Assim, podemos pensar que os fatores para uma dificuldade de aprendi-zagem podem ser decorrentes de uma proposta pedagógica, de padrões da ins-tituição, a falta de assiduidade, conflitos do contexto que interferem no processo de aprendizagem, entre outros. De todo modo, a dificuldade de aprendizagem tem um caráter mais natural e evolutivo pois se encontra num limiar entre o “não saber” e o “saber”, ou seja, é transitório e podem desaparecer dependendo de mudanças estruturais ou individuais, como, por exemplo, mais disciplina com os estudos ou aulas extras, caso necessário (MOOJEN; COSTA, 2016). As dificulda-des secundárias estão atreladas a outros quadros diagnósticos que podem inter-ferir na aprendizagem escolar, por exemplo, como os casos de deficiência mental, sensorial e quadros neurológicos mais graves.

Cabe salientar que as dificuldades de aprendizagem secundárias cita-das, tanto da área neurológica quanto da psicológica, podem ser co-mórbidas com transtorno da aprendizagem, e isso torna ainda mais complexo o diagnóstico psicopedagógico. Nesse caso, as alterações na

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aprendizagem podem exceder àquelas habitualmente associadas com o déficit primário. Exemplificando, uma criança pode ter um transtor-no de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) que, secundariamente, afeta sua aprendizagem escolar e, ao mesmo tempo, apresentar altera-ções específicas na escrita que caracterizariam um quadro de transtorno de aprendizagem. Nesse caso, as alterações apresentadas excederiam às dificuldades decorrentes de um TDAH (MOOJEN; COSTA, 2016, p. 86).

Portanto, percebemos que esses termos e conceitos possuem limiares muito estreitos, de forma que precisamos ter atenção para identificá-los. Recente-mente, no lançamento do DSM-5, houve mudança no critério de diagnóstico no que diz respeito à nomenclatura que passou de “transtornos de aprendizagem” para “transtornos específicos da aprendizagem”, agrupando, assim, três tipos de transtorno – leitura, escrita e matemática – em apenas um, embora ainda seja ne-cessário especificar em qual domínio do aprendente se encontra.

QUADRO 3 – SÍNTESE DOS CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS PARA TRANSTORNO DE APRENDIZAGEM

FONTE: Moojen, Costa (2016, p. 88)

Síntese dos critérios diagnósticos para transtorno de aprendizagem1. Grau clinicamente significativo de comprometimento na habilidade escolar

especificada, medido por testes padronizados, apropriados à cultura e ao sistema educacional

2. Nível de realização substancialmente abaixo do esperado para uma criança com a mesma idade, nível mental e escolarização

3. Comprometimento de desenvolvimento: presença do transtorno nos primeiros anos de escolaridade e não posteriormente no processo educacional. Muitas vezes, somente após um ou dois anos de escolaridade esses transtornos são passíveis de diagnóstico

4. Persistência e não evolução dos problemas nas crianças, apesar de um trabalho pedagógico individualizado

5. Não vencimento de etapas evolutivas anteriores (particularmente, a aquisição e o desenvolvimento da fala e linguagem)

6. Entendimento dos transtornos não como consequência de uma falta de oportunidade de aprender, de descontinuidades educacionais resultantes de mudanças de/na escola, ou de qualquer forma de traumatismo; de doença cerebral adquirida ou de comprometimentos na inteligência global

7. Não entendimento dos transtornos como decorrência de comprometimentos visuais ou auditivos não corrigidos

8. Condições substancialmente mais comuns em meninos do que em meninas9. Presença, em muitos casos, de traços desses transtornos durante a

adolescência e a idade adulta 10. Fatores etiológicos originados de "anormalidades no processo cognitivo, que

derivam em grande parte de algum tipo de disfunção biológica"

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Outra mudança que ocorreu no DSM-5 é a exclusão entre o desempenho es-colar e a inteligência e, por outro lado, a inclusão do critério da persistência da difi-culdade de aprendizagem apesar de meios e formas apropriadas para a consolidação da aprendizagem (MOOJEN; COSTA, 2016). Além disso, no âmbito dos transtornos de aprendizagem, há quatro critérios diagnósticos que se mantém em uniformidade com transtornos de desenvolvimento. Como vemos no Quadro 2, abaixo, o critério A apresenta, sobretudo, características presentes em indivíduos com TEA e o critério B aponta para formas de avaliar estas características, o critério C descreve a idade do início do sintoma e o critério D expõe os critérios de exclusão. Além disso, também é necessário que se especifique o nível de comprometimento, de leve, moderado ou grave, o que já existia previamente nos transtornos de neurodesenvolvimento.

QUADRO 4 – CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS DE ACORDO COM O DSM-5

A. Dificuldades no aprendizado e no uso das habilidades escolares, indicadas pela presença de pelo menos um dos sintomas a seguir, e que tenham persistido por pelo menos seis meses, a despeito de intervenções específicas para estas dificuldades:

1. Leitura incorreta ou lenta de palavras e feita sob esforço 2. Dificuldade de compreender o significado do que é lido 3. Dificuldades com a ortografia 4. Dificuldades de expressão escrita 5. Dificuldades com o domínio da noção de número, dos fatos numéricos

ou de cálculos 6. Dificuldades no raciocínio matemático

B. As habilidades acadêmicas afetadas estão substancial e quantitativamente abaixo do esperado para a idade cronológica do indivíduo e causam interfe-rência significativa no desempenho escolar ou profissional ou nas atividades da vida diária, confirmado por medidas de desempenho padronizado admi-nistradas individualmente e avaliação clínica completa. Para indivíduos de 17 anos ou mais, uma história documentada de dificuldades prejudiciais à aprendizagem pode ser substituída pela avaliação clínica abrangente

C. As dificuldades na aprendizagem iniciam-se na idade escolar, mas podem não se manifestar plenamente até que as exigências daquelas habilidades es-colares excedam as capacidades limitadas do indivíduo (p. ex.: avaliações com limite de tempo, leitura ou produção de textos longos e complexos com prazo curto, sobrecarga acadêmica)

D. As dificuldades de aprendizagem não podem ser explicadas por deficiências intelectuais, déficits visuais ou auditivos não corrigidos, por outros trans-tornos mentais ou neurológicos, pela adversidade psicossocial, pela falta de proficiência na língua utilizada para o aprendizado acadêmico ou por instru-ção educacional inadequada

FONTE: Moojen, Costa (2016, p. 89)

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Com base nos dois quadros apresentados, vemos as diretrizes normativas e classificatórias de como reconhecer os transtornos específicos de aprendizagem, o que focaliza quais os critérios. Lembre-se que, justamente por ser um documento norma-tiva, precisa de um enquadre contextual que sempre depende dos casos específicos.

De modo geral, portanto, o diagnóstico psicopedagógico precisa sempre contextualizar os sintomas no contexto da vida da criança, avaliando suas po-tencialidades e possibilidades e, assim, valorizando a duração, a persistência e a interferência dos sintomas na vida escolar, social e familiar do indivíduo. Os manuais diagnósticos são diretrizes e, embora sejam essenciais para a formulação e fechamento de diagnósticos, o indivíduo também deve ser olhado, avaliado e percebido para além dele.

Assim, para o caso de diagnóstico psicopedagógico deve-se avaliar: i) as dificuldades primárias, ou seja, aquelas que são evolutivas e transitórias, que po-dem acometer a todos nós; ii) as dificuldades secundárias a outras patologias, sendo essencial saber quais são estas outras patologias e; iii) transtorno específico da aprendizagem, especificando em qual domínio há prejuízo, se na leitura, na escrita ou na matemática, além do nível de comprometimento, se leve, moderado ou grave (MOJEEN; COSTA, 2016).

FIGURA 2 – DIFICULDADES VS TRANTORNOS DE APRENDIZAGEM

FONTE: A autora

Portanto, é completamente razoável que haja casos que dificuldades de aprendizagem se apresentem sem que nenhum transtorno específico da aprendiza-gem esteja em voga. O ambiente ou alguma situação específica pode influenciar no desenvolvimento da aprendizagem, da concentração, da criatividade etc. Além des-tes fatores, também é necessário que seja feita uma avaliação cognitiva indicando se há ou não deficiências e, no histórico familiar, avaliar também se há na história de an-

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tecedentes familiares casos com dificuldade de aprendizagem (OHLWEILER, 2016). Confira a seguir um Quadro síntese sobre a diferença classificatória, característica e prognóstico entre dificuldade de aprendizagem e transtorno de aprendizagem.

QUADRO 5 – SÍNTESE SOBRE DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM E TRANSTORNO DA APRENDIZAGEM

Classificação Características Prognóstico

Dificuldades de aprendizagem

Evolutivas

Dificuldades passageiras, rela-cionadas com metodologia de ensino inadequada, falta de as-siduidade e problemas pesso-ais ou familiares temporários

BOM - tendem a regre-dir com maior esforço do aluno ou ajuda pedagógica

Secundárias

Repercussão primeiramente no desenvolvimento humano, em geral, de ordem cognitiva, emocional e/ou neurológica) e secundariamente no desempe-nho escolar global. As queixas principais são de caráter geral e referem-se à falta de motiva-ção, desatenção, etc.

Depende do grau de gravidade dos quadros associados

Transtornos da aprendizagem da leituraescrita e matemática

Leve e moderado

Problemas específicos na leitura, escrita e matemática não decorrentes de compro-metimentos neurológicos, emocionais ou sensoriais não corrigidos. Observa-se remissão dos sintomas com o tratamento. A diferença entre leve e mode-rado é apenas quantitativa

BOM com acompanhamento terapêutico

Grave

Gravidade dos sintomas (na ausência de outros estresso-res) e persistência ao longo da vida, embora podendo ser atenuados, mas não curados Dislexia • Adquirida (secundária à lesão) • Desenvolvimento (congênito)

RESERVADO (na dependência do nível de QI)

FONTE: Moojen; França (2016, p. 149)

Nesse sentido, os transtornos de aprendizagem, classificados como leve, moderado ou grave terão um prognóstico que estará atrelado tanto a um acom-panhamento terapêutico quanto as possibilidades do caso em si. Algo similar diz respeito às dificuldades de aprendizagem secundária, que por ser, muitas vezes, uma comorbidade, depende do prognóstico de outros fatores para evoluir. A se-guir veremos alguns pontos específicos no que se refere aos transtornos específi-cos da aprendizagem, conforme consta em suas classificações.

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2.1 TRANSTORNOS DA APRENDIZAGEM

Os transtornos de aprendizagem dizem respeito a inabilidades específicas, como vimos, nas áreas de leitura, escrita ou matemática de forma que os indivíduos apresentam resultados significativamente abaixo do esperado de acordo com faixa etária ou nível de desenvolvimento. Os transtornos de aprendizagem podem apresentar perturbações nos estágios iniciais de desenvolvimento, dificultando a aquisição de habilidades no indivíduo. Em outras palavras, podem ocorrer devido à falta de estimulação adequada ou à algum fator orgânico em si.

Os classificadores que geralmente englobam os transtornos específicos da aprendizagem estão concentrados essencialmente em três esferas, a saber:

• Transtorno da leitura: trata-se de uma dificuldade específica em compreender palavras escritas.

• Transtorno da matemática: conhecido como discalculia e está associado à for-ma como a criança raciocina estas habilidades, de modo que os conceitos ma-temáticos não são compreendidos, ainda que não seja originado por lesão ou qualquer causa orgânica.

• Transtorno da expressão escrita: dificuldade em compor textos escritos, espe-cificamente focado na ortografia e na caligrafia, caso não haja outras dificul-dades impressas.

2.1.1 Transtorno da Linguagem Escrita

A linguagem é compreendida como uma forma específica dos humanos se comunicarem entre eles. Isto envolve símbolos gestuais, orais e escritos. A nossa so-ciedade é permeada de símbolos que comunicam, como as luzes dos semáforos, as placas de trânsito, o alfabeto e, atualmente, os símbolos no meio da internet, como gifs, memes e vídeos. Estamos sempre atualizando nossas formas de comunicação.

De todo modo, o ingresso das crianças em sociedade, que quando nascem são recém-chegados em um mundo já “pronto”, recheado de símbolos e signi-ficados, implica também que a aprendizagem das crianças precisa passar pela linguagem para que a socialização e o pertencimento ao grupo seja efetivo e afe-tivo. De todo modo, a linguagem verbal é aprendida pelas crianças, sendo estas capazes de produzir uma gama de pronunciados na língua em que esteve exposta sem que este tenha sido, especialmente, um desafio por parte dos adultos. Este desenvolvimento da linguagem dá-se de forma mais ou menos constante onde, por um lado, conta com a programação genética e, por outro lado, conta com a interação com outros indivíduos que falam.

Além disso, a linguagem pode ser organizada em dois componentes: ex-pressão e recepção. A linguagem é constituída de sons e fonemas (fonologia), morfenas (constituição das palavras), sintaxe e gramática (regras da língua), se-mântica (significado), prosódia (ritmo e entonação), pragmática (regras da lin-

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guagem na conversão) (PEDROSO; ROTTA, 2016). Nestes termos, nem todos estes constituintes desenvolve-se ao mesmo tempo e na mesma velocidade de forma que enquanto a parte fonêmica desenvolve-se ainda na infância, a parte semântica está em constante desenvolvido no decorrer da vida.

Um estudo interessante e cânone é de Carl Wernicke que, em 1874, estudou pacientes com afasia e encontrou dificuldades, nestes pacientes, mais na parte da compreensão e menos na expressão em casos de comprometimento do lobo tempo-ral. A isto Carl Wernicke chamou de “afasia receptiva”. Hoje já é sabido que lesões cerebrais no hemisfério esquerdo, na área de Wernicke, está relacionada com difi-culdade para encontrar o significado da palavra ou a relação de uma palavra com o restante da frase, porém o indivíduo consegue expressar-se. Contudo, caso haja lesões no hemisfério direito, conforme estudou Paul Broca, a dificuldade estaria na expressão, na musicalidade da fala, a compreensão da carga afetiva da linguagem. Atualmente, estes conhecimentos possuem mais profundidade e complexidade de modo que estão assim classificados (PEDROSO; ROTTA, 2016, p. 114):

• Área de Broca, ou área 44 e parte da área 45 de Brodmann, situada no pé da circunvolução frontal ascendente, responsável pelo pla-nejamento motor da linguagem oral;

• Área de Wernicke, ou área 42 de Brodmann, situada nas porções mediana e superior do lobo temporal, responsável pela percepção auditiva envolvida na linguagem;

• Fascículo arqueado que liga as duas áreas anteriores;• Circunvolução angular ou prega curva, que corresponde à área

39 de Brodmann, responsável pela integração gnósico-práxica dos lobos parietal, occipital, frontal e temporal. Está situada no entroncamento parietotemporoccipital, mas também tem ligações com as áreas motoras da fala e da escrita;

• Circunvolução supramarginal, situada no lobo parietal inferior mais anterior e contígua à área 39;

• Fibras de associação como o corpo caloso, que constituem a prin-cipal estrutura integradora inter-hemisférica;

• Áreas subcorticais, constituindo o quadrilátero de Pierre Marie, acrescido do tálamo;

• Área frontomesial anterior, em ambos os hemisférios, sendo pre-dominante no hemisfério esquerdo, responsável pela intenção e vontade de usar a linguagem;

• Hemisfério não dominante, responsável pela prosódia e pelo pragmatismo.

Desse modo, na criança, ainda não estão plenamente desenvolvidas, de forma que os distúrbios aferenciais, sensoriais e motores podem transtornar o de-senvolvimento da linguagem. Isto porque ainda não há, na criança, centros pré-for-mados (PEDROSO; ROTTA, 2016). No adulto, por outro lado, a linguagem é con-trolada pelo hemisfério esquerdo. A percepção da fala é conduzida pelo VIII nervo craniano e chega à área de Wernicke, no lobo temporal esquerdo, onde a mensagem é decodificada. Por conseguinte, a mensagem é transmitida, via fascículo arqueado, para área de Broca, no hemisfério esquerdo, onde se elabora uma resposta motora, a fala (PEDROSO; ROTTA, 2016). Assim, consideramos que, já plenamente desen-volvida, a linguagem é dominada pelo hemisfério esquerdo, mas em crianças, isto é, de fato, um desenvolvimento, de forma que não nasce já “pronto”.

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Pensando em termos de aquisição da linguagem, há algumas etapas que são interdependentes, como sensação (sentir o som), percepção (reconhecer o som), elaboração (reflexão sobre o som) e programação (organização e articu-lação de respostas) (PEDROSO; ROTTA, 2016). No caso da programação para organização das respostas, também há o fator gestual que pode ser utilizado em diversas formas de comunicação, como braile e Libras. Esta linguagem gestual precede a fala e pode ser especialmente fundamental no caso dos indivíduos sur-dos. Alguns transtornos da linguagem:

• Transtornos da linguagem oral, o transtorno específico da fala (DSM-549; CID F80.0). Nestes casos é necessário que se avalie, além do transtorno específico da linguagem oral ou disfasias, as possibilidades de alteração dos quadros de fonação, articulação da palavra ou distúrbios de ritmo, como a gagueira e o retardo no desenvolvimento da fala (PEDROSO; ROTTA, 2016).

• Transtorno da fonação que podem ser causados afecções primárias ou secun-dárias, orgânicas ou funcionais e ocorrem por lesão no X do nervo craniano (PEDROSO; ROTTA, 2016).

• Transtorno na articulação da palavra: conhecido como disartrias, são distúr-bios onde ocorre comprometimento dos nervos cranianos VII e XII que envol-vem o movimento da face e da língua. Este transtorno pode ocasionar uma fala explosiva, com interrupções bruscas (PEDROSO; ROTTA, 2016).

• Transtorno do ritmo: afetam o ritmo ou a fluência da fala, como a gagueira, as alterações na velocidade de fala como taquilalia, bradilalia e cluster. A ga-gueira é o mais comum destes transtornos, ocorrendo com incidência de 5% e prevalência em 1% da população geral. Os transtornos de ritmo interferem na comunicação, dificultando as relações interpessoais tanto em quem fala como em quem escuta. Também podem acompanhar de algum desvio respiratório no momento da emissão da fala (PEDROSO; ROTTA, 2016).

• Afasias são conhecidas como transtornos de comunicação e são adquiridas por lesões nas regiões cerebrais. No caso de crianças, não se fala em afasia pois para um quadro de afasia é necessário que toda a região de linguagem já tinha sido desenvolvida (PEDROSO; ROTTA, 2016).

O Afasia de expressão, motora ou de broca: dificuldade ou impossibilidade de se expressão em resposta a um questionamento, mesmo conseguindo perceber a linguagem oral ou escrita. Possui um vocabulário é estereoti-pado ou repetitivo.

O Afasia de percepção, sensorial ou de Wernicke: dificuldades no entendi-mento do que se escuta ou lê. O vocabulário pode ser rico, porém nem sempre coerente com o contexto.

O Afasia mista: caracteriza-se por dificuldades semelhantes na percepção e na expressão, ou seja, tanto afasia de expressão como afasia de percepção.

O Afasia de condução: comprometimento em repetir ou nomear;O Afasia transcortical: falhas na percepção ou expressão.

• Disfasias: inabilidade para adquirir linguagem oral mesmo sem alterações cognitivas ou lesões cerebrais, doenças ou quaisquer outros distúrbios. Trata--se de um transtorno do desenvolvimento (PEDROSO; ROTTA, 2016).

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O neurologista Oliver Sacks, no seu livro O Homem que confundiu sua mu-lher com chapéu, usa uma abordagem que mistura medicina com literatura, recheado de casos interessante sob um olhar sensível e humano, que lança linhas de chegada aos seus pacientes. Como diz na orelha do livro: “Em O homem que confundiu sua mulher comum chapéu, estamos na presença de um médico que acolhe a todo momento o novo, o inesperado que irrompe em cada testemunho do drama particular de seus pacientes. Um músico que percebe apenas formas abstratas, que detecta as propriedades geométricas de uma flor mas é incapaz de identificar nela uma rosa; pessoas que sentem dores em membros amputados; uma vítima da amnésia que desesperadamente inventa identidades para as pessoas; o assassino que não recorda seu crime e que, após um acidente, tem pesadelos que reconstituem cada detalhe do assassinato — são estas algumas das perso-nagens de Sacks, almas perdidas na privação neurológica, na super excitação dos sentidos, nos excessos da imaginação, na clausura interior”.

DICAS

FIGURA - LIVRO O HOMEM QUE CONFUNDIU SUA MULHER COM O CHAPÉU

FONTE: <https://bit.ly/3nBlioG>. Acesso em: 14 out. 2021.

A seguir, um trecho de uma de suas histórias fascinantes.

O dr. P. não conseguia ver o todo, apenas detalhes, que localizava como os bips de uma tela de radar. Ele não estabelecia uma relação com a figura como um todo – não encarava, por assim dizer, a fisionomia da figura. Não tinha a menor noção de paisagem ou cena.Mostrei-lhe a capa, uma extensão ininterrupta das dunas do Saara.“O que vê aqui?”, perguntei.“Vejo um rio”, ele respondeu. “E uma pequena hospedaria com um terraço à beira d’água. As pessoas estão almo-çando no terraço. Vejo guarda-sóis coloridos aqui e ali”. Ele estava olhando, se é que aquilo era “olhar”, direto para fora da revista e fabulando características inexistentes, como se a ausência de características na figura real o

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tivesse levado a imaginar o rio, o terraço e os guarda-sóis coloridos.Eu devo ter feito uma cara de espanto, mas ele parecia pensar que se saíra otimamente. Havia um esboço de sorriso em seu rosto. Ele também parecia ter decidido que o exame terminara, e começou a olhar em volta à procura de seu chapéu. Estendeu a mão e agarrou a cabeça de sua mulher, tentou erguê-la e tirá-la para pôr em sua cabeça. Parecia que ele tinha confundido sua mulher com um chapéu! Ela olhava como se estivesse acostumada com coisas assim.Eu não conseguia entender o que ocorrera em termos de neurologia (ou neuropsicologia) convencional. Em alguns aspectos, ele parecia perfeitamente preservado e, em outros, absolutamente, incompreensivelmente, ar-ruinado. Como é que ele podia, por um lado, confundir sua mulher com um chapéu e, por outro, como aparen-temente ainda fazia, lecionar na faculdade de música?” [...] Isso foi há quatro anos. Nunca mais o vi, mas com frequência perguntei a mim mesmo como ele perce-bia o mundo, considerando aquela estranha perda da imagem, da visualidade e a perfeita preservação de uma grande musicalidade. Creio que a música, para ele, tomara o lugar da imagem. Ele não possuía imagem corporal, e sim música corporal; eis por que ele era capaz de mover-se e agir com fluência, mas parava todo confuso se a “música interior” fosse interrompida. E o mesmo acontecia com o exterior, como mundo...Em O mundo como vontade e representação, Schope-nhauer afirma que a música é “vontade pura”. Como ele se teria fascinado pelo dr. P, um homem que perdera por completo o mundo como representação, mas o preser-vava inteiramente como música ou vontade!E isso, misericordiosamente, manteve-se até o fim – pois, apesar do avanço gradual de sua doença (um grande tumor ou processo degenerativo nas partes visuais do cérebro), o dr. P. viveu e lecionou música até os últimos dias de sua vida.

FONTE: SACKS, O. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu e outras histó-rias. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 10-14.

Esta história contada por Oliver Sacks nos permite pensar além dos diag-nósticos, mas pensar nos indivíduos, nas suas formas de existir e nas criatividades encontradas diante de determinados desafios. O problema neurológico de Dr. P. não foi “curado”, ele continuou sem conseguir nomear os objetos ao seu redor, mas isto não o impediu de lecionar e amar a música. Isto não o invalidou, neces-sariamente. O que você achou da história? Como pensaria numa abordagem com o Dr. P. tanto levando em consideração os manuais e termos da neurobiologia e, ainda assim, percebendo nele originalidade e autoria perante sua própria vida?

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2.1.2 Dislexia

Além dos transtornos supracitados, a dislexia é um transtorno de lingua-gem que também pode chegar nos campos da psicopedagogia. A definição deste transtorno é complexa e ainda não uniformizada. De todo modo, a dislexia abran-de os níveis de transtorno de aprendizagem, leitura e escrita. Algumas caracte-rísticas da dislexia envolvem transtorno nas operações de reconhecimento das palavras e nas habilidades de escrita ortográfica e produção textual. Por isto, ge-ralmente os disléxicos ficam atrasados na leitura e na escrita surgindo na infância e persistindo durante a vida adulta (MOOJEN; FRANÇA, 2016).

A dislexia aparece, geralmente, nos primeiros anos de escolaridade e re-sulta de anomalias no lobo temporal e pode ser diagnosticada em indivíduos com capacidade intelectual “normal”. A vida funcional dos disléxicos pode seguir seu curso, podendo entrar em cursos universitários, embora seja provável que com maiores dificuldades. Há na dislexia um déficit primário com inabilidades do pro-cessamento fonológico e da memória de trabalho, estando o processo fonológico especialmente comprometido de forma que os disléxicos têm dificuldade em de-codificar ou representar atributos falados da palavra (MOOJEN; FRANÇA, 2016).

FIGURA 4 – DISLEXIA

FONTE: <https://bit.ly/3CjaLV0>. Acesso em: 14 out. 2021.

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As palavras são reconhecidas através da via léxica e da via fonológica. A via léxica, ou direta, apresenta uma conexão entre a forma visual da palavra, a pronúncia e o significado; isto acontece com as palavras já conhecidas. A via fonológica (indireta, pré-léxica ou de subpalavras) é um processo que recodifica a fonologia da palavra; o que acontece com palavras que ainda não conhecemos. Em leitores que não apresentam dificuldades ou transtornos, estas duas vias são utilizadas (MOOJEN; FRANÇA, 2016).

Temos, assim, duas instâncias de interpretação: uma, vinculada às ci-ências médicas, que oficializa os erros da escrita de aprendizes como sintomas de uma patologia, a dislexia, ligada à noção de tempo e de aprendizagem homogênea; e outra, ligada às ciências humanas, que interpreta tais erros como parte do processo de aquisição da escrita e de letramento (MASSI; SANTANA, 2011, p. 409).

Vemos, assim, que a dislexia é vista sob o viés das ciências da saúde, com interpretação do funcionamento neurobiológico e neuropsicológico em relação ao que seria normal no desenvolvimento da leitura e da escrita. Além desta via, também se compreende a dislexia através das ciências humanas, onde a interpre-tação pode não ser patologizadora mas recai sobre uma ideia de mal letramento do indivíduo e/ou da família (MASSI; SANTANA, 2011). Na prática, as duas vias andam de mãos dadas e os diagnósticos de dislexia crescem cada vez mais.

3 TRANSTORNOS NA MATEMÁTICA

As habilidades em matemática não são exclusivas aos seres humanos pois alguns animais também a apresentam. Contundo, estas habilidades são, em algu-ma medida, inatas pois conseguimos quantificar e distinguir mais um ou menos um (BASTOS, 2016). Inicialmente, as crianças contam os números como se lê as palavras, posteriormente passar a perceber que cada palavra corresponde a um ou mais objetos. Assim, pouco a pouco, a criança aprende a ordem dos números, depois desenvolve também o princípio cardinal.

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FIGURA 5 – DESENVOLVIMENTO DA HABILIDADES EM MATEMÁTICA

FONTE: Bastos (2016, p. 179)

Enquanto os transtornos de leitura baseiam-se na lógica de inclusão, os transtornos de aprendizagem em matemática desenvolvem-se mais baseados na exclusão. Estes déficits ocorrem de forma isolada e envolvem cálculos e resolução de problemas, o indivíduo apresentando dificuldade em concentrar-se na reso-lução requerida (FLETCHER et al., 2009). Assim, a matemática, essencialmente, envolve cálculos e isto é produto do conhecimento de números e lógicas e habili-dades visoespaciais. Há, ainda, dificuldades para definir um conjunto de déficits e habilidades que identifiquem firmemente um transtorno em matemática, não havendo identificação de processos cognitivos subjacentes a estes transtornos. Geralmente, os casos de transtornos na matemática estão atrelados à dislexia.

A discalculia é um dos transtornos de matemática que tem como característi-ca específica da aritmética, não se caracterizando, contudo, como um retardo global ou a uma escolarização inadequada. A discalculia representa um déficit no domínio das habilidades computacionais básicas, como adição, subtração, multiplicação e di-visão mais do que aquelas habilidades que envolve álgebra, trigonometria ou cálculo.

O conceito numérico se desenvolve seguindo os seguintes passos:1. Compreensão do princípio da correspondência do um a um;2. Compreensão de que um conjunto de “coisas” tem uma representação

numérica e que a manipulação do conjunto afeta essa representação;

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3. Compreensão de que um conjunto de números não precisa ser vi-sível, como, por exemplo: “As três badaladas de um sino na igreja”.

4. Reconhecimento de pequenos números sem contagem verbal (subi-tizing) (BASTOS, 2016, p. 178).

Considerando que as causas, as definições e a etiologia dos transtornos de aprendizagem ainda não estejam claro na literatura, também podemos pensar sobre uma variedade de processos cognitivos que podem estar comprometida resultado, assim, numa dificuldade em termos matemáticos. A memória de tra-balho, a linguagem, a atenção são alguns fatores que podem implicar num mal desenvolvimento da aprendizagem de matemática (FLETCHER et al., 2009).

4 TRANSTORNO DA MEMÓRIA

A memória pode apresentar diversos conceitos e definições. Um deles diz respeito à relação entre memória e aprendizagem, estando intimamente relaciona-do, havendo sempre uma imbricação entre memorizar e aprender. Outro concei-to de memória está atrelado aos fatores moduladores da memória, como atenção, motivação e nível de ansiedade. Nesse sentido, é, em certa medida, esperável que um indivíduo desatento passe por dificuldades na aquisição de informações novas.

De todo modo, quando pensamos em memória, não há apenas uma e nem mesmo uniforme entre os indivíduos, pelo contrário, existe uma variedade de memórias, sendo simples, complexas, cinestésicas, emocionais, corporais. Há memória para cada função cortical, memória para experiências vividas. Ainda assim, há alguns mitos em torno do conceito de memória, como por exemplo, a lenda de que usamos apenas uma pequena porção da nossa capacidade cerebral, o que certamente não se aplica para o caso da memória. Ao contrário, para que possamos realizar nossas atividades cotidianas, utilizamos toda a nossa capaci-dade disponível de memória. É claro que enquanto realizamos uma atividade, precisamos “esquecer” outras, em termos realmente produtivos. Assim, selecio-namos a memória que precisamos dependendo da situação.

Compreendemos a memória como um evento que tem, pelo menos, três fases, a saber: aquisição, formação/consolidação e evocação. Com estas três fases, as informações são manuseadas pelo sistema nervoso central. Entretanto, além do conceito clássico de memória, existe outro tipo de evento que também poderia ser admitido como mnemônico. Trata-se daquilo que, em inglês, chama-se insi-ght e não tem tradução adequada em nossa língua. Um insight é uma memória gerada internamente, sem a participação dos sentidos. Eles ocorrem pelo repro-cessamento de memórias consolidadas prévias, surgem espontaneamente e de forma abrupta, durante o estado de vigília. Outro fato mnemônico interessante pode ocorrer, não durante a vigília, mas sim, durante o sono. É clássica a noção de que o sono é importante para a saúde física, assim como o sonho é para a psí-quica. Este aprendizado pode acontecer mais especificamente no transcorrer da fase REM (rapid eye movements) dos sonhos. São típicos aprendizados endógenos, durante os quais também não há a participação dos cinco sentidos.

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Acadêmico, você certamente já teve um insight! Aquele momento em que, muito de repente, chegamos a uma conclusão para um problema, conseguimos sintetizar um pensamento, que chegamos a ponto que, muitas vezes, surpreende até nós mesmos pela forma que veio. Os insights são muito bem-vindos na apren-dizagem e nos processos terapêuticos.

Os transtornos que envolvem a área da memória implicam também na aprendizagem. Considerando a memória nas suas três fases, aquisição, consolida-ção ou evocação, os transtornos de memória podem se apresentar também, nestas fases. A amnésia, por exemplo, corresponde à ausência de memória, podendo ser:

• amnésia retrógrada: esquecimento de eventos que antecederam ao acidente;• amnésia anterógrada: esquecimento de eventos ocorrido logo após o acidente.

Em Como Se Fosse a Primeira Vez, Henry Roth (Adam Sandler) é um veteriná-rio que vive no Havaí e é famoso pelo grande número de turistas que conquista. Seu novo alvo é Lucy Whitmore (Drew Barrymore), que mora no local e por quem Henry se apaixona perdidamente. No entanto, há um problema: Lucy sofre de falta de memória de curto pra-zo, o que faz com que ela rapidamente se esqueça de fatos que acabaram de acontecer. Com isso, Henry é obrigado a conquistá-la, dia após dia, para ficar ao seu lado.Neste filme, Lucy Whitmore sofre de amnésia anterógrada, ou seja, não retém novas infor-mações, não há consolidação e, por isso, suas memórias preservadas são aquelas anterio-res a um dia específico que causou nela grande dor.

FONTE: Adaptado de <https://bit.ly/312PcKO>. Acesso em: 14 out. 2021.

DICAS

FIGURA – FILME COMO SE FOSSE A PRIMEIRA VEZ

FONTE: <https://bit.ly/3nueFEz>. Acesso em: 14 out. 2021.

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Esses fenômenos podem implicar diretamente na aquisição da aprendiza-gem uma vez que há dificuldades para evocar ou consolidar a memória. A aqui-sição da memória é de suma importância para o aprendizado e inicia-se pela ati-vação da memória de trabalho ou de curta duração. Há outros diversos fatores que podem interferir nos transtornos de aquisição de memória, como problemas de atenção, motivação, nos cinco sentidos etc. Já que é a memória de trabalho que gerencia as demais memórias, toda a consolidação posterior das memórias pode ficar prejudicada se houver problemas no primeiro dos eventos mnemônicos. Por exemplo, uma lesão ou disfunção no córtex pré-frontal na sua porção anterolateral pode prejudicar a memória de trabalho, e o paciente pode passar a ter dificuldades em estabelecer juízo de valores, em avaliar consequências dos seus atos e até em diferenciar aqueles que serão prejudiciais daqueles que não virão a ser prejudiciais.

Desse modo, quando pensamos nos processos de aprendizagem, a me-mória é de fundamental importância tanto por seu caráter de evocação, mas tam-bém por sua influência no corpo, também havendo correlação com outros desen-volvimentos na criança, como o desenvolvimento motor, obtidas por meio de treinamento, como escrever, por exemplo. Atividades como pegar um lápis para escrever ou manusear uma tesoura (coordenação motora fina). Portanto, sem a memória para que estas ações sejam repetidas e evoluídas, o desempenho aca-dêmico pode ser prejudicado. Por isso os primeiros anos escolares estão voltados fundamentalmente para que as crianças aprendem, o quanto antes, a ler e a escre-ver, pois a partir disto que os demais conhecimentos formais serão consolidados. Dito de outra forma, aprender a ler e a escrever é um pré-requisito básico e formal para o desenvolvimento da aprendizagem escolar.

5 TRANSTORNO DE DESENVOLVIMENTO AUTISTA (TEA)

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um distúrbio de desenvolvimento que apresenta inúmeras complexidades e etiologias, além de diferentes níveis de gravidade. O TEA é definido do ponto de vista comportamental. O Transtorno do Espectro Autista, ancorado no DSM-5 (2014, p. 50), diz respeito à déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contexto. Como critérios diagnósticos, apontam que:

1. Déficits na reciprocidade socioemocional, variando, por exemplo, de

abordagem social anormal e dificuldade para estabelecer uma con-versa normal a compartilhamento reduzido de interesses, emoções ou afeto, a dificuldade para iniciar ou responder a interações sociais.

2. Déficits nos comportamentos comunicativos não verbais usados para interação social, variando, por exemplo, de comunicação ver-bal e não verbal pouco integrada a anormalidade no contato visual e linguagem corporal ou déficits na compreensão e uso gestos, a ausência total de expressões faciais e comunicação não verbal.

3. Déficits para desenvolver, manter e compreender relacionamentos, variando, por exemplo, de dificuldade em ajustar o comportamento para se adequar a contextos sociais diversos a dificuldade em com-partilhar brincadeiras imaginativas ou em fazer amigos, a ausência de interesse por pares (DSM-5, 2014, p. 50).

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O diagnóstico para casos realiza-se de forma clínica, embora devamos consi-derar que, por se tratar de um espectro, algumas crianças podem não apresentar atra-sos para o desenvolvimento da fala. Assim, a importância de um diagnóstico precoce é importante para que as intervenções e os acompanhamentos sejam efetivos. Como características do quadro de TEA, há a ausência de respostas sociais no bebê.

Em 1980, Rutter e Schopler, com grande experiência no acompanha-mento de criançascom o transtorno, definiu autismo a partir de quatro critérios:1. Atraso e desvios sociais não só como deficiência intelectual;2. Problemas de comunicação não só como de deficiência intelectual

associada;3. Comportamentos incomuns, tais como movimentos estereotipados

e maneirismos;4. Início antes dos 30 meses de idade (ROTTA, 2016, p. 369).

As dificuldades de interação apresentadas no TEA podem manifestar-se como isolamento, pouco contato visual, dificuldade em participar de atividades em grupo, distanciamento afetivo, ausência de empatia social ou emocional. Al-guns podem ser resistentes às mudanças, gostando se ter suas rotinas bem esta-belecidas.

Com relação ao diagnóstico, contudo, raramente é feito antes dos anos e pouco se sabe sobre os sintomas iniciais, sendo os sintomas de desenvolvimen-to neurológico, comportamental e cognitivo também incertos. Sendo as causas que causam os sintomas também não estão claramente definidas. Assim, por ser um espectro, o quadro clínico pode se manifestar em diferentes graus, mas de um modo geral apresentam dificuldade na interação social, na comunicação e nas atividades imaginativas. Para Rotta (2016, p. 362) uma avaliação é necessária quando a criança:

• Não balbucia aos 12 meses;• Não gesticula aos 12 meses (não aponta, não abana);• Tem ausência de palavras com significado aos 16 meses;• Não consegue fazer frases de duas palavras espontaneamente e não

ecolálicas aos 24 meses;• Sofreram alguma perda de linguagem ou habilidades sociais em

qualquer idade (ROTTA, 2016, p. 372).

QUADRO 6 – DESENVOLVIMENTO DE CRIANÇAS TÍPICAS E DE CRIANÇAS COM TEA

Crianças típicas Crianças com TEA

Crianças de RN - 6 meses• Viram a cabeça quando chamadas • Seguem a direção do olhar da mãe

quando ela olha para um alvo visível • Começam a desenvolver atenção

compartilhada • Respondem a demonstração de afeto

de outros e a emoções

• Não reagem quando chamadas• Não respondem a "pistas" sociais, a

não ser com estímulos muito repetidos • Demonstram respostas afetivas mí-

nimas . • Mais passivas e quietas

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TÓPICO 2 — PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM E PSICOPATOLOGIA

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Crianças de 7 - 12 meses

• Começam a demonstrar atenção compartilhada

• Demonstram referência social (procu-ram na face do adulto informação emo-cional quando em situações incertas)

• Comunicação vocal simples • Início de capacidades imitativas

• Maior incidência de posturas anormais• Necessitam de mais estímulos para

responder ao nome • Hiperorais (põem tudo na boca) • Aversão ao toque social • Prestam pouca atenção ao desconfor-

to de outros • Falta de sorriso social e de expressão

facial apropriadaCrianças de 13 - 14 meses

• Comunicação • Receptiva/expressiva• Maior incidência de "faz-de-conta"• Exibem atenção compartilhada

• Atenção compartilhada muito ilimitada • Ausência de funções pré-linguísticas

(apontam)• Falta de empatia• Não demonstram jogo imaginativo

FONTE: Rotta (2016, p. 372)

Com isso em vista, considera-se que pessoas com TEA possuem necessi-dades educacionais especiais devido às especificidades e singularidades no que diz respeito às condições clínicas, comportamentais, cognitivas, de linguagem e de adaptação social que podem apresentar, a depender de cada caso. É possível, a depender do caso, que precisem de adaptações curriculares e estratégias de manejo específicas. Com políticas, direcionamentos e capacitação para a inserção da pes-soa com TEA no ambiente escolar, atendendo às suas necessidades educacionais, é possível propiciar maior qualidade de vida individual e familiar, além de inserção no social e no mercado de trabalho (KHOURY et al., 2014). Por isso, dentre outros fatores, é relevante que seja discutido sobre o TEA no âmbito da educação, tanto em termos legais e políticos, como também no sentido científico e filosófico.

Nesse sentido, as intervenções com crianças com TEA devem contribuir para que a criança desenvolva habilidades funcionais, de forma que facilite sua vida e suas relações. Além disso, destaca-se a importância de uma equipe mul-tidisciplinar, a partir de diferentes frentes. Além disso, em relação a um trata-mento farmacológico para os casos de TEA, são utilizados, quando necessários, para amenizar algum quadro específicos. Os medicamentos mais utilizados são antipsicóticos ou inibidores seletivos da recaptação da serotonina. Há, em alguns casos, a intervenção medicamentosa como adjuvantes no tratamento de TEA para auxiliar nos processos adaptativos, mas os medicamentos não representam nem prometem nenhum tipo de “cura” deste quadro. Pelo contrário, tem sido cada vez mais importante pensar nos indivíduos com TEA a partir da alteridade, con-siderando e respeitando suas formas de ser e estar no mundo.

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UNIDADE 2 — PSICOPEDAGOGIA E PSICOPATOLOGIA

O livro A Diferença Invisível, uma história em quadrinhos escrita por Julie Da-chez e ilustrada por Mademoseille Caroline, conta a história de uma mulher que foi diag-nosticada, aos 27 anos, com síndrome de Asperger. A narrativa foca na rotina da protago-nista, Margueritte, em sua vida privada, com seus amigos e no seu ambiente de trabalho, mostra como ela era incompreendida e os movimentos que fez para assumir sua alterida-de sem a necessidade de patologização. Esta história é também autobiográfica, servindo de inspiração e representatividade.

DICAS

6 TRANSTORNO DO DEFICIT DE ATENÇÃO/HIPERATIVIDADE

Os transtornos de atenção, em relação aos transtornos de aprendizagem, têm sido, nos últimos anos, uma das principais queixas que levam as crianças em idade escolar. Atualmente, o diagnóstico mais comum no que se refere à atenção é o transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH), caracterizada como uma síndrome neurocomportamental que abarcam três categorias: desatenção, hiperatividade e impulsividade. Assim, em termos vulgares, o TDAH está re-lacionado a um nível inadequado da atenção tendo em visto o que a sociedade espera para determinada idade (ROTTA, 2016).

Atualmente, define-se o transtorno de déficit de atenção/hiperativi-dade (TDAH) como uma síndrome neurocomportamental com sin-tomas classificados em três categorias: desatenção, hiperatividade e impulsividade. No DSM-52 são destacados três tipos de apresentação: combinada, quando os critérios A1 de desatenção CID F90.2, quando o critério A2 de hiperatividade e impulsividade são preenchidos nos últimos seis meses; apresentação predominantemente desatenta CID F90.0; e predominantemente hiperativa/ impulsiva CID F90.1. Disso, resulta significativo comprometimento funcional em diversas áreas, seja acadêmica, profissional ou social (ROTTA, 2016, p. 276).

O quadro clínico do indivíduo com TDAH representa alterações de com-portamento, sendo a desatenção uma destas alterações. Desse modo, o indivíduo apresenta dificuldades em ater-se à detalhes, sendo, então, mais sujeito a erros no ambiente formal de educação. Por essa perspectiva, também há dificuldade na or-ganização, no planejamento e na realização de tarefas que envolvam um esforço mental mais complexo e persistente.

Já a parte da hiperatividade deste quadro clínico é representada por uma intensa e exagerada atividade motora. Nesse sentido, as crianças têm dificulda-de em controlar o próprio comportamento e apresentando-se de forma agitada, como agitar as mãos, remexer na cadeira. Os sintomas de impulsividade são re-presentados pela pressa em posicionar-se. Estas características podem ocasio-nar em um mal rendimento escolar. Nesse sentido, o tratamento dá-se de forma

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TÓPICO 2 — PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM E PSICOPATOLOGIA

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crônica, tal como problema apresentado, não havendo cura para este transtorno, apenas novas formas de manejo. O atendimento, assim como nos outros transtor-nos, deve ser focado a partir de uma ótica multidisciplinar.

O TDAH, atualmente, é uma das maiores procuras na clínica e na saúde pública, sendo seus portadores majoritariamente crianças, mas também repre-sentando em adolescentes e adultos. O TDAH apresenta duas vertentes: a dificul-dade manter um nível de atenção estável e a hiperatividade com impulsividade (ROTTA, 2016). De acordo com dados estatísticos, o TDAH acomete de 3 a 30% das crianças em idade escolar.

O tratamento farmacológico pode ocorrer no sentido de diminuir a impul-sividade e a atividade motora e aumentar a vigilância, além de melhorar a memó-ria recente e o desempenho escolar. Um dos fármacos mais comuns nestes casos é o metilfenidato, que se trata de um psicoestimulante e seu efeito recai sobre os aspectos comportamentais que duram o tempo do efeito do fármaco, não auxi-liando nos casos de autoestima ou mudança no quadro do transtorno (ROTTA, 2016). Este fármaco é conhecido comercialmente como Ritalina, com duração de cerca de quatro horas. Outra forma de encontrar comercialmente o metilfenidato é através do Concerta, com tempo de ação de até 12 horas.

A partir de outra perspectiva, devemos refletir sobre alguns pontos críti-cos sobre o diagnóstico e a intervenção que tem sido dada em relação ao TDAH. Uma das críticas diz respeito ao modo como os sintomas são observados, como o diagnóstico é realizado e a afirmação de que estes sintomas representam um transtorno muito embora não se apresente uma etiologia do TDAH (COUTINHO; ARAÚJO, 2018). Além disso, é de notar que mesmo nos critérios diagnósticos a escola e/ou o desempenho escolar é um ponto para o diagnóstico de TDAH, de-monstrando, assim, uma imbricação entre a “doença” e a escola. Desse modo, o cuidado que se deve ter implica no cuidado para que o diagnóstico de TDAH não seja uma consequência de um conflito com as expectativas do ambiente (respon-sáveis, professores). Caso isso ocorra, o perigo consiste em atribuir ao indivíduo um transtorno sem que se reflita sobre a realidade das relações estabelecidas, sendo, assim, a medicalização uma ação coercitiva de controle dos corpos.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• Os fatores para uma dificuldade de aprendizagem podem ser decorrentes de uma proposta pedagógica, de padrões da instituição, a falta de assiduidade, con-flitos do contexto que interferem no processo de aprendizagem, entre outros.

• A dificuldade de aprendizagem tem um caráter mais natural e evolutivo, pois se encontra num limiar entre o “não saber” e o “saber”, ou seja, é transitório.

• No DSM-5, há a classificação de “transtornos específicos da aprendizagem”, agrupando, assim, três tipos de transtorno – leitura, escrita e matemática.

• Os transtornos de aprendizagem dizem respeito a inabilidades específicas, como vimos, nas áreas de leitura, escrita ou matemática de forma que os in-divíduos apresentam; resultados significativamente abaixo do esperado de acordo com faixa etária ou nível de desenvolvimento.

• O diagnóstico psicopedagógico precisa sempre contextualizar os sintomas no contexto da vida da criança, avaliando suas potencialidades e possibilidades.

• Transtornos da linguagem podem acometer a expressão ou a compreensão. Podem ser, entre outros: transtorno da fonação, transtorno da articulação, transtorno do ritmo, afasias, disfasias etc.

• Algumas características da dislexia envolvem transtorno nas operações de reconhecimento das palavras e nas habilidades de escrita ortográfica e pro-dução textual.

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1 Com relação ao diagnóstico psicopedagógico, analise as sentenças a seguir:

I- Deve-se avaliar as dificuldades primárias, ou seja, aquelas que são evolu-tivas e transitórias, que podem acometer a todos nós.

II- Precisa sempre contextualizar os sintomas no contexto da vida da criança, avaliando suas potencialidades e possibilidades

III- Os manuais diagnósticos são diretrizes e, portanto, só ele deve ser utiliza-do para o fechamento do diagnóstico.

IV- É necessário que seja feita uma avaliação cognitiva indicando se há ou não deficiências.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Somente a sentença III está correta.b) ( ) As sentenças I e IV estão corretas.c) ( ) As sentenças II, III e IV estão corretas.d) ( ) As sentenças I, II e IV estão corretas.

2 Os transtornos de aprendizagem dizem respeito à inabilidades específicas, nas áreas de leitura, escrita ou matemática. Sobre o transtorno da lingua-gem escrita, analise as sentenças a seguir:

I- A linguagem é constituída pela parte fonêmica e pela parte semântica, ambas são desenvolvidas ao mesmo tempo e na mesma velocidade.

II- O transtorno do ritmo afeta o ritmo ou a fluência da fala, como a gagueira e alterações na velocidade de fala.

III- A dislexia é um transtorno de linguagem que também pode chegar nos campos da psicopedagogia.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.b) ( ) Somente a sentença I está correta.c) ( ) As sentenças II e III estão corretas.d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 Sobre os transtornos na matemática e transtorno da memória, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

AUTOATIVIDADE

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( ) A discalculia representa um déficit no domínio das habilidades computa-cionais básicas, como adição, subtração, multiplicação e divisão.

( ) Os transtornos que envolvem a área da memória não implicam a apren-dizagem.

( ) Amnésia anterógrada é o esquecimento de eventos ocorrido logo após o acidente

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – V. b) ( ) F – V – V. c) ( ) V – V – F. d) ( ) V – V – V.

4 O Transtorno do Espectro Autista, ancorado no Manual Diagnóstico e Esta-tístico de Transtornos Mentais (DSM-5) diz respeito a déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contexto. Descreva os critérios para esse diagnóstico.

5 Sobre o transtorno de hiperatividade, disserte sobre qual o comportamento das crianças com esse transtorno e o tratamento.

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UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

No Tópico 1, vimos que a construção e o histórico do fracasso escolar estavam embasados em percepções e correntes relacionadas com a universalidade, a racionalidade e, em grande medida, o preconceito, enquanto, no Tópico 2, foram abordados alguns transtornos com base neurológica.

Neste tópico, veremos sobre a medicalização dos casos de dificuldades ou transtornos da aprendizagem sob uma perspectiva crítica, o que implica dizer que, ao mesmo tempo que reconhecemos a necessidade de uma intervenção medicamentosa em diversos casos de transtornos comprovados, também devemos ter atenção para os rumos que essa prática invoca e que lógica de aprendizagem e, sobretudo, que visão de humano e de criança nós estamos construindo.

Desse modo, neste tópico, veremos especificamente sobre a medicalização da vida, da escola e das aprendizagens a partir de uma perspectiva crítica às ideias de classificação universal da aprendizagem e do comportamento. Por esta via, pretendemos refletir a partir de outra ótica sobre as “faltas” que muitos estudantes, crianças, adolescentes e adultos, são analisados. Mais que isso, ressaltamos a necessidade de um olhar a partir da alteridade e da sensibilidade, que permita e acolha diferentes formas de expressão.

TÓPICO 3 —

MEDICALIZAÇÃO DA APRENDIZAGEM

2 MEDICALIZAÇÃO DA VIDA

O termo medicalização da vida, ou medicalização escolar, visa a uma pers-pectiva da ciência médica em que a medicalização ocorre devido a um processo de saúde-doença, no qual o indivíduo é o centro e privilegia-se uma abordagem biológica. No entanto, esse termo tem sido cunhado para designar um processo que tem ocorrido de forma cada vez mais intensa, que consiste na transformação de questões sociais e políticas em questões médicas, de forma procura-se cau-sas e explicações a partir de uma perspectiva biológica, orgânica ou “natural” (COLLARES; MOYSÉS, 1994). Nesse sentido, compreende-se, em partes, porque a medicalização sempre parte também de problemas apresentados como se fos-sem individuais e essencialmente orgânicos.

A medicalização diz respeito a uma produção de lugares, um dispositivo de funcionamento que produz determinados tipos de subjetividades que estão ancoradas em discursos científicos. Nesse cenário, a escola é um ambiente propí-cio e fértil tanto para a produção de discursos científicos quando para abertura

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UNIDADE 2 — PSICOPEDAGOGIA E PSICOPATOLOGIA

de um espaço que produz subjetividades onde os sujeitos são realocados para determinadas formas, dependendo da forma como expressa seu comportamento, estando sob a égide da “anormalidade”.

A terminologia Medicalização da vida foi inicialmente utilizada por Ivan Illich, em seu livro A Expropriação da Saúde para descrever a inserção crescente dos saberes médicos, e seu aparato denominado de progres-so científico, em campos da vida individual que passam a ser submeti-dos a explicações e intervenções médicas. Ivan Illich discute como uma mentalidade médica vai se alastrando e influenciando todas as relações sociais; esse processo ele chama de medicalização da vida. Ao longo de sua obra, descreve alguns dos sintomas sociais definidos como sendo consequências do processo de medicalização da vida. Illich interpreta esses sintomas como males típicos de uma civilização superindustria-lizada e, ainda, afirma que essa ampla intervenção médica na vida co-tidiana acaba por causar muitos prejuízos à sociedade, sendo um deles o que o autor chama de iatrogênese (iatros – médico; genesis – origem). Esse termo refere-se à epidemia de enfermidades produzidas pela inter-venção médica. Enfermidades que não teriam aparecido se não houves-se aplicação de tratamentos recomendados pelos médicos. Trata-se de um processo complexo de ser identificado, mas que evoca a circularida-de produtora que congrega o ato de cuidar, o uso dos instrumentos do cuidado – medicação ou palavra – e a produção de novas fragilidades associadas ao adoecimento, como a resistência corporal a determinados tratamentos ou a identificação patológica em determinadas práticas so-ciais (CHRISTOFARI; FREITAS; BAPTISTA, 2015, p. 1083).

Numa via similar, embora não dicotômica, a medicalização da vida está atrelada à produção de saberes e de verdades numa sociedade cujas diversas es-feras sociais, políticas e práticas sociais do senso comum são embasadas nestes discursos de “verdade”, de forma que o corpo e a vida seguem disciplinados e governados (MOYSÉS; COLLARES, 2013). Nesse ponto, vale ressaltar que quan-do pensamos numa “medicalização da vida” ou em uma “medicalização da vida escolar” não estamos atribuindo à intervenção de fármacos e psicofármacos para curar determinadas doenças; pelo contrário, trata-se da intervenção medicamen-tosa/química para “regular” e “ajustar” o que se considera fora de ordem ou das expectativas impostas. Assim, os discursos médicos e científicos difundidos como a verdade encontram eco nas subjetividades dos indivíduos e nas práticas sociais, configurando uma sociedade que controla a partir da via medicamentosas.

Nesse interim, diversas áreas contribuem para a difusão destas práticas, além

da medicina, como a psiquiatria, a psicologia e a pedagogia, que produzem conheci-mentos e práticas que revelam um julgamento moral sobre modos de ser e de apren-der que estejam aquém daqueles determinados por manuais e classificações. Desse modo, é, efetivamente, o modo como o indivíduo se expressa, se apresenta, se veste, anda, com quem anda, como fala e como se comporta, além da forma como se dá seu processo de aprendizagem, como constrói relações, qual o seu ritmo e quais as suas potencialidades que está em jogo. Não se trata, portanto, apenas de atributos ou explicações hereditárias ou genéticas, mas numa via contrária, busca-se explicações de ordens biológicas para legitimar um discurso e uma prática que está voltada es-sencialmente para como o sujeito se apresenta e se relaciona com o mundo.

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TÓPICO 3 — MEDICALIZAÇÃO DA APRENDIZAGEM

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Com a ideia de medicalização sob uma perspectiva individual, as questões sociais acabam por serem omitidas e, na prática, medicalizadas de forma cada vez mais crescente nas sociedades ocidentais. Com isso, há um reducionismo bio-lógico, pois se considera que questões sociais podem ser explicadas, reduzidas e eliminadas a partir de manejos de questões e características individuais. Não obstante, as circunstâncias sociais, econômicas, políticas, históricas e geográficas são deixadas para segundo plano, como se influenciassem o mínimo na vida das pessoas e o indivíduo passa a ser responsabilizado por sua condição, per si, sem a devida consideração por seu contexto, sendo o contexto sociopolítico eliminado do jogo de avaliações e análises dos casos.

Como mostrado no Tópico 1, essa visão mecânica e biológica de compreender a vida no mundo e na escola está carregada de um sistema de preconceitos que, em grande medida, naturalizamos. Nesse bojo de concepções, a Educação não fica de fora e vem sendo medicalizada em escala crescente, dando ênfase para o fracasso escolar e a não aprendizagem, que passam a ser consideradas sob uma ótica individualizante.

De que maneira ocorre a patologização do fracasso escolar? Basica-mente sob duas vertentes: • O fracasso escolar seria uma consequência da desnutrição; obviamen-

te, essa apresentação só ocorre para as crianças da classe trabalhadora. • O fracasso escolar seria o resultado da existência de disfunções neu-

rológicas, incluindo-se aqui a hiperatividade, a disfunção cerebral mínima, os distúrbios de aprendizagem, a dislexia; inicialmente, essa forma restringia-se às crianças das classes média e alta, porém, atualmente, está disseminada inclusive entre a classe trabalhadora, criando uma situação no mínimo esdrúxula – uma mesma crian-ça ser rotulada de deficiente mental por desnutrição e de disléxica (COLLARES; MOYSÉS, 1994, p. 27).

Em um ponto mais amplo, a medicalização da vida cotidiana pode trans-formar sensações e sentimentos em sintomas de doença, como sinais de insônia e tristeza serem caracterizadas como distúrbios ou depressão (MEIRA, 2012). Não obstante, para uma avalanche de diagnósticos surge, também, uma avalanche de tratamentos, podendo, com isso, prejudicar a saúde e o corpo físico dos in-divíduos. Certamente, esta situação em que os medicamentos ganham vez e são cada vez mais legitimados no ambiente escolar oferece vantagens às empresas farmacêuticas que estão adentrando, cada vez mais, no âmbito da doença mental.

Outro problema do excesso de medicalização diz respeito a uma idealiza-ção, uma fantasia, de que a resolução dos problemas cotidianos pode ser alcan-çada, por inteiro, por meio de uma intervenção medicamentosa (MEIRA, 2012). Certamente, devemos considerar os casos que os medicamentos são necessários, mas quando se trata de saúde mental, devemos sempre lembrar que as causas e as intervenções não devem ser apenas orgânicas pois estão sempre localiza-das em um contexto mais amplo que influencia a continuidade de determinados “problemas” ou dificuldades.

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O livro O Alienista, de Machado de Assis, conta a história do Dr. Simão Baca-marte que passou estudar as ciências médica, “o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral”, fundou na cidade de Itaguaí, a Casa Verde, para o “recolhimento dos loucos”. O Dr. Bacamarte chegou ao tal ponto de suas análises que em uma data altura da história mais da metade da população da cidade estava enclausurada por não estar de acordo com algum padrão estabelecido pelo próprio médico ou pelos manuais que ele seguia. Em um tom crítico, a história coloca em questão a medicalização, a patologização, o internamento e as teorias cientificistas. Em um afã de buscar uma personalidade sem nenhum desvio, basea-do num ideal de perfeição, o Dr. Bacamarte descobriu que esta seria uma impossibilidade e que talvez, portanto, o louco fosse ele próprio.

DICAS

FIGURA – CAPA DO LIVRO O ALIENISTA, DE MACHADO DE ASSIS

FONTE: <https://bit.ly/3meuSOA>. Acesso em: 14 out. 2021.

Assim, o medicamento muitas vezes se apresenta como um “salvador” das situações e pode significar, na verdade, uma espécie de controle dos corpos atrelado a um projeto neoliberal. Nesse sentido, concordamos com Meira (2012, p. 8), quando diz:

Não se trata obviamente de criticar a medicação de doenças, nem de negar as bases biológicas do comporta mento humano. O que se defen-de é uma firme contraposi ção em relação às tentativas de se transfor-mar problemas de viver em sintomas de doenças ou de se explicar a sub jetividade humana pela via estrita dos aspectos orgânicos.

Com isso, o dr. Bacamarte, do Alienista de Machado de Assis, nos deixa um grande aprendizado sobre a necessidade de colocar tudo sempre a partir de uma única norma e nos deixa atentos em relação à nossa prática para que não façamos da escola a Casa Verde, de Itaguaí.

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2.1 MEDICALIZAÇÃO DA VIDA ESCOLAR

A perspectiva de uma medicalização da vida escolar relaciona aspectos que não estão adequados à norma estabelecida pela escola a uma causa orgâni-ca. Dito de outra forma, classifica-se os indivíduos que não alcançam padrões e regras estabelecidos social como “doentes” ou “transtornados” sem que se ava-lie com cuidado as próprias normas e exigências estabelecidas, a priori, e pre-tensamente uniforme para todos, negando, assim, as possibilidades de alterida-de, singularidade e originalidade que todos carregamos. Desse modo, “grandes questões políticas e sociais são artificialmente transformadas em um problema do indivíduo” (CHRISTOFARI; FREITAS; BAPTISTA, 2015, p. 1087).

Com este discurso, ao perceber as crianças como incapazes de aprender e atribuir isto a causas apenas biológicas, o lado pedagógico e criativo das interven-ções para a aprendizagem fica em detrimento de uma intervenção com recheada de saberes médicos (CHRISTOFARI; FREITAS; BAPTISTA, 2015). Este é o meio que, em nossa sociedade, patologiza-se aqueles que a escola não compreende ou não alcança e, além disso, os culpabiliza.

As doenças da não aprendizagem criam uma demanda dirigida aos ser-viços de saúde, às intervenções específicas; nem sempre tais intervenções são propostas com o intuito de potencializar a capacidade dos alunos, mas, em muitos casos, apenas visam transformar o aluno produzido pelo discurso da anormalidade em um sujeito mais próximo possível da nor-ma. O processo de medicalização acalma conflitos. Se o suposto problema está no aluno, ninguém tem culpa da sua doença. O discurso direcionado ao aluno comumente sintetiza: não é caso para o pedagógico, mas para a saúde (CHRISTOFARI; FREITAS; BAPTISTA, 2015, p. 1088).

A partir disso, surgem inúmeras interrogações, tais como: que tipo de escola estamos construindo para estes aprendentes? Que tipo de subjetividades estamos construindo? De que modo conseguimos nos relacionar com o outro que é diferente de nós? Quais formas podemos utilizar para pensarmos e nos relacio-narmos com a frustração da não aprendizagem do outro?

Lembramos, mais uma vez, que essa lógica de medicalização do proces-so escolar está atrelada à urbanização das cidades e à patologização do fracasso escolar, o que está recheado de preconceitos e ideias evolucionistas que limitam aqueles que nem ao menos tiveram possibilidades de acesso a bens materiais ou culturais (CHRISTOFARI; FREITAS; BAPTISTA, 2015). Ou seja, patologização e medicalização de crianças pobres, à margem, fora da norma colonial. Este modo de proceder pode ser deveras violento pois procura conduzir, gestar, os modos pelos quais as crianças se expressam e, efetivamente, aprendem.

No ambiente educacional, a medicalização pode ser usada como uma pro-dução social de doenças que busca explicar questões de não aprendizagem em alunos que não se enquadram ao que foi previamente padronizado de acordo com sua faixa etária, gênero e classe. Para o exemplo de uma criança que não leu e não sabe escrever, a tendência geral é procurar explicações e causas orgânicas

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até que se encontre um diagnóstico e a intervenção fica baseada no diagnóstico e no acompanhamento terapêutico (CHRISTOFARI; FREITAS; BAPTISTA, 2015). Além disso, geralmente os profissionais da saúde e da educação consideram irre-levante a participação da escola para uma intervenção pedagógica, afinal, nesta lógica, o problema é orgânico, portanto, individual e isolado.

Em pesquisa realizada com profissionais da educação e da saúde, Collares e Moysés (1994) investigaram sobre as causas do fracasso escolar e constataram que todos os entrevistados, independente da área de atuação, relacionavam o fracasso escolar às crianças e às famílias que historicamente o fracasso escolar foi construído em cima de normas e réguas estabelecidas que deixam à margem os indivíduos que não têm acesso a bens e materiais.

Ainda na mesma investigação, as autoras constataram que todos os en-trevistados consideravam que o fracasso e a dificuldade de aprender estavam localizados em fatores biológicos. O fato de as crianças terem esses “problemas biológicos” é a causa das dificuldades no sistema educacional brasileiro, como desnutrição e disfunção neurológica. Alguns trechos da fala dos profissionais en-trevistados na pesquisa de Collares e Moysés (1994, p. 64):

“Hiperativa é criança com problema neurológico. Não para nada a sa-tisfaz, distraídas, dispersas, incomodam ...”“Dislexia é uma doença neurológica, que se caracteriza pela grande dificuldade em aprender a 1er e escrever.”“As crianças não conhecem, não discriminam, não têm sequência de ideias, não têm coordenação motora.”“A hiperatividade é uma doença neurológica que dificulta a aprendizagem”.

Nesse sentido, a vulgarização e a naturalização da situação das crianças é biologizada de forma os profissionais apresentam um pensamento cristalizado baseado em premissas recheadas de preconceito. Por essa via, as autoras Collares e Moysés (1994) discutem sobre a legitimidade dos instrumentos padronizados para avaliar os conhecimentos e as habilidades das crianças. Isto porque os testes padronizados apresentam uma crença na possibilidade de avaliar o potencial intelectual da pessoa baseada no que ela já deve fazer, já deve ter aprendido.

Este método desconsidera que uma atividade é ensinada e transmitida por um grupo social e isto representa uma série de valores históricos e políticos de determinado grupo, o que é essencialmente um valor de classe. Por esta via,

ao assumir que as expressões das classes sociais privilegiadas são as superiores, as corretas, o que se está assumindo é uma determinada concepção de sociedade e de homem, fundada na desigualdade e no poder, em que alguns homens são superiores a outros, algumas raças são superiores a outras (COLLARES; MOYSÉS, 2013, p. 65).

Uma lógica não medicalizante e não patologizante da aprendizagem con-sideraria como fundamental aprender a olhar, olhar a criança, perceber o que ela tem, o que ela gosta e o que ela pode. Assim, sem um instrumento já pre-viamente definido, sem uma linha de chegada determinada a priori, é possível

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perceber, com muitos mais amplitude, as expressões que a criança já adquiriu. Esta perspectiva inverte o jogo de diagnóstico pois não é o aprendente quem tem que responder o que profissional quer, mas é o profissional que deve se ater às expressões, aos gostos e aos valores das crianças.

Ao invés de buscar o defeito, a carência da criança, o olhar procura o que ela já sabe, o que tem, o que pode aprender a partir daí. O pro-fissional tenta, mais que tudo, encontrar o prisma pelo qual a criança olha o mundo, para ajustar seu próprio olhar. Sabendo que existem limites para seu olhar, que está sujeito a erros, pois não está lidando com verdades absolutas. Esta proposta de avaliação tem um requisito essencial: profissionais mais competentes, com conhecimentos mais sólidos e profundos sobre o desenvolvimento da criança, sobre o con-ceito de normalidade, profissionais que não se satisfaçam com visões parciais, estanques, que não tenham medo de suas próprias angústias (COLLARES; MOYSÉS, 1994, p. 68).

A via de ensinar e aprender sem que haja de antemão um ponto de che-gada, um pódio limite. Ou, ao contrário, um modo de aprender que não precise ser demarcada por linhas específicas que prendem as possibilidades da criança em criar e imaginar outras coisas, experienciar outros modos de maturar infor-mações. Quando olhamos a partir da alteridade, não da falta, não da ausência, não da doença, então vemos mais necessidade e mais potência num encontro do que, muitas vezes, na necessidade de intervenção medicamentosa para casos de problemas comportamentais.

3 MEDICALIZAÇÃO: CRÍTICAS E REFLEXÕES

Vimos que se, de um lado, temos a construção do fracasso escolar base-ada em inúmeros preconceitos, de outro, temos a produção de diagnósticos em larga escala com um foco predominantemente biológico. Quais são os limites dos transtornos de aprendizagem? De que forma a não aprendizagem ultrapassa os limites do que consideramos que está dentro da normalidade? Sendo legítimo o laudo de determinado transtorno, qual a relevância de intervenções medicamen-tosas que terão outros vários efeitos colaterais indesejáveis? Ou, ainda, “qual a diferença de uma criança disléxica para uma criança mal alfabetizada?”.

A patologização da aprendizagem constitui um processo em expansão, que se dissemina rapidamente, com grande aceitação geral. Os pais das crianças reagem a seus resultados como se a uma fatalidade. Para os professores, representa um desviador de responsabilidades – “Eu faço o que posso, mas eles não aprendem:”. A instituição escolar, par-te integrante do sistema sociopolítico, legitima suas ações e suas não ações, pois o problema decorreria de doenças que impedem a criança de aprender. A difusão acrílica e crescente de “patologias” que provo-cariam o fracasso escolar- de modo geral, “patologias” mal definidas, com critérios diagnósticos vagos e imprecisos tem levado, de um lado, à rotulação de crianças absolutamente normais e, de outro, a uma des-valorização crescente do professor, cada vez menos apto a lidar com tantas “patologias” e “distúrbios”. A criança estigmatizada incorpora os rótulos, introjeta a doença (MOYSÉS; COLLARES, 1994, p. 30).

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Assim, é preciso reflexão também sobre o que ocasiona um laudo fechado de alguma patologia para uma criança, pensemos em relação a sua autoestima, ao conceito que tem de si e a forma como percebe as próprias aprendizagens. Por outro lado, pensemos também o quanto o fato de existir um diagnóstico, ou seja, de existir uma explicação para determinadas dificuldades tranquiliza familiares e professores.

Também, mal se diagnosticam por excessiva leviandade “dislexias”, “discalculias”, “disgrafias”, “hipercinesias”, “TDA”, TGD” e “TOC”: ficando excluída, para os professores, a possibilidade de responsa-bilizarem-se por seu ensinar e para os pais, o perguntar-se por sua implicação. E, o que é ainda mais grave, as crianças e os jovens são colocados como objetos de manipulação, ficam eximidos do trabalho e do esforço de autoria intrínsecos ao aprender. Muitas dessas crian-ças e adolescentes produziram um problema de aprendizagem ou de atenção, como mensagem criptografada, que requer ser decodificada. Ao rotular, emudece-se essa possibilidade, pois os rótulos funcionam como sofisticados métodos de controle (FERNADEZ, 2012, p. 213).

Nesse sentido, o Brasil é um dos países que mais apresenta diagnóstico de TDAH em crianças e, também nessa linha, é o segundo maior consumidor mundial de metilfenidato (Ritalina, Concerta); a venda destes medicamentos tem crescido cada vez mais em “ritmo assombroso: 71.000 caixas em 2000; 739.000 em 2004; 1.147.000 em 2008; em 2010, as vendas passaram de 2 milhões de caixas” (MOYSÉS; COLLARES, 2013, p. 68).

Um fato interessante sobre esses medicamentos e sobre as anfetaminas é que sua ação é muito semelhante ao da cocaína, sendo, portanto, um poderoso psicoes-timulante. A ação é semelhante pois a estrutura química vai pelo menos caminho, ou seja, de aumentar os níveis de dopamina no cérebro (MOYSÉS; COLLARES, 2013). A dopamina é um neurotransmissor responsável pela sensação de prazer. Assim, este medicamento “libera” índices muito altos de dopamina de uma úni-ca vez por efeito do medicamento, podendo ocorrer, por isso, uma dessensibiliza-ção em situações do cotidiano que poderiam gerar prazer (MOYSÉS; COLLARES, 2013), como interações sociais, afetos e, no caso das crianças, brincadeiras. Neste quadro, a sensação de bem-estar e prazer está condicionada ao efeito do medica-mento em um quadro de transtorno que nem mesmo apresenta uma etiologia.

Como efeito colateral do uso sistemático de metilfenidato, pode ocorrer alterações no desenvolvimento do cérebro (MOYSÉS; COLLARES, 2013). Assim, outro dado curioso diz respeito ao fato de que, nos manuais que detalham as ca-racterísticas do indivíduo com TDAH, aborda-se sobre a possibilidade de adição por parte dos indivíduos acometidos deste mal; contudo, o uso prolongado de um medicamento que pode alterar o desenvolvimento do cérebro devido à exces-siva (e às vezes desnecessária) liberação de dopamina implica, também, na bus-ca constante pelo prazer gerado a partir de altas descargas de dopamina. Nesse sentido, se a medicação de metilfenidato é retirada aos 18 anos, em muitos casos, o indivíduo pode recorrer a outras substâncias que gerem um efeito semelhante daquele gerado em decorrência da intervenção medicamentado que foi resultado de um diagnóstico com base em comportamentos fora da norma.

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As reações adversas do metilfenidato são inúmeras e bastante graves, ao contrário do que se costumam afirmar os que defendem seu uso. Afetam todos os aparelhos e sistemas do corpo humano, com destaque para o sistema nervoso central (psicose, alucinações, agitação, convulsão, insô-nia etc.); sistema cardiovascular (arritmia, hipertensão, taquicardia etc.); e o sistema endócrino-metabólico (alteração dos hormônios controlados pela neuro-hipófise) (MOYSÉS; COLLARES, 2013, p. 75).

Somados a esses quadros de efeito colateral, há alguns autores que também questionam sobre o quadro de TDAH em si por não apresentar dados etiológicos consistentes e por se basear sobretudo em comportamentos inadequados e, por isso mesmo, a crítica quanto ao uso destes medicamentos, sobretudo em crianças, é ainda mais intensa. Isto porque se não há de fato uma evidência neurológica para estes casos, então o tratamento medicamentoso é essencialmente para controle do comportamento. Alguns respondem a estas críticas, contudo, alegando que todos os medicamentos apresentarão efeitos colaterais e que o uso de metilfenitado seria justificável considerando o bom desempenho dos indivíduos após utilizá-lo.

No entanto, em pesquisa realizada, em 2011, pela Agency For Helthare Research and Quality (AHRQ), do Departamento of Health and Human Service, investigou-se sobre os resultados de diferentes pesquisas sobre os tratamentos de crianças e adultos com o diagnóstico de TDAH (MOYSÉS; COLLARES, 2013). Este levantamento de dados sobre como o tratamento de TDAH tratou-se de uma metanálise, que é uma pesquisa que estuda outras pesquisas, como um levanta-mento do campo para compreender como a área está. Os pesquisadores anali-saram cerca de dez mil pesquisas sobre o tratamento de TDAH e destas apenas doze (12) foram de fato somada ao corpus pois todas as outras não apresentavam dados científicos coerentes ou satisfatórios (MOYSÉS; COLLARES 2013).

Transformar em doenças mentais sonhos, utopias, devaneios, questio-namentos, discordâncias; abortá-los com substância psicoativas pode resultar em impossibilidades de futuro diferente. Podemos estar le-gando a nossos filhos e netos, como bem disse Victor Guerra, o geno-cídio do futuro (MOYSÉS; COLLARES, 2013).

Com isso, devemos refletir sobre nossas práticas, que não sejam tão apres-sadamente classificatórias nem busquem, tão facilmente, causas e explicações ne-cessariamente biológicas para os modos de ser que talvez não compreendamos. A aprendizagem e o comportamento podem se apresentar e se desenvolver de for-mas vastamente diversas e complexas. Com um cenário de excesso de diagnósticos que limitam tanto a aprendizagem quanto o comportamento e apenas um modo de ser e desenvolver-se, as crianças e os adolescentes são especialmente afetados justamente por comporem uma fase da vida onde nas sociedades contemporâneas se buscam, cada vez mais, padronizar, normatizar, homogeneizar e patologizar.

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3.1 OS PAPÉIS DE RESISTÊNCIA E A PSICOPEDAGOGIA

A psicopedagogia pode ter um papel fulcral no compromisso de despa-tologização da vida escolar e a excessiva medicalização daqueles que não apren-dem. Como vimos repetidas vezes, o comportamento humano não é biologica-mente determinado, pelo contrário, é localizado em um tempo, em um espaço, em uma sociedade, em uma história, com um passado de vividos e um horizonte de possibilidades que também dependem destes laços construídos antes e duran-te a vida, conforme exposto a seguir:

– Vou aprender a nadar – diz Silvina, com alegria dos seus seis anos recém feitos.– Vai nadar? – intervém a irmã, três anos mais jovem.– Não, vou aprender a nadar.– Eu também vou brincar na piscina.– Não é o mesmo. Eu vou aprender a nadar, diz Silvina.– O que é aprender?– Aprender é... como quando papai me ensinou a andar de bicicleta. Eu queria muito andar de bicicleta. Então ...papai me deu uma bici... menor do que a dele. Me ajudou a subir. A bici sozinha cai, tem que segurar andando...– Eu fico com medo de andar sem rodinhas.– Dá um pouco de medo, mas papai segura a bici. Ele não subiu na sua bicicleta grande e disse “assim se anda de bici”... não, ele ficou corren-do ao meu lado sempre segurando a bici... muitos dias e, de repente, sem que eu me desse conta disso, soltou a bici e seguiu correndo ao meu lado. Então, eu disse: – Ah! Aprendi!Uma mulher que escutava a conversa de longe não pode deixar de ver a alegria com que foi pronunciado “aprender”, que se transfere para o corpo da mais moça e surge no brilho de seus olhos.– Ah! Aprender é quase tão lindo quanto brincar – respondeu.– Sabe, papai não fez como na escola. Ele não disse “Hoje é o dia de apren-der a andar de bicicleta”. Primeira lição: andar direito. Segunda lição: andar rápido. Terceira lição: dobrar. Não tinha um boletim onde anotar: muito bem, excelente, regular... porque se tivesse sido assim, não sei, algo nos meus pulmões, no meu estômago, no coração não me deixaria aprender.A mulher, uma psicopedagoga que presenciava a cena, nunca havia escutado, nem lido, nem conseguido escrever uma explicação tão acer-tada do ato de ensinar e aprender (FERNÁNDEZ, 1999, p. 28).

Com esta passagem, nos é mostrado o essencial sobre o processo de saber isto ou aquilo: aprender. Aprender como processo. Aprender contando no ato uma amplitude de possibilidades, que não precisa ser idêntica para todas. A Psicopeda-gogia, como área essencialmente voltada para a aprendizagem e localizada entre a educação e a saúde, sempre soube reconhecer o papel da brincadeira para além dos rótulos de doença. Assim, cabe a nós enquanto profissionais da psicopedagogia, da psicologia, da psiquiatria, realizar uma análise sobre cada situação que se apresenta.

Insisto: uma criança ou jovem pode se mostrar desatento por múltiplas e diferentes situações: como sintoma de diferentes patologias, como resposta reativa e saudável ante a “não permissão” para desenvolver a capacidade de estar a sós. É um equívoco colocar o mesmo rótulo de “déficit de atenção”, como diagnóstico, para uma resposta circunstan-

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cial de desinteresse, para uma inibição cognitiva nascente ou já instala-da, para um sintoma que expressa uma situação de abuso ou violência familiar (FERNANDEZ, 2012, p. 190).

Dessa maneira, quando o profissional consegue reconhecer, na criança, a capacidade “de estar a sós na presença de outro disponível”, pode também pen-sar em outros instrumentos e recursos psicopedagógicos que oriente a criança ou o jovem sem a necessidade de partir para coerção ou imposição. Assim, também se evita diagnósticos que, efetivamente, não melhorarão o quadro, se baseados apenas em fatores comportamentais, que podem ser tidos como permanentes quando são circunstanciais (FERNANDEZ, 2012).

Ademais, com relação a diversas formas de sentir e se desenvolver, exalta-mos também a alegria e, não apenas esta, mas também os momentos de tristeza, pois, quando nos movemos, nos comovemos, em direção a algo novo (FERNAN-DEZ, 2012). Assim, patologizar e medicar sentimentos pode nos impedir de viver e superar momentos de crise que são também essenciais ao nosso desenvolvi-mento. Além disso, o uso desregrado de medicamentos pode levar ao risco de atropelo do tempo psíquico que todos precisamos para simbolizarmos nossas tra-vessias e nossas dores (FERNANDEZ, 2012). Ao simplesmente medicalizarmos, estamos apostando na indiferença, no não movimento e não reconhecimento de outras esferas de sentimentos.

Precisamos aprender: aprender a andar de bicicleta, assim como a Silvana, sem determinar, a priori, como vai ser esta aprendizagem, mas muito dispostos a assumir e arriscar o que é este fluir de rio, sem que seja necessário apressá-lo. Esse aprender também envolve resistir, em termos éticos, científicos, profissionais e sensíveis, que apostam no encontro mais que na doença.

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LEITURA COMPLEMENTAR

A TRANSFORMAÇÃO DO ESPAÇO PEDAGÓGICO EM ESPAÇO CLÍNICO (A PATOLOGIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO)

Cecília Azevedo Lima Collares Maria Aparecida Affonso Moysés

O termo medicalização refere-se ao processo de transformar questões não médicas, eminentemente de origem social e política, em questões médicas, isto é, tentar encontrar no campo médico as causas e soluções para problemas dessa natureza. A medicalização ocorre segundo uma concepção de ciência mé-dica que discute o processo saúde-doença como centrado no indivíduo, privile-giando a abordagem biológica, organicista. Daí as questões medicalizadas serem apresentadas como problemas individuais, perdendo sua determinação coletiva. Omite-se que o processo saúde-doença é determinado pela inserção social do in-divíduo, sendo, ao mesmo tempo, a expressão do individual e do coletivo. Um exemplo gritante de como se medicalizam as grandes questões sociais constituem o próprio processo saúde-doença, que vem sendo transformado em um problema médico, referente a cada indivíduo em particular.

Esse processo de medicalização ocorre em escala crescente nas sociedades ocidentais e, na maior parte das vezes, representa a pura biologização de conflitos sociais. Como elemento final comum recorre-se ao reducionismo biológico, segun-do o qual a situação de vida e o destino de indivíduos e grupos poderiam ser ex-plicados por – e reduzidos a – características individuais. Por essa visão de mundo, as circunstâncias sociais, políticas, econômicas, históricas teriam mínima influência sobre a vida das pessoas; daí decorre que o indivíduo seria o maior responsável por seu destino, por sua condição de vida, por sua inserção na sociedade. O sistema sociopolítico é praticamente desresponsabilizado, em uma concepção funcionalista bastante bem-elaborada e eficiente. Eficiente a ponto de terminar pela culpabiliza-ção da vítima, segundo Ryan (1976), e de conseguir que a própria vítima se conside-re culpada! A biologização da sociedade só consegue se difundir tão rapidamente, e ser tão facilmente aceita, por trazerem si a mesma ideologia que permeia todo o sistema de preconceitos que opera na vida cotidiana de cada homem. Então, é incorporada a esse sistema com grande facilidade, sem conflitos ideológicos – ao contrário, resistir a ela gera conflitos –, e infiltra-se no “bom-senso”, no “senso co-mum”, termos usualmente empregados para nomear/escamotear esse sistema de preconceitos no qual opera o pensamento do homem em sua vida de todo dia.

A Educação, assim como todas as áreas sociais, vem sendo medicalizada em grande velocidade, destacando-se o fracasso escolar e seu reverso, a aprendiza-gem, como objetos essenciais desse processo. A aprendizagem e a não aprendiza-gem sempre são relatadas como algo individual, inerente ao aluno, um elemento meio mágico, ao qual o professor não tem acesso – portanto, também não tem res-ponsabilidade. Ante índices de 50, 70% de fracasso entre os alunos matriculados

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na 1ª série da Rede Pública de Ensino brasileira, o diagnóstico é centrado no aluno, chegando no máximo até sua família; a instituição escolar e a política educacional raramente são questionadas no cotidiano da Escola. Aparentemente, o processo ensino-aprendizagem iria muito bem, não fossem os problemas existentes nos que aprendem. Até alguns anos atrás, a biologização da Educação era feita basicamente pela ciência médica, concretizada pelos profissionais médicos, atuando tanto na Rede Pública de Saúde, como em consultórios particulares e, principalmente, nas faculdades. Dessa circunstância advém o termo medicalização para nomear essa prática. Entretanto, mais recentemente, com a criação/ampliação de campos do conhecimento, novas áreas, com seus respectivos profissionais, estão envolvidas nesse processo. São psicólogos, fonoaudiólogos, enfermeiros, psicopedagogos que se vêm aliar aos médicos em sua prática biologizante. Daí a substituição do termo medicalização por um outro mais abrangente – patologização –, uma vez que o fenômeno tem se ampliado, fugindo dos limites da prática médica.

De que maneira ocorre a patologização do fracasso escolar? Basicamente sob duas vertentes:

• O fracasso escolar seria uma consequência da desnutrição; obviamente, essa apresentação só ocorre para as crianças da classe trabalhadora.

• O fracasso escolar seria o resultado da existência de disfunções neurológicas, in-cluindo-se aqui a hiperatividade, a disfunção cerebral mínima, os distúrbios de aprendizagem, a dislexia; inicialmente essa forma restringia-se às crianças das classes média e alta, porém, atualmente, está disseminada inclusive entre a classe trabalhadora, criando uma situação no mínimo esdrúxula – uma mesma criança ser rotulada de deficiente mental por desnutrição e de disléxica. A relação entre desnutrição e fracasso escolar já foi objeto de muitos trabalhos científicos. Sinteti-camente, podem-se recolocar os pontos fundamentais para esta discussão.

A controvérsia sobre a influência da desnutrição no desenvolvimento cognitivo refere-se à desnutrição grave, de terceiro grau, que ocorra por um longo período no início da vida, quando o sistema nervoso central está-se desenvolven-do. É consenso entre os autores que se dedicam a estudar o assunto, adotando os preceitos mínimos do método científico, que formas mais leves de desnutrição não têm qualquer repercussão sobre o sistema nervoso central, mesmo em termos de anatomia. Essa controvérsia ocorre pela impossibilidade metodológica de se isolar a desnutrição de seus determinantes sociais e econômicos, aliada ao fato de que tais determinantes são os mesmos que devem ser considerados quando se fala em desenvolvimento cognitivo. Admite-se, hoje, que a desnutrição grave, no início da vida e de longa duração, pode interferir no desenvolvimento das funções intelectuais superiores mais complexas do ser humano, principalmente o raciocínio abstrato superior.

Estas funções, as mais complexas e sofisticadas do homem, sem dúvida, nem ao menos estão desenvolvidas aos sete anos de vida; portanto, não podem constituir substrato necessário para a alfabetização. A afirmação de que a desnutrição é uma causa importante do fracasso escolar incorre em dois vieses metodológicos:

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• As crianças matriculadas na Rede Pública de Ensino são portadoras de desnu-trição leve, de primeiro grau, portanto sem alterações no cérebro.

• Está-se falando em alfabetização, processo de aprendizagem que obviamente necessita de funções intelectuais superiores, porém não as mais complexas; ante o potencial cognitivo do ser humano, pode-se mesmo considerar que o processo de alfabetização é relativamente simples para o homem. Entretanto, é importante enfatizar que, diferentemente do que se afirma muitas vezes na Universidade, a desnutrição ainda persiste como uma das principais causas do fracasso escolar no discurso e nas ações dos professores.

Em pesquisa recente, desenvolvida por nós na Rede Municipal de Ensino de Campinas, entrevistando diretores e professores sobre quais seriam as causas do fracasso escolar, encontram-se algumas falas que ilustram nossas afirmações anteriores. Com a palavra, professores e diretores:

“Fisicamente a Eliana é magérrima (...) tem cabelo ralo, tem manchas nos braços e pernas (...) o pior é que a mãe tem uma aparência ótima. É a subnutrição. A Daniela também é subnutrida, é magrinha, muito enjoada, nunca come a merenda (...) Mas a subnutrição na Carla é mais gritante. Com subnutrição não dá mesmo para aprender (...)”.

“A Juliana é o seguinte: a mãe é separada do pai, a mãe tem paralisia, eles passam fome, são desnutridos mesmo. Não conseguem por isso aprender. Não sei o que seria aconselhável, médico ou psicólogo?” “(...) Causas do não aprender? Bem..., é a alimentação... problemas em casa... A gente vê logo que é desnutrida. Se ela é mal-alimentada, a cabecinha não pode mesmo funcionar. No geral é o organismo todo que está com-prometido, tem problema neurológico por causa da desnutrição (...)'“.

A incorporação da crença de que a desnutrição é responsável pelo fracas-so escolar ao sistema de preconceitos pode ser evidenciada no fato de que, como resultado de reciclagens, cursos de extensão, o discurso das professoras se modi-fica, se moderniza; a patologização passa a ocorrer sob novas formas, de acordo com as circunstâncias, com a “moda”.

No entanto, quando se permite que esse novo discurso se estenda, quan-do se pergunta um pouco mais, aparece o mesmo velho discurso:

“(...) ela não consegue mesmo aprender é présilábica (...) ela é imatura, desnutrida (...)”.

Os mitos, as crenças resistem inabalavelmente ao confronto com a rea-lidade. No máximo, transmutam-se em aparentes novos mitos, novas crenças, para permanecerem exatamente iguais. A outra maneira de se patologizar a não aprendizagem consiste nas disfunções neurológicas, sendo os distúrbios de aprendizagem sua forma de expressão mais em moda atualmente. Sobre este as-sunto, podemos afirmar que até hoje, cem anos depois de terem sido aventados pela primeira vez por um oftalmologista inglês, não se provou sua existência. É uma longa trajetória de mitos, estórias criadas, fatos que são perdidos/omitidos...

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TÓPICO 3 — MEDICALIZAÇÃO DA APRENDIZAGEM

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Trata-se de uma pretensa doença neurológica jamais comprovada; inexistem critérios diagnósticos claros e precisos como exige a própria ciência neurológica; o conceito é vago demais, abrangente demais... Como diferenciar uma criança disléxica de uma mal alfabetizada? Esse é um dos pontos centrais da discussão. Para esse gru-po de pretensas patologias, a única coisa precisa é a necessidade de longos e caros tra-tamentos em clínicas de distúrbios de aprendizagem. A proliferação dessas clínicas é um ótimo indicador da frequência crescente com que esse “diagnóstico” tem sido feito. A patologização da aprendizagem constitui um processo em expansão, que se dissemina rapidamente, com grande aceitação geral. Os pais das crianças reagem a seus resultados como se a uma fatalidade. Para os professores, representa um desvia-dor de responsabilidades – “Eu faço o que posso, mas eles não aprendem”.

A instituição escolar, parte integrante do sistema sociopolítico, legitima suas ações e suas não ações, pois o problema decorreria de doenças que impedem a crian-ça de aprender. A difusão acrílica e crescente de “patologias” que provocariam o fra-casso escolar- de modo geral, “patologias” maldefinidas, com critérios diagnósticos vagos e imprecisos tem levado, de um lado, à rotulação de crianças absolutamente normais e, de outro, a uma desvalorização crescente do professor, cada vez menos apto a lidar com tantas “patologias” e “distúrbios”. A criança estigmatizada incor-pora os rótulos, introjeta a doença. Passa a ser psicologicamente uma criança doente, com consequências previsíveis sobre sua autoestima, sobre seu autoconceito e, aí sim, sobre sua aprendizagem. Na prática, ela confirma o diagnóstico/rótulo estabelecidos

Uma outra agravante decorre do fato de que parece que a única preocu-pação consiste em encontrar “diagnósticos” que expliquem, justifiquem o não aprender. Não se trata de buscar um diagnóstico real para uma ação efetiva, no sentido de minimizá-lo, ou mesmo anulá-lo. Uma vez feito o “diagnóstico”, ces-sam as preocupações e angústias... Uma professora de 1á série em uma Escola em Campinas encaminhou dez crianças (de uma classe com 31 alunos) para serem avaliadas por profissionais do Serviço de Saúde Mental; dessas, três foram triadas para um tratamento com a psicopedagoga do serviço, porém ficaram aguardando vagas. A partir daí, a professora, mais tranquila, só se refere a esses alunos como os DMs (Deficientes Mentais): “Os três com DM estão esperando a vaga, mas não sei quando (...) continuam comigo, mas não fazem nada (...)”.

Quando indagada se não gostaria que alguém esclarecesse o que estaria acontecendo com eles e se não achava que, no caso, a psicóloga deveria dar-lhe algum tipo de orientação, respondeu: (...) eu não sei... elas são muito ocupadas lá também, elas têm crianças lá que não dão conta de atender, então ela já fez o teste e já foi aprovado e ela disse que agora tem que esperar a vaga na Saúde Mental, só isso... “. Infelizmente, deve-se ressaltar que este não é um episódio isolado. É muito comum profissionais tanto da Educação como da Saúde quase que se contentarem com um “diagnóstico”. A busca por tratamento eficaz, por soluções efetivas, bem, isso já é uma outra história... Do outro lado da moeda, os professo-res, que deveriam ser também os responsáveis por analisar e resolver problemas educacionais, assumem uma postura acrílica e permeável a tudo; transformam-se em mediadores, apenas triando e encaminhando as crianças para os especialistas

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UNIDADE 2 — PSICOPEDAGOGIA E PSICOPATOLOGIA

da Saúde. Essa prática acalma a angústia dos professores, não só por transferir responsabilidades, mas principalmente porque desloca o eixo de preocupações do coletivo para o particular.

O que deveria ser objeto de reflexão e mudança – o processo pedagógico – fica mascarado, ocultado pelo diagnosticar e tratar singularizados, uma vez que o “mal” está sempre localizado no aluno. O fim do processo é a culpabilização da vítima e a persistência de um sistema educacional perverso, com alta eficiência ideológica. Voltemos a ouvir os professores...

• “A OP sugeriu que separássemos os alunos que apresentam dificuldades para aprender para que o psicólogo pudesse fazer o diagnóstico...“.

• “Tem criança que desde o primeiro mês percebi que não ia. Tem criança doen-te na classe; tem criança com baixo peso, tem a que não enxerga, tem aquelas que não têm coordenação motora e tudo isto interfere no aprendizado. No começo do ano já tinha alunos que por mais que eu fizesse, por mais que eu me esforçasse, que desse de mim, eles não iam. E vão repetir mesmo “.

• “As crianças se interessam em ler, até brigam por causa de livrinhos, mas as lições da lousa, ‘separe silabas' ou ‘forme frases', levam mais de meia hora para fazer... são muito lentas...”.

Com isso, o espaço eminentemente pedagógico da instituição escolar tem--se esvaziado, tem-se tornado vago. Uma instituição social em que seus atores – os profissionais da Educação -rebaixados na escala social, com salários aviltantes, sentindo-se incapazes, expropriados de seu saber, estão prontos a delegar seu espaço, prontos a submeterem-se a uma nova ordem. O trabalho pedagógico, desqualificado, cede terreno para o trabalho de outros profissionais, estimulados pela necessidade de mercado de trabalho. O espaço escolar, voltado para a apren-dizagem, para a normalidade, para o saudável, transforma-se em espaço clínico, voltado para os erros e distúrbios. Sem qualquer melhoria dos índices de fracasso escolar... Porém, se as crianças continuam não aprendendo, a isto agrega-se, em taxas alarmantes, a incorporação da doença... uma doença inexistente...

FONTE: Adaptado de <https://bit.ly/3bjqGGV>. Acesso em: 14 out. 2021.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• A medicalização diz respeito a uma produção de lugares, um dispositivo de funcionamento que produz determinados tipos de subjetividades que estão ancoradas em discursos científicos.

• A medicalização da vida cotidiana pode transformar sensações e sentimentos em sintomas de doença, como sinais de insônia e tristeza serem caracteriza-das como distúrbios ou depressão.

• Ao perceber as crianças como incapazes de aprender e atribuir isto a causas ape-nas biológicas, o lado pedagógico e criativo das intervenções para a aprendiza-gem fica em detrimento de uma intervenção com recheada de saberes médicos.

• A lógica de medicalização do processo escolar está atrelada à urbanização das cidades e à patologização do fracasso escolar, o que está recheado de precon-ceitos e ideias evolucionistas que limitam aqueles que nem ao menos tiveram possibilidades de acesso a bens materiais ou culturais.

• No ambiente educacional, a medicalização pode ser usada como uma produ-ção social de doenças que busca explicar questões de não aprendizagem em alunos que não se enquadram ao que foi previamente padronizado de acordo com sua faixa etária, gênero e classe.

• Uma lógica não medicalizante e não patologizante da aprendizagem conside-raria como fundamental aprender a olhar, olhar a criança, perceber o que ela tem, o que ela gosta e o que ela pode.

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Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

CHAMADA

• O Brasil é um dos países que mais apresenta diagnóstico de TDAH em crian-ças e, também nessa linha, é o segundo maior consumidor mundial de metil-denidato (Ritalina, Concerta).

• A psicopedagogia pode ter um papel fulcral no compromisso de despatologi-zação da vida escolar e a excessiva medicalização daqueles que não aprendem

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1 A medicalização ocorre devido a um processo de saúde-doença, no qual o indivíduo é o centro e privilegia-se uma abordagem biológica. Sobre esse tema, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Com a ideia de medicalização sob uma perspectiva individual, as ques-tões sociais acabam por serem omitidas.

b) ( ) A crítica à medicalização do cotidiano escolar significa excluir o campo educacional da Medicina, recusando por completo o uso da medicalização.

c) ( ) Na vida escolar, sempre ocorreu esse cuidado com os fármacos. d) ( ) Os testes padronizados devem ser o único método utilizado para reali-

zar a medicalização.

2 Ivan Illich, no livro A Expropriação da Saúde, cunhou o termo “medicalização da vida”, para descrever alguns exemplos de consequência da medicaliza-ção da vida. Sobre o tema, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) A medicalização da vida surgiu como crítica ao progresso científico.( ) A medicalização da vida é comum em civilizações superindustrializadas.( ) A medicalização da vida não pode causar nenhum dano aos indivíduos e

à sociedade.( ) A medicalização da vida é o pensamento médico em todas as outras esfe-

ras sociais.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) F – V – F – V. b) ( ) V – F – V – F. c) ( ) F – F – V – V. d) ( ) V – V – F – F.

3 O Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade tem sido um dos mais diagnosticado no Brasil na última década. Para o TDAH, há o tratamento farmacológico, que, predominantemente, trata-se do metilfenidato. Descre-va sobre este medicamento, efeitos, tempo de duração, para que é utilizado e quais as problemáticas em volta do seu uso.

4 O livro O Alienista, de Machado de Assis, conta a história do Dr. Bacamarte, que interna mais de 50% da população da cidade, pois percebia em todos um nível de desvio de personalidade, considerando todos anormais. Sobre com o que essa perspectiva de compreender a vida e a saúde está relaciona-da, assinale a alternativa CORRETA:

AUTOATIVIDADE

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a) ( ) Percepções de progresso e evolução que normatizam os comportamentos. b) ( ) Ideias que surgiram nos anos 2000 sobre testes de personalidade.c) ( ) Ideologias descontruídas sobre o saber e o parecer médico. d) ( ) Não existe relação entre a obra do autor e os contextos sociais.

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UNIDADE 3 —

PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM

PSICOPEDAGOGIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender os diferentes tipos de testes para aplicação no caso das aprendizagens;

• compreender as técnicas projetivas voltadas para a atuação do psicopedagogo;

• conhecer os testes psicométricos para melhor manejo das práticas;

• compreender as potencialidades da ludicidade para a avaliação e inter-venção em psicopedagogia;

• compreender os aspectos relacionados à neurodiversidade e o movi-mento pró-cura;

• compreender as demandas necessárias no pós-laudo;

• identificar a importância da devolutiva e do registro em psicopedagogia;

• compreender a importância da interdisciplinaridade na práxis psicope-dagógica.

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PLANO DE ESTUDOS

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – DIFERENTES INSTRUMENTOS PARA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA

TÓPICO 2 – ALTERIDADE COMO NOVOS COLÍRIOS: O LÚDICO E A DIVERSIDADE

TÓPICO 3 – RELAÇÕES COM OS SUJEITOS NO LAUDO E PÓS-LAUDO

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

“A fim de percorrer uma lesma desde o seu nascer até sua extinção, terei que aprender como é que ela recebe as manhãs, como é que ela anoitece. Terei de saber como é que ela reage ao sol, às chuvas, aos escuros, ao abismo, ao alarme dos papagaios” (BARROS, 2013, p. 345) – esse excerto do poema Biografia do Orvalho, de Manoel de Barros, pode representar um pouco de como é o papel do psicopedago-go nas travessias de aprendizagens dos indivíduos. Para compreender como o ou-tro aprende ou não aprende, é preciso compreender também como este outro fun-ciona em termos de relações, afetos e cognições. Assim, enquanto o psicopedagogo percorre sobre a aprendizagem que nasce ou se extingue no sujeito, ele também se atenta e dialoga com os submundos, margens, superfícies e sofrimentos do sujeito.

No Tópico 1, veremos alguns testes psicopedagógicos e psicológicos que podem ser utilizados nas intervenções psicopedagógicas ou que o psicopedagogo deve ter a compreensão para uma práxis pautada numa teoria bem sustentada. No Tópico 2, abordaremos as possibilidades da ludicidade para a prática psicope-dagógica, que pode utilizar brincadeiras livres ou jogos com regras bem estabe-lecidas, dependendo do objetivo da sessão. No Tópico 3, trataremos de algumas questões sobre os procedimentos pós-diagnóstico, relacionamento com família e escola e questões éticas que envolvem essas situações.

Para o trabalho psicopedagógico, há diversas demandas e possibilidades para intervir e construir hipóteses diagnósticas, o que depende de inúmeros fatores, como faixa etária, queixa, condições físicas e psicológicas do sujeito, entre outras. Nesta uni-dade, nos debruçaremos sobre essas possibilidades de aplicação e aproximação entre terapeuta e paciente a partir de inúmeras formas de intervir, como com testes ou brin-cadeiras, mas sempre com respeito e ética em sua prática. Desse modo, na área da psi-copedagogia, as principais áreas de avaliação e intervenção dizem respeito a:

Linguagem Oral, Leitura e Escrita- Aspectos cognitivos e perceptivos-linguísticos: formas de expressão oral;

criatividade; atenção; concentração; memória auditiva; memória visual.- Habilidades específicas relacionadas à compreensão do sistema e có-

digos da língua: correspondência grafema/fonema; sintaxe; análise estrutural e contextual da língua; interpretação; vocabulário.

- Habilidades relacionadas ao uso da língua e escrita: hipóteses de es-crita; grafia de vocábulos; obediência a regras; habilidades de escrita por meio de ditados e cópias.

- A avaliação deve integrar aspectos culturais-sociais, de desenvolvi-mento e de aprendizagem

TÓPICO 1 —

DIFERENTES INSTRUMENTOS PARA INTERVENÇÃO

PSICOPEDAGÓGICA

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

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Expressão Não Verbal- Gestos, mímicas, representações por imitação e espontâneas, praxias.- Dramatizações, jogos teatrais, jogos simbólicos e faz de conta.- Aspectos psicomotores: esquema corporal, lateralidade, ritmo, equilíbrio,

orientação espacial e temporal, coordenação visório-motora, outros.- Grafismos, desenhos: aspectos perceptivo-cognitivo, psicomotores e

afetivos.Raciocínio lógico-matemático- Nível operatório na compreensão da realidade física e eventos mate-

máticos por meio das categorias de tempo, espaço, números, causa-lidade, inclusão de classes, para avaliação de níveis de desempenho relativos à classificação, seriação, conservação de massa, de número, de superfície e de comprimento, reversibilidade, valor do zero.

- Habilidade aritmética: compreensão da estrutura numérica, valor do zero, operações aritméticas.

- Habilidade no uso de estratégias para a resolução de problemas.Aspectos relacionais e de sociabilidade- Percepção do sujeito em relação a si próprio e aos outros.- Relação professor-aluno: estilos e modalidades de ensino e de apren-

dizagem; relações afetivas; comunicação.- Dinâmica familiar: lugar do sujeito na constelação familiar; cotidia-

no; papéis; comunicação; regras; valores; relações afetivas.- Relação com amigos e companheiros: isolamento; pertencimento a

grupos; relações entre gêneros; jogos e brincadeiras.- Relação com a própria aprendizagem: interesse e hábitos de estudo;

estratégias cognitivas; modalidades de aprendizagem; enfrentamen-to das tarefas escolares (CASTANHO, 2013, p. 197-198, grifo nosso).

Não pretendemos esgotar todo o tema e todas as ações e intervenções possíveis a partir dessa síntese de Castanho (2013), mas enfatizar a ótica pela qual o profissional psicopedagogo deve focar em sua prática e avaliações. De todo modo, muitas destas ações veremos nesta Unidade de forma mais detalhada. As avaliações e intervenções que serão feitas sempre depende do caso específico, não sendo possível esquematizar sempre o mesmo esquema para todos os aprenden-tes, pois cada um apresentará questões específicas e será afetado de diferentes formas pelo contexto que o circunda.

No filme Capitão Fantástico, Ben (Viggo Mortensen) tem seis filhos com quem vive longe da civilização, no meio da floresta, numa rígida rotina de aventuras. As crianças lutam, escalam, leem obras clássicas, debatem, caçam e praticam duros exercícios, tendo a autossuficiência sempre como palavra de ordem. Certo dia, um triste acontecimento leva a família a deixar o isolamento e o reencontro com parentes distantes traz à tona ve-lhos conflitos. A Educação altamente diferenciada das crianças era o ponto forte do filme, porém isso tornava ainda mais complexa e delicada a socialização das crianças em am-bientes sociais comuns, devido ao fato de terem passado boa parte da vida à parte. Dessa forma, as aprendizagens operacionais são supra desenvolvidas, com crítica e fundamenta-

DICAS

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TÓPICO 1 — DIFERENTES INSTRUMENTOS PARA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA

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ção, mas há uma lacuna que consiste na necessidade básica de interação pela qual o ser humano passa para sentir que verdadeiramente pertence a um grupo. Assim, o filme é uma experiência para repensarmos a aprendizagem na relação com a família e a sociedade.

FIGURA – FILME CAPITÃO FANTÁSTICO

FONTE: <https://bit.ly/3jE3o3m>. Acesso em: 29 ago. 2021.

De todo modo, além das diferentes formas de expressão, seja falada, escri-ta ou lida, os aspectos sociais também devem ser observados, pois a aprendiza-gem ocorre sempre em relação. Mudanças no contexto, funcionamento da escola e esquemas familiares são pontos que podem causar interferência no desenvolvi-mento da aprendizagem, seja como foco de resistência, seja para reconhecimento ou como forma de pedido de acolhimento por parte do aprendente.

Por isso, embora o foco da psicopedagogia esteja fundamentalmente volta-do para a aprendizagem, nunca é demais ressaltar que o sujeito deve ser percebido de maneira integral, não podendo isolar as (não) aprendizagens apenas ao fato em si. É importante compreender que uma parte afeta o todo e o todo afeta as partes.

2 TÉCNICAS E INSTRUMENTOS DE AVALIAÇÃO

O fato de uma aprendizagem não se consolidar pode causar alguns incon-venientes na vida das pessoas, independentemente da faixa etária. Contudo, isso afeta sobretudo no caso das crianças, que é quando o foco na aprendizagem em diferentes esferas está em franco desenvolvimento, como aprendizagens cogniti-vas, motoras, sociais, morais, afetivas etc. Desse modo, o processo de diagnóstico é uma seara investigativa em relação a determinadas condutas ou conteúdos que não estão ocorrendo conforme esperado. Assim, o sujeito chega ao psicopedagogo

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

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com uma queixa que pode ser dele mesmo, pode ser da família e muitas vezes pode ser da escola (WEISS, 2007). Nesses termos, estamos falando da investigação sobre não aprender, sobre aprender com muitas dificuldades, sobre não expressar ou desvelar o que aprendeu e não sustentar situações de aprendizagem (WEISS, 2007).

Nesses processos de diagnóstico, uma série de formas de intervenção e avaliação podem ser feitas, mas não se busca, necessariamente, encaixar o apren-dente em categorias nosológicas já determinadas de antemão. A postura deve ir muito mais em relação a uma compreensão global sobre as formas pelas quais o sujeito aprende, assim como quais dificuldades e desvios ocorrem nesse processo (WEISS, 2007). Por ser uma ótica global, as dificuldades não serão meramente físi-cas ou “automáticas”, mas podem ser reflexos de situações inacabadas, afetos que interferem ou a ausência dos pré-requisitos para que determinada aprendizagem se consolide. Por isso, busca dados de maneira global, recorrendo à vida bioló-gica, intrapsíquica e social. Essa trata-se de uma busca por unidade, coerência e integração é um aspecto clínico do psicopedagogo.

Nesse processo, o profissional depara-se com os sintomas que informam sobre a condição do sujeito que pode emergir em interação com todo o modo de funcionamento do sujeito. Com isso, percebemos supostos desvios do sujeito em relação à aprendizagem. Entretanto, esses “desvios” devem ser sempre localiza-dos no contexto: “desvio em relação a quê?”. Nessa investigação sobre os desvios, o psicopedagogo busca parâmetros de correlações, como classe social, formação cultural do sujeito e do seu entorno, relações com conteúdos escolares, idade cro-nológica, exigências escolares e familiares, entre outros. Desse modo, se pensamos numa criança de nove anos de uma classe média que tem acesso a diferentes tipos de qualidade de vida e que ainda não sabe ler, podemos supor que os desvios não passam pela falta de oportunidade social e escolar, como seria o caso de uma crian-ça na mesma faixa etária, mas de uma classe social menos abastada. Por isso, nem o sintoma, nem o desvio, nem a idade deve ser analisada de forma isolada.

FIGURA 1 – QUEIXA DA NÃO APRENDIZAGEM

FONTE: Weiss (2007)

Assim, o esquema da Figura 1 sugere a atenção que o psicopedagogo deve ter: a linha horizontal, sobre a queixa de não aprendizagem, está basicamente no campo presente do sujeito, contextualizado com o sintoma e a história de vida do sujeito, trata-se do “aqui e agora”. Weiss (2007) indica que nesta fase utilize-se entre-vistas com o paciente e instrumentos como Entrevista Familiar Exploratória Situa-cional (EFES), entrevistas com toda a família, como o DIFAJ desenvolvido por Alicia

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TÓPICO 1 — DIFERENTES INSTRUMENTOS PARA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA

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Fernandez; Entrevista Operativa Centrada na Aprendizagem (EOCA), desenvolvi-do por Jorge Visca, Sessões Lúdicas Centradas na Aprendizagem, desenvolvida por Weiss, provas e testes piagetianos, entrevista com a escola e demais profissionais que estejam envolvidos, análise dos materiais do sujeito etc. Já no eixo vertical trata-se da história pregressa do sujeito, que é onde podemos pensar na aplicação da anamnese com a família, com a escola e com outros profissionais. Desse modo, estamos olhando para as diferentes histórias do sujeito, clínica, afetiva, familiar, escolar etc.

Além disso, também se deve analisar a visão pela qual a escola e a família per-cebem o sujeito, considerando que a queixa vai estar relacionada a isso. Dessa forma, conforme Weiss (2007), “o objetivo básico do diagnóstico psicopedagógico é identificar os desvios e os obstáculos básicos no Modelo de Aprendizagem do sujeito que o impe-dem de crescer na aprendizagem dentro do esperado pelo meio social”. Esse Modelo de Aprendizagem, conforme a autora, diz respeito a todo o repertório do sujeito, o con-junto dinâmico e relacional de suas aprendizagens, como ritmo, áreas que aprecia ou não, estilo, mobilidade de funcionamento, tolerância à frustração, entre outros. A partir dessa síntese, deste condensamento das informações, o psicopedagogo pode levantar hipóteses sobre o problema da não aprendizagem. Com isso o psicopedagogo também organiza o prognóstico e o conteúdo para a devolutiva do caso.

Para o processo avaliativo diagnóstico há sempre uma imbricação entre prática e teoria, o profissional apoia-se em determinado arcabouço teórico, algu-ma vertente da área que sustente e embase suas práticas. Portanto, o profissional deve também sempre procurar formações para que sua prática seja honesta e aco-lhedora. Há diferentes formas de abordagem desse processo, a psicopedagogo Maria Lúcia Weiss (2007, p. 38) sugere o seguinte esquema:

1. entrevista Familiar Exploratória Situacional (EFES) (Weiss, 1987);2. entrevista de Anamnese;3. sessões Lúdicas Centradas na Aprendizagem (para crianças) (Weiss,

1987);4. complementação com provas e testes (quando for necessário);5. síntese Diagnóstica – Prognóstico;6. entrevista de Devolução e Encaminhamento. Modificações comuns

de acontecer:a) com pais separados e incompatibilizados: duas anamneses iniciais;b) adolescentes que desejam o primeiro contato sozinhos;c) anamnese inicial sempre que há dúvidas em relação a diagnósticos

anteriores, ou o paciente esteve ou está com outros profissionais.

Percebemos, com isso, uma inflexão da sequência avaliativa do diagnóstico em relação à clínica tradicional vinculada à medicina e à psicologia, onde inicia-se com a anamnese, seguido por testagens, laudo e devolução. Na esfera da psicopedagogia, tem-se ressaltado, cada vez mais, as avaliações ao caráter lúdico e relacional do indivíduo. Assim, a partir da perspectiva de Jorge Visca, ancorado na Epistemologia Convergente, que se trata da integração da psicanálise, da teoria piagetiana e a da psicologia social, sugere-se o seguinte esquema:

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

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1. entrevista Operativa Centrada na Aprendizagem (EOCA) – levanta-mento do primeiro sistema de hipóteses com definição de linhas de investigação e escolha de instrumentos;

2. testes – levantamento do segundo sistema de hipóteses e linhas de investigação;

3. anamnese – verificação e decantação do segundo sistema de hipóte-ses, formulação do terceiro sistema de hipóteses;

4. elaboração do informe psicopedagógico (elaboração de uma imagem do sujeito que articula a aprendizagem com os aspectos energéticos e estruturais, formulação escrita de uma hipótese a comprovar);

5. devolução da informação aos pais e/ou ao paciente (em momento posterior, devolver, de forma restrita, o que for de interesse para a escola) (WEISS, 2007, p. 38-39).

Desse modo, embora haja diferentes correntes na psicopedagogia e diferen-tes formas para realizar esses processos, há, ainda assim, uma diferença em relação ao modelo clínico tradicional, pois não se inicia o processo com a realização da anam-nese. O foco inicial é no sujeito aprendente e no decorrer das sessões, há também um enfoque na realização de atividades lúdicas que revelam diferentes formas de expres-são. Obviamente a anamnese, como fato investigativo da história clínica do indiví-duo, é necessária, mas a forma e o momento que se recorre a ela pode ser diferente.

3 EOCA

A sigla EOCA corresponde à Entrevista Operativa Centrada na Apren-dizagem e foi desenvolvida pelo cientista da educação e psicólogo Jorge Visca (1935-2000). Esse instrumento surgiu a partir de experiência de Visca em traba-lhos onde se percebia a interação energético-estrutural na construção da identida-de e que integram, também, com a aquisição e o desenvolvimento das aprendiza-gens (BARBOSA, 2018, p. 63). Tem como pressuposto os postulados da Psicologia Social de Pichon-Rivière, da Psicanálise, do método clínico da Escola de Genébra e da teoria de Jean Piaget e foi publicada, inicialmente, no livro “Clínica Psicope-dagógica: Epistemologia Convergente”.

A EOCA, para a Epistemologia Convergente, é o primeiro instrumento aplicado com o entrevistado e busca evidenciar e enfatizar o lugar do saber singu-lar, valorizando o sujeito cognoscente (BARBOSA, 2018). O entrevistador mostra os materiais ao entrevistado e solicita que ele faça o que sabe. Dessa forma, diferente-mente de muitos outros instrumentos avaliativos, a EOCA considera sobretudo o processo de construção, não apenas o resultado. Os materiais disponibilizados de-pendem da faixa etária da entrevista, mas em linhas gerais correspondem a: folhas brancas, folhas lisas coloridas e quadriculadas, lápis novo sem ponta, apontador, caneta, borracha, tesoura, régua, marcadores, lápis de cor, cola, massa de modelar, livros e/ou revistas (BARBOSA, 2018). Com isso, há diferentes consignas que po-dem ser efetivadas na entrevista, mas deve haver espontaneidade e não imposição ou uma linha de chegada determinada. Algumas consignas podem ser:

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TÓPICO 1 — DIFERENTES INSTRUMENTOS PARA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA

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Aberta: gostaria que você me mostrasse o que sabe fazer. Esse material é para você utilizar como quiser.Fechada: gostaria que você me mostrasse outra coisa que não seja. Me mostre algo diferente do que você já mostrou.Direta: gostaria que você me mostrasse algo de matemática, escrita, leitura etc.Múltipla: você pode ler, escrever, pintar, desenhar, recortar etc.Pesquisa: para que serve isto, o que você fez, que horas são, que cor você está utilizando etc. (LOPES, 2008, p. 22, grifo nosso).

O entrevistado, a seu turno, pode reagir de diferentes maneiras, pode falar, desenhar, recortar, se demorar a executar qualquer coisa, perguntar o que exatamente deve ser feito. Assim como em todas as provas aplicadas, todos os detalhes podem se mostrar como relevantes. Portanto, durante a aplicação da EOCA, o psicopedagogo deve observar o que o sujeito diz, o que ele faz, qual o enfoque, qual suas resistências e latências, suas atitudes e conhecimentos que demonstra. Com isso, para a Episte-mologia Convergente, pode-se começar a elaborar um primeiro sistema de hipóteses.

Tal intervenção tem por objetivo observar a possibilidade de modificação de conduta do entrevistado; sua organização ou desorganização; as jus-tificativas verbais ou pré-verbais apresentadas; a aceitação ou recusa do outro (movimento de assimilação, acomodação, introjeção, projeção) etc. Durante a EOCA, é necessário observar os seguintes aspectos: temática, dinâmica e produto. A dinâmica consiste em tudo o que o sujeito diz, o que envolverá o significado do conteúdo das atividades em seu aspecto manifesto latente. A dinâmica consiste em tudo o que o sujeito faz, o que é expressa por meio da postura corporal, dos gestos, da entonação da voz, do modo de se sentar, de manipular os objetos, que podem ser tão ou mais reveladoras que os comentários ou o produto. Já o produto consiste em tudo o que sujeito deixa registrado (produzido) que poderá ser a escri-ta, o desenho, as contas, a leitura (BARBOSA, 2018, p. 66-67).

Desse modo, podemos verificar que a EOCA corresponde integralmente às concepções psicanalíticas e piagetianas tanto na forma de aplicação como na sua fun-damentação. Essa entrevista tem como objetivo perceber os sintomas e levantar hipó-teses a partir de um instrumento que não cristaliza o conhecimento do aprendente, pelo contrário, estimula a criatividade e convida para um campo de busca intencio-nal e experimental sobre si e sobre sua aprendizagem. Assim, pelo viés psicanalítico, podemos pensar nos obstáculos epistemofílico e as barreiras que impedem o amor ao conhecimento que pode se apresentar como diferentes formas de medos, resistên-cias, confusão entre os novos e os velhos conhecimentos (BARBOSA, 2018). Pelo viés piagetiano, pensa-se na construção gradual com estratégias (operações) que auxiliam na aquisição de conhecimento, e isto será o obstáculo epistêmico.

4 TÉCNICAS PROJETIVAS PSICOPEDAGÓGICAS

Há diferentes formatos e classificações para o uso de testes, que podem ser aplicados tanto individual como coletivamente e podem ser de eficiência ou de personalidade. As características externas dos grupos podem ser agrupadas em: lápis, papel e performance. Nesse interim, os testes de personalidade podem ser or-ganizados em questionários, testes objetivos de personalidade e técnicas projetivas.

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

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Lawrence K. Frank, em 1939, foi quem designou o termo “técnicas projeti-vas” para se referir à evocação da expressão do mundo pessoal e dos processos de personalidade do sujeito. Os testes de personalidade que utilizam técnicas proje-tivas não são métricos nem quantitativos, pelo contrário, são, sobretudo clínicos e sua interpretação está vinculada tanto a teoria do aplicador quanto também à sua vivência. Nesse sentido, em um teste projetivo com imagens, o indivíduo constrói um relato no qual sua leitura e vínculos com os personagens revela também sua própria imagem das coisas, de si e do mundo.

O termo “projeção” foi utilizado primeiramente por Freud, em seu arcabouço psicanalítico. A projeção, como visto na Unidade 1, é um conceito utilizado para se referir a uma operação onde um fato neurológico ou psicológico é deslocado do sujeito e localiza-do em seu exterior. Num sentido psicanalítico, é como se o sujeito tirasse de si determina-do conteúdo e depositasse em outrem, pessoa ou coisa, qualidades, sentimentos e desejos.

INTERESSANTE

As técnicas projetivas são recursos que buscam integrar e investigar a di-mensão afetiva do processo de aprendizagem em relação aos vínculos que o su-jeito estabelece com a aprendizagem e com os ambientes que as circunferem (VIS-CA, 2009). Esses aspectos da aprendizagem que envolvem os sentidos podem ser desconhecidos pelo aprendente, de forma que talvez não consiga comunicar verbalmente suas questões.

Desse modo, no que se refere especificamente às provas projetivas psi-copedagógicas, procura-se um foco especificamente voltado para o campo da aprendizagem. O “campo” no que se refere aos sentidos do aprendente e de que forma se dá o vínculo do aprendente com as diferentes dimensões da aprendiza-gem. Isso quer dizer, portanto, que as provas projetivas psicopedagógicas focam especificamente na aprendizagem e não na personalidade como um todo.

Além disso, compreenderemos aprendizagem tanto no sentido escolar, como no sentido de socialização de uma maneira geral, considerando, assim, aprendizagem como uma estabilização de condutas desenvolvidas pelo indi-víduo. Desse modo, interessa-nos o amplo leque de aprendizagem do sujeito, desde aquela desenvolvida na escola, com os professores e companheiros, como também a relação com os demais adultos e crianças que servem como modelos e cenários de aprendizagem. Assim, há toda uma rede de relações que se imbricam e se inter-relacionam, de forma que o todo afeta as partes e vice-versa. Visca abor-da sobre dez diferentes provas projetivas, a saber:

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TÓPICO 1 — DIFERENTES INSTRUMENTOS PARA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA

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FIGURA 2 – PROVAS PROJETIVAS PSICOPEDAGÓGICAS

FONTE: Visca (2009, p. 17)

As provas projetivas, assim, buscam explorar cada um dos domínios ex-postos na Figura 2, escolar, familiar e consigo mesmo. Contudo, esses níveis têm graus de consciência, pré-consciência e inconsciência, de forma que ficará tam-bém mais explícito com a aplicação das provas projetivas e que difere substan-cialmente de pessoa para pessoa. Desse modo ressalta-se que essas estratégias são essencialmente clínicas e utilizadas sobretudo no processo diagnóstico, sendo cada uma delas específica ao seu modo, com um contexto de utilização diverso. A seguir, segue uma síntese dos domínios das provas psicopedagógicas, os obje-tivos e a indicação de faixa etária:

QUADRO 1 – SÍNTESE PROVAS PROJETIVAS

Domínio Prova O que investiga Idade

Escolar

Par Educativo Vínculo de Aprendizagem. 6/7 anosEu com meus Colegas Vínculo com colegas de sala de aula. 7/8 anos

A planta da sala de aula

Representação do campo geográfico da sala de aula e as localizações, real e desejada, dela. 8/9 anos

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Familiar

A Planta da Minha Casa

Representação do campo geográfico do lugar em que mora e a localização real dentro dele. 8/9 anos

As Quatro Partes de um Dia

Vínculos ao longo de um dia. 6/7 anos

Família Educativa

Vínculo de aprendizagem com o grupo fami-liar e cada um dos integrantes desse grupo. 6/7 anos

Consigo Mesmo

O Desenho em Episódios

Delimitação da continuidade da identidade psíquica em função da quantidade de afetos. 4 anos

O Dia do Meu Aniversário

Representação que se tem de si e do con-texto físico e sociodinâmico em um mo-mento de transição de uma idade a outra.

Nas Minhas Férias

As atividades escolhidas durante o período de férias escolares. 6/7 anos

Fazendo o que mais Gosto O tipo de atividade que mais gosta. 6/7 anos

FONTE: Visca (2009, p. 22)

QUADRO 2 – POSIÇÕES NA FOLHA

FONTE: Visca (2009, p. 23)

Além da atenção ao domínio, objetivo, idade e vínculo, o psicopedagogo também deve ater-se às posições dos desenhos nas folhas, pois essas diagrama-ções, como lateralidade, sistema de escrita esquerda-direita, de cima pra baixo podem interferir. Assim, há, de maneira geral, nove posições que constam como indicadores de certos traços que podem estar relacionados com a aprendiza-gem, conforme segue Quadro 2.

Posição Significado geralSuperior ExigenteInterior ImpulsivoDireita Progressivo

Esquerda RegressivoSuperior direita Exigente progressivo

Superior esquerda Exigente regressivo

Inferior direita Impulsivo progressivo

Inferior esquerda Impulsivo regressivoCentral Equilibrado

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TÓPICO 1 — DIFERENTES INSTRUMENTOS PARA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA

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O uso dessas técnicas deve estar localizado no processo diagnóstico de cada caso, verificando a necessidade de aplicação delas, escolhendo qual ou quais se encaixa(m) em cada caso. A interpretação não deve ser engessada nem mera-mente classificatória, pelo contrário, deve ser feita em relação a cada sujeito sin-gular, sendo esses critérios interpretativos sugestões que dialogam e somam aos critérios gerais de interpretação das provas projetivas e de cada caso específico.

4.1 DOMÍNIO ESCOLAR – PAR EDUCATIVO

A técnica do Par Educativo, dentro do domínio escolar das provas projeti-vas, foi elaborada pelas autoras Malvira Oris e Marua Ocampo.

• Objetivo: investigar o vínculo de aprendizagem.• Materiais: folha tamanho sulfite; lápis preto e; borracha.• Procedimento: pede-se que o aprendente desenhe duas pessoas, uma

que ensina e a outra que aprende; solicita-se, quando o desenho tiver sido terminado, que indique como se chamam as duas pessoas desenhadas e qual a idade delas; por último, pede-se que o aprendente dê um título ao desenho e relate o que está acontecendo nele.

A partir disso, pode-se investigar as dimensões da aprendizagem a partir dos objetos de aprendizagem, em relação com quem ensina ou em relação com quem aprende. Assim, observa-se como foram elaborados os objetos de aprendi-zagem, se abstratos, se concretos, se escolares, matemáticos e/ou linguísticos etc. Além disso, também o desenho também demonstrará como é a representação do aprendente com o ensinante e consigo mesmo.

Além desses fatores interpretativos, também há questões em relação ao ta-manho do desenho, bem como distância entre os elementos, posições e barreiras, nomes assinalados, título elabora e enredo. Desse modo, o tamanho total do dese-nho está vinculado à importância da aprendizagem, onde inferimos que os dese-nhos pequenos ou demasiadamente grandes indicam vínculos negativos em rela-ção à aprendizagem. O tamanho dos personagens indica quão valorizados são os personagens nas funções de aprender ou ensinar, se um deles for pequeno, ou um menor do que o outro, indica uma desvalorização ou, caso contrário, caso os per-sonagens sejam grandes, indica uma supervalorização de um em relação ao outro.

O título dado pelo aprendente apresenta uma síntese de como funciona o processo de aprendizagem, se corresponde ou se afasta do desenho realizado. Desse modo, o relato também revela indicações de como é o vínculo com apren-dizagem, considerando que o aprendente oferece uma narrativa ao seu desenho, que vai ser analisado em termos de correspondência ou afastamento com o título, com o desenho em si e pelo próprio conteúdo apresentado.

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ESTUDO DE CASO

O entrevistado é um jovem de 22 anos que estuda administração de empresas em uma universidade particular com grande dificuldade. Foi aprovado em um bom número de matérias do primeiro ano e encontra-se cursando algumas do segundo. Consulta a psicopedagogia porque diz que acha que não sabe estudar ou que, quem sabe, não goste do estudo, mas que tem que estudar porque a família tem uma empresa e porque tem que aprender alguma coisa na vida. Do ponto de vista intelectual, possui um bom desenvolvimento cognitivo, porém também uma marcada tendência a memorizar conteúdos e mecanizar procedimentos. O ingresso de todos os níveis de educação significou para ele um distanciamento do grupo familiar. Para frequentar o jardim de infância e a escola primária, teve que ir morar com os tios, cursou o ensino médio como interno e, para frequentar a universidade os pais lhe proporcionaram um apartamento e eles ficaram no interior por questões da empresa. Feito o diagnóstico – incluindo o Par Educativo – o jovem solicita que o psicopedagogo tenha uma entrevista com seus pais para que lhes explique que não deseja mais estudar e que prefere trabalhar na empresa com o pai. O jovem dizia não saber para que estudar tanto, porque precisava aprender em uma faculdade se o pai nada estudou e liderava uma empresa, disse “eu acredito que é fazendo que se aprende e não sentado em uma carteira escutando o que o outro diz”.Quando escutou a ordem e viu o material na mesa, o entrevistado disse: “prefiro desenhar com caneta”. Tira uma caneta do bolso interno do seu casaco e desenha rapidamente.

Quando pediram que dissesse o nome e a idade das pessoas desenhadas, disse: “O aluno tem 10 e o prof. 30, o aluno se chama aluno e o profº, prof.”.

Entrevistador: Que título você poderia dar ao desenho? Entrevistado: Uma sala de aula.Entrevistador: O que você poderia me contar o que está acontecendo aí?Entrevistado: Para a criança é difícil, porque não gosta, pensa em outra coisa ou dá um branco. O prof. tenta explicar a ela, mas não é muito claro e simpático. A criança tem que aprender, porque senão, não vai passar. Nada mais. Está bom?Análise: o tamanho total do desenho é pequeno, portanto, cabe pensar em um vínculo de aprendizagem negativo; ao que também se acrescenta um tamanho pequeno do aprendiz com relação ao tamanho do docente, pelo que também se poderia inferir um sentimento de desvalorização de quem aprende. Quanto à posição e distância dos personagens se pode assinalar que o docente está de costas para o aluno e que a distância entre amos é significativa. Também se deve notar que tanto no desenho como no relato não existe um objeto de aprendiza-gem e que o prof. e o aluno estão representados por figuras ou desenhos muito simples, sem nenhum acabamento, assim como quadro negro e a mesa. Por sua vez, o relato parecia reproduzir a mesma atitude que o entrevistado desenhou, ou seja, livrar-se de uma situação que já é bastante conflitiva (VISCA, 2009).

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FIGURA – PAR EDUCATIVO – JOVEM DE 22 ANOS

FONTE: Visca (2009, p. 42)

4.2 VÍNCULOS FAMILIARES – OS QUATRO MOMENTOS DE UM DIA

A técnica “Os quatro momentos de um dia” é uma adaptação de “O desenho em episódios”, embora a autoria deste seja desconhecida. Essa técnica centra-se em analisar como o entrevistado desenha e descreve o uso do tempo em um dia comum.

• Objetivo: investigar os vínculos ao longo de um dia.• Materiais: folhas com tamanho sulfite.• Procedimentos: o entrevistador dobra uma folha em quatro partes iguais

e solicita que o entrevistado faça o mesmo com outra folha; solicita-se que desenhe quatro momentos do seu dia, desde que acorda até a hora em que vai dormir; pede-se que relate o que está acontecendo no desenho; perguntam-se detalhes de cada uma das cenas, assim como também podem ser feitas perguntas referentes ao relato oferecido.

Considerando que o desenho é uma expressão do nosso mundo interno, ao solicitar ao entrevistado que escolha quatro momentos e estabeleça uma or-dem entre eles, há duas classes de operações cognitivo-afetivas: uma hierarqui-zação dos momentos privilegiados e uma relação em ordem temporal. Para isso, o entrevistado precisa escolher e definir quais momentos do seu dia serão regis-trados e, assim, há o conhecimento dos vínculos que o sujeito representa a partir do seu meio e como interage em seu contexto geográfico, afetivo e relacional. Os indicadores geralmente mais significativos são:

• Adequação da ordem: capacidade em adequar-se às exigências externas e to-lerância à frustração.

• Momento escolhido: podendo indicar tanto uma rotina, sem muita criativida-de, como uma escolha mais afetiva.

• Atividade realizada: indica os gostos do sujeito, aspirações, frustrações, im-posições externas, regras, buscas por identificação e potencial organizativo.

• Pessoas desenhadas: geralmente as pessoas escolhidas expõe com quem o en-trevistado se identifica.

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• Campo geográfico da cena: se desenha a casa (e em que parte, sala, quintal, co-zinha etc.) e se o entrevistado desenha também atividades (comendo, escovan-do os dentes etc.), isso nos diz sobre os vínculos e as flexibilidades presentes.

• Objetos do ambiente: indicam as referências no mundo interno do entrevis-tado, em termos subjetivos e, também uma realidade objetiva em relação ao ambiente físico.

• Detalhes do desenho: tipos de traços, proporções, posições, retoques, minucio-sidades, estereotipias, minuciosidades etc., são elementos que expressam tam-bém sobre os vínculos do sujeito e aspectos mais profundos sobre si mesmo.

• Sequência dos momentos: analisa-se tanto em termos de sequência como or-dem especial e ordem do relato. Aqui, também se revelam os níveis conscien-te, pré-consciente e inconsciente.

ESTUDO DE CASO

Uma jovem de 12 anos que possui uma acentuada diminuição intelectual, sua estrutura cognitiva corresponde ao início do nível operatório concreto – con-cluiu com severas dificuldades a escola primária – suas aprendizagens são totalmente automatizadas – e seus pais pretendem matriculá-la na escola se-cundária. Foi encaminhada pela instituição educativa para a avaliação de sua capacidade de aprendizagem, os pais expressam durante toda a consulta: a) que a menina aprende, que não sabem por que é necessário avaliá-la e; b) que não saberiam o que poderiam fazer com ela se ela não fosse para a escola. A família pertence à classe alta, ambos os pais são profissionais e se encon-tram ocupados todo o dia com suas atividades, saem muito cedo de casa para só voltar à noite. Nos fins de semana dormem muito, pois se sentem muito cansados. A jovem realiza o desenho muito lentamente e na seguinte ordem: quadrante superior esquerdo, quadrante superior direito, quadrante inferior esquerdo e quadrante inferior direito. Ao terminar, verbaliza “já fiz!”.

Entrevistador: conte-me o que acontece nos desenhos que fez.Entrevistada: aqui (quadrante superior esquerdo) está dormindo, gosta muito de dormir (escreve no quadrante “dormindo”). Aqui (quadrante superior di-reito) está comendo (escreve “comendo”). Aqui (quadrante inferior esquerdo) está brincando (escreve brincando). Aqui (quadrante inferior direito), está dor-mindo (escreve “dormindo”).Entrevistador: o que você pode me contar sobre o que está acontecendo no desenho? Entrevista: a menina se chama Natália e tem 11 anos (em seguida escreve no canto superior esquerdo “11 anos” e embaixo “Natália”, que não é seu nome.Entrevistador: o que mais você pode me contar sobre Natália? Entrevistada: Natália não tem muito o que fazer, não sabe o que fazer, dorme, brinca e come.

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TÓPICO 1 — DIFERENTES INSTRUMENTOS PARA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA

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Entrevistador: com quem come?Entrevistada: come sempre sozinha. Não gosta de comer sozinha, mas não tem com quem comer.Entrevistador: com quem brinca?Entrevistada: com um nenê amigo, não sei... com ninguém.

Análise: a jovem apresenta capacidade para adequar-se à ordem, evidenciado sua posição passiva às exigências externas, assim como também sua tolerância forçada à frustração. Por outro lado, os momentos escolhidos indicam uma es-colha automática – que reproduz a vida real da entrevistada – que é monótona, com absoluta falta de criatividade e uma hermética clausura: em dois momen-tos está dormindo e em outro almoça sozinha. Não deixa de ser interessante observar que assim como em dois dos quatro momentos está dormindo, três das quatro situações ocorrem no mesmo espaço geográfico, seu quarto (qua-drante superior esquerdo, inferior esquerdo e inferior direito). Cabe assinalar que as atividades diferentes de dormir são muito primitivas ou infantis: comer e brincar, as quais em termos de aprendizagem implicam um muito baixo ní-vel de exigências e aspirações. Não usa nenhum dos quadrantes para repre-sentar uma situação na qual esteja aprendendo, tampouco se observam objetos que poderiam representar um mundo interno rico, povoado de experiências que indiquem uma apreensão instrumental do seu meio (VISCA, 2009)

FIGURA – DESENHO QUATRO MOMENTOS DO DIA

FONTE: Visca (2009, p. 131)

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4.3 VÍNCULOS CONSIGO MESMO – FAZENDO O QUE MAIS GOSTO

Nessa técnica, a investigação centra-se nas esferas do inconsciente, pré-consciente e consciente, evidenciando o tipo de vínculo que o sujeito possui com ele mesmo em relação aos seus gostos, interesses, vontades, limitações internas e externas da aprendizagem. Desse modo, pode haver evidências também em relação às contradições do sujeito com relação ao que ele aprende e o que ele desejaria aprender, o que nem sempre é algo reconhecível e consciente para o sujeito. Assim, ao passo que, por um lado, abre-se um espaço para o psicopedagogo a partir do desenho, para a compreensão da forma como o sujeito relaciona seus vínculos, por outro lado, pode ser uma tomada de consciência do entrevistado.

• Objetivo: investigar o tipo de atividade de que mais gosta.• Material: folha do tamanho sulfite; lápis preto; borracha.• Procedimento: solicita-se ao entrevistado que se desenhe fazendo o que mais

gosta; pede-se que o entrevistado comente o que está ocorrendo no desenho; pede-se ao entrevistado onde está ocorrendo a cena do desenho; pede-se ao entrevistado que comente quando ocorre a cena; realizam-se perguntas com-plementares caso sejam necessárias.

Assim, observa-se alguns indicadores mais significativos. Durante a produ-ção gráfica, observa-se o nível de indecisão na escolha do tema, demonstrando, assim, se há contradições entre os desejos do sujeito e as proibições do meio ou se há inte-resses ainda não adequadamente discriminados. Também o ato de apagar com a mu-dança de tema, o que tanto pode dizer respeito à indecisão, como também um pro-cesso de descoberta e autoafirmação. O ato de apagar objetos sem mudar o tema que pode indicar uma busca por aperfeiçoamento. O contexto espacial e temporal onde o desenho foi imaginado também pode indicar as preferências do sujeito. Durante as verbalizações, observa-se a coerência do relato, em si, e em relação ao desenho.

ESTUDO DE CASO

O diagnóstico da menina estudada – cuja idade cronológica é de 12 anos – indica que ela possui um severo déficit intelectual e motriz. Do ponto de vista intelec-tual, tem um nível de pensamento pré-operatório intuitivo-articulado, e quanto à sua motricidade apresenta lateralidade cruzada (olho-mão), assim como tam-bém sincinesias e certas dispraxias. Pertence a um grupo familiar formado por um irmão de oito anos, uma irmã de 10 anos e seus pais. Vivem num pequeno apartamento no centro da cidade. Os pais consultam, pois, compreendem que a menina é superexigida na escola e desejam que isso não ocorra, contudo não sabem a que lugar deve ir. Eles se perguntam se há algum tipo de instituição ou grupo no qual poderia melhorar suas condições atuais. O pai diz que se pudesse saber o que é que ela realmente gosta de fazer, talvez pudesse pensar melhor em

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TÓPICO 1 — DIFERENTES INSTRUMENTOS PARA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA

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como ajudá-la. A mãe diz “quando perguntamos para ela, não nos diz ou não sabe nos dizer; não é por negativismo que não nos diz, pois temos uma relação muito boa (como efetivamente se pôde comprovar durante o diagnóstico.

Procedimento: a menina olha sorrindo para o entrevistador e como se não ti-vesse tempo para pensar, começa a desenhar rapidamente. Contrariamente ao que havia feito antes e ao que se faz depois em outras provas, não apa-ga. Primeiro desenha a televisão com duas pessoas dentro e logo desenha-se. Quando pinta com o lápis preto seu cabelo e a parte superior das pernas onde está sentada, o faz com força e determinação. Pouco depois coloca ao lado do desenho que a representa: “eu”.

Entrevistador: o que está acontecendo?Entrevistada: tem um programa de televisão que gosto muito. Gosto muito de “TV”. No programa tem dois meninos. Um menino e uma menina. A menina que viva na montanha com o avozinho e não ia para a escola. Em uma parte, correm pela montanha.Entrevistador: e você, o que está fazendo?Entrevistada: eu estou assistindo. Gosto da “TV”. Gosto muito porque aprendo.Entrevistador: aprende o quê?Entrevistada: Na escola não aprendo. É difícil o que ensinam e sempre tem que fazer as coisas no caderno.Entrevistador: e na TV?Entrevistada: na TV, não. Aprendo com a cabeça porque vejo coisas e aprendo a fazer essas coisas, correr, por exemplo.Entrevistador: onde você assiste à TV?Entrevistada: na casa da minha avó. Eu gosto de ir à casa da minha avó por-que tem TV e porque ela é boa, fala comigo. Primeiro eu a ajudo a fazer coisas, depois assisto à TV.Entrevistador: que coisas você a ajuda a fazer?Entrevistada: rego o jardim, troco a água das galinhas e dou comida para elas, faço o que ela manda.Entrevistador: quando você assiste à TV?Entrevistada: sexta-feira, sábado e domingo.Entrevistador: como? Você fica três dias na frente da TV?Entrevistada: não! Vou na casa da minha avó esses dias. Sempre. E a ajuda e assisto TV. Com ela (a avó) aprendo porque me diz “ponha na lata um punha-do de milho para cada galinha”. Depois me pergunta “quantos punhados você colocou?”, “quantas galinhas tenho?” e assim com tudo.

Análise: durante o processo de produção da prova – desenho e comentários – a entrevistada evidencia clara determinação pelo que mais gosta de fazer: assis-tir à televisão na casa da avó, onde se sente à vontade e bem acolhida, pois lá se sente aceita de acordo com suas reais possibilidades. Durante o relato se pode observar uma coerência adequada e a aparente contradição entre o desenho

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

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(assistir à televisão sentada) e o relato (realizar diferente pequenas tarefas) na realidade não se apresenta como tal, pois a partir do desenho é que a menina pode expressar seus gostos, o que, como e onde gosta e pode aprender. Tanto a cena da tela – meninos na montanha – como o conteúdo de seus comentários evidenciam seu desejo de aprender tarefas simples e domésticas, com as quais estabeleceu um bom vínculo. Evidentemente possui um adequado vínculo consigo mesma, e até se poderia dizer que a pintura de sua cabeça e das suas pernas de onde estava sentada, talvez estejam representando respectivamente suas dificuldades cognitivas e motoras; das quais tem uma certa representação não totalmente consciente que deseja melhorar (VISCA, 2009).

FIGURA – DESENHO O QUE MAIS GOSTO DE FAZER

FONTE: Visca (2009, p. 191)

4.4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS PROVAS PROJETIVAS

Esses modelos aqui apresentados estão enquadrados no Paradigma Con-vergente que integra contribuições da psicanálise, da teoria piagetiana e da psi-cologia social. O Paradigma Convergente tem a aprendizagem como objeto de estudo e se caracteriza como um processo de aparição e estabilidade de determi-nados comportamentos que buscam integrar-se psicologicamente, tendo como elos as dimensões cognitivas, afetivas e sociais. Desse modo, toda aprendizagem é uma conduta, embora a recíproca não seja verdadeira. Assim, aqui encontra-se o limiar entre a psicologia e a psicopedagogia, em que a última está focada espe-cificamente na aprendizagem, embora, é claro, seja necessário que haja integração entre as partes para que se forme um todo coeso.

Dessa forma, Jorge Visca busca integrar os conhecimentos de diferentes frentes de conhecimento e elabora essas técnicas projetivas com ênfase na apren-dizagem, convergindo psicanálise e Piaget, no sentido em que buscou compreen-der a projeção com foco nos vínculos relacionados com a aprendizagem.

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TÓPICO 1 — DIFERENTES INSTRUMENTOS PARA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA

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5 DIAGNÓSTICO OPERATÓRIO

A partir da teoria de Piaget, considera-se que a aprendizagem se dá a partir da interação entre o sujeito e o meio, de forma que só é possível aprender dentro dos termos possibilitados a partir do seu contexto específico. Dito de outro modo, não há como o sujeito aprender algo que esteja fora do seu nível de competência cognitiva.

Por exemplo, um aluno de série em nível pré-operatório que não tenha atingido a conservação de conjuntos discretos não terá condições cognitivas para compreender de imediato exercícios de numeração no trabalho de sala de aula. Da mesma forma, o aluno de 2ª série que não faz intersecção de classe, ou seja, não trabalha o multiplicativo, não terá condições de solucionar problemas de multiplicação (WEISS, 2007, p. 105).

Essas observações sobre o funcionamento cognitivo do sujeito não estão restritas às provas de diagnóstico operatório, mas diz respeito a toda a construção do diagnóstico e pode contar com diferentes tipos de instrumento, como temos visto até aqui. Desse modo, é necessário que a análise da estrutura do pensamen-to do sujeito esteja ancorada numa visão genética global e relacionar isso com o modelo de aprendizagem disposto, considerando também aspectos figurativos e operativo, defasagens e oscilações. Além disso, também se deve avaliar as exi-gências que a escola faz do sujeito e suas possibilidades em nível de desenvolvi-mento.

Isso posto, as provas operatórias têm como objetivo avaliar o grau de aquisição de algumas noções do desenvolvimento cognitivo, observando o ní-vel de pensamento alcançado pela criança. Para tal, em uma caixa (recomendada para crianças menores de seis anos), devem conter objetos diversificados para que permitam agrupar por forma, uso, material, cor, tamanho, encaixe.

Algumas sugestões de objetos para compor a caixa são: panelinhas, pra-tos, copos, xícaras, talheres; mobiliário de casa de boneca; grutas, legumes, flores; animais de diferentes espécies; bonequinhos de diferentes tipos; carrinhos, blocos de madeira; pedaços de tecido. Podem ser colocados outros objetos, a critério do entrevistador e de acordo com a faixa etária do sujeito.

Além dessa caixa, uma segunda caixa deve ser organizada, dessa vez com enfoque no exame escolar, contendo nela fichas de diferentes formas, cores, ta-manhos, bastonetes ou palitos; duas espécies de flores e grutas; copinhos transpa-rentes de diferentes alturas e diâmetros; massa plástica de duas cores diferentes; fios de lã; balança; casinhas de madeira, régua, lápis.

Para as provas operatórias, o psicopedagogo deve registrar quais os obje-tos escolhidos, qual o critério utilizado, quais os agrupamentos feitos, quais são abandonados. Depois disso, também pode propor uma nova configuração dos objetos. Esses processos auxiliam que o terapeuta conheça o paciente, em termos de quais juízos e argumentos que a criança utiliza.

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

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Para a aplicação, alguns autores defendem uma ordem de apresentação dos objetos, sugerindo primeiro aqueles na esfera da conservação (pequenos con-juntos discretos, quantidade de líquido e matéria, comprimento, superfície, peso, volume), depois classificação e, por último, seriação. Para a avaliação, divide-se o grau do paciente em três níveis (WEISS, 2007, p. 111):

Nível 1: Ausência total da noção, isto é, não atingiu o nível operatório nes-se domínio. Várias condutas diferentes podem expressar essa ausência.Nível 2 ou Intermediário: As respostas ou condutas expressam vacila-ção e instabilidade ou são incompletas. Por exemplo: dão uma primei-ra resposta conservante e no momento seguinte outra não conservan-te, ou com o argumento oposto ao que falou em primeiro lugar.Nível 3: As respostas demonstram a aquisição da noção, sem vacilação.

Como tem sido característico dos testes psicopedagógicos, o objetivo não é o resultado em sim, mas sim avaliar o processo mental usado pela paciente para compor suas respostas e cenário. Por isso, todas as respostas devem ser avaliadas. Pode acontecer, por exemplo, que o paciente vá bem em todas, mas não tenha êxito em uma prova específica. Será que se trata de uma questão emocional? O indivíduo não deve ser analisado fora do seu contexto, o psicopedagogo trabalha na busca pela integração entre as partes para que a aprendizagem se consolide.

Devemos enfatizar, ainda, que as provas de diagnóstico operatória também não devem ser consideradas como uma verdade absoluta sobre o sujeito, pois a aprendizagem é sempre resultado da interação entre indivíduo e meio, sendo assim, a resposta dada pelo sujeito é sempre a melhor resposta possível para aquele momento e considerando aquele contexto.

6 TESTES PSICOMÉTRICOS

A Psicometria ou medida em psicologia refere-se ao conjunto de técnicas que permite a quantificação dos fenômenos psicológicos, medida que consiste na atribuição de magnitudes a um objeto ou classe de objetos, através de valores nu-méricos (ERTHAL, 2009), o que implica sempre um resultado numérico e apresen-ta unidades relativamente constantes. Além disso, é necessária a utilização de um ponto de referência como marco inicial da medida. Na psicologia, a medida é relati-va por não dispor de um ponto zero absoluto, isso porque não existe um ponto zero de inteligência, por exemplo, como existe um ponto zero para a variável distância.

O que se mede na psicologia é uma característica que cada indivíduo pos-sui em diferentes níveis, o que torna o processo de mensuração mais complexo do que uma medição nas ciências exatas. Por isso, na utilização dos testes psicomé-tricos é necessário que o terapeuta tenha certos cuidados de modo a minimizar o erro da medida, como afirma Weiss (2015):

• A testagem deve ser realizada quando já tiver uma boa relação com o paciente.• Deve-se conhecer a forma de aplicação dos testes e as possíveis respostas, tornando

possível a realização de perguntas de aprofundamento, se assim for necessário.

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TÓPICO 1 — DIFERENTES INSTRUMENTOS PARA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA

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• É necessário controlar a própria ansiedade para não ter atitudes inadequadas de condescendência, exigência exagerada e impaciência.

• Todas as atitudes e procedimentos do sujeito devem ser registrados.

Antes de escolher um teste, o aplicador deve analisar se ele oferece dados precisos, válidos e interpretáveis. Sendo que o desemprenho dos testes é em gran-de parte devido a confiabilidade e validade dos instrumentos. A confiabilidade refere-se, à estabilidade, consistência interna e equivalência de uma medida. A validade refere-se ao fato de um instrumento medir exatamente o que se propõe a medir. A Figura 3 ilustra a relação entre confiabilidade e validade (SOUZA; ALEXANDRE; GUIRARDELLO, 2017).

FIGURA 3 – RELAÇÃO ENTRE CONFIABILIDADE E VALIDADE

FONTE: Adaptada de Souza; Alexandre e Guirardello (2017)

No primeiro alvo o instrumento é confiável, porém, nem todos os pontos estão no centro do alvo, não sendo con siderados válidos. O segundo alvo é considerado válido e não confiável, uma vez que os pontos se espalharam por todo o alvo. O terceiro alvo não é confiável e nem válido, sendo que os pontos se concentraram na parte superior do alvo. O último e quarto alvo é válido e confiável, sendo que todos os pontos se encontram no centro do alvo (SOUZA; ALEXANDRE; GUIRARDELLO, 2017).

6.1 TESTES DE DESEMPENHO E INTELIGÊNCIA

O teste WISC trata-se de um teste psicométrico para avaliação da inteligência geral em crianças e adolescentes, além de uma série de habilidades específicas. O teste é apresentado sob a forma de subtestes e cada subteste pretende avaliar um tipo de função e se estrutura em ordem crescente de dificuldade, o que facilita o posicio-namento das crianças examinadas na faixa entre cinco e 15 anos. O WISC pode ser utilizado em diferentes situações, dentre elas, avaliação psicoeducacional, diagnós-tico de crianças excepcionais em idade escolar, avaliação clínica, neuropsicológica e pesquisa. Além disso, pode identificar as forças e fraquezas do sujeito (WEISS, 2015).

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

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O teste CIA é a adaptação brasileira da Escala de Inteligência para Adul-tos. Mantém uma estrutura de subtestes semelhante à do teste WISC, com a mes-ma divisão: conjunto verbal (CV) – informação, compreensão, raciocínio aritmé-tico e semelhança; e conjunto não verbal (WEISS, 2015).

O Teste das Matrizes Progressivas de Raven é conhecido no Brasil como Es-cala Geral e abrange todas as faixas do desenvolvimento intelectual, sendo utilizado para crianças pequenas e com deficiência mental e em pessoas idosas. O teste envolve um desenho ou matriz com uma parte faltando, abaixo do qual são apresentadas seis alternativas, uma das quais completa a matriz corretamente (TONI; MELO, 2014).

6.2 TESTE GESTÁLTICO VISOMOTOR DE BENDER

O instrumento é composto por nove cartões. As cartelas são compostas por figuras diferenciadas com linhas contínuas ou pontos, curvas sinuosas ou ân-gulos. Analisa-se a maneira de construir o desenho e todas as condutas, como gi-rar o cartão, contar os pontos, girar a folha de papel, não fazer nada, entre outras.

O teste é usado quando surgem dúvidas sobre questões psicomotoras e espaciais. Quando se percebe nas sessões e análises de material, desenhos trun-cados, dificuldades no traçado, linhas flutuantes no papel, caligrafias ilegíveis e ainda histórias de vida escolar com indícios de problemática (WEISS, 2015).

7 SÍNTESE DE INSTRUMENTOS PARA AVALIAÇÃO DE APRENDIZAGEM

Exploramos até aqui algumas possibilidades da área que o psicopedagogo pode utilizar ou precisar ter o mínimo de conhecimento para ter uma base teórica para uma atuação mais consistente. Desse modo, considerando o caráter essencial-mente interdisciplinar da prática psicopedagógica, os Quadros 3 a 7 apresentam uma síntese das possibilidades de aplicabilidade de instrumentos na avaliação de aprendizagem nas áreas de psicopedagogia, psicologia e fonoaudiologia.

QUADRO 3 – ACUIDADE AUDITIVA

Testes aprovados pelo CFP e uso

EXCLUSIVO de Psicólogos

Testes psicológicos não aprovados ou

em estudo

Instrumentos não res-tritos (psicopedagogos,

psicólogos, outros)

Textos EXCLUSIVOS

da Fonoaudiologia

Audiometria Teste da Orelhinha: triagem auditiva neonatal

FONTE: Castanho (2013, p. 199)

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TÓPICO 1 — DIFERENTES INSTRUMENTOS PARA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA

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QUADRO 4 – ATENÇÃO, ATENÇÃO CONCENTRADA E DÉFICIT DE ATENÇÃO

FONTE: Castanho (2013, p. 199)

FONTE: Castanho (2013, p. 200)

QUADRO 6 – DESEMPENHO ESCOLAR

FONTE: Castanho (2013, p. 200)

QUADRO 5 – ATIVIDADE PERCEPTIVA/MEMÓRIA

Testes aprovados pelo CFP e uso EXCLUSIVO de

Psicólogos

Testes psicológicos não

aprovados ou em estudo

Instrumentos não restritos

(psicopedagogos, psicólogos, outros)

Textos EXCLUSIVOS da Fonoaudiologia

TDAH: Escala de transtorno de déficit de atenção/hipera-tividade (Casa do Psicólogo)TEACP-FF: Teste de Atenção Concentrada (Casa do Psicólogo)Teste de Trilhas: atenção sus-tentada e dividida (Casa do Psicóloga)

Testes aprovados pelo CFP e uso EXCLUSIVO de

Psicólogos

Testes psicológicos não

aprovados ou em estudo

Instrumentos não restritos

(psicopedagogos, psicólogos, outros)

Textos EXCLUSIVOS da Fonoaudiologia

Figuras Complexas de Rey: Testes de Cópia e de repro-dução de memória de figuras geométricas complexas.

Testes aprovados pelo CFP e uso

EXCLUSIVO de Psicólogos

Testes psicológicos não

aprovados ou em estudo

Instrumentos não restritos (psicopedagogos,

psicólogos, outros)

Textos EXCLUSIVOS da Fonoaudiologia

TDE – Teste de Desempenho Escolar (Casa do Psicólogo/Click Books)EAVAP-EF Escala de Avalia-ção das Estratégias de Apren-dizagem para o Ensino Fun-damental (Casa do Psicólogo)EACI-P: Escala de Avaliação do Comportamento Infantil para o Professor (Vetor Editora)

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

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QUADRO 7 – DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM, VÍNCULO COM O APRENDER

FONTE: Castanho (2013, p. 201)

Testes aprovados pelo CFP de uso EXCLUSIVO de

psicólogos

Testes psicológicos

não aprovados ou em estudo

Instrumentos não restritos

(Psicopedagogos, Psicólogos, outros)

Testes EXCLUSIVOS

da Fonoaudiologia

SDT – Teste do Desenho de Sil-ver – Cognição e Emoção

Coleção papel de Carta (Vetor Editora)

Coleção: Os contos de fadas e a Psicopedagogia (Vetor Editora)EOCA – Entrevista Ope-rativa Centrada na Apren-dizagem (Jorge Visca)Sessão Lúdica Centrada na Aprendizagem (Maria Lúcia Weiss)Hora do Jogo (Sara Paín)JAP – Jogo de Areia Psicopedagógico (Teresa Andion)Par Educativo (Jorge Vis-ca; Oris; Ocampo)

Essas sínteses, embora didáticas, servem para a compreensão das possi-bilidades de atuação não apenas a partir do próprio campo, mas a partir tam-bém das áreas com as quais o profissional psicopedagogo está constantemente em contato com sua prática. Perceber o estudante de forma integral é também compreender as partes que o compõe e assim auxiliar e cooperar de forma in-terdisciplinar para as ações, intervenções e o desenvolvimento da melhor forma possível para o paciente.

Assim como no poema, que diz “a fim de percorrer uma lesma desde o seu nascer até sua extinção, terei que aprender como é que ela recebe as manhãs, como é que ela anoitece”, o psicopedagogo também precisa aprender quais as claridades e quais as escuridões do sujeito. Os diferentes instrumentos indicam situações, lacunas, colocam como figura pontos específicos da aprendizagem do sujeito, mas isso não deve simplificar ou reduzir a existência do sujeito, pelo con-trário, são artifícios da profissão para compreender o estilo, a personalidade, as preferências e dificuldades do aprendente.

Desse modo, após explorarmos alguns testes estruturados, a seguir, abor-daremos a temática do lúdico e da diversidade, o que requer como postura básica a ética e o respeito pela alteridade dos sujeitos.

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Neste tópico, você aprendeu que:

RESUMO DO TÓPICO 1

• As intervenções psicopedagógicas abrangem as esferas de linguagem, expres-são e aspectos relacionais e de socialização.

• A sigla EOCA corresponde à Entrevista Operativa Centrada na Aprendiza-gem e foi desenvolvida pelo cientista da educação e psicólogo Jorge Visca (1935-2000).

• A EOCA, para a Epistemologia Convergente, é o primeiro instrumento apli-cado com o entrevistado e busca evidenciar e enfatizar o lugar do saber sin-gular, valorizando o sujeito cognoscente.

• A EOCA busca explorar a espontaneidade e a criação do sujeito antes de uma aplicação mais sistemática e “objetiva” de uma avaliação ou intervenção.

• Lawrence K. Frank, em 1939, foi quem designou o termo “técnicas projetivas” para referir-se à evocação da expressão do mundo pessoal e dos processos de personalidade do sujeito.

• As técnicas projetivas são um recurso que busca integrar e investigar a dimen-são afetiva do processo de aprendizagem em relação aos vínculos que o su-jeito estabelece com a aprendizagem e com os ambientes que as circunferem.

• Jorge Visca organizou uma série de provas projetivas voltadas especificamen-te para o caso das aprendizagens.

• As provas operatórias têm como objetivo avaliar o grau de aquisição de algu-mas noções do desenvolvimento cognitivo, observando o nível de pensamen-to alcançado pela criança.

• A Psicometria ou medida em psicologia refere-se ao conjunto de técnicas que permite a quantificação dos fenômenos psicológicos.

• O que se mede na psicologia é uma característica que cada indivíduo possui em diferentes níveis, o que torna o processo de mensuração mais complexo do que uma medição nas ciências exatas.

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1 A Entrevista Operativa Centrada na Aprendizagem (EOCA) foi desenvolvi-da por Jorge Visca e oferece alguma inflexão na abordagem e na entrevista com a criança. Sobre isso, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A EOCA enfatiza os processos de construção do sujeito, não simples-mente os resultados.

b) ( ) A EOCA tem como base fundamental a Abordagem Centrada no Clien-te, de Carl Rogers.

c) ( ) Geralmente, a EOCA é indicada como último instrumento avaliativo, pois oferece dados para o fechamento do diagnóstico.

d) ( ) As análises pós-produção enfocam muito mais na dinâmica do que na temática do sujeito.

2 As técnicas projetivas são testes abstratos e subjetivos que captam parte dos vínculos do sujeito em relação a sua aprendizagem. Descreva o procedi-mento para a aplicação da técnica “Par Educativo”.

3 O processo de mensuração na psicologia é extremamente complexo. Consi-derando isso, na utilização dos testes psicométricos, é necessário que:

a) ( ) O terapeuta aplique o teste sem conhecer o paciente.b) ( ) O terapeuta considere apenas as respostas do teste na avaliação do pa-

ciente.c) ( ) Não é necessário conhecer a forma de aplicação do teste.d) ( ) O terapeuta necessita controlar a ansiedade para não ter atitudes inade-

quadas.

4 As avaliações e intervenções em Psicopedagogia podem ter diferentes caracte-rísticas, estilos e objetivos, mas trabalham sobre algumas áreas específicas. Para Castanho, essas áreas de avaliação da psicopedagogiam dizem respeito a:

a) ( ) Na linguagem oral, leitura e escrita, avalia-se o nível operatório da com-preensão da realidade.

b) ( ) Os aspectos relacionais e de sociabilidade dizem respeito aos aspectos perceptivos linguísticos.

c) ( ) Os grafismos são avaliados na área da linguagem escrita.d) ( ) A leitura é avaliada em termos de hipóteses de escrita e ditados.

5 Jorge Visca é um psicólogo e psicopedagogo que propõe um esquema de intervenção psicopedagógica que difere do modelo medico habitual. Esse modelo está dentro dos pressupostos da Epistemologia Convergente. Des-creva esse esquema.

AUTOATIVIDADE

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UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

O brincar é o caminho para a alteridade, para o diverso e para o criativo, pois, a partir dele, conseguimos deslocar o tempo e o espaço, de forma reiterativa e abstrata. É isso que as crianças fazem com excelência, elas imaginam um avião tropicar num passarinho triste, ou seja, rompem barreiras de um pensamento obje-tivo e comunicam os estados delas a partir dessas representações singulares.

No aeroporto, o menino perguntou:— E se o avião tropicar num passarinho?O pai ficou torto e não respondeu.O menino perguntou de novo:— E se o avião tropicar num passarinho triste?A mãe teve ternuras e pensou:Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso?Ao sair do sufoco, o pai refletiu:Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.E ficou sendo (BARROS, 2013, p. 469).

Nisto, há imensas belezas, por isso, a liberdade e a poesia a gente apren-de com as crianças, pois, brincando com elas, descobriremos os seus mundos de forma mais solta e espontânea. Para o caso do psicopedagogo, a partir da brin-cadeira, nós aprendemos como os sujeitos aprendem, de que forma se sentem livres ou quais as preocupações deles. O que aconteceria se um avião tropicasse num passarinho triste? Como se sabe que o passarinho está triste? O que houve com ele? O brincar, portanto, é, por si mesmo, terapêutico, catártico e potente, podendo, a partir da brincadeira, também, ser acessados conteúdos que são as-sustadores, frustrantes ou conflitantes. A partir dela, é possível que os sujeitos, as crianças ou os adultos, sintam-se, verdadeiramente, livres e inteiros, frente a frente com as próprias criações.

Nesse sentido, quando pensamos no brincar como possibilidade de aten-dimento, avaliação e diagnóstico, estamos lidando com a brincadeira do profis-sional e com a do paciente. Portanto, não é apenas o paciente que brinca, mas, também, o psicopedagogo. Assim, se a criança não brinca, parte do trabalho do profissional é acompanhá-lo nas travessias da brincadeira e da criatividade, en-fim, da união entre as partes, a partir do lúdico. Por outro lado, o psicopedagogo deve rever a proposta lúdica, caso ele mesmo não se adeque à brincadeira.

TÓPICO 2 —

ALTERIDADE COMO NOVOS COLÍRIOS: O

LÚDICO E A DIVERSIDADE

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

Neste tópico, exploraremos, apenas um pouco, as possibilidades do lúdico na clínica psicopedagógica. Para tal, consideramos que a brincadeira é universal e própria da saúde. O conteúdo da brincadeira pode divergir, dependendo de inú-meros fatores, como renda, classe, etnia, geografia, contexto, tempo histórico, den-tre outros, mas a ação de brincar é universal, independentemente da cultura. Além disso, a brincadeira, pelo fato de ser, essencialmente, criativa, também, é diversa, portanto, abre portas para a alteridade. Desse modo, em termos de aprendizagem, consideramos que a brincadeira contribui para o crescimento e para a saúde dos sujeitos, pois estimula a representar as relações deles em termos, a se aproximarem ou a se distanciarem de conflitos, e a exercitarem a própria criatividade.

2 O LÚDICO NAS INTERVENÇÕES

Quando trabalhamos com criança e aprendizagem, é indispensável que existam materiais, espaço e tempo para que a criança possa brincar e utilizar outras formas de expressar os próprios conteúdos não apenas na área da psicopedagogia, mas, de uma forma geral, em todas as profissões que lidam com a infância, como o “professor que possibilita situações lúdicas em sala de aula ou o médico que cria jogos com objetos no consultório”. Pensamos no lúdico, aqui, como uma palavra que abarca o “jogo”, a “brincadeira”, a “representação”, a “dramatização”.

Na psicanálise, diferentes autores ressaltaram a importância do brincar do professor para a criação de identidade, como Melanie Klein e Anna Freud, que se debruçaram sobre os aspectos inconscientes do jogo, ou Winnicott, que considera que, apenas, a partir da brincadeira, o sujeito – independentemente da faixa etária – consegue integrar a personalidade dele com criatividade. Também, Jean Piaget, em outra vertente, considera que a construção do pensamento pode ser estimulada com o campo social e a elaboração de jogos para a análise das operações possíveis. A psicopedagogia tem contribuído para a construção dos arcabouços teórico e prá-tico da importância do lúdico nas aprendizagens. Dentre os autores da Psicopeda-gogia, Sara Paín desenvolveu “A Hora do Jogo”; Alícia Fernandez, o DIFAJ.

A partir da brincadeira, a criança constrói um espaço de experimentação, de fusão entre os mundos interno e externo. Ainda, pode executar fantasias, repro-duzir o espaço social ou questioná-lo. Por isso mesmo, a brincadeira é considerada um processo de autoria do sujeito. Nesses processos de transição e de integração, entre criança-meio, a aprendizagem se desenvolve. Isso posto, a importância da brincadeira nos processos diagnósticos é evidenciada como mais uma maneira de compreender o funcionamento do sujeito em diferentes esferas da vida, cognitiva, afetiva, social, dentre outras, no Modelo de Aprendizagem dela.

Eu sonhava escrever um livro com a mesma inocência com que as crianças fabricam seus navios de papel.Eu queria pegar com as mãos no corpo da manhã.Porque eu achava que a visão fosse um ato poético do ver.Tu não gostaste do caminho comum das palavras.Antes melhor eu gostasse dos absurdos.E se eu fosse um caracol, uma árvore, uma pedra?

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TÓPICO 2 — ALTERIDADE COMO NOVOS COLÍRIOS: O LÚDICO E A DIVERSIDADE

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E seu eu fosse?Eu não queria ocupar o meu tempo usando palavras bichadas de costumes.Eu queria mesmo desver o mundo. Tipo assim: eu vi um urubu dejetar nas vestes da manhã.Isso não seria de expulsar o tédio?E como eu poderia saber que o sonho do silêncio era ser pedra!As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças (BARROS, 2013, p. 15-16).

Ao brincar de forma livre e sem julgamentos, ao representar papeis e explorar fantasias e novas conexões, as crianças desveem o mundo a partir da criatividade única delas, porque o tempo da criança é, essencialmente, kairótico, ou seja, não é um tempo que se rege pelo tempo do relógio, pelo tempo comercial e capitalizado, mas um tempo único e singular, que surge a partir do momento oportuno. Isso posto, ao brincar, a criança coloca o que surge, naquele momento, no mundo interior dela. A brincadeira pode ser o momento oportuno para a criação e para a expressão que a palavra não alcançaria. Através da brincadeira, da fantasia do tempo presente, é possível qualquer coisa, como pegar, com as mãos, o corpo da manhã; ser um caracol, uma árvore ou uma pedra. Nesse sentido, o ofício da brincadeira é, justamente, o de desver o mundo, o de revelar o mundo a partir de outros termos.

Na nossa vida, estamos sempre lutando contra o tempo, tentando distribuí-lo entre as nossas diversas atividades diárias. A sensação de estar perdendo tempo com algu-ma coisa, seja no trabalho ou em um relacionamento, mostra a nossa preocupação, a qual escorre e nos deixa insatisfeitos. É o tempo que utilizamos para atender às expectativas externas e, mesmo, que queiramos otimizar, o que não garante a nossa felicidade, porque, para nos sentirmos felizes, é preciso mais do que usar o tempo com eficiência.

Kairós está relacionado à qualidade do tempo vivido, um tempo divino, presente nos mo-mentos especiais e inesquecíveis, que não se perdem no tempo do calendário. Ele flui, vai e retorna, marcando os momentos emocionantes. Refere-se a um instante, a uma ocasião ou a um momento, que deixa uma impressão forte e única por toda a vida. Por isso, Kairós se refere a uma experiência atemporal, a partir da qual percebemos o momento oportuno em relação à determinada ação.

Quantos momentos Kairós deixamos de viver, por estarmos preocupados com o tempo Kronos: o primeiro sorriso de um filho, uma mão estendida no momento oportuno, o abraço confortante no momento de tristeza, um carinho que arranca a tristeza do coração em um momento de infelicidade. São muitos momentos Kairós que, apesar de breves, fazem a diferença. Quantos momentos Kairós são lembrados depois que alguém se foi, e, independentemente do tempo Kronos que tenhamos vivido com essa pessoa, são os momentos Kairós que deixam as lembranças inesquecíveis.

FONTE: <https://bit.ly/3mdc6Hs>. Acesso em: 29 ago. 2021.

NOTA

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

FIGURA – KAIRÓS – DEUS GREGO

FONTE: <https://bit.ly/3vKLNvk>. Acesso em: 29 ago. 2021.

O uso de brincadeiras e de jogos, na clínica psicopedagógica, depende, também, das condições pessoais do sujeito, do terapeuta e do consultório. O tera-peuta, ainda, precisa considerar a própria capacidade para brincar, jogar, ou seja, explorar a própria ludicidade. Para isso, importa o máximo respeito à ludicidade do outro em relação à forma dele, à organização do tempo, às escolhas e às defi-nições do que gosta e do que não gosta.

Crianças imitam, sem crítica, personagens, conceitos, ações vistas em filmes e na televisão, vão alterando a realidade, subordinando-a aos seus próprios desejos e necessidades. Conseguem, desse modo, revi-ver momentos que consideraram bons, ou, mesmo, ruins; antecipar os que desejam, ou, mesmo, aqueles momentos que jamais terão a chance de vivenciar. O terapeuta irá fazendo a leitura e a escuta do que está acontecendo naquele momento, pois o sistema simbólico da criança tem a ver com a história de vida dela, onde aconteceu a construção de sua dificuldade de aprendizagem escolar. O brincar envolve o pre-sente que a criança está vivendo, as pressões que sofreu no passado, e, também, o futuro (WEISS, 2015, p. 72, grifos no original).

Nesse momento de ludicidade, a criança consegue expressar situações e/ou conflitos que, verbalmente, talvez, não conseguisse, ou, mesmo, não soubes-se, de forma clara. Além das brincadeiras, os jogos, também, são, vastamente, utilizados para diferentes objetivos e idades. Se a essência da brincadeira é não ter regras, ser espontânea, os jogos são caracterizados por regras, previamente, estabelecidas. Desse modo, podem ser ótimos instrumentos para o exercício das funções cognitivas e afetivas, sendo que alguns desempenham o papel de repre-sentação do social.

Para o uso na clínica psicopedagógica, além de precisar condizer o tempo e a idade, o terapeuta precisa estar atento aos jogos atuais, procurando compre-ender as “gírias” e os vocabulários utilizados nos desenhos, nos filmes e nos jo-

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gos eletrônicos. Os jogos selecionados precisam desafiar o aprendente de alguma forma, conseguindo atingir o objetivo do jogo. De todo modo, é preciso que o paciente conheça os jogos de maneira operatória, não basta, apenas, memorizá-lo. Esse espaço, no consultório, deve ser proveitoso para o sujeito, de forma que, ga-nhando ou perdendo, ele, ainda, tenha interesse e prazer por continuar ou repetir o jogo. Alguns contributos, para a construção e o desenvolvimento das habilida-des do paciente em relação às aprendizagens dele, são:

• mais concentração de atenção e ao uso da memória, guardando as cartas e as jogadas acontecidas;

• exercício da construção do espaço bidimensional, desenvolvimento das relações espaciais para calcular o melhor caminho a seguir;

• realização de operações, como seriação, classificação, antecipação, conservação, compensação etc. nas avaliações de caminhos, jogadas e outras questões surgidas;

• eleição da melhor jogada. O melhor caminho, em função da meta do jogador naquele momento, selecionando o melhor a partir de cami-nhos equivalentes, exige o raciocínio lógico-matemático;

• a antecipação dos movimentos do adversário para fazer o planeja-mento da própria jogada, o que auxilia na preparação e no desenvol-vimento do pensamento hipotético-dedutivo;

• a coordenação psicomotora para o bom domínio do movimento ao tocar a peça; não movimentar a peça além do permitido na regra, apenas, o indispensável naquela jogada (WEISS, 2015, p. 78).

O fato de o jogo ser composto por regras contribui para o uso na clínica, no sentido de estimular, no paciente, os hábitos de planejamento, de execução e de avaliação. O terapeuta intervém mais do que nas brincadeiras livres, pois é preciso que se jogue de acordo com as regras, então, pode ser dialogada, com o sujeito, a forma das jogadas dele, lançando mais consciência para as estratégias para chegar ao resultado e coordenar as situações. “O Erro será, sempre, uma fonte de informa-ções. O que fez? Como fez? O que tentou fazer?” (WEISS, 2015, p. 76).

Para o uso, predominantemente, da lógica, os jogos de tabuleiro podem ser utilizados, e há uma vasta quantidade de opções para tal. O xadrez pode ser aprendido nas sessões, o paciente pode ler as instruções com o terapeuta e reali-zar as experimentações, além de se poder jogar online. O jogo de damas costuma ser mais comum no grupo infantil-juvenil, e há as regras que precisam de estra-tégia e de movimentação. Além disso, o tabuleiro e as peças podem fazer parte desse momento de atendimento. Seguem outras opções de jogos que podem ser utilizados, dependendo do objetivo da sessão:

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

FIGURA 4 – BATALHA NAVAL E CARCASSONE

FONTE: <https://bit.ly/2XKRj4u>; <https://bit.ly/3GzAYBs>. Acesso em: 29 ago. 2021.

FIGURA 5 – UNO E DETETIVE

Batalha Naval e Carcassone são jogos de tabuleiro. Enquanto o primeiro, Batalha Naval, desafia os conceitos e as coordenadas cartesianas, tendo um grupo vencedor a partir de estratégias, o segundo, Carcassone, é, essencialmente, colabo-rativo, de forma que a conquista dos territórios, sempre, pode ser compartilhada. De todo modo, mesmo com objetivos diferentes, ambos podem servir para o tra-balho em termos de colaboração, mais do que competição.

FONTE: <https://bit.ly/3Cit0dn>; <https://bit.ly/313XhPo>. Acesso em: 29 ago. 2021.

O uso de jogos de cartas, para o atendimento, pode estimular a concen-tração, a estratégia, o pensamento lógico, e auxiliar a compreender as possíveis ações dos oponentes, de forma a reorganizar o próprio jogo. Além disso, UNO contribui para a interação e a percepção das cores, e Detetive auxilia no desenvol-vimento de um pensamento lógico.

Os jogos eletrônicos, também, podem ser utilizados. Nesse ramo, há uma infinidade de opções, de caráter, essencialmente, pedagógico, ou de usos mais gerais e criativos. Além disso, o uso dos games pode se tornar presente, como

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o Minecraft, criado em 2009, com um forte apelo criativo, incluindo estratégico, para a construção de prédios por meio de blocos, podendo ser utilizado nas inter-venções, se for do gosto do paciente.

É possível, ao terapeuta, explorar o conteúdo dessas histórias moder-nas que aparecem nos jogos e em desenhos de televisão, buscando as-pectos com os quais o paciente se identifique ou aqueles que rejeita. Conversar sobre os aspectos da identificação: do que mais gosta? Por quê? Com que se parece? Como descobriu isso? Quando você perce-beu isso? Seus amigos também gostam? Ou não gostam? Com tal per-sonagem raciocina? Como ele planejou uma ação? Deu certo o salva-mento? O que você faria no lugar dele? O que você acha que poderia acontecer depois? Relembrar, sempre, os episódios anteriores de dias ou de semanas anteriores (WEISS, 2015, p. 88).

Assim, como uma conversa espontânea, amigável, acolhedora e sem julgamentos, com tranquilidade, o terapeuta passa a saber mais a respeito do paciente, o qual expressa as próprias escolhas, rejeições, de quem gosta, como faria diferente, com quem se identifica. Desse modo, o terapeuta usa a informação para continuar os processos de intervenção e de avaliação.

2.1 A HORA DO JOGO

A Hora do Jogo pode ser utilizada como um instrumento de avaliação psico-pedagógica, gerando dados à construção do diagnóstico do problema da aprendiza-gem, visto que a atenção dos envolvidos está voltada para o processo de construção do simbólico. É preciso descobrir como a criança brinca, além de proporcionar um canal lúdico, como suporte de uma aprendizagem (CAIERÃO, 2013). No processo lúdico, a criança é capaz de criar, de refletir, de imaginar e de produzir, ficando evi-dente, ao entrevistado, onde estão o foco e a atenção do sujeito, e não o desvio, ou os descaminhos. A ênfase está na potência do indivíduo, não nas debilidades dele.

Inicialmente, é fundamental que a criança se sinta à vontade com a situ-ação de brincar sob o olhar do outro. O psicopedagogo deve ser acolhedor nessa abordagem, na de enquadrar a situação de maneira não impositiva. Assim, a Hora do Jogo pode ser apresentada aberta, com o material dentro, ou fechada, deixando, também, para um caráter observatório, a forma através da qual a criança abre a caixa e se dirige aos objetos, ali, depositados.

Os materiais devem ser não figurativos, no sentido de poderem ter di-versas funções no jogo, dependendo da intenção da criança. De todo modo, os objetos não devem ser cristalizados quanto à função e à aplicabilidade deles. Por isso, os objetos devem ser mais abertos e menos específicos, não sendo possível o uso de pessoas ou de animais em miniaturas, mas objetos como cubos, os quais permitem a livre construção por parte da criança.

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Nesse processo, de uma maneira geral, a participação do psicopedago-go deve ser mínima, contentando-se, apenas, com a observação dos fenômenos. Contudo, precisa estar atento aos enquadramentos de cada caso, sendo possível flexibilizar, caso necessário, como quando uma criança se recusa a entrar no con-sultório ou a colaborar com a brincadeira.

A Hora do Jogo propõe, ao psicopedagogo, analisar três etapas, a saber: inventário, jogo propriamente dito e integração. Com isso, a criança passa a reali-zar, no momento do jogo, a criatividade e a autoria dela, organizando os próprios espaço e tempo para realizar essa ação. Se, por exemplo, a criança diz que finali-zou a brincadeira, tendo, apenas, recém-começado, não significa, necessariamen-te, que a criança não cumpriu as etapas, pois, como dito, ela lidará com o tempo de uma maneira singular, que não deve, por si só, ser enquadrado como disfun-cional. Além disso, observam-se as correlações que a criança faz a partir de como explora e classifica os materiais, ali, dispostos. Como os objetos de A Hora do Jogo não são personificados, cabe à criança dar um significado a eles, caso deseje. A partir do momento em que a criança elabora essas distinções e oferece significado aos objetos, temos o início propriamente dito da brincadeira. Então, a criança cria, recria, narra, muda a história, reitera o que tem feito, mostra-se e se revela. Isso, não necessariamente, é um processo verbalizado.

No processo, pode haver a integração-apropriação da experiência, de forma que a aprendizagem passa a ser consolidada. Isso se dá pois o sujeito se apropria de uma forma coerente dos elementos para a aprendizagem, quando consegue es-quematizar o jogo e vincular esse esquema com esquemas ou momentos anteriores. O fato de a criança não conseguir essa integração na sessão lúdica é um dado para compor o levantamento de hipóteses e a construção de um diagnóstico.

Gabi tinha seis anos. Na segunda etapa de A Hora do Jogo, fez uma constru-ção interessante: juntos, diversos canudinhos, colando uns aos outros nas extremidades. Em uma das extremidades, Gabi colocou um pincel com uns 20cm de comprimento, de forma que a extremidade, com as cerdas, ficasse à mostra, parecendo, assim, a cabeça da cobra. Tentou vários materiais para construir a cabeça da cobra, feita de canudinhos frágeis. Um a um, desprezava, até encontrar o pincel. Assim, ao encaixar, e, depois, fixar bem com a fita adesiva, ele diz: “isso aqui, sim”. Isso dá para ser a cabeça da cobra. O que chama atenção é o processo que o menino fez até chegar no produto final. A partir dos materiais, ele começou a criar a cobra, e, somente após ter experimentado várias alterna-tivas, chegou a criar o animal. A respeito dessa produção, falou bastante e com coerência, pedindo que fosse guardada em um lugar seguro. Nesse momento, Gabi entrou, didati-camente, na terceira e última etapa de A Hora do Jogo, na qual acontece o aprender: a integração e a apropriação da experiência (CAIERÃO, 2013).

NOTA

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No caso de Gabi, aconteceram os exercícios de autoria e de criatividade, além da integração entre os conhecimentos aprendidos anteriormente e o que esta-va acontecendo na sessão lúdica. Passou a se apropriar da própria produção, con-versando e se preocupando, inclusive, com a segurança da “cobra” feita por ele. São esses elementos simbólicos que muito dizem do sujeito e da relação dele com a aprendizagem, do que ele dá abertura, do que ele enfoca. Além disso, como coloca Caierão (2013, p. 60), “a psicopedagogia, na qual acreditamos, não é ortopédica, mas emancipatória”, e A Hora do Jogo pode ser uma das formas de emancipação, embora, é claro, não abarque todo o arsenal possível de realizações. Importa, por-tanto, além das classificações das etapas, do inventário, do jogo e da apropriação, a forma pela qual a criança realizou a atividade, o “como” da questão.

2.2 SESSÃO LÚDICA CENTRADA NA APRENDIZAGEM

A Sessão Lúdica Centrada na Aprendizagem, desenvolvida por Lúcia Weiss, tem, como referência, a EOCA, desenvolvida por Jorge Visca, e A Hora do Jogo, elaborada por diferentes autores. Assim, Weiss (2007) propõe uma espécie de fusão entre esses dois instrumentos. De um lado, os materiais da EOCA, e, do outro, os objetos de A Hora do Jogo, por ser mais espontâneo. Além disso, também, integrou outros jogos mais comuns e formais, como dominó, xadrez, jogo da memória, lego, dentre outros. De acordo com a autora, com essa integração, as crianças se mostram mais à vontade com objetos que já conhecem, e se revelam mais facilitadas, rejeitando os objetos de aprendizagem e escolares, ou os utilizando para outros propósitos. Assim, obtêm-se dados mais globalizados, sem a necessidade de tantos instrumentos avaliativos.

Em termos de enquadramentos-diagnósticos, como o uso da sala de forma mais livre, do tempo (quantas sessões serão precisas?) e do material disponíveis, ao psicopedagogo, cabe observar, além de compreender, cooperar, ser participativo e ativo, acolhedor e não julgador. O material utilizado dependerá do objetivo da sessão, do tempo disponível e da idade da criança, mas, de forma geral, pode-se contar com folhas de papel (com pautas, lisas, de diferentes cores), lápis, apontador, régua, canetas, cola, tesoura, revistas e livros (os materiais da EOCA, conforme vimos na Unidade 2); blocos de madeira; pinos de encaixe; tintas diversas; fantoches em miniatura; e jogos comerciais estruturados. Contudo, o foco deve ser na possibilidade de utilização dos objetos, e não na atração por coisas muito diferentes daquelas que existem no contexto do entrevistado. Para a apresentação do material, Weiss (2007, p. 78) sugere:

1. inclusão em uma caixa de tamanho regular e de fácil manejo pela criança; a caixa pode servir para guardar os materiais ou para estes e os produtos realizados pela criança;

2. colocação do material arrumado sobre a mesa, mas sem obedecer a nenhuma classificação ou ordenação, de modo que essas operações possam ser feitas, segundo critérios internos da criança;

3. forma mista: parte do material é colocado na caixa, e alguns objetos são colocados sobre a mesa, ao seu lado (por exemplo, livros, alguns jogos etc.).

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

A sessão lúdica deve ser espontânea e não dirigida, assim, o psicopedagogo necessita deixar a criança à vontade, mas é preciso dar algumas explicações iniciais, como “você pode brincar ou utilizar, como quiser, os materiais, aqui, dispostos”. Além disso, cabe, ao entrevistador, observar alguns aspectos da sessão, como:

1. A escolha do material e da brincadeira (atividade)• Atividade e material que repetem a situação escolar, sem criati-

vidade: ler livros, desenhar ou escrever algo, repetir dobraduras que aprendeu na escola, recortar e colar como pesquisa escolar, escrever contas automaticamente etc.

• Selecionar material figurativo e fazer guerras, fazendas, lojas etc.• Buscar tintas, massa plástica, pinos e blocos e tentar criar algu-

ma coisa.• Escolher material de sucata e transformá-lo, imaginando novas coisas.• Deve-se tentar analisar o significado possível do material, da

brincadeira, das ações necessárias para realizar a atividade que foi planejada.

2. O modo de brincarAlguns parâmetros a serem avaliados são se a criança:

• usa o material mais ao alcance da mão, não explorando os restantes;• explora todo o material, e, depois, fixa-se em alguma coisa;• escolhe materiais, planejando uma brincadeira ("vai sair um ele-

vador" e pega uma caixa e um barbante para realizá-lo);• faz estimativas, faz medidas e cálculos, ou não;• estrutura uma brincadeira com começo, meio e fim, com coe-

rência interna, ou coloca, aleatoriamente, os objetos, sem uma antecipação, e, posteriormente, atribui, ou não, um significado; dá, ou não, um uso ao que fez;

• tem flexibilidade diante do uso dos objetos (o mesmo objeto e trem, fogão, régua ou muro), modificando-o, conforme a neces-sidade; classifica os objetos (grupo de soldadinhos de pé e de soldadinhos ajoelhados, mistura-os e os separa em dois exérci-tos, em função das cores) ou mantém uma brincadeira estere-otipada e perseverante, usando o tempo disponível na mesma atividade, sem evoluir no seu conteúdo, apenas a repetindo (monta, sempre, a mesma casa, recorta o mesmo molde, pega a mesma revista, usa o mesmo jogo etc.);

• faz brincadeiras criativas ou repete situações convencionais; parte de coisas conhecidas e as amplia;

• começa uma atividade e a interrompe, passando a outra, sem nun-ca concluir a primeira, ficando, apenas, na exploração de objetos;

• permanece concentrada durante a brincadeira; mantém-se a continuidade da brincadeira, de uma sessão para a outra, ou se abandona o que estava fazendo e, na sessão seguinte, ignora o que já fez (construção interrompida, desenho inacabado);

• faz, na brincadeira, mais ações de desmanchar, separar, dividir e cortar, ou reunir, construir, colar e juntar;

• faz, em um jogo dramático, os vários papéis, ou se solicita que o terapeuta participe; nesse caso, os papéis que escolhe para si;

• resolvem-se as situações problemáticas que surgem e como o faz (papelão que se rasga, pino que quebra, roda que cai, uma caixa para prender em um tubo etc.);

• usa o corpo na medida do necessário, movimentando-se, tro-cando de posição, ocupando bem o espaço, se usa o corpo como parte do jogo. Usam-se as coordenações grossa e fina, necessá-rias à atividade.

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3. A relação com o terapeuta• se brinca sozinha, concentrada e ignorando o terapeuta.• se brinca sozinha, mas olhando, constantemente, para o terapeuta.• se fica dependendo do terapeuta para brincar, pedindo, sem-

pre, sua ajuda.• se pede, eventualmente, a ajuda do terapeuta, quando esta pa-

rece necessária.• se só escolhe brincadeiras que necessitam da participação do

terapeuta como parceiro (WEISS, 2007, p. 79).

Assim, percebemos que uma sessão lúdica é espontânea e livre para a crian-ça, mas cabe, ao psicopedagogo, uma série de observações que devem ser levadas em consideração para a construção de um diagnóstico. De todo modo, o psicope-dagogo deve se atentar ao que está sendo desenvolvido nesse processo, que tem relação com a queixa inicial do aprendente. É de suma importância que as etapas de avaliação sejam relacionadas entre si, como entrevistas ou anamnese futuras.

2.3 O JOGO DE AREIA PSICOPEDAGÓGICO (JAP) O Jogo de Areia Psicopedagógico (JAP) é um instrumento de avaliação e

de intervenção para casos de dificuldade de aprendizagem. A principal caracte-rística dele diz respeito ao manejo espontâneo e lúdico, com a possibilidade de criação de cenários, de representações e de identificações com figuras do cotidia-no do sujeito (ANDION, 2013). Trata-se de duas caixas de areia, uma ao lado da outra, para que o aprendente maneje da forma que for mais interessante para ele. O psicopedagogo realiza perguntas, ou faz observações ao fim da montagem.

O JAP tem, como referência direta, o método Sandplay, criado em 1956, por Dora Kalff, de perspectiva jungiana, de forma a enfatizar o brincar, na clínica, com as crianças. Esses cenários servem como propostas para que o sujeito expres-se facetas do mundo interno dele, possibilitando o desenvolvimento e a compre-ensão de processos pelos quais passa. No campo da psicopedagogia, a referência para a construção das caixas de areia é a Epistemologia Genética, de Jean Piaget, especialmente, a observação sistemática do nível operatório dos sujeitos em re-lação aos parâmetros indicados dentro da teoria piagetina. Nessa perspectiva, podem existir dificuldades de aprendizagem quando o nível de desenvolvimento cognitivo não corresponde à idade cronológica do sujeito, mesmo com condições físicas e materiais adequadas.

O objetivo do JAP é explorar os desenvolvimentos cognitivo e afetivo do sujeito que aprende, e, assim, também, há a produção para as análises de avalia-ção e de intervenção, auxiliando a construção de um diagnóstico. Esses desenvol-vimentos podem ser observados, devido ao caráter lúdico do JAP, que utiliza a brincadeira livre para conhecer o sujeito.

Assim como no Sandplay, para a construção do material do JAP, é neces-sário que existam duas caixas retangulares, com cerca de 72cm de comprimento por 50cm de largura, e 7,5 cm de profundidade. Essas medidas são importantes,

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

pois correspondem ao campo de visão de uma pessoa que se encontra em frente do lado maior da caixa, podendo visualizar toda a caixa de areia. A areia é um material que é, sobretudo, mutável, podendo se transformar e assumir diferentes formas. Desse modo, pensamos na areia como um “todo” e com uma “parte”. Além disso, o JAP pode ser realizado com duas caixas de areia, uma seca e outra molhada, assim, as possibilidades de manuseio são expandidas.

FIGURA 6 – SANDPLAY

FONTE: <http://www.psicologiasandplay.com.br/sandplay/>. Acesso em: 29 ago. 2021.

Além da caixa e da areia, também, é disponibilizada, para a criança, uma série de miniaturas dispostas próximas à caixa, são figuras religiosas, humanas, super-heróis, fadas, bruxas, monstros, animais de várias espécies, meios de trans-porte, tipos de moradia, utensílios de casa, cozinha, banheiro, limpeza, higiene, vestuário, vegetação e outros objetos que correspondam à realidade cotidiana da nossa sociedade (ANDION, 2013, p. 78). Desse modo, como essas miniaturas, também, cumprem uma função social, para o caso do Brasil, podemos pensar em personagens do nosso folclore, como saci e curupira, ou relacionar com deuses de matriz africana e outros elementos que possam corresponder à realidade do entrevistado, com modificações, dependendo de cada região. Esses objetos têm a função de representar, de maneira simbólica, situações, lembranças, memórias, passagens e cenários da vida do indivíduo.

A consigna do JAP corresponde a um convite para que o sujeito brinque, livremente, com a caixa de areia e com as miniaturas, podendo escolher entre a caixa com a areia seca ou a caixa com a areia molhada, sentir as texturas, para facilitar a escolha. A partir disso, podemos perceber as expressões afetiva e cog-nitiva do sujeito. Após terminar a sessão, o cenário construído deve ser fotografa-do, e é de suma importância que o psicopedagogo não desconstrua o cenário do entrevistado na frente dele.

Para facilitar o processo de diagnóstico e as estratégias de intervenção, o JAP pode contribuir com o seguinte (ANDION, 2013, p. 80):

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TÓPICO 2 — ALTERIDADE COMO NOVOS COLÍRIOS: O LÚDICO E A DIVERSIDADE

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• Investigar o nível de desenvolvimento do pensamento desse sujeito (Piaget).

• Investigar as Modalidades de Aprendizagem Patogênicas, confor-me a teoria de Alícia Fernandez, observadas nas construções dos cenários.

• Aplicar as Provas Operatórias Piagetianas nas caixas de areia (exce-to a prova de conservação de massas).

• Sondagem da linguagem oral e sondagem da linguagem escrita.• Sondagem dos raciocínios lógico e matemático. • Aplicação do par educativo na construção de um cenário.• Sondagem dos aspectos afetivo-emocionais.

Com isso, a partir do cenário realizado, o psicopedagogo pode, a partir desse material, utilizar as cenas construídas para intervir nas dificuldades do pró-prio sujeito. O profissional pode lançar alguns questionamentos para o entrevis-tado, como: como você se sentiu ao mexer nas areias? Gostaria de comentar algo a respeito da utilização dessas areias? Gostaria de contar uma história que envolve a cena? Você poderia dar um título?

O JAP tem o objetivo, também, de oferecer a possibilidade de o psico-pedagogo desenvolver um olhar e uma escuta nos múltiplos aspectos do sujeito, que são orgânicos, cognitivos, emocionais, pedagógicos e sociais, para melhor compreendê-lo e ajudá-lo a superar as dificulda-des, uma vez que, ao construir os cenários nas caixas de areia, esses aspectos emergem nas cenas, convocando o sujeito a se deparar com o problema que o acompanha naquele momento. Outra característica do JAP é que possibilita, concomitantemente, o exercício das capacidades imaginativa e simbólica de sujeitos que apresentam esse bloqueio tão relevante para o processo de aprender (ANDION, 2013, p. 70).

Na psicopedagogia, a construção, ou a dramatização de cenários, a partir de caixas de areia, possibilita o contato com diversos conteúdos e formas de ela-boração do sujeito, memórias e imagens positivas e negativas, tensas e aliviantes. É uma possibilidade palpável de catarse. Além disso, dependendo da produção do sujeito, podem existir indicações de determinados conflitos com o entorno dele, como com a família, os professores ou os amigos, ou, mesmo, revela-se algo que tenha uma dimensão mais profunda.

Em termos de observação do psicopedagogo, deve-se ficar atento para o tipo de cenário que o sujeito construiu, se mais voltado para questões afetivas ou mais objetivas; se é possível perceber a construção do pensamento do sujeito e as funções cognitivas; como foram utilizados o tempo e o espaço; se o sujeito usou, apenas, a areia, ou, também, as miniaturas. Assim, o trabalho do psicopedagogo deve estar focado no problema de aprendizagem do sujeito, se há dificuldade na linguagem. O cenário pronto pode ser trabalhado para que essa área seja mobilizada.

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

3 A ALTERIDADE COMO ABORDAGEM E COMPREENSÃO

Em termos de psicopatologia e diagnósticos no âmbito da psicopedago-gia, invariavelmente, passamos pela questão da escolarização, a partir da diver-sidade, a qual apresenta, no Brasil, uma série de adaptações para as condições de deficiência física, intelectual, sensorial ou múltipla, transtorno do desenvolvi-mento (como o autismo) e indivíduos com altas habilidades/superdotação.

Um dos obstáculos, para a escolarização, são, justamente, as barreiras cul-turais, sejam elas físicas (ausência ou precariedade, nas instalações, para acessibi-lidade, arquitetônica, técnica ou comunicacional) ou atitudinais (como reprodu-ção de estereótipos e estigmas em relação às pessoas com deficiência) (FREITAS, 2016). Em outras palavras, barreiras que correspondem, também, ao social e ao político, e que implicam na forma, na expectativa e nas possibilidades de esco-larização desse grupo. Assim, de uma maneira geral, há uma baixa expectativa em relação às pessoas com deficiência, seja em relação à aprendizagem ou à pro-dução e à inserção no mercado de trabalho. Por essa via, consideramos que se trata de uma visão social arraigada em preconceitos com uma carga histórica. Por outro lado, se pensarmos em um contexto sem as barreiras impostas socialmente, as deficiências não seriam evidenciadas, mas, apenas, pontuais.

Há grupos que são diagnosticados como patológicos, os quais não se con-sideram doentes ou deficientes. Assim, esses grupos se entendem a partir das óticas de identidade e de cultura, com as formas de comportamento, de relacio-namento e de comunicação próprias (FREITAS, 2016). Esses grupos estão argu-mentando em nome da alteridade, do respeito à diferença, e buscam se afirmar coletiva, pessoal e politicamente. Desse modo, se pensarmos a partir de uma neu-rodiversidade, devemos, não apenas, perceber os aspectos neurológicos a partir do normal e do patológico, mas a partir das diferentes formas de existir no mun-do, ou seja, trata-se de diversidades de funcionamento.

3.1 A NEURODIVERSIDADE

A neurodiversidade é uma abordagem, dentro do campo dos “estudos da deficiência”, que busca a compreensão dos sujeitos a partir da diferença e da identidade. Por essa via, essa perspectiva se afasta do discurso de médicos, de educadores e de especialistas que tratam as deficiências como doenças/lesões (ORTEGA, 2009). Boa parte do material produzido acerca dos estudos da defici-ência é de autores e de pesquisadores “deficientes”, com origem fermentada ao bojo de outros movimentos presentes a partir da década de 1970, como a reforma psiquiátrica, o feminismo e os movimentos de raça.

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TÓPICO 2 — ALTERIDADE COMO NOVOS COLÍRIOS: O LÚDICO E A DIVERSIDADE

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Temple Grandin é uma mulher autista que é levada, pela própria mãe, para a fazenda da tia dela, com o intuito de integrar a jovem ao campo, aos animais, e, con-sequentemente, a um alívio frente aos pontos negativos que o autismo trazia para ela na cidade. Assim, neste lugar, Grandin, um tanto arredia com as pessoas em volta dela, come-ça a observar o modo através do qual os trabalhadores lidam com a criação do gado que existe na fazenda: desde a alimentação até o abate.

Em um desses momentos, Grandin cria uma espécie de objeto, baseado no tronco de contenção – hoje, usualmente, utilizado com o gado –, apelidado de “Máquina do Abraço”. Como não gosta de ser tocada por ninguém, nem mesmo pela mãe, a personagem sente a necessidade de se sentir protegida nos momentos de angústia e de medo. Dessa forma, sempre que se sente acuada, ela recorre à “Máquina do Abraço”, a fim de se acalmar.

Atualmente, Grandin dá palestras em diversos países, contando um pouco da própria história e de como o autismo não se tornou uma barreira invencível para que pudesse chegar onde chegou. Há inúmeras produções que contam a história de Grandin, como um filme intitu-lado com o nome dela, e o livro escrito por ela mesma. Além disso, está disponível um TED em que Grandin aborda a necessidade de todos os tipos de mentes, um elogio à alteridade.

FONTE: <https://bit.ly/3ba5dQW>. Acesso em: 29 ago. 2021.

NOTA

FIGURA – TEMPLE GRANDIN

FONTE: <https://bit.ly/3GnYcKA>. Acesso em: 29 ago. 2021.

A socióloga e portadora da síndrome de Asperger, Judy Singer, cunhou o termo “neurodiversidade”, em um texto intitulado “Por Que Você Não Pode Ser Normal Uma Vez Na Sua Vida? De Um “Problema Sem Nome” Para A Emergência De Uma Nova Categoria de Diferença”. Para a autora, o movimento da neurodiversidade surgiu a partir de um terreno fértil para a autoconfiança das mães, as quais passaram a questionar as visões dominantes que as culpavam pelo transtorno autista dos filhos.

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Para ela, o aparecimento do movimento se tornou possível por vários fenômenos, principalmente, pela influência do feminismo, que forne-ceu, às mães, a autoconfiança necessária para questionarem o modelo psicanalítico dominante, que as culpava pelo transtorno autista dos filhos; pela ascensão de grupos de apoio aos pacientes e pela subse-quente diminuição da autoridade dos médicos, possibilitada, sobre-tudo, pelo surgimento da internet, que facilitou a organização dos grupos e a livre transmissão de informações, sem mediação deles; e, finalmente, como vimos, pelo crescimento de movimentos políticos de deficientes, movimentos de autodefesa e de autoadvocacia, especial-mente, de surdos, o que estimulou a autorrepresentação da identidade autista (ORTEGA, 2009, p. 72).

Uma inflexão que o movimento da neurodiversidade traz é a divisão de “lesão” e de “deficiência”, sendo, a primeira, algo relacionado às condições físicas da pessoa, e, a segunda, uma construção social que impõe uma forma de perceber a pessoa com alguma deficiência. Assim, argumenta-se no sentido de que a dicotomia lesão-deficiência é análoga à categoria de sexo-gênero, a qual, também, apresenta regras sociais a partir de condições biológicas (ORTEGA, 2009).

Mike Oliver denomina esse modelo de “modelo da tragédia pessoal”. Para os teóricos do modelo social, a deficiência não é uma tragédia pes-soal; é um problema social e político. Ela não existe para além da cultura e do horizonte social que a descreve como tal, e nunca pode ser reduzi-da ao nível biológico e/ou patológico. Para eles, só existem atributos ou características dos indivíduos considerados problemáticos ou desvan-tajosos em si, por vivermos em um ambiente social que considera esses atributos como desvantajosos. Assim, por exemplo, andar de cadeira de rodas é um problema, apenas, por vivermos em um mundo cheio de escadas, e consideramos deficientes os indivíduos que não olham nos olhos quando se comunicam, como é o caso dos autistas, apenas, porque nossa sociedade estabelece o contato visual como um elemento básico da interação humana (ORTEGA, 2009, p. 68).

Assim, o termo “neurodiversidade” salienta que a “conexão neurológica” atípica (neurodivergente) não é uma doença, mas uma diferença que deve ser respeitada como tantas outras (sexuais, raciais, geográficas, etárias etc.). Os indi-víduos diagnosticados com autismo, sobretudo, os portadores da Síndrome de Asperger, são os precursores desse movimento.

A partir dessas óticas, construiu-se outra lógica linguística para pensar, compreender e debater estudos de deficiência, sobretudo, com autores que se afastam da lógica marxiana, como Derrida e Foucault. Com essas novas referên-cias, podemos repensar nas questões da normalização e no pressuposto da de-ficiência. Isso vai no sentido de que uma construção social, a partir da qual se coloca um marco para o que consideramos “normal”, e o que sai dessas margens delimitadas passam a se configurar como algo “anormal”. Desse modo, a defi-ciência é uma construção social, como a normalidade também é, e isso passa a regulamentar os corpos, e, não obstante, recusar a aceitação daqueles que fogem dos padrões estabelecidos (ORTEGA, 2009).

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TÓPICO 2 — ALTERIDADE COMO NOVOS COLÍRIOS: O LÚDICO E A DIVERSIDADE

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As comunidades surdas são precursoras para pensar, estudar e divulgar o conhecimento na perspectiva da neurodiversidade, isso porque o povo surdo possui uma linguagem própria, além de uma série de artefatos, como literatura e política, próprias da “cultura surda”. Em torno disso, nesse sentido, desenvolve-se, também, a construção de uma identidade surda, devido ao sujeito estar, corres-pondentemente, de acordo com a cultura constituída. Há uma sensação de per-tencimento a um grupo. De todo modo, essas percepções do povo surdo foram se tornando construções sociais e políticas no decorrer do tempo. Houve uma época na qual os surdos eram proibidos de se comunicar a partir da língua de sinais, e o oralismo era, compulsoriamente, imposto como forma de socialização e de escola-rização. Desse modo, há diversos fatos históricos e políticos que marcam vitórias do povo surdo em relação aos direitos linguísticos e humanos deles.

No Brasil, a publicação da Revista Estudos Surdos (2006-2009) ganha des-taque com pesquisas e publicações que mostram perspectivas que visam à al-teridade, e não a um diagnóstico. Além disso, boa parte dos autores é surda, o que, também, proporciona mais representatividade da categoria, alimentando as lógicas de cultura e de identidade específicas.

A tomada de consciência desse movimento (e de deficientes em um sentido mais genérico, incluindo a cultura autista) vem produzindo processos de coming out deficientes, análogos aos coming outs de gays, lésbicas e negros, declarando um “orgulho surdo” que remete ao or-gulho gay, lésbico ou negro, o qual corresponde, na neurodiversidade, à declaração do orgulho autista, como veremos (ORTEGA, 2009, p. 75).

Desse modo, podemos pensar a partir de novos modos de subjetivação, a partir da autocategorização da deficiência, ou seja, quando uma pessoa diz “sou deficiente” em uma sociedade na qual essa afirmativa pode gerar uma série de estigmatizações, consideramos esse processo como um coming out, ou seja, como uma espécie de saída dos moldes estabelecidos socialmente, e uma afirmação e celebração de si a partir da diferença. Em termos mais amplos, esses movimentos são coletivos e políticos em prol da luta contra as barreiras sociais que incapaci-tam ou inviabilizam os indivíduos com algum tipo de lesão.

Um ponto fulcral, e de extrema importância para o movimento da neu-rodiversidade, o qual busca a compreensão da deficiência a partir de categorias identitárias, diz respeito ao fato de não se procurarem curas para esses quadros, ou seja, trata-se de um “movimento anticura”. Argumenta-se que, se não há uma deficiência, mas modos diversos de funcionar, então, não se deve falar de termos de cura, mas de qualidade de vida. A ideia de cura, nesse sentido, estaria atrelada a um modelo que busca a perfeição corporal, comportamental ou linguística para grupos que, como já, vastamente, enfatizado, funcionam de maneira diversa.

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FIGURA 7 – REPRESENTAÇÃO DA PESSOA COM TEA A PARTIR DA DIFERENÇA, NÃO DO DÉFICIT

FONTE: Tramantino (1980, p. 6)

O movimento da neurodiversidade, especificamente, em relação à cultura autista, está relacionado, também, à inflexão com as concepções psicanalíticas, ou seja, o autismo passa a ser visto não mais a partir do viés psicanalítico, mas a partir dos vieses biológico e cerebral. A contribuição da psicanálise, para a compreensão do autismo, estava, fortemente, vinculada a uma culpabilização da família pelo estado do filho, de forma a argumentar em termos de falhas para o estabelecimento das relações do indivíduo. Uma dessas teses diz respeito à “mãe-geladeira”, que atribui o autismo da criança à ausência de afeto por parte da mãe. De todo modo, mesmo as perspectivas psicanalíticas têm sido atualizadas nesse sentido, em prol de uma compreensão mais neurológica.

3.2 OS MOVIMENTOS PRÓ-CURA E ANTICURA

A contradição gerada a partir das inflexões de pensamento a respeito da deficiência está entre o afastamento das compreensões psicanalíticas, o que con-tribuiu para o movimento da neurodiversidade (anticura); e a construção de um movimento de pais e de professores que requerem a cura para o austismo. Ambas as formas de perceber o autismo não se guiam pela psicanálise, mas partem de processos diferentes. Enquanto o movimento da neurodiversidade não busca a cura, mas a integração social e a diminuição das barreiras sociais, a partir da cele-bração da cultura e da identidade dos diferentes, o movimento pró-cura requer a cura e se alinha a terapias comportamentais e psicofarmacológicas.

A autoadvocacia do autismo, totalmente, alinhada às concepções de neu-rodiversidade, é desenvolvida por pessoas autistas. No Brasil, atualmente, há o Movimento Orgulho Autista Brasil, que integra uma rede de países que celebra a neurodiversidade, um dia comum, comemorativo para tal. Houve, em Brasília, em 2005, o “dia do orgulho autista”.

A partir dos anos 1960, surgem as primeiras associações, as quais reúnem pais, médicos, cientistas e professores que buscam pesquisas biométicas que en-volvem o autismo, e focados na educação desse grupo, como o grupo Cure Autism Now. Essas organizações recebem críticas no sentido de terem uma visão limitada

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TÓPICO 2 — ALTERIDADE COMO NOVOS COLÍRIOS: O LÚDICO E A DIVERSIDADE

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do transtorno e limitarem as experiências das pessoas autistas. No Brasil, associa-ções de pais e professores, que buscam a cura para o autismo, também, têm cres-cido, como a Associação de Amigos Autistas (AMA) e a Associação de Amigos da Criança Autista (AUMA).

Com relação às formas de tratamento, de escolarização e de socialização, há controvérsias entre os modos de compreender o autismo. Nesse interim, a terapia cognitiva ABA (Análise Aplicada do Comportamento) ganha destaque com o movimento pró-cura, uma vez que essa terapia permite que as crianças realizarem uma série de progressos em relação ao contato visual e certas tarefas cognitivas. Por outro lado, para os ativistas autistas, essa modalidade de terapia determina um tipo de comportamento adequado, não respeitando, assim, a neu-rodiversidade. A complexidade disso vai se ampliando no sentido de que se há um movimento que luta contra essas terapias, também, há menos investimentos públicos para as terapias voltadas para o autismo, o que torna, os ativistas do au-tismo, um alvo de críticas, por recusarem o financiamento dessas terapias.

Situações como essas vêm elevando, enormemente, a temperatura do debate: de um lado, as famílias de autistas e suas lutas por acesso aos tratamentos e terapias comportamentais – que implicam reconhecer o autismo como uma doença (principalmente, com causas genéticas e/ou cerebrais) –, e para quem os movimentos de autistas, com sua retórica anticura e pró-neurodiversidade, representam um ultraje a suas reivindicações (ORTEGA, 2009, p. 73).

Além disso, vale ressaltar que, em termos de políticas públicas, o movi-mento pró-cura demonstra, de forma mais clara, as propostas para o autismo, quais sejam: acesso e financiamento de terapias comportamentais, sobretudo, da ABA; busca por recursos para pesquisa genética; e neuroquímica do transtorno.

No caso do movimento da neurodiversidade, anticura, essas políticas e ações não estão bem delineadas, pois entram em confronto com as premissas es-tabelecidas pelo movimento pró-cura. De todo modo, há propostas para uma dis-tinção entre “deficiências neurológicas” e “neurodiversidade”, para ser possível amparar os dois movimentos, além de oferecer tratamento àqueles que querem/precisam, sem entrar em confronto com alguns que percebem o autismo como uma identidade cultural.

Outro ponto a ser ressaltado diz respeito aos protagonistas do modelo da neurodiversidade, que são, geralmente, autistas diagnosticados com Síndrome de Asperger, geralmente, considerados com um “alto funcionamento”, de forma que a educação e a socialização, para eles, passam por crivos diferentes daqueles autistas que apresentam um “baixo funcionamento”. Por ser um espectro, o autis-mo possui um guarda-chuva, de forma a abarcar diferentes níveis e modalidades do transtorno. Dessa forma, como há diferentes formas de funcionamento, nem todas elas são percebidas, pelos próprios autistas, como um “estilo de vida” ou uma “identidade”, não possuindo capacidade cognitiva para a fala ou para a ex-pressão dos sentimentos, de forma que essa luta política não os alcança, nem os contempla. Assim, apreciariam terapias de comportamento. Isso delineia o movi-

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

mento da neurodiversidade como minoritário dentro do espectro total. Por outro lado, os ativistas, também, possuem coerência, ao temer políticas agressivas de tratamento aos autismos, em busca de padrões de normalidade cerebral.

De uma maneira geral, ambos os movimentos apresentam um ponto de vis-ta que está atrelado às necessidades e às problemáticas sociais, e levantam questões relevantes, também, para o campo da psicopedagogia, no sentido de como intervir ou programar sessões com indivíduos neurodiversos, por um lado, localizando o contexto e as possibilidades do sujeito em respeito à neurodiversidade, e, por ou-tro, descobrindo as melhores estratégias de aprendizagem em cada caso.

4 CONSIDERAÇÕES

Inicialmente, enfatizamos a importância da brincadeira, encerrando com uma reflexão sobre as diferentes formas de autismo. De um lado ao outro, o elo é a alteridade, o respeito à dignidade humana. As possibilidades devem ser explo-radas e ampliadas, se possível, mas os limites devem, igualmente, ser respeitados. Não se trata, portanto, de caminhar para que todos tenham as mesmas ações, mas procurar o equilíbrio entre as travessias de aprendizagem e o reconhecimento do outro como diferente, e, ainda assim, integral.

Nesse sentido, cabe, ao profissional, a busca por conhecimento, com a construção de um caminho ético que não cristalize as práticas dele, mas que este-ja aberto a novas produções e perspectivas que surgem, levando em consideração os debates científicos e sociais a respeito de temas que, corriqueiramente, estarão presentes nas práticas psicopedagógicas. Assim, os testes de diferentes catego-rias, ou as inúmeras possibilidades de jogos e de brincadeiras, são, realmente, instrumentais na prática psicopedagógica, sendo, o ponto fulcral, a humanida-de presente nesse encontro, além do acolhimento e da compreensão de que, não apenas, encaixa-se em categorias, mas abre possibilidades para novos voos, tendo compreendido o caráter e as dores das quedas de outrora.

Com isso, podemos pensar, novamente, a partir do exercício de ser criança, que o poeta Manoel de Barros nos propõe, no sentido de ver virtudes e poesias nos absurdos. Nesse sentido, a prática, a partir da avaliação e da intervenção psicopeda-gógicas, pode ser o avião que carrega os passarinhos enquanto eles se reorganizam para lançar voo, pois o profissional acompanha os sufocos e os despropósitos, e, nes-sa viagem, oferece passagem, assento, instrumentos, escuta e acolhimento. É claro que, nem sempre, o ponto de chegada, nesse voo poético que é o desenvolvimento da aprendizagem, é o mesmo para todos, nem mesmo as rotas, pois cada passarinho indica a própria, assim, cabe, ao profissional, aprender a escutar e a ressignificar.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• Quando trabalhamos com criança e aprendizagem, é indispensável que mar-quem presença materiais, espaço e tempo, para que essa criança possa brincar e utilizar outras formas de expressar os conteúdos dela.

• A partir da brincadeira, a criança constrói um espaço de experimentação, de fusão entre os mundos interno e externo, e pode executar fantasias e reprodu-zir o espaço social, ou questioná-lo.

• Com a ludicidade, a criança consegue expressar situações e/ou conflitos que, verbalmente, talvez, não conseguisse, ou, mesmo, não soubesse, de forma clara.

• Se a essência da brincadeira é não ter regras, além de ser espontânea, os jogos são caracterizados por regras, previamente, estabelecidas.

• Jogos de tabuleiro, ou jogos eletrônicos, podem ser utilizados como instru-mentos avaliativos na clínica psicopedagógica.

• Em A Hora do Jogo, os materiais devem ser não figurativos, no sentido de po-derem ter diversas funções no jogo, dependendo da intenção da criança.

• A Sessão Lúdica Centrada na Aprendizagem, desenvolvida por Lúcia Weiss, tem, como referência, a EOCA, desenvolvida por Jorge Visca, e A Hora do Jogo, elaborada por diferentes autores.

• O JAP consiste em um instrumento psicopedagógico que utiliza duas caixas de areia com uma série de personagens em miniatura, para o paciente mani-pular à vontade.

• A neurodiversidade é uma abordagem, dentro do campo dos “estudos da deficiência”, que busca a compreensão dos sujeitos a partir da diferença e da identidade.

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1 O movimento da neurodiversidade, uma forma de compreensão de diag-nósticos neurológicos, surgido a partir da década de 1970, carrega, como pressuposto:

a) ( ) A concepção da alteridade como forma de se relacionar com o outro.b) ( ) A defesa pelo direito à cura do transtorno autista, considerando a diversidade.c) ( ) Tem, como base, os movimentos psicanalíticos surgidos a partir de

maio de 1968.d) ( ) A Associação Amigos dos Autistas é uma grande defensora do movimento.

2 O conceito de neurodiversidade tem sido compreendido a partir de dife-rentes frentes, como a partir da educação, da política e da psiquiatria. A respeito do conceito, assinale, apenas, a alternativa CORRETA:

a) ( ) Tem movimentos feministas, de raça e antipsiquiátricos, como semen-tes fertilizadoras.

b) ( ) Tem tido, cada vez mais, destaque na produção de políticas públicas e de educação.

c) ( ) Tem, em seu pressuposto, a defesa de terapias comportamentais, como da ABA.

d) ( ) Foi cunhado pela autista Temple Grandin, em 1970.

3 O movimento da neurodiversidade coloca uma inflexão acerca da compre-ensão de diagnósticos neurológicos, e deixa em evidências as diferentes for-mas de funcionamento dos indivíduos. Escreva a respeito dos argumentos do movimento pró-cura e do movimento anticura do autismo.

4 O uso de brincadeiras, nas intervenções psicopedagógicas, é um lugar-co-mum no que se refere ao atendimento de crianças, pois, a partir do lúdico, é possível alcançar partes e conteúdos que, de outro modo, seriam de difícil acesso. Descreva dois métodos lúdicos que podem ser utilizados nas inter-venções lúdicas.

5 As brincadeiras têm, como características, a ausência de regras e o desloca-mento das noções de tempo e de espaço. Os jogos, por outro lado, têm, no fundamento deles, regras estabelecidas. Sobre os contributos dos jogos na intervenção psicopedagógica, assinale a alternativa INCORRETA:

a) ( ) Os jogos podem proporcionar mais concentração e estabelecimento de estratégias.

b) ( ) Os jogos permitem a compreensão dos movimentos do adversário e a reorganização de rotas.

c) ( ) A partir dos jogos, é possível lidar com a resolução de conflitos.d) ( ) Os jogos podem prejudicar a coordenação motora.

AUTOATIVIDADE

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UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

O excerto de O Alquimista pode representar o papel do psicopedagogo como um pastor de ovelhas sensível, de forma que se preocupa com elas, acolhendo-as, conhecendo seus horários, chamando-as pelo nome, respeitando o tempo de cada uma delas, preocupando-se com suas seguranças. O convívio auxilia na criação de vínculos, o compartilhamento de leituras, situações e posicionamentos.

O rapaz chamava-se Santiago. Estava começando a escurecer quando chegou com seu rebanho diante de uma velha igreja abandonada. O teto tinha despencado há muito tempo e um enorme sicômoro havia crescido no local que antes abrigava a sacristia. Resolveu passar a noite ali. Fez com que todas as velhas entrassem pela porta em ruínas e então colocou algumas tábuas de modo que elas não pudessem fugir durante a noite. Não havia lobos naquela região, mas certa vez um animal havia escapado durante a noite, e ele gastara todo o dia seguinte procurando a ovelha desgarrada.Forrou o chão com seu casaco e deitou-se usando o livro que acabara de ler como travesseiro. Lembrou-se, antes de dormir, que precisava começar a ler livros mais grossos: demoravam mais para acabar e eram travesseiros mais confortáveis durante a noite.Ainda estava escuro quando acordou. Olha para cima e viu que as estrelas brilhavam mais através do teto semidestruído. “Queria dormir um pouco mais”, pensou ele. Tivera o mesmo sonho semana passada e outra vez acordara antes do final.Levantou-se e tomou um gole de vinho. Depois pegou o cajado e co-meçou a acordar as ovelhas que ainda dormiam. Ele havia reparado que, assim que acordava, a maior parte dos animais também começava a despertar. Como se houvesse alguma misteriosa energia unindo sua vida a vida daquelas ovelhas que há dois anos percorriam com ele a terra em busca de água e alimento. “Elas se acostumaram tanto a mim que conhecem meus horários”, disse em voz baixa. Refletiu um momento e pensou que podia ser também o contrário: ele havia se acostumado ao horário das ovelhas.Certas ovelhas, porém, demoravam um pouco mais para levantar. O rapaz acordou uma a uma com seu cajado, chamando cada qual pelo seu nome. Sempre acreditara que as ovelhas eram capazes de entender o que ele falava. Por isso costumava às vezes ler para elas os trechos de livros que haviam impressionado ou falar da solidão e da alegria de um pastor no campo ou comentar sobre as últimas novidades que via nas cidades por onde costumava passar (COELHO, 2017, p. 21-22).

TÓPICO 3 —

CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES NO LAUDO

E PÓS-LAUDO

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

No ofício do psicopedagogo, a criação de rotinas e a construção de vínculos confiáveis também fazem parte do processo de atendimentos, avaliações, interven-ções e acompanhamentos. Nessas travessias, o profissional sabe que há determina-das “portas” para serem abertas e caminhos de aprendizagem a serem percorridos e se aproxima dos sujeitos de diferentes formas, a partir de testes (como vimos no Tópico 1) ou a partir do lúdico e da alteridade (como vimos no Tópico 2), desco-brindo mais sobre as alegrias e as solidões que acompanham os sujeitos, desde que com responsabilidade, compreensão, acolhimento e organização.

O papel do psicopedagogo, embora cheio de sensibilidades e instrumen-tos, também requer organização, comunicação e relacionamento ético com as de-mais partes envolvidas nos casos de atendimento, como a família e a escola. Um ponto importante a ser ressaltado é que, embora façamos distinções didáticas entre avaliação e intervenção, na prática, há sempre uma interligação entre essas duas modalidades, retroalimentando-se, pois, a partir do momento que o sujeito entra em contato com novas atividades e objetos – que são os instrumentos de avaliação –, ele também está expandido e aprendendo novas coisas – conforme veremos ao longo deste tópico.

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O LAUDO

A linguagem, tanto escrita quanto oral, depende de alguns componen-tes cognitivos e habilidades de compreensão. Algumas crianças, no decorrer dos anos escolares, podem apresentar dificuldades para entender textos grandes e também para conseguir ler algumas palavras específicas, o que pode ser reflexo de dificuldades apresentadas ainda nos primeiros anos escolares e que nunca foram trabalhadas corretamente, contribuindo para o déficit dessas crianças até o final da educação básica (ZUANETTI; FUKUDA, 2012).

Por outro lado, também deve ser considerado que dificuldades de apren-dizagem apresentadas no início da escolarização fazem parte do processo de maturação da criança, porém, dificuldades persistentes devem ser investigadas (LAGAE, 2008). Muitas dificuldades apresentadas dizem respeito à decodificação das palavras, mas há escolares que não apresentam tal dificuldade e, ainda assim, não compreendem um enunciado de uma frase por não conseguirem extrair o repertório. Assim, o indivíduo deve ser o foco da avaliação da dificuldade de aprendizagem no que diz respeito à ausência ou às falhas de aprendizagens e conhecimentos que são pré-requisitos para que o aluno siga adiante. Além dos aspectos relatados, há alguns problemas relacionados com o hábito de estudar, como ser extraclasse e sempre serem atribuídas notas às atividades, além de não ser feita a verificação de que o aluno obteve ou não o hábito de estudar, bem como quais fatores interferem ou são dificultadores desse hábito.

As questões referentes a um trabalho posterior a um fechamento de diag-nóstico, em que se obtém um laudo, são delicadas e precisam de alguns cuidados, mas é preciso informar aos envolvidos, de forma simples, as explicações em tor-

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TÓPICO 3 — CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES NO LAUDO E PÓS-LAUDO

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no disso. Ademais, é importante estabelecer limites e possibilidades individuais, mostrar as questões e os conceitos de modo que não se limite, mas respeite o tempo de cada um.

Pode acontecer de o laudo ser construído a partir da avaliação psicopeda-gógica ou de uma equipe multidisciplinar ou quando o paciente já tem um laudo estabelecido. Ainda assim, não se deve limitar as possibilidades do aprendente apenas pelo laudo, mas, ao contrário, devemos ampliá-las.

É também fundamental compreender a demanda política dos laudos, pois é por meio deles que políticas públicas podem ser implantadas; é uma maneira de assegurar um atendimento a partir de equipes multidisciplinares e com finan-ciamento do Estado. Portanto, nesse sentido, profissionais como fonoaudiólogos, psicólogos e psicopedagogo estão entre as principais especialidades que envol-vem a inclusão, a socialização e a ampliação da aprendizagem dos sujeitos, o que também aponta para a importância de um trabalho conjunto.

Os casos de dificuldade de aprendizagem são cada vez mais frequentes, sendo a principal queixa na psicopedagogia. Alinhado a esse crescimento, está o aumento significativo de diagnósticos e laudos, de forma que é importante que o profissional saiba balancear as informações e observar e intervir junto ao sujeito também para além do laudo em si, pois o laudo não deve limitar o sujeito de for-ma alguma. Desse modo, também cabe aos profissionais questionar quantos casos diagnosticados são realmente determinantes para a não aprendizagem dos sujeitos. Por isso, a importância de dedicar importância às possibilidades de crescimento e aprendizagem dos sujeitos, para que os horizontes de todos sejam desanuviados.

Na esfera nacional, a Constituição Federal de 1988 considera a educação, em conjunto com saúde, alimentação, trabalho, moradia, entre outros, como direitos sociais do povo e dever do Estado. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também preconiza, com absoluta prioridade, a inserção de crianças e adolescentes nas escolas visando tanto ao desenvolvimento, enquanto pessoa, como também ao cidadão e tendo qualificação para o trabalho. A Educação, assim, é responsabi-lidade da família, da comunidade geral e do Estado. O ECA estabelece, também, igualdade nas condições de acesso e permanência, e direito de ser respeitado.

O ECA está em acordo com documentos oficiais de cunho internacional, como a Declaração Universal de Direitos do Homem, de 1948, e a Convenção Interna-cional dos Direitos da Criança (CDC), de 1989. A Declaração Universal de Direitos do Homem já proclamava fortemente o direito de todas as crianças à educação, a partir de uma perceptiva de protecionista. Com o advento da CDC, passa a ser assegurado às crianças não apenas o direito de proteção, mas também o direito de participação e voz na sociedade (ROSEMBERG, 2001). Além disso, outras políticas nacionais e esta-duais têm sido implementadas para repensar e incluir todos os sujeitos.

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

Não obstante, a presença do laudo em muitos casos é uma garantia de acompanhamento por diversos profissionais tanto da área da saúde quanto da área da educação, havendo inúmeras políticas que visam mais conhecimento, respeito e inclusão de todos os sujeitos. Isso assegura o atendimento do sujeito. Então, por um lado, temos uma questão política de necessidade de acolhimento e atenção do estado, da escola e da saúde para inclusão e respeito pela alteridade e, por outro, temos um crescimento compulsivo de diagnósticos que, dependendo do contexto, pode funcionar como uma prática normalizadora e limitadora.

2.1 O REGISTRO

A prática psicopedagógica caminha sempre com o registro das atividades realizadas, que acompanha tanto o processo de formação como o uso do diário de campos nos estágios. No caso de acompanhamentos e intervenções, isso continua sendo essencial para a organização do profissional e para uma visão do todo.

a) acompanhar a evolução geral do processo terapêutico;b) perceber os momentos de avanço, paralização e retrocesso na

conduta do paciente, em que situações ocorriam e que atividades estavam sendo realizadas;

c) localizar as condutas e atividades ocorridas nas sessões em que o paciente vivencia a pré-tarefa;

d) observar momentos em que o paciente procurava encontrar na tarefa e em que atividades estava envolvido;

e) relembrar o primeiro projeto iniciado e como foi proposto, em que situação ocorreu;

f) avaliar condutas quando o paciente estava envolvido em atividades de leitura, escrita, cálculo ou outros conhecimentos relacionados à programação escolar;

g) verificar mudanças na conduta do paciente nas sessões anteriores e posteriores: aos dias de prova, testes e outras avaliações escolares; ao período de férias escolares, feriadões e outras interrupções; ao encontro do terapeuta com a família ou com a escola

h) observar as modificações na conduta do paciente quando acontece algum fato marcante na família, positivo ou negativo

i) avaliar possíveis alterações na conduta do paciente relacionadas aos diferentes acompanhantes que conduziram a para a sessão;

j) rever momentos marcantes, significativos que indicam que o paciente está caminhando para a alta clínica.

Esses registros podem ser feitos em fichas organizadas pelos profissionais e as anotações podem ser sintéticas. Essa prática pode ser feita na presença do aprendente, dialogando com ele sobre a importância destas anotações, ou pode ser realizada após a consulta. Esses registros são importantes também para o controle do profissional, que, com as demandas crescentes, não deve confiar apenas em sua memória para organizar, lembrar e lançar prospectivas sobre todos os seus atendimentos. A seguir, podemos observar alguns modelos de fichas de registro que podem ser utilizados pelo profissional na prática do dia a dia.

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TÓPICO 3 — CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES NO LAUDO E PÓS-LAUDO

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QUADRO 8 – MODELO DE FICHA DE REGISTRO DE ATENDIMENTO PSICOPEDAGÓGICO

QUADRO 9 – MODELO DE FICHA DE ACOMPANHAMENTO PSICOPEDAGÓGICO

FONTE: A autora

ATENDIMENTO PSICOPEDAGÓGICOCONTROLE DE FREQUÊNCIA DAS SESSÕES

NOME

DIAS:________________________ Horário:____________INÍCIO: TÉRMINO:

SESSÃO NÚMERO DATA OBSERVAÇÕES: (faltas, atrasos, saída antecipada, acompa-nhante, outras)

ATENDIMENTO PSICOPEDAGÓGICOACOMPANHAMENTO

NOME:DATA DE NASCIMENTO:IDADE:ANO: MESES:MÃE: CONTATO:PAI: CONTATO:OUTROS MEMBROS DA FAMÍLIA NO ATENDIMENTO

ATENDIMENTO: DIAS: HORÁRIOS:

INÍCIO TÉRMINO

SESSÃO NÚMERO DATA ATIVIDADES

DOMINANTESOBSERVAÇÕES DE

CONDUTA

FONTE: A autora

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

QUADRO 10 – MODELO DE FICHA DE REGISTRO DE ATENDIMENTO PSICOPEDAGÓGICO ESCOLAR

FONTE: A autora

ATENDIMENTO PSICOPEDAGÓGICOCONTATO COM A ESCOLA

NOME:ESCOLA:ANO ESCOLAR:

HORÁRIO/TURNO:

PROFISSIONAIS PARA CONTATO:

PROFESSORES:

DATA PARTICIPANTES OBSERVAÇÕES

3 RELAÇÕES E COMUNICAÇÕES COM A FAMÍLIA E COM A ESCOLA

A comunicação entre as partes – psicopedagogo, família, escola e aprenden-te – deve ser clara e simples, simultaneamente. Alguns esclarecimentos devem ser realizados para que todos os envolvidos tenham ciência das suas ações e partici-pações nos processos. Nesses casos, podem acontecer situações que embora sejam relativamente simples, demandam um trabalho do psicopedagogo, como:

• a família não toma conhecimento do calendário escolar, de forma que o es-tudante pode se sentir alheio às questões da escola e da sua aprendizagem, além de inibido em relação aos demais colegas de turma que têm todas as atividades do calendário em dia;

• a escola não esclarece aos pais o cronograma e o funcionamento da escola, como o esquema e o nível dos demais alunos da mesma turma do estudante que foi para o encaminhamento psicopedagógico, de forma que os pais são pegos de surpresa no decorrer do ano letivo, podendo gerar estresses e frus-trações entre as partes.

Esses movimentos são importantes para a construção da relação e de um autoconceito das partes envolvidas sobre suas responsabilidades e possibilidades no contexto da aprendizagem. O papel do psicopedagogo é contribuir nesta tra-vessia de integração entre as partes, ampliando a percepção do aprendente sobre

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sua atuação nos ambientes que o envolve. Nesse sentido, o papel do psicopeda-gogo consiste em identificar as influências sobre a produção escolar do aprenden-te, analisar, observar e intervir na maneira que condizer com o caso.

Assim, o papel da família é imprescindível nesse processo, podendo ser evidenciado em diferentes momentos, como em entrevistas esporádicas ou pe-riódicas, e analisando a necessidade e a importância da presença do aprendente em cada uma dessas situações, dependendo do objetivo da sessão. Nesse interim, pode ser necessária também uma entrevista com o professor em conjunto com os pais. Para Weiss (2018, p. 120), as reuniões conjuntas entre família e escola devem atentar-se para alguns cuidados:

a) esclarecimento prévio ao paciente sobre as reuniões;b) clareza nos objetivos comuns e da necessidade do encontro;c) equivalência entre os participantes;d) participação objetiva de todos os participantes;e) compartilhamento de responsabilidades em face das questões le-

vantadas, discutidas e resoluções definidas;f) se o filho-aluno-paciente for convidado a participar de algumas des-

sas sessões-reuniões, será necessário esclarecer para ele os objetivos, os assuntos que serão tratados, respeitando o seu desejo de partici-par ou não, assim como suas opiniões e decisões;

e) quando a reunião conjunta envolver a definição de um compromis-so por parte do paciente, será indispensável a presença dele, dando um tempo para ele pensar sobre o assunto, expressar sua opinião e seu real desejo.

Esses tópicos são importantes justamente para a consciência de todos os envolvidos, tanto sobre o processo dos atendimentos do psicopedagogo quanto para reconhecerem seus papéis, suas ações e suas atitudes no processo de aprendizagem. Para isso, também é necessário que o psicopedagogo tenha claros os objetivos dessa reunião e a relevância de cada um, pontuando uma hierarquia entre as relações, afinal, são partes que compõe um todo e quando se afeta uma parte (a aprendizagem do sujeito) o todo também é afetado.

Além disso, é fulcral que o aprendente tenha um autoconceito e uma estima positiva em relação a si e a sua aprendizagem, reconhecendo suas ações e dando voz a seus desejos e vontades. Esse caráter de reconhecimento do aprendente como potente e possível está incluso no esclarecimento ao paciente sobre as reuniões, avisando sobre o caráter e os objetivos, dando ao aprendente espaço para perguntas e questionamentos e respeitando sua decisão em participar ou não. Essas comunicações e informações dizem respeito à relação com o aprendente, de forma a perceber suas ações. Para Abramowicz e Oliveira (2010), a compreensão da criança como um sujeito de direitos requer uma consideração mais profunda sobre a ação humana, estando intimamente relacionada ao pensar e ao ser, e, portanto, ao processo de constituição dos sujeitos, sejam adultos ou crianças.

Nesse sentido, ancorada na perspectiva de Max Weber e Clifford Geertz, Abramowicz e Oliveira (2010) apontam três pontos fundamentais da ação social:

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• sua prerrogativa relacional, ou seja, a ação é essencialmente coletiva; • o sentido do agir se constrói como um acontecimento contingente e imprevisível; • o agir não é separado do pensar e do ser (embora nem sempre a ação esteja

investida de conscientização do ato em si).

Além disso, a ação social pode incluir omissão ou tolerância, num contexto em que a ausência de comportamento aparente também se orienta em relação ao comportamento dos outros, seja este passado, presente, ou esperado como futuro. Assim, a ação humana encontra-se sempre enredada nas condições que a produ-zem e que, ao mesmo tempo, as constituem, ou seja, a emergência da ação só pode ser compreendida quando situada dentro das práticas sociais que a tornam possí-vel. Tais caminhos e controvérsias complexificam os estudos sobre a criança e a in-fância, pois produzem novas formas de entender e escutar o que as crianças dizem, considerando que essas são portadoras de diversidade e alteridade.

QUADRO 11 – MODELO DE ATENDIMENTO PSICOPEDAGÓGICO DE UMA SESSÃO COM A FAMÍLIA

FONTE: A autora

NOME:DATA PARTICIPANTES OBSERVAÇÕES

A interdisciplinariedade é um ponto fulcral no trabalho do psicopedagogo. Nesse sentido, caso o diagnóstico seja realizado por uma equipe multidisciplinar, como costuma ser comum nas instituições, o caminho pode precisar seguir outro rumo, em nome da equipe (WEISS, 2007). Desse modo, nem sempre é o psicopedagogo quem vai realizar, inicialmente, a anamnese e os testes no sujeito. Às vezes, pode ocorrer de o sujeito já chegar com a queixa inicial e uma bateria de instrumentos realizados por outros profissionais.

Assim, para facilitar o trabalho de todos, é necessário que haja algumas comunicações entre os membros da equipe, como a troca em relação ao que se considera uma dificuldade de aprendizagem e a forma pela qual se realiza uma avaliação psicopedagógica. Esses temas essenciais para o psicopedagogo precisam ser discutidos com a equipe. Além disso, um encontro e discussão com a equipe ao final da geração de dados para que exponha as observações e resultado coletados, a fim de ter uma visão mais ampla do caso também é recomendado. Sem essa comunicação, o diagnóstico pode soar fragmentado, com uma somatória de laudos parciais, de forma que só se enxerga as partes e não o todo.

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4 DEVOLUTIVA

A devolutiva é a comunicação do feedback, realizada ao final da avaliação, quando o psicopedagogo comunica aos pais os resultados obtidos ao longo do diag-nóstico. Esse procedimento pode ser repetido sempre que necessário e, assim, o vín-culo entre terapeuta e família se mantém, além de caminharem para um processo de confiança mútua. Ademais, além de repassar “conclusões” ou levantamento de hipóteses, esse também é um momento para aproximação dos pais e para que esses compreendam e assumam o problema de aprendizagem dos filhos em suas diversas dimensões. A devolutiva realizada com crianças deve ser feita de forma compreensí-vel para sua faixa etária. Assim, a criança também se sente contemplada e respeitada em um processo de avaliação e diagnóstico que totalmente lhe diz respeito.

Essas devolutivas não devem ser vistas como fatores isolados, pelo con-trário, é um ponto importante de um processo que teve início desde o primeiro contato com a criança e/ou sua família. Não obstante, pode ser um momento de alguma tensão para todos os envolvidos, considerando as cargas afetivas e sociais ali impressos, sobretudo, por se tratar uma não aprendizagem, o que pode carre-gar, em si, diversos estigmas.

A família, por seu turno, pode expressar diversas “fantasias de doença” e algumas defesas ou resistências. Assim, cabe ao terapeuta uma postura ética e acolhedora, compreendendo o sofrimento gerado pela família, de forma que não cabe um embate sobre quem está “falando a verdade”. É a partir do afeto e do acolhimento que os sentimentos de confusão e as dúvidas repousam na confiança no trabalho do profissional. Desse modo, o terapeuta também precisa ficar atento à sua postura e perceber de que forma é afetado pelos casos que atende.

É na entrevista devolutiva também que as recomendações do psicopedago-go são dadas à família e/ou à escola, como a troca de turma ou de escola, a mudança na forma como a família se relaciona com a criança, enfim, orientações gerais, que afetam o modo como a rotina de cada família tem sido configurada. Além disso, as indicações em relação a outros atendimentos também são dadas, como necessidade de acompanhamento psicoterápico ou fonoaudiológico, aulas particulares etc. No momento das indicações, também é preciso deixar claro para que serve o auxílio desses outros profissionais, em linhas gerais como ser e o que vai ser avaliado.

A carga emocional dos pais, o medo e a expectativa desse momento tam-bém podem recair sobre o terapeuta, que precisará manejar este contato com afeto e cuidado. Pode ocorrer de os pais faltarem à entrevista de devolução, às vezes por não quererem encarar esse momento de diagnóstico e prognóstico. Contudo, é pre-ciso dar o tempo necessário a cada família, para que processe e elabore suas ques-tões, ainda ampliando uma atitude afetiva e compreensiva por parte do terapeuta. Nesse sentido, o terapeuta deve ter o cuidado para não se precipitar no momento da devolutiva nem ser sintético demais. É importante que a devolutiva seja bem elaborada e tranquila por parte dos pais, se necessário com mais de uma sessão.

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Com uma construção saudável na relação e na comunicação com os pais, há mais abertura para que sigam as indicações e as recomendações sugeridas pelo psicopedagogo. Há algumas formas de se realizar a devolução, como: no consultório, inicialmente apenas com a criança e depois também os pais; na esco-la, com alguém da equipe escolar, ou com o paciente e alguém da equipe escolar, ou também com o paciente incluso. Weiss (2007) sugere que a devolutiva sempre seja realizada com os pais junto, mesmo que a devolutiva seja realizada na escola.

Ao chegar ao fim da devolutiva, pode surgir a necessidade de encami-nhamento para outro profissional. Se possível, sugere-se que o novo profissional compareça à sessão devolutiva para conhecer e conversar com os pais, de forma que a passagem de um profissional para outro seja mais possível. Desse modo, é importante que o psicopedagogo tenha uma lista com nomes de profissionais disponíveis em instituições particulares e públicas. Essa lista deve ser diversa, de forma que seja acessível a diferentes classes sociais, sendo de diferentes formas de pagamentos ou mesmo gratuitos. Isso tem a função de auxiliar no atendimen-to do paciente, possibilitando uma continuidade.

ESTUDO DE CASO

André é um menino de oito anos de idade que apresenta uma impor-tante defasagem em relação a aprendizagem. Entretanto, sua avaliação médica e seu exame neurológico têm apontado que não há nenhum comprometimen-to desde o ponto de vista orgânico, indicando um quadro de psicose infantil. Os pais de André são separados e o menino não vê seu pai desde os dois anos de idade. Segundo a mãe, é muito “agarrado” com ela. Quando era bebê e o pai vivia com eles, estava sempre no colo da mãe. Sempre que a mãe se afas-tava, ficava chorando. Tinha que estar “sempre” com ela. Esse laço simbiótico com a mãe está na origem da dificuldade de estruturação de seu psiquismo. Hoje, André chama de pai a qualquer um que encontre na rua. Ao que parece, dessa forma, busca encontrar alguma referência com relação a seu pai, já que sua mãe pouco fala sobre ele.

No caso de André, encontramos uma deficiência mental secundária a uma psicose infantil. Isso significa que as construções cognitivas se encontram defasadas, fundamentalmente, pelas dificuldades de organização em relação a estruturação de seu psiquismo e não por qualquer fator orgânico. Como afirma Filidoro (1997, p. 122), nas psicoses infantis “o processo de construção das estruturas cognitivas como as próprias estruturas cognitivas adquirem uma peculiar forma de funcionamento e organização, produzindo, por sua vez, efeitos particulares no processo de aprendizagem”. André é um menino com um discurso bastante fragmentado, fazendo com que o encadeamento de suas frases não organize um sentido inteligível. Sua fala também era sistema-ticamente ecolálica. Sua possibilidade de criar laços com o outro encontra-se bastante dificultada. Segundo sua mãe, apresenta “dificuldade em completar

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as frases”. Ela acrescenta que “o que interessa para ele não interessa para os outros”. A mãe também se queixava de que André recusava-se a fazer o que era solicitado, apresentando um constante negativismo. André já havia feito um curto atendimento com uma psicóloga no hospital, o qual, por iniciativa da mãe, fora interrompido. Quando chega à escola, é encaminhado para um atendimento psicanalítico em uma instituição privada. O esquema de trabalho interdisciplinar que foi estabelecido com essa criança é semelhante ao de Jo-nas. No turno oposto àquele em que frequentava a aula, era atendido por uma educadora especial na sala de recursos da escola. Essa educadora faz contatos sistemáticos com o psicanalista encarregado do caso e, junto à professora de sala de aula, busca articular o trabalho de classe com o menino na turma.

A produção de André apresentava algumas características que cabem ser ressaltadas: construía um jogo simbólico bastante incipiente, brincando de “fazer de conta” de fazer comida, por exemplo; durante essa brincadeira, cos-tumava colocar os brinquedos na boca, interrompendo o brincar na tentativa de chupar ou lamber os objetos; sua produção gráfica também era bastante restrita, quando desenhava, fazia sempre a mesma figura: o personagem de televisão “Chapolim Colorado”; demonstrava algum interesse por pequenas regras introduzidas nas brincadeiras; procurava burlar essas regras quando se dizia para ele que “não” era assim que o jogo devia funcionar. André inte-ressava-se muito pelo funcionamento de máquinas, procurando diferenciá-las dos seres vivos; em relação aos aparelhos fazia duas perguntas sistemáticas: “como é que faz...?”, perguntando pelo barulho feito; “tem bicho?”, procuran-do diferenciar se é um ser vivo ou inanimado e tinha uma dificuldade muito significativa em relacionar-se com os colegas, isolando-se sistematicamente do grupo, sem interagir com os outros.

Nesse caso, as estratégias pensadas foram direcionadas, principalmen-te, no sentido de procurar criar laços com as outras crianças e de estruturar os poucos recursos de aprendizagem de que o menino dispunha, valorizando seu interesse pelas máquinas e aparelhos, tema que passou a fazer parte dos projetos realizados na sala de aula por todo o grupo. Foi combinado com a professora que as propostas pedagógicas pudessem levar em conta a restrita capacidade simbólica de André, procurando alinhavar alguns interesses do menino com o restante dos alunos.

Em relação a suas aprendizagens, André vem demonstrando, algumas importantes modificações. Passou, em alguns momentos, a se referir como “eu”, ou seja, a falar de si na primeira pessoa, pois só o fazia na terceira pessoa. Iniciou um interesse importante por histórias contadas, pedindo que sejam repetidas diversas vezes. Com esse pedido de repetição, busca organizar de forma mais consistente a fragmentação na cadeia discursiva que lhe é carac-terística. Seu desenho tem se tornado mais rico e mais variado não se restrin-gindo apenas à figura do “Chapolim”. Começou a fazer desenhos de carros e caminhões. Porém, a maior dificuldade tem acontecido em relação à interação

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com seus colegas. Seu nível de desorganização produz, muitas vezes, uma ati-tude de afastamento das outras crianças em relação a ele. Algumas situações, no sentido de compartilhar alguns jogos de bola têm acontecido, que apontam ser possível superar os obstáculos que tem se colocado para sua interação na sala de aula.

FONTE: <https://bit.ly/3nyogKz>. Acesso em: 29 ago. 2021.

5 PSICOPEDAGOGIA: O ELO ENTRE EDUCAÇÃO E SAÚDE

Sabemos que a aprendizagem decorre de um processo de interação entre as partes, que é construído, historicamente, por afetos, aproximações e distancia-mentos. Além disso, a preocupação com a aprendizagem não é exclusiva da área da Psicopedagogia, pelo contrário, diversas outras áreas, da educação, saúde, co-munidade, publicidade e lazer preocupam-se com esta área. Não é à toa que hoje, na maior parte dos restaurantes, há um espaço infantil, que serve tanto como estímulo para as crianças como para suporte dos pais.

Nesse sentido, também sabemos que a Psicopedagogia tem em sua base a Psicologia e a Pedagogia, outras duas áreas que constroem uma vasta camada de conhecimento científico sobre a infância, o desenvolvimento humano e a aprendi-zagem. Também a medicina se debruça sobre o tema, criando uma série de docu-mentos e manuais que servem de guia tanto para profissionais quanto para a popu-lação em geral. Por isso, quando ocorre algo que a mãe ou a sociedade consideram fora de uma margem de normalidade, recorre-se a algum desses profissionais.

A prática do Psicopedagogo, assim, está sempre vinculada também aos saberes de outras áreas, sendo a melhor munição a formação e a busca pelo co-nhecimento de maneira que faça sentido para profissional, de acordo com a linha de abordagem com que mais se identifica, como constrói seu estilo de atuação. Contudo, é uma área essencialmente interdisciplinar, tanto pelo objeto pelo qual se debruça – a aprendizagem – quanto pela prática que sempre estará em relação à escola, ao serviço social, ao professor, ao fonoaudiólogo, ao psicólogo, entre outros. Uma prática interdisciplinar requer responsabilidade e competência para avaliar os aspectos de ler, escrever, calcular e se relacionar com os objetos, conte-údos e personagens que remetem à aprendizagem.

O Código de Ética de Psicopedagogia, elaborado pela Associação Brasilei-ra de Psicopedagogia (ABPp), em seu Art. 1º, já coloca ênfase na questão fulcral da interdisciplinaridade e do objeto principal da área que é a aprendizagem.

Art. 1º A Psicopedagogia é um campo de conhecimento e ação inter-disciplinar em Educação e Saúde com diferentes sujeitos e sistemas, quer sejam pessoas, grupos, instituições e comunidades. Ocupa-se do processo de aprendizagem considerando os sujeitos e sistemas, a famí-lia, a escola, a sociedade, o contexto social, histórico e cultural. Utiliza instrumentos e procedimentos próprios, fundamentados em referen-

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ciais teóricos distintos que convergem para o entendimento dos sujei-tos e sistemas que aprendem e sua forma de aprender.Parágrafo 1º A intervenção psicopedagógica é da Ordem do Conhe-cimento, relacionada com a aprendizagem, considerando o caráter indissociável entre processos de aprendizagem, as dificuldades e as possibilidades dos sujeitos e sistemas (ABPP, 2020, p. 1).

Posto isso, podemos pensar sobre a demarcação em relação às áreas com as quais atuará em conjunto. Há intervenções que são próprias da psicopedago-gia, o seu objeto é claro e há cada vez mais produção sobre as indicações, instru-mentos, abordagens da área.

Assim, refletimos a partir do pastor de ovelhas de O Alquimista, aquele que também se preocupa com o bem-estar dos seres pelos quais se comprometeu e se responsabilizou pelo cuidado e pelas travessias. O ato de ler para elas, de contar sobre alegrias, de comunicar e reconhecer a voz e a importância de cada sujeito, respeitando seus tempos e suas formas, contribui para o sentimento de um self inteiro, que se abre para aprender coisas novas. Essa ampliação do repertório do sujeito, a partir da integração de si, é estimulada a partir de um trabalho de pas-tor, diário e acolhedor, compreendendo horários e indicando portas, passagens.

Isso pode ser feito de inúmeras maneiras, desde os aspectos formais e objetivos, como o caso de alguns testes, até os processos de comunicar o que é preciso para as partes envolvidas. No entanto, também requer muita sensibilida-de do profissional em perceber e enxergar o aprendente de forma global e, com isso, compreender suas formas e aguçar nele a criatividade de ser se colocar e aprender, juntando as partes num todo coeso que se desenvolve e desabrocha.

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LEITURA COMPLEMENTAR

AVALIAÇÃO PSICOPEDAGÓGICA DE CRIANÇA COM ALTERAÇÕES NO MOVIMENTO: RELATO DE EXPERIÊNCIA

Leila Santos BatistaBárbara Gonçalves

Márcia Siqueira de Andrade

INTRODUÇÃO

O Código de Ética do Psicopedagogo, no seu Art. 1º, define a Psicope-dagogia como “[...] um campo de atuação em Saúde e Educação que lida com o processo de aprendizagem humana: seus padrões normais e patológicos conside-rando a influência do meio, família, escola e sociedade no seu desenvolvimento, utilizando procedimentos próprios da Psicopedagogia”. A Psicopedagogia surge para atender a uma demanda específica de auxílio à superação das dificuldades de aprendizagem, atuando de forma preventiva e terapêutica.

A Psicopedagogia se divide em três processos: prevenção, diagnóstico e intervenção. Na prevenção, o psicopedagogo realiza uma investigação institu-cional, avaliando os processos didáticos e metodológicos aplicados, e a dinâmi-ca dos profissionais, buscando compreender o processo ensino/aprendizagem e propondo alternativas que otimizem os esforços empreendidos pelos envolvidos.

A Psicopedagogia, na forma clínica, busca a promoção da saúde mental auxiliando o indivíduo na superação das dificuldades de aprendizagem, investi-gando os sintomas, a modalidade de aprendizagem e desenvolvendo atividades interventivas. O atendimento psicopedagógico com uma postura clínica conside-ra a singularidade do sujeito, os aspectos inconscientes envolvidos no não apren-der nos seus diversos contextos (biológico, afetivo e cognitivo), além da família e da escola. O presente estudo se desenvolveu a partir do relato de um processo de Diagnóstico Psicopedagógico numa perspectiva teórica clínica.

Diagnóstico Psicopedagógico Clínico

O diagnóstico, para o terapeuta, tem a mesma função que a rede para um equilibrista, ou seja, ele dará o suporte para que o psicopedagogo caminhe de maneira segura durante o processo de intervenção. O sucesso e a eficácia do diagnóstico psicopedagógico pressupõem por parte do terapeuta: profundo co-nhecimento teórico do processo de aprendizagem, postura clínica, capacidade de observação e instrumentos e métodos adequados.

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O objetivo do diagnóstico psicopedagógico clínico é identificar a modalida-de de aprendizagem, o nível da escrita e o nível cognitivo. Os instrumentos aplica-dos no diagnóstico psicopedagógico aqui relatado são descritos no item método e fazem parte do protocolo utilizado na clínica-escola campo desta pesquisa.

Modalidade de aprendizagem

A forma como cada indivíduo entra em contato com o objeto de conhe-cimento, a modalidade de aprendizagem, é particular, individual e oferece um saber que é singular para cada indivíduo. A modalidade de aprendizagem é construída desde o nascimento e nas várias situações de aprendizagem, cons-tituindo-se como um esquema de operar ou processar as informações. Com a identificação da modalidade de aprendizagem do sujeito com dificuldades de aprendizagem, o psicopedagogo poderá introduzir a intervenção adequada, que atenda às necessidades específicas do paciente.

Para melhor compreensão do processo que resulta em modalidade de apren-dizagem, é importante compreender o movimento definido como “adaptação”. Adaptação é o resultado de um duplo movimento complementar de assimilação e acomodação. Por meio da assimilação, o sujeito transforma a realidade para integrá--la às suas possibilidades de ação e, através da acomodação, transforma e coordena seus próprios esquemas ativos, para adequá-los às exigências da realidade.

As modalidades de aprendizagem sintomáticas são geradas por um de-sequilíbrio nos movimentos de assimilação e/ou acomodação. O excesso (hiper) ou escassez (hipo) em um desses movimentos afeta o resultado (aprendizagem), ou seja, dificuldades de aprendizagem estão relacionadas a uma hiperatuação ou hipoatuação de um desses processos. Quando há o predomínio da assimilação, as dificuldades de aprendizagem são da ordem da não resignação, o que leva o su-jeito a interpretar os objetos de modo subjetivo, não internalizando as característi-cas próprias do objeto. Quando a acomodação predomina, o sujeito não empresta sentido subjetivo aos objetos, antes, resigna-se sem criticidade.

As modalidades de aprendizagem sintomáticas são assim descritas:

• Hiperassimilação: sendo a assimilação o movimento de adaptação que permite a alteração das informações fornecidas pelo meio, para que possam ser incor-poradas pelo sujeito, na aprendizagem sintomatizada pode ocorrer um exagero desse movimento, de forma que o sujeito não se submete ao aprender. Nesse movimento, há o predomínio dos aspectos subjetivos sobre os objetivos.

• Hipoacomodação: a acomodação consiste em adaptar-se para que ocorra a internalização. A sintomatização da acomodação ocorre pela resistência em acomodar elementos do meio (informações), que pode ser definida como a dificuldade de internalizar os objetos.

• Hiperacomodação: se acomodar significa internalizar os elementos do meio (informações), o exagero nesse processo pode levar a uma pobreza de contato com a subjetividade, levando à submissão e à obediência acrítica às normas.

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• Hipoassimilação: nessa sintomatização ocorre uma assimilação pobre ou bai-xa, o que resulta na pobreza no contato com o objeto. As informações, ou elementos do meio, são pouco alterados, de forma que não podem ser incor-porados pelo sujeito, apenas acomodados.

Analisando a forma como operam as modalidades de aprendizagem, existem três grupos de modalidades (organizações) que perturbam o aprender: hipoassimilação-hipoacomodação; hiperassimilação-hipoacomodação; e hipoas-similação-hiperacomodação.

Desenvolvimento Infantil

O conceito de desenvolvimento infantil pode ser entendido como um processo que envolve vários aspectos: crescimento físico, maturação neurológica, construção de habilidades relacionadas ao comportamento e às esferas cogniti-vas, social e afetiva da criança. O desenvolvimento adequado habilita a criança a atender à demanda do meio, tornando-a “competente” para responder às suas necessidades, considerando o seu contexto de vida.

O desenvolvimento infantil relaciona-se diretamente com fatores biológi-cos e ambientais. Os fatores biológicos estão relacionados a danos ocorridos nos períodos pré, peri e pós-parto, que podem conduzir a deficiências e problemas no desenvolvimento neurológico. Nesse grupo, estão os distúrbios de ordem ge-nética, malformações congênitas, prematuridade, hipóxia cerebral, meningites e condições da gestação da mãe (uso de drogas, fumo e doenças) que podem im-pactar o desenvolvimento da criança. Os fatores ambientais estão relacionados à exposição da criança aos estímulos e situações do meio, tais como condições de habitação, higiene, conforto, nutrição, estímulo familiar e vida social.

Neste contexto, a reabilitação é o processo pelo qual a criança com altera-ções no desenvolvimento poderá ser adequadamente estimulada com o objetivo de melhorar a funcionalidade das suas habilidades físicas, mental e/ou social. Nessa perspectiva, todo trabalho de reabilitação, independentemente da idade, deve estar centrado nas habilidades da criança, lembrando que sua integridade e dignidade devem sempre ser respeitadas. Para tal, importa que, ao planejar os programas de reabilitação e de apoio, o terapeuta possa impreterivelmente considerar os costu-mes, possibilidades e as estruturas da família e da comunidade, adequando sua proposta terapêutica às dificuldades e necessidades da criança. No entanto, para orientar qualquer proposta terapêutica, a avaliação diagnóstica é a primeira etapa. Nesse contexto, o objetivo do presente artigo é apresentar o relato de avaliação diagnóstica psicopedagógica de menino encaminhado à clínica-escola por apresen-tar alterações no desenvolvimento e dificuldades de aprendizagem.

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MÉTODO

Campo da pesquisa

A criança, submetida à avaliação psicopedagógica relatada no presente estudo, será tratada pelo nome fictício “Pedro”. Pedro foi atendido pelo serviço de atendimento psicopedagógico, desenvolvido no âmbito de uma clínica-escola de uma instituição particular de ensino superior, localizada na grande São Paulo. A clínica recebe crianças, adolescentes e adultos encaminhados por serviços de saúde e educação e possui um protocolo de avaliação, por meio do qual todos os indivíduos encaminhados são avaliados. Pedro foi atendido em grupo de 5 crian-ças, da mesma faixa etária (9 anos).

Participante

É estudante do 3o ano do Ensino Fundamental I, com idade de 9 anos, lê e escreve com dificuldade, não apresenta problemas de comportamento e foi en-caminhado ao atendimento psicopedagógico pelo Neurologista por apresentar:

atraso no desenvolvimento neuropsicomotor: refere-se a atraso no desenvolvimento de dois ou mais domínios: motricidade, linguagem, cognição, habilidades sociais ou aquelas requeridas em atividades da vida diária, e/ou ainda, uma inadequação no desenvolvimento que im-possibilita a saudável sequência de estágios considerados importantes marcadores semiológicos de integridade do sistema nervoso central;desatenção: refere-se à dificuldade de concentração ou à falta de atenção;dificuldade de aprendizado: refere-se a problemas na aquisição e uso de habilidades como leitura, escrita e matemática, conduzindo a rendimento escolar abaixo do esperado. As dificuldades de aprendizagem possuem etiologias diversas e são distintas dos transtornos de aprendizagem, que são específicos e de origem neurobiológica. Assim, dificuldades de apren-dizagem podem estar associadas a problemas pedagógicos, sociais, defi-ciência intelectual ou ser secundários a outros transtornos.

Transtornos específicos misto do desenvolvimento. Essa categoria agrupa transtornos que apresentam ao mesmo tempo sinais de um transtorno específico do desenvolvimento da fala e da linguagem, das habilidades escolares, e das fun-ções motoras, mas sem a predominância suficiente de elementos para constituir o diagnóstico principal.

Outros transtornos comportamentais e emocionais especificados com início habitualmente na infância ou adolescência. Inclui sintomas como comer unhas, déficit de atenção sem hiperatividade, enfiar os dedos no nariz, masturba-ção exagerada e sucção do polegar.

Instrumentos

Em conformidade com o protocolo implantado na clínica-escola citada, os instrumentos utilizados no processo e considerados para o presente estudo foram:

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UNIDADE 3 — PSICOPATOLOGIA: INSTRUMENTOS, ESTRATÉGIAS E INTERVENÇÕES EM PSICOPEDAGOGIA

• Desenho da Família: nessa atividade, observa-se a estrutura familiar, a fim de investigar como se dá a relação entre seus membros como um todo e indivi-dualmente.

• Desenho da Família Cinética: essa atividade busca compreender como se dá o estabelecimento de vínculos entre os membros da família.

• Desenho do Par Educativo: essa prova traz subsídios específicos para a com-preensão da relação entre quem ensina, quem aprende, e o objeto de conheci-mento, como é percebido pelo sujeito.

• Hora do Jogo Diagnóstica: a aplicação dessa prova tem como objetivo geral identificar a modalidade de aprendizagem do sujeito e de analisar como ele se apropria do objeto de conhecimento desejado. Por outro lado, analisa-se, também, ele trabalha com questões cognitivas relacionadas às habilidades mentais de classificar, ordenar e seriar.

• Sondagem da Escrita: essa prova tem por objetivo identificar o nível conceitu-al da escrita do sujeito: se ele já reconhece as letras, se já está alfabetizado ou não e como está seu processo de aquisição da leitura e escrita. Com base em Ferreiro é possível identificar em que nível de aquisição da leitura/escrita o paciente se encontra, dentro das seguintes possibilidades: pré-silábico, silábi-co, silábico alfabético, alfabético e ortográfico.

• Provas Piagetianas: tem por finalidade identificar o estágio do desenvol-vimento cognitivo em que o sujeito se encontra. Para isso, foram aplicadas provas de conservação: conservação de pequenos conjuntos discretos de elementos, conservação de quantidades contínuas e conservação de líquido (transvasamento).

• Entrevista com os Pais: pretende-se obter o máximo de informação possível sobre a história de vida do sujeito, a relação estabelecida entre ele, enquanto alguém com possibilidades de aprender, e os pais como aqueles que podem ensinar. Tem de se ter em conta não só o que é dito, mas também como é dito, bem como observar a linguagem corporal dos entrevistados.

Procedimentos

O processo de avaliação diagnóstica psicopedagógica ocorreu ao longo de 8 sessões, cada qual com duração de 60 minutos. Para o fortalecimento do vínculo paciente/terapeuta, foram desenvolvidas, ao término da aplicação de cada uma das provas, atividades lúdicas como brincadeiras, jogos diversos, montagem de quebra-cabeça, leitura de histórias e desenho livre.

Na primeira sessão, os responsáveis foram informados sobre os procedi-mentos de avaliação diagnóstica e sobre as normas da clínica-escola. Nessa ses-são, foi ouvida a queixa principal dos pais com relação à criança. Após, os pais foram liberados e foi desenvolvida atividade para estabelecimento de vínculo.

A sala para atendimento do grupo foi escolhida levando em considera-ção a necessidade de interação social e comunicação apresentadas por Pedro. A terapeuta escolheu uma sala pequena, com mesa redonda, que proporcionou

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uma maior aproximação dos integrantes e facilitou a comunicação. Os materiais disponibilizados para realização das atividades foram de uso coletivo, também pensando na proposta de interação social e comunicação.

Na segunda sessão, foi aplicado Desenho da Família; na terceira, Desenho da Família Cinética; na quarta, Desenho do Par Educativo; na quinta, entrevista com pais, na sexta, Hora do jogo Diagnóstica; na sétima, Sondagem da escrita; e, por fim, na oitava sessão, Provas Piagetianas. Ao término das sessões de avaliação diagnóstica, os testes foram analisados de acordo com Andrade e as informações compiladas em um relatório, cujas informações foram compartilhadas e esclare-cidas com o responsável pela criança.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise da produção do paciente se deu conforme descrito a seguir. Estabelecimento do Vínculo: na primeira sessão, o paciente não interagiu com o grupo. Comportou-se de maneira tímida, introvertida e apresentou problemas na fala (linguagem). Participou da atividade proposta (jogo pega-varetas), porém não demonstrou compreensão das regras. Desenho da Família: após a consigna “de-senhe uma família”, Pedro desenhou os três membros da família (ele, pai e mãe); conforme Figura 1, notam-se esquemas corporais empobrecidos, olhos vazados e ausência de braços; observa-se que Pedro se desenhou ao lado da mãe; o tamanho relativo dos personagens foi evidenciado e a produção foi centralizada na folha; por fim, evidencia-se que Pedro desenhou a sua família real, composta por ele, pai e mãe, o que sugere uma percepção de relação saudável entre os membros.

• Desenho da Família Cinética: nesta atividade foi solicitado o desenho de uma família fazendo alguma coisa. Pedro desenhou os personagens sem diferen-ciação de sexo; todos os membros da família num mesmo ambiente, porém cada um fazendo uma coisa diferente. Essa situação sugere comprometimen-to no vínculo familiar.

• Desenho do Par Educativo: foi solicitado ao grupo o desenho de alguém aprendendo alguma coisa e alguém ensinando. Pedro se desenhou fazendo uma prova; observa-se no desenho que ele está ao lado de uma folha, com um lápis na mão; a ausência de ensinante sugere vínculo comprometido com quem ensina e não com o objeto de conhecimento (folha de prova); o tamanho do aprendente, o tamanho do objeto de conhecimento e o contato do apren-dente com o lápis sugere vínculo saudável com o objeto de conhecimento.

• Entrevista com os pais: durante a entrevista a mãe relatou que Pedro é autista (apesar dessa informação não constar no relatório médico), tem problemas na fala e dificuldades de socialização. Faz acompanhamento neurológico, fono-audiólogo e usa os medicamentos Risperidona e Tofranil. Na entrevista, foi evidenciado que Pedro tem um primo (filho de um tio por parte de mãe), com a idade de 7 anos, que também é autista. A mãe relatou que Pedro nasceu de parto normal, sem complicações e começou a falar com 1 ano 2 meses.

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FIGURA 1 – DESEMPENHO DE PEDRO NA PROVA DA FAMÍLIA

FIGURA 2 – DESEMPENHO DE PEDRO NA SONDAGEM DA ESCRITA

• Hora do Jogo Diagnóstica: após apresentar a caixa, foi solicitado ao grupo para realizar a atividade. Pedro não fez inventário, pegou um livro e ficou fo-lheando, depois pegou a lata de palitos e brincou um pouco, sem demonstrar muita vontade, por fim, fez um desenho, utilizando canetinhas e papel sulfite, porém não terminou. Essa atitude demonstra a dificuldade da criança em se apropriar do objeto de conhecimento desejado; o contato superficial com a caixa e com os objetos oferecidos sugere dificuldades em lidar com a situação e com o não conhecer.

• Sondagem da Escrita: conforme Figura 2, a escrita de Pedro foi classifica-da como silábica-alfabética, sem o registro da sílaba de três letras, estando aquém do esperado para a idade, de acordo com a padronização do teste. As palavras ditadas ao paciente foram: elefante, rã, formiga, cachorro e tigre; e a frase foi: “O elefante pisou na formiga”.

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Frente às Provas Piagetianas, apresentou respostas perceptivas e de não conservação, quando o esperado para a idade seria uma resposta cognitiva (lógi-ca) e conservativa, próprias do estágio do desenvolvimento cognitivo operacio-nal-concreto, adequado a crianças de 7 a 11 anos.

No mais, observações gerais com relação ao desempenho, comportamento e conduta do paciente durante o processo foram registradas conforme relato a se-guir. Pedro esteve presente em todas as sessões e realizou todos os testes aplicados com dedicação. Utilizou o material de maneira adequada e se mostrou organiza- do devolvendo os lápis de cor na caixa correta, guardando borracha e apontador no estojo após o uso e recolocando cadeiras no lugar ao término das sessões.

Desde a primeira sessão, Pedro apresentou dificuldades relacionadas à interação social e comunicação (linguagem verbal). Nota-se o comprometimento do desenvolvimento da fala e da linguagem de forma acentuada, conforme des-crição da CID-10 F83. Interagiu pouco com o grupo e com a psicopedagoga, limi-tando muitas respostas a “sim” ou “não”. Respostas mais complexas, adequadas às perguntas, surgiam apenas quando abordado de forma mais precisa e indivi-dualizada, o que sinaliza prejuízos associados às possíveis alterações das funções cognitivas, dentre elas a linguagem, apresentadas pelo quadro (CID-10 F83).

Déficits relacionados às funções motoras, descritos na CID-10 F83, foram evidenciados durante a execução das atividades de Sondagem da Escrita, e nos Testes piagetianos, e percebidos também nas brincadeiras e jogos lúdicos (monta-gem de quebra-cabeça, pega-varetas, entre outras). Prejuízos relacionados à desa-tenção não foram evidenciados na avaliação, Pedro se mostrou atento às normas e às consignas solicitadas.

À medida que os encontros foram se constituindo, Pedro foi se integrando ao grupo, e essa integração pôde ser percebida em atitudes comportamentais, como: rir com os colegas diante de uma situação engraçada; chamar a terapeuta pelo nome; expressar o desejo de contar histórias diante dos testes projetivos (fa-mília, família cinética e par educativo) e contar sobre sua rotina diária.

Mesmo com evidente dificuldade de comunicação e socialização, Pedro não se isolou completamente do grupo. No decorrer dos encontros ao longo do processo diagnóstico, à sua maneira, esteve presente, realizando as propostas e participando das atividades lúdicas (jogos, contagem de histórias, desenho e pin-tura, dentre outras). Apresentou muitas vezes comportamento motor estereotipa-do e repetitivo, movimentando dedos e/ou mãos, fazendo caretas, rindo sozinho e evitando contato visual. Demonstrou também, durante a execução das ativida-des, a fixação por rotinas e regras.

Foi principalmente nas atividades lúdicas, a partir da 4ª sessão, que se tor-naram evidentes uma melhor compreensão do grupo com relação às dificuldades apresentadas pelo Pedro (comunicação e coordenação motora fina). Essa evidên-

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cia se embasa no auxílio que o grupo passou a prestar, ajudando-o em atividades onde o mesmo demonstrava mais dificuldades, esclarecendo com calma as regras dos jogos e esperando com paciência e respeito a sua resposta ou fala.

Com relação à modalidade de aprendizagem, Pedro foi classificado como hipoassimilativo/ hipoacomodativo. Na hipoassimilação, ocorre pobreza de con-tato com o objeto, e déficit lúdico e criativo; na hipoacomodação, além de pobreza de contato com o objeto, ocorre também dificuldade na interiorização das imagens.

Apesar dos déficits e prejuízos apresentados, Pedro cumpriu todas as ati-vidades propostas. A avaliação psicopedagógica demonstrou déficits da apren-dizagem da escrita, dificuldades relacionadas à coordenação motora e à comuni-cação (linguagem verbal), além de prejuízo no desenvolvimento cognitivo. Com relação aos aspectos emocionais, os resultados obtidos a partir das análises da produção da criança sugerem a existência de percepção saudável da estrutura familiar; vínculo saudável com o objeto de conhecimento, percepção de ausência de vínculo familiar, e vínculo comprometido com o ensinante. Essas informações sugerem que, com relação à dimensão afetiva da aprendizagem (dimensão subje-tivante), na qual opera a lei do desejo que permite dar um significado à ignorân-cia, Pedro apresenta potencial de aproximação do objeto do conhecimento para construção e apropriação da aprendizagem.

Frente ao desempenho do paciente nas atividades propostas, presume-se que as dificuldades de aprendizagem apontadas pelo relatório médico sejam oriun-das, em parte, das alterações no desenvolvimento (CID-10 F83; F98-8), e em parte da falta de atendimento adequado às suas necessidades especiais, considerando a realidade das instituições públicas de ensino e das políticas sociais nacionais.

Assim, tendo em vista as dificuldades elencadas, e a importância do funcio-namento independente e simultâneo dos aspectos afetivos e cognitivos do pensa-mento do sujeito que aprende, algumas recomendações para atendimento de Pedro são: Acompanhamento psicopedagógico com oferecimento de atividades que contri-buam para o desenvolvimento das suas habilidades cognitivas (pensar, simbolizar, perceber, criar, analisar etc.) e sociais (comunicação e linguagem), que favoreçam o desenvolvimento da coordenação motora fina e que possibilitem o processo criativo; e atividades que contemplem os aspectos emocionais e afetivos, favorecendo o con-tato com o objeto de conhecimento e alimentando o desejo que leva à aprendizagem. É importante também acompanhamento pedagógico, se possível, individualizado, visando à alfabetização, e um aprofundamento na análise das percepções da criança, a fim de se compreender a sua relação com quem ensina (ensinante).

CONCLUSÃO

A descrição do processo avaliativo da criança com alterações no desenvol-vimento teve como objetivo ilustrar o processo diagnóstico psicopedagógico, seus instrumentos e possibilidades de interpretação de seus resultados. Dessa forma,

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a avaliação psicopedagógica permitiu uma análise abrangente do sujeito e de sua aprendizagem, contribuindo para a compreensão de como Pedro se coloca na cons-trução do conhecimento, subsídios que auxiliarão ao encaminhamento do caso.

A avaliação psicopedagógica deve possibilitar o entendimento das espe-cificidades e necessidades da criança, suas dificuldades, sua relação com o outro e com a aprendizagem, possibilitando delinear ações terapêuticas para atendi-mento dessas necessidades. Limitações e direções futuras apontam para o fato de que o atendimento em grupo não otimiza o processo de avaliação e o próprio de-senvolvimento das crianças, exceto com relação à interação social e comunicação, uma vez que muitas crianças que chegam às clínicas de psicopedagogia podem requerer atenção individualizada para lidar com suas dificuldades.

FONTE: Adaptado de BATISTA, L. S.; GONÇALVES, B.; ANDRADE, M. S. de. Avaliação psicopeda-gógica de criança com alterações no desenvolvimento: relato de experiência. Psicopedagogia, v. 32, ed. 99, 2015. Disponível em: https://bit.ly/3jK85Zn. Acesso em: 29 ago. 2021.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

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CHAMADA

• Pode acontecer do laudo ser construído a partir da avaliação psicopedagógica ou de uma equipe multidisciplinar ou quando o paciente já tem um laudo estabelecido.

• É também fundamental compreender a demanda política dos laudos, pois é por meio deles que políticas públicas podem ser implantadas; é uma maneira de assegurar um atendimento a partir de equipes multidisciplinares e com financiamento do Estado.

• A prática psicopedagógica caminha sempre com o registro das atividades re-alizadas.

• A comunicação entre as partes – psicopedagogo, família, escola e aprendente – deve ser clara e simples, simultaneamente.

• Assim, o papel da família é imprescindível nesse processo, podendo ser eviden-ciado em diferentes momentos, como em entrevistas esporádicas ou periódicas.

• É fulcral que o aprendente tenha um autoconceito e uma estima positiva em relação a si e a sua aprendizagem, reconhecendo suas ações e dando voz a seus desejos e vontades.

• A devolutiva é a comunicação do feedback, realizada ao final da avaliação, em que o psicopedagogo comunica aos pais os resultados obtidos ao longo do diagnóstico.

• A psicopedagogia é essencialmente interdisciplinar, tanto pelo objeto pelo qual se debruça – a aprendizagem – quanto pela prática que sempre estará em relação.

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1 O registro faz parte da prática do psicopedagogo. Cite dois objetivos quan-to a se registrar sistematicamente as sessões com o paciente.

2 Nos atendimentos psicopedagógicos, as relações do profissional com a fa-mília são essenciais para êxito do progresso do paciente. Sobre a relação e a comunicação com a família, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A família precisa ter conhecimento do funcionamento e cronograma da escola para se organizar e auxiliar o filho.

b) ( ) A escola está isenta de passar informações sobre o ano letivo para a família.

c) ( ) A responsabilidade pelo cumprimento das atividades é exclusivamente do estudante.

d) ( ) A família deve participar de todas as sessões de avaliação e intervenção.

3 A relação com a família é considerada um ponto fulcral para o bom desen-volvimento do estudante no processo de aprendizagem. Por isso, há alguns pontos de atenção nas sessões conjuntas. Com base nisso, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) O paciente deve ser previamente avisado que a família participará da sessão.( ) A sessão conjunta deve ter um objetivo claro para todas as partes envolvidas.( ) Todos os envolvidos precisam ter clareza das suas responsabilidades.( ) O paciente participa obrigatoriamente das sessões, não sendo uma ques-

tão discutível.( ) Os compromissos firmados são exclusivamente com a família e com a escola.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – V – F – F – V.b) ( ) V – V – V – F – F.c) ( ) F – V – V – F – V.d) ( ) V – V – V – V – F.

4 A devolutiva das avaliações é uma etapa importante do processo diagnós-tico e pode gerar ansiedade tanto no profissional quanto na família. Sobre a devolutiva, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Na devolutiva, fala-se, em termos genéricos e superficiais, sobre os re-sultados obtidos ao longo da avaliação.

b) ( ) Essas devolutivas são fundamentalmente sessões arbitrárias e isoladas do contexto de atendimento.

AUTOATIVIDADE

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c) ( ) Nessa sessão, o profissional sugere algumas recomendações e indica-ções para a família.

d) ( ) Caso o paciente seja indicado para outro profissional, a família é res-ponsável pela busca e contato.

5 O conhecimento do Código de Ética da Psicopedagogia é importante para que o profissional tenha clareza das arenas possíveis e viáveis de sua atua-ção. Assim, também a área fica assegurada de um compromisso com uma práxis ética. Aborde sobre a importância do Art. 1º do Código de Ética de Psicopedagogia para a prática profissional.

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