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PROFESSORES, DESENCANTO COM A PROFISSO E ABANDONO DO MAGISTRIOFLAVINS REBOLO FLAVINS REBOLO LAPODoutoranda da Faculdade de Educao da USP e professora da Universidade de Sorocaba [email protected]

BELMIRA OLIVEIRA BUENOProfessora Associada da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo [email protected]

RESUMOAo examinar a questo do abandono do magistrio pblico na rede de ensino do Estado de So Paulo, este artigo teve como principal objetivo compreender de que modo esse processo tecido ao longo da vida e da experincia profissional dos professores. O estudo focalizou o perodo de 1990-1995 e se baseou em dados quantitativos, obtidos na Secretaria Estadual de Educao, a partir dos quais verificou-se, no interregno, um aumento da ordem de 300% nos pedidos de exonerao do magistrio, e em dados qualitativos, obtidos de um questionrio, enviado a 158 ex-professores da rede pblica, e de 16 entrevistas sobre histrias de vida profissional. As anlises evidenciam que, alm dos baixos salrios, as precrias situaes, a insatisfao no trabalho e o desprestgio profissional esto entre os fatores que mais contribuem para que os professores deixem a profisso docente. Mostram tambm que esse processo acontece lentamente, por meio de uma srie de mecanismos pessoais e institucionais de que os docentes fazem uso, at que ocorra o abandono definitivo. PROFESSORES EXPERINCIA PROFISSIONAL CARREIRA ESCOLAR HISTRIA DE VIDA

ABSTRACTTEACHERS, DISENCHANTMENT IN THE PROFESSION AND QUITTING THE PUBLIC SCHOOLS. The goal of this study was to investigate why teachers give up their work at the State of So Paulo (Brazil) public schools, understanding how this process is woven throughout their lives and professional experience. The study focused on the period between 1990 and 1995, and was based on two types of data: quantitative data, collected from the State Secretariat for Education revealed an increasing of 300%, approximately, in teachers resignations in that period. Qualitative data were obtained through answers given to 158 questionnaire, besides 16 interviews on teachers professional life histories. The analyses showed that, apart from low wages, bad working conditions,

Algumas idias bsicas contidas neste texto foram publicadas em verso resumida na revista Educao em Debate, v.2, n.41, p.30-42, 2001, sob o ttulo Professores retirantes: um estudo sobre o abandono do magistrio.

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professional debasement, and dissatisfaction at work were among the factors that contributed most to teachers disenchantment in their profession. They also showed that quitting does not happen suddenly. The teacher goes through several stages, in general very difficult and conflicting, before coming to the decision of giving up teaching at the public school or the teaching profession itself. TEACHERS PROFESSIONAL EXPERIENCE TEACHING CAREER HISTORIES OF LIVES

Os grandes desafios enfrentados pelo sistema de ensino pblico no Brasil nos ltimos trinta anos levaram um grande nmero de pesquisadores a se dedicar ao estudo do fracasso escolar, focalizando especialmente o aluno e os entraves ao seu rendimento. Instigados a obter melhor compreenso dos fatores extra e intraescolares que determinam o fracasso escolar, muitos preocuparam-se no apenas em saber por que os alunos so reprovados ou deixam a escola, mas tambm em propor sadas que pudessem inibir os altos ndices de evaso, mais tarde equacionados como de excluso, devido ao peso que a instituio escolar tem nesse processo. Esse interesse explica, pelo menos em parte, por que os professores e a temtica de sua formao levaram um tempo maior para ocupar espaos mais privilegiados, tanto no mbito das polticas educacionais como no das agendas de pesquisa. Essa tendncia, entretanto, deve ser tambm entendida como reflexo de um movimento mais amplo que vem ocorrendo em outros pases desde os anos 1980, quando as prticas de ensino comearam a receber maior ateno e foram complementadas, progressivamente, por um olhar sobre a vida e a pessoa do professor (Nvoa, 1994). Tais perspectivas de investigao tm contribudo para fazer aflorar a questo da insatisfao dos professores no magistrio, um tema que tem sido objeto de estudo cada vez mais freqente nos ltimos anos, tanto no Brasil como em outros contextos. Quer seja entendido como um dos sintomas do chamado mal-estar docente, conforme expresso cunhada pelo pesquisador espanhol Jos Manuel Esteve (1992), quer como manifestao das vrias formas de esgotamento que afetam os professores, comumente enfeixadas sob a denominao de burnout, os estudiosos so concordes em reconhecer que esse fenmeno desencadeado por uma multiplicidade de fatores e alimentado tanto pela escola como pela comunidade e a sociedade em geral (LeCompte, Dworkin, 1991). Na medida que esse fenmeno de propores cada vez mais abrangentes diz respeito e afeta aquilo que crucial ao exerccio da profisso do magistrio, ou seja, o envolvimento com o trabalho; a crena na importncia do ensino para as futuras geraes; a percepo de reconhecimento e valorizao da atividade docente por parte dos alunos, dos

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pais e da sociedade; a garantia de condies satisfatrias de trabalho e de salrio condizente com o esforo; enfim, tudo o que se refere ao bem-estar do professor as pesquisas tm procurado apreender e descrever esse fenmeno, chamando ateno para as conseqncias que dele decorrem no s para os professores, como para os alunos e a sociedade. Desse modo, temos visto multiplicarem-se os estudos que focalizam a vida e o trabalho de professores e, tambm, outros voltados aos processos e prticas da formao continuada. Sem perder de vista tais preocupaes, este texto adota uma perspectiva um tanto diversa, de vez que tem como objeto de estudo o abandono da profisso docente, ou do magistrio pblico, por parte de professores que trabalharam na rede estadual, em So Paulo. Ao centralizar-se na anlise das histrias de vida profissional de ex-professores, o artigo busca levar em conta os fatores de ordem externa que so determinantes para o abandono, bem como as disposies internas dos indivduos, de modo a compreender como os fatos e acontecimentos so percebidos e vivenciados pelos professores e como se combinam para desencadear esse processo. O abandono, como ser visto, no acontece repentinamente. Vrias etapas, em geral muito difceis e conflituosas, so vividas pelo professor at que ele tome a deciso de deixar definitivamente a escola pblica ou a prpria profisso docente. Em 1995, quando a pesquisa teve incio, havia a suspeita de que a cada ano um nmero crescente de professores deixaria a rede pblica de ensino, no Estado de So Paulo. Essa suspeita baseava-se em informaes veiculadas pela mdia e, tambm, nas observaes no sistemticas que fazamos nas escolas em que trabalhvamos (uma de ns como pesquisadora e a outra como docente). Em vista disso, a investigao foi realizada com o objetivo de, primeiramente, certificar-se da presena e das propores desse fenmeno e, depois, de conhec-lo mais de perto a partir da vivncia dos prprios professores. A primeira parte da pesquisa incluiu, assim, um levantamento realizado na Secretaria de Estado da Educao sobre a exonerao de professores efetivos nos cinco anos precedentes ao incio da investigao (1990-1995). A segunda parte envolveu a aplicao de um questionrio a um grupo de 158 ex-professores da Delegacia de Ensino (DE) que apresentou o maior ndice de evaso e, a seguir, a realizao de entrevistas com 16 deles com vistas a colher narrativas sobre histrias de vida profissional 1.

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Os dados aqui apresentados constam da dissertao de mestrado de Flavins Rebolo Lapo (1999).

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PANORAMA DA EVASO DOCENTE NO ESTADO DE SO PAULO A rede estadual de ensino de So Paulo contava, em 1995, com 230 mil professores, dos quais 78.135 eram professores efetivos. Este nmero representava apenas 34% do total de professores da rede, uma vez que os 66% restantes eram docentes contratados a ttulo precrio, por tempo determinado. Por esse motivo, optou-se por trabalhar apenas com os professores efetivos, por serem eles docentes habilitados e terem ingressado por concurso pblico, o que de certa forma indicativo de seu interesse e determinao em se tornarem professores da rede estadual. Em relao aos professores no efetivos (admitidos em carter temporrio ACTs), por terem um contrato de trabalho por tempo determinado, fica difcil saber se no esto mais na rede estadual por vontade prpria ou porque no conseguiram aulas. Outro aspecto considerado ao se optar pelo trabalho com os efetivos foi a estabilidade no emprego, conferida pelo concurso de ingresso, por supor-se que a garantia de no ser demitido, seno por processo administrativo, em um pas onde o ndice de desemprego muito grande, poderia ser considerada fator decisivo para que o professor no deixasse o emprego. Entretanto, como ser visto, no o que sempre acontece. Os dados obtidos permitiram constatar que de 1990 a 1995 houve um aumento da ordem de 300% nos pedidos de exonerao no magistrio pblico, em So Paulo, com um crescimento mdio anual de 43%, portanto. Quando esses dados foram agrupados por regio (Interior, Grande So Paulo e So Paulo-Capital) ou por categoria docente (professor I, II ou III) 2 os dados apresentaram ndices bastante discrepantes, tal como pode-se observar nos quadros abaixo. O que fica flagrante nesses dados que So Paulo (capital) foi a regio que apresentou os ndices mais elevados de exonerao, com uma mdia anual de 88 pedidos por delegacia de ensino DE e um total de 1.850 nos cinco anos em estudo. Isto representa quase o dobro da mdia das exoneraes nas delegacias da regio metropolitana de So Paulo (que inclui 38 municpios) e mais que o triplo da mdia dos pedidos que ocorreram nas delegacias do interior do estado. Consta-

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Essa nomenclatuta foi alterada a partir de 1996 no Estado de So Paulo. Professor I (P I) designava o docente habilitado para ensinar apenas nas quatro primeiras sries do ensino de 1 grau; Professor II (P II), o docente habilitado para ensinar nas quatro ltimas sries do ensino de 1 grau; e Professor III (P III), aquele que podia ensinar das quatro ltimas sries do 1 grau at o 2 grau. Mantivemos no texto estas denominaes pelo fato de serem as vigentes poca do estudo.

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tou-se ainda que, na capital, a 14a DE foi a que teve o maior nmero de pedidos, com um total de 158 exoneraes entre 1990 e 1995. Esse nmero representa quase o dobro da mdia de exoneraes por DE da capital no mesmo perodo, que foi de 88, como visto.QUADRO QUADRO 1 EFETIVOS CATEGORIA DISTRIBUIO DOS PROFESSORES EFETIVOS POR CATEGORIA ESTADU ADUAL PAULO REDE ESTADUAL DE SO PAULO (1990-1995) Professor I Efetivos Exonerados 47.466* 2.308 Professor II 63* Professor III 33.370* 3.082

* Nmero mdio ao longo do perodo.

QUADRO QUADRO 2 EFETIVOS DISTRIBUIO DOS PROFESSORES EFETIVOS POR REGIO ESTADU ADUAL PAULO REDE ESTADUAL DE SO PAULO (1990-1995)N. de docentes efetivos* N. de escolas* N. de DEs Mdia de exoneraes por DE* Total Total de exoneraes no perodo

Interior Paulo Grande So Paulo Capital Total

46.245 14.260 19.494 79.999

4.378 1.324 980 6.682

102 22 21 145

24 48 88

2.467 1.073 1.850 5.390

* Nmeros mdios ao longo do perodo, pois o nmero de escolas e de docentes efetivos s vezes aumentou, outras vezes decresceu de um ano para outro.

O quadro 1 mostra os dados reagrupados de acordo com o nvel funcional dos professores. O nmero de P II efetivos, nesse perodo, era muito pequeno quando comparado ao dos P I e P III. Em 1990 havia apenas 126 P II efetivos em toda a rede estadual e, em 1995, apenas 20; respectivamente, menos de 0,2% e menos de 0,03% do total de professores nesses anos. Por essa razo, e pelo fato de a Secretaria da Educao ter anunciado que no realizar mais concursos pblicos para efetivao desses professores, decidiu-se por no consider-los neste estudo. Em relao aos P I, os dados evidenciaram que esta categoria foi a que apresentou o maior nmero de professores efetivos na rede estadual de ensino, chegando a 64% do total de professores em 1993. Curiosamente, nesta categoria

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que foram encontrados os mais baixos ndices de exonerao. Considerando-se que o professor primrio (como ainda freqentemente chamado o P I) ocupa o nvel mais baixo na hierarquia do sistema educacional, por ser a categoria que percebe os menores salrios, esse dado conduz a uma indagao inevitvel: o que mantm estes professores trabalhando na rede estadual de ensino? Seria pelo fato de trabalharem com uma nica classe, ou no mximo com duas, geralmente em uma mesma escola, e, assim, criarem vnculos mais fortes com os alunos, portanto mais difceis de serem rompidos? Ou seria pela falta de um diploma de nvel superior e, por isso, terem menos chances profissionais no mercado de trabalho? Essas questes, embora instigantes e mesmo que indicativas de um lado reverso do abandono, no foram enfrentadas neste trabalho por duas razes: primeiro porque isso nos distanciaria de nosso objeto; segundo, porque, em vista do prprio objeto, foram colhidos depoimentos apenas de professores que abandonaram o magistrio pblico e que pertenciam categoria que apresentou o maior ndice de exoneraes, ou seja, os Professores III. Desse modo, na segunda etapa, a pesquisa trabalhou com este grupo de professores e com a 14a Delegacia de Ensino da capital. PERFIL DE UM GRUPO DE EX-PROFESSORES O primeiro contato com os 158 ex-professores desse grupo foi feito mediante um questionrio enviado por correio, com o qual se buscava obter alguns dados preliminares: idade, tempo de servio na rede estadual de ensino, motivo(s) para a exonerao e a atual profisso. Com esse questionrio foi enviada uma carta que, de maneira breve, explicava os objetivos da pesquisa. Desse total, retornaram 29 questionrios preenchidos, cujos dados permitiram traar um perfil desses exprofessores. Primeiramente, confirmaram que o magistrio um espao de trabalho predominantemente feminino, de vez que dentre esses 29 ex-professores, 22 so mulheres. Alm disto, indicam que uma parcela das mulheres est deixando a profisso docente ou, pelo menos, o ensino mdio pblico, com a ambio de trabalhar no ensino superior ou, qui, em outras profisses, j que, no tocante escolaridade, a maioria do grupo (22) continuou os estudos em nvel de ps-graduao. Ao pedirem exonerao, 11 possuam curso de especializao; 7, o mestrado; e 4, o doutorado. O que se percebe, comparando a data em que esses professores saram da rede pblica com a data de trmino dos cursos de ps-graduao, que o pedido de exonerao acontece prximo do final desses cursos ou logo aps a sua concluso. Nesses casos, os motivos dos pedidos de exonerao so dois: o

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diploma de ps-graduao abre novas perspectivas e amplia as oportunidades no mercado de trabalho; a pequena valorizao, na carreira do magistrio pblico, dos professores que possuem a ps-graduao. Ser portador do ttulo de mestre, por exemplo, dava direito mesma promoo recebida pelo professor que, num perodo de 10 anos, teve, no mximo, 20 faltas, mesmo que no tivesse realizado nenhum curso de aperfeioamento ou especializao. Para a maioria dos professores desse grupo 20, dentre os 29 o incio na profisso se deu quando ainda eram estudantes, sendo que 14 iniciaram em escolas da rede pblica estadual e 6 em escolas da rede privada. Apenas 9 dos 29 professores que responderam ao questionrio se iniciaram na profisso quando j estavam formados em nvel superior. Esse fato pode ser visto como um dos aspectos que auxiliam na desvalorizao do professor como profissional. Segundo Eliot Freidson (1998), uma das condies para o estabelecimento e reconhecimento social de uma ocupao como profisso a exposio educao superior e ao conhecimento formal abstrato que ela transmite e, ainda, que essa educao seja prrequisito para a obteno de posies especficas no mercado de trabalho, excluindo aqueles que no possuem tal qualificao. O ingresso na rede estadual, para 25 desses 29 ex-professores foi como ACT, alguns permanecendo at dez anos na rede pblica dentro desse regime de trabalho, para s depois serem efetivados por meio de concurso pblico de provas e ttulos. O professor ACT, como a prpria expresso sugere, admitido, geralmente, para substituir um professor efetivo que se encontra afastado do servio, o que leva a supor que deveriam ser em nmero inferior aos efetivos. No entanto, no o que se verifica e esse fato talvez seja, entre outros, um dos responsveis pela alta rotatividade de professores nas escolas da rede pblica, pois todo final de ano letivo tais professores so desligados do quadro e s voltam no ano seguinte se ainda houver a vaga. Essa rotatividade gera uma falta de vnculo do professor com a escola, o que pode trazer graves conseqncias para um to necessrio e almejado ensino de qualidade. Essa rotatividade fica clara no grupo estudado, para o qual o tempo mdio de servio na rede pblica foi de oito anos. Dentre os ex-professores, nove dizem ter perdido a conta do nmero de escolas em que trabalharam; dez passaram por mais de oito escolas; e os demais (dez) passaram por uma mdia de quatro escolas. Outro aspecto evidenciado nos questionrios o tempo que esses professores permaneceram na rede pblica. A quase totalidade do grupo s pediu a exonerao aps, no mnimo, cinco anos de exerccio profissional, sendo que a maioria s o fez aps dez anos de trabalho na rede pblica. Estes dados diferem bastante das concluses a que chegou Saul Neves de Jesus em sua tese de doutorado:

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Relativamente etapa de carreira em que ocorre o abandono da profisso docente com maior freqncia, considera-se que o perodo crtico so os dois primeiros anos de prtica profissional, de acordo com os resultados obtidos em diversas investigaes (Sweeney, 1991). Por exemplo, Mark e Anderson (1985) verificaram que pelo menos um tero dos professores abandonam a profisso docente nos primeiros quatro anos de prtica profissional. Da mesma forma, Schlechty e Vance (1983) estimaram que cerca de um tero dos professores deixam o ensino durante os primeiros cinco anos e que 15% o fazem durante o primeiro ano de experincia profissional. (1995, p.51)

Assim, para guardar as devidas propores, importante considerar o tamanho reduzido do grupo de ex-professores efetivos com o qual se trabalhou, se comparado aos ACTs que compunham, poca, a maior parte do quadro de docentes da rede estadual de ensino, e sobre os quais difcil saber se deixaram ou no a rede pblica ou o magistrio, por que o fizeram e aps quanto tempo de atividade profissional. Alm disso, h falta de outros estudos sobre esta questo que, a propsito do Estado de So Paulo, pudessem oferecer mais elementos e dar maior coeso aos dados aqui apresentados. A esse grupo de professores foi perguntado, tambm, por que deixaram a rede estadual de ensino. Os motivos alegados para o pedido de exonerao foram os seguintes:QUADRO QUADRO 3 MOTIVOS PARA EXONERAO MOTIVOS ALEGADOS PARA A EXONERAO Motivos Baixa remunerao + pssimas condies de trabalho Baixa remunerao + oportunidade de emprego mais rentvel Baixa remunerao Necessidade de tempo livre para concluir a ps-graduao Baixa remunerao + falta de perspectiva de crescimento profissional Falta de perspectiva quanto a mudanas na rede estadual Nascimento de filhos Baixa remunerao + desencanto com a profisso Baixa remunerao + mudana de cidade Mudana de cidade Falta de condies dignas de trabalho Insatisfao com a estrutura do sistema educacional Problemas de sade Trabalhar em negcio prprio N. de professores 5 4 3 3 2 2 2 2 1 1 1 1 1 1

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Pelo quadro 13 percebe-se que a baixa remunerao citada por 17 dos 29 professores que responderam ao questionrio como motivo para a exonerao, porm, apenas sete restringiram-se a esse aspecto, trs mencionando somente a baixa remunerao e outros quatro acrescentando que deixaram a rede pela oportunidade de um emprego mais rentvel. O que fica bastante evidente que a questo salarial, embora tenha aparecido como o motivo mais referido, veio, na maioria dos casos, acompanhada de outros motivos, relacionados sobretudo falta de perspectivas de crescimento profissional e s pssimas condies de trabalho, aspectos claramente decorrentes do modo como o estado gere a educao e o ensino pblico. Alm disso, cabe observar que quatro professores alegaram apenas motivos ligados estrutura do sistema de ensino, enquanto os demais, em nmero de oito, referiram-se unicamente a razes de foro pessoal. Estes que no mencionam a questo salarial totalizam, portanto, 12 docentes de um total de 29. Com isto, o que possvel depreender do quadro que a questo salarial, ainda que se mostre como preponderante, no um fator que, isolado, tenha desencadeado a sada da rede pblica, pelo menos na maioria dos casos. Os depoimentos e as histrias de vida colhidas iro elucidar melhor como tais processos foram tecidos. COLHENDO HISTRIAS DE VIDA PROFISSIONAL A questo da evaso docente, tal como proposta e formulada neste trabalho, indicou desde o incio da investigao que um estudo com histrias de vida seria uma forma de apreender melhor os processos que levam determinados indivduos a deixarem o magistrio ou a rede pblica de ensino. As histrias de vida se constituem em relatos complexos, nos quais se entrelaam a origem social, os valores, interesses e opinies, os relacionamentos interpessoais, enfim, tudo o que, de uma forma ou de outra, contribui para a constituio do indivduo e o seu modo singular de agir. Admitiu-se que, ao narrarem seus percursos de formao e de vida profissional, os ex-professores estariam fornecendo elementos importantes e fundamentais para se compreender de que modo determinados fatos, situaes, experincias e sentimentos se enredaram nas tramas de suas vidas e se combinaram a ponto de produzirem um tal desfecho, qual seja, a retirada da profisso ou da escola pblica3.3 Por motivos de espao, foram suprimidas aqui maiores consideraes a respeito do professor e suas relaes com o trabalho docente, bem como sobre a pesquisa com histrias de vida de professores. Remetemos o leitor a outros trabalhos, nos quais esses temas foram tratados: Lapo (1999, parte I), e Bueno (1996; 2002).

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Assim, os dados que se buscavam prioritariamente, quais sejam, os percursos profissionais desses professores, foram coletados por meio de entrevistas. Por ter como objetivo colher os relatos de histria de vida profissional, o tipo de entrevista que se mostrou mais adequada foi a entrevista aberta, situao em que o professor poderia discorrer mais livremente sobre sua vida profissional, construindo, reconstruindo ou desconstruindo suas narrativas. Mesmo tendo sido elaborado um roteiro com alguns pontos considerados importantes, para o caso de se fazer necessrio argir ou instigar o professor a falar mais sobre determinados fatos ou acontecimentos e, mesmo considerando que a questo central da entrevista j tivesse sido informada, os professores puderam direcionar livremente o relato, determinando o fio condutor, as relaes entre os acontecimentos da vida profissional e privada etc., bem como o tempo que dispensaram s suas narrativas. Como j dito, foram entrevistados 16 ex-professores, cujas histrias permitiram o desvelamento do processo de abandono. Examinando, a partir dos relatos, desde os determinantes que atuaram na escolha profissional desse grupo de professores, as dificuldades enfrentadas nos primeiros tempos de profisso, a busca de estabilidade por meio da realizao do concurso pblico e os fatores de satisfao e insatisfao com o magistrio durante o percurso profissional; e, ainda, examinando de que forma esses fatores se combinam com as representaes sobre o trabalho docente e as aspiraes, necessidades e interesses dos professores, constatou-se que o abandono da rede estadual de ensino e/ou da profisso docente no se constitui em um ato isolado, apenas dependente da situao profissional vivida no momento da exonerao. Tambm no se configura como um ato sem relao com a vida pessoal, com a histria passada e com o projeto de futuro de cada professor. Na verdade, trata-se de um conjunto de experincias e expectativas no satisfeitas que, ao longo dos anos, vo se amalgamando at chegarem ao desfecho, nem sempre desejado, do abandono da rede pblica ou da profisso docente. A CONSTITUIO DO PROCESSO DE ABANDONO Do mesmo modo que o se tornar professor um processo contnuo, pelo qual o indivduo se constri como professor, tambm o deixar de ser professor mostrou-se, com base nas histrias dos ex-professores, como um processo que tecido ao longo do percurso profissional. No entanto, difcil saber em que momento esse processo se inicia. Alguns autores, ao investigarem temas relacionados s representaes de professores sobre a profisso docente e escolha do magis-

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trio, argumentam que o percurso que conduz certos indivduos a esta profisso tem razes em suas histrias mais remotas de escolarizao e, at mesmo, no perodo que antecede a entrada na escola (Bueno, 1996; Catani, Bueno, Sousa, 2000). O abandono, neste caso, no significa apenas simples renncia ou desistncia de algo, mas o desfecho de um processo para o qual concorrem insatisfaes, fadigas, descuidos e desprezos com o objeto abandonado; significa o cancelamento das obrigaes assumidas com a instituio escolar, quando o professor pede exonerao do cargo ou, de maneira mais abrangente, o cancelamento das obrigaes profissionais, quando deixa de ser professor. Esse cancelamento, visto como a ruptura total dos vnculos necessrios ao desempenho do trabalho, pode ser decorrente da ausncia parcial e/ou do enfraquecimento anterior desses vnculos. O trabalho, para que seja realizado satisfatoriamente e para que cumpra seu papel equilibrador, requer o estabelecimento de vnculos especficos com determinadas classes de objetos: instituies, pessoas, instrumentos, organizaes. Esses vnculos, no caso deste estudo, so entendidos como o conjunto de relaes que o professor estabelece com a escola e com o trabalho docente, e que depende da combinao das caractersticas pessoais do professor, das formas de organizao e funcionamento da escola, do grupo e do contexto social em que ambos (professor e escola) esto inseridos. Quando a organizao do trabalho docente e a qualidade das relaes estabelecidas dentro do grupo (incluindo-se a o resultado obtido com o trabalho em sala de aula) no correspondem aos valores e s expectativas do professor, este se v diante da dificuldade de estabelecer ou manter a totalidade de vnculos necessrios ao desempenho de suas atividades no magistrio. Assim, podese dizer que o abandono conseqncia da ausncia parcial ou do relaxamento dos vnculos, quando o confronto da realidade vivida com a realidade idealizada no condiz com as expectativas do professor, quando as diferenas entre essas duas realidades no so passveis de serem conciliadas, impedindo as adaptaes necessrias e provocando frustraes e desencantos que levam rejeio da instituio e/ ou da profisso. O estabelecimento desse conjunto de relaes exige a mobilizao, por parte da pessoa do professor, de todas as suas foras. Quando h a percepo de que essa mobilizao no ser compensadora, no haver empenho em realiz-la, isto , o professor no reconhece como vlida a relao entre o dispndio de energia necessrio e o resultado que ser obtido. Essa percepo, ou a avaliao que o indivduo faz da situao e que determinar o estabelecimento ou no desses vnculos, dependente dos vnculos passados e dos vnculos potenciais, bem como das condies presentes.

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Nesse sentido, um primeiro aspecto a ser considerado o modo pelo qual a profisso docente foi escolhida. No caso deste estudo, h que se ressaltar que nenhum dos docentes cujos percursos foram analisados queria realmente ser professor. Ser professor era a escolha possvel no incio da vida profissional. Tornar-se professor aparece, na maioria dos relatos, como a alternativa possvel e exeqvel do sonhar-se mdico(a), advogada(a), arquiteto(a), veterinrio(a) etc. No entanto, mesmo no sendo a ocupao sonhada pelos professores, aps o incio na profisso, principalmente durante os primeiros anos, a maior parte esforou-se e empenhou-se em estabelecer esses vnculos. Ou seja, houve um empenho em realizar o trabalho da melhor forma possvel, em adaptar-se ao novo papel e em encontrar satisfao e auto-realizao no trabalho docente. Segundo Christophe Dejours (1991), executar uma tarefa sem investimento material ou afetivo exige a produo de esforo e de vontade, em outras circunstncias suportadas pelo jogo da motivao e do desejo. A motivao e o desejo, nesse caso, so representados pelos aspectos positivos encontrados pelos professores no incio da carreira. Parece ter havido um encantamento quando da entrada na profisso, com os aspectos sociais e econmicos que esse incio representou; uma conquista, e o seu sabor pareceu ter colocado sombra os problemas e as dificuldades. Mesmo no caso de um professor que afirma que no esperava acabar na profisso [...], que acreditava que aquilo era uma coisa passageira, houve o estabelecimento de vnculos suficientes para mant-lo exercendo a profisso por 13 anos em escolas da rede estadual. Os vnculos existiram, e mesmo que no representem a totalidade dos vnculos necessrios, parece que foram suficientes para evitar o abandono nos primeiros tempos da carreira. Porm, a manuteno e o fortalecimento desses vnculos existentes dependem do tipo de respostas que o professor recebe da escola e da sociedade e que, se no so satisfatrias, se no correspondem s suas expectativas, acabam por enfraquec-los at a ruptura definitiva. Segundo Bohoslavsky (1977), quando o indivduo pensa em uma profisso, ele pensa em algo que se relaciona com a realizao pessoal, a felicidade, a alegria de viver, etc., como quer que isto seja entendido, e quando o envolvimento com esse algo deixa de resultar na realizao pessoal, a tendncia ser, certamente, diminuir o envolvimento, diminuir os esforos. Assim, pode-se afirmar, com base nos depoimentos obtidos, que o processo de abandono ocorreu, principalmente para os professores em estudo, por meio do enfraquecimento ou relaxamento dos vnculos existentes. Esse enfraquecimento ou relaxamento dos vnculos conseqncia da combinao de vrios fatores geradores de dificuldades e insatisfaes que se foram

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acumulando durante o percurso profissional. Analisando em particular os professores deste estudo, percebe-se pelos seus depoimentos que h um mal-estar 4 rondando esses profissionais. Por se encontrarem inseridos em uma sociedade que se transforma muito rapidamente e que exige constantes mudanas e adaptaes, eles se sentem insatisfeitos ao no conseguirem dar conta das exigncias que lhes so feitas no campo profissional. As exigncias nem sempre so claramente explicitadas e entendidas pelos professores, mas so sentidas mediante a percepo de que as coisas na escola no esto indo bem, de que por mais que se esforcem no conseguem atingir um nvel de excelncia exigido pela sociedade a ponto de reverter a situao de precariedade profissional em que se encontram. O contedo dos depoimentos permitiu constatar a presena de alguns aspectos relacionados ao contexto social que se mostraram relevantes para a insatisfao com o trabalho docente. Primeiramente, por gerarem uma sobrecarga de trabalho; depois, a falta de apoio dos pais dos alunos, um sentimento de inutilidade em relao ao trabalho que realizam, a concorrncia com outros meios de transmisso de informao e cultura e, tambm, claro, os baixos salrios. Outro aspecto enfatizado pelos professores como fonte de insatisfao com o magistrio o modo pelo qual est organizado o sistema educacional e, mais especificamente, a escola como instituio pblica de prestao de servios e como local de trabalho. Esta organizao influi diretamente no desempenho e no grau de satisfao do professor com o trabalho docente. Alguns referem-se impossibilidade de participar das decises sobre o rumo do ensino, ao excesso de burocracia e falta de apoio e de reconhecimento do trabalho por parte das instncias superiores do sistema educacional, como fatores geradores de desmotivao e insatisfao com o trabalho. Nos depoimentos evidenciam-se, ainda, vrios aspectos provocadores de insatisfao no trabalho, que podem ser identificados como decorrentes da atual organizao do sistema de ensino. So eles: a burocracia institucional e o controle do trabalho do professor, a escassez de recursos materiais, a falta de apoio tcnico-pedaggico e a falta de incentivo ao aprimoramento profissional. H tambm um outro fator ao qual os professores deram nfase: a qualidade das relaes interpessoais no ambiente de trabalho. O trabalho docente se constitui em uma atividade centrada nas relaes interpessoais e nas dinmicas relacionais

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Esta expresso tem sido usada largamente na literatura dos ltimos anos que versa sobre os professores e o magistrio, especialmente aps a publicao, em 1986, da obra de Jos Manuel Esteve, O mal-estar docente, e de sua traduo para o portugus, em 1992. A pesquisa que deu origem a este texto baseia-se em grande parte nas anlises desenvolvidas por esse autor.

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estabelecidas no ambiente escolar, que so determinantes do sucesso do ensino e da qualidade de vida do professor. Nesse sentido, pode-se dizer que o relacionamento com diretores, com os demais professores e com os alunos um dos principais fatores de satisfao ou insatisfao no trabalho e, tambm, o grande responsvel pelo envolvimento nas atividades profissionais. Em grande medida, essas relaes so determinadas pelo tipo da estrutura organizacional e tambm pelas representaes e expectativas das pessoas envolvidas. Se essas relaes no condizem com as expectativas e representaes dos professores, elas podem afetar o grau de envolvimento com o trabalho e a prpria realizao profissional. Relaes que no priorizam a sinceridade, que no propiciam a expresso de pontos de vista divergentes, que no estimulam a solidariedade e o apoio mtuo, que no valorizam o trabalho realizado, que so baseadas em estruturas hierrquicas rgidas etc., geram sentimentos de raiva e medo, de competitividade exacerbada, de baixa auto-estima, de frustrao etc., resultando em um grande mal-estar. Tentando livrar-se desse mal-estar, os professores assumem posturas defensivas que podem ir desde comportamentos agressivos, queixas constantes, crticas excessivas etc., at o distanciamento do ambiente, restringindo o convvio com os alunos, colegas e diretores ao mnimo possvel. Todos esses fatores levam percepo de que o trabalho que est sendo realizado no tem relao com as suas necessidades, expectativas e interesses, ou seja, o trabalho docente no corresponde s representaes que o professor tem e nem est sendo suficiente para concretizar o seu projeto de futuro. A no correspondncia entre o real e o idealizado e entre o real e o projetado dificultam a produo de vontade e esforo para manter os vnculos existentes. medida que a percepo dessa no correspondncia se amplia, o enfraquecimento dos vnculos com a instituio e com o trabalho aumenta. um processo cumulativo que, ao desenvolver-se, gera diferentes tipos de abandono antes do abandono definitivo. AS DIFERENTES FORMAS DE ABANDONAR A ruptura total e definitiva dos vnculos estabelecidos com a escola e com o trabalho docente, mesmo quando estes j esto enfraquecidos pelas dificuldades e insatisfaes, muito difcil de ser realizada, como se pde depreender das narrativas dos professores. A dificuldade de abandonar definitivamente o trabalho se deve a vrios fatores. Um deles o fato de que o estabelecimento desses vnculos custou esforos por parte da pessoa, e ter de afastar-se provocar, alm da frustrao, a sensao de fracasso, de ter sido malsucedida em seus esforos. Outro fator so as

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perdas que o abandono implica. Tudo o que foi conquistado ser perdido: o cargo, o trabalho, as pessoas. Sero perdidos tambm os sonhos e ideais relacionados ao ser professor, uma parte da identidade e uma parte da vida, tal como se nota no depoimento de dois dos professores, um homem e uma mulher:Apesar de tudo eu pedi exonerao com tristeza, porque parece que eu deixei vinte anos da minha vida para trs... como se eu no tivesse feito nada... (Slvio, 50a,13rp)5 Eu senti muito.... foi doloroso. Afinal de contas, um concurso pblico, foi uma conquista minha. Poucas pessoas conseguem passar na classificao que eu passei... Foi uma conquista, e abrir mo assim... frustrante... (Ana, 32a,1rp)

Renunciar a essas coisas no fcil, mesmo quando elas no se apresentam exatamente como se esperava. Toda perda difcil e se torna ainda mais difcil e dolorosa quando est associada ao confronto com as limitaes e a sensao de impotncia para reverter a situao e manter o que foi conquistado. Nesse sentido, o abandono definitivo ser adiado pelo maior tempo possvel, para que a sensao de fracasso e de perda tambm seja adiada. Outro fator a ser considerado por tambm dificultar a ruptura definitiva a importncia que o dinheiro recebido pelo trabalho tem para a pessoa. Se o professor no consegue outra atividade rentvel, que garanta a sua sobrevivncia e a de sua famlia, ele dificilmente deixar definitivamente o trabalho, por mais insatisfeito que possa estar. A esse propsito, Jos Manuel Esteve (1992) afirma que a atitude mais freqente, dadas as atuais expectativas de emprego, a de manter mais ou menos assumido o desejo de abandonar a profisso docente, porm, sem chegar a um abandono real, recorrendo ento a diferentes mecanismos de evaso dos problemas cotidianos. Esse adiamento do abandono definitivo de um trabalho que no mais fonte de prazer e equilbrio, seja por qual motivo for as atuais expectativas de emprego, o medo de se sentir fracassado, o medo das perdas, ou outros acaba por gerar diferentes mecanismos de evaso, que serviro de vlvulas de escape para as presses a que a pessoa est exposta, uma vez que essas no podem ser eliminadas definitivamente no momento. Nos depoimentos dos professores foi possvel identificar a utilizao, antes da exonerao da rede estadual de ensino e/ou do abandono definitivo da profisso docente, de diversos desses mecanismos de evaso, os

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Todos os nomes de professores, neste texto, so pseudnimos. Os nmeros que se seguem a eles referem-se, respectivamente, idade do professor na data da entrevista e ao total de anos em que trabalhou na rede pblica estadual.

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quais contriburam para que a frustrao e o sofrimento provocados pelos conflitos e insatisfaes a que estavam submetidos fossem minimizados. Tais mecanismos, que se caracterizam por um distanciamento fsico ou psicolgico do trabalho e indicam o enfraquecimento e at mesmo a ruptura de alguns vnculos, so nomeados neste estudo como abandonos temporrios e abandonos especiais. A utilizao de um ou mais desses tipos de abandono vai depender do modo como o indivduo tende a reagir ou ajustar-se aos estados de insatisfao com o trabalho. ABANDONOS TEMPORRIOS Esse tipo de abandono concretiza-se por meio de faltas, licenas curtas e licenas sem vencimentos. O afastamento fsico do ambiente de trabalho permite ao professor equilibrar-se pelo distanciamento das dificuldades geradoras dos conflitos que est vivenciando. H, ainda, a possibilidade de se dedicar a outras atividades (no s de trabalho, mas tambm, em alguns casos, de lazer) que propiciam um ajustamento harmonioso para os conflitos e uma aproximao com seus ideais e projetos. Os motivos para esses abandonos temporrios so vrios, e um deles a no satisfao da necessidade de realizao profissional. Quando o magistrio no promove as condies necessrias para alcan-la, os professores, decididos a procurarem outras formas de satisfazer tal necessidade, afastam-se temporariamente com o objetivo de encontrar outras atividades, ou ter mais tempo para se dedicar a elas, de modo a compensar ou propiciar essa realizao. Um outro emprego, ou cursar uma ps-graduao, pelo fato de melhor corresponder s necessidades e expectativas, torna-se prioridade, como afirmaram alguns professores:...nesse meio tempo eu pedi afastamento por dois anos e falei assim: Bom, eu vou ficar na escola particular... que me pagava um pouco mais e peguei s rede particular. (Fernanda, 36a, 10rp) Eu no tinha quase licenas... Ah! Para me dedicar mais l na escola particular houve uma poca em que eu me afastei daqui, sem vencimentos, pela 220... ou 202... eu nunca sei, aquela lei... que voc tem direito a afastamentos sem vencimentos e sem prejuzo do cargo... (Regina, 55a, 23rp) ...eu pedi licena sem vencimentos, paguei o Inamps, todas as coisas que devia... porque eu tinha inteno de voltar para a rede... Por isso, eu pagava todas as coisas... E ia retomar, mas a pesquisa aumentou, se estendeu muito e no daria tempo... eu fiquei com medo de voltar e no conseguir dar conta de tudo... A eu pedi exonerao... (ngela, 45a, 4rp)

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Bom... em paralelo s aulas eu tenho uma atividade, eu fao tradues de russo. Ento teve uma poca em que eu estava assim com muito trabalho... e eu pedi um afastamento por dois anos... uma poca que ns fizemos cinco livros... (Fabiana, 38a, 11rp)

Outro motivo para os abandonos temporrios a impotncia para resolver os problemas cotidianos encontrados no magistrio, o que leva a um afastamento para esperar que as coisas se resolvam por meio de outras instncias. No entanto, com esses afastamentos temporrios, a tenso e os conflitos provocados pelas dificuldades e pela insatisfao com o trabalho so adiados; no h soluo para os problemas, apenas a fuga deles. Muitas vezes, ao retornar, o professor, que saiu esperando que as coisas melhorassem, encontra a mesma situao, o que acaba por gerar insatisfao ainda maior. Esse tipo de abandono pode se constituir na primeira etapa do processo que leva ao abandono definitivo, pois, alm de oferecer uma soluo apenas temporria para os conflitos, tambm pode provocar, como ocorreu em alguns casos, uma sensao de mal-estar gerada pela percepo de que esses mecanismos so uma forma de prejudicar os outros, principalmente os alunos.Me especializei na Unicamp, fiz o mestrado... e fui perdendo o teso mesmo... de ver o descaso com que a educao tratada... Eu falei: Puxa, para eu fazer isso... Ento eu tirei mais uma licena, tirei duas licenas de dois anos, sem vencimentos, da na minha volta eu falei: Olha, eu quero me exonerar... Eu no poderia continuar do jeito que eu estava, por causa da minha prpria formao profissional... Eu tive uma formao muito boa, eu no aceitava estar prejudicando, inclusive, os alunos... (Eduardo, 50a, 17rp)

Quando a pessoa no consegue adaptar-se a essa situao que vai contra os seus princpios e valores, que contraria o modo pelo qual concebe a sua profisso e a atividade que exerce, a soluo encontrada o abandono definitivo. Mas isto ainda custa a chegar. Nos casos em estudo, antes de tomar a deciso de abandonar de modo definitivo o ensino pblico e/ou a profisso do magistrio, os professores passaram por outras experincias que configuram formas temporrias de abandono. DOIS TIPOS ESPECIAIS DE ABANDONO: REMOO E ACOMODAO O termo remoo est sendo aqui empregado por ser o que utilizado pelos professores e pela Secretaria de Estado da Educao de So Paulo. Essa se-

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cretaria, ao promover o concurso de remoo, oferece aos professores efetivos a possibilidade de se transferirem de escola sem perderem o vnculo de emprego com o estado. Jos Manuel Esteve (1992) tambm analisou o mecanismo de evaso e concluiu que, mediante essa estratgia, os professores tentam escapar de situaes conflitantes ou de ms relaes com os colegas. Importante assinalar que todos os professores deste estudo utilizaram-se do mecanismo, ainda que por diferentes razes.Foram mais ou menos sete... oito escolas e na nona escola, essa ltima onde eu estava, eu me exonerei para ocupar esse cargo tcnico que eu tenho aqui no instituto. [...] O professor, s vezes, muda porque no se sente bem trabalhando naquela escola, no se sente bem integrado, ento ele muda para uma outra escola. Essa uma convenincia, digamos, poltica, mas que eu reconheo como um direito dele de mudar... Se voc no se sente bem em uma escola, voc tem direito de mudar. (Slvio, 50a, 13rp)

H ainda um outro motivo que justificou as remoes realizadas por esses professores, que a comodidade e a segurana de trabalhar em local prximo residncia. Mudar de escola para fugir de situaes e ambientes desagradveis ou para obter maior facilidade de locomoo ou, ainda, para diminuir a distncia entre a casa e o trabalho, acaba por provocar uma grande rotatividade dos professores. Alm disso, nem sempre a remoo um recurso eficiente, pois a mesma situao conflitiva pode ser encontrada nas outras escolas. A remoo, ou transferncia , ento, um mecanismo que, ao mesmo tempo que oferece a possibilidade ao professor de afastar-se das situaes que provocam insatisfao e desequilbrio, oferece-lhe, tambm, a possibilidade de encontrar outros tipos de dificuldades, talvez at maiores do que as que vinha enfrentando....procurando mais conforto no sentido de estar mais prximo de minha casa, eu tinha os filhos pequenos, ento eu procurava sempre vir um pouquinho mais perto... A primeira remoo foi da zona norte pr zona oeste, que eu j morava aqui na zona oeste e depois, quando eu mudei, quando construmos essa casa aqui eu j fiquei de olho na vaga dessa escola aqui, que foi a minha ltima escola... Mas eu sempre me removi tendo em vista uma escola boa, com bastante aulas de ingls... (Regina, 55a, 23rp) Eu fui assaltado duas vezes ao voltar de Osasco... tinha esses inconvenientes. Eu morava l no Jardim Arpoador, na Raposo Tavares, e era meio ermo onde o nibus de Osasco parava. Nessa altura eu no tinha carro, nunca chegava antes de meianoite no ponto final e ainda tinha que pegar um outro nibus para ir para casa... A, por essa razo, eu pedi remoo para So Paulo... (Hilton, 55a, 7rp)

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Eu tive uma sorte, porque teve concurso de remoo em 89 e em 90 eu me removi aqui, para o bairro onde eu moro. Uma escola linda, maravilhosa, era um colgio maravilhoso. S que igualzinho da periferia, igualzinho, igualzinho, igualzinho... Uma estrutura pssima, sem direo, alunos marginais, biblioteca fechada por falta de pessoas, laboratrio destrudo, destrudo... Eu acabei pedindo exonerao nessa escola. (Estela, 45a, 9rp)

Quando, por quaisquer razes, o professor no quer ou no pode fazer uso dos abandonos temporrios ou da remoo, ou, mesmo quando faz uso desses abandonos e os conflitos no so eliminados, sua frustrao e insatisfao com o trabalho aumentam ainda mais. Nessa situao, se o professor no pode abandonar definitivamente o trabalho, as tenses a que ficar exposto sero intensas. Esse estado de tenso, se levado ao extremo, leva os professores a manifestarem um tal esgotamento de suas energias que eles no conseguem, de fato, continuar trabalhando. No podendo deixar o trabalho, recorrero a outro mecanismo de evaso, aqui denominado acomodao. quando se pode perceber com maior clareza a manifestao do burnout, expresso utilizada por autores estrangeiros para designar o fenmeno de estresse acentuado dos professores, que vem sendo observado em vrios pases e que, por isso, tem sido objeto de estudo nos ltimos anos. Margaret LeCompte e Anthony Dworkin (1991), ao realizarem uma reviso sobre o tema, observaram que o burnout um constructo que permanece nebuloso, pelo fato de ser utilizado muitas vezes como uma trait definition. Ou seja, uma definio que enumera caractersticas que tipificam os indivduos que possuem o constructo. No o caso de reproduzir aqui as extensas anlises apresentadas por esses autores em Giving up on school: students dropouts and theacher burnouts [O abandono da escola: estudantes reprovados, professores acomodados], mas, sim, de ressaltar alguns traos que, enumerados por eles, tambm foram encontrados na pesquisa que deu origem a este trabalho. Por exemplo, LeCompte e Dworkin afirmam que quando fatores estruturais no permitem a realizao de metas pessoais, os indivduos perdem a f nas instituies que estruturam suas vidas cotidianas, como as escolas. Embora a perda de f por parte dos indivduos, segundo eles, no crie automaticamente meios alternativos para a satisfao das metas pessoais, eles argumentam que um considervel conjunto de evidncias sugere que, sob tais condies, o que acaba por acontecer que as pessoas passam a desacreditar na possibilidade de atingirem seus objetivos naquele local de trabalho, de vez que se sentem enfraquecidas e tomadas por sentimentos de impotncia, de falta de sentido naquilo que fazem, isoladas pessoalmente, sentindo-se estranhas em seu prprio meio e estranhas em relao a si prprias. Estes sentimentos, conforme os

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autores, definem claramente aquilo que expresso por alunos e professores que dizem estar abandonando a escola. Curioso que entre as pesquisas analisadas por LeCompte e Dworkin, esses mesmos sentimentos foram entendidos por alguns autores como parte de um processo de alienao. Assim, o aspecto de maior convergncia entre as vrias definies encontradas por eles foi a grande similaridade entre alienao e burnout. Com base nisso, eles adotam a seguinte definio, como sendo a que melhor expressa e sintetiza esse constructo:Burnout uma forma extrema de alienao especfica de papel caracterizada por um sentimento de que o trabalho de algum destitudo de sentido e que essa pessoa est impotente para realizar mudanas que podem tornar o trabalho mais significativo. Alm disto, esse sentimento de falta de sentido e impotncia reforado por uma crena de que as normas associadas ao papel e situao so ausentes, conflitantes ou inoperantes, e que essa pessoa est s e isolada entre os colegas e clientes. (LeCompte, Dworkin, 1991, p.94)

A acomodao, entendida como o distanciamento da atividade docente mediante condutas de indiferena a tudo que ocorre no ambiente escolar, ou de um tipo de inrcia, no sentido de buscar inovaes e melhorias no ensino, e um no envolvimento com o trabalho e com os problemas cotidianos da escola, tal como observado nesta pesquisa, certamente corresponde a vrias das caractersticas do burnout. No entanto, optou-se aqui pelo uso do termo acomodao por duas razes: primeiro para assegurar maior fidelidade aos sentimentos vivenciados pelos professores que participaram do estudo, uma vez que muitos deles usaram essa palavra durante as entrevistas. Segundo, porque o burnout, conforme esclarecido por LeCompte e Dworkin (1991), no envolve unicamente o desejo de abandonar ou o abandono efetivo, pois muitos que vivem o burnout nunca deixaro seus empregos, enquanto muitos que o deixam no passaram por esse processo. Deste modo, no tipo de abandono caraterizado por acomodao pode haver a presena do burnout, mas no necessariamente. Nesse caso, no h o distanciamento fsico, uma vez que o professor comparece escola, ministra as aulas, cumpre as obrigaes burocrticas, porm executa essas atividades dentro de um limite que representa o mnimo necessrio para manter-se no emprego. Embora esse tipo de abandono tenha sido citado por todos os professores deste estudo, nem todos o utilizaram como mecanismo de evaso. No entanto, ele se torna, mesmo quando no utilizado, um elemento de frustrao e insatisfao a mais com o trabalho. A dedicao e o envolvimento com as atividades docentes, para serem percebidos como teis e prazerosos pelos professores, precisam

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ser compartilhados e reconhecidos pelos colegas e superiores; quando isto no acontece h uma sensao de que todo o esforo despendido intil. Alguns manifestaram claramente esse sentimento:Enquanto eu trabalhava eu via colegas que davam uma bola para a molecada e sentava lendo jornal. O descaso com que a educao tratada... No quero ser melhor que ningum no, mas eu sempre trabalhei srio... (Eduardo, 50a, 17rp) ...voc acaba sozinho, chateado, falando assim: Puxa, porque que eu quero ser diferente? Deixa eu entrar no esquema.... Mas eu no gostava disso, eu adorava ser professor! (Eduardo, 50a, 17rp) ...porque voc no v o professor se preparando para a aula, se empenhando em melhorar a qualidade da aula... E sabe o que eu acho mais terrvel nisso tudo? a viso que o aluno passa a ter do professor e da profisso... Ele associa o professor a um fracassado... (Fabiana, 38a, 11rp)

Este tipo de abandono parece ser mais prejudicial, tanto para os prprios professores quanto para a escola e a profisso, do que o abandono definitivo, pois, os professores que se utilizam desse mecanismo acabam se frustrando e se sentindo ainda mais insatisfeitos, na medida em que sentem que com suas atitudes de acomodao deixam os outros infelizes e desmotivados, alm de colaborarem para a desvalorizao da profisso. A utilizao dessa estratgia no parece ser, entretanto, consciente e planejada. No caso dos professores que a utilizaram, os depoimentos obtidos indicam que esse parece ser um ltimo recurso de que lanam mo para manter-se minimamente equilibrados e para poder lidar com os conflitos gerados pelas solicitaes externas ou internas, que so avaliadas [...] como excessivas ou acima de suas possibilidades (Limongi-Frana, Rodrigues, 1996). Os abandonos temporrios e especiais so modos de enfrentar os conflitos gerados pelo trabalho e, conforme afirma Christophe Dejours, esse enfrentamento decorre de uma economia psicossomtica, em queO aparelho psquico seria, de alguma maneira encarregado de representar e de fazer triunfar as aspiraes do sujeito, num arranjo da realidade susceptvel de produzir, simultaneamente, satisfaes concretas e simblicas... [subtraindo] o corpo nocividade do trabalho e [permitindo] ao corpo entregar-se atividade capaz de oferecer as vias melhor adaptadas descarga de energia. (1991, p.62)

Muitos dos professores afirmam terem feito uso dos abandonos temporrios e especiais para conclurem a ps-graduao, para se dedicarem a um outro trabalho mais prazeroso ou, apenas, para pensarem melhor na deciso que esta-

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vam prestes a tomar. No entanto, h um limite para tais abandonos, e quando ele atingido, ocorre o abandono definitivo. O ABANDONO DEFINITIVO Todas as formas de abandonar, os abandonos temporrios e especiais referidos anteriormente, conforme se pde depreender dos relatos, tornam-se mais freqentes no perodo imediatamente anterior ao pedido de exonerao, ou seja, ao abandono definitivo. Parece haver um momento em que eles no so mais suficientes para minimizar as tenses e as frustraes do professor. Dois professores retratam esse perodo do seguinte modo:O ltimo ano que eu dei aula eu fiz coisas absurdas... Pelo menos uma vez por ms eu abandonava a classe... Eu estava dando aula noite, com um pessoal da pesada... (Estela, 45a, 9rp) Depois de cinco anos de escola, de ter sido professor da rede l em Osasco, que eu comecei a ver mesmo como aquilo mina... Vai minando voc, voc vai ficando um cara infeliz por dentro, voc vai ficando rancoroso com uma poro de coisas... e da vira um caos... terrvel... (Hilton, 55a, 7rp)

De modo geral, quando esses abandonos temporrios e especiais se tornam ineficientes ou insuficientes que ocorre o abandono definitivo. Essa no-suficincia que os mecanismos de evaso passam a ter com o decorrer do tempo, provavelmente esteja relacionada ao fato de que, ao retornarem, os professores encontrem a mesma situao, sem que tenha havido alteraes significativas para a melhoria da vida no trabalho e, com isso, o desnimo e o desencanto do professor vo aumentando. Mas preciso considerar, tambm, que h um limite para a utilizao desses mecanismos de evaso. Eles no podem ser utilizados indefinidamente. Eles so restringidos no s pelas normas que regem o sistema educacional, que limitam o tempo para os distanciamentos fsicos, mas, tambm, e principalmente, pelas caractersticas do prprio professor, o modo pelo qual ele enfrenta as situaes conflitantes, por sua posio existencial diante da vida e do trabalho que determina o tipo e o tempo dos distanciamentos psicolgicos. Assim, deixar de ser professor, deixar definitivamente a profisso docente e a rede estadual de ensino foi o modo que os professores deste estudo encontraram para restabelecer o seu equilbrio, para terem a oportunidade de realizar-se pessoal e profissionalmente. Embora nem todos os professores do grupo estudado tenham abandonado o trabalho docente, aqueles que ainda permanecem exercendo a

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docncia no ensino mdio seja na rede municipal de ensino de So Paulo, seja na rede particular afirmam que pretendem deix-la. Se isto ocorrer no se sabe, mas o fato a ser destacado que, para esses professores, a insatisfao com o trabalho permanece e, se no for revertida, provavelmente, resultar, tambm, no abandono da profisso, como fizeram os demais professores entrevistados. Jos Manuel Esteve (1992) afirma que o absentesmo, aqui discutido de forma ampliada sob o nome de abandonos temporrios e especiais, tem como ltima opo um gesto de sinceridade: o abandono real da profisso docente. Um ltimo gesto, uma ltima ao que exige fora e vontade, que exige a superao de medos e inseguranas. Uma ltima ao que representou, para os professores deste estudo, a soluo encontrada para um processo de conflitos e insatisfaes constitudo lentamente durante seus percursos profissionais; o desfecho inevitvel de um processo que h muito vinha se desenvolvendo. REFERNCIAS BIBLIOGRFICASBOHOSLAVSKY, R. Orientao vocacional: a estratgia clnica. So Paulo: Martins Fontes, 1977. BUENO, B. Autobiografias e formao de professores: um estudo sobre representaes de alunas de um curso de magistrio. So Paulo, 1996. Tese (Livre Doc.) Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo. . O Mtodo (auto)biogrfico e os estudos com histrias de vida. Educao e Pesquisa, v.28, n.1, p.11-30, 2002. CATANI, D.; BUENO B.; SOUSA, C. P O Amor dos comeos: por um estudo das rela. es com a escola. Cadernos de Pesquisa, n.111, p.151-171, dez.2000. . Os Homens e o magistrio: as vozes masculinas nas narrativas de formao. In: BUENO, B. O.; CATANI, D. B.; SOUSA, C. P (orgs.). A Vida e o ofcio dos professo. res. So Paulo: Escrituras, 1998. p. 45-54. DEJOURS, C. A Loucura do trabalho. So Paulo: Cortez, Obor, 1991. ESTEVE, J. M. O Mal-Estar docente. Lisboa: Escher, Fim de Sculo, 1992. . Mudanas sociais e funo docente. In: NVOA, A. (org.). Profisso professor. Porto: Porto Editora. p.93-124. FREIDSON, E. Renascimento do profissionalismo: teoria, profecia e poltica. So Paulo: Edusp, 1998.

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Recebido em: dezembro 2002 Aprovado para publicao em: dezembro 2002

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