Projecto para uma Grua - Pedro Ressano Garcia · Gruas no livro de fotografia de Werner Lindner,...

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nu [maio 2002] Projecto para uma Grua Pedro Ressano Garcia * Neste fim de século, assistimos ao declínio da era mecânica. A maior parte do trabalho produzido por máquinas tornou-se computadorizado e digitalizado. As primeiras máquinas industriais estavam relacionadas com a experiência humana, com a percepção dos seus movimentos, como se de extensões do próprio corpo se tratassem. As máquinas representam o mais emblemático elemento do período moderno, a vitória da humanidade sobre a natureza. Hoje, muitas máquinas, actualizadas pela tecnologia contemporânea, perderam essa qualidade. As máquinas estão constantemente a evoluir, substituindo versões anteriores. A maquinaria ultrapassada é desmantelada confrontando-nos com uma importante questão - o que devemos fazer com as sobras. Este trabalho explora a possibilidade de reciclar máquinas que estão ultrapassadas e obsoletas, investigando uma específica, a grua de contentores. Dum primeiro exemplo surgem soluções para outras pesquisas sobre os movimentos e as potencialidades destes objectos. Como a criança que observa uma escavadora a devorar o pavimento durante a construção de uma estrada, há algo mágico no observar da acção. Um acto que é mecânico, claro, honesto e compreendido. Assim é a grua, incrivelmente eficiente e poderosa, no entanto já obsoleta. As gruas mudam permanentemente e a mais recente geração é muito diferente da primeira. São estruturas que se expandem e contraem, tendo de ser constantemente adaptadas a novos usos. Os portos transformaram as cidades, tal como o contentor transformou os portos. As estruturas industriais deixaram memórias. Influenciaram a paisagem urbana, criando arquitecturas de referência e marcos simbólicos ao longo da frente marítima. Cada porto é o resultado da especificidade dum lugar e adquire um papel singular na caracterização da paisagem urbana. As gruas, pela sua localização estratégica, acrescentaram um novo significado à paisagem da cidade. Foram descritas como torres-com-a-forma-de-cavalos, supostamente a inspiração visual para alguns dos monstros mecânicos na saga da Guerra das Estrelas, de George Lucas. Sendo apenas máquinas, têm uma presença urbana e influenciam a imagem das cidades (ou a fachada imaginária das cidades). Robert MacCarter argumenta que a máquina é a resposta do Homem à sua alienação da Natureza, não a sua causa. A máquina é o mesmo tipo de coisa como edifício; não lhe é pedido que pareça algo mais, mas sim que desenvolva o seu próprio potencial expressivo. Robot reproduzindo a totalidade dos movimentos do braço humano, NASA 1987 Gruas no livro de fotografia de Werner Lindner, 1923, referenciado por Mies Van der Rohe Gruas Portuárias publicadas por Le Corbusier em Vers une Architecture

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nu [maio 2002]

Projecto para umaGruaPedro Ressano Garcia *

Neste fim de século, assistimos ao declínio da eramecânica. A maior parte do trabalho produzidopor máquinas tornou-se computadorizado edigitalizado. As primeiras máquinas industriaisestavam relacionadas com a experiência humana,com a percepção dos seus movimentos, como sede extensões do próprio corpo se tratassem. Asmáquinas representam o mais emblemáticoelemento do período moderno, a vitória dahumanidade sobre a natureza. Hoje, muitasmáquinas, actual izadas pela tecnologiacontemporânea, perderam essa qualidade.

As máquinas estão constantemente a evoluir,substituindo versões anteriores. A maquinariaultrapassada é desmantelada confrontando-noscom uma importante questão - o que devemosfazer com as sobras. Este trabalho explora apossibilidade de reciclar máquinas que estãoultrapassadas e obsoletas, investigando umaespecífica, a grua de contentores. Dum primeiroexemplo surgem soluções para outras pesquisassobre os movimentos e as potencialidades destesobjectos.

Como a criança que observa uma escavadora adevorar o pavimento durante a construção de umaestrada, há algo mágico no observar da acção. Umacto que é mecânico, claro, honesto ecompreendido. Assim é a grua, incrivelmenteeficiente e poderosa, no entanto já obsoleta. Asgruas mudam permanentemente e a mais recentegeração é muito diferente da primeira. Sãoestruturas que se expandem e contraem, tendode ser constantemente adaptadas a novos usos.

Os portos transformaram as cidades, tal como ocontentor transformou os portos. As estruturasindustriais deixaram memórias. Influenciaram apaisagem urbana, criando arquitecturas dereferência e marcos simbólicos ao longo da frentemarítima. Cada porto é o resultado da especificidadedum lugar e adquire um papel singular nacaracterização da paisagem urbana. As gruas, pelasua localização estratégica, acrescentaram umnovo significado à paisagem da cidade. Foramdescritas como torres-com-a-forma-de-cavalos,supostamente a inspiração visual para alguns dosmonstros mecânicos na saga da Guerra das Estrelas,de George Lucas. Sendo apenas máquinas, têmuma presença urbana e influenciam a imagem dascidades (ou a fachada imaginária das cidades).Robert MacCarter argumenta que a máquina é aresposta do Homem à sua alienação da Natureza,não a sua causa. A máquina é o mesmo tipo decoisa como edifício; não lhe é pedido que pareçaalgo mais, mas sim que desenvolva o seu própriopotencial expressivo.

Robot reproduzindo a totalidade dos movimentos do braçohumano, NASA 1987

Gruas no livro de fotografia de Werner Lindner, 1923,referenciado por Mies Van der Rohe

Gruas Portuárias publicadas por Le Corbusier em Versune Architecture

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O problema

A nova geração de barcos requer dragagens ou cais de águas profundas. O Canal do Panamá já nãocomporta a dimensão dos novos barcos, que cresceram e transformaram a organização e o aspectofísico dos portos industriais, tornando-se similares em todo o Mundo. Os navios de contentores evoluírame nos últimos dez anos duplicaram de capacidade, o que significa que as gruas também tiveram deduplicar o seu tamanho. Estas modificações representam custos adicionais e mudanças importantes naactividade do porto. As autoridades portuárias discutem o futuro, estudam alternativas, mas éeconomicamente mais viável, e também mais fiável, comprar novas gruas em vez de adaptar as velhas.Algumas estruturas estão à venda, outras estão abandonadas, mas a maior parte está a ser desmontada,apagando da memória colectiva a moderna visão do porto.

Vista da cidade para o porto

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O carácter do local

O porto teve a sabedoria e a fortuna de estar nocentro de todos estes cruzamentos. Ar, mar eterra, caminho-de-ferro e estrada, encontram-senum sítio. A geografia encontra-se no coração dacidade portuária. Localizada na margem a cidadeviu o seu desenvolvimento ligado, desde o início,à linha de costa onde os cais foram construídos,dando as boas vindas ao progresso. O local é oresultado destas ligações e o projecto interpretao genius loci deste ambiente específico, recriandoo sentimento mecânico do porto e a materialidadedas máquinas. Embora se trate de um local atraente,o Porto Industrial é geralmente inacessível. Hoje,ele separa a cidade da água, criando uma barreira.Mas em muitos casos está a iniciar um processode utilização pública.

A proposta

O projecto investiga uma possível transformação,com o objectivo de reciclar uma grua e oferecersoluções alternativas para o problema dodesperdício, simultaneamente questionando quetipos de problemas são abordados ao reciclar esta,ou qualquer máquina no geral. Que fazer com osrestos de uma sociedade moderna que tanto investiue tão profundamente acredita na era mecânica?Como pode esta poderosa e produtiva grua tornar-se num objecto inútil? É possível adaptar a umanova utilização uma estrutura concebida paraexecutar uma função tão específica?

As discussões com os construtores da gruaencorajaram o desenvolvimento de um processode metamorfoses para sua reutilização. Pesandoaproximadamente 800 toneladas, está preparadapara transportar contentores de 50 toneladas. Agrua é uma estrutura flexível e qualquer adição aesta construção terá que respeitar seusmovimentos, valorizando o seu potencial expressivo.Qualquer rigidez nas partes adicionais torná-la-iasmuito vulneráveis. Algumas partes estão suspensas,outras apoiadas à estrutura principal.

Como fazer então uma adição à estrutura existente?Algumas adições clamam diferenças entre o prévioe o novo, outras misturam camadas de intervenção,criando novas identidades. A estratégia desenvolveuma justaposição de sistemas, transformando amáquina num edifício, já que as evoluções maisrecentes nos materiais de construção já nãoresultam da descoberta de novos materiais masda sua mistura.

Maquetes metálicas

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Se a estrutura da grua é similar à estrutura de umanimal, é necessário conhecer os ossos, as suasrótulas e a possibilidade de habitar o interior deum animal gigantesco. Simultaneamente, asautoridades portuárias a comunidade civil e asmunicipalidades estão a procurar transformar áreasindustriais fechadas em áreas públicas acessíveis.A criação de espaço público acessível nas zonasribeirinhas é uma tendência irreversível, mas quetipo de espaço e para que público? Recuperandoo espírito do desenho de Ribart para o GrandKiosque à la Gloire du Roi, o projecto propõearticular compartimentos, percursos, escadas eelevadores, para act iv idades públ icas.

A sobreposição do sistema biológico do cavalo aomecanismo existente sugere uma exploração comgrandes potencialidades. A organização vem dediferentes diagramas que investigam e testam oslimites da aplicação de uma metáfora escultural efigurativa para a sua transformação. O desenho égerado por um diálogo entre o sistema biológicoe o sistema mecânico. A integração de corposadicionais, que irão fixar-se à grande estrutura,garantem a sua flexibilidade nos movimentos detensão e expansão. A grua existente é o resultadode um sistema tecnológico cuja estrutura funcionalexpõe o esqueleto aos requisitos mecânicos damáquina. Não há nenhuma capa ou pele. Respeitaregras de estabilidade estrutural e de máximaflexibilidade no seu uso. Os designers e osconstrutores da grua reduziram todos os aspectosda construção, procurando uma solução mínima eeficaz.

Kusnetzoff Toropoff, competição para o Palácio do Trabalho em Moscovo, 2º prémio, 1923

Reutilização de um contentor

Vista debaixo gerada por computador

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Aspectos Construtivos

Os designers sugeriram que os materiais utilizados na intervençãodeveriam ter as mesmas qualidades de flexibilidade. A estrutura dagrua tem qualidades muito específicas, o que limitou as escolhas amateriais com qualidades similares. A maior parte do equipamentoexistente no porto é construído com materiais comerciais e pré-fabricados, criando um vocabulário completo de construção. Umcontentor é uma caixa enorme, maior que uma caixa de sapatos, masnão deixa de ser uma caixa. Um invólucro artificial para transportarcoisas. Coisas novas que se tornarão velhas e serão deitadas fora. Osdesperdícios são parte da natureza. Há sobreprodução. E, no entanto,existe desperdício que é possível utilizar. Que devemos utilizar. Aquelesque produzem encaram o dilema da modernidade. Uma condição domundo moderno é a do crescimento contínuo. Mais consumidores emais materiais. Alargando o consumo ao mundo inteiro. É tempo dereciclar e dar uso ao que já foi produzido em demasia.O uso de materiais já fabricados ou existentes é também antigo pelasua conveniência. Estes materiais são baratos e é uma maneira dereciclar antigos contentores. Reciclar em arquitectura, requerinvestigação sobre a utilização de materiais existentes. Quanto maistecnologia um grupo detém, mais dominante é a sua arquitectura,mais a sua relação com o ambiente expressa essa vitória. O controleda Natureza cria progressivamente mais ambientes artificiais. Umaalternativa a este processo continuo reside na capacidade de transformarestruturas residuais em edifícios de uso público ou habitável.

Orgãos do cavalo

Ribart, projecto para o Kiosque nosChamps Elysées, 1758

Justaposição de dois sistemas:mecânico-biológico

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Programa

Sendo um exemplo da reutilização de estruturasexistentes, o programa é fundamentado naacessibilidade e na criação de espaços acessíveisaté aos níveis mais altos da máquina paraoferecer ao visitante público a possibilidadede experimentar o lugar e a grua, revelandoo sentir industrial do porto e a materialidadedas máquinas. Mantendo as suas funções, agrua oferece uma experiência do lugar, atravésduma variedade de máquinas no interior deuma grande máquina.

MacCarter argumenta que a arquitectura, comobase da experiência no lugar, tem a ver comestática, equilíbrio e distribuição de forçasestruturais, de modo a permitir esta condiçãode raiz. As máquinas, por outro lado, estãoessencialmente relacionadas com o movimento,enquanto conversão de energia em trabalho,e poderão mover-se no espaço de ponto paraponto: as máquinas podem assim serentendidas como pertencendo a nenhum lugar.A experiência de aceder ao porto e subir a

uma grua é uma experiência emocionante. Atorre pode viver por si: aí podemos sonhar,observar, compreender, aí podemo-nosmaravilhar; como num grande navio (...) aípodemo-nos sentir isolados do mundo e, noentanto, os donos do mundo. Quando lásubimos, deixamos atrás de nós a massa quese afadiga e mistura em si qualqueridentificação de autores e espectadores. UmÍcaro voando sobre as águas, pode ignorar osartifícios de Dédalo em móveis e intermináveislabirintos muito baixos.

Móveis e concebidas para todos os portos, asgruas também criam raízes no imagináriocolectivo, acrescentando um novo significadoà mais importante elevação da cidade – afrente marítima.

* arquitecto, docente da Universidade Lusófona