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    Projeto A Cor da Cultura: Uma experincia deimplementao da Lei n 10.639/03

    TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG

    Vol. 4, n. 2, Ago/Dez 2012. ISSN: 1984-6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 20

    ProjetoA Cor da Cultura: Uma experincia deimplementao da Lei n 10.639/03

    Aderivaldo Ramos SantanaDoutorando em Histria pela Universidade Paris IVSorbonne

    Prof. de Civilizao Brasileira na Universidade de Rennes 2Haute [email protected]

    Larissa Oliveira e GabarraDoutora em Histria Social da Cultura pela Puc-Rio

    Prof. de Histria da frica na UFFPUCG e de Prtica de Ensino na [email protected]

    RESUMO: Que um finlands, um sueco ou mesmo um croata no tenha noes sobre a histriada frica, talvez no tenha tanta importncia, embora, no mundo dito globalizado, essa realidadeseja lamentvel. Que um americano ou ingls, que comercialize matrias-primas, no veja nocontinente africano os diferentes povos e naes que ali vivem e que somente esteja interessadoem diamante, urnio e petrleo algo admissvel e aceito. Que um brasileiro comerciante ou node matrias-primas, com muita ou pouca educao, ignore a histria da frica, significa noquerer admitir que 1/3 da populao brasileira de origem africana. O ensino da histria da

    frica e dos afrodescendentes no Brasil, assim como da histria dos amerndios e da Europa, fundamental para que o povo brasileiro possa aceitar sua identidade. O presente artigo umresumo da experincia dos autores na implementao da lei n 10.639/03, utilizando ametodologia do projeto A Cor da Cultura. O mesmo pretende fazer um histrico do projeto, ao

    apresentar o material produzido, as motivaes e o desenvolvimento de sua criao e,principalmente, as atividades didticas e metodolgicas utilizadas na sua aplicao.

    PALAVRAS-CHAVE: Ao Afirmativa, Histria, Afro-brasileiro, frica.

    ABSTRACT:That a Finn, a Swede or a Croat does not have notions about the history of Africaperhaps should not be so important, but in a globalized world this reality is regrettable. That an

    American or an English man, who makes business with raw materials, does not see in the Africancontinent the peoples and nations who live there, and that this person is only interested indiamonds, uranium and petrol is something admissible and accepted. That a Brazilian who makesbusiness or not with raw materials, well educated or not, ignores the history of Africa, means that

    we do not want to admit that 1/3 of the Brazilian population has African roots. The studies ofthe history of Africa and of its descendants in Brazil, as well as the history of Native Americansand of Europe, are fundamental for the Brazilian people accept their identity. This article is asummary of the authors' experience in the implementation of the Law 10.639/03, using themethodology of the projectA Cor da Cultura. This paper wants to show the projects history, bypresenting the material produced, its motivations, the development of its creation and speciallythe methodological and didactic activities used in its application.

    KEYWORDS: Affirmative Action, History, Afro-Brazilian, Africa.

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    No nos enganemos: a imagem que fazemosde outros povos, e de ns mesmos, est associada

    histria que nos ensinaram quando ramos crianas,Marc Ferro.

    Contexto Histrico

    Composto de uma considervel diversidade tnica, ndios, europeus e africanos

    representados por vrias naes, o Brasil sempre teve dificuldades em conjugar, de forma

    democrtica, os diferentes componentes socioculturais presentes em sua sociedade. Quando o

    Instituto Histrico e Geogrfico (IHGB)foi criado em 1838, a figura do indgena, do natural da terra,

    estava em relevo na literatura romntica que pretendia representar o pas. O mesmo Instituto,

    preocupado em escrever uma histria nacional do Brasil, criou um concurso e em 1847 premiou

    o texto Como se deve escrever a histria do Brasilescrito pelo mdico, botnico e antroplogo alemo

    Karl Von Martius1. O pesquisador alemo pregou a possibilidade de uma harmonia entre as trs

    raas formadoras do pas, teoria que ganharia fora somente nos meados do sculo XX atravs

    dos trabalhos de Gilberto Freyre2. Antes, porm, em fins do sculo XIX, a mestiagem parecia

    atestar a falncia da nao brasileira. Segundo Nina Rodrigues3, a miscigenao era um sinal de

    degenerescncia e era preciso, no entender dos pensadores do Estado, branquear a sociedade o

    quanto antes possvel. Foi assim que durante muito tempo a histria da frica e dos

    afrodescendentes esteve excluda dos programas escolares e somente representada na escravatura

    e, de vez em quando, no folclore popular. Na prtica cotidiana, africanos e seus descendentes

    foram discriminados e no tiveram, no perodo ps-abolio da escravido, os mesmos direitos

    civis que a maioria dos imigrantes europeus.

    Contudo, a sociedade civil organizada, os intelectuais, os acadmicos, os movimentos

    sociais negro e indgena, bem como alguns segmentos da Igreja Catlica, durante todo o sculo

    XX e incio do sculo XXI, vm denunciando o quadro desigual no qual se insere a sociedade

    brasileira. Como exemplos dessas desigualdades, temos: o difcil acesso educao superior de

    qualidade que, em verdade, deveria ser garantido a todo cidado - e a diferenciao de salrios

    entre gnero e origem scio-racial para pessoas com os mesmos currculos. Por fim, h ainda o

    problema da m distribuio da terra caso especfico dos indgenas e quilombolas, que

    historicamente exigem o reconhecimento de suas heranas materiais, uma vez que vivem em

    1MARTIUS, Karl Frederich Von. Como se deve escrever a histria do Brasil.. Dissertao oferecida ao Instituto Histricoe Geogrfico Brasileiro pelo scio honorrio do Instituto, Dr. Carlos Frederico Ph. de Martius. [1845] RevistaTrimensal de Histria e Geografia do IHGB. Tomo VI. Rio de Janeiro; Kraus Reprint, 1845. p. 381-403.2FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. 51. ed. So Paulo: Editora Global, 2006.3RODRIGUES, Nina.Mtissage, dgenrescence et crime.par le Dr. Nina Rodrigues professeur de mdecine lgale la

    Facult de Bahia. In:Archives dAnthropologie Criminelle criminologie et de psychologie normale et pathologique,Tome Quatorzime. Paris: Masson & cie, 1899, p. 477-516.

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    terras que foram de seus antepassados. Partindo desse quadro, as entidades supracitadas

    entendem que a historicidade de alguns desses problemas exigem formulaes de polticas

    pblicas que procurem reverter o quadro de discriminaes raciais e sociais construdas ao longo

    da histria do pas. Na esfera poltica, essas medidas ganharam o nome de polticas de Aes

    Afirmativas4.

    Criadas no contexto das lutas pelos direitos civis dos afro-americanos, as Aes

    Afirmativas buscam reverter as desigualdades ou criar oportunidade para os excludos, no mundo

    do trabalho, na poltica e com relao ao ingresso no ensino superior. Assim sendo, em pases

    como ndia, frica do Sul, Estados-Unidos, Frana, Brasil, essas polticas Afirmativas pretendem

    criar uma igualdade de fato, respeitando os preceitos constitucionais de cada pas. Nesse sentido,

    Aes Afirmativas so respostas polticas s demandas dos movimentos sociais que militam pelaconstruo de mundo equnime.

    No Brasil, a existncia de movimentos sociais, como a Frente Negra, em 1930, e a

    formao do Movimento Negro Unificado, em 19705, demonstra como essas instituies foram

    importantes para a consolidao de polticas afirmativas, que valorizassem os afrodescendentes,

    sem esquecer a figura de lderes como Abdias do Nascimento (1914-2011) 6, Llia Gonzales

    (1935-1994)7 e Amauri Mendes Pereira8, para citar apenas alguns cidados, que, individual ou

    coletivamente, dedicaram e dedicam suas vidas militncia e ao ativismo em prol da democraciano Brasil. E, nos ltimos 12 anos, entre as polticas afirmativas implementadas, as direcionadas

    para a educao vm abrindo espao e conquistando leis e decretos estaduais e federais que

    modificam as perspectivas de acesso s universidades pblicas, ao mesmo tempo em que exigem

    a melhoria do ensino fundamental e mdio em mbito nacional.

    A proposta da Lei 3.708, de novembro 2001, foi uma resposta demanda desses

    movimentos sociais, que exigiam maior participao dos negros nas universidades. A Lei definiu

    4BERNARDINO, Joaze. Ao Afirmativa e a rediscusso do mito da democracia racial no Brasil . In:Estudos Afro-Asiticos, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 247-273, 2002.5Ver em ALBERTI, Verena & ARAUJO PEREIRA, Amilcar. Histria do movimento negro no Brail, Rio de Janeiro:Editora Pallas, 2010 ; ARAUJO PEREIRA, Amilcar. O mundo negro: a constituio do movimento negrocontemporneo no Brasil 1970 1995. 2010. Tese (Doutorado em Histria). Universidade Federal Fluminense,Niteri.6Abdias do Nascimento foi um dos maiores ativistas negro do Brasil. Senador, professor hemrito, artista plstico,escritor e ator, foi criador do TENTeatro Experimental do Negrona dcada de 40. Faleceu em 2011 com 97 anos.7 Llia Gonzales graduou-se em Histria e Filosofia, mestrado em Comunicaao Social e doutorado emAntropologia. Foi professora de Cultura Brasileira na Pontificia Universidade Catlica do Rio de Janeiro PUC Rioe chefiou o departamento de Sociologia e Poltica da mesma Universidade. Foi uma das primeiras ativistas negra doBrasil.8Amauri Mendes Pereira doutor em Cincias Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ eprofessor de Histria da frica no Centro de Estudos Afro-Asiticos CEAAda Universidade Candido MendesUCAM.

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    40% de quotas para afrodescendentes nas vagas disputadas nos vestibulares da UERJ

    (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)9 e da UENF (Universidade Estadual do Norte

    Fluminense). As crticas e elogios a essa medida se tornaram calorosos. O debate se estendeu para

    fora das universidades, possibilitando desfazer as deformaes histrico-sociais do pas em

    relao ideia de que se vivia em uma democracia racial10.

    Hoje, contamos com pesquisas slidas sobre a Lei n 3.708/01, como a da professora

    Elielma Machado. Segundo a pesquisadora, apesar do aumento expressivo de afrodescendentes

    nas universidades e, portanto, da modificao real do quadro de desigualdade tnica em que se

    encontrava o acesso da maior parte da populao brasileira ao nvel superior, esse acesso ainda

    no satisfatrio e o alunado apresenta a demanda por um ensino de nvel fundamental e mdio

    de melhor qualidade11.

    Em nove de janeiro de 2003, uma das primeiras medidas educacionais tomadas pelo

    ento presidente da repblica, Luiz Incio Lula da Silva, foi a Lei n 10.639/0312que alterou o

    Artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educao n. 9.394/96. A Lei n 10.639/03 a

    medida que legitima oficialmente a luta do negro, colocando a histria e as culturas dos afro-

    brasileiros e africanos no campo das necessidades de conhecimento primordiais da nao13. A

    partir da publicao, ficou estabelecido que as escolas de ensino fundamental e mdio so

    obrigadas a tratar, nos currculos, em especial nos de Educao Artstica, Histria e Literatura, os

    9Ver em DE SANTANA, Aderivaldo Ramos. Laction positive et laccs lenseignement suprieur en France et au Brsil:valuation des expriences de lInstitut dtudes politiques Sciences Po-Paris et de lUniversit dEtat de Rio de Janeiro UERJ. 2009.Dissertao. (Mestrado), Universidade Rennes 2Haute Bretagne.10Mais de dez anos se passaram depois das primeiras experincias de reserva de vagas nas universidades brasileiras.Um amplo debate, promovido sobretudo por entidades ligadas ao Movimento Negro, mobilizou o pas, chegandoat o Supremo Tribunal Federal. O STFjulgou no dia 26/04/2012, por unanimidade, constitucional o sistema de cotasnas universidades brasileiras. A presidente Dilma Rousseff sancionou a lei n 12.711/2012 que ser implementadagradualmente nos prximos 4 anos at chegar, em 30/08/2016, a reservar 50% de vagas para cotas. Dentro dessasvagas reservadas, uma porcentagem ser destinada a estudantes de acordo com sua renda familiar e outra parte paraestudantes autodeclarados negros, pardos e indgenas. A sentena do STF e a Lei n 12.711/2012 representamvitrias importantes para a luta dos direitos civis dos negros no Brasil.11MACHADO, Elielma A. Democracia racial e racismo brasileira. O Social em Questo, Rio de Janeiro, v. 23, p. 43-71, 2010. Disponvel em: . Acesso em: 08 ago. 2012.12No dia 09 de janeiro de 2013 a lei n 10.639/03 completou dez anos de existncia. Dez anos de lutas e conquistas.Cf : PASSO, Flvio. 10 anos da lei n 10.639/03: e como ficamos ? Disponvel em : Geleds Instituto da MulherNegra . Acesso em : 10 jan. 2013.13Acredita-se que apesar de as reas de conhecimento Dispora Africana no Brasil e Histria da frica terem suasespecificidades, no caso da Lei n 10.639/03, tanto uma quanto a outra rea so importantes serem conhecidas,aprofundadas e difundidas. Sobre o crescente interesse dos estudos sobre frica no Brasil ver MAMIGONIAN,

    Beatriz Gallotti. frica no Brasil: mapa de uma rea em expanso. Revista Topoi, Rio de Janeiro: Revista de Histria daUFRJ, v. 5, n. 9, 2004.

    http://www.puc-rio.br/http://www.geledes.org.br/http://www.geledes.org.br/http://www.puc-rio.br/
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    contedos referentes Histria e Cultura Afro-brasileira e da frica, luta dos negros no Brasil e

    sua contribuio social, econmica e cultural para a formao da sociedade brasileira14.

    Essa Lei veio responder s demandas de incluso, no currculo mnimo escolar, do

    estudo da Histria e da Cultura da frica e dos Afrodescendentes que, em relao a outros

    contedos tratados, era quase inexistente. Implement-la dar um passo importante para a

    mudana e formao crtica do pas. Entende-se assim, que a histria dos africanos e afro-

    brasileiros essencial, tanto quanto outros assuntos para educao do jovem brasileiro.

    Que um finlands, um sueco ou mesmo um croata no tenham noes sobre a histria

    da frica, talvez no tenha tanta importncia, embora, no mundo dito globalizado, essa realidade

    seja lamentvel. Que um americano ou ingls, que comercialize matrias-primas, no veja no

    continente africano os diferentes povos e naes que ali vivem e que somente esteja interessado

    em diamante, urnio e petrleo, algo admissvel e aceito. Que um brasileiro comerciante ou no

    de matrias-primas, com muita ou pouca educao, ignore a histria da frica e do afro-

    brasileiro, significa no querer admitir que 1/3 da populao brasileira de origem africana.

    O ensino de historia da frica e dos afro-brasileiros nos ajuda a melhor compreender as

    manifestaes culturais de matrizes africanas no Brasil como o candombl, a capoeira, o congado

    e o maracatu, prticas integradas no cotidiano de toda a populao 15. O processo de adaptao

    dessas prticas culturais no meio social e suas consequncias polticas e econmicas tornaram-nas

    smbolos do pas. Segundo Llia Gonzles, a frica esta presente no domingo de samba, na ginga

    especial do futebol, na tanga colorida, nas influncias africanas que esto marcadas no modo de

    viver e, tambm, no prprio linguajar do pretogus16. A presena de um lxico africano inscrito

    no vocabulrio portugus como samba, tanga, ginga, jil, cuca, ganz, vatap, dengo,

    14BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e CulturaAfro-Brasileira e Africana. Braslia, DF, out. 2005.15As manifestaes culturais supra mencionadas, herdeiras de matrizes africanas, sofreram algumas modificaesdevido ao hibridismo cultural existente no Brasil. Cabe lembrar que algumas delas foram inventadas emcircunstncias especficas como forma de resgate cognitivo de uma memria reinventada na dispora africana e porisso no possuem correspondncia fora do Brasil. Sobre capoeira, maracatu e congado ver GABARRA, LarissaOliveira e. O reinado do Congo no Imprio do Brasil. Mmorias da frica Central no Congado de Minas Gerais, sculoXIX. 2009. Tese. (Doutorado em Histria). Puc-Rio, Programa de Ps-graduao em Histria Social da Cultura, Riode Janeiro. Sobre culturas africanas ver tambm: IROKO, A. Felix. Des migrations l'intgration. Africultures, n. 31,out. 2000. Sobre a recriao de mitos africanos no Brasil ver: CARNEIRO, Edison. Xang. Novos Estudos Afro-brasileiros trabalhos apresentados ao 1 Congresso afro-brasileiro em Recife, 1934. Recife: Fundao JoaquimNabuco; Editora Massangana, 1988, p. 139-145.16 Ver em OLIVEIRA, Iolanda; AGUIAR, Mrcia ngela da Silva; SILVA, Petronilha Beatriz Gonalves e;

    OLIVEIRA, Rachel de. Negro e educao 4: linguagens, resistncias e polticas pblica. So Paulo: Ao Educativa;ANPED, 2007.

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    propriamente bantas,17 um dos exemplos dessa presena na histria e na cultura brasileiras. Do

    mesmo modo, o ensino dos contedos propostos pela Lei n 10.639/03 nos auxilia a melhor

    compreender a existncia de uma cultura afro-brasileira presente no litoral oeste do continente

    africano, outrora chamado Costados Escravos, cultura essa resultado dos retornos de africanos

    e afro-brasileiros no final do sculo XVIII e durante todo o sculo XIX18.

    Mas para que a Lei 10.639/03 e o ensino da histria da frica e do afro-brasileiro

    fossem integrados no dia-a-dia das escolas, vrias coordenadorias que trabalham com a temtica

    de valorizao das culturas africanas e afro-brasileiras, ONGs (Organizaes No-

    Gorvernamentais) e Neabs (Ncleos de Estudos Afro-brasileiros) das universidades pblicas, nas

    capitais e no interior do pas, criaram projetos e articularam cursos de formao para os

    professores das redes pblicas municipais e estaduais. Entre alguns desses projetos institucionaisde toda ordem esto os chamados cadernos do CEAPS (Centro de Articulao das Populaes

    Marginalizadas); o projeto Camlias, o curso de capacitao tnico Racial da Coafro e da

    Secretria da Educao de Uberlndia, MG; o Curso de Aperfeioamento em Educao para as

    Relaes tnico-Raciais, em parceria com a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e

    Diversidade (SECAD) e a Universidade Aberta do Brasil (UAB); os Fruns Educao Afirmativa

    Sankofa - Oficina Matriz Africana e Ao Educativa e Exposio frica-Brasil: O Legado de

    Abdias Nascimento 2009, 2011, 2012, do Instituto de Pesquisa e Afro-brasileiro (IPEAFRO); oCurso de Extenso Etno-racial, Sexual e Cultural da cidade de Ribeiro Preto, SP; e o projeto A

    Cor da Cultura, da Tv Futura. narrando as experincias realizadas durante o projeto A Cor da

    Cultura que o presente artigo busca enriquecer o debate sobre educao e igualdade racial no

    Brasil.

    17LOPES, Nei. O Dicionrio Banto do Brasil.Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.18No foi somente a populao brasileira que herdou valores africanos. Ao contrrio do que se imagina, muitosafricanos hoje conhecem o Brasil graas ao retorno de seus bisavs, avs. Em pesquisa realizada no Benim, em julhoe agosto 2012, Aderivaldo Ramos de Santana entrevistou historiadores, antroplogos e representantes da sociedadecivil beninense e confirmou a existncia de um rico refluxo de informaes, trocas culturais entre Brasil-frica e vise-versa, refluxo esse que foi objeto das pesquisas de Pierre Verger, em : VERGER, Pierre. Flux et reflux de la traite desngres entre le golfe de Bnin et Bahia de todos os santos du dix-septime au dix-neuvime sicle. Paris: Mouton & coLA HAYE,1968; do mesmo autor, ver : Influence du Brsil au Golf du Bnin .In : Les Afro-Amricains: Mmoires de lIFAN.Dakar, n. 27,p. 252- 269, 1953; COSTA E SILVA, Alberto. O vcio da frica e outros vcios. Edies S da Costa, 1989;do mesmo autor : Um rio chamado Atlntico. Rio de Janeiro : Editora Nova Fronteira, 2003. Sobre a presena afro-brasileira no Bnim, ver tambm : GURAN, Milton. Os Aguds: os brasileiros do Benim. Rio de Janeiro: Editora GamaFilho, 1999; TURNER, Michael J. Escravos brasileiros no Daom. Revista Afro-sia Centro de Estudos Afro-Asiticos Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1970. Disponvel em : . Acesso em : 01jun. 2005; KRASNOWOLSKIS, Andrzej. Les afro-brsiliens dans les processus de changement de la Cte des Esclaves.Acadmie polonaise des sciences: Ossolineum, 1987 (agradeemos a Prof. Doutora Mnica Lima e Souza por nosapresentar esse documento). Sobre o retorno de africanos para Cabinda, no litoral da atual Angola, ver LIMA E

    SOUZA, Mnica.Entre margens: o retorno frica de libertos no Brasil, 1830-1870. 2008. Tese. (Doutorado emHistria)Universidade Federal Fluminense, Niteri.

    http://www.afroasia.ufba.br/http://www.afroasia.ufba.br/
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    O ProjetoA Cor da Cultura

    Mojuba, seja bem vindo roda!

    A ideia que tiveram Luiz Antnio Pilar e Antnio Pompo de fazer um programa deteleviso de curta durao, em mdia de 2 a 3 minutos, sobre os grandes personagens negros da

    histria brasileira foi o embrio do projeto. Atravs do Centro Brasileiro de Desenvolvimento do

    Artista Negro (CIDAN), com o apoio da Secretaria Especial de Polticas e Promoo da

    Igualdade Racial (SEPPIR) e consultoria de Vnia SantAna, nasceu o programa Heris de Todo

    Mundo, exibido no canal Futura em pequenas doses dirias. A boa aceitao do programa por

    parte dos telespectadores e do prprio canal fez com que o mesmo fosse incorporado a um

    projeto maior que se chamaA Cor da Cultura.

    Desenvolvido pela Fundao Roberto Marinho, com o apoio financeiro da Petrobrs e

    institucional do Ministrio da Educao e da Fundao Palmares Ministrio da Cultura, o

    projeto permite que a Lei n 10.639/03 no seja apenas uma lei de papel e que sua aplicao

    represente, de fato, uma mudana substancial na forma de se ensinar histria da frica e dos

    afro-brasileiros. A parceria estabelecida representa interesses pblicos e privados expressos em

    ideais, atitudes e conquistas dos afro-brasileiros, valorizando o negro na formao do pas, atravs

    de programas educativos. A expectativa das consequncias sociais desse projeto no Brasil a de

    que o reconhecimento das contribuies dos africanos e afro-brasileiros na cincia e na

    tecnologia possibilite uma reescrita da histria brasileira.

    O projeto A Cor da Cultura, em consonncia com os objetivos traados na Lei n

    10.639/03, pretende desfazer o esteretipo negativo que foi construdo sobre a frica e sobre os

    afro-brasileiros, desconstruir o paradigma hegeliano de que a frica no possui histria19. Para

    tal feito, foi necessrio deixar que a reescritura dessa histria assumisse um olhar de dentro para

    fora, ou seja, contar a histria do continente africano e dos seus descendestes no Brasil com base

    em seus atores. Entende-se que esse esforo deve ser feito num contexto mundial, em busca dos

    muitos rastros e pistas que a dispora africana deixou sobre uma histria eurocntrica at ento

    privilegiada pela academia.

    O projetoA Cor da Cultura composto de duas etapas: a primeira a produo do kitA

    Cor da Cultura e a segunda a distribuio (do kit) e a capacitao dos professores da rede

    pblica municipal. O pblico alvo inicialmente foi professores e supervisores do ensino

    19FAGE, J.D. A Evoluo da historiografia da frica. In: KI-SERBO, Josephe. (Org.). Histria Geral da frica.v. I.So Paulo: Ed. tica, UNESCO, 1983, p.8.

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    fundamental e mdio, associaes civis e ONGs. Na segunda etapa, a parceria com as Secretarias

    de Educao Municipal foi imprescindvel e a continuidade do projeto nas escolas que receberam

    os Kits foi uma das preocupaes da equipe gestora. O projeto que iniciou em 2005 j est na sua

    2 edio.

    A viabilidade do mesmo s foi possvel com a participao de organizaes, associaes

    e ncleos de estudos vinculados temtica que participaram de um edital da Fundao Roberto

    Marinhoem que propuseram suas estratgias didticas para a aplicao da Lei n 10.639/03 e se

    tornaram parceiros do projeto. Foram elas: Associao Latino-Americana de Estudos Afro-

    Asiticos da Universidade Cndido Mendes, Rio de Janeiro, RJ; Geleds Instituto da Mulher

    Negra, So Paulo, SP; NeabUFU, Uberlndia, MG; FUNDEPUFMG, Belo Horizonte, MG;

    CEAP Centro de articulao de Populaes Marginalizadas e NBLAC - Ncleo Brasileiro,Latino Americano e Caribenho de estudos em relaes raciais, gnero e movimentos sociais,

    certificado pelo CNPq; NZimga, Belo Horizonte, MG; e INDEC Instituto do

    Desenvolvimento Cultural de Nova Iguau, RJ.

    O kit original composto por oito fitas VHS contendo 56 (cinquenta e seis)

    programas20, divididos em cinco sries diferentes. A srie Ao,com Serginho Groisman, mostra

    as iniciativas de incluso social atravs do trabalho voluntrio de ONGs e comunidades

    Olodum, Razes da frica, Sonho de Ers, Maria Mulher e outras, que procuram alternativas sdificuldades vivenciadas pelos afro-brasileiros. A srie Heris de Todo Mundo composta de 30

    (trinta) programas de dois minutos sobre a vida de alguns cidados afro-brasileiros atuantes na

    cultura, na poltica, nas cincias e na histria do pas, como Adhemar Ferreira da Silva, Antonieta

    de Barros, Andr Rebouas, Llia Gonzles, Paulo da Portela, Pixinguinha, Cruz e Souza,

    Benjamin de Oliveira, Machado de Assis, Mario de Andrade, Elizabeth Cardoso, Chiquinha

    Gonzaga, Lima Barreto, Lenidas da Silva, Jackon do Pandeiro, Tia Ciata, Teodoro Sampaio,

    Jos do Patrocnio, Juliano Moreira, entre outros.Os mesmos heris fazem parte do jogo educativo, homnimo, que pode ser jogado

    numa perspectiva competitiva ou cooperativa21, atravs de um tabuleiro e de questes cientficas

    gerais e especficas sobre o tema, ou no, que tambm se encontram no kit.Mojuba a srie mais

    adulta do projeto, mostra as influncias religiosas de matrizes africanas na literatura, na msica,

    20Todos os programas esto sendo exibidos na Tv Futura; o Mojuba e Heris de Todo do Mundo so exibidostambm na TVE e o Ao, na Rede Globo de Televiso.21Em ambas as perspectivas o objetivo proporcionar a descoberta e a aprendizagem a respeito dos personagens.Porm, na perspectiva cooperativa no h vencedor nem perdedor, todos ganham.

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    na culinria e no cotidiano dos brasileiros atravs de entrevistas e discusses de cunho terico.

    Nota Dez um programa apresentado em dois blocos, ocorrendo no primeiro bloco uma

    discusso sobre uma questo polmica em que o racismo explcito e, no segundo bloco, so

    mostradas instituies que tm experincias de ensino bem sucedidas de luta contra o racismo no

    pas. A ltima srie chama-se Livros Animadose composta de 22 (vinte e duas) animaes de

    vrios livros infantis como Menina do Lao de Fita, Menino Nito, If, Berimbau, Capoeira, Jongo e

    outros em que a apresentadora Vanessa Pascale brinca com as crianas introduzindo os livros.

    O kitcontm tambm trs Cadernos destinados ao Professor, intitulados globalmente

    como Saberes e Fazeres, que foram supervisionados por Ana Paula Brando. O primeiro caderno,

    Modo de Ver, foi organizado por Azoilda Trindade e Ricardo Benevides. Esse caderno traz sete

    textos tericos que discutem o contexto do racismo, as consequncias sociais e culturais eapresenta possveis caminhos para a transformao da sociedade brasileira, atravs da discusso

    de conceitos como cidadania e africanidade. O segundo caderno, Modo de Sentir, organizado por

    Mnica Lima, apresenta o programa curricular do projeto, acrescentando informaes gerais,

    contedos especficos para facilitar a operacionalidade do kitnas salas de aulas. Finalmente, o

    terceiro caderno, Modo de Interagir, tambm organizado por Azoilda Trindade, traz vrias

    dinmicas e metodologias didticas para ajudar na aplicao desses contedos. Alm dos

    cadernos, h um glossrio,Memria das Palavras, baseado nos estudos de Nei Lopes, que tambmprestou consultoria ao Projeto. Carlos Negreiros produziu o CD Gongu, que apresenta os

    instrumentos e as msicas de influncias africanas em vrias manifestaes da cultura popular

    brasileira. Cada Escola Municipal que participou da capacitao recebeu um kit.

    A segunda edio do projeto complementou o kit, incluindo um quarto volume dos

    Cadernos Modos de Fazer, que trata de tecnologia, cincia e religiosidade; alm de trazer novas

    personalidades afro-brasileiras para o programa Heris de Todo Mundoe novos episdios para as

    sries Mojub, Nota 10 e Livros Animados. O material acompanhado de um mapa das rotas dotrfico negreiro, representando uma sistematizao da dispora africana durante os sculos XV-

    XIX, e um cartaz em que os valores Civilizatrios Afro-Brasileiros, como Oralidade,

    Circularidade e Ancestralidade, esto dispostos numa mandala.

    Metodologia de Aplicao do kitA Cor da Cultura

    Tanto na primeira, como na segunda edio do projeto, os educadores, artistas, ativistas,

    representantes das instituies parceiras, coordenadores e responsveis por capacitar professores

    da rede pblica tiveram um encontro de formao em Petrpolis, RJ. Nos dois anos, 2006 e

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    2010, durante uma semana, cujo cronograma foi dividido em dinmicas didticas que utilizavam o

    material do kit, os educadores receberam uma capacitao aplicada por Azoilda Trindade e pela

    equipe do canal Futura. Para complementar, os consultores do projeto, na primeira edio, Jlio

    Tavares, Isaura e Carlos Negreiros, Mnica Lima, Maria Aparecida Bento e Vnia SantAna

    ministraram palestra a fim de melhor responder as questes metodolgicas que poderiam existir.

    Na segunda edio, os palestrantes foram Amauri Mendez, Walter Silvrio, Macota Malvina,

    Denise Barata, lvaro Nascimento, entre outros. Antes de sair a campo nas duas edies, houve

    mais um encontro na cidade do Rio de Janeiro, onde foram vivenciadas as oficinas que seriam

    ministradas durante as capacitaes nos Estados brasileiros. Esses encontros reforaram os ideais

    do grupo de capacitadores e deram clareza nos caminhos possveis de utilizao do conhecimento

    pessoal sobre o temacondio base para participar do projetode cada profissional envolvido.A segunda parte da metodologia foi o trabalho de campo propriamente dito, dividido

    em duas fases: a primeira, a capacitao em si e a segunda, que consistiu no retorno s cidades

    visitadas na primeira fase para um acompanhamento junto aos professores da utilizao do kit

    nas escolas. As duas fases contriburam para aplicao da Lei n 10.639/03 a partir da difuso do

    kitdo Projeto A Cor da Cultura, na perspectiva de incentivar a pesquisa e o ensino da Cultura e

    Histria da frica e Afro-brasileiros. Tambm possibilitaram a troca de experincias com os

    professores e outros representantes de associaes dos movimentos negros e sociais de cadacidade visitada. A partir dessas trocas surgiram demandas. Os professores exigiram, de modo

    geral, uma ampliao do pblico-alvo, incluindo, assim, professores da rede infantil, e, em

    particular, uma complementao dos contedos do kit, sobretudo com relao aos temas cincia,

    religio e tecnologia.

    Na primeira edio foram alcanados sete estados do pas, a partir da parceria com as

    Secretarias Municipais de cada cidade em que estivemos. Foram eles: So Paulo (capital e ABC e

    Campinas), Par (Belm), Bahia (Salvador), Mato Grosso do Sul (Corumb e Campo Grande),Maranho (So Lus), Rio Grande do Sul (Porto Alegre) e Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Nova

    Iguau e Niteri). Na 2 edio os Estados privilegiados foram: Minas Gerais (Uberlndia, Belo

    Horizonte e Juiz de Fora), Amazonas (Manaus), Mato Grosso (Cuiab), Pernambuco (Recife e

    Olinda) e Paran (Cascavel).

    Houve vrias equipes de apoio enquanto o trabalho em campo era realizado. Alm da

    coordenao geral, a coordenao pedaggica dava luxuosos suportes tericos, como se

    convencionou chamar essas contribuies. Algumas palestras foram necessrias, tendo em vista

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    que durante a capacitao dos professores surgiram demandas, principalmente, no trato da

    religio. Essa questo precisou de um olhar especial, foi o caso do professor Juarez Xavier que

    fez uma conferncia no fim da segunda semana de trabalho em So Paulo. Conferncia que nos

    auxiliou a melhor abordar temas difceis, mas necessrios de serem tratados, pois tangenciam uma

    intolerncia religiosa crescente na sociedade brasileira. O esclarecimento sobre o candombl, Exu

    e If, foi importante para lidar com a temtica. Acordou-se que a questo da f de cada um no

    deveria ser o foco do debate, mas sim como conviver e aprender com as diferentes vises de

    mundo. Outras equipes importantes foram a de mobilizao e a de produo, que ajudavam com

    problemas eventuais e se preocupavam com a estrutura da locao.

    A equipe de capacitadores era responsvel pelas oficinas e as avaliaes parciais da

    aplicao do Projeto. A capacitao nesses estados foi realizada em dupla e algumas vezes emtrio, devido ao nmero de professores por turma, uma mdia de 35 a 40. Essa configurao

    permite uma dinmica que torna o trabalho menos cansativo aos alunos e mais profcua a

    aprendizagem. Seguia-se um roteiro pr-estabelecido, no qual se utilizavam conhecimentos e

    experincias pessoais de cada capacitador para enriquecer o contedo do projeto e solucionar as

    barreiras contra o ensino da temtica22.

    Disponibilizar um vasto material de papelaria, como cola, tesoura, crepom colorido,

    bexigas, papel A4 colorido e branco, cartolina foi uma das estratgias para despertar a criatividadee espontaneidade dos professores. Esse tipo de incentivo criativo para a discusso do tema era

    proposto por meio do trabalho coletivo e foi extremamente til queles que se colocavam mais

    arredios problemtica, pois esses acabavam se aglutinando no fazer ldico em grupo e

    deixavam-se levar pelo carisma do assunto.

    A prtica de sala de aula

    Na primeira edio, foram realizados trs dias de capacitao. O primeiro dia, recepo

    dos professores, comeava pela manh com uma apresentao Institucional do projeto, realizada

    por Ana Paula Brando, e uma palestra introdutria feita por Azoilda Trindade ou por Mnica

    Lima. Na maioria das vezes estavam presentes os representantes da cidade, prefeitos ou

    subprefeitos, e das Secretrias da Educao. Dividiam-se em grupos os professores presentes,

    encaminhando-os as suas respectivas salas de aula, preparadas pelos capacitadores de maneira

    22Houve reaes dos professores capacitados em relao utilizaao do kitpara elaborao de aulas de matemtica.Nesse momento, explicvamos sobre o trabalho de Cheik Anta-Diop, seus estudos sobre o Egito e a importncia

    desses estudos para restabelecer o valor das populaes africanas do Nilo. Tambm explicamos sobre a origem damatemtica, dos teoremas relacionados s pirmides egpicias.

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    alegre e acolhedora. Ainda pela manh, ocorriam as apresentaes pessoais, o posicionamento do

    objetivo do projeto e o cronograma das sequncias dos outros dias. Primeiro dia tarde:

    Fundamentao Terica e Relaes Raciais no Brasil; segundo dia, Valores Civilizatrios Afro-

    Brasileiros; terceiro dia: Metodologia e Planejamento. Em sala de aula, aapresentao do Projeto

    ficou por conta do programa Livro Animadoepisdio:Menina bonita do lao de fita, que trabalha,

    entre outros, o tema: beleza negra.

    Uma vez debatida a existncia do preconceito com relao cor e ao corpo do negro, na

    tarde desse primeiro dia, introduziu-se os textos tericos do Caderno Modo de Ver para serem

    trabalhados em grupos e, depois, apresentados de forma sistemtica em painis de cartolina. Em

    seguida, realizou-se uma oficina que se convencionou chamar de frica, que pretendia

    desmitificar a corrente viso de que o continente um pas e homogneo. Colocou-se o mapada frica no cho e separaram-se os participantes em seis grupos, cada um representando uma

    das divises geopolticas da frica: Austral, Ocidental, Oriental, Norte, Oceano ndico e Central.

    Explicou-se que essas divises no so proporcionais s diferenas culturais, econmicas e

    polticas desse continente; essa heterogeneidade vai muito alm. S a frica Central, por

    exemplo, rene 10 pases: Burundi, Repblica Democrtica do Congo, Repblica Centro-

    Africana, Chade, Congo, Gabo, Guin Equatorial, Ruanda, So Tom e Prncipe e Camares23e

    mais de 15 diferentes grupos tnicos apenas na Repblica Democrtica do Congo: kongo, luba,lunda, pende, solongo, dondo, holo, suku, yombe, yaka, wongo, mbala, kuba, chokwe, lele, luntu

    e etc24. Intercalaram-se as duas oficinas com um dos programas da srieHeris de Todo Mundo e

    com uma das primeiras partes do programa Nota Dez.Em seguida, abriu-se um debate sobre a

    anlise das imagens e a relao com as oficinas, momento este de maior troca de experincia e

    ressignificao dos preconceitos. Os momentos de debate foram primordiais para se obter o

    retorno sobre o que j havia sido ministrado.

    Esse ritmoacolhida, dinmica para motivao e introduo do tema do dia, leitura deimagem aps a exibio de um dos programas, exerccio complementar, amarrando-o com o

    debate e as atividades anteriores foi vivenciado a cada dia de capacitao, com um plano que

    pde ser utilizado como base para aulas de diversas temticas e enfoques. Essa prtica didtica

    rica, pois possibilita uma dinmica no ensino- aprendizagem que, alm de no fugir de momentos

    de leitura e aprofundamento do assunto abordado, facilita a concentrao e o aproveitamento

    pelo aluno da produo de conhecimento proposto. O debate, momento de socializao entre os

    23BELLUCCI, Beluce. (Org.). Introduo a Histria da frica e Afro-brasileira. Rio de Janeiro: UCAM e CCBB, 2003.24GABARRA, Larissa. Rapport de Satage au Muse Royale de l Afrique Centrale. Tervuren, BE, 2005.

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    alunos, viabiliza o reforo de alguns conceitos, o esclarecimento de dvidas e uma maior abertura

    para dialogar sobre os temas apresentados.

    No segundo dia, a temtica aplicada dizia respeito aos Valores Civilizatrios Afro-

    Brasileiros: Oralidade, Corporeidade, Cooperativismo (Comunitarismo), Memria,

    Ancestralidade, Ax (Energia Vital), Ludicidade, Religiosidade, Circularidade e Musicalidade. A

    oficina realizada buscou os significados para cada uma dessas palavras. O programa assistido foi

    do Livro Animado- Como as Histrias espalharam-se pelo Mundo. Atravs do personagem principal, um

    ratinho observador que circulava entre diversas sociedades africanas, instigou-se um debate sobre

    as diferenas culturais. Os valores da cultura afro-brasileira eram lembrados por meio do

    exerccio Resgate, no qual os prprios professores buscavam, a partir de seus conhecimentos

    cognitivos, as lembranas de cantigas, brincadeiras, contos de suas infncias que eramsocializados, sempre utilizando o material de artes plsticas para teatralizar suas memrias, o que

    os permitiu sair da posio, um tanto quanto rgida, de professor para adentrarem o universo

    ldico e abstrato dos alunos. A tarde era reservada para apreciao de um programa de cada srie

    e, logo aps, um planejamento de aula que utilizasse os vdeos exibidos atravs da prtica

    descrita.

    O terceiro dia era o mais difcil. Aps dois dias de intensas discusses, trocas e

    transformaes de pontos de vista pessoais, as oficinas caminhavam com um ar de melancolia.Eram muitos os professores que diziam: Levaremos o kit, mas o mesmo seria mais completo se

    vocs viessem juntos. Essa afirmao muitas vezes representava um receio em produzir

    conhecimento a partir de seus prprios saberes sobre Histria e Cultura da frica e dos afro-

    brasileiros. Ento, reiterou-se a capacidade de cada um de elaborar aulas, em que a prpria

    identidade brasileira servisse de suporte inicial para essa produo, como tambm a

    potencialidade do kitpara esse trabalho. Aproveitou-se o afeto conquistado junto aos professores

    e a adeso ao projeto para abordar o tema religiosidade africana, utilizando o vdeo Livro Animado-If. Em seguida, fez-se um jogo de bingo, no qual em vez de se sortearem nmeros, cantaram-se

    palavras do GlossrioMemria das Palavras.Assim, incentivou-se a descoberta dos significados das

    palavras afro-brasileiras e reforouse o conhecimento cognitivo dos professores. Para a tarde

    sobrava a avaliao final, a despedida, a entrega do kite, tambm, a confeco de um cronograma

    para utilizao e difuso do material nas escolas, que foi verificado na segunda fase do trabalho

    de campo, quando apenas alguns capacitadores voltaram para acompanhar o andamento do

    projeto nas escolas.

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    Na segunda edio do projeto, que tambm conta com duas fases: capacitao e

    avaliao nas escolas, alguns exerccios mudaram, mesmo que a dinmica: acolhida, aquecimento;

    exibio de um vdeo; exerccio em grupo; discusso terica; socializao, permanecesse a mesma

    da utilizada na primeira edio. Uma mudana importante foi incluso de uma via de

    comunicao entre os professores e o canal Futura, atravs de uma plataforma de Ensino a

    Distncia, elaborada pela Fundao Roberto Marinho, na qual os professores enviaram seus

    planos de trabalho no perodo entre o encontro de capacitao e os de avaliao do projeto na

    escola.

    Na prtica, o primeiro dia da segunda edio, iniciou-se com uma discusso sobre o

    racismo na escola. Essa discusso foi encaminhada a partir do texto da Eliane Cavaleiro 25, que

    possibilitou o reconhecimento da existncia de umracismo nas escolas e de uma discriminaofeita pelos prprios professores e familiares. No fim do dia, o exerccio Adinkras26, com os

    smbolos identitrios da cultura Ak e seus significados em formato de quebra-cabea, tambm

    foi muito proveitoso, pois os professores acabaram conhecendo um pouco sobre a histria do

    povo Ashanti, reino que viveu seu auge nos sculos XVIII e XIX, localizado atualmente no

    litoral da Nigria. Eles, metaforicamente, quebraram a cabea para fazer uma apresentao das

    peas, dividindo-as em conceitos transversais ou estruturantes. Na verdade, no tinha um

    resultado prvio definido, a ideia era criar a discusso e observar a complementaridade dossentidos dos dois conceitos estruturais e transversais.

    No segundo dia, os professores foram convidados a participar da elaborao da acolhida

    trazendo um exerccio. Particularmente, nas cidades de Recife e Olinda, o jogo Amor e Vida27fez

    muito sucesso e foi difundido entre todos, extrapolando a sala de aula. Eles trouxeram tambm

    um objeto pessoal que lhes remetessem ou representassem uma imagem da frica ou da afro-

    brasilidade. Com esse objeto fez-se um exerccio que se convencionou chamar de Relicrio:feito

    de papel crepom colorido com os objetos pessoais, carregados de histrias particulares. Esseexerccio foi bastante emocionante, pois despertava a identificao do professor com valores e

    expresses africanas e afro-brasileiras que fazem parte do seu cotidiano. O dia terminava com a

    socializao dos relatos sobre o que j estava sendo desenvolvido nas escolas com respeito

    implementao da Lei n 10.639/03. No encontro de avaliao, foram reforados os pontos

    25CAVALLEIRO, Eliane. Racismo e anti-racismo na Educao: repensando nossa escola. Brasilia: UnB, 2001.26NASCIMENTO, Elisa Lakin e GA, Luiz Carlos. Adinkra, Sabedoria em smbolos africanos.Rio de Janeiro: Ipeafro /Pallas Editora, 2009.27Num dilogo entre o Amor e a Vida, as duplas se revesam e demostram afetos que rompem com a rigidez doensino cartesiano.

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    positivos dos projetos em andamento nas escolas e verificaram-se as dificuldades encontradas,

    procurando no dilogo e auxlio dos professores, estratgias para venc-las.

    Avaliao Geral Parcial

    O tema Histria e Cultura da frica e afro-brasileiros extremamente delicado por

    vrios motivos, mas principalmente porque afeta o ser humano individualmente, seja ele negro ou

    branco. Na construo da ideia de nao brasileira, no houve a preocupao em nomear os

    atores nacionais oriundos das vrias etnias que fizeram do territrio do Brasil o seu lar, apenas

    privilegiaram os europeus nessa atuao. A histria do Brasil acompanhou as linhas de pesquisas

    mundiais, nas quais os negros exerceram o papel de coadjuvantes. Essa distoro historiogrfica

    muito cara conscincia do povo brasileiro de maneira geral, pois alm de limitar o

    conhecimento sobre ns mesmos, cria uma barreira preconceituosa sobre o africano e os afro-

    brasileiros.

    Por isso, a Lei n 10.639/03 e sua implementao so to importantes para resgatar a

    participao desses grupos, outrora camuflados, dando voz a indivduos que podem recontar a

    histria do Brasil que ainda se encontra distorcida nos livros didticos e bancos escolares28. No

    entanto, para que ocorra a transformao da escrita da histria do Brasil, os projetos educacionais

    em consonncia com o objetivo da Lei n 10.639/03 de valorizao dos conhecimentos de

    matrizes africanas devem enfrentar, primeiramente, o preconceito com o tema para, em seguida,

    introduzi-los nos currculos escolares sem grandes barreiras.

    Nesse sentido, o projeto A Cor da Cultura foi inovador, pois apresentou um suporte

    didtico audiovisual de altssima qualidade, acompanhado de um apoio terico-metodolgico de

    mesma qualidade. Teve como objetivo reconhecer o preconceito e apontar algumas temticas que

    podiam ser trabalhadas nas salas de aulas. A prxima etapa de responsabilidade dos professores,

    diretores, Secretarias de Educao, famlia e todos os segmentos da sociedade.

    Mesmo que as aes institucionais em prol da Lei n 10.639/03 tenham sido muitas, as

    individuais ainda so as que mais persistem, pois no cessam com o fim da programao do

    curso, mas versam sobre a vida toda do professor. Por isso, um dos principais objetivos desses

    cursos o de conquistar um pblico maior para a causa da equidade racial e social no Brasil.

    28Sobre a presena dos africanos e afro-brasileiros nos livros didticos antes da Lei n 10.639/03 ver, entre outros :RIBEIRO, Renilson Rosa; VALERIO, Mairon Escorsi & FRACCARO, Glaucia Cristina C. O negro em folhas brancas:

    ensaios sobre as imagens do negro nos livros didticos de histria do Brasil (ltimas dcadas do sculo XX).Campinas: IFCH/ UNICAMP, 2002.

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    Contundentemente, afetou-se cada um dos professores. De maneira geral, o objetivo

    proposto foi alcanado. A resposta s aulas de Histria e Cultura da frica e dos afro-brasileiros

    pelos Estados por onde passou o projeto A Cor da Culturafoi muito boa, principalmente dada a

    receptividade dos professores e o interesse em trabalhar com o tema. Eles, que participaram

    dessa capacitao, aderiram ideia de trabalhar com o kite estavam dispostos a iniciar o processo

    de transformao da educao brasileira nos seus cotidianos escolares.

    Como as capacitaes foram realizadas com os educadores em sua maioria em

    universidades e centros de convenes, ou seja, fora do ambiente escolar, no se verificou quais

    as condies reais de trabalho desses docentes. O mesmo aconteceu durante o encontro para a

    avaliao da implementao do projeto nas escolas. Nesse segundo momento, uma vez mais,

    constatou-se a disposio dos professores capacitados em iniciar o uso do kitnas suas escolas.No entanto, no foi possvel avaliar a implementao, na sala de aula, desse material que 85%

    udio visual29 e depende, alm do desejo do professor, das condies materiais e logsticas da

    prpria escola. Esse suporte didtico necessita, efetivamente, de aparelhos de TV, vdeo e som,

    do que nem todas as escolas pblicas dispem.

    Mesmo que o kit venha com quatro Cadernos do professor para apoio didtico e

    terico, a compra de outras fontes de pesquisa sobre o assunto e o incentivo contnuo so

    primordiais para a familiarizao dos professores com a histria do continente africano e dosafro-brasileiros.

    A boa receptividade em alguns casos se tratava de curiosidade e no de vontade de

    discutir o tema. Mas a curiosidade foi suficiente para aproximar esses docentes da temtica.

    Alguns deles se confrontaram com seus prprios preconceitos. Os capacitadores no ficaram

    isentos do confronto. Esse embate foi enriquecedor ao servir de foco central para a discusso,

    pois assim,quebrou-se, entre os participantes, o mito da democracia racial no Brasil.

    A expectativa de que o trabalho deveria ter sido um curso de histria da frica ficou

    marcada como a principal crtica por parte dos professores. Porm, h de se reconhecer que

    estudar uma histria que foi negada por mais de 300 anos no seria possvel em um curso de

    graduao de trs anos, quanto mais em trs dias de capacitao. Muitos dos consultores,

    organizadores do material didtico e capacitadores vm pesquisando sobre frica durante suas

    vidas. H, pois, a necessidade de criao/oferecimento de um curso de formao contnua para

    29Em 2008 e 2009, novas etapas de capacitaes e avaliaes foram realizadas nos sete estados listados no presente

    artigo. Outros estados foram includos e fizeram parte da terceira e quarta etapas de aplicao do projeto A cor dacultura.

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    os professores, alm da conscincia de que cada brasileiro, principalmente os educadores, precisa

    se dedicar mais para conhecer a histria da frica e da dispora africana no Brasil e no mundo.

    Tambm h de se reconhecer que ao experimentar os encantos do mundo afro, a sede por mais

    dessa bebida prova a eficcia e o potencial dessa rea de conhecimento.

    Devido ao reduzido tempo de trabalho em campo e os mais de 100 anos de projetos

    polticos pedaggicos escolares que excluram o tema da histria da frica e da cultura afro-

    brasileira, as demandas dos educadores foram grandes, assim, a presena dos consultores foi

    fundamental para sanar boa parte delas. Por isso, as palestras realizadas pelos consultores em

    cada estado, foram providenciais, pois ajudaram na medida em que respondiam algumas dessas

    demandas, alm de ajudarem durante o trabalho de capacitao nas salas de aula.

    A maneira como foi concebido o roteiro das atividades didticas e como foram ouvidas

    as crticas e modificados os detalhes que se faziam necessrios aprimorou o resultado das

    oficinas. Em uma das grandes discusses sobre o tema Candombl (religio brasileira de matriz

    africana), cogitou-se no abordar o mesmo. Felizmente, as avaliaes feitas entre as equipes de

    trabalho possibilitaram o entendimento de que o tema traria sempre debates calorosos e que esse

    trabalho pelo Brasil representava um momento nico para tratarmos desse assunto especfico,

    dada a existncia de uma crescente intolerncia religiosa 30. Decidiu-se manter a discusso,

    alocando-a no ltimo dia, aps o debate sobre os Valores Civilizatrios Afro-brasileiros quesensibilizava os educadores a respeitar a cosmoviso africana.

    A troca e o aprendizado so o maior ganho do trabalho. Os professores de cada regio

    traziam diferentes perspectivas de interpretao da abordagem didtica que era aplicada ao tema.

    Estabeleceu-se um intercmbio de informao muito frutfero entre eles e os capacitadores.

    Foram experincias inesquecveis, tanto as com os professores menos conscientes sobre o tema,

    com os mais preconceituosos, quanto com os mais engajados no movimento negro. Para quem

    faz esse trabalho por um ideal poltico e social, as reflexes dos diversos segmentos domovimento negro foram preciosas.

    Os encontros mostraram que a luta contra o racismoque vem sendo feita individual e

    coletivamente, em outras instncias, conquistou um territrio de aplicao real, atravs da Lei n

    10.639/03. A certeza de que trabalhar com educao formal, na perspectiva de valorizao da

    frica e dos afro-brasileiros no limitada. E a questo propriamente dita de mudana nos

    30 Sobre intolerncia religiosa ver, entre outros: RAFAEL, Ulisses Neves. Muito barulho por nada ou o Xango

    rezado baixo: uma etnografia do Quebra de 1912 em Alagoas, Brasil.Etnogrfica, Lisboa, v. 14 n. 2, p. 289-310,2010. Disponvel em : . Acesso em: nov. 2010.

    http://etnografica.revues.org/297;DOI:10.4000/etnografica.297http://etnografica.revues.org/297;DOI:10.4000/etnografica.297
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    contedos programticos no o fim dessa poltica, mas, sim, o meio pelo qual podemos

    melhorar o ensino infantil, fundamental e mdio no pas. Percebeu-se que havia uma

    convergncia entre os ideais expostos pela equipe de capacitadores do projeto A Cor da Culturae

    uma prtica inclusiva de temas relacionados com a histria da frica e dos afro-brasileiros,

    implementados de forma individual por educadores e militantes dos movimentos sociais nas

    escolas. Se em alguns momentos, difceis, imaginou-se que a implementao da Lei n 10.639/03

    poderia transformar-se em frustrao, foi um engano, ela se fortaleceu.

    Esse trabalho trouxe a conscincia de que ser negro no apenas uma questo de cor ou

    raa. Ser negro tambm um posicionamento poltico, como se pode ler nas Diretrizes

    Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria

    e Cultura Afro-Brasileira e Africana31, que est em conformidade com o Movimento Negro emtodo mundo32.

    O material do projeto possui uma qualidade singular, mas no o nico existente no

    pas e nem mesmo o nico que chegou s escolas com a proposta de atender a demanda da Lei n

    10.639/03. Existem noMEC (Ministrio da Educao e Cultura),mesmo antes da aprovao da dita

    Lei, vrios materiais pedaggicos que se prestam a essa funo, o que falta familiarizao com o

    tema por parte dos professores e diretores de escolas para que esse material no fique estocado

    nos depsitos do Ministrio e nem nos arquivos das escolas.

    Esse outro desafio que vai alm do projeto A Cor da Cultura, porque esses professores

    necessitaro de tempo para digerir o que no lhes foi dado durante toda sua histria de formao

    docente. O tempo futuro o da descoberta da diversidade africana, que no se constitui somente

    de cores, povos e tambores, mas tambm de tecnologia, riquezas minerais, cincias e, por fim, de

    um universo de histrias que esto esperando para serem contadas.

    Orubabu, at breve!

    Recebido em: 29/11/2012Aprovado em: 22/01/2013

    31BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e CulturaAfro-Brasileira e Africana, Braslia, DF, outubro, 2005.32Cf. Declarao de DURBAN de setembro de 2001, redigida durante a III Conferncia Mundial de Combate ao

    Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia Correlata na cidade de Durban na frica do Sul, distribudapela Coordenao dos Assuntos da Populao Negra de So Paulo.