Projeto TCC Bruna - Banca Qualificação

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Redes em Ciência e Tecnologia: um olhar antropológico a partir de um laboratório de Engenharia Projeto de Pesquisa apresentado como qualificação do Trabalho de Conclusão, com vistas à obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais. Acadêmica: Bruna Klöppel Orientadora: Dra. Miriam Pillar Grossi Florianópolis, abril de 2014.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Redes em Ciência e Tecnologia: um olhar antropológico a partir de um laboratório

de Engenharia

Projeto de Pesquisa apresentado como

qualificação do Trabalho de Conclusão,

com vistas à obtenção do título de Bacharel

em Ciências Sociais.

Acadêmica: Bruna Klöppel

Orientadora: Dra. Miriam Pillar Grossi

Florianópolis, abril de 2014.

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1. Introdução

1.1 Trajetória acadêmica

Inicio este projeto relatando um pouco da trajetória acadêmica que me levou à

elaboração dessa pesquisa, a ser realizada como meu trabalho de conclusão do curso.

Entendo tal relato como pertinente na medida em que parto do pressuposto de que as

questões que constroem o objeto desta pesquisa são guiadas pelo que Donna Haraway

(1995) chama de conhecimentos localizados, ou seja, que partem de um ponto de vista

local e, assim, diferem-se de um projeto de ciência que se pretende universal. Não serei,

por óbvio, exaustiva, mas acredito ser importante destacar alguns pontos que localizam

meu interesse na construção do objeto a ser pesquisado.

Após cursar um ano de Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa

Catarina (UFSC) durante o ano de 2008, passei a cursar Direito na Universidade

Regional de Blumenau (FURB), no período entre 2009 e 2011. Durante esse tempo,

realizei leituras e participei de discussões sob a orientação do professor Dr. Marcos

Antônio Mattedi1, sociólogo da ciência, coordenador do Núcleo de Estudos de

Tecnociência da mesma Universidade. O professor me apresentou Bruno Latour, suas

ideias críticas à noção clássica de “social” (LATOUR, 2005) e seus escritos sobre a

ciência (LATOUR, 2000, 2001). Além disso, a etnografia realizada por ele e Steve

Woolgar serviu de inspiração para esse projeto (WOOLGAR; LATOUR, 1997). Essa

aproximação foi retomada quando cursei a disciplina de Teoria Antropológica III, com

minha orientadora Miriam Grossi, e na segunda prática de pesquisa, realizada sob a

orientação do professor Theophilos Rifiotis2, ambas no primeiro semestre de 2013.

No segundo semestre de 2011, voltei a cursar Ciências Sociais na Universidade

Federal de Santa Catarina e, desde setembro do mesmo ano, sou bolsista de Iniciação

Científica no Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS), coordenado

pela Professora Dra. Miriam Pillar Grossi, de quem me aproximei ao cursar a disciplina

Relações de Gênero nesse mesmo semestre. Em tal núcleo, dei continuidade a uma

pesquisa desenvolvida por Giovanna Triñanes Aveiro que buscava analisar, sob um viés

de gênero, as trajetórias de Ruth Cardoso e Eunice Durham e da Escola de Antropologia

1 O professor fez estágio pós doutoral no Centre de Sociologie de l’Innovation, com Bruno Latour, em

2002. 2 Com esse professor, também pude aprender muito ao realizar a disciplina “Indivíduo e Sociedade”, em

2012.1.

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Urbana de São Paulo, da qual são criadoras. Tal pesquisa foi fundamental para que eu

me aproximasse da história do campo da qual faço parte, ou seja, a Antropologia, e para

que eu pudesse entender melhor a íntima relação entre as ciências e as dinâmicas de

poder. Foi de grande importância, portanto, para que eu pudesse formular esse novo

problema de pesquisa.3

Meus estudos então tinham se concentrado, sobretudo, em dois campos: “História

da Antropologia Brasileira” e “Gênero e Ciências”. Foi participando das discussões no

grupo de estudos promovido pelo núcleo e intitulado “Gênero e Ciências” que eu obtive

grande parte da minha formação nessa área4. Em 2013, incorporei também leituras do

campo intitulado “Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia” e do campo “Antropologia

da Ciência e Tecnologia”, em expansão no Brasil, e com o qual minha pesquisa

pretende dialogar em primeiro plano. E, por isso, foram de muita importância a minha

participação na IV Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia5 e na disciplina

de Antropologia da Ciência e da Tecnologia, ministrada pela professora Edviges Ioris

em 2013.2.

Outro ponto importante nessa trajetória foi ter acompanhado em 2013 algumas

atividades da pesquisa realizada pela pós-doutoranda, Dra. Caterina Rea6, no campo da

farmacologia. Dentre tais atividades, tive a oportunidade de acompanhá-la em algumas

de suas incursões a campo em um departamento de farmacologia bastante reconhecido

no Brasil. Foi a partir daí que passei a ter vontade de fazer também uma pesquisa que

olhasse para a ciência e tecnologia a partir de um laboratório considerado de excelência.

A oportunidade surgiu quando, durante a disciplina “Teoria Antropológica III”,

ministrada por minha orientadora em 2013, fizemos uma visita a um laboratório de

3 Ainda está no prelo a publicação com os resultados das pesquisas realizadas no NIGS e no quadro do

projeto PNPD CAPES vinculado ao PPGICH – UFSC sobre gênero e ciências, na qual se inclui o meu artigo junto de minha orientadora Miriam Grossi sobre Ruth Cardoso e Eunice Durham, e o trabalho de Caterina Rea sobre a farmacologia. 4 Esse grupo foi coordenado pela pós-doutoranda Caterina Rea e contou com a participação de diversos

outros integrantes do NIGS, como minha orientadora Miriam Pillar Grossi, as pós-doutorandas Arianna Sala e Pilar Miguez, e graduandos e pós graduandos, como Julia Godinho, Bruno Cordeiro, Camila Laurindo, Laura Martendal, Carla Nagel, Izabela Liz Schlindwein, Vinicius Kauê Ferreira, Fernanda Azeredo de Moraes, Jimena Massa, Cristhian Caje, e ainda outros. Também contamos com intervenções das professoras Luzinete Simões Minella (UFSC) e de Ilana Lowy (CERMES-França), que foram fundamentais para minha pesquisa. 5 O evento aconteceu na UNICAMP entre 24 e 26 de setembro de 2013. A coordenação geral foi

realizada por Daniela T. Manica (IFCS/UFRJ), Marko S. Monteiro (DPCT/UNICAMP) e Pedro P. Ferreira (IFCH/UNICAMP). 6 Caterina Rea, atual professora da UNILAB, foi bolsista pós doutoral no projeto PNPD – CAPES sobre

gênero e ciências, desenvolvido no NIGS.

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engenharia considerado de excelência e entrevistamos o professor/pesquisador

responsável. Nessa entrevista, além de outros assuntos abordados, o professor disse que

o laboratório estaria aberto para que uma pesquisa fosse ali realizada. Foi nesse contexto

em que se abriu a possibilidade de se pensar neste projeto e a partir daí pude começar a

construir um objeto de pesquisa.

Estudar um laboratório de engenharia foi algo pela qual me interessei porque há,

em geral, pouco ou nenhum diálogo entre as ciências ditas humanas e as ditas exatas,

apesar da proximidade destas em uma mesma universidade. Além disso, pude perceber

ao ter contato com os estudos sociais da ciência, e também no cotidiano da

universidade, uma espécie de rivalidade entre essas ciências que se pensam tão

diferentes. Como escreveu Oscar Calavia Sáez (2008)7,

A relação entre os dois grandes blocos da ciência se estabeleceu de um modo

parecido ao que contrastou capitalistas e comunistas durante a guerra fria.

Um certo consenso sobre áreas de influência predefinidas – grosso modo

correspondente ao divisor natureza-cultura –, unido a um menosprezo dos

princípios do outro bloco, raramente proclamado em público. Para os

praticantes das hard sciences, as ciências humanas são um blá-blá-blá inócuo;

para os humanistas, o outro lado está sempre à beira da blasfêmia de lesa

humanidade. Uma atitude bem mais irada surge quando as fronteiras são

violadas: os sicários das ciências exatas (veja-se o affaire Sokal) dizem

finalmente o que pensam dos tagarelas quando estes ousam se aventurar na

física ou na vida de laboratório, e os letrados olham como cobras

peçonhentas aqueles agentes do outro lado mais proclives a se aventurar no

seu território (geneticistas, ecólogos, etólogos e outras alimárias). (SÁEZ,

2008, p. 15)

1.2 Primeiras descrições do campo

A “guerra fria” continua

Como parte de minha pesquisa de campo, acompanhei nos últimos meses os

acalorados debates na rede social facebook nos quais essa rivalidade também apareceu

de forma bastante marcada entre @s estudantes da UFSC. Tais debates, nos quais os

estereótipos são constantemente reafirmados, são geralmente caracterizados por

discordâncias entre alun@s do Centro Tecnológico (CTC) e do Centro de Filosofia e

Ciências Humanas (CFH). A entrada da polícia federal, militar e do batalhão de choque

na UFSC no último 25 de março também deflagrou uma polarização na Universidade.

Enquanto a maior parte d@s alun@s que ocuparam a reitoria durante três dias e

protestaram contra a entrada da polícia militar no campus eram do Centro de Filosofia e

Ciências Humanas (CFH), a maior parte d@s alun@s que protestaram contra a

ocupação e em apoio à entrada da polícia militar no campus eram do Centro 7 Professor que tive o privilégio de ter nas disciplinas de Teoria Antropológica I (2012.1) e Mitológicas

(2013.2).

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Tecnológico (CTC). O auge do embate foi na sexta-feira, 28 de março, em que os dois

grupos se encontraram no centro da Universidade e se enfrentaram com palavras de

ordem e vaias. Enquanto o “grupo do CTC” hasteava a bandeira brasileira e cantava o

hino nacional, o “grupo do CFH” hasteava a bandeira símbolo do movimento LGBTs e

entoava palavras de ordem contra o racismo, o machismo, a homolesbotransfobia, a

presença da polícia militar no campus, em prol dos trabalhadores e em memória das

mais recentes vítimas da polícia no País. A partir dessa polarização, os debates ficaram

ainda mais acirrados no facebook, nos quais o CFH é associado constantemente à

esquerda, ao comunismo e ao socialismo e, a partir do último incidente, também ao uso

e tráfico de maconha. Já os integrantes do CFH, que comentam menos no grupo,

associam o CTC à direita liberal ou conservadora e utilizam o termo “coxinha”8 para

fazer referência a eles. Acusações de machismo, racismo e homofobia são diversas

vezes dirigidas contra estudantes do CTC. Tomo como exemplo algumas dessas falas,

retiradas do grupo aberto da UFSC no facebook9. Lá, um aluno de ciências da

computação comenta que “o ideal seria colocar câmeras por todo o cfh e em seguida

congelar as atividades do CTC (consequentemente a arrecadação de $$$) por um ano e

observar em pay-per-view os bunda-rojas definhando sem ter quem parasitar.” Com

esse comentário, demonstra acreditar que o CTC é quem sustenta os cursos do CFH.

Outra aluna, do curso de Química, concorda com ele, quando diz:

As pessoas de outros centros gostando ou não tem que estar conscientes que

o que direciona as verbas pra universidade são as publicações cientificas!!!

Todos os cursos são importantes pra sociedade, mas a verdade tem que ser

dita o CTC e o CFM são os centros que mais publicam!!! Fim de papo!!!!

Em outra discussão, sobre o Ciência sem Fronteiras10

, uma aluna do curso de Farmácia

defende a manutenção da exclusão das ciências humanas do programa, dizendo: “Claro

que repassar conhecimento é muito importante, mas isso não produz alimentos, não

desenvolve cura pra doenças nem produz tecnologia, então acho impossível querer

colocar humanas como área mais importante numa sociedade.” Por fim, reproduzo

8 Tal termo se popularizou a partir das manifestações de junho de 2013 e tem sido usado por pessoas

consideradas de esquerda para fazer referência às pessoas com posições políticas conservadoras e/ou mal informadas. 9 Reproduzo as falas como foram escritas na rede social. Além disso, as informações sobre as pessoas

que tecem esses comentários também são retiradas do facebook, através dos respectivos perfis. 10

Segundo consta no sítio oficial, www.cienciasemfronteiras.gov.br/web/csf/o-programa, o Ciências sem Fronteiras é um programa do governo federal que “busca promover a consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da competitividade brasileira por meio do intercâmbio e da mobilidade internacional.” O programa, contudo, não contempla todas as áreas do conhecimento, privilegiando as chamadas áreas prioritárias.

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ainda uma crítica que um aluno de engenharia mecânica faz aos movimentos que lutam

contra o preconceito, geralmente apoiados no grupo por alun@s do CFH:

Esta rolando aí um coitadismo por parte de alguns negros que se deixam

levar por esses movimentos e põe a culpa de todo problema que sofrem na

vida por sua cor de pele. Na maioria das vezes as pessoas não tratam mal as

outras por cor de pele, sexo, condição social ou etc, tratam mal por serem

escrotas mesmo.

O laboratório

O laboratório pesquisado foi fundado nos anos 1980 e faz pesquisas básicas e

aplicadas em uma das áreas de Engenharia. Logo após sua fundação, disponibilizou um

software comercializável, hoje utilizado por muitas empresas e grupos de pesquisa no

Brasil e no exterior. Em 1997, foi contemplado com um projeto pelo Programa de

Apoio a Núcleos de Excelência (PRONEX) do CNPq, sendo pioneiro na obtenção de

recursos e do prestígio a ele associado e o único da área a ter integrado o grupo de

laboratórios PRONEX na Região Sul do Brasil. Sua equipe é composta, no início de

2014, por 8 professores, 17 alun@s de doutorado, 08 alun@s de mestrado, 9 alun@s de

Iniciação Científica, 1 secretária executiva e 1 administrador de rede.11

Logo na entrada do laboratório, lê-se na porta de vidro as inscrições que

identificam o laboratório junto dos dizeres “Núcleo de Excelência – PRONEX”. Em

2013, para entrar e sair livremente por essa porta, era necessário que se obtivesse um

cartão magnético; caso contrário, dever-se-ia interfonar para que a secretária abrisse a

porta. Em março do presente ano, a porta estava ficando aberta. Há no laboratório um

espaço de recepção com três cadeiras, uma geladeira e os escaninhos dos professores

associados ao núcleo. Em um mural, há ainda um quadro de fotos d@s integrantes com

seus respectivos nomes e funções, avisos de defesas, propagandas de congressos

nacionais e internacionais da área e anúncios de aulas de inglês e francês. Há ainda a

sala da secretária e uma sala de aproximadamente 10m2 para cada professor (com

exceção de três deles, que dividem uma maior) e outro espaço comum com

aproximadamente 30m2, com 30 cabines com computadores disponíveis para os

integrantes do laboratório. Há aparelhos de ar condicionado em todos os espaços e uma

rede de internet com o nome do laboratório. Os professores associados ao laboratório

vestem calças jeans, camisas polos ou camisetas das mais diversas cores e sapatos. Os

11

Informações retiradas do sítio do laboratório. Acessado em 26/01/2014.

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estudantes se vestem também com calças jeans, camisetas e alguns com tênis e outros

com sapatos.

Dentre os oito professores do laboratório, sete são pesquisadores com bolsa PQ

do CNPq. Cinco deles estão na categoria 1 (entre esses, dois em nível A, um em nível

B, um em nível C e um em nível D) e dois na categoria 2. Dentre todas as pessoas que

integram o laboratório, apenas cinco são mulheres. Dentre elas, duas são alunas de

doutorado, outras duas são alunas de iniciação científica e a secretária, sendo que não há

nenhuma professora mulher associada ao núcleo e nem alunas de mestrado. A presença

de mulheres na engenharia, um campo na qual a maior parte das pessoas se

autoidentifica como homens, foi amplamente debatida por Carla Cabral12

em sua tese de

doutorado (2006), na qual tentou explorar a dinâmica desse processo excludente.

Entender o que o elemento gênero implica para a vida em laboratório será um dos

objetivos dessa pesquisa.

O laboratório trabalha também associado a algumas empresas da região sul do

Brasil. Alguns alunos fazem a parte experimental de suas pesquisas nessas empresas, às

vezes utilizando ensaios já prontos realizados por elas e outras realizando eles mesmos

dentro das empresas. Poucas das experiências são realizadas dentro da Universidade.

Esse é um procedimento bastante comum nos laboratórios de engenharia da

Universidade pesquisada. O laboratório possui também convênios com laboratórios de

outras duas universidades brasileiras e de universidades da Bélgica e da França.

2. Objeto de Pesquisa

A pesquisa tem como principal objeto de reflexão as redes que se formam a

partir de um laboratório considerado de excelência na área de Engenharia13

. Sabe-se que

essas redes, ao mesmo tempo em que tornam a existência desse laboratório possível

enquanto tal, também são modificadas por ele enquanto existe. Tomo como objeto a

análise desse processo quando se trata de um laboratório considerado de excelência na

área de Engenharia. Isso significa entender as relações entre o laboratório e aqueles que

o integram, a própria Universidade, o CNPq e outros órgãos do governo, além dos

convênios supracitados. Levando em conta também a minha formação na área de

12

Carla Giovana Cabral também realizou pós-doutorado no NIGS, na área de história das ciências, estudando a trajetória de Helena Amélia Stemmer, primeira engenheira professora da Universidade Federal de Santa Catarina. 13

Optei, por questões éticas, por não dar elementos que possam identificar o tipo de pesquisa e área específica de conhecimento do laboratório estudado.

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Gênero e Ciências, também incluo nessa rede as concepções de gênero que as

percorrem, explicitamente ou não.

3. Justificativa

Os estudos no campo da Antropologia da Ciência e Tecnologia têm se mostrado

pertinentes porque explicitam as relações constitutivas entre ciência e sociedade,

demonstrando que as redes de produção do conhecimento - e ao mesmo tempo produção

da sociedade - são muito mais complexas e protagonizadas por um número muito maior

de agentes do que se poderia pensar em princípio. O trabalho de Daniela Manica (2012)

sobre tecnociência contraceptiva, por exemplo, mostrou como as pesquisas científicas e

os pesquisadores na área da saúde se ligam a laboratórios farmacêuticos, agências de

financiamento nacionais e internacionais, à Organização Mundial da Saúde, a

concepções de gênero e a ainda outros agentes. Tal contextualização na forma de

mapeamento dessas redes é importante na medida em que localiza vários interesses e

agentes diversos que se articulam para a formação de qualquer laboratório e,

consequentemente, de qualquer dispositivo tecnocientífico que venha a ser produzido a

partir dele. A pesquisa que faço dá continuidade a esse trabalho de identificação dessas

redes, mas partindo de um laboratório de engenharia considerado de excelência.

Acredito que uma pesquisa que evidencie essas redes que envolvem um laboratório

considerado de excelência científica na área seja importante para entendermos melhor

como funciona a produção do conhecimento científico (e da sociedade). Isso

principalmente por se tratar da engenharia, área na qual o governo brasileiro tem

investido bastante por considerá-la estratégica na busca do “desenvolvimento e da

soberania nacional” (CAPES, 2010, p. 287).

4. Objetivos

4.1 Objetivo Geral

O objetivo geral é mapear e entender as redes que se formam a partir de um

laboratório de Engenharia considerado de excelência pelo Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

4.2 Objetivos Específicos

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a) Compreender como acontece a produção e a formação científica nessa rede

específica da qual o laboratório faz parte;

b) Identificar como se constituem os diferentes pontos da rede que se ligam ao

laboratório;

c) Acompanhar e descrever o cotidiano dos integrantes dentro do laboratório e,

quando possível, também fora dele;

d) Investigar como são as relações entre os diferentes integrantes do laboratório

com as outras instituições que fazem parte da rede;

e) Descrever as relações entre os integrantes, com olhar atento às possíveis

hierarquias dentro do laboratório;

f) Investigar quais as concepções de gênero, também em interseção com outras

categorias, compartilhadas pelos integrantes do laboratório e no que isso

afeta o coletivo.

5. Quadro Teórico

As Engenharias

Como mostram Silvia Figuerôa (2010) e Simone Kropf (1996), no Brasil do século

XIX, quando do debate sobre a remodelação da cidade do Rio de Janeiro, os

engenheiros se identificaram como um grupo comprometido com o projeto de

modernização nacional. Através do “saber instrumental”, legitimaram-se perante a

sociedade como representantes dos ideais de progresso e modernidade e, portanto,

capacitados para intervir na realidade social. Tal legitimidade se mantém - muitas vezes

também associada à racionalidade conferida pelo saber científico “duro” - e o poder

político associado a ela é bastante significativo.

Atualmente, esse poder político se traduz também nos maciços investimentos

realizados pelo governo brasileiro através de sua política científica e tecnológica,

representada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. No último Plano

Nacional de Pós-Graduação, as engenharias estão colocadas entre as áreas consideradas

estratégicas para o desenvolvimento e a soberania nacional, através do programa Pró-

Engenharias. Esse programa tem como objetivos

contribuir para o fortalecimento e a ampliação de programas de pós-

graduação stricto sensu no país, promover o intercâmbio e estimular

parcerias entre diversas Instituições de Ensino e Pesquisa; e apoiar a

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formação de recursos humanos em nível de pós-graduação stricto sensu.

(CAPES, 2010, p. 287)

Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia

O campo da Antropologia da Ciência e Tecnologia, ainda recente, surge a partir do

diálogo da antropologia com campos diversos. Um deles foi o que se convencionou

denominar Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT). Marcos Mattedi (2006)

explica que o campo teve como um de seus precursores Robert Merton, nos anos 1930.

Ele foi um dos primeiros a tomar a ciência como objeto de estudo sociológico, tendo

rompido com os epistemólogos. Depois dele, há uma segunda onda, que tem seu foco

menos nos cientistas e mais no conhecimento produzido cientificamente e sua relação

com a sociedade. Seus mais relevantes representantes são o Programa Forte da

Sociologia do Conhecimento, com David Bloor, e o Programa Empírico do

Relativismo, com Harry Collins e Trevor Pinch. Há ainda, a partir dos anos 1970, uma

terceira onda, mais focada na prática da pesquisa científica. Esse movimento se iniciou

com as etnografias de Karin Knorr-Cetina (1983) e Bruno Latour (1997), realizadas nos

Estados Unidos, marcando um rompimento com as abordagens estruturalistas. É nesse

momento que se dá o início de uma aproximação mais explícita entre os ESCT e a

antropologia. Isso porque esses dois autores se apropriam do instrumental metodológico

por excelência da antropologia, a etnografia. Além disso, Latour (1997) dialoga

diretamente com a antropologia quando a critica dizendo que ela até então nunca se

voltou para o centro e restringiu-se apenas às margens, dizendo pouco sobre as

instituições pilares da sociedade ocidental. Ao mesmo tempo, ainda, a Antropologia

também passou a se interessar por temas ligados à ciência e à tecnologia, expandindo

seu interesse para além das culturas não ocidentais. Assim, há um cruzamento entre os

ESCT e a antropologia que, em partes, passam a convergir em direção a uma

antropologia da ciência.

Antropologia e Etnografia das Ciências

A entrada da etnografia nos ESCT marcou também o crescimento do campo e a sua

institucionalização disciplinar, como colocado por Marko Monteiro (2012). Esse autor

coloca ainda que não há consenso em torno do que significa fazer “etnografia da

ciência”; o que existe é uma convivência de diversas abordagens que demonstram a

diversidade de práticas e relações que compõem os contextos tecnocientíficos. As

primeiras etnografias no âmbito das ciências, às quais já fiz referência acima, estão

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associadas à abordagem construtivista do conhecimento científico e o caráter contextual

(tempo e espaço) da prática científica. Sendo assim, é importante pontuar ainda que a

ida da análise da produção do conhecimento enquanto prática dentro do laboratório para

o contexto social na qual este se insere “tem sido uma orientação cada vez mais

relevante nos ESCT, justamente na sua interseção com a etnografia.” (MONTEIRO,

2012, p. 141) Tal ponto se contrapõe à ideia de que a etnografia estaria restrita ao

“micro”, o que levou alguns críticos a dizer que ela não possibilitaria questionamentos

sociológicos mais globais.

Contudo, nem todos os estudos antropológicos relativos à ciência e à tecnologia

estiveram sempre ligados aos ESCT. Monteiro (2012), mapeando os antecedentes

teórico-metodológicos de uma linhagem antropológica dos estudos sobre práticas e

contextos científicos, identifica os estudos feministas e de gênero, do qual falarei em

seguida, e outra leva interessada em práticas ligadas às biotecnologias, e também

relacionada com debates metodológicos na disciplina. Nesse quadro, os debates em

torno de saúde/doença, natureza/cultura, corpo e identidades são frequentes. Paul

Rabinow é, dentro desse contexto, uma referência fundamental, com sua ideia de

“biossocialidade” e seus questionamentos quanto à divisão clássica entre natureza e

cultura. A etnografia multissituada (MARCUS, 1995) também tem aqui um espaço

importante, chamando atenção para a necessidade de perpassar fronteiras espaciais bem

delimitadas, já que hoje não se pode ignorar a circulação de pessoas, objetos e

conhecimentos em circuitos globais.

Gênero e Ciências

Além dos ESCT, o campo denominado Gênero e Ciências, que se consolidou nos

Estados Unidos na década de 1980, também foi fundamental para uma mudança no

olhar sobre a ciência e para o desenvolvimento do campo da antropologia da ciência.

Gênero é entendido aqui como uma “categoria usada para pensar as relações sociais

que envolvem homens e mulheres, relações historicamente determinadas e expressas

pelos diferentes discursos sociais sobre a diferença sexual.” (GROSSI, 1998, p. 5). Isso

significa dizer que penso o gênero como relacional, situado social e historicamente.

Além disso, é importante ressaltar que a categoria gênero precisa estar sempre em

intersecção com outras categorias, a fim de que a análise reflita melhor as complexidades

das relações sociais existentes. É necessário, portanto, um olhar atento a essas

intersecções que, como ensina Antônio Flávio Pierucci (1999), estão presentes “num

Bruna Klöppel
Highlight
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mesmo indivíduo de pertencimentos múltiplos, múltiplas lealdades, múltiplas posições,

múltiplas identificações e identidades grupais, múltiplos ‘reposicionamentos’ além do

mais.” (PIERUCCI, 1999, p. 143)

Quanto ao campo Gênero e Ciências, pode-se dizer que a física e bióloga Evelyn

Fox Keller foi das primeiras a refletir acerca da ciência com um olhar dos estudos de

gênero. Em um artigo clássico na qual faz um balanço das críticas feministas à ciência

(1982), ela diferencia as de caráter liberal das mais radicais. Segundo ela, as críticas de

caráter liberal alcançam os privilégios masculinos nas práticas empregatícias, de gestão

e de condução de pesquisas. Já as críticas mais radicais teriam como alvo o

androcentrismo como princípio das ciências e os próprios pressupostos de objetividade

e racionalidade. Dentro desse segundo grupo de críticas, as teorias feministas do ponto

de vista tiveram como uma de suas proeminentes representantes Sandra Harding. A

autora (HARDING, 1993; 2001) coloca as tensões entre as principais correntes da

epistemologia feminista, diferenciando-as entre as mais afins ao projeto iluminista

moderno e aquelas consideradas mais radicalmente anti-iluministas. O primeiro grupo –

associado ao empirismo feminista - estaria mais apegado aos ideais de objetividade e

racionalidade. Tal corrente entende que uma ciência feminista é capaz de corrigir as

distorções feitas pela ciência androcêntrica, sendo assim mais capacitada para alcançar

os fatos da realidade. O objetivo, portanto, é o mesmo das ciências tradicionais:

resultados objetivos e isentos de valor. De outro lado, nas correntes mais claramente

anti-iluministas, da qual a teoria feminista do ponto de vista é um exemplo, há uma

radicalização da historicidade e localidade das ciências, levando em conta a situação

concreta e social d@s praticantes da ciência. Harding tenta superar tais diferenças,

defendendo uma “ambivalência principista” autoconsciente e articulada teoricamente

(HARDING, 2001, p. 113). Ao mesmo tempo em que rechaça o relativismo radical de

algumas posições pós-modernas, ela defende que as epistemologias feministas do ponto

de vista levantam exigências teóricas e políticas importantes, como o caráter parcial da

ciência, a relação intrínseca entre saber e poder, a ideia de que as produções científicas

se dão socialmente e a importância da experiência histórica e social das mulheres.

Apesar da enorme importância política e teórica que podemos atribuir à teoria

feminista do ponto de vista, ela também é passível de críticas por se apresentar muitas

vezes como essencialista. Como coloca Donna Haraway,

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Não há um ponto de vista feminista único porque nossos mapas requerem

dimensões em demasia para que essa metáfora sirva para fixar nossas visões.

Mas a meta de uma epistemologia e de uma política de posições engajadas e

responsáveis das teóricas feministas de perspectiva permanece notavelmente

potente. (HARAWAY, 1995, p. 32)

Outro risco que corremos com a noção de que há apenas um ponto de vista feminista

é o de silenciar as mulheres que não têm os privilégios dado às mulheres cis14

, brancas,

heterossexuais e de grupos economicamente favorecidos. É o caso de grande parte das

mulheres não brancas, trans, lésbicas, colonizadas, dentre outras. Também concordo

com Donna Haraway (1995) quando ela é cética em relação a uma ciência

epistemologicamente superior, defendendo a inevitável localidade e parcialidade de

qualquer conhecimento – o que, em última instância, implica também em assumir

responsabilidade por nossas práticas científicas. Não se trata, contudo, de perseguir a

parcialidade por si mesma, “mas pelas possibilidades de conexões e aberturas

inesperadas que o conhecimento situado oferece” (HARAWAY, 1995, p. 33). Haraway

também tem um papel importante na medida em que, em sua crítica à ciência, acaba por

desconstruir binômios constitutivos da modernidade ocidental, caros à antropologia,

como natureza/cultura, sujeito/objeto e construtivismo/realismo. Seguem o mesmo

caminho as críticas de Ilana Löwy (2000) em direção à noção de universalidade.

Revisando o trabalho de alguns historiadores da ciência, lembra que estes chegaram à

conclusão de que “não é porque são universais que os conhecimentos científicos

circulam, eles são universais porque circulam.” (LÖWY, 2000, p. 31) E relembra ainda

que para manter essa circulação e difusão de práticas, instrumentos e indivíduos é

necessário um investimento contínuo de tempo, dinheiro e trabalho. Para essa autora, os

conhecimentos localizados e parciais são a única alternativa ao totalitarismo de uma

visão única e ao relativismo radical. É essa a ciência que “pode abrir caminho para uma

outra definição de objetividade e de universalidade – definição que inclui a paixão, a

crítica, a contestação, a solidariedade e a responsabilidade.” (LÖWY, 2000, p. 38)

Atualmente, conforme Caterina Rea coloca na parte introdutória do livro sobre

gênero e ciências que será publicado em 2014, os principais focos de pesquisa desse

campo no Brasil podem ser divididos em estudos sobre a participação, inclusão e

visibilidade das mulheres na ciência; estudos sobre mulheres pioneiras em diversas

14

Segundo Jaqueline Gomes de Jesus, “chamamos de cisgênero, ou de “cis”, as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando ao nascimento. (...) Denominamos as pessoas não-cisgênero, as que não se identificam com o gênero que lhes foi determinado, com transgênero, ou trans.” (GOMES DE JESUS, 2012, p. 10)

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áreas de conhecimento; análises de como as epistemologias feministas modificaram a

ciência e, por fim, os estudos que se cruzam mais diretamente com os ESCT, voltando-

se mais para as formas de interseção entre conhecimento científico e conhecimento

sobre gênero e sexualidade – principalmente nas ciências biomédicas. Portanto, os

estudos sobre gênero e ciências, os quais têm crescido significativamente no Brasil e

fora dele, têm contribuído muito para o entendimento da ciência, do conhecimento e da

prática científica.

Há diversas aproximações e distanciamentos entre os ESCT e o campo chamado

Gênero e Ciências. Segundo Maria Margaret Lopes (1998) uma das aproximações é

explícita, no conceito de “objetividade forte”, criado por Sandra Harding para tratar do

olhar privilegiado proporcionado pelo ponto de vista feminista. Esse conceito estaria

fazendo referência ao Programa Forte de Sociologia do Conhecimento, de David Bloor,

e dialogando diretamente com ele. Entretanto, Lopes (2006) critica essa reapropriação

do conceito de objetividade por parte de algumas feministas, sustentando que dessa

forma acabaram por reforçar a história das ideias. Dessa forma, elas se distanciaram de

outros movimentos contemporâneos – como os ESCT que, além de refutar as

interpretações tradicionais de que as ideias flutuavam em espaços conceituais, também

“avançavam velozmente na busca de maiores e mais amplas contextualizações de

temporalidades, localidades e caracterizações da diversidade das culturas

tecnocientíficas.” (LOPES, 2006, p. 43) O problema, na visão de Maria Margaret, é que

as epistemologias do ponto de vista feminista não questionaram a centralidade e a

atemporalidade do conceito de objetividade com que trabalharam. Outra aproximação se

dá quanto à noção de localidade. As afinidades entre os conhecimentos situados de

Donna Haraway (1995) e Ilana Löwy (2000) com o pensamento de Steve Shapin são

evidentes. Como já comentei sobre as duas autoras acima, cito Shapin quando coloca

que

science is undeniably made in specific sites, and it discernibly carries the

marks of those sites of production, whether sites be conceived as the personal

cognitive space of creativity, the relatively private space of the research

laboratory, the physical constraints posed by natural or built geography for

conditions of visibility and access, the local social spaces of municipality,

region, or nation, or the "topical contextures" of practice, equipment, and

phenomenal fields. (SHAPIN, 1995, p. 306)

Já outro distanciamento acontece quando os ESCT criticam algumas autoras feministas

que essencializam a ciência como masculina, desconsiderando aspectos contextuais. Já

as críticas colocadas pelas feministas em direção aos ESCT tomam dois sentidos. O

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primeiro refere-se ao receio feminista de cair em um relativismo radical, que nem

sempre é compartilhado pelos teóricos dos ESCT, já que nem todos têm uma

preocupação assumidamente política como os estudos feministas. A segunda questão é a

que Margaret Lopes (1998) aponta: se os ESCT reconhecem a eficiência única com que

o conhecimento científico viaja, carregando marcas dos sítios específicos onde é

construído, por que o gênero nunca foi levado em consideração como uma dessas

marcas? Por que a questão de gênero teve tão pouca entrada nos ESCT?

Quanto aos estudos sobre ciência no campo antropológico no Brasil, escreve Sergio

Carrara (2012) que tiveram início a partir dos estudos sobre a história da própria

disciplina. Depois disso, expandiram-se através de antropólogos que trabalhavam em

escolas de saúde pública, institutos de medicina social ou cursos de saúde coletiva. Por

fim, acabou se espalhando entre os mais diversos âmbitos. É assim que nos últimos 20

anos, o campo da antropologia da ciência e tecnologia tem se expandido muito no

Brasil, e também está em diálogo muito próximo com os ESCT e os estudos feministas.

O livro organizado por Claudia Fonseca e Fabiola Rohden (2012) e as Reuniões de

Antropologia da Ciência e Tecnologia (2007, 2009, 2011, 2013), além dos grupos de

trabalho organizados para a última Reunião Brasileira de Antropologia (2012) e para a

X Reunião de Antropologia do Mercosul (2013) ilustram o crescimento do campo nos

últimos anos no País.

As Redes em Ciência e Tecnologia

Em trânsito entre esses campos, são diversos os autores que me servem de

inspiração para a construção e análise de meu objeto de pesquisa. É o caso de John Law

(1992), Donna Haraway (1995) e Bruno Latour (2000), por suas noções de redes

fluidas, temporárias e que se dão em função de associações em torno de diversos

interesses, que se misturam e transformam uns aos outros. Bruno Latour e John Law,

além de Michel Callon, são os expoentes do que ficou conhecido como Actor-Network

Theory (ANT), ou Sociologia da Tradução. Segundo John Law (1992), os principais

autores da ANT, que começaram estudando ciência e tecnologia, chegaram à conclusão

de que o conhecimento era corporificado em diversas formas materiais (artigos, livros,

patentes, conferências, dentre outros), sendo produto final de trabalho no qual elementos

heterogêneos são justapostos numa rede que supera suas resistências. Na visão da ANT,

a ciência é então

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a process of ‘heterogeneous engineering’ in which bits and pieces from the

social, the technical, the conceptual and the textual are fitted together, and so

converted (or ‘translated’) into a set of equally heterogeneous scientific

products. (LAW, 1992, p. 381)

Seguindo tal argumento, não interessam às ciências sociais apenas as pessoas,

mas também as máquinas, os animais, os textos, o dinheiro e tudo o que estiver inserido

nessa rede que é sempre heterogênea. Nesse contexto, a nossa tarefa seria caracterizar

tais redes em sua heterogeneidade e explorar como geram poder e desigualdades, sem

pressupor, em última análise, um determinismo tecnológico ou social. Como nos ensina

Leticia de Luna Freire (2006), o que Bruno Latour e Michel Callon fizeram foi dar

continuidade ao trabalho de David Bloor que, em 1976, deu início ao Programa Forte.

A ideia principal desse programa era de que os estudos sobre as ciências deveriam levar

em conta tanto o contexto social quanto o conteúdo científico. Para isso, Bloor sugeriu o

princípio de simetria, que dizia “que os mesmos tipos de causas devem explicar as

crenças valorizadas como verdade e as rechaçadas, uma vez que não há diferença

essencial entre verdade e erro” (FREIRE, 2006, p. 48). Só dessa forma seria possível

tratar simetricamente os vencidos e os vencedores. Estendendo tal princípio, Latour e

Callon propuseram o princípio de simetria generalizada, na qual, além do erro e da

verdade, também a natureza e a sociedade devem ser analisadas sob um mesmo plano e

não separadamente. Dessa forma, trata-se de analisar essa rede heterogênea dando

espaço a todos os seus elementos, sejam máquinas, humanos, animais ou outros.

Para a ANT, ainda segundo John Law (1992), os agentes sociais não estão

localizados apenas nos corpos. Cada ator (ou actante) é uma rede de relações

heterogêneas ou um efeito delas. A alegação é de que todos os traços que geralmente

atribuímos somente aos seres humanos são gerados em redes que passam pelo corpo e

vão tanto para dentro, como para além dele. É por isso que, para a ANT, todo ator é

também uma rede. Tal raciocínio, se generalizado, leva-nos a entender não só pessoas,

máquinas e animais como redes, mas também as organizações e instituições. Elas são

entendidas como redes nas quais há papeis precariamente padronizados desempenhados

por pessoas, textos, máquinas, prédios – sendo que todos estes podem tornar a rede

instável quando oferecem algum tipo de resistência. Tal rede pode ser ainda mais

expandida se pensarmos com Latour (2000) que, ao utilizar a ANT para analisar a

ciência, mostrou como os cientistas, para poderem fazer aquilo que chamamos de

ciência e tecnologia, integram redes nas quais se inserem não só cientistas, mas também

empresas e indústrias, políticos, agências de financiamento, gestores, mídia, associações

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– isso para não listar todos os objetos materiais envolvidos e necessários. Sem todos

esses elementos em uma relativa estabilidade, não é possível a consolidação de

descobertas científicas e nem o desenvolvimento de pesquisas – o que se poderia pensar

como a atividade fundamental de um cientista.

6. Métodos

A etnografia, como explica Theophilos Rifiotis (2012), é produzida a partir da

definição de um objetivo de pesquisa relacionado à fundamentação teórica, de registros

realizados enquanto há o contato com o campo pesquisado e, por fim, a análise do que

se produziu e a escrita do texto etnográfico. James Clifford (1998) coloca ainda alguns

outros pontos que são fundamentais para a pesquisa etnográfica clássica, como a

observação direta e participante, a centralidade das práticas e modos de falar do grupo

pesquisado, a observação feita a partir de partes que ao final são integradas em uma

totalidade e a necessidade de diálogo entre informações teóricas e observações de

campo. Clifford Geertz (1978) acrescenta ainda outras características: segundo ele, a

etnografia é sempre um registro fixo de um discurso social dinâmico, é interpretativa e

microscópica.

Contudo, como colocam Latour e Woolgar (1997), a etnografia das ciências

pode se diferir um pouco da etnografia clássica já que “o campo da primeira confunde-

se com um território, enquanto o da segunda toma a forma de uma rede” (LATOUR;

WOOLGAR, 1997, p. 37). A etnografia multissituada, defendida por George Marcus

(1995), também ajuda a pensar uma etnografia que ultrapassa fronteiras e estabelece

conexões em escalas diversas, já que observamos hoje a intensa circulação de pessoas,

de objetos e de conhecimentos. É necessário, segundo o autor, que sigamos as

trajetórias dos fenômenos, tratemos de fazer as conjunções das situações e

estabeleçamos as associações entre elas. É o que se pretende fazer aqui.

Para a realização da pesquisa, utilizarei do método etnográfico, privilegiando a

observação do cotidiano de trabalho das pessoas envolvidas com o laboratório, assim

como defesas de trabalhos de conclusão de estudantes vinculados ao laboratório e, se

possível, acompanharei um congresso/evento de peso na área para observar o lugar que

os membros deste laboratório ocupam no campo nacional e internacional. Entrevistas,

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formais e informais, fazem parte da pesquisa de campo, seguindo algumas questões

chaves desse projeto.

a) Observação das defesas de trabalho de conclusão de curso, dissertações e teses

de pesquisadores do laboratório;

b) Observação das práticas nos laboratórios com atenção à distribuição de tarefas

entre os pesquisadores;

c) Entrevistas formais e informais com colaboradores envolvidos nas atividades

relativas ao laboratório, incluindo, além dos pesquisadores, iniciantes ou não,

outros profissionais que fazem parte do cotidiano de trabalho;

Farei também uma pesquisa documental através da análise de currículos, editais nos

quais o laboratório concorre e publicações acadêmicas do grupo estudado dentro de sua

área de conhecimento.

a) Análise dos currículos Lattes dos pesquisadores envolvidos na produção

acadêmica;

b) Análise de editais e resoluções do PRONEX e do INCT;

c) Análise dos principais livros, revistas e outras publicações da área, com atenção

às publicações dos integrantes do laboratório.

7. Cronograma

Mar Abr Mai Jun Jul

Pesquisa bibliográfica X X

Pesquisa de campo X X

Organização dos dados e análise X X

Redação de trabalho de

conclusão de curso

X X X

8. Referências Bibliográficas

CABRAL, Carla Giovana. O Conhecimento Dialogicamente Situado: histórias de vida,

valores humanistas e consciência crítica de professoras do centro tecnológico da

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