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PROJETO DE PESQUISA DE PÓS-DOUTORADO A dinâmica da construção social do cinema: os modos de organização do espetáculo cinematográfico em Porto Alegre entre 1908 e 1914. PROPONENTE: Dra. Alice Dubina Trusz SUPERVISOR: Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin Porto Alegre, 08 de março de 2012.

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PROJETO DE PESQUISA DE PÓS-DOUTORADO

A dinâmica da construção social do cinema: os modos de organização do

espetáculo cinematográfico em Porto Alegre entre 1908 e 1914.

PROPONENTE: Dra. Alice Dubina Trusz

SUPERVISOR: Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin

Porto Alegre, 08 de março de 2012.

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RESUMO

Este projeto tem por objetivo central desenvolver uma investigação histórica

sobre as práticas que caracterizaram a exibição cinematográfica em Porto Alegre entre

1908 e 1914, examinando as formas de exploração comercial e os modos de

organização do espetáculo ao longo da primeira fase da sedentarização da atividade no

contexto local. Além de preencher um vazio historiográfico sobre a temática na década

de 1910 e produzir conhecimentos fundados em dados verificáveis, este estudo deverá

problematizar certas idéias sobre a sedentarização da exibição. Na historiografia local, e

mesmo nacional, o processo tem sido percebido como sinônimo da autonomização do

cinema enquanto gênero espetacular, sendo as salas de cinema condições dessa

especialização das práticas. Segundo a percepção corrente, estes aspectos

caracterizariam, de modo definitivo, a nova fase, quando teriam sido encerradas as

práticas de exibição da fase itinerante, marcada pela heterogeneidade da oferta e da

apropriação. Informações levantadas em pesquisa preliminar indicam, ao contrário, a

instabilidade da exibição e uma padronização apenas relativa dos modos de exibição,

que sofreram modificações ao longo do período 1908-14, sendo inclusive retomadas

práticas peculiares às formas de composição e organização dos espetáculos

cinematográficos anteriores a 1908, como, por exemplo, a associação das projeções com

atrações de variedades, o uso de aparelhos sonoros mecânicos e a realização de funções

únicas. Trata-se, portanto, de rediscutir a concepção do cinema como gênero espetacular

acabado, que teria finalmente alcançado, com a abertura das salas especializadas

permanentes e práticas correlatas, o seu padrão definitivo de funcionamento,

estabelecendo igualmente um modelo imutável de “sessão de cinema”.

Pretende-se contribuir para a compreensão do processo de consolidação do

cinema como gênero espetacular, atividade econômica e prática cultural, considerando a

importância que outras formas artísticas tiveram sobre a construção do cinema enquanto

forma específica, em vista da renovação da reflexão correspondente às pesquisas

efetuadas nos últimos anos neste domínio pela comunidade científica. O estudo do caso

local também deve criar condições para futuras e mais amplas abordagens e discussões,

que permitam identificar as relações entre outras experiências, regionais, nacionais e

mesmo internacionais, permitido o estabelecimento de comparações e a verificação das

soluções comuns e particulares experimentadas em cada contexto.

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A dinâmica da construção social do cinema: os modos de organização do

espetáculo cinematográfico em Porto Alegre entre 1908 e 1914.

INTRODUÇÃO

Em novembro de 2009, a Secretaria do Audiovisual (SAV) do Ministério da

Cultura lançou, juntamente com o Instituto Iniciativa Cultural e a Ecofalante, o Prêmio

SAV para Publicação de Pesquisa em Cinema e Audiovisual (2009-2010). A iniciativa

teve por objetivo incentivar a produção científica e cultural do país, selecionando três

pesquisas que abordassem o cinema e o audiovisual brasileiro em suas mais diferentes

manifestações. O prêmio seria a publicação dos trabalhos vencedores em formato de

livro, idéia de reconhecido valor considerando-se a imperiosa necessidade de

divulgação e socialização dos conhecimentos que têm sido produzidos no âmbito da

academia e que não têm circulado além dos seus limites.

Nessa que foi a sua primeira edição, minha tese de doutorado - intitulada “Entre

lanternas mágicas e cinematógrafos: as origens do espetáculo cinematográfico em Porto

Alegre (1861-1908)” e desenvolvida junto ao PPG de História da Universidade Federal

do Rio Grande do Sul - saiu vencedora na sua categoria. De acordo com o texto final da

Comissão de Seleção, os trabalhos premiados “destacaram-se pela qualidade,

contribuindo para preencher lacunas na literatura existente e estimular novas

investigações nessas frentes”. As publicações foram lançadas em outubro de 2010,

durante o XIV Encontro Internacional da Socine, em Recife.

Na tese em questão, investiguei as práticas que caracterizaram a exploração

comercial do cinematógrafo para fins de entretenimento desde a sua introdução na

cidade de Porto Alegre (RS), em 1896, até a abertura das primeiras salas permanentes

especializadas na exibição cinematográfica, em 1908, a fim de compreender como se

constituiu o espetáculo cinematográfico no meio local. A necessidade de conhecer o

contexto cultural de efetivação dessa dinâmica, visando identificar as suas

especificidades locais, os seus elementos formadores e as relações entre eles

estabelecidas, determinou o recuo da pesquisa à segunda metade do século XIX. O

objetivo de tal procedimento metodológico foi identificar as práticas culturais que

caracterizavam as formas de entretenimento visual anteriores e contemporâneas ao

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surgimento do cinematógrafo, especialmente aquelas relativas aos espetáculos públicos

de projeções de lanterna mágica, de cuja existência havia indicações esparsas.

A investigação acabou confirmando que as exibições cinematográficas não

foram uma prática inédita enquanto espetáculo de projeções quando apresentadas em

Porto Alegre, em 1896, mas se inscreveram em um contexto já enriquecido por uma

larga tradição espetacular lanternista, com a qual o cinema continuaria mantendo

estreitos vínculos durante a sua primeira década de exploração comercial. Verificou-se,

assim, que desde 1861, ao menos, as projeções luminosas haviam estado entre as

atrações locais de entretenimento, juntamente com o teatro, o circo, os concertos e as

touradas, e que os espetáculos nos quais eram exibidas dispunham de uma organização,

um espaço e uma importância cultural consideráveis, construídos ao longo de décadas e

valorizados pelos contemporâneos em função das possibilidades lúdicas e informativas

das imagens.

Ao ineditismo da investigação de tais práticas somou-se outro desafio de mesmo

caráter, desta vez movido pelo objetivo de identificar as características da exibição

cinematográfica durante a fase dita itinerante, que teria se encerrado em 1908, com a

abertura das primeiras salas de cinema da cidade. Ao longo do período, as projeções

cinematográficas foram realizadas em Porto Alegre de forma descontínua e irregular.

No entanto, tais aspectos, somados à supervalorização da sedentarização da atividade

exibidora, à crescente narrativização e legitimação artística dos filmes, à racionalização

da indústria cinematográfica e consolidação econômica do cinema, que marcaram a

década de 1910, acabaram contribuindo para que a primeira década da história do

cinema se tornasse objeto de grande desinteresse entre os pesquisadores locais.1

A desvalorização do período e da filmografia que lhe correspondeu foi uma

característica da historiografia do cinema mundial anterior à década de 1970, que

percebeu esta fase da história do cinema como “primitiva”. Esse conceito passou a ser

questionado por uma nova geração de estudiosos, cujos trabalhos foram apresentados no

Congresso de Brighton, realizado na Inglaterra em 1978. O evento ficou conhecido

como marco da redescoberta do “cinema dos primeiros tempos”, cuja motivação foi a

necessidade de elucidar questões de ordem teórica, sobretudo, relativas à gênese da 1 Trata-se dos pioneiros e sem dúvida inquestionáveis iniciadores da construção da história do cinema na cidade e no Estado, Antônio Jesus Pfeil e Cláudio Todeschini, que de forma geral tiveram suas descobertas reproduzidas por pesquisadores subseqüentes, como Fábio Steyer e Susana Gastal. Estes últimos acabaram incrementando as pesquisas sobre a história do cinema, mas apenas no que respeita aos períodos posteriores à primeira década. As referências completas a essas obras encontram-se na bibliografia final do projeto.

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linguagem cinematográfica, às problemáticas da narratividade e da evolução da

montagem, entre outras (GAUDREAULT, 1988: 103). A intenção não era propriamente

proceder a uma investigação histórica, mas questionar a naturalidade aparente da

“linguagem cinematográfica”, constituída entre 1907 e 1917, e tomada como referência

para a avaliação (e depreciação) do período, da produção e das práticas que a

antecederam. O conceito de “cinema primitivo” tinha por fundamento uma preocupação

teleológica e a idéia de progresso ou aperfeiçoamento não somente das técnicas, mas

também das formas que fundavam a história do cinema.

Autores como Tom Gunning e André Gaudreault, precedidos por Noel Burch, na

verdade, foram os primeiros a demonstrar que as normas do cinema narrativo clássico

(ou o modo de representação institucional, segundo Noel Burch) não haviam existido

desde sempre, mas eram um produto histórico e a expressão de um momento da

codificação, constituindo-se essa enquanto processo dinâmico e não acabado. Por essa

razão, defenderam tais pesquisadores que o “cinema dos primeiros tempos” fosse

analisado segundo as finalidades e códigos de sua época. A linguagem cinematográfica

clássica que o sucedeu não poderia ser tomada como a sua finalidade, o seu modelo

ideal.

Por outro lado, pesquisadores mais estreitamente voltados para a história

passaram a investigar os documentos da época e os filmes, objetivando restituir o

processo de constituição da forma filme, ou seja, com pretensões teóricas. Representa

essa tendência Charles Musser, entre outros. Mesmo arquivistas e responsáveis por

acervos do período se interessaram pelas questões, simultaneamente históricas e

teóricas, como Eileen Bowser, do MOMA. O fato é que as discussões e pesquisas

realizadas a partir do interesse pelo “cinema dos primeiros tempos” motivaram o retorno

do diálogo entre teoria e história no campo dos estudos cinematográficos e

ultrapassaram o estudo do período, estimulando uma problematização global de toda a

abordagem da história do cinema.2

2 Outros encontros sucederam àquele de Brighton, marcando as etapas da transformação historiográfica que colocou o cinema no cruzamento de múltiplas disciplinas: história cultural, estética, das técnicas, política e econômica. Entre os vários textos onde as mudanças são debatidas e apresentadas, destacam-se pela significativa distância temporal que apresentam e pela visão mais completa que proporcionam do processo GAUDREAULT, André e GUNNING, Tom. Le cinéma des premiers temps: un défi à l’histoire du cinéma? In: Histoire du cinema. Nouvelles approches. AUMONT, Jacques; GAUDREAULT, André e MARIE, Michel (Org.). Paris: Colloque de Cerisy/ Publications de la Sorbonne, 1989. p. 49-63 e GUNNING, Tom. Le cinéma des premiers temps. Trafic. Qu’est-ce que le cinéma?, Paris, n. 50, p. 327-336, été, 2004.

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No entanto, os primeiros pesquisadores da história do cinema em Porto Alegre,

embora tenham publicado os seus estudos na década de 1990, reproduziram a

abordagem tecnológica e evolucionista da historiografia tradicional do cinema,

percebendo como revolucionária a chegada do cinematógrafo à cidade e priorizando os

nomes dos primeiros exibidores e as datas de suas estréias. Já a primeira década da sua

exibição comercial foi por eles percebida como uma fase de manifestações irrisórias,

durante a qual o cinema não teria passado de uma atração de circos ambulantes e feiras

temporárias e por isso sem importância. Alguns dados desconexos sobre os exibidores,

aparelhos e locais de exibição identificados no período foram arrolados, mas

priorizando-se a produção. Pelas mesmas razões, as salas especializadas permanentes

abertas a partir de 1908 foram percebidas como expressões de um feliz sinal de

progresso a encerrar uma fase pouco ou nada representativa para a história do cinema

enquanto fenômeno sócio-cultural.

No que respeita à ênfase à produção em detrimento de outros âmbitos da história

do cinema, como a distribuição, a exibição e a sua apropriação pelo público, é uma

característica da produção historiográfica sobre o cinema no Brasil.3 Conforme

demonstrou Jean-Claude Bernardet (1995), essa tendência estava vinculada a uma

tradição peculiar aos primeiros estudos brasileiros de caráter histórico sobre o cinema,

os quais, diferentemente da historiografia clássica do cinema mundial, representada

sobretudo por Georges Sadoul, mas também da historiografia latino-americana do

cinema, afirmaram as origens do cinema no Brasil estabelecendo como marco de sua

história uma filmagem e não uma projeção. Essa percepção foi reproduzida ao longo do

século XX por outros pesquisadores, ganhando maior elaboração no contexto dos anos

1960, quando se vivia a afirmação do cinema de autor no país. Podendo ser

compreendida como uma “profissão de fé ideológica”, ela foi incorporada naquele

contexto por um discurso histórico que expressava uma reação ao mercado, dominado

pela produção estrangeira, e refletia também uma visão corporativista dos cineastas

3 A historiografia produzida em torno dessa perspectiva, absolutamente hegemônica, mereceu uma análise contundente de Jean-Claude Bernardet e uma retrospectiva crítica de Arthur Autran. Ambos observaram o caráter limitado da compreensão da história do cinema brasileiro reduzida também à idéia de ciclos regionais, à preocupação com as origens e os auges da produção ficcional. A característica, segundo Autran (2007: 24-5), permaneceu marcando as produções da “historiografia universitária”, terceira fase do panorama elaborado pelo autor, verificada nos anos de 1970. Essa produção foi incrementada na década seguinte e diversificada do ponto de vista dos interesses temáticos e abordagens, abarcando o estudo das instituições e o papel do Estado na produção cinematográfica, mas ainda reproduzindo a perspectiva dominante desde a década de 1950, comprometida ideologicamente com a defesa da cinematografia brasileira.

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brasileiros sobre si próprios. Tal filosofia orientou as negociações dos cineastas com as

instituições governamentais, mas se mostrou unilateral, limitada e deficitária, pois a

preocupação com a proteção da produção os levou a ignorar a distribuição e a exibição,

refletindo-se também sobre a historiografia do cinema no Brasil.

No caso das interpretações sobre a primeira década do cinema em Porto Alegre,

observa-se que estiveram orientadas por uma visão anacrônica e um juízo de valor

fundado tanto no despreparo dos seus pesquisadores e seu desconhecimento das normas

regulamentares da disciplina História, quanto na ausência de uma investigação histórica

sobre aquele contexto. O problema é que certas generalizações sem base factual e rigor

metodológico produzidas a partir desse vazio historiográfico acabaram se perpetuando.

Como exemplo, podem ser citadas as idéias de que durante a fase da exibição itinerante

a presença dos exibidores cinematográficos na cidade teria sido episódica e

insignificante, de que o cinema não se distinguiria de outros gêneros de diversões,

restringindo-se a uma atração de feiras, e de que somente com as salas “fixas” é que se

teriam criado condições para a constituição do espetáculo cinematográfico e para a

formação do seu público espectador.

Diferentemente, a investigação que resultou na tese de doutorado acima referida

demonstrou que o período entre 1896 e 1908 foi marcado, em Porto Alegre, por uma

intensa atividade exibidora e um crescente envolvimento do público com o cinema. O

fato de a exibição cinematográfica ter sido protagonizada por exibidores itinerantes e

oferecida por temporada só demonstra a integração do cinematógrafo ao contexto

espetacular e cultural do seu surgimento, já que tais características não lhe foram

peculiares ou por ele instituídas, sendo comuns aos demais gêneros espetaculares e

representativas da lógica do sistema das diversões públicas da época.

Por outro lado, evidenciou-se que a experiência acumulada pelos exibidores na

sua prática profissional e empresarial e pelo público apreciador do novo gênero de

imagens, que eles atraíram e conquistaram, proporcionou à atividade da exibição

durante a fase itinerante as condições que permitiram a própria abertura das salas

especializadas permanentes a partir de 1908. Este segundo “evento”, da mesma forma,

ganhou novo significado quando confrontado com o fato de que também foram abertos

estabelecimentos do gênero em Porto Alegre anteriormente, os quais funcionavam

segundo o mesmo padrão. A diferença inicial mais evidente entre as “salas de cinema”

anteriores e posteriores a 1908 é que as primeiras tinham duração temporária e as

segundas foram abertas com pretensão de longa duração.

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Entre outros aspectos igualmente inéditos revelados pela pesquisa destaca-se a

observação da integração da capital gaúcha não somente às redes e rotas que envolviam

a Capital Federal e outras cidades do sul, sudeste, norte e nordeste do país, mas também

da América Latina e Europa (TRUSZ, 2008). Nas trajetórias desenvolvidas pelos

exibidores, em sua maioria estrangeiros, observou-se trocas e vínculos significativos

entre as experiências porto-alegrenses da exibição e aquelas das cidades platinas e

centro-americanas, além das brasileiras, traço ausente na escassa bibliografia geral sobre

o tema da exibição no Brasil.4

A partir dos novos conhecimentos trazidos pela tese sobre os dois períodos e

processos culturais, anterior ao lançamento do cinematógrafo e correspondente à

primeira década de sua exploração, pretendeu-se colocar em discussão as implicações

desses vazios investigativos para a construção da história do cinema em Porto Alegre. O

objetivo foi restituir a complexidade e a dinâmica da disseminação e afirmação das

práticas cinematográficas no período, as quais foram responsáveis pela constituição e

afirmação do cinema como fenômeno cultural, bem como pelo incremento das

sociabilidades públicas e do setor do entretenimento local, e pela estimulação de novas

formas de apreensão e expressão da realidade, cada vez mais mediadas pela técnica e

pautadas nas imagens.

PROBLEMÁTICA, JUSTIFICATIVAS e OBJETIVOS

A presente proposta de estudo pretende dar continuidade à investigação histórica

sobre as práticas que caracterizaram a exibição cinematográfica em Porto Alegre,

estendendo-se temporalmente no exame das formas de exploração comercial e dos

modos de organização do espetáculo que caracterizaram a primeira fase da

sedentarização da atividade, entre 1908 e 1914. Pretende-se conhecer a dinâmica deste

processo, analisando-se a complexidade das relações do cinema com outras práticas

4 Podem ser citadas como pesquisas desenvolvidas em torno desta temática e interesse: SOUZA, José Inácio de Melo. Imagens do passado. São Paulo e Rio de Janeiro nos primórdios do cinema. São Paulo: SENAC, 2004, e LEITE, Ary Bezerra. Fortaleza e a era do cinema. Pesquisa Histórica – Volume I – 1891-1931. Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 1995. Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/memoriadocinema/texto.html> Consultado em: 2007, e os próprios livros de ARAÚJO, Vicente de Paula. A bela época do cinema brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1976, e Salões, circos e cinemas de São Paulo. São Paulo: Perspectiva, 1981.

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espetaculares suas contemporâneas, com as quais voltou a associar-se, restaurando

outras formas igualmente observadas durante a fase da exibição itinerante.

Nos estudos locais já produzidos sobre a exibição cinematográfica, que na

verdade são panorâmicos, pois abrangem ora o período do cinema silencioso, ora a

centenária história do cinema, são inúmeras as contribuições à história do cinema na

cidade. Contudo, também são traços gerais dessas pesquisas as informações duplas e

excludentes sobre datas de abertura das salas, generalizações acerca do seu

funcionamento, que reduzem a uma fórmula única diferentes fases de um

estabelecimento e diferentes gêneros de estabelecimento, interpretações sem

fundamentação documental, obscuridade na origem dos dados por falta de referência às

fontes e complementação da pesquisa com registros memorialísticos e literários sem

recurso à comprovação documental.

Tais considerações remetem-se aos trabalhos de Cláudio Todeschini, Olavo

Silveira Neto, Susana Gastal, e Fábio Steyer. O estudo de Todeschini (1995) apresenta

dados históricos incorretos e generalizações temporais. Há lapsos de imaginação

romântica a incrementar a contextualização e conclusões apressadas são tiradas a partir

de indicações documentais escassas e sem representatividade. A pesquisa de Silveira

Neto (2001) abordou as salas de cinema estritamente do ponto de vista arquitetônico e

construtivo, investigando as diferentes formas e configurações por elas adotadas e suas

influências estrangeiras, mas apresenta inúmeras incorreções nos dados históricos,

recuperados a partir da literatura e não confirmados em pesquisa a fontes primárias. Já

Susana Gastal (1999) pensou o cinema como fenômeno sócio-cultural, produzindo uma

síntese de abrangência ampla e temática diversificada, que se mostra informativa e

instigante pelas questões que levanta e lacunas que sugere à pesquisa. Por exemplo,

quando observa a necessidade de investigar porque a imprensa mostrou interesse com

relação às inaugurações, sucessos e apogeus das salas, abstendo-se de tratar as

decadências e os fracassos. Porém, não apresenta uma maior preocupação com a

verificação das informações prestadas em depoimentos e memórias. O estudo de Fábio

Steyer (2001) destaca-se das demais pesquisas por mostrar-se bastante confiável do

ponto de vista das informações reunidas, visto fornecer dados corretamente

referenciados. Contudo, o predomínio de uma perspectiva enciclopédica e descritiva

acerca das temáticas presentes nos discursos da imprensa lhe confere apenas interesse

complementar.

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Por fim, há a dissertação de Stefan Bonow (2005), de interesse mais pontual, já

que teve por objetivo “evidenciar aspectos do desenvolvimento do hábito de ir ao

cinema em Porto Alegre entre os anos de 1910 e 1914, levando em consideração o

modelo de distribuição das salas de espetáculo dentro do espaço urbano da cidade”. Para

atingi-lo, o autor procurou relacionar a distribuição das salas com o seu entorno social e

populacional, buscando, simultaneamente, demonstrar a existência de uma relação entre

a construção de salas de cinema no período e a política municipal de remodelação

urbana.

A opção temporal de Bonow foi justificada por terem sido estes anos marcados

por um surto construtivo e de valorização imobiliária da região central, que teria

provocado a elitização da região como espaço de circulação e sociabilidades,

deslocando grande parte da população, a mais pobre, para os arrabaldes. Na verdade,

tais obras foram empreendidas principalmente pelo poder público e por alguns

empresários, não atingindo o âmbito residencial (DOBERSTEIN, 1992).

Transformações de vulto na fisionomia urbana da cidade só seriam empreendidas a

partir da década de 1920, as quais, somadas ao aumento dos impostos e taxações

residenciais, incrementariam o processo de segmentação social acima referido

(BAKOS, 1996).

Partindo da afirmação de que a maior parte das salas de cinema do período

esteve concentrada na principal rua da cidade, a rua dos Andradas, a mais valorizada da

perspectiva comercial e como espaço de circulação pública, o autor se propôs a provar a

tese de que o acesso ao cinema entre 1910-14 na capital gaúcha foi restrito e elitizado.

Para demonstrá-lo, elaborou um “mapa social do centro da cidade”, indicando as

alterações no perfil dos moradores. Sustentou que, em Porto Alegre, o cinema começou

por estruturar-se numa região privilegiada, surgindo como opção cosmopolita de

diversão da elite, característica que teria se intensificado a partir da remodelação urbana

de 1910-14 e do afastamento excludente da “massa trabalhadora” para áreas limítrofes.

Ou seja, a história do cinema, também para este autor, como para Todeschini, começou

com a sedentarização, e não foi em 1908, mas em 1910.

Na conclusão, afirma que os ingressos do cinema eram tão caros quanto os do

teatro, discordando da imprensa da época, que dizia o contrário. Isso ocorre porque

toma por referência o fato de que os espetáculos teatrais teriam duração média de duas

horas, enquanto que os filmes da época eram curtos. Neste aspecto, desconsiderou as

informações disponíveis na mesma imprensa consultada acerca da composição do

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programas de cinema da época, que reuniam quatro filmes de distintas durações, entre

os quais já constavam, no final de 1911, filmes de 1000m de extensão, cuja duração

seria de cerca de 50min.5 Isso significa que cada sessão devia se estender, na verdade,

por aproximadamente 1h30min. A partir de 1912, passariam a ser distribuídos

localmente filmes de extensão ainda maior.

Além do mais, embora observe o afastamento dos populares do centro nos anos

1910, o autor não coteja este dado com outro, que informa ter sido este mesmo período

caracterizado pela proliferação das salas de cinema de bairro.6 De qualquer forma,

mesmo as salas centrais, localizadas na rua dos Andradas, sempre ofereceram ao menos

duas opções de lugares e diferentes preços de ingressos, possibilidades que seriam

diversificadas a partir da abertura dos grandes cine-teatros, a partir de 1913. Nesse

sentido, a descentralização da atividade exibidora e a construção de novas e mais

amplas salas nos arrabaldes parece, ao contrário, ter aproximado o cinema de um

público socialmente mais heterogêneo e numericamente maior, democratizando o seu

acesso.

Infelizmente, a pesquisa desenvolvida por Bonow mostra-se extremamente

confusa e marcada por uma percepção estreita tanto do público de cinema quanto das

suas formas de apropriação, pois o autor só consegue perceber o consumo do cinema

entre dois extremos, popular ou elitizado. Não é outra a idéia que faz do público,

reduzido a operários pobres ou burgueses ricos, onde um aspecto ou qualidade sempre

exclui o outro. A própria idéia de centralidade, de resto, precisa ser problematizada,

visto que os espaços escolhidos pelos diferentes grupos sociais para a sua vivência

afetiva e de lazer são resultado de uma opção mais livre e subjetiva do que aquela que

determina o local de trabalho e moradia, por exemplo.

Considerando-se o conjunto das pesquisas já realizadas sobre a exibição

cinematográfica em Porto Alegre, observa-se que a década de 1910 carece de um estudo

5 Conforme tabela elaborada por Carlos Roberto de Souza, da Cinemateca Brasileira, para uso interno na instituição. Uma tabela mais completa, considerando diferentes velocidades de projeção (16, 18, 20, 22 e 24 q/s), foi posteriormente produzida por Paolo Cherchi Usai e pode ser consultada em Silent Cinema, un Introduction (British Film Institute, 2000). Na verdade, sabe-se que diferentes velocidades de projeção foram empreendidas pelos operadores nos cinemas porto-alegrenses durante o período a ser investigado, embora não se siba quais eram. 6 Em setembro de 1911 abre o primeiro cinema de bairro, o Recreio Familiar, na Azenha. Em maio de 1912 abre o Nollet, na Cidade Baixa. Em julho há o Cosmopolita, no Navegantes e em novembro, o Avenida, no centro. Em dezembro de 1912 há o Força e Luz no Navegantes e o Democrata no Floresta. Em abril de 1913 abrem o Íris e o Cine-Theatro Guarany, ambos na Andradas, no centro. Em 1914 surgem os cine-theatros Colombo, na Floresta; Apollo, na Independência; Garibaldi, na Cidade Baixa e Ponto Chic, na Floresta.

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sistemático que aborde as práticas que configuraram a exibição. Por sua vez, outras

indicações, levantadas em pesquisa prospectiva preliminar, colocam a necessidade de

problematizar certas idéias, indicando como promissor o cotejamento das experiências

verificadas localmente nos períodos anterior e posterior a 1908, inicialmente

distinguidos pelas idéias da sedentarização da exibição como sinônimo da

autonomização do cinema como gênero espetacular e das salas de cinema como

condição da especialização das práticas.

Segundo a percepção corrente na historiografia acima apresentada, estes

aspectos caracterizariam, de modo definitivo, a nova fase, quando teriam sido

encerradas as práticas peculiares à exibição itinerante, marcada pela heterogeneidade da

oferta e da apropriação. A sedentarização, ao contrário, seria pautada pela

racionalização da exploração comercial do cinema, vinculada à padronização dos modos

de exibição. No entanto, verifica-se que estes sofreram modificações ao longo do

período 1908-14, sendo mesmo retomadas algumas das práticas que caracterizaram as

formas de composição e organização dos espetáculos cinematográficos anteriores a

1908, como, por exemplo, a associação das projeções com outras atrações, de

variedades, o uso de aparelhos de sonorização mecânica e a realização de funções

únicas.

Senão, vejamos. As primeiras salas permanentes especializadas em exibições

cinematográficas abertas em Porto Alegre a partir de maio de 1908 localizaram-se

inicialmente na mesma rua dos Andradas e funcionaram de forma padronizada,

diariamente, à noite, apresentando espetáculos exclusivamente de projeções,

organizados em sessões curtas e sucessivas (TRUSZ, 2008).

Antes que isso ocorresse, porém, o público local estreitou o seu contato com as

projeções cinematográficas graças à afluência à cidade de numerosos e distintos

exibidores cinematográficos independentes, os quais realizaram temporadas de

projeções em diferentes locais, desde os centros de diversões já existentes até espaços

especializados abertos por eles próprios, mas de curta duração. No intuito de oferecer às

populações visitadas uma temporada de espetáculos tão ou mais atraente do que a dos

concorrentes congêneres, eles promoveram diversificadas iniciativas, conferindo à

oferta do cinema em Porto Alegre entre 1896 e 1908 uma marcada heterogeneidade, que

estimulou uma apropriação igualmente múltipla.

Ao longo do período, diferentes modos de exibição das vistas animadas foram

empreendidos, tendo sido identificados basicamente três padrões, os quais não foram

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excludentes, mas conviveram, alternando-se e transformando-se ao longo do período.

Eles se distinguiram quanto ao local da exibição, à organização dos programas, à

duração e dinâmica dos espetáculos, aos preços dos ingressos, aos gêneros de imagens

projetadas, aos usos dos elementos sonoros (ruídos, vozes, músicas) e à realização de

iniciativas promocionais.

Uma destas modalidades consistiu na integração das projeções cinematográficas

como atrações complementares de espetáculos de outros gêneros de diversões, como a

prestidigitação, o teatro, o circo e as companhias de variedades. Nesse caso, os filmes

substituíram as vistas de lanterna mágica, ocupando o mesmo espaço e função que lhes

era reservado no século XIX, de conferir maior variedade e atualidade aos programas.

Tais espetáculos tinham longa duração, intervalos e programas diversificados, cabendo

comumente às projeções cinematográficas o seu encerramento. Realizados nos centros

de diversões, eram acessíveis por ingressos de preços diferentes, correspondentes à

qualidade das acomodações dos estabelecimentos.

Quase simultaneamente, seriam introduzidas modalidades de exibição

autônomas, particularizando-se certas práticas. Num primeiro momento, ofereceu-se ao

público espetáculos exclusivamente de projeções, os quais eram realizados em pequenas

salas, organizadas especialmente para a atividade, porém de duração temporária. As

projeções eram exibidas em “sessões” noturnas sucessivas, cujos programas eram

compostos por vários filmes curtos. Contando com apenas uma qualidade de

acomodação, tais salas diferenciavam os preços dos seus ingressos pela faixa etária. Os

cinco estabelecimentos do gênero abertos em Porto Alegre na fase da exibição itinerante

localizaram-se na rua dos Andradas. Esse modo de exibição, que deu continuidade

àquele protagonizado pelos pioneiros em 18967 e que foi adotado em 1908 como padrão

da exibição sedentária, não foi empreendido na cidade entre 1905 e 1907.

A partir de 1901, uma terceira modalidade, também autônoma, passaria a ser

executada de forma crescente. Ela integraria práticas características do modo de

organização teatral e da tradição lanternista, conjugando elementos novos, peculiares ao

modo de exibição nas salas especializadas. Tais espetáculos, embora fossem

exclusivamente de projeções, eram realizados nos centros de diversões, sobretudo nos 7 As projeções cinematográficas foram apresentadas em Porto Alegre em novembro de 1896 por dois exibidores diferentes – Francisco de Paola e Georges Renouleau - que optaram pela ocupação temporária de salas localizadas na rua dos Andradas para realizar as suas “exposições”. Dessa forma, deram continuidade às práticas correntes de apresentação de novos inventos no período. Tais salas funcionaram diariamente, à noite, por cerca de vinte dias, projetando filmes como atrações exclusivas de sessões curtas e sucessivas, às quais tinha-se acesso mediante o pagamento de 1$000rs por pessoa.

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teatros. A apropriação desses espaços para exibições cinematográficas estava

relacionada a um esforço de afirmação do cinema como gênero espetacular, o que se

daria igualmente pela incorporação das práticas já institucionalizadas no meio.

Em resultado, os espetáculos apresentavam duração prolongada e programas

entremeados por intervalos e diversificados segundo o gênero e temática das imagens:

vistas animadas e fixas, em P&B e em cores, silenciosas e sonorizadas. Padrões de

organização interna e externa do espetáculo, relativos aos dias de sua realização e à

qualidade dos programas, também foram observados e seguidos em seus princípios

gerais pela maioria dos exibidores ao longo dos anos. Um exemplo foi a realização das

exibições em dias alternados, à noite, podendo ocorrer também nos domingos à tarde. A

duração prolongada e a variedade dos programas tornaram tais espetáculos,

denominados “funções”, mais caros do que aqueles realizados “por sessões”, apesar de

serem acessíveis por ingressos de valores diferentes.

Este terceiro modo de exibição concentrou as mais diversificadas e numerosas

iniciativas promocionais. Os espetáculos eram regularmente distinguidos como funções

de gala, da moda, de despedida, comemorativas a datas históricas e beneficentes.

Também foram organizadas matinês dominicais infantis com meia-entrada ou entrada

franca, além da distribuição de doces e sorteios de prêmios, assim como a extensão da

temporada a um segundo teatro com redução nos preços dos ingressos.

Como a modalidade mais experimentada em Porto Alegre durante a fase

itinerante da exibição, a apresentação autônoma das projeções em espetáculos

organizados por funções foi aquela à qual se pode creditar a maior responsabilidade e

influência sobre o incremento do gosto pelo cinema entre a população local, o

estabelecimento do hábito da freqüentação aos espetáculos cinematográficos e a

formação do público espectador de cinema. Apesar disso, ela foi renegada pelos

exibidores que deram início à sedentarização, os quais adotaram em seus

estabelecimentos o modo de exibição das salas especializadas temporárias da fase

itinerante, o mesmo sob o qual vinham trabalhando os cinematógrafos abertos no Rio de

Janeiro desde 1907. Por essa razão, divulgou-se na época que as novas salas

funcionariam segundo o “sistema carioca”.

Assim, observa-se que o processo de sedentarização da exibição cinematográfica

em Porto Alegre concentrou-se na afirmação das salas especializadas como espaços

legítimos de realização da atividade, num esforço de definição de um lugar e modo

próprios de organização do espetáculo, orientados para a autonomização. A opção por

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este modo de funcionamento evidencia, por sua vez, uma escolha pela separação e

distinção do cinema em relação ao teatro, embora práticas específicas aos modos de

mostrar e ver cinematográficos já caracterizassem a exibição autônoma de inspiração

teatral.

A sedentarização atendeu principalmente a um intuito de reorientar a exploração

comercial do cinematógrafo no sentido da sua racionalização e consolidação como

prática econômica. Afinal, o cinema já era reconhecido e experimentado localmente

como novo gênero de espetáculo e nova opção de diversão antes de 1908, embora sua

oferta e freqüentação obedecessem a uma regularidade própria, diversa, caracterizada

por um caráter esporádico e temporário. Da mesma forma, observou-se que a formação

do gosto pelo cinema entre o público de Porto Alegre foi anterior à sedentarização da

exibição, tendo sido o seu maior estímulo, a sua condição. Foi justamente a

especialização das práticas e o crescimento do grau de exigência do público do gênero

que estimularam a abertura das salas especializadas permanentes.

A partir delas, porém, seriam redefinidas as práticas de exibição e apropriação

do cinema. Pois embora a abertura das salas exibidoras permanentes – pequenas, com

uma ou duas opções de lugar, funcionando nos mesmos dias e horários e segundo o

mesmo modo simplificado de exibição - possa ter ampliado inicialmente os lucros dos

exibidores, não significou melhores condições de apreciação do espetáculo para o

público, nem mais ricas possibilidades de sua apropriação. Ao contrário, a

homogeneização da oferta e do modo de organização do espetáculo, assim como a

campanha promocional que envolveu a inauguração e afirmação das salas, resultaram na

elitização social do acesso público e na padronização e empobrecimento da apropriação.

Num momento seguinte, porém, a regularização da atividade e as necessidades

decorrentes do aumento da concorrência acabariam estimulando a introdução de novas

práticas promocionais pelo setor exibidor, destinadas a criar novas formas de distinção

entre as salas congêneres. Tais iniciativas procuraram estreitar os laços entre o público e

os estabelecimentos, estimulando a fidelização dos espectadores aos espaços. Assim, os

habitués do gênero seriam convidados a se tornar habitués das casas exibidoras,

passando a ser rapidamente identificados pela imprensa não mais como apreciadores do

cinema mas como frequentadores do Recreio Ideal ou do Variedades. Mais do que

expressar a divisão real deste público, tais práticas vocabulares expressavam um

interesse em personalizar, embora em caráter coletivo, a relação entre o setor exibidor e

os espectadores cinematográficos.

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Se, por outro lado, a abertura das salas permanentes não interrompeu

imediatamente a prática das exibições temporárias protagonizadas pelos itinerantes, o

negócio da exibição sedentária, por sua vez, se mostraria bastante instável nos seus

primeiros anos, com salas trocando de proprietário e/ou de endereço e mesmo fechando.

Das cinco salas permanentes abertas em 1908, apenas o Variedades e o Recreio Ideal

permaneceram funcionando durante 1909, quando juntou-se a eles o Smart-Salão.

Por outro lado, evidenciando o dinamismo do setor, verificou-se que, já a partir

de 1911, investimentos passaram a ser feitos na reforma das salas exibidoras,

procurando-se ampliá-las e dotá-las de melhores condições estruturais e higiênicas,

sendo igualmente abertos novos estabelecimentos do gênero a partir de 1912.

Localizadas sobretudo nos arrabaldes mais populosos, tais salas contribuiriam para

descentralizar a exibição, ampliando e diversificando socialmente o acesso público aos

espetáculos cinematográficos, com o que estimulavam uma nova transformação na

qualidade da oferta e da apropriação do cinema.

No que respeita à distribuição cinematográfica, o período foi marcado por

mudanças nas redes comerciais, sendo estabelecidas representações locais assumidas

pelos próprios exibidores e diversificada culturalmente a oferta de filmes, rompendo-se

a hegemonia francesa no mercado local com a introdução progressiva de produções

italianas, dinamarquesas e norte-americanas. Paralelamente, os filmes transformaram-se

dos pontos de vista técnico e estético. Além de terem sua duração gradualmente

estendida, foram objeto de renovação temática e complexificação narrativa. Tais

aspectos provocaram uma maior valorização dos filmes como produtos individuais e um

maior interesse de exibidores e público sobre a organização dos programas.

As transformações verificadas nos produtos exibidos e nos modos de exibição

teriam implicações também sobre as formas de apropriação do cinema, exigindo que

estas últimas se mostrassem igualmente dinâmicas para dar conta das novas exigências

colocadas pelos filmes. Aos exibidores coube pensar alternativas que contribuíssem

para dar maior fluidez à experiência cinematográfica, estreitando as relações entre

espectadores e filmes e, assim, entre público e cinema. Era necessário tornar essa

experiência não somente efetiva, mas satisfatória, de modo que a ida ao cinema se

afirmasse como uma prática habitual e prazerosa. É provável que estejam relacionadas a

tais demandas práticas como as pré-estréias de filmes, introduzidas a partir de 1909, e a

produção de folhetos, programas e anúncios impressos, identificada em 1912, com os

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resumos dos argumentos dos filmes, destinados a informar os espectadores sobre os

seus conteúdos antes da sua difusão em sala.

A prática do acompanhamento oral dos filmes silenciosos, tão comum em países

como o Canadá, Japão, Rússia, Bélgica e França8, não foi identificada em Porto Alegre

como característica da exibição cinematográfica entre 1896-1907 e aparentemente

também ausentou-se entre 1908-1915. Por outro lado, verificou-se existir uma

preocupação em proporcionar informações textuais prévias sobre os filmes aos

espectadores, num processo que se qualificaria progressivamente ao longo dos anos.

Várias questões podem ser colocadas nesse sentido, cabendo investigar, por exemplo, se

a produção e disponibilização dos impressos com os resumos dos enredos assumiu

função semelhante àquela dos explicadores dos filmes entre o público local e quais

foram as suas implicações sobre a apropriação.9 A questão é que, em Porto Alegre, a

prática parece ter sido pontual, restringindo-se a determinadas salas, o que chama a

atenção para a necessidade de considerar a heterogeneidade dos modos de exibição e

divulgação, respeitando-se as especificidades culturais e os diferentes usos que

caracterizaram a experiência cinematográfica em cada contexto.

Os usos dos elementos sonoros durante as projeções também permitem observar

soluções diversificadas, considerando-se a retomada de práticas experimentadas na fase

itinerante por algumas salas entre 1910 e 1912, como o emprego de aparelhos de

reprodução sonora mecânica. A constatação fragiliza a idéia de que as orquestras

passaram a fazer o acompanhamento contínuo das projeções a partir de 1908. A prática

promocional de instalar bandas militares em frente às salas de cinema durante as

projeções, período durante o qual executavam números musicais, também instiga a

pensar sobre os usos sonoros externos e internos às salas e suas implicações sobre a

qualidade da apropriação dos filmes.

Outra característica do período foi a transformação dos programas de algumas

salas exibidoras no sentido da incorporação às projeções de outras atrações, artísticas. Já

em 1910, o Recreio Ideal integraria aos programas de suas sessões, alternando-se aos

filmes, números apresentados ao vivo por cançonetistas e inclusive transformistas e

8 IRIS. Revue de théorie de l’image et du son/ A journal of theory on image and sound. Dossier “Le bonimenteur de vues animées/ The moving picture lecteur. Nº 22, automne, 1996. Institute for Cinema and Culture, University of Iowa, USA. 9 O estudo de Alain Carou (2005), cujo objeto são os suportes escritos, em particular as narrativas impressas de filmes distribuídas antes do espetáculo na França entre 1907-14, questionou o papel desses fascículos na experiência espectatorial, indagando sobre o momento de sua leitura e sobre a sua influência na interpretação, linearização e memorização da narrativa fílmica.

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ilusionistas, atrações marcadamente novecentistas. Este cinematógrafo retomaria a

exclusividade das projeções a partir de 1911, quando trocou de proprietário, mas não foi

o único a oferecer números de variedades em seus programas. Também o Variedades e

o Odeon os apresentaram, antes ou depois das projeções, mas em 1911. O fato é que as

diferentes soluções conviveram, sem que, num primeiro momento, os programas mistos

se generalizassem. A partir de 1913, seriam abertos os cine-teatros, salas construídas

prevendo-se a diversificação dos programas, isto é, planejadas como espaços dotados de

condições estruturais apropriadas para oferecer “atrações de palco e tela”. Embora não

haja pesquisas esclarecendo se este modo de organização dos programas estendeu-se às

demais salas, o fato é que em 1915 praticamente todas as salas de cinema, inclusive

aquelas não construídas e nem auto-promovidas como cine-theatros, ofereciam

programas mistos.

O conjunto das indicações arroladas demonstra a propriedade de se

problematizar a idéia da sedentarização da exibição e da abertura das salas permanentes

como sinônimos de autonomização, padronização e estabilidade da atividade exibidora,

e, por outra parte, da qualidade ou natureza da oferta e suas implicações sobre a

apropriação. Trata-se de rediscutir, também com relação ao período 1908-14, a

concepção do cinema como gênero espetacular acabado, que teria finalmente alcançado,

com a abertura das salas especializadas permanentes e a restrição dos seus programas à

projeção de filmes, o seu padrão definitivo de funcionamento, estabelecendo igualmente

um modelo imutável de “sessão de cinema”.

A presente proposta de estudo tem por objetivo examinar tais questões, entre

outras, privilegiando o mundo da sala, a experiência da projeção, as formas de

organização dos programas e de funcionamento dos espetáculos em seus elementos

constituintes, visuais e sonoros. Pretende-se ainda, na medida do possível, evidenciar o

lugar social e cultural do espectador na história global do cinema, inscrevendo a história

do público do cinema em uma história das práticas culturais mais ampla, e

particularmente naquela das diversões populares (BOSSÉNO, 1995).

Serão aspectos de interesse da investigação as iniciativas promocionais dos

exibidores, a qualidade da oferta e da sua apropriação, as relações entre o cinema e

outros gêneros espetaculares e diversões públicas. A idéia é examinar que campos se

relacionam e como e identificar em que aspectos e em que sentidos essa dinâmica

contribui para explicar as diferentes soluções adotadas pelos exibidores

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cinematográficos visando tornar mais atraente a sua oferta junto ao público e mais

estável e lucrativo o seu negócio.

Um dos objetivos é contribuir para a compreensão do processo de consolidação

do cinema como gênero espetacular, atividade econômica e prática cultural,

considerando a importância que outras formas artísticas tiveram sobre o

desenvolvimento e afirmação do cinema enquanto forma específica. Tal abordagem

alinha-se com a renovação da reflexão correspondente às pesquisas efetuadas nos

últimos anos neste domínio pela comunidade científica.

Do ponto de vista historiográfico, se buscará também preencher um vazio

investigativo importante na história da exibição cinematográfica no Brasil a partir do

estudo do caso porto-alegrense, produzindo conhecimentos fundamentados em dados

verificáveis. Tal proposta de investigação tem por fim criar condições para futuras e

mais amplas abordagens e discussões, que permitam a identificação das relações entre

outras experiências pontuais, contribuindo para a construção de uma história que

envolva as realidades regionais, nacionais e mesmo internacionais e possibilite o

estabelecimento de comparações e a verificação das soluções comuns e particulares

experimentadas em cada contexto.

FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

O cinema surgiu como uma nova tecnologia de percepção, reprodução e

representação e se tornaria uma mercadoria cultural de produção e consumo de massa.

O processo de sua caracterização e afirmação como gênero espetacular, intensamente

exercitado durante a primeira década de sua exploração comercial, teve continuidade

durante a fase da exibição sedentária, paralelamente à constituição do cinema como

novo espaço de congregação social na esfera pública.

Tal concepção do cinema como prática cultural construída socialmente deverá

orientar a investigação aqui proposta. Isso significa entender a história do cinema como

processo dinâmico e sujeito a influências múltiplas, que mantém estreito vínculo com as

especificidades culturais do seu contexto de realização. Tal abordagem inscreve-se no

novo perfil alcançado pelos estudos históricos sobre a cultura e o cinema, conquistado

pela história cultural francesa e pelos cultural studies norte-americanos. Os seus

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pressupostos, construídos a partir da década de 1970, fundamentaram-se na recusa de

uma visão linear e evolutiva de progresso como motor da história do cinema,

defendendo, ao contrário, a necessidade de reconhecer e restaurar para cada fase dessa

história a sua complexidade e especificidade histórica e cultural (GAUDREAULT, 1988

e ALTMAN, 1995).

As pesquisas desenvolvidas desde então dentro desta perspectiva, tanto voltadas

ao exame de novos acervos documentais quanto à reinterpretação de fontes já

conhecidas, visando dar respostas a novos problemas teóricos, acabaram formulando

novos conceitos, os quais alteraram significativamente a maneira de entender a

emergência do espetáculo cinematográfico e de seu público espectador. O novo olhar

sobre os filmes acabou modificando delimitações cronológicas e colocando a

necessidade de investigar o contexto espetacular do aparecimento da nova mídia e assim

a história dos espetáculos de projeções ópticas anteriores e contemporâneos ao

cinematógrafo. Em resultado, demonstrou-se que o cinema não apareceu como um

fenômeno dado e acabado, mas dinâmico, que compartilharia uma série de

características comuns com outras formas de representação da época e que teria os seus

próprios desdobramentos.10

Em outra direção, foram empreendidos estudos sobre a natureza temática e

formal dos espetáculos cinematográficos, visando identificar e refletir sobre a

constituição e organização dos programas das sessões e o tipo de experiência

espectatorial que demandavam. Eles fizeram emergir a multiplicidade e diversidade das

antigas formas de exibição que caracterizavam o cinema antes e mesmo durante a

sedentarização, mundialmente verificada entre 1905-08, permitindo a descoberta de

uma história fragmentada e múltipla, recheada de influências e práticas remotas

(ALTMAN, 2005). Além de identificarem as continuidades e rupturas entre as

diferentes fases, tais abordagens permitiram perceber os cruzamentos entre distintas 10 Tais idéias constituem-se no marco central de uma série de investigações desenvolvidas por diferentes autores e reunidas no livro O cinema e a invenção da vida moderna, publicado originalmente pela University of Califórnia Press, em 1995, e lançado no Brasil em 2001. Organizado por Leo Charney e Vanessa Schwartz, a obra reúne uma coletânea de artigos de estudiosos da história do cinema, mas também da arte e da visualidade de forma geral, como Tom Gunning, Richard Abel, Miriam Hansen e Jonathan Crary, entre outros. Nessas investigações, são analisadas as relações entre o cinema e outras manifestações que lhe foram contemporâneas, demonstrando-se, por meio do estudo de situações sociais concretas, a correlação entre distintos fenômenos, cuja dinâmica expressou a formação de uma nova estética, vinculada às mudanças na sensibilidade e na arte geradas pelas técnicas modernas e conectadas à lógica do mundo da mercadoria. Em seu conjunto, tais estudos evidenciam as tensões entre continuidade e descontinuidade na vivência do espaço e do tempo, as quais viriam compor a própria idéia de modernidade como multiplicidade e simultaneidade de experiências, fazendo do cinema a sua maior expressão e simultaneamente o seu maior dinamizador.

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tradições culturais e as soluções mistas daí resultantes, evidenciando uma dinâmica

marcada por avanços e recuos nos usos dos dispositivos técnicos e de outros elementos

componentes da exibição, assim como pela convivência entre práticas antigas e

modernas (PISANO e POZNER, 2005).

Outra característica destes estudos foi a prioridade que deram às especificidades

históricas dos contextos estudados, em detrimento da reprodução de esquemas

globalizantes e evolutivos e da análise de uma realidade a partir dos pressupostos

estabelecidos em outra, temporal e/ou espacialmente distinta. Tal procedimento

proporcionou a produção de novas comparações e diálogos em torno dos processos de

disseminação e afirmação do cinematógrafo em diferentes lugares do mundo.

A investigação aqui proposta, que comunga com tais princípios e procedimentos

metodológicos, tem por objetivo contribuir para a ampliação dos conhecimentos sobre o

período do cinema silencioso para além da primeira década, a fim de alargar a

abordagem dos fenômenos analisados até então como característicos do “cinema dos

primeiros tempos” ou da fase da exibição itinerante. Para desenvolvê-la, será adotada

uma perspectiva pragmática, o que significa entender que os filmes não são textos auto-

suficientes, mas que precisam ser abordados considerando-se a sua projeção, as

condições de sua recepção, os dispositivos técnicos, sociais e simbólicos que asseguram

essa operação (PISANO, 2005: 14).

Tal perspectiva, que privilegia a sala de espetáculos e o ponto de vista do

espectador, permite uma abertura à variedade de dispositivos e práticas acionados na

efetivação da experiência cinematográfica e, assim, às diversas modalidades de

apreensão do espetáculo cinematográfico. Ao focalizar os elementos constituintes da

sessão e o tipo de participação que exigiam do espectador, chama a atenção para a

historicidade das formas de percepção, dos modos de ver e de ouvir, ressaltando que as

práticas visuais e sonoras possuem uma dinâmica, uma lógica e uma história

(ALTMAN, 2005). Nesse sentido, entende-se ser igualmente promissora uma

investigação que se mantenha aberta às inter-relações entre o espetáculo

cinematográfico e o universo das diversões públicas, as outras formas culturais, externas

ao cinema, mas suas contemporâneas, que também concentravam o interesse do público

da época.

Tais concepções têm orientado os estudos do grupo de pesquisa do CNRS-

ARIAS (Atelier des Recherches sur l’Intermédialité et les Arts du Spectacle), criado em

2001 na França a partir da experiência canadense do grupo GRAFICS (Groupe de

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Recherche sur l'Avènement et la Formation des Institutions Cinématographique et

Scénique), estabelecido na Universidade de Montreal em 1994 por André Gaudreault e

outros pesquisadores, com cujo perfil se alinha. Ambos dedicam-se ao estudo da

intermedialidade entre o cinema e outras artes do espetáculo, procurando investigar a

dimensão performática do espetáculo cinematográfico e a articulação entre o cinema e

as séries culturais próximas, de modo a compreender melhor o processo de

transformação do estatuto do cinema de invenção espetacular em verdadeira instituição.

Trata-se de construir uma história das práticas de exibição do cinema silencioso,

investigando as suas transformações ao longo do tempo, a sua aparição, seu recuo e

reaparecimento em momentos distintos, reconhecendo a sua não-linearidade e as

possibilidades de coexistência entre o velho e o novo. Isso não significa estudar práticas

centrais e marginais, mas estar aberto à variedade, simultaneidade, alternância e

descontinuidade das formas, dos modos de fazer, percebendo-os em seu dinamismo. A

compreensão das razões de sua emergência, das condições do seu sucesso e dos motivos

do seu declínio torna-se possível, por sua vez, a partir do momento em que as práticas

são observadas de forma contextualizada, considerando-se suas particularidades

culturais.

O problema é que, na maior parte das vezes, os discursos, as condutas e as

práticas do passado só são acessíveis ao historiador através de textos que pretendiam

organizá-las, descrevê-las, prescrevê-las ou proscrevê-las11. Daí a preocupação, comum

a autores como Michel de Certeau e Roger Chartier, em pensar conceitual e

metodologicamente a articulação e a distância entre as práticas sociais e as produções

discursivas, sem confundir as suas lógicas, que são irredutíveis.

Em seus estudos, esses autores observaram que os grupos sociais enunciam

diversos discursos para modelar suas realidades, mas que isso ocorre em meio a

restrições objetivas que tornam possíveis tais enunciações, ao mesmo tempo em que as

limitam. Trata-se de reconhecer que as formas de percepção e ação são historicamente

localizadas e que a dinâmica social é mobilizada por relações e tensões entre práticas e

estruturas produzidas por representações concorrentes, através das quais os indivíduos

dão sentido ao seu mundo.

11 Conforme entrevista de Roger Chartier concedida a Isabel Lustosa em 23/11/2004, no Rio de Janeiro, e publicada na revista eletrônica Trópico. Disponível em <http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2479,1.shl> Acessado em 07/05/2010.

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Essa noção da “pluralidade dos empregos e das compreensões, mas também da

liberdade criadora, mesmo se regulada” (CHARTIER, 1991: 179), corresponde ao

conceito de apropriação conforme empregado pela História Cultural. Para alcançá-lo,

foi preciso renunciar à concepção clássica da história social da cultura, segundo a qual

as diferenças culturais estão organizadas e dependem de oposições sociais previamente

estabelecidas. Isso foi possível a partir do rompimento de certas dicotomias, dadas como

universais, que opunham cultura popular e cultura de elite e produção e consumo, por

exemplo.

Dessa forma, não se deixa de privilegiar as diferenças na oferta dos bens, mas

deixa-se de qualificá-las previamente. Ou seja, evita-se a limitação dos estudos que

atribuem a variedade dos modos de apropriação unicamente a uma distribuição desigual,

desconsiderando a bagagem intelectual e cultural dos indivíduos, isto é, a sua

capacidade de buscar alternativas. Ao ultrapassar a mera identificação dos produtos,

idéias e discursos circulados socialmente para identificar também os diferentes modos

de utilização dos mesmos pelos indivíduos ou grupos enfatiza-se as “práticas que se

apropriam distintamente dos materiais que circulam numa determinada sociedade” e os

sentidos produzidos nos usos (CHARTIER, 2002: 233). Trata-se de reconhecer que a

distribuição e usos dos objetos numa dada sociedade se organizam a partir de múltiplos,

móveis e simultâneos critérios que se cruzam no estabelecimento das diferenças

culturais.

A utilização do conceito de apropriação em uma investigação histórica permite

potencializar e complexificar o acesso ao passado, problematizando, simultaneamente, o

processo de construção do conhecimento sobre o passado. Afinal, a operação histórica é

constituída de sucessivas e simultâneas ações de interpretação e produção de sentido,

que qualificam desde a seleção das fontes e a interpretação das informações nelas

inscritas, até a organização e síntese dos dados, a sua análise e o estabelecimento de

relações causais e explicativas, perpetuando-se na elaboração da narrativa, quando os

resultados do estudo são dispostos de forma racionalizada, coerente e objetiva em forma

de texto, visando registrar e apresentar publicamente o novo saber de forma inteligível

(CERTEAU, 1982).

Em outras palavras, trata-se de chamar a atenção também para a historicidade do

olhar do historiador e para a necessidade de manter a distinção entre o tempo observado

e o tempo que observa. Insistir na distância irredutível (e de certa forma intransponível)

que nos separa do passado é um princípio metodológico fundamental para todo trabalho

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de investigação histórica. A tomada de consciência do historiador acerca do seu papel

de intérprete e a busca de um maior estranhamento sobre o período e os processos que

são o objeto do seu estudo são condições de uma investigação capaz de proporcionar

uma compreensão dos mecanismos peculiares ao fenômeno investigado, destacando

tanto as suas especificidades quanto as suas implicações sócio-culturais

(GAUDREAULT, 1998: 77).

O melhor método para chegar a isso seria recorrer sistematicamente aos termos e

expressões utilizados na época em estudo para descrever os fenômenos que lhe foram

inerentes, identificando os sentidos que as expressões vocabulares concentravam na

definição das práticas. Trata-se de entender e assinalar a diferença entre “fazer cinema”

hoje e “fabricar vistas animadas” na primeira década do cinema, por exemplo. Parte-se

do pressuposto de que as expressões vocabulares compreendem conotações que são

pertinentes ao seu contexto de circulação e uso. Observar como os contemporâneos ao

fenômeno estudado o expressavam e identificar a compreensão que dele tinham a partir

dessas expressões é um exercício de distanciamento e estranhamento entre o presente e

o passado, abrindo espaço para o reconhecimento da sua especificidade e

irredutibilidade. Paradoxalmente, é uma aproximação ao período analisado que permite

esse distanciamento, desde que se evite o perigo da familiarização com os modos de

pensar e agir do passado, enfatizando-se os aspectos contrastantes e mesmo conflituosos

que eles concentram com relação às expressões e conceitos correspondentes, mas

distintos, empregados no presente.

Tais idéias dialogam com a prática historiográfica identificada como micro-

história, compreendida enquanto um procedimento analítico baseado na redução da

escala de observação e em um estudo intensivo do material documental (LEVIE, 1992:

133). Trata-se de exercitar a história enquanto prática interpretativa e de partir das

dimensões particulares de um objeto de análise para um movimento mais amplo em

direção à generalização, se for o caso, mas fundado no exame dos fatos concretos que

constituem o objeto de estudo e não em dados agregados.

A alteração da escala de observação sobre determinados fenômenos pode revelar

novos significados a partir de uma percepção mais apurada de acontecimentos e fatos

até então desconsiderados, que passam a ser reinterpretados por sua inserção no

contexto. Contudo, é preciso evitar um uso funcional desse contexto, desviando a ênfase

da coerência para concentrar-se nas “contradições dos sistemas normativos e por isso na

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fragmentação e na pluralidade dos pontos de vista que tornam todos os sistemas fluídos

e abertos” (LEVIE, 1992: 154).

Tais conceitos e procedimentos metodológicos deverão orientar o

desenvolvimento deste projeto de pesquisa voltado para a identificação e análise dos

modos de organização do espetáculo cinematográfico em Porto Alegre entre 1908 e

1914. A tentativa de evidenciar as particularidades e as configurações peculiares que

práticas comuns ao processo de afirmação do cinema em nível mundial concentraram no

contexto local deverá proporcionar uma revisão da historiografia relativa ao tema,

contribuindo também para estimular novos questionamentos sobre os modos de

interpretação e construção da histórica do cinema pelo presente.

FONTES

Considerando que os arquivos locais não possuem fundos documentais sobre o

tema específico do cinema para o período, a imprensa diária será novamente a principal

fonte desta investigação voltada à caracterização da experiência visual enraizada no

cotidiano, tanto em função do seu modo de atuação quanto da sua função social. Não

serão utilizadas fontes documentais inéditas, portanto, com exceção da revista Kodak,

concentrando-se o caráter inovador dessa proposta de análise na perspectiva a partir da

qual a imprensa será examinada e no rigor metodológico que deverá conduzir a análise

dos materiais jornalísticos.

Os jornais impressos detinham, nos anos 1910, em que não havia rádio ou

televisão, a hegemonia enquanto meios de comunicação, informação, formação da

opinião pública e mesmo promoção comercial. Do ponto de vista das diversões

públicas, eles desempenhavam importante papel na divulgação das atrações em cartaz,

na sua avaliação, recomendação e crítica. Tais informações costumavam ser

concentradas em seções especializadas, que neste momento já contam com subseções

dedicadas especialmente à divulgação dos programas dos cinematógrafos. Outros

materiais particularmente informativos acerca das características da exibição, presentes

no corpo dos jornais e que serão igualmente considerados, são os anúncios publicitários,

comumente mais completos e objetivos do que as seções especializadas e noticiosas.

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Os acervos locais não possuem coleções completas dos diferentes veículos de

imprensa então circulados, de maneira que serão objeto da pesquisa os títulos

disponíveis, privilegiando-se os jornais de perfil mais informativo. Constam para o

período as folhas A Federação, A Reforma, O Independente, O Diário e o Correio do

Povo. O jornal A Federação, de publicação diária, era o órgão oficial do PRR e,

portanto, do partido que administrava a Capital e o Estado no período; o jornal O

Independente circulava apenas nas quintas-feiras e domingos e obedecia a uma linha

mais voltada aos interesses populares, alternando períodos de maior crítica ou

comedimento em relação às ações governamentais; o Correio do Povo, também diário,

se auto-promovia como folha não-partidária, mas crítica e independente. Dizia-se que os

dirigentes republicanos liam a Federação em público e o Correio do Povo às

escondidas. As folhas A Reforma e O Diário circulavam diariamente, tendo a primeira

encerrado sua longa história no período, enquanto que o Diário surge, renovando a

indústria gráfica com a inclusão de cor, nova diagramação e grande espaço reservado à

publicidade.

Um levantamento prévio das fontes disponíveis chama desde já a atenção sobre

as especificidades do novo contexto a ser estudado, entre 1908-14, que apresenta

características distintas da fase anterior a essa data também no que respeita à qualidade

da cobertura da imprensa diária à exibição cinematográfica, traços esses que parecem

estar vinculados às transformações da própria exibição.

Até 1908, as projeções cinematográficas foram fundamentalmente oferecidas aos

porto-alegrenses enquanto uma atração esporádica, de duração temporária, trazida por

exibidores itinerantes externos à cidade, na sua maior parte desconhecidos, embora

vários tenham sido reincidentes em suas visitas e temporadas. Essas características

fizeram com que os seus espetáculos contassem com uma considerável divulgação e

posteriores comentários descritivos e avaliativos. Já nos anos iniciais da sedentarização,

o quadro é distinto. Exibidores diferentes, mas vizinhos, oferecem espetáculos

cinematográficos como opção de lazer regular, diária. Todos os cinematógrafos

funcionam nos mesmos horários e organizam inicialmente os seus programas também

de forma padronizada, oferecendo o mesmo número de filmes por sessão, que

substituem três vezes por semana, cobrando o mesmo valor pelos ingressos. Os

estabelecimentos também procuram apresentar a mesma qualidade estrutural, de modo

que pouco resta, em princípio, que os distinga.

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Este quadro terá a sua expressão na cobertura da imprensa às atividades do setor

exibidor nos primeiros anos, a qual acaba empobrecida em seu teor informativo em

comparação aos tempos áureos da itinerância. A regularidade e padronização da oferta

cinematográfica e o caráter habitual da prática “ir ao cinema” parecem ter tornado

desnecessário e maçante, mas também cada vez mais inviável, um acompanhamento

detalhado e descritivo dos espetáculos. De fato, textos deste caráter serão produzidos e

veiculados apenas por ocasião das inaugurações, reformas e reaberturas das salas,

quando convém democratizar os conhecimentos assimilados pelos jornalistas, que

continuavam concentrando o privilégio do convite para as sessões especiais e pré-

estréias.

Os diferentes jornais raramente relacionam todas as salas em funcionamento,

privilegiando as salas centrais, em detrimento daquelas de bairro. A divulgação dos

programas das sessões também será sintética, reduzindo-se à citação dos títulos dos

filmes em cartaz e do gênero a que pertencem. Outra forte razão a explicar a literal

economia na divulgação da programação dos cinemas pela imprensa pode ter sido a

circulação dos folhetos avulsos, largamente empregados desde a segunda metade do

século XIX, e o surgimento de materiais alternativos de divulgação, como os cartazes e

os programas, que desempenhavam aquela função. Tais materiais reuniam informações

sobre os filmes a serem exibidos, inclusive com descrições dos argumentos, e eram

distribuídos ou vendidos aos espectadores antes da sessão. Embora não tenham sido

preservados, sua circulação é apontada na imprensa. Os anúncios publicitários

igualmente desaparecem ou se simplificam nos primeiros anos, voltando a merecer

maiores investimentos dos exibidores somente a partir de 1911.

A parcialidade na cobertura dos acontecimentos relacionados ao setor das

diversões públicas e em particular ao cinema também esteve relacionada aos distintos

perfis políticos ou editoriais das folhas, observando-se as preferências de alguns jornais

por determinadas salas, geralmente aquelas cujo proprietário mantinha algum vínculo

mais significativo com a classe dirigente e/ou com o próprio jornal. Tais mudanças na

qualidade da cobertura da imprensa ao cinema colocam indiscutíveis limitações à

pesquisa, mas também instigam a pensar as transformações na relação entre o público e

o cinema, entre a imprensa e o público e entre o setor exibidor e a imprensa.

A prioridade desta investigação não é identificar as distintas qualidades da

cobertura da imprensa ao cinema, mas reunir o maior número possível de informações

que permitam caracterizar os modos de exibição cinematográfica no período,

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enfatizando-se, portanto, o caráter complementar das fontes. No entanto, serão

necessariamente considerados os destaques e as ausências, as percepções comuns e

divergentes, o entusiasmo ou o tédio das manifestações, percebidas enquanto

representações que expressam “as modalidades contrastadas da construção do sentido”

situadas no “cruzamento de uma história das práticas, social e historicamente

diferenciadas, e de uma história das representações inscritas nos textos ou produzidas

pelos indivíduos” (CHARTIER, 1991: 179).

Objetiva-se, assim, evidenciar as diferenças na apropriação dos acontecimentos

cotidianos pelos jornalistas (espectadores) e exibidores, assim como a construção que

ambos fizeram desta mesma realidade e a legitimidade que pretenderam dar às suas

ações e opiniões no espaço institucional e público da imprensa. Dessa perspectiva,

considera-se mais profícuo evidenciar as práticas em sua multiplicidade e

simultaneidade, discutindo-se as suas implicações sobre a própria construção do cinema

como fenômeno cultural.

A inclusão da revista Kodak entre as fontes da pesquisa é uma possibilidade do

avanço temporal da investigação, visto que esse gênero de impresso, a imprensa

periódica ilustrada, só passou a ser editado localmente a partir de 1912 (TRUSZ, 2002).

Outros hebdomadários ilustrados que a antecederam, distintamente, não veicularam

imagens fotográficas, mas apenas charges e caricaturas.

As revistas ilustradas foram produtos de ponta da indústria gráfica da época e da

renovação da imprensa. Orientadas por expectativas de atualidade e variedade, elas

também foram beneficiadas pelos aperfeiçoamentos da técnica fotográfica, que facilitou

a produção de fotografias tomadas na rua e à noite, dando lugar aos “instantâneos” e aos

“instantâneos ao magnésio”, que foram reproduzidos nas suas páginas como

fotogravuras.

O recurso à revista Kodak proporcionará uma diversificação dos materiais

documentais tanto do ponto de vista dos conteúdos quanto da natureza dos seus

suportes, visto ter sido esta publicação a primeira do gênero a circular pela cidade

reproduzindo fotografias sobre o cinema, particularmente sobre o seu público

espectador, concentrado nas salas de espera e de projeção, mas também nas saídas dos

cinemas. Produzidas e disseminadas num contexto em que o cinema se reorganizava e

procurava se consolidar como atividade comercial sedentária junto ao setor de diversões

públicas local, tais imagens destacam-se por documentar o incremento da prática “ir ao

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cinema”, percebendo-a como expressão da nova dinâmica urbana e da mundanização

dos costumes. Tratava-se de divulgar e afirmar a adesão dos contemporâneos ao cinema,

legitimando os cinematógrafos como espaços de lazer e exercício de sociabilidades

públicas.

Por outro lado, estimulava-se a percepção dos cinemas como lugares de ver e ser

visto, antes e após a sessão (e mesmo durante!), idéia que tinha a sua expressão também

nos materiais textuais que preenchiam algumas seções mundanas da revista, que

acabavam revelando práticas e comportamentos verificados nos espaços documentados

pelas fotografias, mas não mostrados nas imagens. Essas fotografias, que na verdade já

eram promocionais, destinaram-se inicialmente a uma seção (visual) de variedades da

revista, sendo logo a seguir utilizadas para ilustrar e valorizar os anúncios publicitários

dos exibidores cinematográficos veiculados no próprio impresso.

A revista contava ainda com charges, entre as quais há exemplares que

representam certas práticas relacionadas às mudanças comportamentais e morais dos

frequentadores das salas de cinema. Seções especializadas na divulgação das atrações

em cartaz na cidade, onde predominavam os cinematógrafos, também ocuparam as

páginas da Kodak, como aquelas da imprensa diária. Este diversificado conjunto de

materiais será objeto da investigação.

CRONOGRAMA DE ATIVIDADES

2° Semestre 2011 1° Semestre 2012

a) Pesquisas em arquivos a) Participação nos seminários de pesquisa do

Grupo CNPq ‘História e Audiovisual:

circularidades e formas de comunicação’,

coordenado pelos profs. Drs. Marcos

Napolitano e Eduardo Morettin e realizados

na ECA-USP

b) Transcrição e organização dos dados b) participação na disciplina de pós-graduação

sobre História e Cultura Audiovisual a ser

ministrada no programa de Meios e Processos

Audiovisuais da ECA/USP em conjunto com

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o supervisor;

c) participação na disciplina de graduação

História do Audiovisual a ser ministrada no

curso de Comunicação da ECA/USP em

conjunto com o supervisor;

c) Leituras bibliográficas d) Análise dos dados levantados pela pesquisa

e elaboração do texto final

e) Elaboração do relatório das atividades

desenvolvidas

f) Apresentação dos resultados da pesquisa

nos encontros científicos da área de História e

Cinema como o Compós (junho), o Socine

(outubro); o Encontro Nacional da Anpuh

(abril), o Encontro Nacional de História da

Mídia e o Seminário Internacional de História

Cultural, em locais e dadas a ser

estabelecidos.

g) Produção de artigos para publicação em

revistas acadêmicas especializadas das áreas

de história e comunicação

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