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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 PROPOSTA DE AMPLIAÇÃO DA PAISAGEM CULTURAL DO RIO DE JANEIRO: a importância da Freguesia de Santa Rita NARA JÚNIOR, JOÃO CARLOS UFRJ. Programa de Pós-Graduação em História Comparada Endereço Postal [email protected] RESUMO Desde 2010, a região portuária do Rio de Janeiro, com 5 milhões de m², tem passado por uma profunda reestruturação urbana através de uma operação consorciada com a iniciativa privada. Em 2011, a municipalidade ali instituiu o “Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana”, ao qual foi integrado, no ano seguinte, o redescoberto cais do Valongo, por onde aportaram no Brasil mais de um milhão de africanos cativos até o século XIX. Em 2013 o Valongo se tornou patrimônio cultural da cidade do Rio de Janeiro e, em março passado, teve sua candidatura homologada pelo Centro do Patrimônio Mundial da Unesco para ser reconhecido como Patrimônio da Humanidade, em função de seu valor excepcional como memória da violência. Pesquisas arqueológicas ainda têm apontado novos marcos representativos da vida dos africanos nessa área, que poderão ser acrescentados ao Circuito, como é o caso do cemitério de pretos novos contíguo à igreja de Santa Rita, aliás o primeiro exemplar arquitetônico com decoração rococó nas Américas. A revalorização de toda essa região rica em bens patrimoniais, históricos e arqueológicos é um convite a incluí-la entre os bens cariocas que compõem a paisagem cultural do Rio de Janeiro, atualmente restritos em sua maioria à Zona Sul da cidade. Sem dúvida, a movimentada evolução da região portuária do Rio de Janeiro representa significativamente o processo de interação do homem com o meio natural, as estratégias de antropização do espaço brasileiro colonial e os vestígios deixados pela diáspora africana. A inclusão do Circuito da Herança Africana na chancela de Paisagem Cultural poderia servir de estímulo para a valorização e a preservação da tão importante paisagem recém-recuperada. Palavras-chave: Rio de Janeiro; Santa Rita; Herança africana; Patrimônio; Paisagem cultural.

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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

PROPOSTA DE AMPLIAÇÃO DA PAISAGEM CULTURAL DO RIO DE JANEIRO: a importância da Freguesia de Santa Rita

NARA JÚNIOR, JOÃO CARLOS

UFRJ. Programa de Pós-Graduação em História Comparada

Endereço Postal [email protected]

RESUMO

Desde 2010, a região portuária do Rio de Janeiro, com 5 milhões de m², tem passado por uma profunda reestruturação urbana através de uma operação consorciada com a iniciativa privada. Em 2011, a municipalidade ali instituiu o “Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana”, ao qual foi integrado, no ano seguinte, o redescoberto cais do Valongo, por onde aportaram no Brasil mais de um milhão de africanos cativos até o século XIX. Em 2013 o Valongo se tornou patrimônio cultural da cidade do Rio de Janeiro e, em março passado, teve sua candidatura homologada pelo Centro do Patrimônio Mundial da Unesco para ser reconhecido como Patrimônio da Humanidade, em função de seu valor excepcional como memória da violência. Pesquisas arqueológicas ainda têm apontado novos marcos representativos da vida dos africanos nessa área, que poderão ser acrescentados ao Circuito, como é o caso do cemitério de pretos novos contíguo à igreja de Santa Rita, aliás o primeiro exemplar arquitetônico com decoração rococó nas Américas. A revalorização de toda essa região — rica em bens patrimoniais, históricos e arqueológicos — é um convite a incluí-la entre os bens cariocas que compõem a paisagem cultural do Rio de Janeiro, atualmente restritos em sua maioria à Zona Sul da cidade. Sem dúvida, a movimentada evolução da região portuária do Rio de Janeiro representa significativamente o processo de interação do homem com o meio natural, as estratégias de antropização do espaço brasileiro colonial e os vestígios deixados pela diáspora africana. A inclusão do Circuito da Herança Africana na chancela de Paisagem Cultural poderia servir de estímulo para a valorização e a preservação da tão importante paisagem recém-recuperada.

Palavras-chave: Rio de Janeiro; Santa Rita; Herança africana; Patrimônio; Paisagem cultural.

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Da Freguesia de Santa Rita ao Porto Maravilha

O Rio de Janeiro entre o passado e o futuro

O Rio de Janeiro é a primeira cidade brasileira a promover a reestruturação urbana da sua

área portuária através de uma operação consorciada com a iniciativa privada. Tal operação,

aprovada pela Lei complementar municipal nº 101/2009, com vigência de 30 anos, é um

instrumento de política urbana que consta do Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257/2001). Em

troca do aumento do potencial construtivo dos bairros da Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Caju

e parte do Centro, a iniciativa privada dá ao município uma contrapartida financeira mediante

a aquisição de Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepac). A venda de Cepac

fornece à municipalidade os recursos necessários para a a execução de um programa de

intervenções para a requalificação urbana. Cabe à Companhia de Desenvolvimento Urbano

da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp) a articulação entre os órgãos públicos e

privados e a Concessionária (Porto Novo). A Concessionária executa obras e serviços na

Área de Especial Interesse Urbanístico, com aproximadamente cinco milhões de metros

quadrados na região do Porto do Rio e na qual circulam cerca de cem mil pessoas. Enquanto

gestora da operação, a Cdurp presta contas à Comissão de Valores Mobiliários e participa da

aprovação de empreendimentos imobiliários com o grupo técnico da Secretaria Municipal de

Urbanismo. Entre as atribuições da Companhia está ainda a atuação como fomentadora do

dinamismo econômico e social da região portuária delimitada pela Lei Complementar nº 101

(pela que foi criada a Operação Urbana Porto Maravilha).

Historicamente, a região em questão — pelo menos a parte mais antiga, os bairros da Saúde

e da Gamboa — correspondia à Freguesia de Santa Rita, a terceira do Rio de Janeiro, criada

em 1751. Por ali passaram quase dois milhões de africanos escravizados entre os séculos

XVIII e XIX1. Até 1769, o desembarque dos cativos ocorria na várzea da cidade, onde se

localizava a Alfândega. Os escravos novos que eventualmente morressem antes da venda

eram sepultados no cemitério contíguo à matriz paroquial de Santa Rita, detentora da primeira

fábrica ornamental rococó realizada em terras americanas. Desde então, com a criação de

um outro porto no vizinho bairro da Saúde, abriu-se o novo cemitério do Valongo, que

perdurou até a extinção do tráfico negreiro. Ganhou fama a descrição dessa segunda

necrópole, feita no começo do século XIX pelo naturalista alemão G. W. Freireyss (1906, p.

224-225):

Próximo à rua Valongo está o cemitério dos que escapam para sempre à escravidão. Em companhia do meu amigo dr. Schaeffer, que chegou aqui a bordo do navio russo Suvarow, em maio de 1814, em viagem ao redor do

1 Um banco de dados sobre o tráfico transatlântico de escravos pode ser consultado na página criada pela Emory University: http://www.slavevoyages.org/.

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mundo, visitei este triste lugar. Na entrada daquele espaço, cercado por um muro de cerca de 50 braças em quadra, estava assentado um velho com vestes de padre, lendo um livro de rezas pelas almas dos infelizes que tinham sido arrancados da sua pátria por homens desalmados, e a uns 20 passos dele alguns pretos estavam ocupados em cobrir de terra seus patrícios mortos e, sem se darem ao trabalho de fazer uma cova, jogam apenas um pouco de terra sobre o cadáver, passando em seguida a sepultar outro. No meio deste espaço havia um monte de terra da qual, aqui e acolá, subiam restos de cadáveres descobertos pelas chuvas que tinham carregado a terra e ainda havia muitos cadáveres no chão que não tinham sido enterrados. Nus, estavam apenas envoltos numa esteira, amarrada por cima da cabeça e por baixo dos pés. Provavelmente procede-se ao enterramento apenas uma vez por semana e como os cadáveres facilmente se decompõem, o mau cheiro é insuportável. Finalmente chegou-se a melhor compreensão, queimando de vez em quando um monte de cadáveres semidecompostos.

Ao longo dos anos seguintes, perdeu-se a memória dos horrores da escravidão no rastro

urbano do velho porto carioca. Até o século XX, ele seguiu sendo o principal do Brasil,

sofrendo sucessivas alterações pela construção de trapiches, novos cais e estaleiros. Um

grande aterro ainda lhe conquistou ao mar pouco mais de um milhão de metros quadrados

para servir de área de suporte para as operações. As antigas praias da época colonial, assim

como o cais do Valongo, ficaram sepultados sob o asfalto das ruas da nova cidade. No

entanto, a modernização teve pequena vida útil, e a região se degradou sobremaneira. O

programa de revitalização pretende justamente promover o reencontro do Rio de Janeiro com

a sua área central.

Disputa pela identidade

Pesquisas arqueológicas feitas nos últimos anos ressaltaram a importância histórica e cultural

dessa região para o conhecimento da diáspora africana, dentre as quais destacam-se os

estudos realizados a respeito dos cemitérios de pretos novos, isto é, exclusivos para escravos

não crioulizados. (Tenha-se presente, aliás, que no Brasil o termo “crioulização” refere-se à

assimilação demográfica e não à linguística, pois faltam referências a um idioma franco

diferente do português.)

O destino dos restos mortais dos escravos — e de seus artefatos etnográficos correlatos —

constitui para a agenda pública uma oportunidade de estreitar os laços diplomáticos

internacionais e de reparar pelo passado escravagista do país, transformando o mal afamado

cemitério em um lugar de memória (sensu NORA, 2008). mediante a sua musealização. No

entanto, para além da genuína celebração dos mortos, a estratégia política memorialista está

marcada por ressignificações, servindo como instrumento de legitimação para grupos

minoritários, denúncia de desigualdades sociais contemporâneas, apropriações religiosas ou

mesmo como vetor de interesse turístico e incentivo econômico.

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O cuidado atual com os remanescentes humanos por parte de uma sociedade tida como

secularizada contrasta com a negligência funerária de uma época supostamente mais

religiosa, porém menos escrupulosa em aparência. Por outro lado, a agência dos corpos

mortos levanta a questão do atual fetiche pelos objetos e indaga o lugar ocupado pelo corpo

nas diferentes ideologias. A negociação de identidades em torno do patrimônio cultural expõe

o desacordo teórico entre direitos individuais, justiça social e representação histórica de

minorias, com as consequentes contradições de índole prática. A apropriação cultural do

patrimônio público reflete, portanto, um aspecto importante da dinâmica entre o passado

histórico e a sociedade contemporânea.

A prática de uma Arqueologia “da repressão e da resistência” ou de uma Arqueologia “do

tempo presente” transforma os remanescentes arqueológicos em ferramentas políticas em

prol de demandas sociais e da defesa da identidade cultural. Com efeito, para os grupos não

documentados a cultura material é politicamente inclusiva. Não existe História sem as

pessoas. Contudo, a Arqueologia da diáspora africana procura manifestar o obrigado

interesse por pessoas sem história (sensu WOLF, 1982).

Circuito da Herança Africana

Simone Pondé Vassallo se debruçou detalhadamente sobre o processo de disputa ideológica

nos espaços da zona portuária carioca. A cientista social demonstrou em suas pesquisas

como os achados arqueológicos — iniciados em 1996, na residência de Ana Maria de la

Merced e Petrúcio Guimarães — passaram da condição de objetos de ciência à categoria de

provas de vitimização histórica e mesmo a relíquias da escravidão a título de crime contra a

humanidade. O sítio arqueológico ganhou uma importância sem precedentes à medida que

era reconhecido pelo Estado, legitimado pela Academia e divulgado pela Imprensa. Ali seria

instalado em 2005 o Instituto Pretos Novos. Para sua atual presidente, Merced Guimarães, o

cemitério do Valongo é um testemunho do “holocausto negro” (apud VASSALLO, 2016).

O destino do material arqueológico oriundo da Freguesia de Santa Rita é controverso. Para

sua curadoria, a Cdurp criou o Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana, atualmente gerido

pelo Instituto de Arqueologia Brasileira. Os restos mortais, entretanto, embora não sejam

objeto de disputa por parte de suas nações de origem, têm sido alvo de reivindicações

humanitárias (TAVARES, 2012).

Percebe-se um eco da discussão global sobre a restituição de bens culturais, que se

intensificou em decorrência do pós-Guerra no âmbito da Museologia. O discurso sobre a

devolução geralmente abrange obras de arte modernas, artefatos arqueológicos, objetos

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etnográficos e inclusive remanescentes humanos. Nos últimos anos, a negociação a respeito

dos remanescentes causou forte impacto na percepção da propriedade (BARKAN, 2001).

Em um trabalho seminal, Jeanette Greenfield (1996) propôs uma abordagem menos pugnaz,

preferindo falar de retorno cultural em vez de restituição: para a jurista, “retorno” se refere, em

um sentido mais amplo, a restauro, restabelecimento e até a renovação e a reunificação. Por

sua vez, William Mitchell (2005) criticou duramente a atitude moderna para com os objetos,

que ainda é a da idolatria, do fetichismo e do totemismo: falsidade, superstição, símbolo de

ancestralidade. Valendo-se de uma pergunta retórica, o historiador da arte excogitou não

sobre a agência, mas sobre o querer dos objetos. Segundo ele, mais do que um retorno físico,

a cultura material (re)quer socialização, oferta de maior dinamismo, oportunidade para a

expressão artística.

A reafricanização da zona portuária, porém, já tinha iniciado bem antes, quando desde 1980

a “Pequena África” tornara-se um reduto do samba, da capoeira e do candomblé. Em 1984 foi

tombada a Pedra do Sal (junto à qual o governo petista reconheceria a existência de um

“quilombo em 2005) e em 1990 foi criado o Centro Cultural José Bonifácio como referência da

cultura afro-brasileira.

Em tal contexto é que o Decreto municipal 34.803/2011 criou o Circuito Histórico e

Arqueológico de Celebração da Herança Africana, que oficialmente compreende seis pontos

de referência (Figura 1). O circuito costuma ser alvo de críticas pelos poucos marcos indicados

e pelo critério de sua escolha. Surpreende não só a presença do Jardim Suspenso do

Valongo, uma obra do século XX, mas também a ausência do Largo de Santa Rita, onde

existiu o primeiro cemitério de pretos novos.

Figura 1: Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana (http://www.portomaravilha.com.br/circuito)

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Em paralelo, um grande destaque tem sido dado — dentro do Circuito da Herança Africana

— ao cais do Valongo, cuja candidatura para Patrimônio da Humanidade foi homologada pela

UNESCO em março de 2016. Sua zona de amortecimento, porém, com cerca de 39.000

hectares (IPHAN, 2016, p. 24), também não engloba a Matriz e o Largo de Santa Rita (Figuras

2 e 3).

Figura 3: Área de amortecimento do Cais do Valongo (IPHAN, 2016, p. 23)

Figura 2: Localização do Valongo, no bairro carioca da Saúde (IPHAN, 2016, p. 20)

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Aprender a olhar para o Rio de Janeiro

Uma necessidade: redescobrir a paisagem carioca

A área do Valongo, dentro do Porto Maravilha, não é o único trecho da cidade do Rio de

Janeiro sobre o qual recai o interesse internacional. Em 2012, a UNESCO conferiu à capital

fluminense a chancela de Paisagem Cultural. Em certo sentido, surpreende que a chancela

se restrinja apenas à Zona Sul carioca, abarcando, entre outros bens, o Morro do Leme e o

Arpoador, a enseada de Botafogo o aterro do Flamengo (Figura 4). De qualquer modo, é

curioso que o Centro do Rio — verdadeiro berço da cidade, após a transferência da fundação

originária junto ao Morro Cara de Cão, no atual bairro da Urca — passe esquecido como se

fosse um ponto cego entre as duas áreas assinaladas (o Porto Maravilha e a Zona Sul). Ainda

mais curioso é que, dentro do Centro do Rio, especificamente a região de Santa Rita, matriz

da Freguesia onde se encontra o Valongo, não seja objeto de nenhum projeto mais imediato

além da passagem de uma futura nova linha do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT).

Figura 4: Mapa com os limites dos sítios declarados patrimônio mundial na categoria paisagem cultural urbana e da sua zona de amortecimento

(IRPH).

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Parece que faz falta uma intervenção mais direta que resgate a importância da região. Com

efeito, “paisagens são também lugares de importância simbólica. Paisagens não só são

moldadas por práticas culturais, mas são símbolo de convicções culturais e sociais, assim

como modelam e estruturam os encontros e relações sociais” (SMITH, 2006, p. 77-78). E não

se pode desprezar a importância da pequena matriz paroquial de Santa Rita, a qual, no

passado, ligava a urbe carioca ao seu sertão. Situada na parte norte do Centro da cidade, era

o coração do sítio Valverde, antigo bairro rural denominado desde o século XVII. Com o bairro

da Prainha (atual Praça Mauá) que lhe era contiguo, isolava o morro de São Bento. O cronista

Viera Fazenda reporta que, durante as cheias, “o que se chama hoje rua Visconde de Inhaúma

[antiga Rua dos Pescadores] apresentava então o aspecto de verdadeira lagoa, e o morro de

S. Bento, por ocasião da enchente da maré, ficava transformado em verdadeira ilha”

(FAZENDA, 2011, v. 5, p. 607). A delimitação do Valverde é um tanto genérica: incluiria o

Beco do João Batista (hoje inexistente) e o Beco dos Cachorros (atual Alcântara Machado a

Rua das Violas (atual Teófilo Otoni), as faldas do Morro da Conceição e o Largo de Santa Rita

(Figura 5)2.

2 Cf. FAZENDA, 2011, v. 3, p. 46 e v. 5, p. 608.

Figura 5: Eduard Hildebrandt, Santa Rita (1844).

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No século XVIII, o destaque do sítio Valverde era o palácio episcopal instalado no alto do

Morro da Conceição, no qual residiram os prelados do Rio de Janeiro desde 1702 até 1918.

A construção da igreja de Santa Rita na primeira metade dos setecentos favoreceu a região,

ampliando o arruamento e atraindo novas edificações. Junto à ladeira da Conceição, a uma

quadra de Santa Rita, seria construída a famosa cadeia do Aljube, de onde os condenados

no período colonial eram conduzidos à forca que se armava nas imediações. Antes de serem

justiçados, eles faziam suas rezas e recebiam as consolações derradeiras em Santa Rita,

razão pela qual ela foi chamada de “capela dos malfeitores”. A conseguinte história da matriz

— e mesmo da Freguesia — é um atestado de sua perseverança em meio ao turbilhão da

evolução urbana do Rio de Janeiro. O templo assistiu incólume à saída do cemitério de pretos

novos do Largo fronteiriço, à instalação de um chafariz onde tinha havido o cemitério, à troca

do chafariz por uma fonte, à remoção da fonte quando da abertura da Avenida Marechal

Floriano já no início do século XX.

“As igrejas e seu entorno podem ser tomadas como paisagem de comemoração que

incorporam tanto a memória prospectiva quanto a retrospectiva; evocações do passado e

aspirações pela vida futura” (HOLTORF; WILLIAMS, 2006, p. 252). Através de lugares assim

é que se estabelece a memória dos grupos humanos, favorecendo sentimentos de identidade

e pertença. De fato, a matriz de Santa Rita, com seus mais de trezentos anos de história,

surpreende pela diversidade de âmbitos de investigação que oferece, constituindo um

verdadeiro case para os estudos sobre o Rio de Janeiro3.

Uma proposta: retornar à paisagem carioca

Parece muito oportuna a inclusão de toda a região portuária do Rio Janeiro — rica em bens

patrimoniais, históricos e arqueológicos —, agora revalorizada em função da Olimpíada, entre

os bens cariocas que compõem a sua Paisagem Cultural. Ora, a área em questão, além de

ser pioneira na execução de uma operação urbana consorciada, constitui um espaço singular

e originário da cidade do Rio. A região com a chancela de Paisagem Cultural usufrui do título

enquanto mantiver suas características mediante um Plano de Gestão compartilhada que

envolva o poder público, a sociedade civil e a iniciativa privada. Tal dispositivo, portanto,

poderia servir de recurso político para controlar a gentrificação4 da área após as recentes

transformações urbanísticas ali realizadas.

3 A página https://santarita.hypotheses.org/ pretende reunir as diversas pesquisas desenvolvidas em torno a Santa Rita em variados âmbitos acadêmicos: antropológico, arqueológico, histórico, jurídico, arquitetônico, urbano, da paisagem, de ciência da religião, etc.

4 Gentrification (ou “enobrecimento” de uma determinada área da cidade) consiste na substituição de uma população de classe social mais baixa por outra de maior poder aquisitivo, quando tal afluência é produto de uma

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Convém ponderar, aliás, a título de digressão, que o conceito de gentrificação é frágil quando

usado para criticar o papel econômico das chamadas “cidades globais”. Com efeito, a eventual

elitização da região não está necessariamente em desacordo com o desejo dos seus

moradores, tidos como tradicionais. A sociabilidade urbana da zona portuária carioca —

mesmo supondo que esteja baseada em relações de proximidade e vizinhança — vem sendo

calcada há muito tempo por interesses coletivos e globalizantes, assim como pelo anonimato

e pela massificação cultural, a apropriação e a ressignificação política de seus espaços.

O bem em si da paisagem cultural do Porto Maravilha não é seu entorno ou ambiência, nem

se reduz a uma zona de amortecimento a modo de sítio, nem deve priorizar certos

equipamentos cujo valor foi exaltado por interesses particulares, por mais nobres que sejam.

Conforme explica Rafael Winter Ribeiro,

A grande vantagem da categoria de paisagem cultural reside […] no seu caráter relacional e integrador de diferentes aspectos que as instituições de preservação do patrimônio no Brasil e no mundo trabalharam historicamente de maneiras apartadas. É na possibilidade de valorização da integração entre material e imaterial, cultural e natural, entre outras, que reside a riqueza da abordagem do patrimônio através da paisagem cultural e é esse o aspecto que merece ser valorizado. (RIBEIRO, 2007, p. 111)

Conclusão: reinventar a paisagem carioca

A paisagem está em todo lugar, a todos ela cerca. Quer seja a paisagem urbana, quer a rural

ou algo intermediário, a paisagem sempre serve de contexto para as ações humanas. Por

isso, a cidade deveria ser — parodiando Burle Marx — a “natureza organizada” pelo urbanista,

como o jardim o é pelo paisagista. Não obstante, em muitos lugares a urbanização vai de

braço dado com o “urbicídio”, isto é, a urbanização produz o esquecimento na cidade.

Fala-se tanto de patrimônio porque se destrói demais; porque o fetichismo pelos monumentos

reflete a crise de uma autoridade incapaz de subsidiar as relações sociais. A política

patrimonial frequentemente congela a história em vez de promovê-la. Talvez esse

congelamento seja uma tentativa de conter a aceleração típica da cultura moderna, já que os

âmbitos urbanos de vida em comum — praças, monumentos, bibliotecas — costumam ser

destruídos para priorizar a velocidade. Os ricos vivem no tempo, mas os pobres vivem em um

espaço bastante deteriorado. Embora a evolução urbana possa ser compreendida como

deslocamento e ressignificação, é missão dos preservadores transformar os lugares da

ausência em lugares de memória.

mudança na antiga estrutura social urbana, com o consequente aumento do valor dos imóveis. Vide MONTEIRO, 2002.

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O empenho de memória carioca deve deixar claro que a evolução histórica da Freguesia de

Santa Rita representa significativamente o processo de interação do homem com o meio

natural, as estratégias de antropização do espaço brasileiro colonial e os vestígios deixados

pela diáspora africana. Por isso, conviria articular melhor a Paisagem Cultura do Rio de

Janeiro com o Roteiro municipal da Herança Africana e o Cais do Valongo (candidato a

Patrimônio da Humanidade). Quanto à igreja matriz de Santa Rita, tombada a nível federal

em 1938, e o seu Largo homônimo em que jazem esquecidos tantos africanos, é urgente

inseri-la como portal setecentista para todo o circuito que lhe é posterior.

O esforço a ser envidado precisa ser consciente, pois a herança do patrimônio cultural só se

torna propriedade cognitiva quando há identificação pessoal e associação emocional com o

lugar. A memória monumental — representada em edifícios históricos — é apenas um

primeiro passo rumo à memória coletiva. Os verdadeiros lugares de memória supõem uma

consequente vontade de memória (sensu NORA, 2008). Uma política contrária seria uma

mnemotécnica falida, ars memorativa decadente, mero acúmulo patrimonial cuja rasoura vem

abolir qualquer hierarquia de valores e faz que nada valha a pena… ou que tudo valha.

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