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POLÍTICA, VIDA CÍVICA E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE ENEIAS NO LIVRO III DA ENEIDA DE VIRGÍLIO (SÉC. I A. C.) ANA PAULA SANTANA FILGUEIRA NATAL/2016

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POLÍTICA, VIDA CÍVICA E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE

ENEIAS NO LIVRO III DA ENEIDA DE VIRGÍLIO (SÉC. I A. C.)

ANA PAULA SANTANA FILGUEIRA

NATAL/2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA: CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS

POLÍTICA, VIDA CÍVICA E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE

ENEIAS NO LIVRO III DA ENEIDA DE VIRGÍLIO (SÉC. I A. C.)

ANA PAULA SANTANA FILGUEIRA

NATAL/2016

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Filgueira, Ana Paula Santana.

Política, vida cívica e religião : uma análise das memórias de

Eneias no livro III da Eneida de Virgílio (séc. I a.C.) / Ana Paula Santana Filgueira. - 2016.

118 f.: il.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lyvia Vasconcelos Baptista.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-

Graduação em História, 2016

1. Virgílio - Eneida. 2. Heróis. 3. Civilização clássica. 4.

Mito. I. Baptista, Lyvia Vasconcelos. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 94(37)

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ANA PAULA SANTANA FILGUEIRA

POLÍTICA, VIDA CÍVICA E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE

ENEIAS NO LIVRO III DA ENEIDA DE VIRGÍLIO (SÉC. I A. C.)

Qualificação apresentada como requisito para obtenção

do grau de Mestre no Programa de Pós-Graduação em

História, Área de Concentração em História e Espaços,

Linha de Pesquisa II: Cultura, Poder e Representações

Espaciais, da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, sob a orientação do(a) Prof(a). Dr(a). Lyvia

Vasconcelos Baptista.

NATAL/ 2016

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ANA PAULA SANTANA FILGUEIRA

POLÍTICA, VIDA CÍVICA E RELIGIÃO: UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE

ENEIAS NO LIVRO III DA ENEIDA DE VIRGÍLIO (SÉC. I A. C.)

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de

Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela

comissão formada pelos professores:

Prof. Drª. Lyvia Vasconcelos Baptista (UFRN)

Prof. Dr. Rafael Scopacasa (UFMG)

Prof. Drª. Marcia Severina Vasques (UFRN)

Prof. Drª. Silvia Marcia Alves Siqueira (UECE) - Suplente

Natal, _________de__________________de____________

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AGRADECIMENTOS

Tenho muito a agradecer as pessoas que fizeram parte da minha trajetória de

construção desse trabalho. Amigos e familiares que fizeram a diferença nos momentos mais

difíceis, fosse com um café, palavras de incentivo ou um abraço. A todos que estavam e

estão ao meu lado eu dedico essa dissertação.

Agradeço primeiramente ao homem mais importante da minha vida, que nunca me

desamparou e me incentivou a chegar até aqui, o meu pai. Por todos os momentos que

passamos juntos, tanto os bons como ruins, pela fé que depositou em mim e, sobretudo, por

ser o maior exemplo de persistência e busca de dias melhores que eu possuo. Obrigada meu

velho, por tudo.

Agradeço ao professor Almir Bueno por ter me incentivado a mergulhar no mundo

da pesquisa e no programa de pós-graduação. Lembro-me da graduação, quando me tornei

sua monitora de História Antiga, por meio dela conheci Virgílio, a Eneida e o prazer de

trocar conhecimentos com meus colegas nas reuniões e eventos. Foi durante essa

experiência que me interessei pelo estudo de História Antiga e onde comecei a dar os

primeiros passos em direção ao mestrado. Agradeço também ao professor Joel Andrade

pela paciência e cordialidade com os quais me recebeu todas as vezes que o procurei

pedindo ajuda e por ter me incentivado a trilhar o caminho acadêmico, mostrando os

resultados maravilhosos que essa árdua caminhada tem a nos oferecer.

Agradeço aos professores do Programa de Pós-Graduação da UFRN. As aulas de

Durval Muniz, Renato Amado, Alessandro Dozena, Eugênia Maria, Santigo Jr. e Raimundo

Arrais, foram muito importantes para a concretização desse trabalho, pois fui apresentada a

várias perspectivas de estudo, que me inspiraram nos momentos de escrita. As discussões

sobre espaço foram muito enriquecedoras e me permitiram ir além do que eu pretendia

fazer quando entrei pela primeira vez no setor II para assistir a primeira aula do mestrado.

Obrigada a todos vocês por terem sido ótimos professores e pelas contribuições que fizeram

a este trabalho.

Agradeço aos meus dois orientadores do mestrado. Ao professor Raimundo Arrais o

meu muito obrigada por ter assumido a tutoria dessa pesquisa nos primeiros semestres. A

experiência de suas orientações foram desafiadores e enriquecedoras, tive contato com

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várias perspectivas sobre o meu objeto de estudo e a oportunidade de me questionar

diversas vezes sobre minha metodologia de pesquisa. À minha segunda orientadora também

tenho muito agradecer, Lyvia Vasconcelos obrigada por ter assumido a orientação dessa

dissertação já no meio do curso, pelo carinho com o qual me recebeu, pelas conversas não

somente sobre a dissertação, mas sobre as coisas da vida. Obrigada por ter sempre me

recebido de braços abertos na sua sala em todas as nossas reuniões, pelos desafios que me

apresentou no estudo do Mundo Antigo e conselhos sobre o mundo acadêmico.

Agradeço aos amigos que conquistei no CERES e que me apoiaram em vários

momentos, principalmente no mestrado – Ariane, Avohanne, Arthur, Gerlânia, Matheus

(Mohammed) e Antonio – a amizade de vocês é muito importante para mim. Obrigada

pelas resenhas no Facebook e no Watsapp, as palavras de apoio, os encontros sempre

animados nos eventos e por serem ótimos amigos. Aos amigos que conquistei fora da

faculdade também tenho muito a agradecer – Raul, Luanny e Felipe – o apoio de vocês foi

essencial nos momentos em que duvidei se conseguiria concluir a dissertação, o carinho e

as risadas que arrancaram de mim tornaram nossos encontros muito animados.

Acredito que família não é apenas aquela com a qual compartilhamos os mesmos

laços sanguíneos, mas aquela que conquistamos ao longo da vida e está ao nosso lado nos

momentos bons e ruins. Agradeço a família Ramos, Jorgeane (Tia Jô), Diogo e Zé. Nos

conhecemos em Caicó, quando comecei a graduação em História e Di era meu colega de

curso, de lá para cá vocês se tornaram uma família para mim, sempre preocupados e

atenciosos. Tenho um carinho imenso por vocês. Obrigada pelo companheirismo e por

terem aberto sua casa e seu coração para mim. Serei eternamente grata.

O curso de pós-graduação não teria sido tão alegre sem os meus amigos da

“Comuna’s House” – André, Vanessa, Ruan, Ilka, Romário, Kalidiany, Isabella e Rafael –

com os quais compartilhei alguns dos momentos mais difíceis do mestrado, a distância de

casa, o estresse pelo acúmulo de trabalho, o pavor da louça suja, mas também alguns dos

melhores momentos, as cervejas pós-aula, as festas, o companheirismo e a amizade que

consolidamos e que pretendo levar pelo resto da vida. Dedico um espaço especial aqui para

André Nascimento, meu amigo desde o Ensino Médio, pois foi ele o primeiro a me dar a

notícia da aprovação no mestrado, com palavras que até hoje me recordo: “Ana, você

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acredita no poder de Vênus? Pois é, nós passamos no mestrado”. Muito obrigada

“branquelo” por tudo.

O mestrado me deu muitos presentes e o melhor deles foram às amizades que

conquistei e que pretendo cultivar para além desses dois anos e meio. Agradeço

especialmente aos frequentadores mais assíduos do “Principado Independente da 812”,

Adriel (Dridri), João Paulo, Paulo Vitor, Fagner, Keidy, Luan, Abimael e Patrícia, pelas

conversas descontraídas para aliviar os momentos de tensão da escrita, pelo debate que

promovemos sobre nossos trabalhos, os jogos e as risadas, que tornaram os últimos meses

de escrita da dissertação muito mais leves. Agradeço a João Vinicius, que conheci quando

entrei no mestrado, pelo material de pesquisa que compartilhou comigo e pelos e-mails de

incentivo à pesquisa.

O meu muito obrigado às servidoras, Erica e Edleide, pelo cafezinho da tarde e as

conversas na copa do CCHLA. Com vocês essa caminhada se tornou muito mais divertida e

agradável. Sou grata também aos meus colegas da Residência de Pós-Graduação,

principalmente Ivana, Dezwith, Dona Conceição, Jorge e Karina, pelo modo gentil com o

qual me trataram e pelas conversas amigáveis. Obrigada por tudo que compartilhamos.

Desejo muita sorte e luz no caminho de todos vocês.

Agradeço imensamente a família Rangel – Roseane e Charles – pela atenção e o

carinho com os quais me tratam, por terem participado de alguns dos momentos mais

felizes da minha vida, como a formatura e a aprovação no mestrado, e terem me adotado

como membro da família. Ao meu namorado, Marcos Filho, tenho muito a agradecer, sua

paciência e dedicação a nós foram importantíssimas para mim ao longo desses dois anos e

meio. Obrigada por cada lágrima de alegria e tristeza que compartilhou comigo, por ter

estado ao meu lado todo tempo me incentivando a continuar esse trabalho, pelos chocolates

e pizzas nos momentos de tensão e a companhia nos almoços no nosso restaurante

preferido, o RU. Foi nos pequenos gestos que nos aproximamos e através deles que nos

unidos um dia após o outro.

Agradeço ao meu irmão, Júlio César, que conheci a pouco mais de três anos.

Embora não tenhamos crescido juntos, aos poucos descobrimos que possuímos muitas

coisas em comum, principalmente o desejo de ir enfrente com a carreira acadêmica. Desejo

muito sucesso a você, força para vencer as batalhas que a vida nos impõe e saiba que estarei

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sempre aqui para o que precisar. Muito obrigada pelas visitas e as gargalhadas que demos

juntos.

Agradeço aos amigos que desde a adolescência fazem parte da minha vida e alguns

que fiz há pouco tempo em Currais Novos, Francis, Iane, Vanderlúcia, Ronie, Pablo, Rosy,

Peterson, Manel, Thays, Daniel, Mercinho, Joel, Marcelo, Allan, Karina e Ana Lúcia pelas

brincadeiras, festas, choros, brigas e conselhos. Todos vocês ocupam um lugar especial no

meu coração e foram muito importantes para a realização desse trabalho.

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RESUMO:

A Eneida, poema épico escrito por Publio Vergilius Maro, é datada de 19 a. C. Esta epopeia

narra o trajeto percorrido pelos sobreviventes da Guerra de Troia, liderados pelo herói

Eneias, em busca de uma terra prometida pelos deuses, para fundar uma nova cidade. Nesta

pesquisa, tomamos como objeto de estudo o Livro III da Eneida, no qual o personagem

Eneias narra como se deu o decorrer dos seus primeiros anos de exílio, sempre chegando e

partindo de espaços onde ele passou por experiências que moldaram sua personalidade

como líder político, militar e religioso, bem como influenciaram seus companheiros de

viagem. Realizamos uma reflexão sobre como essas características agregadas à figura de

Eneias podem nos auxiliar na reflexão sobre política, vida cívica e religião da cidade de

Roma, durante o período em que a epopeia virgiliana foi produzida, abarcando o governo

de Otávio Augusto, entre 14 a. C. e 27 d. C. Promovemos uma análise sobre mythos,

memória e espaço, identificando como os troianos exilados na Eneida se reconheciam e

interagiam com os espaços nos quais aportaram, nomeadamente, Trácia, Delos, Creta, ilhas

Estrofádas, Butroto, Itália e Drepáno, visando demonstrar como uma fonte literária pode

sugerir elementos culturais sobre a sociedade que a produziu.

Palavras-chave: Eneida. Herói. Memória. Espaço. Mythos

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ABSTRACT:

The Aeneid, an epic poem written by Publius Vergilius Maro, is dated 19 a. C. This epic

tells the route taken by survivors of the Trojan War, led by Aeneas hero, in search of a

promised land of the gods, to found a new city. In this research, we take as an object of

study Book III of the Aeneid in which Aeneas character tells how was the course of his first

years of exile, always arriving and departing spaces where he went through experiences that

shaped his personality as political leader, military and religious, and influenced their travel

companions. We carry out a reflection on how these characteristics aggregated to Aeneas

figure can help us in thinking about politics, civic life and religion of Rome, during the

period in which the epic Virgilian was produced, covering the government of Octavian

Augustus, 14 to . C. and 27 d. C. promote an analysis of mythos, memory and space,

identifying how the Trojans exiles in Aeneid is recognized and interact with the spaces in

which landed in particular Thrace, Delos, Crete, Estrofádas islands, Buthrotum, Italy and

Drepano, aiming to demonstrate how a literary source may suggest cultural elements of the

society that produced it.

Keywords: Aeneid. Hero. Memory. Space. Mythos

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Mapa da Via Flaminia.....................................................................................30

FIGURA 2 – Painel da entrada principal da Ara Pacis Augustae........................................31

FIGURA 3 – O Lupercal......................................................................................................32

FIGURA 4 – A deusa Tellus................................................................................................33

FIGURA 5 – A deusa Roma................................................................................................33

FIGURA 6 – Procissão imperial da Ara Pacis Augustae.....................................................34

FIGURA 7 – Mapa da viagem de Eneias.............................................................................61

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................14

1.CAPÍTULO I – A ENEIDA EM TEXTO E CONTEXTO................................................22

1.1 Virgílio: os resquícios de uma biografia........................................................................23

1.2 Da política do Augustus aos primeiros passos de um poema.........................................26

1.3 A discussão sobre as influências retóricas na epopeia de Virgílio.................................44

2.CAPÍTULO II- MITO E MEMÓRIA: A VIAGEM MARÍTIMA DE ENEIAS..............49

2.1 Mythos e mimesis na literatura e história greco-romana.................................................49

2.2 A viagem de Eneias e seus sociis em busca da Itália.....................................................58

2.2.1 A partida de Troia e a chegada à Trácia...................................................................62

2.2.2 De Delos à Creta: a busca pela antiquam matrem...................................................65

2.2.3 A ilha das Harpias....................................................................................................66

2.2.4 Epiro: a réplica de Troia...........................................................................................68

2.2.5 Do primeiro encontro com a Itália à Drepano..........................................................69

2.3 Memória e espaço na Eneida.........................................................................................72

3.CAPÍTULO III- REALIZAÇÕES HEROICAS, FUNDAÇÕES E PROFECIAS NO

LIVRO III DA ENEIDA.......................................................................................................80

3.1 Para além da narrativa virgiliana: a res gestae de Eneias...............................................81

3.2 Pietas, virtus e religio: da Eneida aos cultos públicos de Roma....................................92

3.3 Religião e cidade em Roma e na Eneida.........................................................................99

Considerações finais............................................................................................................106

REFERÊNCIAS.................................................................................................................109

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INTRODUÇÃO

Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao

amanhecer, começa a subir por uma colina, quando lhe atravessam a

passagem uma pantera, um leão e uma loba, que o repelem para a selva.

Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece para

tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz,

depois, o guiará ao Paraíso. Dante segue (ALIGHIERI, I, I).

Na Divina Comédia Virgílio foi o guia de Dante ao longo sua viagem pelo Inferno e

pelo Purgatório, ele o conduziu por caminhos desconhecidos aos vivos. Neste trabalho, o

poeta da Antiguidade Romana nos mostrará o caminho a ser percorrido na análise do seu

poema épico, a Eneida, que narra as errâncias do herói Eneias e de alguns compatriotas,

sobreviventes de uma guerra que destruiu sua pátria e fundadores das bases de um império.

Nosso objetivo é apresentar a literatura como uma fonte capaz de sugerir elementos

culturais da sociedade que a produziu. Para isso, fizemos um recorte da épica virgiliana,

tendo em vista a sua complexidade e extensão. Utilizamos como fonte principal de nossa

pesquisa o Livro III desse poema, buscando identificar como questões relacionadas à vida

cívica, à política da cidade de Roma e à religião se encontravam interligadas nessa

sociedade.

No total, a Eneida é composta por 9.826 versos, divididos em 12 Livros1, e narra a

história do herói troiano, Eneias, filho da deusa Vênus e do mortal Anquises, que após à

Guerra de Troia, juntamente com alguns compatriotas, se lança ao exílio. Eles são guiados

pelas profecias dos deuses: Júpiter, Vênus e Apolo, que lhes prometem uma nova terra,

onde fundariam as bases do Império Romano. Em meio as suas andanças passam por

intensas provações, são seduzidos a fixarem-se em algumas das ilhas onde aportam, mas

não cedem e continuam a viagem até o seu destino, a Itália. Ao chegarem nesta região

enfrentam os povos latinos, liderados pelo rei Turno, em uma guerra que causa

significativas perdas de ambos os lados, mas no final os troianos saem vitoriosos.

1 Para a realização da dissertação utilizamos uma edição bilíngue da Eneida, em latim e português, traduzida

por Carlos Alberto Nunes e publicada em 2014. Esse tradutor publicou a primeira versão da tradução em

1981, pela A Montanha Edições. O material foi republicado em 1983, pela Editora da Universidade de

Brasília. A edição por nós utilizada foi organizada por João Ângelo Oliva Neto e publicada pela Editora34. O

texto em latim adotado foi organizado por Frédéric Plessis e Paul Lejay para a editora Hechette, no ano de

1919, tendo sofrido algumas modificações pelo tradutor da versão em português.

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Nosso estudo se encontra direcionado ao Livro III dessa epopeia, que consiste em

um relato dos primeiros anos de exílio na voz do personagem Eneias. Encontramos nessa

seção a descrição de como um grupo de sobreviventes de uma guerra carregou em suas

naus uma cidade que não existia mais no plano físico, somente na memória de cada um.

Eles transportaram sua cidade pelos mares da Sicília até Cartago e de lá até o destino

profetizado pelos deuses, a Itália, onde fundam as bases de Roma.

Apesar de se tratar de um texto sobre o nascimento de Roma a Eneida, e mais

precisamente o Livro III, não apresenta uma descrição literal de como se deu o processo de

fundação dessa cidade, mas de Lavínio, fundada por Eneias em homenagem à filha do rei

Latino, Lavínia, com quem se casa no final da epopeia. Além disso, encontramos nessa

seção do poema a ênfase na dissolução das estruturas materiais que amparavam a atividade

cívica, espaços hostis onde Eneias e seus companheiros encontraram a peste, maus

presságios, morte e guerras. Essas referências literárias se relacionavam com o próprio

período no qual essa obra foi escrita, século I a. C., que não foi menos tumultuado. Após o

assassinato de Júlio César, seu sucessor, Otávio Augusto, promoveu a transformação

gradual de uma sociedade republicana em um principado, marcado pelo fim de um período

conturbado de guerras civis responsáveis por causar fortes impactos sobre essa sociedade.

Foi nesse cenário complexo que a Eneida foi produzida e de maneira também complexa em

cada um dos seus versos foram refletidos esses momentos de tensão.

Virgílio não fala de Roma no seu sentido físico, das heterogeneidades étnicas que a

habitavam no século I a. C., nem do modo de vida dos seus cidadãos ou do comércio. O

autor se pautou na descrição de uma cidade ideológica e valorativa, que vivia a era da pax

romana, na qual se desenvolveu um projeto de incorporação de novos territórios e que

pretendia criar um sistema de valores universal. A cidade na Eneida foi construída em cima

da ideia de tentativa e erro e pela harmonia com os deuses, isso significa pensar que Roma

não havia surgido pelo simples desejo e necessidade dos homens, mas pela determinação

divina, que desde suas raízes mais remotas garantiram seu sucesso como império

(TEIXEIRA, 2012, p.11-12). No Livro III Eneias narra como se deram suas aventuras pelas

terras que ele e seus companheiros encontraram ao longo do exílio e como suas tentativas

de fundar uma cidade para abrigar o seu povo falharam até o momento em que recebeu um

sinal divino que indicou ser a Itália o local prometido pelos deuses. Não foi por mero acaso

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que na Trácia e em Creta Eneias tentou fundar cidades e fracassou, mas pelo desejo dos

deuses de o levarem ao local ideal2.

A Eneida sintetiza uma tradição literária romana com influências helenísticas, uma

epopeia completa e estilizada que inaugura um novo lugar para a épica na história. Sua

importância é ressaltada por autores que refletem sobre as bases da literatura ocidental,

como Dante Alighieri, por exemplo. Mas, além disso, como documento histórico a obra de

Virgílio se destaca ao fundamentar um corpo de considerações sobre diversos aspectos da

cultura e sociedade latina. A epopeia virgiliana foi, ao longo do tempo, alvo de inúmeros

estudos que desenvolveram distintas críticas e possibilidades de interpretação. Cecilia

Ames e Guillermo De Santis (2011), por exemplo, ao discutirem sobre o lugar das etnias

italianas no século I a. C., afirmaram que a política de expansão romana3 propiciada por

Augusto, baseada no ideal de uma Tota Italia, foi o vetor que atravessou a maioria das

produções literárias e historiográficas que de algum modo trataram do tema das etnias

italianas, aderindo ou se opondo a argumentação do avanço romano. A epopeia de Virgílio

seriam uma representante importante desse contexto, veiculando o ponto de vista romano a

respeito das etnias italianas4.

Atualmente, a academia brasileira tem produzido uma gama de materiais referentes

ao estudo da Eneida5 e ferramentas que facilitam a análise da obra virgiliana, como O

Dicionário da Eneida, elaborado pelo professor Milton Marques Júnior (2007), que

transformou em verbetes os Livros da epopeia virgiliana. Esse trabalho tem muita

2 No capítulo II, quando apresentamos uma análise sobre os acontecimentos do Livro III, essas questões serão

discutidas. 3 Clifford Ando (2002, p.123-142) discutiu sobre a etnografia e a política do século I a. C., afirmando que na

Antiguidade não havia um conceito bem definido de “unidade italiana”. Segundo a sua concepção não

devemos pensar que existia uma entidade política e superior nesse período, pois nem o grego, nem o latim

possuem um termo que resuma a comunidade vasta que conhecemos hoje como nação. Tampouco era óbvio

que se poderia unificar toda a população da península itálica, pois nem a língua, nem os costumes, nem a

cultura de cada um dos povos que habitavam essa região ou mesmo a cidadania romana era concebida como

um todo tradicional. 4 Mas, isso não significa que os povos italianos foram passivos frente à dominação romana ou que os autores

da época augustana desconsiderassem sua existência e relações com Roma. Ver Ames & Santis (2011, p.391-

408) 5 Dentre alguns estudos produzidos pela academia brasileira sobre a Eneida, podemos destacar: ALMEIDA,

Felipe dos Santos. O augúrio no Livro II da Eneida: a destruição de Troia e o Destino de Eneias. Dissertação

de Mestrado em Letras da UFPB. João Pessoa, 2011; ALBERTIN, Alcione Lucena de. Catábase de Eneias:

um ato piedoso. Dissertação de Mestrado em Letras da UFPB. João Pessoa, 2008; MOTA, Thiago Eustáquio

Araújo. Do Descensus à Consecratio: analisando os funerais heroicos na Eneida de Virgílio (I a.C.).

Dissertação de Mestrado em História da Universidade Federal de Goiás. Goiás, 2011

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importância, pois fornece uma explicação minuciosa do poema e apresenta um conjunto de

imagens dos locais mencionados na narrativa. Outro ponto positivo desse esforço foi que

sua elaboração partiu da leitura da Eneida em sua língua original e não de uma tradução já

realizada. Como podemos perceber, através dos exemplos citados, a Eneida coloca ao

nosso dispor um amplo leque de informações e possibilidades de estudos. Ao fazer um

recorte da epopeia virgiliana, bem como da história de Roma procuraremos abordar

questões referentes à política implementada por Otávio Augusto, à vida cívica da cidade, ao

myhto, à memória e à religião romana, na tentativa de demonstrar como essas questões se

encontravam entrelaçadas na construção da personalidade heroica de Eneias, lapidada nas

provações pelas quais passou durante o exílio de Troia a Cartago, conforme descrito no

Livro III da Eneida.

Na epopeia virgiliana o discurso religioso se faz bastante presente, principalmente

pelo fato da observância religiosa caracterizar o personagem principal, que ao longo da

trama recebe o epiteto pio para designar essa característica. Isso implica tecermos algumas

considerações sobre como se constituía a religião do Império Romano no século I a. C., a

fim de entender melhor sobre quais princípios Virgílio sustentou o perfil do herói do seu

poema. Para endossar essa discussão abordaremos ainda como o discurso religioso aparece

na literatura greco-latina relacionada à personagem Eneias vinculado a um discurso

religioso sobre o mythos do herói sobrevivente da Guerra de Troia e fundador das bases de

Roma6.

De acordo com a perspectiva de Jörg Rüpke (2007, p.3) a Itália, sobretudo nas suas

regiões costeiras, já era parte de um intercâmbio cultural em uma fase pré-histórica. Sinais

e práticas religiosas estavam presentes nessa região a partir do antigo Oriente Próximo, via

cultura fenícia, pelo menos indiretamente, através de Cartago, e via a Grécia e etruscos.

Esses grupos partilharam um “conhecimento” religioso na forma de nomes ou instituições

rudimentares na área de práticas culturais que chamamos religião e o intercâmbio cultural

não ficou restrito às fases fundadoras. É difícil estimar a difusão de práticas religiosas entre

os latinos, úmbrios e etruscos, por exemplo. Podemos apenas supor que muitas

características dos deuses, o fascínio da estatuária e representação antropomórfica, foram

6 Essas questões serão debatidas no Capítulo III.

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compartilhadas. Além disso, a presença contínua de escritores gregos influenciou o

destaque frequente da profundidade com a qual sua cultura foi recebida pelos romanos.

Estes processos tiveram consequências diretas na religião de Roma. Rituais públicos

eram liderados por magistrados, posições sacerdotais eram preenchidas por membros da

elite romana, e cada vez mais essas medidas se tornaram parte também da capital do

Império. Ao mesmo tempo, a religião permaneceu independente em um sentido peculiar,

como por exemplo, deuses podiam ser convidados a se deslocarem para outros lugares e a

transferência da propriedade pública a deuses importados passou a ser objeto de decisões

políticas, mas os seus rituais não eram. A religião ofereceu uma poderosa fonte para

legitimar decisões políticas. O modelo dominante para a religião romana não era

expansionista, foi bastante absorvente. Numerosos "deuses" na forma de estátuas, imagens

ou meros nomes, foram importados, assim como as histórias sobre esses deuses, suas

práticas de culto e a construção de templos. As práticas religiosas faziam parte de quase

todos os domínios da vida cotidiana, banquetes, construção uma casa ou início uma viagem,

geralmente, implicava a realização de pequenos sacrifícios e orações, assim como as

reuniões do Senado, desfiles, ou guerras. Assim, a religião não se limitou a templos e

festivais (RÜPKE, 2007b, p.4-6).

Denis Feeney (2007, p.129-130) se dedicou ao estudo das formas literárias da

historiografia e da épica que surgiram no final do século III a. C. e afirmou que elas

incluíam a religião como um componente vital. De acordo com sua perspectiva as obras de

história e os épicos romanos são fontes fundamentais para explorar a relação entre deuses e

homens. Ao nos debruçarmos sobre esses textos com interesse na sua dimensão religiosa

devemos ter em mente o fato de que são tipos específicos de literatura e que estão

interagindo com outros discursos religiosos em suas próprias e distintas formas. Os

primeiros épicos em língua latina a serem preservados e transmitidos foram escritos por

homens que não eram falantes nativos da língua. Um grego de Tarento chamado Andrônico

tornou-se um cidadão romano com o nome de Lúcio Lívio Andrônico e, em algum

momento na segunda metade do século III a. C., traduziu a Odisséia de Homero. Perto do

final do mesmo século um campônio chamado Gnaeus Naevius escreveu o Bellum

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Punicum7, um épico sobre a primeira guerra entre Roma e Cartago (264-241 a. C.). Cerca

de trinta anos mais tarde Quinto Ênio deu o passo decisivo de usar os hexâmetros de

Homero, pela primeira vez em sua composição dos Annales, um poema que descrevia a

história de Roma desde a queda de Tróia até os anos que lhe eram contemporâneos. Isso

nos revela uma tradição literária, que se baseava nos textos homéricos e no relato das raízes

troianas do povo romano, perpetuada por poetas e historiadores, como Tito Lívio e Virgílio

(FEENEY, 2007, p. 130-132).

Cenas divinas dos poemas de Homero se reproduzem nos poemas épicos

posteriores, conselhos e intervenções divinas, deuses falando com os seres humanos e assim

por diante. Esses poemas mostram os deuses e deusas da tradição homérica em ação com

uma roupagem romana. Estas perspectivas ressoaram ao público romano associando seu

sucesso na guerra como consequência da manutenção de boas relações com os deuses.

Ainda segundo Feeney, a épica romana tem a sua própria contribuição a dar para a forma

como os romanos configuraram o seu papel no seu processo de expansão. O alcance do

poder religioso da épica romana reflete o envolvimento da sociedade com os sistemas

religiosos e culturais de muitos povos vizinhos e distantes, os romanos eram agora

herdeiros das preocupações gregas no leste, por exemplo. A Eneida de Virgílio entra nesse

cenário levando questões relacionadas à dominação dos romanos muito mais longe. Na

época em que Virgílio viveu (70-10 a. C.) o Império romano havia se expandido por todo o

Mediterrâneo e era governado por Otávio Augusto (63 a. C.- 14 d. C.), que reivindicou sua

descendência ligada à gens de Eneias, reiterada na Eneida. A ambição dessa epopeia

também incluía o projeto de mostrar como Roma teria assumido o papel de nova herdeira

do patrimônio cultural mais antigo oriundo da Grécia (FEENEY, 2007, p.131-136).

Diante de tais proposições sobre a religião romana, que estavam inseridas na

Eneida, nos dedicaremos a tecer uma análise centrada no personagem Eneias e em como

ele reunia em si características caras ao entendimento de como se organizava a vida cívica e

religiosa da Roma augustana. Ao fazer um recorte tanto da história de Roma como da

7 Esse épico tem como tema principal Primeira Guerra Púnica, abordando as causas mitológicas desse

eventos, e as aventuras de Eneias, a partir da sua fuga de Troia. Aos dias atuais chegaram apenas fragmentos

desse poema, por esse motivo optamos por não fazermos uma análise sobre ela. Ver mais em: NAEVIUS,

Gnaeus. Bellum Punicum Trad. Eric Hebert Warmington. London: William Heinemann LTD, 1936.

Disponível em < https://archive.org/stream /remainsofoldlati02warmuoft#page/52/mode/2up > Acesso em 16

jun 2016

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epopeia virgiliana levaremos em consideração as proposta sobre o estudo do texto e do

contexto elaborada por Dominick Lacapra (1983, p. 52-60). De acordo com sua

perspectiva, todo texto, ou seja, todo vestígio do passado, possui dois pontos

complementares: um dito documental, que diz respeito ao mundo empírico e transmite

informações sobre ele; e um operante, que excede e transfigura qualquer referente empírico

ao recriá-lo através de usos não convencionais da linguagem. Diante dessas questões o

autor não se limita a tentativa de reconstruir o passado tal como aconteceu e não coloca em

segundo plano o aspecto documental, ele reconhece e respeita o documento como um limite

imposto à interpretação. Ao partir dessa perspectiva admite-se a historicidade do intérprete,

o que torna inevitável a inserção do seu ponto de vista particular na definição das questões

relevantes a interpretação dos fatos. Rejeita-se então a ideia da existência de uma história

“verdadeira”, que pode ser recuperada a qualquer momento, como também não posiciona a

história como invenção narrativa.

Lacapra (1983, p.60-65) defende que textos e discursos possuem estruturas típicas,

códigos e regras que se constituem como expressão do real empírico. Para que as conexões

entre os significados textuais e a experiência de vida ou as “condições históricas” não sejam

reduzidas a um esquema de relações mecânicas é preciso identificá-las no texto. No campo

textual, nas articulações dos conceitos, imagens, argumentos e referenciais, é possível

apreender os sentidos que permitem a interpretação histórica. Essa abordagem se dedica aos

processos de ressignificação que inscrevem o contexto no texto. Nosso estudo se

concentra na seção terceira da Eneida no qual o personagem principal, Eneias, narra suas

errâncias durante o exílio, descrevendo os episódios que vivenciou, junto com seus

companheiros, nas terras onde aportavam e eram levados a abandonar. Nesses espaços

vivenciou experiências que moldaram sua personalidade como herói digno de fundar uma

nova cidade para os troianos sobreviventes da guerra que devastou o seu lar. Tendo essa

questão como norte, nos pautaremos em analisar como a experiência do heroi troiano

nesses espaços, fundando cidades, participando de batalhas ou fugindo de pestes, permite a

articulação entre política, vida cívica e religião. Ou seja, os três elementos da sociedade

romana que pretendemos discutir a partir da narrativa de Virgílio.

Esse trabalho se encontra dividido em três capítulos. No capítulo I abordaremos as

características gerais da Eneida, a época na qual foi escrita, as temáticas que a compõem e

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como se estrutura sua narrativa. Em seguida, apresentaremos algumas considerações sobre

a biografia de Virgílio, que consideramos importantes para o entendimento das

circunstâncias nas quais esse poeta deu início à composição do seu poema épico. Por esse

motivo daremos atenção também a alguns eventos políticos que marcaram a capital do

Império Romano durante esse período, século I a. C., quando Otávio Augusto deu início ao

seu principado. Esse capítulo se conclui com uma discussão sobre as influências retóricas

da épica virgiliana, na qual destacaremos questões relacionadas às contribuições da poesia

grega à literatura latina e como podemos encontrar essas evidências na Eneida.

No capítulo II realizaremos uma análise sobre o mythos e a mimesis, tendo em vista

que na Eneida a referência à mitologia grega e o emprego do modelo de épica, bem como

de personagens e acontecimentos, ligados aos poemas homéricos, principalmente, é

frequente. Para isso nos apoiaremos no que os autores antigos, Aristóteles e Cícero,

discutiram sobre esses conceitos nos apoiando no que a historiografia moderna abordou

sobre eles. Em seguida, apresentaremos um resumo do Livro III da epopeia virgiliana

elencando os acontecimentos que marcaram a chegada e a saída dos troianos exilados das

terras onde aportaram na sua viagem de Troia à Cartago. Concluiremos essa seção com um

debate sobre como o espaço e a memória aparecem articulados na narrativa de Virgílio.

Iniciaremos o capítulo III discutindo sobre como o mythos de Eneias foi escrito na

literatura greco-latina, a fim de destacar como, apesar de ter se dedicado a produzir uma

epopeia sobre um personagem que já existia e pertencia a uma tradição literária, Virgílio

construiu um heroi e problematizou em sua personalidade questões especificamente

romanas. A partir disso analisaremos as características mais marcantes do perfil do herói da

Eneida, destacadas no Livro III, e como elas se relacionavam aos valores éticos que

deveriam ser cultivados dentro dos muros de Roma, no século I a. C., referentes à religião,

a política e a vida cívica.

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1. A ENEIDA EM TEXTO E CONTEXTO

A escrita da Eneida, datada de 19 a. C., teria sido encomendada por Otávio

Augusto, porém não chegou a ser concluída por ocasião da morte do seu autor. Mesmo

assim, foi publicada. Composta por doze Livros, sua narrativa pode ser dividida em dois

blocos: o primeiro (do Livro I ao VIII) possui uma estrutura semelhante à Odisseia, trata

das errâncias do herói troiano Eneias, que juntamente com alguns compatriotas, percorre os

mares em busca de uma nova pátria e ao longo da sua viagem passa por ilhas, nas quais se

depara com várias provações; o segundo (do Livro IX ao XII) segue os moldes da Ilíada,

sua trama ocorre no cenário terrestre e aborda a temática de uma guerra motivada por uma

mulher, no poema de Homero, Helena, e no de Virgílio, Lavínia, a filha do rei Latino. Mas,

isso não significa que Virgílio se inspirou apenas nos poemas homéricos, mas que este foi

um dos seus subsídios durante a composição do seu poema. Ao olharmos mais

profundamente percebemos que o poeta romano se apoiou em várias scholia de pensamento

da sua época, como veremos no decorrer desse trabalho.

De maneira geral, a epopeia de Virgílio narra a história dos sobreviventes da Guerra

de Troia que, liderados pelo herói Eneias, se lançam ao exílio no mar em busca de uma

terra prometida pelos deuses na Itália onde fundariam uma cidade, Lavínio, base de um

futuro império. Estes homens levam consigo seus deuses domésticos, garantindo assim a

existência da sua cidade, mesmo após a sua destruição física. Ao longo da sua viagem, os

troianos passam por intensas provações. Uma delas se dá quando Eneias e seus

companheiros aportam em Cartago e o herói é convidado pela rainha, Dido, a narrar suas

aventuras nos primeiros anos de exílio. Nesse evento, Vênus induz a rainha e se apaixonar

pelo líder dos troianos, o que se revela como mais uma provação, visto que ele é obrigado a

deixar sua amada para dar prosseguimento a sua viagem, pois recebe um alerta divino. Por

esse motivo, ele parte, deixando Dido, que acaba se suicidando por ter sido abandonada.

Os troianos aportam na Sicília, onde realizam jogos fúnebres em homenagem a

Anquises, morto durante a viagem. Após esse evento seguem para Cumas, onde encontram

a sacerdotisa de Apolo, Sibila. Ela e Eneias partem para uma viagem ao mundo dos mortos

para encontrarem o pai do herói. Em seguida, os troianos se reúnem e se dirigem á Itália,

onde são recebidos amistosamente pelo rei Latino, de cuja filha, Lavínia, Eneias se torna

pretendente a casamento. Em meio a isso, os povos dessa região, liderados por Turno,

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antigo pretendente da filha do rei, instigados pela deusa Juno, declaram guerra aos recém-

chegados à sua terra. Após um intenso combate os troianos saem vitoriosos e o líder

perdedor é assassinado pelo líder vencedor. Virgílio valorizou muitos aspectos da cultura

greco-romana na sua epopeia, como mitos e fatos relevantes da história, e construiu

personagens dotados de um sentimento de devoção aos deuses, principalmente no que diz

respeito a Eneias, o herói piedoso8.

No século I a. C. a epopeia romana abrangia vários gêneros. Ela reunia os elementos

considerados característicos da tragédia, da comédia e da sátira, por exemplo. Seu relato

referia-se a um momento de mudança no mundo: o nascimento dos deuses; o fim de uma

grande civilização; um exemplo de moralidade; a formação do mundo, dentre outras

temáticas. Pierre Grimal realiza uma análise sobre o período e afirma que “uma epopeia

será o poema das origens” (GRIMAL, 1992, p. 187). Virgílio narrou à gênese do povo

romano na Eneida. Nas próximas páginas apresentaremos detalhes sobre como e quando

esse poema foi composto, partindo da descrição da sua estrutura em direção às influências

do seu autor.

1.1. Virgílio: os resquícios de uma biografia

As informações sobre a vida de Virgílio são bastante escassas. Os dados de que

dispomos sobre a vida do poeta advêm do De Poetis Vita Vergilii, texto que faz parte da

obra De Poetis, escrita por Suetônio, na qual ele apresenta uma série de biografias de

alguns personagens importantes da poesia romana: Terêncio, Virgílio, Horácio, Lucano,

Tíbulo e Persio. Este é um dos principais documentos sobre a vida desses poetas, que

chegou aos dias atuais. Não sabemos precisamente a data de sua composição, apenas que

no século IV d. C. o gramático Elio Donato reproduziu o texto de Suetônio no seu

Comentarium ad Vergilium9·.

Segundo Suetônio (A vida de Virgílio, 1-5), Públio Virgílio Maro nasceu em

Mântua, em 70 a.C., época do primeiro consulado de Marco Licínio Crasso e Gneu

8 Nas primeiras linhas da Eneida (I, 3) Eneias é apresentado como um guerreiro dotado de pietas, entendida

como respeito e devoção aos deuses, característica que se mostra como a principal desse personagem ao longo

do poema. Essa questão será discutida no tópico Pietas, virtus e religio: da Eneida aos cultos públicos de

Roma, no capítulo III. 9 Utilizamos um texto bilíngue, latim e espanhol, traduzido por Martha Elena Montemayor, publicado em

2009, no México. Isso nos leva a ter um pensamento crítico ao utilizar informações dessa fonte, mas apesar

disso não deve ser descartada, pois é o registro mais detalhado que temos em mãos sobre a vida de Virgílio.

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Pompeu. Ele fazia parte da gens Vergilius, a família de seu pai era de origem etrusca

nascida em Mântua e sua mãe de origem romana. Não há informações sobre a profissão que

seu pai desempenhava, para alguns ele era um oleiro e para outros um arrendatário de

terras. O biógrafo (A vida de Virgílio, 4-5) procura destacar detalhes sobre a vida privada

do poeta romano, assim como fizera também com Otávio Augusto em A vida dos Doze

Césares, dando ênfase às previsões divinas que teriam acompanhado seu nascimento. De

acordo com uma dessas anedotas pouco antes de dar à luz a mãe de Virgílio teria sonhado

que paria um loureiro cujos ramos chegavam ao céu, uma árvore frondosa e cheia de frutos

e ao nascer, ele não teria chorado, revelando um presságio de nobreza e “predileção divina”

no futuro poeta. Certo tempo depois, foi plantado um choupo no local de seu nascimento,

onde as gestantes pediam por proteção durante o parto.

As primeiras poesias que Virgílio compôs datam de sua adolescência, por volta dos

dezesseis anos, Suetônio nomeia algumas delas: Cantalepton, Priapea, Epigramas, Dirae,

Ciris e Culex. Sobre a Eneida esse biógrafo afirma que inicialmente o poeta romano

pretendia escrever sobre a história de Roma, porém desistiu por se considerar incapaz de

empreender um projeto de tal magnitude e se deteve na composição das Bucólicas,

dedicada a Asínio Polião em agradecimento por ele ter salvado as poucas terras da sua

família do confisco a mando dos triúnviros, após a vitória na batalha de Philipos10

, que

seriam doadas aos soldados que participaram dessa guerra. Em seguida, escreveu as

Geórgicas, cuja composição durou sete anos, em homenagem a Mecenas por tê-lo auxiliado

em novos conflitos fundiários com os veteranos de guerra, para só então dar início à

composição da sua épica (A vida de Virgílio, 19).

O autor da Eneida teria iniciado sua carreira em Cremona, por volta de 53 a. C., mas

posteriormente se mudou para Roma. Antes da poesia dedicou-se ao estudo da Matemática,

Medicina e da Retórica, tendo uma curta e frustrada carreira no campo do Direito. O poeta

mantuano é apresentado por Suetônio como uma figura que não gostava de aparecer em

público, mesmo depois de ter alcançado certa fama, preferia ficar em retiro no campo.

Virgílio sentia gosto pelas coisas relacionadas ao espírito: o estudo das leis que

governavam o universo, busca da serenidade interior e a poesia, arte a que irá se dedicar

10

Batalha que ocorreu na cidade de Phillipos, localizada na Grécia, no ano 42 a.C., entre Marco Antônio,

Otávio e Lépido, membros do segundo triunvirato, e Marco Júnio Bruto e Caio Cássio Longino, principais

envolvidos no assassinato de César.

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pelo resto da sua vida (A vida de Virgílio, 6-15). Alguns autores da modernidade, como

Grimal (1992, p.30-39), afirmam que apesar de Virgílio ter seguido os princípios

epicuristas11

, pregados por seu mestre Sirão, não escondeu seu gosto pela poesia, visto que

durante algum tempo essa arte foi condenada pelo epicurismo como causa do temor da

morte, nutrir paixões e dar exemplos de cólera. Logo, era concebida como um perigo à

calma interior, a essência do Bem. Apesar disso, os epicuristas encontraram um ramo da

poesia que os atraíram, pois ela podia agir sobre a alma como um calmante e fazia

adormecer as angústias, uma vez que apresentava imagens que davam alegria ao espírito,

como por exemplo, a harmonia entre homem e natureza, a poesia pastoril. As Bucólicas de

Virgílio foram um exemplo dessa poesia, ela exalta a vida simples do campo (GRIMAL,

1992, p. 60-79).

É importante destacar que o epicurismo foi a primeira das escolas gregas cujas

ideias foram apresentadas em latim. Além disso, o autor da Eneida foi familiarizado com o

De rerum natura, de Lucrécio, a mais antiga, existente, articulação do epicurismo em latim.

Virgílio também fez parte do mesmo círculo de estudos que Ário Dídimo, um filósofo

estóico que foi professor de Augusto. Estudos, como o de Susanna Morton Braund (1997,

p.205-221), apontam que Virgílio não era membro doutrinário de nenhuma escola de

pensamento, mas que ele utilizou ideias diferentes para propósitos e contextos também

diferentes. Muitas das suas ideias foram influenciadas por Homero e Hesíodo, autores que

formaram a base da educação antiga. Virgílio explorou questões e dilemas centrais para as

escolas filosóficas helenísticas, mas isso converge com as preocupações ideológicas e éticas

da elite republicana romana. Toda esta questão de interpretação desse poeta como um

aderente ou mesmo um advogado de determinados pontos de vista filosóficos ou religiosos

está intimamente ligada com a recepção dos seus poemas em diferentes épocas e lugares.

No que diz respeito ao texto antigo sobre Virgílio, o biógrafo Suetônio (A vida de

Virgílio, 2009, 13, p.216-217) afirma que apesar de ter dedicado boa parte da sua vida ao

recolhimento o autor da Eneida fazia parte do círculo de Mecenas e através dele se

11

O epicurismo teria se consolidado em Atenas, por volta de 306 a.C., quando Epicuro funda a sua Escola do

Jardim. Em linhas gerais essa doutrina pregava a reconciliação do homem com a natureza, tentava também

explicar o mundo através de uma lógica que levava à ética. Baseava-se na moralidade e ensinava o homem a

buscar a sabedoria e a felicidade individual. Não se sabe com exatidão como essa doutrina chegou aos

romanos, apenas que foi bem assimilada. No século I a.C. o epicurismo já era bem difundido em Nápoles,

onde Sirão, mestre de Virgílio, conseguiu difundir essa filosofia (SILVA, 1985, p.10-17).

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aproximou de Otávio Augusto, que após o período de guerras civis deu início ao projeto de

revitalização do império e à propagação da imagem da família imperial e para isso

contratou os melhores artistas e arquitetos, a fim não só de realizar obras públicas, mas

também de resgatar as tradições e escrever sobre a gênese do povo romano. A pedido do

princeps (A vida de Virgílio, 35-37, p.225-227), Virgílio começou a escrever a Eneida em

29 a. C., pouco depois da vitória na Batalha do Ácio, quando Cleópatra e Marco Antônio

foram derrotados. Durante a fase de conclusão da epopeia, aos 52 anos de idade, o poeta

realizou uma série de viagens entre a Grécia e a Ásia, a fim de conhecer os lugares onde se

passavam os acontecimentos do seu poema, mas acabou adoecendo antes de concluí-la.

Faleceu em 19 a. C., na cidade de Bríndisi. Seus restos mortais foram sepultados em

Nápoles, na Via Puteolana, onde se encontram os seguintes dizeres: “Mântua me gerou, os

calabreses me raptaram, agora eu tenho Partenope; eu cantei as pastagens, os campos e as

guerras” (A vida de Virgílio, 36).

1.2. Da política do Augustus aos primeiros passos de um poema

Para entender a Eneida é importante compreender o tecido histórico no qual ela se

inseria. Essa poesia parece estar ligada ao projeto político de Otávio Augusto, que após a

morte de César, seu tio que o adotou como filho, precisou enfrentar a resistência do Senado

em aceitá-lo como herdeiro do governo de Roma. Nesse cenário se encontram alguns

pontos que devem ser enfatizados, dentre eles a política de renovação das tradições e dos

prédios públicos de Roma após as guerras civis, por volta de 31.a.C., e a ênfase dada pelo

princeps à origem divina da gens Iulia, utilizada como uma das justificativas para a

concessão do status de deidade a César e assegurar sua posição como seu herdeiro legítimo,

se considerando descendente de Eneias, o filho de Vênus e fundador de Lavínio.

Essas informações não se encontravam veiculadas apenas na literatura, como

percebemos na Eneida, de Virgílio, e na História de Roma, de Tito Lívio, por exemplo, mas

estavam presentes também nos monumentos da capital do império, como na Ara Pacis,

construída em homenagem a Otávio Augusto e sua família. Esse altar ilustra como a

ligação entre a gens Iulia e Eneias era uma história que não estava ao dispor apenas de uma

seleta camada da sociedade, mas aberta ao público, como veremos mais adiante. No que se

refere à epopeia virgiliana, o governo de Otávio Augusto era uma profecia dos deuses, algo

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inevitável, pois havia sido planejado desde muito antes da fundação de Roma. Podemos

perceber isso em uma de suas passagens, quando Júpiter revela o destino de Eneias e seus

descendentes para Vênus:

César de Troia, de origem tão clara, até as águas do Oceano

vai estender-se; sua fama há de aos astros chegar dentro em pouco.

Do claro nome Iulo provém o cognome de Júlio.

Livre do medo infundado há de um dia no Olimpo acolhê-lo,

rico de espólios do Oriente. Invocado vai ser pelos homens.

Então, suspensas as guerras, aquietam-se os ásperos sec’los.

A boa Fé, Vesta e Remo, de par com o irmão Quirino,

ditarão leis; os terríveis portões do Castelo da Guerra

serão trancados com traves e ferros ingentes, e dentro

o ímpio Furor, assentado sobre armas fatais, amarradas

as mãos nas costas, a boca a espumar só de sangue, esbraveja12

.

(Eneida, I, 285-295)

Apesar de lermos na primeira linha “César de Troia” (Troianus origine Caesar), na

sequência percebemos a descrição de alguns feitos de Otávio Augusto: 1) ao se proclamar

Augustus, em 27 a.C., garantindo a sua deificação; 2) ao obter sucesso em suas campanhas

pelo Oriente; 3) ao conseguir por fim às guerras civis, simbolizado pelo ato de fechar os

portões do Templo de Jano, referido na citação acima como Castelo da Guerra13

. Em sua

poesia, Virgílio faz mais algumas menções ao triunfo do princeps, por exemplo, quando

relata a comemoração dos jogos Ilíacos no Ácio:

Na praia de Ácio os desportos troianos então celebramos:

os companheiros, desnudos os corpos e untados de azeite,

travam-se, alegres de terem passado por tantas cidades

gregas, sem risco, e escapado da fúria dos fortes argivos.

Nesse entrementes, o sol concluía seu círculo grande,

e o negro inverno com ventos furiosos o mar encrespava.

Nas portas cravo do templo um escudo de côncavo bronze,

que Abante apenas usara, o gigante, e um só verso lhe aponho:

12

Nascetur pulchra Troianus origine Caesar,/ imperium oceano, famam qui terminet astris,/ Iulius, a magno

demissum nomen Iulo./ Hunc tu olim caelo, spoliis Orientis onustum,/ accipies secura; vocabitur hic quoque

votis./ Aspera tum positis mitescent saecula bellis;/ cana Fides, et Vesta, Remo cum fratre Quirinus,/ iura

dabunt; dirae ferro et compagibus artis/ claudentur Belli portae; Furor impius intus,/ saeva sedens super

arma, et centum vinctus aenis/ post tergum nodis, fremet horridus ore cruento (Eneida, I, 285-295). 13

Detalhes sobre feitos de Otávio Augusto foram disseminados pelo império, através de obras como a sua Res

Gestae, publicada depois da Eneida, onde procurou descrever todas as suas conquistas políticas e militares e

na obra de alguns autores como Tito Lívio, que em A história de Roma Livro I também ressaltou esses

eventos.

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ESTE TROFÉU FOI GANHO NA GUERRA DOS GREGOS14

.

(Eneida, III, 275-285)

Eneias e seus sócios15

participam dos jogos e o escudo que o herói deixa como

presente no templo do Ácio denota a intenção de Virgílio de fazer uma alusão a um dos

principais feitos de Otávio Augusto: a vitória na guerra contra Marco Antônio e Cleópatra,

na batalha naval ocorrida no Ácio, bem como ao clípeo honorífico, um escudo que o

Senado e o povo romano presentearam Otávio, em 27 a. C, para celebrar seu sucesso

militar. A escrita de Virgílio nos leva a perceber uma intenção de contar na Eneida não só a

história de Eneias e seus sócios, mas também a do governo de Otávio Augusto, associando

o imperador sempre a uma profecia divina, bem como da cultura do povo romano.

Paulo Martins (2011, p.162-179) se dedicou à análise da memória aeterna na época

do governo de Otávio Augusto, e afirma que a epopeia foi a responsável pela construção de

uma memória atemporal e coletiva, mas restrita a uma camada da sociedade, que possuía

acesso à educação letrada ou, pelo menos, aos círculos letrados. O tempo era manipulado

com tal destreza que a figuração podia ser facilmente confundida nas três possibilidades

temporais: passado, presente e futuro. Essa figuração omnitemporal amplificava as

qualidades do ser figurado quase como uma deificação. A partir do momento em que

Otávio assumiu suas funções públicas devido à morte do seu pai adotivo, Júlio César,

passou a seguir seu cursus honorum, funções e prerrogativas distintivas dos homens bem-

nascidos, o que transferiu sua capacidade de influência do âmbito privado para o público.

Nesse momento suas imagens não se restringiam mais aos Lares familiares, mas passaram a

ser também alvo da representação pública. Suas atividades civis, militares, políticas e

religiosas determinaram um tipo especifico de representação, que somadas produziram um

acúmulo de figurações que só puderam ser sintetizadas com a divinização.

A ênfase nesses pontos pode ser explicada em parte pelo programa político

ideológico implantado por Otávio Augusto visando engrandecer sua imagem, fato que ficou

14

Actiaque Iliacis celebramus litora ludis./ Exercent patrias oleo labente palaestras/ nudati socii; iuuat

euasisse tot urbes/ Argolicas mediosque fugam tenuisse per hostes./ Interea magnum sol circumuoluitur

annum,/ et glacialis hiems Aquilonibus asperat undas./ Aere cauo clipeum, magni gestamen Abantis,/

postibus aduersis figo et rem carmine signo:/ AENEAS HAEC DE DANAIS VICTORIBUS ARMA (Eneida, III,

275-285). 15

Em Latim sociis, termo utilizado na Eneida para designar os companheiros de Eneias: (I, 550); (I, 630); (II,

745); (III, 230); (III, 255); (VII, 35); (IX, 5); (X, 255); (XI, 880).

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claro nos textos e na estatuária dos prédios públicos da cidade de Roma. Como aponta

Paulo Martins (2011, p. 30-35) as imagens possuem a finalidade de aferir o tempo, são um

retrato do poder repercutido em figuras “idealizadas”, que funcionam como marca da

amplificação e divinização do ser figurado. No que se refere a Otávio Augusto refletem a

ideia de que seu governo restabelece a “idade de ouro”, operada sistematicamente através

de textos e imagens veiculados na sua época. “Portanto, a finalidade da imagem

corresponde à observação da anterioridade, simultaneidade e posterioridade ao presente

enunciativo, que impõem ao poder de Augusto marca diferenciada de aeternitas”

(MARTINS, 2011, p.31). Otávio Augusto assumiu a função de Imperator, Caesar,

Princeps e Pontifex, caminho que já havia sido delineado no final da República, com o

governo ditatorial de César. Mesmo assim, foi o responsável pela construção de um ideário

sustentado na divulgação de sua imagem, tanto na literatura como na iconográfica, de um

modo que não havia precedentes.

A Ara Pacis Augustae16

é um dos monumentos icônicos do projeto de divulgação da

imagem de Augusto. Esse altar foi construído na Via Flaminia, estrada que ligava o centro

de Roma ao Norte da Itália, uma das principais portas para a campanha, empreendida pelo

princeps, de expansão do território romano rumo ao Mediterrâneo. Próximo a esse altar

existiam mais três monumentos dedicados à família Iulia: o Horologium Augusti, um

relógio de sol; Ustrinum Domus Augustae, local no qual os membros da gens Iulia eram

cremados; e o Mausoleum Augustus, túmulo erigido para abrigar os restos mortais dos

membros dessa gens e de alguns amigos notáveis. No centro da cidade encontrava-se a

Curia Iulia. Abaixo observamos o mapa para melhor ilustrar nossa descrição:

16

As primeiras peças desse altar foram encontradas em escavações realizadas em 1568 e finalizadas em 1938.

Sua localização original era no Campo de Marte, posteriormente foi reconstruído e atualmente se encontra na

Via di Ripetta, em frente ao Mausoléu de Augusto. Foi construído inteiramente em mármore e possui as

dimensões de 11 x 10m, em seu interior encontra-se um altar em forma de U. Disponível em:

http://digitalaugustanrome.org/.

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30

FIGURA 1 – Mapa da Via Flaminia

Mapa da Roma Augustana – Século I a.C. Digital Augustan Rome. Disponível em <

http://digitalaugustanrome.org/map/#/rome/filter:0/ >. Acesso em 15 jun. 2015. Notar Horologium Augusti

(número 55); Ustrinum Domus Augustae (número 58); Mausoleum Augustus (número57); Ara Pacis (número

56); Curia Iulia (número 146). Com alterações da autora.

Os monumentos destacados na figura 1 foram algumas das principais construções

erigidas para homenagear a gens Iulia. Daremos destaque à descrição da Ara Pacis, pois

nela se encontra um painel que retrata Eneias. Esse altar foi inaugurado por volta do ano 9

a.C., ou seja, após a publicação da Eneida em 19 a.C., em homenagem à deusa Pax (Paz),

para celebrar o período da pax romana e a vitória de Augusto na Gália e na Hispânia, em

13 a.C. Na sua Res Gestae, o imperador explica o motivo de sua construção:

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Quando voltei da Espanha e da Gália, alcançando o sucesso em todos os

feitos nessas províncias e sendo cônsules Tib. Nero e P. Quintílio, o

senado, tendo em vista meu retorno, determinou que o altar da Paz

Augusta devia ser consagrado junto ao Campo de Marte; ordenou que,

nele, as autoridades, sacerdotes e virgens vestais fizessem um sacrifício

anual (Res Gestae, 12).

Esse altar possui duas entradas decoradas com imagens associadas à origem divina

da gens Iulia, ao sucesso do Império Romano e à glória obtida pelo princeps, além de

correlações com a literatura da época, em particular com a obra de Virgílio. Na figura 1 o

herói troiano, Eneias, aparece acompanhado por dois ajudantes, um portando uma bacia e

um jarro, e outro conduzindo a porca que seria sacrificada. Esse animal carrega um teor

simbólico significativo, visto que na Eneida o encontro com uma porca amamentando seus

filhotes é profetizado pelo adivinho Heleno, quando Eneias visita o Epiro17

, como o local

no qual finalmente teria chegado ao seu Destino (Eneida, III, 385-390). Nesse mesmo

painel aparece também um templo na parte superior esquerda, representando os Penates

troianos, que Eneias carregou consigo desde o momento da sua fuga de Troia:

FIGURA 2 – Painel da entrada principal da Ara Pacis Augustae

Vista do painel direito da entrada da Ara Pacis. Eneias realizando sacrifício aos deuses domésticos. Material:

Mármore. Datação: 9 a.C. Museu Ara Pacis. Disponível em < http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>.

Acesso em 17 jun. 2015.

17

Mais detalhes sobre os acontecimentos do Livro III da Eneida são comentados no capítulo II.

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Como mostra a figura 3, observamos fragmentos de uma cena na qual figuram

Rômulo e Remo, a loba que os amamentou, o pastor Fáustulo, apoiado em uma bengala, e à

sua esquerda o divino pai dos gêmeos, Marte. Segundo o mito, Rômulo foi o fundador de

Roma e de sua linhagem nasceram os soberanos do império, dentre eles estavam César e

Otávio Augusto.

FIGURA 3 – O Lupercal

Vista do painel esquerdo da entrada principal da Ara Pacis. O Lupercal. Material: Mármore. Datação 9 a.C.

Disponível em < http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>. Acesso em 17 jun. 2015.

A Ara Pacis possui mais dois painéis, um da deusa Tellus e outro da deusa Roma.

Na figura 4 temos a deusa da Terra, ela se encontra rodeada por algumas plantas e sentadas

em seu colo estão duas crianças. Nas laterais observamos duas ninfas seminuas, uma

sentada em um cisne em voo, simbolizando o ar, e outra sobre um dragão do mar. Estes

dois animais representam a paz na terra e no mar. A interpretação da cena é incerta, a figura

central poderia ser a Vênus Genetrix (deusa Mãe) ou uma personificação da Itália, ou talvez

até mesmo a personificação do Pax18

.

18

Para mais informações sobre as interpretações das imagens da Ara Pacis ver: Museu da Ara Pacis.

Disponível em < http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>. Acesso em 17 jun. 2015.

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FIGURA 4 – A Deusa Tellus

Vista da entrada norte da Ara Pacis. A deusa Tellus. Material: Mármore. Datação 9 a.C. Disponível em <

http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>. Acesso em 17 jun. 2015.

Na figura 5 temos a deusa Roma, deste painel sobraram poucos fragmentos, mas

eles são suficientes para reconhecer a deusa, vestida como uma amazona sentada sobre uma

pilha de armas indicando os povos conquistados. Essa imagem mostra os alicerces da paz e

da nova ordem imposta pelo Império Romano:

FIGURA 5 – A Deusa Roma

Vista da entrada norte da Ara Pacis. A deusa Roma. Material: Mármore. Datação 9 a.C. Disponível em <

http://tourvirtuale.arapacis.it/ita/index.html>. Acesso em 17 jun. 2015.

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34

Na figura 6 observamos outro painel do altar onde foi esculpido um conjunto de

imagens de personagens da elite romana. Percebemos que se trata da cena de um evento

festivo. Possivelmente uma comemoração á pax augustana. É uma das cenas mais

preservadas do altar, com personagens da família imperial:

FIGURA 6 – Procissão imperial da Ara Pacis Augustae

Vista da lateral esquerda da Ara Pacis. Procissão imperial. Material: Mármore. Datação: 9 a. C. Disponível

em < http://vacioesformaformaesvacio.blogspot.com.br/2013/01/ara-pacis-escultura-monumentos.html >. Acesso em 17 jun. 2015.

Como podemos perceber, Otávio Augusto explorou a crença na sua descendência

divina, priorizando a sua ligação com Eneias, não só na literatura, como também nas

imagens da família imperial que compunham o cenário da cidade de Roma. Estes são

apenas alguns dos elementos simbólicos que esse governante se utilizou para construir uma

imagem pública que legitimasse seu poder. As imagens, como as mostradas acima, e textos,

como a Eneida, foram utilizados por Otávio Augusto possivelmente como ferramentas de

propaganda política. Ele espalhou pela capital do império ideias e crenças através do

aparato imagético- textual, que serviram de subsídio para que fosse aceito como um

governante praticamente absoluto, herdeiro do divino César, o que resultou na sua

consagração como Augustus e no nascimento do culto imperial.

Essas estratégias podem ser observadas nas medidas tomadas pelo princeps após a

morte de César, quando reivindicou sua posição como seu sucessor e aliou-se a Marco

Antônio e Lépido, por volta de 43 a. C. O futuro imperador obteve a aceitação do Senado,

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não sem antes enfrentar uma forte oposição deste grupo. Em seguida o poder passou para as

mãos dos militares, estes repartiram entre si as magistraturas, e os “inimigos de César”,

opositores do seu herdeiro, foram condenados à morte, tendo seus bens confiscados

(GRIMAL, 1992, p. 45-49). Otávio Augusto aproveitou-se da confusão gerada pela morte

de seu “pai” para dar início a um processo que culminaria na deificação de ambos.

Segundo Grimal essa iniciativa foi facilitada quando “um cometa apareceu no céu

pouco depois dos funerais [de César]; mostrava-se todas as tardes pouco antes o fim do dia

e durante a noite: é a alma do deus César que ganha a Via Láctea! ” (GRIMAL, 1992,

p.46). A aparição do cometa e a posterior divinização de César fizeram com que acendesse

a esperança de que os triúnviros haviam recebido a missão divina de reorganizar Roma,

dar-lhe novas leis e guiá-la ao “o século de ouro” (GRIMAL, 1992, p.46). Porém, essa

reorganização não se deu rapidamente, foram necessários vários acontecimentos, dentre os

quais o esfacelamento do triunvirato, para que enfim Otávio Augustus estabelecesse a pax

romana.

John Scheid (2007, p. 178-186) afirma que o governo de Otávio Augusto pode ser

caracterizado como fruto de uma “política religiosa”, que se desenvolveu entre os anos 43 e

28 a. C. As suas primeiras iniciativas, ao ocupar o posto de governante Roma, visaram

garantir a divinização de César e promover a construção de um templo dedicado a ele, no

Fórum Romano, iniciada em 42 a. C. e concluída em 28 a.C. Essas medidas podem ser

consideradas o prelúdio do culto imperial. Na mesma época foi concluído o templo

dedicado a Apolo, no Palatino, pois esse deus foi considerado o patrocinador da vitória de

Marcus Vipsânio Agripa contra Sexto Pompeu, na batalha naval de Naulochus, na Sicília,

que marcou o fim da resistência de Pompeu ao segundo triunvirato, por volta de 36 a.C.

Diante desse cenário, foi atribuído a Apolo o papel de deus da guerra e protetor dos

romanos. Todos esses eventos se deram período de oito anos, antes de Otávio se tornar

Augustus, fato que só veio ocorrer em 27 a.C.

Otávio também comemorou a cerimônia de augurium salutis (o augúrio pelo qual a

segurança do povo romano é garantida) e fechou as portas do templo de Jano, no Fórum

Romano, em 29 a. C., uma ação que significou o fim das guerras civis. Em 30 a. C. ele

definiu o padrão do culto imperial, assegurando que não haveria honras divinas públicas

para si mesmo em Roma, mas nas demais províncias algumas honras seriam iguais as dos

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deuses para o culto de César. Além disso, a partir 42 a. C., festas temporárias, os feriae,

foram dedicadas a todos os deuses, devido às vitórias de Otávio (SCHEID, 2007, p. 185-

187). Martins (2011, p.69-72) ao atentar para o desenvolvimento do culto imperial em 27 a.

C., observa que ele, provavelmente, tem suas raízes nas homenagens realizadas aos deuses

domésticos e antepassados, que ocorriam no ambiente privado da domus, e passaram a

fazer parte da esfera pública através de reverências à grandeza de Otávio Augusto. Esse

tipo de culto se direcionava à exaltação do genium do imperador como ser divinizado em

todos os distritos de Roma, bem como nas províncias ditas imperiais, o que nos leva a ter

noção do seu amplo alcance.

Norma Musco Mendes (2006, p. 29-37) relaciona o culto imperial às questões

referentes aos cargos ocupados por Otávio Augusto e afirma que seu sucesso político se

efetivou por ele ter conseguido dominar as três principais esferas da sociedade: política,

religião e exército. Esse processo se iniciou em 23 a. C. quando Otávio selou um acordo

com o Senado, que foi decisivo para o futuro da sua política imperial: abriu mão do

consulado. Logo em seguida, passou a desempenhar a função de tribuno da plebe, o que lhe

permitiu vetar as decisões do Senado, enquanto era procônsul, podendo participar da

Assembleia do Povo e propor projetos de lei. Em 12 a. C. Otávio Augusto se tornou

Pontífice Máximo e assegurou sua posição como chefe religioso. Isso lhe garantiu poder

ilimitado e aliado a seu sucesso nas campanhas militares sustentou a ideia de que o “século

de ouro” dos romanos estava se consolidando graças a ele. Nesse cenário a crença de que o

princeps havia sido incumbido pelos deuses para liderar o povo romano se fortaleceu cada

vez mais.

O culto imperial, fundado por Augusto, reunia em si mesmo vários elementos, mais

acima de tudo poder político e religioso, tendo se desenvolvido como uma prática

particularmente romana, que objetivava celebrar e representar a posição de onipotência do

imperador como governante divino e restaurador da pax, momento aqui traduzido como o

fim das guerras civis que assolaram a república romana. Esse culto era celebrado pelos

colégios sacerdotais, que contribuíram para a sua popularização. Apesar de se atribuir a

instauração do sistema imperial a Otávio Augusto, ele não pode ser considerado o único

responsável, pois dentro desse processo havia várias transformações pelas quais o território

romano vinha passando: a imposição de novas taxações; o surgimento de novas políticas;

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novas orientações jurídicas; novas formas de organização do espaço etc., principalmente na

parte ocidental do Império (MENDES, 2013, p.145).

Scheid (2007, p.175-177) afirma que as cerimônias públicas eram uma parte

integrante da cultura política da sociedade romana, pois interligavam o poder das elites

governantes com o ideal de soberania do povo romano. Porém, é importante ressaltar que o

culto imperial de Augusto não o honrava como um deus, apenas como imperador, pois tal

honra só era dada ao indivíduo após a sua morte. Foi através de um conjunto de práticas e

cerimônias que o imperador e a família imperial fora incorporados à estrutura religiosa da

cidade. O relato da história da gênese do povo romano na Eneida fazia parte desse

processo, a disseminação do culto de Eneias pelo império produziu o que poderíamos

denominar de “memória coletiva”, cujo objetivo era permitir a todos aqueles que se

consideravam membros dessa sociedade compartilhassem uma memória comum19

.

O conceito de memória social foi trabalhado por Susan Alcock (2002, p.1-5) no

estudo das sociedades da Antiguidade. De acordo com sua teoria as memórias

compartilhadas fornecem uma imagem do passado e um projeto do futuro para as

sociedades. Elas se sobrepõem e competem ao longo do tempo, mudam ou são extintas,

pois as pessoas esquecem. É difícil seguir a variação das memórias nos dias atuais e essa

situação se agrava mais quando tratamos de épocas mais antigas. As memórias são

igualmente integradas e suportadas dentro de uma estrutura material, cada época possui

padrões relacionados à rememoração e eles são variáveis. Em dinastias e impérios da antiga

Mesopotâmia, por exemplo, sucessivos e concorrentes regimes invocaram continuamente

as memórias de seus antecessores com o objetivo de usá-los para criar e promulgar

estruturas de identidade política. Um dos principais estímulos para essas memórias

compartilhadas foi o traço físico do passado na paisagem atual: cidades antigas, paredes

velhas, antigos templos, estátuas antigas, em outras palavras, o quadro material do passado

no presente.

Na concepção de Alcock (2002, p.14) a pergunta que deve ser feita quando nos

debruçamos sobre o estudo da memória social é: como é que uma sociedade lembra?

Lembrar é um ato mental e por isso é absolutamente pessoal. Surge, então, um grande

19

A questão da memória será retomada no próximo capítulo para desenvolver a argumentação em torno do

seu papel na epopéia virgiliana.

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medo de que a memória social ofereça uma porta para recriar categorias fechadas,

coletivas, folclóricas, que muitos arqueólogos, historiadores e antropólogos têm procurado

se distanciar. Em suas formas mais extremas o indivíduo passa a ser visto como um ser que

obedece passivamente à vontade coletiva interiorizada. Estas são questões metodológicas

sérias, ainda mais complexas pelo fato de que muito de como os indivíduos "lembram"

ainda não é totalmente compreendido. Por outro lado, é impossível negar que os grupos

sociais compartilham memórias comuns e que essas memórias podem produzir percepções

e ações do grupo. Outra maneira de entender isso é admitir a existência de numerosas

"comunidades de memória", com diferentes conjuntos de práticas mnemônicas (ALCOCK,

2002, p.14).

“Comunidades de memória” estão longe de ser entidades fixas ou que tudo

lembram, mesmo quando elas abrangem as "comunidades imaginadas" de tradições

nacionais ou as paixões de ligação de grupos étnicos. Órgãos como cidades, instituições,

associações regionais, sindicatos de trabalhadores e famílias, também são portadores

legítimos de memória e os indivíduos que as habitam são perfeitamente capazes de

participar de mais de um desses domínios. Esta insistência na multiplicidade evita o perigo

da perda de autonomia (ALCOCK, 2002, p.14-15). Alcock (2002, p.15-16) defende a

existência de uma pluralidade, possivelmente conflitante e potencialmente concorrente, de

memórias disponíveis para as sociedades em um determinado momento. As comunidades

de memória podem coexistir pacificamente, ou ainda operar em feliz ignorância uma da

outra.

Memórias, muitas vezes giram em torno de eventos específicos ou de figuras

carismáticas, como Otávio Augusto. Um aspecto óbvio da política de memória é a

manipulação do passado por governantes ou elites dominantes. Escolhas comemorativas da

elite são mais visíveis e eficazes, é a sua versão do passado que, frequentemente, será

gravada e preservada. Teóricos da memória no mundo clássico se dedicam ao estudo da ars

memoriae (arte da memória), cuja origem remonta ao poeta arcaico Simônides, mas que é

melhor descrita por Cícero e Quintiliano, baseada em técnicas mnemônicas materiais

explícitas associadas com pontos necessários para construir e garantir o desempenho e o

sucesso de um retórico. Essas façanhas de memória eram politicamente aconselháveis no

ambiente competitivo que caracterizava a interação da elite romana (ALCOCK, 2002, p17-

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19). Além da ars memoriae, o mundo clássico desenvolveu outra contribuição para o

campo dos estudos da memória. A partir dos escritos de filósofos e teólogos, de Aristóteles

a Santo Agostinho, surgiu uma concepção de como a memória é operada como um modelo

estático de recolhimento, em que elementos podem ser recuperados intocados do “depósito”

da mente humana. Essa concepção foi explorada nos séculos XIX e XX com o

reconhecimento do dinamismo da memória.

O estudo da memória, bem como sua relação com conceitos do Mundo Antigo, está

em expansão nos dias de hoje com as técnicas da ars memoriae sendo utilizadas, por

exemplo, para debater questões de estilo artístico e exibição social ou em discussões sobre

a "logística" da memória, tais como a criação e transmissão de livros (ALCOCK, 2002, p.

22-34). Mas, o tema da “memória social” permanece relativamente negligenciado no estudo

das sociedades da Antiguidade. A evidência literária e epigráfica tem suportado o peso de

reconstruir atitudes antigas do passado, e nada pode, nem deve desalojar essas fontes de seu

lugar privilegiado nesta análise. No entanto, esses textos são majoritariamente narrativas

comemorativas das classes dominantes e é raro que ofereçam versões alternativas ou um

vislumbre potencial de “contra-memórias”. Variações regionais ou cívicas, urbanas ou

rurais podem ser facilmente perdidas. Perspectivas do sexo masculino, de elite, e urbanas,

quase inevitavelmente, foram consideradas dignas de serem lembradas. O resultado foi um

conjunto filtrado de memórias deixadas para a nossa consideração20

.

Richard F. Thomas (2004, p.25-26) teceu uma critica sobre a maneira pela qual o

governo de Otávio Augusto tem sido problematizado a partir dos poemas de Virgílio, de

acordo com um ponto de vista pautado no pensamento europeu sobre os políticos da

contemporaneidade. Na tentativa de fugir das generalizações não examinadas sobre a

relação entre o princeps e o poeta esse teórico sugeriu uma revisão da concepção de que

Virgílio era o “poeta de Augusto”, evitando suposições sobre o lugar do poeta romano na

Roma augustana, dando mais atenção a sua criação de imagens e ao primado delas antes de

serem subordinadas às ideias do princeps.

20 Monumentos e paisagens, assim como textos, podem ser inventados, reescritos e apagados; arqueólogos e

historiadores não são inocentes de "intervenções subjetivas”. Continua a ser verdade, porém, que provas

materiais podem nos ajudar a prestar atenção aos detalhes da memória de outra forma invisíveis, e, portanto,

evitando o excesso de fácil aceitação de versões arrumadas do passado. Ver Alcock (2002, p. 22-34).

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Thomas (2004, p.27) observa que um dos grandes problemas de se lidar com a

literatura como “fonte” são os acontecimentos históricos aos quais a associamos e como a

utilizamos para estabelecer uma “verdade”. Essa preocupação reside no fato de que se nesse

processo os procedimentos críticos não forem rigorosos e plausíveis os resultados podem

ser análises mecânicas e simplistas, mas ao mesmo tempo difíceis de serem contestadas,

uma vez que se tornam parte da infraestrutura histórica de outra forma irrecuperável. É

necessário um questionamento constante sobre a interpretação que tem acompanhado os

usos de tais “evidencias”. Do ponto de vista de Thomas (2004, p.28), essas medidas são

necessárias no estudo sobre a relação de Virgílio e Augusto, pois seria difícil imaginar que

um autor tenha sido tão consistentemente identificado com o regime político no qual estava

inserido ou cujo trabalho tenha sido usado como manifesto deste, com tão pouca atenção ao

que realmente está escrito, quem está falando e em qual contexto. Isso acontece no caso da

Eneida, um poema que é, ao mesmo tempo, uma das criações artísticas mais influentes da

literatura europeia e um dos grandes paradoxos da história literária.

Ao voltarmos nossa atenção para a Eneida e sobre como ela possivelmente traduziu

a ideia de Virgílio como “poeta de Augusto” devemos atentar para algumas questões,

principalmente o fato de que o poeta teve uma morte prematura em 19 a. C. que o impediu

de concluir sua obra e de ver a concretização dos planos de Otávio Augusto para Roma,

dada sua morte prematura em 19 a. C. Consequentemente, ao nos debruçarmos sobre a

épica virgiliana devemos imaginar seu enredo no contexto do ano de sua publicação,

evitando anacronismos e estabelecendo sincronismos, um exercício extremamente difícil,

se levarmos em consideração a centralidade de Augusto na história da Europa (THOMAS,

2004, p.31-32).

Alcock (2002, p.26-30) chama a atenção para o trabalho do sociólogo francês

Maurice Halbwachs, pioneiro no estudo da “memória coletiva”, para tratar do ambiente

físico de recordação. Ele defende que a memória habita objetos e lugares e contém muitas

verdades, noções e ideias. Mas, se a verdade é para ser disseminada na memória de um

grupo ela precisa ser apresentada sob a forma concreta de um evento, de uma

personalidade, ou de uma localidade. As memórias podem morar em qualquer lugar:

colunas, sepulturas, árvores, estátuas, armas, obeliscos, inscrições, pedras brutas. Objetos

de tipo durável afirmam as suas próprias memórias, suas próprias formas de comentário e,

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portanto, podem vir a possuir suas próprias trajetórias de vida. Estas estruturas duradouras

foram designadas como uma forma de "inscrição" memorial prática, favorecendo uma

informação conservadora de transmissão cultural. Pela sua própria natureza monumentos

parecem coisas eminentemente estáveis, pontos turísticos e baluartes da continuidade. É o

público com suas diferentes experiências, expectativas e conhecimentos que trazem consigo

formas distintas de visualização e interpretação dos monumentos.

Halbwachs desenvolveu seus estudos sobre a “memória coletiva” no século XX para

compreender sociedade francesa21

. Levando em consideração a distância temporal dessa

realidade daquela que nos propormos a estudar no presente trabalho, pretendemos pegar os

princípios norteadores dessa teoria para aplicar ao estudo da sociedade romana do século I

a. C. e fazer alguns apontamentos sobre política de Otávio Augusto divulgada capital

Império Romano. Em A memória coletiva (HALBWACHS, 2006, p.8-10) são discutidas as

relações entre sociedade e pensamento. A memória é concebida como possuidora de um

fundo social e coletivo, ninguém pode lembrar-se de algo fora do espaço da sociedade, pois

a evocação de recordações se dá através dos outros, ou seja, a família ou demais membros

de um mesmo grupo. O autor procura mostrar como em cada individuo há uma consciência

coletiva, diferente da individual, que cria um sentimento de pertencimento ao grupo,

influenciado à percepção e o comportamento em sociedade.

Através de uma série de exemplos Halbwachs (2006, p.31-42) procura comprovar

sua teoria sobre o fundo social coletivo existente em quase todas as lembranças do ser

humano. Ele cita acontecimentos particulares, como passeios, viagens, visitas, que

provocaram recordações posteriores para atestar que através delas o homem se afirma como

um ser coletivo. As pessoas com quem conviveu nessas experiências compartilharam as

mesmas lembranças e se tornam “testemunhas” necessárias para confirmar ou recordar um

determinado acontecimento. Para garantir que uma memória permaneça viva é necessário

21

Halbwachs deixa claro no início do seu trabalho que utiliza como fundamentação teórica a concepção de

sociedade defendida por Durkheim, segundo a qual não é o individuo que determina a sociedade, mas a

sociedade que condiciona o indivíduo para explicar o funcionamento da “memória coletiva” e como o sujeito

vivencia o seu pertencimento a sociedade (HALBWACHS, 2006, p.26). Com base nessa teoria o autor se

concentra na análise das condições sociais da memória, traçando uma ponte entre a Psicologia e a Sociologia.

O conceito de "memória coletiva" aparece para defender que a memória é influenciada pelos quadros sociais

que a antecedem e determinam. Esses quadros sociais da memória são compreendidos como combinações das

lembranças individuais de vários momentos compartilhados pelos membros de um mesmo grupo. Sendo

assim, as lembranças evocadas por indivíduo serão sempre evocações de outros, pois o ser humano vive em

sociedade, logo nunca está sozinho. O homem compartilha suas memórias com seus pares.

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que continuemos fazendo parte do grupo ao qual ela está ligada. Apesar disso, esse autor

não exclui a possibilidade de recordações individuais, que são denominadas de "intuição

sensível", para distingui-las das percepções do pensamento social, da memória coletiva,

porém considera esses casos muito raros.

De acordo com essa lógica de pensamento cada membro de uma sociedade possui

uma lógica de pensamento própria, que se apoia na memória um dos outros e se limita a

duração da unidade do grupo. Essas lembranças se localizam de maneira tão íntima no Ser

dos indivíduos que esquecer uma parte dessa memória coletiva, dessa história comum, é o

mesmo que perder o contato com aqueles que o rodeiam. No entanto, para manter essa

memória compartilhada viva é necessário não apenas comungar os mesmos testemunhos,

mas também garantir que ela não deixe de “concordar com as memórias deles [dos

membros do grupo] e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a

lembrança que nos fazem recordar venha a ser reconstruída sobre uma base comum”

(HALBVACHS, 2006, p.39).

O esforço de representar Eneias como o herói, descendente de uma deusa e membro

da linhagem a qual pertencia Otávio Augusto não era uma mera coincidência. Esse poema

foi construído dentro de um contexto, o momento em que o descendente de César tentava

afirmar seu poder, tendo como uma de suas ferramentas a legitimação de um mito com o

qual todos os membros da sociedade romana se identificavam. Ao nos debruçarmos sobre a

análise de Halbwachs, bem como a de Alcock, podemos aplicar suas teorias sobre a

memória para entender como uma sociedade pode compartilhar um conjunto de ideias,

expressas nos livros e nas paredes de suas cidades, com a finalidade de compreender como

Otávio Augusto obteve sucesso no seu projeto político de veiculação da sua imagem e da

sua gens como pertencentes a uma estirpe divina destina a elevar Roma à glória.

Na Eneida os eventos se passam num momento anterior ao vivido pelo

narrador/poeta, porém é visível também que o presente do narrador é aquele da realização

das profecias do poema. Podemos dizer que Virgílio vivia o momento profetizado pelos

deuses na Eneida, o “século de ouro”22

da cidade cujas bases Eneias lançou ao chegar à

Itália, combatendo o exército de Turno para garantir a pax na terra onde finalmente fixaria

22

No latim, aurea condet saecula, termo utilizado por Virgílio, na Eneida, para designar o período de

conquistas obtidas por Otávio Augusto (Eneida, VI, 790).

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sua linhagem. Isso nos é apresentado no poema no momento em que o herói troiano desce

aos infernos e encontra Anquises nos Campos Elísios e este lhe mostra as almas dos futuros

grandes homens de Roma, reunidos às margens do Lete, o rio do esquecimento, se

preparando para ascender à vida terrena, dentre elas estavam Júlio César e Otávio Augusto

(Eneida, VI, 785- 795). Esse é um dos indicativos no poema de que os governantes de

Roma, principalmente os dois citados anteriormente, haviam sido escolhidos pelos deuses.

Volta a atenção para aqui; teus romanos contempla de perto,

gente da tua prosápia. Este é o César, a estirpe Iulo,

sem faltar um, que há de um dia exaltar-se até ao polo celeste.

Este aqui...sim, este mesmo, é o herói prometido mil vezes,

César Augusto, de origem divina, que o século de ouro

restaurará nas campinas do reino do antigo Saturno

e alargará seus domínios às fontes longínquas dos índios

e os garamantes, às terras situadas além de mil astros,

longe da rota do sol e do tempo, onde o Atlante celífero

sobre as espáduas sustenta esta esfera tauxiada de estrelas23

.

(Eneida, VI, 785- 795)

Anquises mostra ao seu filho os futuros feitos dos seus descendentes,

principalmente daquele que se tornará o primeiro Augustus24

, encarregado pelos Fados25

de

levar Roma à glória, alargando as suas fronteiras até os limites do mundo. Podemos

observar essa intenção quando o narrador afirma que Otávio dominará “as terras situadas

além de mil astros, / longe da rota do sol e do tempo, onde o Atlante celífero/ sobre as

espáduas sustenta esta esfera tauxiada de estrelas”26

(Eneida, VI, 795-797). A ideia de

pertencimento do princeps ao passado mítico de Roma foi uma das bases do seu plano

político ideológico para assegurar sua posição como herdeiro de César, que se deu através

23

Huc geminas nunc flecte acies, hanc aspice gentem/ Romanosque tuos. Hic Caesar et omnis Iuli/ progenies

magnum caeli uentura sub axem./ Hic uir, hic est, tibi quem promitti saepius audis,/ Augustus Caesar, diui

genus, aurea condet/ saecula qui rursus Latio regnata per aruá/ Saturno quondam, super et Garamantas et

Indos/ proferet imperium; iacet extra sidera tellus,/ extra anni solisque uias, ubi caelifer Atlas/ axem umero

torquet stellis ardentibus aptum (Eneida, VI, 785- 795). 24

Esse termo deriva do vergo augere, que significa “fazer crescer, aumentar em quantidade ou tamanho,

amplificar”. Atribuía-se esse termo aos deuses, cujo poder poderia ser amplificado, logo, pertence ao universo

sagrado. Acredita-se que a atribuição do título de Augustus à Otávio deva ter causado grande impacto na

sociedade romana, visto que essa sociedade negava mitificações que igualassem os homens aos deuses antes

da sua morte. Sobre esses aspectos ver Martins (2011). 25

No latim Fatum, é o deus dos destinos humanos. 26

Iacet extra sidera tellus/ extra anni solisque uias, ubi caelifer Atlas/ axem úmero torquet stellis, ardentibus

aptum (Eneida, VI, 795-797).

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da divulgação da sua imagem e da sua família como descendente da gens de Eneias, ou

seja, por meio da divulgação de uma memória sobre o passado do seu povo.

O projeto de restauração de Roma representou um importante papel no cenário

político do século I a. C., pois foi uma das estratégias de Otávio Augusto para firmar a

inserção de sua família no contexto histórico, político e religioso do império. É importante

frisar que o costume de revitalização das cidades, era comum aos governantes romanos,

antes de Otávio Augusto, pois era uma forma de garantir o prestígio daqueles que

autorizavam a sua realização. O princeps percebeu a importância das obras públicas e se

utilizou da arquitetura como meio de imprimir nas pedras de Roma uma imagem positiva

sobre si. As construções e reconstruções de prédios, como a Ara Pacis, permitiram a

manutenção de uma memória que ligava a gens do herdeiro de César a um passado glorioso

de heróis e deuses, Eneias, Marte, Vênus, Rômulo e Remo, principalmente. Além disso,

durante o principado romano a poesia e a história se desenvolveram muito, quando se

sobressaíram nomes como Tito Lívio e Virgílio, que representaram um grande

desenvolvimento nesses campos. Nesse cenário nasceu a Eneida.

1.3. A discussão sobre as influencias retóricas na epopeia de Virgílio

Se a influência da política de Augusto é destacada na epopeia de Virgílio, outras

vozes externas à obra também podem ser consideradas. Os debates sobre as influências

retóricas da Eneida deram origem a centenas de pesquisas, uma grande parte delas

dedicadas a elucidar as relações complexas entre os livros que ele leu e escreveu. Dentre

esses estudos destacamos o de Damien P. Nelis (2010) e o de Ralph Hexter (2010),

publicados no mesmo ano. O primeiro (NELIS, 2010, p. 13-24) se dedica a investigar as

principais influências literárias de Virgílio. Destaca as semelhanças entre as epopeias

homéricas e a Eneida, chegando à conclusão de que a poesia virgiliana foi endereçada aos

leitores da Ilíada e da Odisseia, bem como de Teócrito e Hesíodo. No entanto, defende que

a enumeração dos autores comumente citados como modelos utilizados por Virgílio levanta

uma série de questões difíceis de responder. Que tipo de manuscritos de Teócrito, Hesíodo

e Heródoto ele utilizou? Onde ele os adquiriu? E como ele os usou? Será que ele confiava

em sua memória ou será que os escravos verificavam as passagens por ele? Será que ele

ditava a um escriba? Quantos textos que não sejam a Ilíada e a Odisseia foram utilizados

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na composição da Eneida? Ao realizar questionamentos como esses surgem outras

perguntas ainda mais difíceis de responder.

Há um corpo substancial de evidências que mostram que os romanos poderiam ter

bibliotecas particulares em suas casas de campo e eram habituados à prática de

empréstimos de livros a amigos. No início do século I a. C. as coleções mais famosas

provavelmente se localizavam fora de Roma. A criação literária em latim é inseparável de

questões sobre o acesso aos livros. Muito da literatura grega se encontrava disponível na

Itália muito antes da conquista romana, o que explica a circulação de suas grandes e

prestigiadas coleções entre os romanos. Aos poucos Roma obteve um papel central na

divulgação dos livros da tradição grega. Otávio Augusto se dedicou à construção de duas

grandes bibliotecas, uma no Pórtico de Otávia, e outra no Palatino. A propriedade de uma

grande coleção de livros trouxe consigo as tarefas onerosas de organização e catalogação

das obras 27

.

Nelis (2010, p.18-20) afirma ainda que no período helenístico houve um acentuado

estudo de livros e acesso romano a literatura grega, através dos trabalhos de estudiosos que

se concentravam nos centros de aprendizagem, Alexandria e Pérgamo. Poetas latinos foram

educados nos mesmo níveis de complexidade que os poetas da cultura helenística e estavam

plenamente conscientes da importância das tradições de estudos homéricos para seus

esforços criativos. Prateleiras da biblioteca de Virgílio, portanto, podem ter dado um lugar

de destaque para Homero. Talvez o exemplo mais óbvio dessa abordagem seja a proposição

de que Virgílio pode ter lido obras da literatura grega e latina como uma imitação ou reação

a Homero.

Hexter (2010, p.26-36), por sua vez, desenvolveu um estudo sobre a

intertextualidade existente na epopeia virgiliana. Ele se empenhou não em olhar para

Homero através Virgílio, mas sim, revertendo à óptica, olhando para Virgílio através de

Homero, dando ênfase aos métodos de estudo sobre essa relação. Para isso ele procurou

enfatizar a importância da presença do pensamento de Homero na epopeia virgiliana do

ponto de vista histórico, isto é, levando em consideração a cultura homérica que tinha se

27

Acrescenta-se a esses fatos a questão da existência de uma elite romana bilíngue e a presença de professores

e homens de letras gregas, aliado a isso muitas das peças do tetro e da filosofia grega foram traduzidas para o

latim, o que resultou em uma intensa circulação de livros e saberes pelo mundo romano. Ver Nelis (2010,

p.14-17).

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acumulado até a época de Virgílio, grande parte da qual se encontrava disponível para os

romanos, incluindo os professores do poeta, como o filósofo epicurista Filodemo de

Gadara. Hexter acredita que a compreensão de Virgílio sobre Homero teria sido moldada

por essa influência.

Nós não podemos, por exemplo, simplesmente imaginar Virgílio como um simples

estudante da tradição literária homérica, que possuía em sua mesa uma série de artigos e

notas com múltiplas interpretações sobre a obra do poeta grego (HEXTER, 2010, p.27).

Provavelmente tais livros não existiam até muito depois da morte de Virgílio. Acredita-se

que o estudo sistemático da Ilíada e da Odisseia data do século IV d. C., mas, já na época

de Virgílio a leitura dessas obras resultava em comentários explicativos de diversos tipos,

que circulavam abundantemente. Portanto, no século I a. C. o conhecimento das obras de

Homero era substancial, o que nos leva a considerar o impacto deste poeta na composição

virgiliana28

.

Ao avaliar os métodos utilizados pelos estudiosos para compreender as influências

de Virgílio, Hexter (2010, p.31-32) observa que os estes procuraram reconstruir os métodos

críticos dos Antigos através do material arqueológico literário encontrado. No entanto, essa

linha de investigação tornou-se um campo de estudo, ampliando a investigação de métodos

críticos e acadêmicos para incluir concepções de estética e literatura, tendo como

justificativa para o interesse neste último par o fato de muitas vezes ele ter embasado

decisões críticas sobre o método mais adequado à investigação.

É importante frisar os desafios de analisar um texto de cunho literário e mais ainda

de uma época muito distante da nossa. A maior dificuldade em se trabalhar com esse tipo

de fonte é que ela apresenta um discurso normativo escrito pela ideologia dominante, ou

seja, é uma “fonte autorizada” (ROSA, 2013, p.118-119). Isso nos obriga a pensar além

daquilo que está escrito nos versos da Eneida, tornando necessário analisar sob quais

circunstâncias essa obra foi escrita, para quem ela foi escrita e em que contexto

sociocultural. Devemos ter em mente que cada época escreve à sua maneira, dessa forma o

herói mítico não possui a mesma significação em todas as épocas e em todas as culturas.

28

Estudo das obras de Homero, especialmente em sua fase helenística, bem como dos hypomnêmata e da

scholia homérica que chegaram até nós nas margens das traduções da Ilíada e, em menor grau, da Odisseia

dispõe de um campo de estudo especifico que tem avançando com cada vez maior sofisticação e hipóteses.

Ver Hexter (2010, p. 27- 29).

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Por isso destacamos aqui a importância da análise sobre a tradição literária na qual Virgílio

estava inserido, a fim de demonstrar que a Eneida estava dentro de um contexto muito

maior que o simples desejo de um poeta de escrever uma epopeia sobre a gênese do povo

romano, a mando do imperador.

Vamos discutir sobre um dos principais ingredientes da poesia do séc. I a. C., mas

que se desenvolveu na civilização grega e foi absorvida pelos romanos com diferentes

funções: a retórica. Para isso nos apoiaremos na discussão proposta por McComiskey

(1997, 5-24) sobre o pensamento de Górgias29

. Górgias problematizou a representação do

logos das coisas, para ele as realidades não podiam ser totalmente reproduzidas pelo

discurso, mas poderia exteriorizar as representações dela. O objetivo da sua teoria era

mostrar que não havia intervenção divina na produção artística. Acreditava que o logos

lança mão de três caminhos para mover a psique humana: a primeira seria a linguagem

métrica; a segunda, as profecias divinas; e a terceira, a persuasão feita por meio de falsos

argumentos. Ao dar sequência a sua descrição, tanto dos efeitos quanto dos usos do logos

que movem a psique, Górgias indicou que quaisquer que fossem os usos do logos que

resultassem num pseudo logos (argumento falso) contradiziam a retórica ética.

Górgias (SOUZA, 2007, 9-10) buscou mostrar que é através da linguagem que

podemos ter acesso às coisas. Além disso, atribuiu à poiesis duas importantes acepções: a

que a define como uma atividade vinculada à produção com base no uso do logos; e a que

define esta produção como algo essencialmente humano. A poesia era vista por ele como

uma forma de engrandecimento e ordenação, demonstrada por meio do domínio das

palavras organizadas em versos e estrofes. Esse controle sobre as palavras não era visto

como uma atividade divina, mas humana, tal como defendiam os sofistas30

. A retórica foi

objeto da educação, juntamente com a dialética e a lógica, pois a vida pública exigia que os

cidadãos dominassem essas técnicas.

29

Górgias (485- 375 a.C.) era natural de Leontino, na Sicília. Em 427 a.C. ele viajou para Atenas, como

embaixador, a fim de buscar ajuda dos atenienses numa campanha contra Siracusa. Seu discurso surpreendeu

os atenienses a tal ponto que logo ficou conhecido como um hábil orador. Obteve êxito em sua missão e

acabou retornando para sua pátria. No entanto, logo voltou para Atenas aonde conseguiu se sustentar através

de sua oratória, ensinando e praticando retórica (MCCOMISKEY, 1997, p. 5-7). 30

Conjunto de doutrinas criadas por Sócrates e Platão caracterizadas pela preocupação com questões práticas

e concretas da vida da cidade, pelo relativismo em relação a moral e o conhecimento, pelo antropocentrismo,

pela valorização da retórica e da oratória como instrumentos da persuasão. Ver Japiassú e Marcondes (2001,

p.178).

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Denis Feeney (2007, p. 129) afirma que por volta da segunda metade do século III

a. C. os romanos adaptaram as formas literárias gregas à sua cultura, na qual o componente

religioso se revelou algo fundamental. Posteriormente, a leitura de certos textos, como a

epopeia, se tornou o ponto chave para a compreensão da relação entre homens e deuses

nessa sociedade. Ao ler esse tipo de texto com um interesse na sua dimensão religiosa é

importante ter consciência de que eles são tipos específicos de literatura, interagem com

outros textos e discursos religiosos de suas próprias e distintas formas. Textos como a

Eneida podem nos ensinar bastante sobre a cultura romana, por isso não devemos realizar

uma leitura desatenta, negligenciando os tipos particulares dessas narrativas.

A história de Roma já havia sido escrita por outros poetas antes de Virgílio, como

Névio, que escreveu sobre sua grandeza, justificada pela virtude dos seus soldados e pela

vontade dos deuses, colocando a cidade em sua coletividade, como personagem principal.

Na sua Bellum Punicum, esse poeta já contava a história de Eneias, o herói troiano que

sobreviveu à guerra graças à proteção dos deuses. Porém, a epopeia virgiliana não é uma

cópia dessa obra, pois seu autor reescreveu a história do império inserindo as questões de

seu próprio tempo, ela foi escrita na época de busca da afirmação do poder por parte de

Otávio Augusto, que visava reavivar as tradições da origem mítica de Roma, para legitimar

o caráter divino da sua gens (FEENEY, 2007, p.132-134). Além disso, por volta do século

V a. C. o mito de Eneias já habitava a Itália. Como aponta Grimal (1992, p. 203), na cidade

de Veios, dominada pelos etruscos, foram encontradas estatuetas que mostram Eneias

carregando Anquises nos ombros. Isso mostra que essa lenda era conhecida pelos etruscos,

tendo penetrado em suas terras por volta de 450 a. C., ou mesmo antes. Sabe-se que a

personagem Eneias pertencia às tradições que ligavam os tempos mais antigos das cidades

italianas aos heróis troianos, como Ulisses e Diomedes.

No próximo capítulo nos concentraremos em fazer uma reflexão sobre o mythos,

como categoria relevante na discussão sobre memória, vinculada ao relato das viagens e à

construção do personagem Eneias na literatura greco-latina. Para isso nos apoiaremos em

textos da Antiguidade e em análises historiográficas sobre eles para ao final tecermos

nossas considerações sobre a importância do herói troiano exilado no contexto dos cultos

públicos realizados na cidade de Roma, capital do Império, no século I a. C.

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2. MITO E MEMÓRIA: A VIAGEM MARÍTIMA DE ENEIAS

Neste capítulo nos dedicaremos a analisar os acontecimentos que Eneias narrou no

Livro III da Eneida, suas memórias sobre os espaços com os quais ele e seus companheiros

tiveram contato ao longo da sua viagem, principalmente suas experiências com o divino,

em busca da Itália. Em seguida discutiremos como os troianos exilados se situavam nesses

espaços e como essas relações podem nos auxiliar no entendimento da conduta ética e

religiosa que os cidadãos de Roma deveriam possuir dentro dos muros da cidade. No

entanto, consideramos que antes de tecer essas observações devemos discutir como o

mythos e a mimesis foram concebidos por alguns autores antigos, nos apoiando em analises

historiográficas modernas, objetivando apontar a relevância da épica na divulgação dos

mitos, tendo Eneias como exemplo.

2.1 Mythos e mimesis na literatura e história greco-romana

Não se conhece sociedade humana sem mito, e é duvidoso que pudesse

alguma vez existir (FINLEY, 1972, p.22).

Iniciamos esse capítulo com uma afirmação de Moses Finley para destacar a

valorização que a historiografia atribuiu ao mito no estudo das sociedades. Neste capítulo

nos propomos abordar sua significação na literatura e história greco-romana para mergulhar

no universo do espaço literário da Eneida, principalmente nas memórias de Eneias sobre

sua experiência como exilado descrita no Livro III dessa epopeia. Para tratar dessas

questões nos apoiaremos nos autores antigos, Aristóteles e Cícero, tendo também como

referencial as análises historiográficas modernas, que nos deram a dimensão do alcance do

mythos, da mimesis e da memória como formulações teóricas. Jean Pierre Vernant (2006,

p.2-11) ao analisar a concepção de mito para os gregos procura desvinculá-la do

pensamento cristão, pois acredita que cristianizar o politeísmo é o mesmo que desqualificá-

lo, visto que essas duas religiões são totalmente diferentes. “As religiões antigas não são

nem menos ricas espiritualmente, nem menos complexas e organizadas intelectualmente do

que as de hoje. Elas são outras” (VERNANT, 2006, p.3). No mundo grego mito e mitologia

não eram concebidos como narrativas absurdas, inferiores ou como pura ficção. Pelo

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contrário o mito era considerado relato, fonte de pensamento, preceitos morais, princípios

linguísticos e servia de inspiração para o aparato religioso, representado nas imagens de

vasos e estátuas, por exemplo, que traduzem as suas regras rituais. Mito é entendido, então,

como sinônimo de tradição, um fator social.

Vernant (2009, p.230) concebe o mythos como relato, distanciando-o da noção de

ficção empregada pela historiografia moderna. Em uma sociedade cuja religião não possuía

um conjunto de dogmas descritos em um livro, um corpo sacerdotal ou uma igreja, por

exemplo, a difusão das tradições se dava através da oralidade e da escrita. Essa tarefa ficou

a cargo das pessoas que se dedicavam a escrever textos como a poesia, a lírica, a tragédia e

a comédia, por meio do quais as sociedades da Antiguidade se reconheciam. Ou seja, todas

as formas de escrita associada aos poetas. “A teologia antiga também é, assim,

essencialmente uma poesia, o discurso sobre seus deuses também é uma narrativa mítica”

(VERNANT, 2009, p.230). Foi através desses relatos que conhecemos a história da religião

grega, assim como a romana. Marcel Detiene (1992, p.91-93) defende a ideia de que o

mythos geralmente aparecia vinculado à poesia épica, logo:

A narrativa épica não faz mais do que falar e tornar a falar sobre os

valores e as práticas essenciais de uma sociedade que abandona à sua

memória única a tarefa de cantá-los para todos, com a ajuda dos ritmos e

das técnicas formulares confiados apenas àqueles que sabem cultivar suas

riquezas (DETIENE, 1992, p.57).

A épica pode ser encarada como um espelho de uma época, um tipo de literatura

que traduz as tradições de um dado momento, de modo que seu estudo pode nos levar a

compreensão de traços sociais, religiosos e políticos de uma determinada sociedade. A

epopeia pode então ser concebida como um conjunto de metáforas dos acontecimentos de

um determinado momento histórico.

Ao nos voltarmos para a questão do mythos no mundo grego, podemos destacar

como esse conceito apareceu na obra daquele que ficou conhecido como o “pai da história”,

Heródoto. Ele se dedicou a realizar uma análise sobre o conflito envolvendo helenos e

bárbaros, a partir do que ouviu e viu. Nas suas Histórias o termo mythos aparece em duas

ocasiões. A primeira vez quando discute sobre as cheias do Nilo (Histórias, II, 20-23),

buscando nos próprios egípcios as respostas sobre esse fenômeno, porém não as

encontrando recorre aos gregos, os quais lhe fornecem três explicações que não o

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convencem: uma associada aos ventos estivais; a outra às inundações vindas do oceano; e

ao derretimento da neve. Essas versões pareciam enganosas aos olhos de Heródoto por

recorrem a uma fábula (mythos) e por esse motivo não mereciam ser discutidas com

profundidade.

Heródoto descreveu os egípcios como os homens mais escrupulosos religiosamente,

caracterizados essencialmente pelo ideal de pureza, tanto dos sacerdotes, como também dos

cidadãos comuns (Histórias, II, 37-38). Ao se referir pela segunda vez ao termo ao mythos

o apresenta novamente como sinônimo de fábula. Trata-se de um episódio contado pelos

gregos, segundo o qual Héracles haveria participado de uma cerimônia de sacrifício e

pouco antes de sua concretização teria matado todos os participantes. Heródoto acreditava

que essa história não passava de uma “fábula”, um mythos, uma injúria cometida pelos

gregos, que demonstravam com essa história não saberem muita coisa sobre a cultura

egípcia, visto que nessa sociedade só era permitido o sacrifício de bois, bezerros e porcos

(Histórias, II, 45). Como podemos perceber o mythos estava associado ao que não podia ser

comprovado, por esse motivo o descrédito do historiador grego quanto a essas explicações,

que pode ser entendido como fruto da sua metodologia historiográfica, pautada na

investigação e crítica dos fatos.

Ao analisar o episódio descrito acima (Histórias, II, 45), Finley (1972, p.20-21)

afirma que apesar de Heródoto contestar a veracidade dos fatos contados pelos gregos sobre

a estadia de Héracles no Egito, em nenhum momento ele negou a existência desse

personagem. Pelo contrário, buscou separar a verdade da lenda e chegou à conclusão de que

haviam existido dois personagens com o mesmo nome, um deus egípcio e um herói. Da

mesma forma Platão defendeu a história de Homero sobre a Guerra de Troia, embora

criticasse a filosofia, as concepções de justiça, dos deuses, de bem e mal presentes na

Ilíada.

Finley (1972, p.21) defende a teoria de que o fato de Heródoto considerar falsos os

testemunhos dos gregos era fruto de um fenômeno de reinvenção dos mitos. Tanto a

existência de Héracles, como da Guerra de Troia não foram contestadas, mas reinventadas e

relidas pelos poetas. Uma das explicações para a diversificação do mito no mundo grego se

daria por essa civilização em nenhum momento da sua história ter se constituído como uma

nação, com um território nacional único chamado Grécia. Muito pelo contrário, na idade

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arcaica, por volta do século VIII a. C., as colônias gregas se encontravam distribuídas entre

os territórios da atual Grécia, do litoral do Mar Negro, na atual Turquia, na Itália e no sul da

Sicília oriental, na costa do Norte da África e no litoral mediterrâneo da França, divididas

em comunidades de culturas diversificadas. Além disso, no caso de outros povos, como os

egípcios, por exemplo, a variação dos mythos dependia de lugar para lugar.

Nesse cenário a construção de uma mitologia nacional uniforme era impossível,

pois conforme uma nova tribo surgia ou se desencadeavam mudanças políticas e sociais

ocorriam alterações também nos mitos, na genealogia dos heróis, nos desfechos das guerras

ou na relação entre homens e deuses. Com isso, os mitos possuíam uma roupagem diferente

em cada pequena parte do território ocupado pelos gregos. Essa situação perdurou até o

momento em que Heródoto se dedicou ao estudo da mitologia, tornando necessária a

remodelagem das narrativas, o exame de sua coerência de modo a facilitar a sua

conservação enquanto testemunhos históricos. A elaboração de uma mitologia grega era

uma atividade de extrema importância nessa sociedade, por esse motivo ela não pode ser

reduzida ao mero devaneio de um poeta ou de um aedo. Era uma atividade solene e dentro

desse contexto Heródoto se sobressaiu, não só como um poeta, mas também como um

contador de lendas e mitos31

.

Partindo da mesma premissa de Finley, Hartog (2003, p.37-38) afirma que Heródoto

igualava o logos (narrativa) ao mythos como uma forma de classificar este como algo

duvidoso, uma fábula, que geralmente se encontrava associada à poesia. Por outro lado,

Detiene (1992, p.91-94) defende a ideia de que esse termo abrangia uma multiplicidade de

significados, negando a existência de uma concepção de mythos bem definida na idade

arcaica grega. Acreditamos que o mythos era concebido como uma narrativa que não podia

ser comprovada, como veremos nas próximas linhas. Sua distinção do termo logos não se

apresenta como o alvo de nossa pesquisa, portanto não nos dedicaremos a aprofundar essa

discussão.

Nos voltamos agora para a análise de um importante autor da Antiguidade que

tratou não apenas do mythos, mas também da estruturação da poesia, Aristóteles. Em sua

31

Sobre as contradições dos mitos gregos devido a falta de unidade territorial dos gregos (FINLEY, 1972,

p.21-24).

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53

Poética (Poética, 1455b – 5-25), ele tinha como objetivo discutir sobre a “arte poética”32

,

as suas especificidades e o modo como deviam se estruturar. O enredo nessa obra aparece

representado pelo termo mythos, definido como uma trama, a história principal ao redor da

qual os episódios, acontecimentos de pequena duração, girarão em torno e servirão de

complemento. Tendo a Odisséia como exemplo ele afirma que seu enredo seria a história

de um homem que passa muitos anos como errante nos quais luta várias batalhas,

perseguido por Poseidon. Como é ao redor desse fato que a história se desenvolverá o poeta

o teria esboçado antes dos acontecimentos que ocorreram analogamente.

O costume de compor enredos teria nascido na Sicília e depois se espalhado por

Atenas e outras localidades (Poética, 1449b – 5). Cabia ao poeta criar enredos simples, sem

pontas soltas, nos quais o caráter maravilhoso deveria figurar, pois era mais válida a

narrativa do impossível que convencesse que do possível que não convencesse33

. Nesse

quadro, as artes, como a poesia e a pintura, por exemplo, eram consideradas imitações,

mimesis, das ações humanas, que se diferenciavam por fazerem isso de meios, objetos e

modos diferentes (Poética, 1447a – 10-15).

Na contemporaneidade, Paul Ricoeur (1994, p. 88-116) inspirado na Poética de

Aristóteles se propôs a discutir sobre a concepção de mythos e mimesis. Este ultimo

conceito foi concebido como um processo tríplice. Em linhas gerais essas fases seriam: a

mimese I, entendida como o mundo prático, ainda não explorado pela atividade poética, ou

seja, aquilo que ainda não foi narrado; a mimesis II, composta pelo mundo prático da

mimese I impregnado de uma pré-narratividade que serve de referência para o ato de

construção poética ou configuração; e a mimese III, a atividade de leitura, um ato de

reconfiguração do texto, pois o leitor a partir das suas próprias experiências entende o texto

de uma determinada maneira. Assim, há um percurso que parte do mundo vivido, o ainda

não narrado (pré-narrado), passa pela configuração da trama pelo poeta e se encerra no

mundo da vida do leitor.

Segundo Ricoeur (1994, p. 58-60) é fundamental que tenhamos em mente que

mimese e mythos são processos ou operações, artes de produzir ou representar, por esse

32

Termo utilizado pelo próprio Aristóteles para tratar do ato de produzir poesia, mais especificamente a

tragédia e a epopéia, discutidas ao longo do livro: (1447a 1); (1453a 20); (1456b 15); (1460b 15); (1460b 20);

(1460b 30). 33

Os detalhes sobre a estruturação do enredo se encontram nas seguintes passagens: (Poética 1452b 30);

(1453a 10); (1453b 5); (1461b 10).

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motivo estão em constante movimento. Esse teórico mantém uma linha tênue entre a

definição desses dois termos e isso se dá por defender que na Poética predomina a ideia de

mimese como produção de representações. Apesar disso, não podemos conceituar a mimese

como uma simples cópia da realidade, pois no ato de imitar existe uma atividade produtora

da representação e é isso que a torna tão complexa. Sendo assim há um entrelaçamento

entre a concepção de mythos e mimese que determina a sua interdependência. Assim:

Está excluída de início, por essa equivalência, toda interpretação da

mimese de Aristóteles em termos de cópia, de réplica do idêntico. A

imitação ou a representação é uma atividade mimética enquanto produz

algo, a saber, precisamente a disposição dos fatos pela tessitura da intriga.

[...] a mimese de Aristóteles tem só um espaço de desenvolvimento: o

fazer humano, as artes de composição. (RICOEUR, 1994, p.60)

A tessitura da trama, mythos e a atividade mimética são compreendidas como

empreendimentos humanos, como um fazer que mesmo quando imita produz algo. Por esse

motivo os conceitos são interdependentes. A mimese pode ser compreendida como uma

atividade produtora, pois ao compor uma história estamos automaticamente criando algo,

mesmo se ele for baseado em um evento já ocorrido. Apesar disso, Ricoeur (1994, p.76)

atenta para fato de que se nos detivermos a definir a mimese como imitação devemos falar

de imitação criadora e se a classificarmos como uma representação devemos entendê-la

como uma brecha à ficção. Partindo desse pressuposto esse teórico acredita que o poeta não

inventa coisas, mas “quase-coisas”, pois ele se baseia em algo para compor sua obra e esse

processo é uma ação criadora baseada no mundo real. A mimese proporciona uma ligação

entre o mundo ainda não figurado na intriga e a construção poética nele inspirada. Esse

duplo pertencimento faz com que a mimese possua uma função de ruptura, visto que ela não

é uma simples cópia do real, mas uma ligação em razão de sua função de “transposição

metafórica” do campo prático para o mythos. O momento final dessa relação não se esgota

na tessitura da intriga, mas no leitor considerado o ponto de chegada34

.

A relação mimese/mythos designa a tessitura da intriga, a disposição dos fatos e é

isso que interessa a Ricouer ao analisar o processo de criação de um texto literário, ele

procura estudar o processo de imitação ou representação de uma ação. Esse processo recria

imagens do mundo fora do texto e por esse motivo o leitor se reconhece dentro do mundo

34

Sobre a função de mediação da mimesis entre o texto e o leitor, ver sobre a fase III desse processo em

Ricoeur (1994, p. 76-84).

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do texto. “Se é verdade que a intriga é uma imitação da ação é exigida uma competência

preliminar: a capacidade de identificar a ação em geral por seus traços estruturais”

(RICOEUR, 1994, p.88).

Ao criar uma intriga o poeta cria também imagens metamorfoseadas de uma

referência do mundo real e para compreendê-la é necessário entender os episódios

sucessivos que conduziram ao seu desfecho, porém mais que previsível deve ser aceitável,

deve fazer parte de um conjunto de eventos que se desencadeiam:

Longe de só produzir imagens enfraquecidas da realidade, [...] as obras de

ficção só pintam a realidade aumentando-a com todos os significados que

elas próprias devem às suas virtudes de abreviações, de saturação e de

culminação, espantosamente ilustradas pela tessitura da intriga

(RICOEUR, 1994, p.123).

Partindo dessa ideia poderíamos afirmar que se a atividade poética produz metáforas

da realidade, esses relatos funcionariam como uma espécie de memória escrita de eventos

que não se deseja esquecer, como as guerras descritas nas epopeias ou mesmo os feitos dos

heróis, presentes na literatura greco-romana. Ao nos voltarmos para a Eneida podemos

afirmar que ela se apresenta como uma narrativa sobre uma dada memória, que se pretendia

tornar-se coletiva. Ela descreve a história da gênese do povo romano e do império que se

consolidava no século I a. C., uma memória que ultrapassava as páginas do livro de Virgílio

e que fora transformada em monumentos arquitetônicos disponíveis à visão dos cidadãos

romanos. Esses dispositivos mnemônicos visavam à consolidação de uma memória comum

para essa sociedade. Diante do fato da Eneida se tratar de uma obra na qual a carga

memorativa está implícita intimamente, em cada uma de suas linhas, se mostra bastante

relevante nos debruçarmos sobre a questão da memória. É importante levarmos em

consideração dois pontos: o Livro III da epopeia diz respeito ao relato das memórias de

Eneias no exílio; e a obra como um todo pode ser encarada como um conjunto de imagens

que deveriam ser disseminadas entre indivíduos de um mesmo grupo.

Ricoeur (2007, p.73) estabelece uma diferenciação entre memoração e

rememoração. A primeira está relacionada às maneiras de apreender saberes e habilidades,

de tal modo que elas permaneçam fixadas na memória do indivíduo a fim de esse possa

acessar esses conhecimentos sem fazer esforço, beirando a espontaneidade. “O processo de

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memorização é especificado pelo caráter construído das maneiras de aprender visando a

uma efetuação fácil, forma privilegiada da memória feliz” (RICOEUR, 2007, p.73). Já a

segunda, corresponde ao retorno à consciência de um determinado acontecimento ocorrido

em um tempo passado àquele que o individuo afirma ter percebido ou sentido. “A marca

temporal do antes constitui, assim, o traço distintivo da recordação, sob a dupla forma da

evocação simples e do reconhecimento que conclui o processo de recordação” (RICOEUR,

2007, p.73).

Essa perspectiva (RICOEUR, 2007, p.74-76) é desenvolvida a partir do olhar sobre

a ars memoriae, disciplina que visa à execução de exercícios que permitem ao aluno se

tornar seu próprio mestre. Esse modelo clássico de educação é pautado na repetição de

lições decoradas. Ricouer desenvolve sua teoria, a partir do mythos considerado o fundador

da mnemotécnica, a arte da memória, que geralmente é atribuído aos romanos por Cícero

ter se referido a ele, no entanto, sua origem se encontra na Grécia. A história é sobre o

poeta Simônides, que sobrevive a um desmoronamento, durante um banquete, no qual fora

convocado para cantar as vitórias de um atleta famoso e quando chamado para fora da sala

onde a festa acontecia, pelos semideuses Castor e Pólux, o teto desaba e todos morrem. Na

versão latina foi acrescentada uma conclusão a esse episódio, provavelmente com a

finalidade de exaltar a sua cultura da eloquência. Após a catástrofe, Simônides, graças a

suas técnicas de memorização, é capaz de identificar os corpos dos indivíduos que estavam

presentes no jantar do atleta, por lembrar-se do local que cada um deles ocupava. Essa

técnica consistia em associar imagens a lugares, de maneira sistematizada.

Ao se debruçar sobre essa história Cícero (De Oratore, II, 351-353) afirma que a

mnemotécnica seria o processo pelo qual a mente é transformada em um espaço de

armazenamento de memórias ordenadamente, que serviriam como representação das coisas,

dos acontecimentos.

Assim aqueles que exercitam esta parte da sua natureza devem pegar

lugares e forjar, em sua mente, aquilo que querem guardar na memória e

colocá-lo em tais lugares; assim ocorrerá que a ordem dos lugares

conservará a ordem das coisas, enquanto a representação das coisas

marcará as próprias coisas e usaremos os lugares como a cerca, os

simulacros, como as letras (De Oratore, II, 354).

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Segundo Cícero (De Oratore, II, 358), o grande trunfo de Simônides foi perceber

que aquilo que nos é transmitido pelos sentidos, principalmente pela visão, é mais fácil de

ser assimilado. Diante disso para que a mnemotécnica pudesse se desenvolver era

necessário àqueles que se dedicassem a ela que procurassem lugares bem iluminados para

serem suas salas de aula, bem como imagens notáveis, pois assim elas penetrariam com

mais rapidez em suas mentes. Na contemporaneidade, a historiadora Aleida Assmann

(2011, p.31-32) ao dedicar-se ao estudo da mnemotécnica afirma que este foi um

procedimento utilizado pela primeira vez espontaneamente e que em seguida foi

transformado em uma técnica de aprendizado consciente. A partir dela desenvolveu-se uma

espécie de escritura mental, baseada na lembrança de locais e imagens, que forneciam

subsídios para guardar memórias. Com essa técnica, que mudou da audição para a visão, ou

seja, conhecimentos e textos deveriam ser fixados na cabeça de maneira tão confiável como

se estivesse escrevendo em uma folha de papiro. Para os romanos a mnemotécnica foi

concebida como um procedimento utilizável para vários fins, que objetivava

primordialmente o armazenamento e a recuperação de informações tal como elas haviam

sido guardadas.

Na Eneida, especificamente no Livro III, a memória é uma das principais

ferramentas que Eneias faz uso. Cabe a ele narrar suas aventuras desde a saída de Troia até

Cartago para a rainha Dido e os demais participantes do banquete em homenagem aos

troianos, ele recorda acontecimentos traumatizantes, como a destruição da sua pátria, não

esquecendo sequer as falas dos personagens. Nos propomos a realizar uma análise sobre as

memórias de Eneias, apresentadas por Virgílio no Livro III da Eneida, quando esse

personagem relata sua viagem junto com seus companheiros de Troia até a ilha de Cartago.

Nesse discurso buscaremos compreender como o herói da epopeia se via no espaço, sempre

chegando e partindo dos lugares nos quais desejava se fixar. Para facilitar a compreensão

apresentaremos um resumo desse episódio, por meio da divisão do relato de Eneias a partir

das localidades pelas quais vagou durante seu exílio: Trácia; Delos; Creta; ilhas Estrofádas;

Butroto; Itália; e Drepáno. Levaremos em consideração que Virgílio produziu uma obra

cujas partes são dependentes uma da outra, por esse motivo elencaremos os acontecimentos

mais relevantes do Livro I e II, antes adentrarmos a narrativa do Livro III.

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2.2 A viagem de Eneias e seus sociis em busca da Itália

Nas primeiras linhas do Livro I o narrador revela o objetivo do seu poema: contar a

história do herói, que tendo sobrevivido à Guerra de Troia, junto com alguns compatriotas,

se lançou ao exílio no mar:

As armas canto e o varão que fugindo das plagas de Troia

por injunções do Destino, instalou-se na Itália primeiro

e de Lavínio nas praias. A impulso dos deuses por muito

tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno,

guerras sem fim sustentou para as bases lançar da cidade

e ao Lácio os deuses trazer – o começo da gente latina,

dos pais albanos primevos e os muros de Roma altanados35

.

(Eneida, I, 1-5)

Esses versos demonstram a base argumentativa de toda a trama, deixando claro que

o autor se propõe a narrar os eventos que culminaram na chega dos troianos ao Lácio e na

fundação de Lavínio, cujos descendentes fundariam Roma. O narrador se propõe a contar

um conjunto de eventos dos quais não participou, mas que fizeram parte da origem do seu

povo. Ele aparece na narrativa como um ser onipresente, pois acompanha todas as ações,

até mesmo as dos deuses, adentrando o universo psicológico das suas personagens,

conhecendo aquilo que pensam, desejam e temem.

A narrativa da epopeia virgiliana se constitui com uma combinação da voz do

narrador e das personagens. Esses últimos, em vários momentos, assumem a voz passiva,

ou seja, se tornam agentes das ações. Nos Livros II e III isso fica bastante evidente, pois ao

contrário dos demais, seus acontecimentos são inteiramente narrados pelo personagem

principal, Eneias, quando este relata as suas andanças de Troia à Cartago, durante banquete

oferecido pela rainha Dido. Nos demais livros o narrador assume a terceira pessoa e em

alguns momentos os personagens descrevem os acontecimentos, mas os eventos se passam

no presente, ao contrário das ações narradas por Eneias na segunda e terceira seção do

poema.

35

Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris/ Italiam, fato profugus, Laviniaque uenit/ litora, multum

ille et terris iactatus et alto/ vi superum saeuae memorem Iunonis ob iram;/ multa quoque et bello passus,

dum conderet urbem,/ inferretque deos Latio, genus unde Latinum,/ Albanique patres, atque altae moenia

Romae (Eneida, I, 1-5).

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O Livro II da epopeia virgiliana é caracterizado pela constante presença dos

presságios dos deuses, Eneias conta como foi avisado do fim de sua cidade e incumbido

pelos deuses de fundar uma nova Troia. Esse é o Livro que representa também uma ruptura

com o ideal de “bela morte”36

dos heróis, pois é retirado da personagem principal o direito

de morrer no campo de batalha pela sua cidade, pois sua vida deve ser poupada para que

Troia se mantivesse viva. Eneias deve salvar os Penates e alguns concidadãos, para levá-los

a um lugar onde sua pátria “renasceria”.

O herói troiano não devia morrer em batalha para obter as honras de um guerreiro,

mas proteger o que sobrou da sua cidade, sempre temente aos deuses e cumprindo a sua

vontade. Em consequência disso, esse personagem aparece ao longo do poema com o

epíteto pius Aeneas37

. Esse termo designa uma das principais características desse herói, a

piedade38

. Ele aparece pela primeira vez na Eneida, no Livro I, quando após a tempestade

causada por Eólo, a pedido de Juno, Eneias reúne seus sócios para lamentar a morte de

alguns de seus companheiros, no litoral de Cartago:

Saciada a fome e desfeitos os últimos toques da mesa, em longas práticas choram a perda dos sócios ausentes. Entre esperança e temor, se perguntam se acaso ainda vivem, ou se na extrema agonia não ouvem a voz dos que os chamam; máxime Eneias, o pio, a desgraça de Oronte lamenta; chora o destino de Amico, o desastre de Lico indizível, do incontrastável Cloanto e também de Gias valente

39.

(Eneida, I, 215-220)

36

Essa expressão, para Vernant, significa morrer jovem em campo de batalha, demonstrando toda virilidade,

honra e coragem. Além disso, o morto deveria ter um funeral completo, assim como ter seus feitos

eternizados pelo canto do poeta. A ideia é apresentada relacionada ao contexto grego, mas ao longo da Eneida

observamos que ele também pode ser aplicado ao contexto romano (VERNANT, 1978, p.31-32). 37

Termo utilizado por Virgílio para designar o caráter piedoso de Eneias (Eneida, I, 305); (I, 305) ( I, 375);

(IV, 390); (V, 25); (V, 285); (V, 685); (VI, 9); (VI, 175); (VI, 230); (VII, 5); (VIII, 80); (IX, 255); (X, 590);

(X, 780); (X, 825);( XI, 170); (XII, 175); (XII, 310). 38

De acordo com a análise de Paulo Martins a pietas (piedade) era para os romanos um conceito que traduzia

um sentimento de obrigação para com tudo aquilo que o homem estava ligado, aos membros de sua gens, a

pátria e ao culto dos antepassados, Manes, Lares, Penates (MARTINS, 2011, p. 20). No capítulo III esse

conceito será problematizado com mais ênfase. 39

Postquam exempta fames epulis mensaeque remotae/ amissos longo sócios sermone requirunt,/ spemque

metumque inter dubii, seu uiuere credant,/ siue extrema pati nec iam exaudire uocatos./ Praecipue pius

Aeneas nunc acris Oronti,/ nunc Amyci casum gemit et crudelia secum/ fata Lyci fortemque Gyan fortemque

Cloanthum (Eneida, I, 215-220).

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A exaltação da qualidade de pio de Eneias estava ligada a sua capacidade de liderar

os sobreviventes da Guerra de Troia, demonstra que o herói de Troia não podia ser qualquer

um, mas um homem que respeitava os seus companheiros, capaz de realizar a sua missão

divina e contornar a própria vontade para honrar os desígnios dos deuses. Sua função era de

grande importância, pois além de fundar uma nova cidade, devia também levar consigo os

deuses domésticos da sua pátria. No final do Livro I durante um banquete oferecido aos

troianos a rainha Dido pede para Eneias contar como havia chegado até Cartago:

“‘Hospede, fala-lhe, ‘conta-nos tudo por ordem, do início/ as artimanhas dos dânaos,

desditas dos teus companheiros, / este vagar sem descanso” 40

(Eneida, I, 753-755). O herói

lamenta ter de relembrar o dia no qual sua pátria foi arrasada, porém acata o pedido: “Mas,

se realmente desejas ouvir esses tristes eventos, / breve relato do lance postremo da guerra

de Troia, / bem que a lembrança de tantos horrores me deixe angustiado, / principiarei”41

(Eneida, II, 9-11). No Livro II a narrativa decorre sobre a destruição de Troia, finalizando

com a descrição da partida dos sobreviventes para o exílio no mar.

No Livro III, assim como no Livro II, o personagem principal assume a narrativa,

tratando de eventos passados como flashes. Grimal (1992, p. 219) afirma que essa técnica é

conhecida pelos teóricos da poesia Antiga como “inversão do tempo”. Dentro da epopeia

ela possui três funções fundamentais: a de chamar a atenção dos ouvintes, um chamariz em

meio a uma extensa narrativa; de enumerar os acontecimentos ocorridos; e de relatar uma

série de causas que culminaram no presente da narrativa. Os flashes de Eneias dão voz à

personagem, talvez como uma forma de o autor deixá-lo livre para contar sua versão da

história. O herói troiano conta suas errâncias desde a saída de Troia até à chegada em

Cartago. Na medida do possível, ele se torna o narrador da sua própria história. Na figura 7

temos um mapa do percurso dos troianos exilados:

40

Immo age et a prima dic, hospes, origine nobis/ insidias”, inquit, “Danaum, casusque tuorum/ erroresque

tuos. (Eneida, I, vv, 753-755). 41

Sed si tantus amor casus cognoscere nostros/ et breuiter Troiae supremum audire laborem,/ quamquam

animus meminisse horret, luctuque refugit,/ incipiam (Eneida, II, 9-11).

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FIGURA 7 – MAPA DA VIAGEM DE ENEIAS

Itinerário de Eneias. MARO, Publius Vergilius. Eneida. Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34,

2014. p.882-883.

No Livro III da epopeia virgiliana nos deparamos com uma narrativa de viagem e

nela encontramos mais que metáforas para o contexto do governo augustano ou um

conjunto de acontecimentos históricos, percebemos a exaltação da personalidade de um

herói piedoso, que respeita os deuses e suas ordens, acima da sua própria vontade. Eneias e

seus compatriotas demonstram através das provações pelas quais passam ao longo do exílio

como os homens de Roma deviam se portar diante da sua cidade, conquistada pela luta,

sacrifícios e, sobretudo pelo respeito dos homens à vontade dos deuses. São nesses

acontecimentos que as principais características do perfil de Eneias como fundador das

bases do Império Romano são delineadas, onde luta suas primeiras batalhas, recebe os

primeiros avisos divinos e recusa a seguir sua vontade em benefícios do Destino (fatum).

Ele narra suas viagens mais perigosas até aquele momento, onde além das provações teve

de enfrentar a fúria da deusa Juno, que persegue os troianos até o ultimo momento da

epopeia. Vagando de uma terra para outra, enfrentando monstros e tempestades, os troianos

exilados procuram aquela terra que será seu lar e um dia se transformará no império

prometido pelos deuses. Nas próximas páginas nos dedicaremos à análise do relato do herói

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troiano sobre os seus primeiros anos de exílio, tendo como norte a descrição dos espaços

pelos quais passou e os acontecimentos que o levaram a seguir viagem rumo à Itália.

2.2.1. A partida de Troia e a chegada à Trácia

O herói troiano inicia seu relato no Livro III, descrevendo como os deuses

apareceram diversas vezes e sob diferentes formas, como humanos, em sonhos ou através

de oráculos, realizando profecias e criando “enigmas”, que deviam ser desvendados para

que ele e seus companheiros pudessem dar continuidade a sua viagem. Eneias conta como

diante de Troia arrasada ele e seus sociis deram os primeiros passos em sua jornada, ainda

sem rumo, confiando apenas nas profecias divinas:

Quando aos eternos aprouve destruir sem motivo o invejável império d’Ásia e a progênie de Príamo, em terra soberba Ílio, e em ruínas ardentes a Troia Netúnia mudada, por injunção dos agouros nos vimos lançados no exílio, para buscar novas terras. Ao pé justamente de Atandro e do Ida augusto da Frígia navios bastante construímos nada sabendo dos Fados da terra por todos ansiada. Reunimos gente; e ao notarmos sinais de certeza de início da primavera, e meu pai insistir para os panos soltarmos, sem rumo certo, a chorar, deixo os portos, as praias e campos onde foi Troia, e ao mar me entrego, exilado, com os sócios, o filho amado, os Penates e os deuses maiores de Troia

42.

(Eneida, III, 5-10)

A queda de Troia foi um evento que não podia ser evitado, assim como os Fados

descritos por Júpiter era uma vontade dos deuses. Troia havia sido condenada pela vaidade

dos seus homens desde os primórdios de sua fundação. Durante o reinado de Laomedonte,

primeiro rei dessa cidade, ele teria pedido a Netuno e Apolo que erigissem muralhas

impenetráveis pelos inimigos, mas desrespeitou o pacto com os deuses e como punição um

monstro foi enviado para destruir Troia (Ilíada, XXI, 440-450). O rei conseguiu vencer a

ameaça graças à ajuda de Héracles (ou Hércules), filho de Zeus, porém mais uma vez não

cumpriu a sua parte do acordo. Como retaliação Héracles quase extingue a linhagem dos

42

Postquam res Asiae Priamique euertere gentem/ immeritam uisum superis, ceciditque superbum/ Ilium et

omnis humo fumat Neptunia Troia, / diuersa exsilia et desertas quaerere terras/ auguriis agimur diuum,

classemque sub ipsa/ Antandro et Phrygiae molimur montibus Idae,/ incerti quo fata ferant, ubi sistere detur,/

contrahimusque uiros. uix prima inceperat aestas,/ et pater Anchises dare fatis uela iubebat,/ litora cum

patriae lacrimans portusque relinquo/ et campos ubi Troia fuit. feror exsul in altum/ cum sociis natoque

penatibus et magnis dis (Eneida, III, 5-10).

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troianos. Quando Troia passou para as mãos do herdeiro de Laomedonte, Príamo, a ira dos

deuses mais uma vez foi alimentada, pois ele acolheu Páris após o rapto de Helena. Páris

infligiu à lei da hospitalidade ao raptar a esposa de seu anfitrião, Menelau. Logo, não houve

mais salvação para Troia, os deuses não perdoaram mais essa falta.

Identificamos também no trecho acima da Eneida um elevado nível de obediência

dos troianos aos deuses, pois confiam seu destino às previsões divinas ao darem início ao

exílio no mar com a promessa de encontrarem uma nova terra para se instalarem. Além

disso, observamos em Eneias a exaltação do seu sentimento de perda do local ao qual

pertencia, visto que ele chora ao se despedir da terra onde nascera e, mais ainda, por ela ter

sido totalmente destruída. Destacamos ainda a presença da descrição das três principais

qualidades de Eneias: a de líder religioso, pois carrega os Penates e é único entre os

sobreviventes troianos que tem visões dos deuses, de Vênus principalmente, e

consequentemente é para ele que os augúrios divinos são revelados; de chefe político, pois

reúne o seu povo e o convence a construir os navios que os levariam ao exílio; e de

comandante militar, pois lidera seus sócios em uma missão cheia de provações e

confrontos, que terminará na Itália, com uma guerra contra o rei dos rútulos, Turno, embora

ainda não soubesse do desfecho de sua viagem.

Eneias e seus companheiros levaram sua cidade para a Itália, embora suas estruturas

físicas tivessem sido destruídas ela permanecia viva na memória dos homens, que

buscavam um novo lugar para fixá-la, no fogo sagrado de Vesta e nos Penates, os deuses

domésticos dos troianos. Mas, se por um lado as divindades haviam destruído a cidade, por

outro queriam que ela fosse reconstruída, daí a importância de Eneias como o herói

piedoso, o pio. Os deuses lhe prometem prestígio, poder e uma nova pátria, mas para isso o

herói devia provar o seu valor enfrentando as provações no exílio. Isso é expresso no Livro

I, no momento em que Vênus preocupada com o destino de Eneias, após a tempestade

causada por Éolo, pouco antes de chegar à Cartago, é tranquilizada por Júpiter, que lhe

conta o futuro do seu filho:

Acalma-te Citereia; imutáveis encontram-se os Fados. Ainda verás a cidade e as muralhas de Lavínio, como te disse, e até aos astros o nome elevar-se de Eneias de alma sublime. Mudança não houve no meu pensamento. Guerras terríveis ele há de enfrentar, povos de ânimo fero domar no jugo, a seus homens dar leis e cidades muradas,

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quando, três anos corridos, estios e invernos gelados, reinar no Lácio e abater a fereza dos rútulos fortes

43.

(Eneida, I, 255-265)

Após saírem de Troia, Eneias e seus sócios vão para Atandro e lá constroem as naus

que os levariam ao exílio no mar. O primeiro local que aportaram foi a Trácia, onde o herói

demarcou os limites de um povoado, batizado de Eneia, devido ao seu nome. Tal como um

sacerdote ele realizou sacríficos de animais em honra a Vênus e outras divindades (Eneida,

III, 15-20). Através desses rituais esse lugar anteriormente desconhecido e sem sentido

tornou-se um espaço organizado, dotado de leis e de significação, civilizado e digno de ser

um lar para os exilados de Troia. O papel de Eneias como herói civilizador descrito no

Livro I (Eneida, I, 1-7) é aqui exemplificado, pois a ele cabe fundar novas cidades e lhes

impor leis para tornar esses espaços minimamente habitáveis e servir como parte das

provações pelas quais teria de passar para se mostrar digno de ser o fundador da nova

Troia. Na Eneida não existe heroísmo sem mérito, essa é uma condição dos deuses.

Poucos dias depois dos troianos terem se instalado nessa terra, Eneias passa por uma

experiência que o obriga a reunir seus companheiros e novamente se entregar ao mar.

Enquanto passava por um monte onde havia cerejeiras e mirtos tenta arrancar alguns ramos,

mas é surpreendido por um fenômeno: eles sangram. Na terceira tentativa de arrancar os

ramos ele os ouve gritarem: “Por que laceras, Eneias, um ser infeliz?”44

(Eneida, III, 40).

Em seguida a voz afirma ser Polidoro, filho de Príamo, que havia sido mandado para a

Trácia, portando um grande tesouro, a fim de que seu rei o educasse, porém com o cerco se

fechando para Troia o rei degolou o jovem e se apossou do tesouro. Polidoro adverte Eneias

para que vá embora da Trácia, pois nela só encontraria desgraça. Imediatamente, o troiano

relata esses fatos aos seus companheiros e todos concordam em partir, mas antes prestam as

devidas honras funerárias ao compatriota morto.

43

Parce metu, Cytherea: manent immota tuorum/ Fata tibi; cernes urbem et promissa Lauini/ moenia,

sublimemque feres ad sidera caeli/ magnanimum Aenean; neque me sententia uertit./ Hic tibi (fabor enim,

quando haec te cura remordet,/ longius et uoluens Fatorum arcana mouebo)/ bellum ingens geret Italia,

populosque feroces/ contundet, moresque uiris et moenia ponet,/ tertia dum Latio regnantem uiderit aestas,/

ternaque transierint Rutulis hiberna subactis (Eneida, I, 255-265). 44

Quid miserum, Aenea, laceras? (Eneida, III, 40)

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2.2.2. De Delos à Creta: a busca pela antiquam matrem

Eneias continua sua narrativa e descreve o segundo local no qual os troianos

aportam, a ilha do deus Apolo, Delos, onde são bem recebidos pelo rei Ânio, velho amigo

de Anquises. Seguem então para o templo do deus onde Eneias pede para que essa

divindade lhe envie um sinal indicando a direção que deveria seguir. Um loureiro divino

aparece na porta do templo e em seguida ouve a voz do oráculo:

Valentes filhos de Dárdano! A terra primeira que a estirpe de vossos pais engendrou há de em breve ao seu seio acolher-vos, quando voltardes para ela. Buscai, pois, a mãe primitiva. Ali, a casa de Eneias o mundo de um polo a outro polo dominará, de seus filhos os netos e seus descendentes

45.

(Eneida, III, 90-95)

Essas palavras animaram todos. Segundo o oráculo de Apolo, Eneias deveria buscar

a antiquam matrem46

. Logo, Anquises, o mais velho do grupo e por isso considerado o mais

sábio, interpreta a antiquam matrem como Creta, ilha onde nascera Teucro, ancestral dos

troianos e para lá eles partem. Embora preocupados com a ameaça grega, acabam por

descobrir que as praias de Creta haviam sido abandonadas por seu rei, Idomeneu. Chegando

à ilha, fundam uma nova cidade, Pérgamo, nome referente à Troia. Porém pouco tempo

depois ela se torna inabitável, as ervas secam, as terras ficam inférteis e as pessoas

adoecem. Essa não é à terra prometida pelos deuses, por isso não dura, é devastada pela

peste. É necessário que partam novamente para o exílio.

Em sonho, os Penates estimulam Eneias a continuar sua viagem, explicam a

profecia de Apolo e lhe pedem para não deixar ser vencido pelo cansaço do exílio:

Tudo que Apolo frecheiro queria dizer-te, ora manda que te anunciemos. Para isso enviou-nos à tua morada. Nós, a Dardânia incendiada, os trabalhos das armas contigo participamos e o risco enfrentamos das ondas revoltas. Por isso mesmo, teus netos poremos acima dos astros e à sua pátria daremos o império do mundo. Levanta

45

Dardanidae duri, quae uos a stirpe parentum/ prima tulit tellus, eadem uos ubere laeto/ accipiet reduces.

Antiquam exquirite matrem./ Hic domus Aeneae cunctis dominabitur oris/ et nati natorum et qui nascentur ab

illis (Eneida, III, 90-95). 46

Termo utilizado por Virgílio para se referir a “mãe primitiva”, que os troianos deveriam encontrar (Eneida,

III, 95).

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novas muralhas; não cedas jamais ao cansaço do exílio. Força é mudares de assento; nem Febo indicou-te estas plagas Para a cidade fundares, nem disse que fosses a Creta. Há uma região muito fértil, dos gregos Hespéria chamada, Terra antiquíssima, forte nas armas, de frutos opimos, Pelos enótrios outrora povoada e que seus descendentes o nome Itália puseram, de um forte caudilho primevo

47.

(Eneida, III, 155-165)

Nesse trecho os Penates profetizam o Destino de Roma, assim como dos

descendentes de Eneias. Eles revelam o destino final dos troianos: a Itália, onde finalmente

lançariam as bases do império romano. Ao acordar o herói faz os votos aos deuses e se

dirige a Anquises para contar os augúrios divinos (Eneida, III, 120-145). Mais uma vez

percebemos a intervenção dos deuses na vida dos homens e isso será recorrente até o ultimo

Livro da Eneida. A presença das divindades é constante, pois elas são os guias da viagem.

A justificativa que os Penates oferecem a Eneias para que fuja dessas terras o mais rápido

possível é que “Jove te nega as Campinas de Creta” (Eneida, III, 171). O caminho que deve

seguir é aquele designado pelo pai de todos os deuses, Júpiter, e ao longo de todo o relato

isso é característico da fala do herói.

Essas idas e vindas, bem como o desejo de chegar a terra onde enfim repousaria os

Penates de Troia sentida por Eneias é uma constante no relato do herói, que se vê em uma

missão que obriga a deixar de lado sua vontade em função da vontade dos deuses. Ao partir

de Creta os troianos enfrentam uma forte tempestade e acabam aportando em uma das ilhas

Estrofádas, a das Harpias48

. Mais uma vez ele é desviado do seu caminho rumo à Itália.

2.2.3. A ilha das Harpias

Após enfrentarem uma tempestade que durou três dias, Eneias e seus companheiros

encontram terra firme. Eles aportam em umas das ilhas Estrofádas, localizadas no mar

47

Quod tibi delato Ortygiam dicturus Apollo est,/ hic canit et tua nos en ultro ad limina mittit./ Nos te

Dardania incensa tuaque arma secuti,/ nos tumidum sub te permensi classibus aequor,/ idem uenturos

tollemus in astra nepotes/ imperiumque urbi dabimus. Tu moenia magnis/ magna para longumque fugae ne

linque laborem./ Mutandae sedes. Non haec tibi litora suasit/ Delius aut Cretae iussit considere Apollo./ Est

locus, Hesperiam Grai cognomine dicunt,/ terra antiqua, potens armis atque ubere glaebae:/ Oenotri coluere

uiri; nunc fama minores/ Italiam dixisse ducis de nomine gentem (Eneida, III, 155-165). 48

Na Teogonia (260-269), Hesíodo conta que esses seres nasceram na época dos Titãs, filhas da divindade

marinha Taumante e da oceânide Electra e seus nomes eram Aelo, Ocípite e Celeno.

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Jônio, habitada pelas Harpias. Estes seres são descritos como monstros que possuíam corpo

de pássaro, rosto que se assemelhava ao de um cão e um forte odor que saia do ventre

(Eneida, III, 205-210). Os troianos logo que se acomodam na praia realizam sacrifícios aos

deuses:

Mal nos pegamos em terra, avistamos nas belas campinas Gratas manadas de bois sem nenhum pegureiro, espalhados por toda a parte, e rebanhos de cabras nos pastos virentes. De espada em punho investimos, e aos deuses – a Jove primeiro – parte da presa ofertamos

49.

(Eneida, III, 220)

Nesse trecho percebemos o caráter de obediência e gratidão aos deuses e, por parte

de Eneias e seus sócios, que não deixaram de agradecer às divindades, principalmente a

Júpiter, por terem sobrevivido à tempestade que os levara até essa ilha. Depois dos

sacrifícios os troianos montam a mesa e desfrutam da caça. Em seguida são interrompidos

pelo aparecimento das Harpias, que roubam a comida da qual se alimentavam, deixando

apenas o seu forte odor no ar (Eneida, III, 255). Novamente os troianos organizam um

banquete, mas pouco antes de desfrutarem dele as harpias realizam um novo ataque.

Os troianos partem para o confronto armado contra as harpias, preparam uma

emboscada, escondendo suas armas nas ervas rasteiras e quando as inimigas se aproximam

atacam de surpresa. No entanto, seu plano não é bem sucedido, pois o corpo duro das

harpias as protegem dos golpes, elas desviam e fogem voando. A única que permanece

próxima a eles é Celeno, sentada no pico de uma rocha questiona os troianos pelas suas

ações, alegando que ela e suas companheiras tinham lhes atacado por eles terem

desrespeitado sua hospitalidade sacrificando os animais da sua ilha sem permissão (Eneida,

III, 235-245). Ela ainda lhes lança um mau augúrio: “Mas, antes mesmo de vossa cidade,

querida dos deuses/ de muros altos cingirdes, haveis de sofrer dura fome/ por este crime:

forçados sereis a roer até as mesas”50

(Eneida, III, 255).

Diante de tal presságio, Anquises levanta as mãos para o céu e pede aos deuses que

isso não se cumpra. Em seguida dá ordem para que todos se preparem para partir (Eneida,

49

Huc ubi delati portus intrauimus, ecce/ laeta boum passim campis armenta uidemus/ caprigenumque pecus

nullo custode per herbas./ Inruimus ferro et diuos ipsumque uocamus/ in partem praedamque Iouem; tum

litore curuo/ exstruimusque toros dapibusque epulamur opimis (Eneida, III, 220) 50

Sed non ante datam cingentis moenibus urbem/ quam uos dira fames nostraeque inuiria caedis/ ambesas

subigat malis absumere mensas (Eneida, III, 255)

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III, 260-265). Os troianos seguem viagem evitando a pátria de Ulisses, chegam à ilha

Leucádia, onde realizam mais uma vez sacrifícios a Júpiter e se dirigem para a cidade de

Ácio para comemorar os jogos Ilíacos (Eneida, III, 270- 280). Após esse episódio se

lançam à aventura em alto mar e aportam em Epiro, cidade localizada na ilha Butroto.

2.2.4. Epiro: a réplica de Troia

Epiro se mostra como um dos lugares mais emblemáticos para Eneias e seus sócios,

pois se assemelhava bastante a Troia, causando-lhes espanto. Essa cidade era governada por

Heleno, adivinho e filho de Príamo, e Andrômaca51

, viúva de Heitor. Eles viviam em uma

réplica Tróia, no entanto estavam presos a lembrança dos mortos, principalmente

Andrômaca, cujo amor pelo marido morto na guerra não foi superado nem mesmo pela

morte. Ela não abandona o passado, constrói um túmulo vazio para Heitor onde derrama

suas lágrimas pelo falecido esposo e o mantém vivo na memória (Eneida, III, 302-305).

Andrômaca e Heleno viviam de recordações, de simulacros. Porém, Eneias os considerava

felizes, pois haviam encontrado um Destino, uma nova cidade. Diferentemente do herói não

estavam perdidos no mar, vagando durante anos em busca de uma terra para fundar uma

cidade.

Eneias encontrou Andrômaca no momento em que ela realizava votos à alma de

Heitor, mesmo tendo se casado com Heleno não esquecera seu primeiro marido. Surpresa

ao ver o troiano ela lhe conta como chegara até aquelas terras, vendida como escrava ao

filho de Aquiles, Neoptólemo, e depois dada a um dos seus servos, Heleno, que recebeu

também um montante de terras quando seu senhor faleceu (Eneida, III, 320-335). Logo em

seguida, Heleno surge e reconhecendo o compatriota o recebe amistosamente e lhe

apresenta a cidade que construíra. O adivinho acolhe os troianos em seu palácio e oferece

um banquete (Eneida, III, 350-355). Eneias pede conselhos ao seu anfitrião, este o leva até

o templo de Apolo e inspirado pelo deus descreve o caminho que deveria ser percorrido

para chegar à Itália (Eneida, III, 370-460). Afirma ainda que um sinal divino indicaria o fim

da viagem, no local onde encontrasse uma porca branca, amamentando seus filhotes e um

rio sem nome deveria fundar uma cidade:

51

Notar que Andrômaca era cunhada de Eneias, pois sua esposa Créusa era irmã de Heitor.

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Quando apreensivo estiveres nas margens de um rio sem nome, e deparares deitada na sombra de bela azinheira uma alva porca com trinta leitões ao seu lado, da mesma cor da mãe branca, deitados no chão a mamar com sossego: esse será o local da cidade, o descanso almejado

52.

(Eneida, III, 385-390).

A menção à porca branca como prenúncio para escolha do lugar onde a nova cidade

deveria ser fundada faz referências aos rituais de fundação da cidade, onde o herói,

seguindo os auspícios dos deuses, escolheria o local mais adequado para a fundação do

novo burgo, que se dava primeiramente no plano espiritual, através dos rituais, para só

então passar a existir no plano material (COULANGES, 1961, p.208-218). Dando

continuidade aos conselhos para Eneias e descrevendo os caminhos que teria de percorrer

para evitar ir de encontro com os inimigos gregos, Heleno afirma que o herói deveria

prestar culto a Juno, a fim de que a deusa permitisse a ele e seus companheiros chegarem

com segurança à Itália (Eneida, III, 435). Ao encerrar suas previsões presenteia os troianos

com ricos objetos: de ouro; marfim; prata; bronze; parte de uma armadura de malha

dourada; um capacete; as armas de Neoptólemo; cavalos; pilotos; armas; e remeiros. Para

Anquises e Ascânio foram dados os presentes mais valiosos, para o primeiro, Andrômaca

ofereceu vestidos bordados a ouro e para o segundo um rico manto, preso por um broche,

todos esses objetos feitos com suas próprias mãos. Palinuro, o comandante das frotas

troianas, observa os astros e guia seus companheiros à Itália (Eneida, III, 460- 515).

2.2.5. Do primeiro encontro com a Itália à Drépano

A visão de um templo de Minerva guia os troianos para as praias italianas. Essa é a

primeira vez que encontram o lugar prometido pelos deuses desde o início da sua viagem.

Ao encontrar a Itália, Eneias tem uma visão de quatro cavalos brancos, interpretada por

Anquises como um presságio da guerra que seu filho teria de enfrentar na nova terra e da

paz que viria após seu termino. No templo de Minerva os troianos prestam as devidas

honras a Juno, em seguida preparam-se para partir, temendo encontrar seus inimigos dânaos

52

Cum tibi sollicito secreti ad fluminis undam/ litoreis ingens inuenta sub ilicibus sus/ triginta capitum fetus

enixa iacebit,/ alba solo recubans, albi circum ubera nati,/ is locus urbis erit, requies ea certa laborum

(Eneida, III, 385-390).

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(Eneida, III, 530-550). Durante o percurso Palinuro demonstra destreza ao desviar das

rochas da ilha Caríbdis e ao final do dia aportam na ilha dos Ciclopes. Chegando à praia

dessa ilha veem bem próximo deles o vulcão Etna em atividade, onde acreditavam que o

gigante Encélado estava aprisionado e que cada vez que este se movia fazia com que o

vulcão expulsasse sua lava, provocando tremores de terra (Eneida, III, 560-565).

Na manhã seguinte os troianos se deparam com mais um exilado, Aquemênides era

seu nome, com uma aparência extremamente sofrida, magro, cabelos desgrenhados e a

roupa presa por uma espinha de peixe. Ele não esconde sua origem itáca, nem que fizera

parte do grupo de Ulisses, mas implora para que os troianos o levem daquele terrível lugar:

Por todos os astros, pelas deidades celestes e este ar que a nós todos anima, teucros, tirai-me daqui e levai-me para onde quiseres. Isso me basta. Não nego que fui marinheiro da armada grega, na justa marcial contra os sacros Penates de Troia. Se vos parece tão grande o meu crime, dos meus companheiros, jogai meu corpo, depois de picado, no abismo insondável. Dar-me-ei por pago se vier a morrer pela ação de outros homens

53

(Eneida, III, 595-605).

Aquemênides é aceito no grupo dos troianos e os adverte para que se preparem o

quanto antes para sair daquelas terras, pois vários ciclopes a habitavam. Quando todos

correm para os barcos Polifemo, o ciclope cujo olho Ulisses havia perfurado, e seus pares

aparecem na praia. Por pouco, Eneias e seus sócios conseguem escapar dessa ameaça.

Temendo novamente se deparar com os ciclopes, o herói pede aos seus companheiros que

contornem essa ilha. Os troianos realizam uma breve parada na ilha Ortígia, prestam culto

aos deuses locais e seguindo um dos conselhos de Heleno seguem para a costa da Sicília

(Eneida, III, 639-709). Chegando ao fim do seu relato, Eneias discursa sobre uma das

passagens mais tristes de sua jornada, quando chega à ilha Drépano e Anquises morre. Nas

palavras de Eneias: “Esta é a mais cruel desventura, o remate da minha penosa/

navegação”54

(Eneida, III, 710). Emocionado, ele encerra sua narrativa e se recolhe.

53

Per sidera testor,/ per superos atque hoc caeli spirabile lumen,/ tollite me, Teucri. quascumque abducite

terras:/ hoc sat erit. Scio me Danais e classibus unum,/ et bello Iliacos fateor petiisse Penatis;/ pro quo, si

sceleris tanta est iniuria nostri,/ spargite me in fluctus uastoque immergite ponto;/ si pereo, hominum

manibus periisse iuuabit (Eneida, III, 595-605) 54

Hic labor extremus, longarum haec meta uiarum (Eneida, III, 710).

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Muitas foram às provações da viagem. A última e a maior para Eneias foi à perda do

pai. Perda dolorosa expressa pela sua emoção ao final do seu relato: “Sozinho deixaste-me,

pai extremoso,/ salvo de tantos perigos, sem norte na vida escabrosa55

” (Eneida, III, 710-

711). O herói troiano se vê obrigado a desprender-se dos afetos do passado, primeiro

Créusa, agora seu pai. Em Cartago ele encontra uma das mais perigosas tentações: o amor.

Dido apaixona-se por Eneias e ele retribui, instigados por Vênus. Durante meses o herói se

desvia da sua missão desejando descansar do exílio, encontra um espaço de conforto e se

dedica a dirigir a construção de palácios na cidade em ascensão.

Esse desvio de rota dura até que a sombra de Anquises o adverte em sonhos de que

Júpiter lhe deu uma ordem formal: abandonar Cartago, abandonar Dido, abandonar o amor.

A rainha no auge do desespero acusa, ameaça e suplica, porém Eneias resiste. Mas, as

lágrimas do herói correm de novo pela sua face sem poder mudar os fados: “porém a mente

é inflexível e as lágrimas, frustras, se perdem” 56

(Eneida, IV, 449). O resultado da sua

decisão é trágico. Quando as naus troianas partem de Cartago Dido amaldiçoa Eneias e

Roma, no futuro Aníbal vingaria sua morte, e suicida-se. A culpa de Eneias é inevitável:

“Mas, pelas estrelas juro, / pelas deidades celestes, as forças sagradas do Inferno:/ contra o

meu próprio querer afastei-me da tua presença” 57

(Eneida, VI, 458-460). O herói protesta e

age contra sua vontade, obedece aos desígnios dos deuses, o que revela um certo pesar no

seu relato de exílio.

Na nossa análise do Livro III da Eneida o espaço e a memória ocupam posições de

destaque. São nos espaços que os troianos exilados passam por experiências que testam sua

capacidade de seguir os fados, e estas são relatadas pelas memórias de Eneias durante o

banquete oferecido por Dido. Por esse motivo consideramos necessários alguns

apontamentos sobre esses conceitos e como eles são percebidos por nós no decorrer da

referida seção da epopeia virgiliana.

55

Hic me, pater optime, fessum/ deseris, heu, tantis nequiquam erepte periclis ((Eneida, III, 710-711) 56

Mens immota menet, lacrimae uoluuntur inanes (Eneida, IV, 449) 57

Per sidera iuro,/ per súperos, et si qua fides tellure sub ima est,/ inuitus, regina, tuo de litore cessi (Eneida,

VI, 458-460)

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2.3. Memória e espaço na Eneida

Espaço é um conceito bastante generalizante. Por esse motivo é necessário que o

especifiquemos antes de discuti-lo. Para ter noção do seu caráter abrangente quando

voltamos nossa atenção para o estudo da história e literatura romana e, mais

especificamente para a poesia de Virgílio, vemos emergir numerosas pesquisas sobre os

mais diferentes aspectos do espaço, paisagem, política, religião, guerras, heroísmo, morte e

vida, isso para citar apenas alguns58

.

Para exemplificar melhor podemos destacar o trabalho de Luís M. G. Cerqueira

(2008, p.140-145) sobre o espaço da paisagem na obra de Virgílio como uma novidade na

literatura da Antiguidade. De acordo com o ponto de vista do autor esse aspecto era tido

como sem relevância, um mero pano de fundo para os feitos dos heróis homéricos, por

exemplo. Era o lugar onde qualquer coisa se passava. No entanto, em Virgílio, mais

especificamente na épica romana, a paisagem assumiu um papel de relevância, se tornando

um recurso estilístico59

. Para justificar tal afirmativa o autor nos apresenta um exemplo

retirado da Eneida, da chegada dos troianos à Itália e a entrada na foz do Tibre,

comunicadas ao leitor através da descrição de uma paisagem tranquila, uma manhã clara,

animada pelo canto dos pássaros, como uma previsão do sucesso na conquista do Lácio e

que mais a frente deixa uma brecha para a descrição das batalhas que seguirão (Eneida,

VII, 7-24). A descrição de cada amanhecer na Eneida é vista como uma formulação

adequada às circunstâncias do que ia acontecer nesse dia. A paisagem funciona como

criadora de momentos de tensões e serenidade, ela direciona as ações dos personagens.

Além disso, nos finais de cada Livro é perceptível um esforço de intensificar o ambiente

dominante no canto, as zonas luminosas e sombrias. A paisagem interage com as ações

humanas, não é um estado da alma, mas a própria alma, dinâmica e com consequências,

não um simples cenário (CERQUEIRA, 2008, p.145).

Diante de tais observações sobre o conceito de espaço nos propomos a analisar

como os troianos se situavam nos espaços com os quais tiveram contato, durante os

58

Dentre eles Castro (2012), Ferreira (2012), Moniz (2012), Pimentel (2012). 59

Notar na descrição do Livro III que Virgílio faz bastante uso da paisagem na sua epopeia, como por

exemplo, quando Eneias aporta na Trácia e encontra o corpo de Polidoro misturado à vegetação e o relato

sobre as chegadas e partidas dos troianos nas ilhas descritas por Eneias são acompanhados de descrições sobre

as paisagens desses espaços sempre associadas aos acontecimentos.

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primeiros anos de exílio narrados pelo personagem principal no Livro III da Eneida, que

nos dará subsídios para entender questões relacionadas à conduta religiosa e política dos

cidadãos da Roma augustana, que serão exploradas no capítulo seguinte. Conforme

anunciamos, o Livro III se trata de um relato de memória no qual o herói Eneias descreve

para a rainha de Cartago, Dido, todas as batalhas que teve de enfrentar até chegar a essa

terra. O personagem principal se apropria das suas próprias memórias para contar sua

experiência com os espaços que teve contado ao longo de sua viagem. O exílio aparece

como um acontecimento tão relevante para Eneias que ele sequer deixa de mencionar as

falas de todos os que o acompanharam nessa viagem e daqueles que encontrou ao longo do

caminho, do mesmo modo como Simônides é sua visão a responsável pelo seu

conhecimento. Partindo desse ponto de vista podemos conceber o Livro III como o “Livro

das memórias de Eneias”. Na abertura o herói troiano afirma:

Quando aos eternos aprouve destruir sem motivo o invejável império

d’Ásia e a progênie de Príamo, em terra soberba Ílio, e em ruínas ardentes

a Troia Netúnia mudada, por injunção dos agouros nos vimos lançados no

exílio, para buscar novas terras60

(Eneida, III, 1-4).

Eneias conta o que viu e viveu, tal como Ulisses, é aquele que sabe por que viu.

François Hartog (2004, p.14) ao realizar uma análise sobre a viagem do herói homérico

classifica essa qualidade como uma característica essencial do mundo grego, o olho como

modo de conhecimento, e chega a essa conclusão se apoiando em Aristóteles, que

considerava a visão como o sentido do ser humano capaz de transmitir um maior nível de

conhecimento. Procuramos traçar aqui não um simples mapa da viagem de Eneias, mas

uma análise da sua narrativa enquanto viajante, exilado, que relatou não somente o que

observou, mas também o que viveu.

Diferentemente do Ulisses de Homero, Eneias não participa de batalhas ou passa

pelas provações dos deuses para poder voltar a sua pátria, mas procura por uma nova.

Porém, esses dois personagens podem ser reconhecidos como homens-fronteira, tal como

afirma Hartog (2014, p.14-15), eles se perdem no mar, suas viagens são cheias de chegadas

e partidas, demarcam as fronteiras entre o divino e o humano ao atravessarem o mundo dos

60

Postquam res Asiae Priamique euertere gentem/immeritam uisum superis, ceciditque superbum/ Ilium et

omnis humo fumat Neptunia Troia,/ diuersa exsilia et desertas quaerere terras (Eneida, III, 1-4).

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vivos e o mundo dos mortos. Esses viajantes se deslocam até lugares antes desconhecidos

para eles, delineiam os contornos de uma viagem que os identificam um como grego e

outro como romano. A Odisseia foi à pioneira da narrativa de viagem e foi posteriormente

evocada metaforicamente por vários poetas, como Virgílio.

Eneias e seus companheiros se situavam nos espaços onde aportavam como

estrangeiros, viajantes que não possuíam um lugar de pertencimento físico no mundo, pois

este existia apenas em suas memórias e nas dos Penates. Na visão de Cabeceiras (2008,

p.170) cidade e segurança é um binômio cuja pertinência para a cidade de Roma, a partir do

seu desmensurado crescimento, começou a ser posto em questão no final da República.

Apesar disso, esses dois elementos continuaram fazendo parte do imaginário mediterrâneo.

Fora da “cidade murada” coisas ruins aconteciam, o autor em questão dá como exemplo o

encontro entre os dois amantes Píramo e Tisbe que resultou na trágica morte de ambos.

Seguindo essa premissa e desviando nossa atenção para a Eneida encontramos esse mesmo

princípio. Os troianos exilados estavam desprotegidos, sem uma cidade estavam à mercê

dos perigos, tendo sobrevivido graças à ajuda dos deuses. Sem pátria, fora dos “muros da

cidade” eles se encontravam em espaços hostis, onde se depararam com morte, pestes,

guerras, tempestades e maus augúrios.

A partir disso poderíamos pensar que na Eneida os espaços de ordem são as cidades,

tendo como exemplo Cartago, onde os troianos encontram um local de repouso e proteção

após a tempestade causada por Eólo no Livro I. Nessa cidade são bem recebidos, a rainha

lhes oferece um banquete e pede a Eneias que lhe conte suas aventuras. No entanto, o que

percebemos ao longo do relato do herói é que a ideia de segurança e ordem da cidade não

se aplica homogeneamente. Durante o exílio o líder dos troianos fundou duas cidades, Enea

e Pérgamo, mas elas não prosperaram, foram atingidas pela peste e maus presságios, sinais

enviados pelos deuses para indicar que se fixar nessas terras não era seu Destino e que

novamente as velas dos navios deviam ser levantadas para buscar novas paragens. Na

Eneida a proteção e a segurança estão condicionadas à vontade dos deuses e à pietas dos

homens. A recompensa pelos esforços era uma garantia divina, mas dependia da atitude

devota dos troianos, demonstrada através da realização de sacrifícios e pelo respeito às

previsões divinas, como podemos perceber no Livro III.

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O espaço de ordem deve ser buscado, conquistado e fundado na península itálica

pelos troianos sobreviventes de uma guerra. “O disciplinamento do espaço e a sua

demarcação podem ser considerados atos fundadores da cidade e a sintonizam com o

cosmos” (CABECEIRAS, 2008, p.71). A disciplinarização do espaço da nova pátria dos

troianos seria promovida pela guerra empreendida contra Turno no final da epopeia, os

quatro cavalos avistados por Eneias quando viu a Itália pela primeira vez era um presságio

sobre esse acontecimento. Os troianos só encontrariam a paz depois da guerra. Essa pode

ser considerada uma das mensagens da Eneida, um indicativo da pax conquistada por

Otávio Augusto através do seu sucesso militar para conter as guerras civis e ampliar o

território do Império. A epopeia de Virgílio é um poema sobre origens, mas também da

conquista da paz por meio da guerra, de tempestades seguidas de calmaria, de morte

seguida de vida, de perda de uma pátria e a conquista de uma mais nova e mais forte. A

Eneida pode ser considerada um poema sobre “ressureição”.

Conforme observa Langrouva (2003, p.267-269) o tópos literário viagem aparece na

literatura antiga vinculado às experiências humanas de fuga, exílio, saudade da pátria e da

família, bem como a ritos de passagem, sugerindo uma necessidade de renovação e busca

de uma nova ordem social e espiritual. A ideia de viagem faz parte também da cultura

grega, em especial das cosmologias pré- socráticas e da cultura grega arcaica. Na Odisseia,

um dos mais exponenciais exemplos dessa tradição, a viagem é realizada em um espaço

geográfico e mítico, desenvolvida em um tempo cíclico. Embora essa epopeia pareça a

princípio um poema de regresso, um olhar mais aprofundado revela que se trata de uma

obra aberta para um novo ciclo, pois mesmo depois de ter alcançado seus objetivos, em

Itáca, Ulisses se prepara para novas viagens e retornos. Ao lançar um olhar sobre a Eneida

esse autor afirma que o espaço da viagem de Eneias também é geográfico e mítico, porém

não ocorrem em tempo cíclico e sim aberto. O herói e seus companheiros fogem da

desordem e da violência da Guerra de Troia para o espaço desconhecido, num tempo

predominantemente linear. O líder dos troianos exilados é um herói mítico fundador de uma

nova ordem social, política e religiosa, pois essa foi à vontade do Destino, fato profugus

(Eneida, I, 3).

A ideia de renovação na Eneida se encontra como uma necessidade devido à

degeneração dos homens de Troia (LANGROUVA, 2003, p.269). Conforme observamos

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anteriormente, no tópico 2.2.1 A partida de Troia e a chegada à Trácia, a cidade dos

troianos foi condenada à destruição devido à ganância e ao desrespeito dos homens,

principalmente dos reis Laomedonte e Príamo, aos pactos com as divindades. Coube a

Eneias a missão de buscar uma nova cidade para os sobreviventes da guerra isenta de todos

os males que levaram Troia à condenação. Nesse cenário as aventuras que Eneias e seus

sócios tiveram de enfrentar no decorrer do seu percurso funcionaram como uma espécie de

ritual de purificação e seleção dos mais dignos de habitarem o novo burgo, concluído pela

demonstração de lealdade e capacidade militar para defender sua pátria e seus compatriotas

na batalha do final da epopeia, contra Turno. Os espaços ocupados pelos troianos no Livro

III são lugares de hostilidade, de perigos, mas também de proteção e adoração aos deuses.

Esses homens sem uma pátria, sem um espaço de pertencimento, vagam pelos

mares à procura de um lugar para fixar-se, passam por provações enviadas pelos deuses,

tempestades, renúncia ao amor e ao desejo de fundar uma nova cidade nas ilhas onde

aportam. No que diz respeito ao mar, este pode ser encarado como um espaço de refúgio,

mesmo tendo nele se deparado com o perigo das tempestades é nele que sua experiência de

exílio se completa. Eneias e seus compatriotas são acolhidos pelo mar, um exemplo disso

pode ser observado no episódio em que Eólo61

, persuadido por Juno, cria uma tempestade

para atingir os troianos, mas eles são salvos pelo deus do mar, Netuno (Eneida, I, 64-144).

No que diz respeito a Troia em seu sentido físico ela se torna uma ausência, pois é

destruída, porém permanece viva na memória daqueles que viveram nessa cidade. Eneias e

seus sociis ainda habitam sua pátria, pelas suas memórias e pelos Penates sua cidade não

deixou de existir, além disso, ao longo do exílio esses homens se autoproclamam, são

chamados por outros personagens e pelo narrador de troianos62

.

Na sua Poética do Espaço, Gaston Bachelard (1978, p.188) procura analisar os

espaços da sensibilidade, das imagens da intimidade do ser humano, através do estudo da

relação que este mantém com os espaços que lhe são familiares, como a casa, por exemplo,

e a poética envolvida nesse processo. Para esse filósofo a importância de focar seu trabalho

nos espaços íntimos se dá por neles estarem abrigadas as nossas lembranças e

61

Foi transformado em rei dos ventos graças por Júpiter. Ver mais em Eneida, I, 55- 63. 62

Em algumas passagens os exilados de troia são denominados troianos: (I, 562); (I, 626); (II, 48); (V, 420);

(V, 690); (IX, 128); (X, 77); (X, 814). Em outras passagens eles são chamados de teucros: (I, 38); (I, 88); (I,

248); (I, 304); (I, 511); (I, 556).

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esquecimentos, bem como o nosso inconsciente. Tendo esses princípios como norteadores

o autor tece um trabalho de análise do espaço baseado na psicologia, através de pesquisas

“sobre a imaginação poética”, a produção de imagens poéticas e sua repercussão na alma.

Bachelard (1978, p.196) coloca em questão o valor da sensibilidade, da arte, do

sonho na constituição psíquica do sujeito. Ele analisa como a imaginação concebe um

"espaço feliz" e uma "topofilia" das imagens, ou seja, visa determinar o valor humano dos

espaços de posse, dos espaços proibidos, dos espaços amados, tendo como base comum o

fato de serem espaços vividos com todas as parcialidades da imaginação. Esta por sua vez é

considerada um processo que está em constante movimento, resultando em uma infinidade

de imagens novas a cada segundo e é isso que esse filósofo pretende explorar. Para tanto,

ele analisa como essas imagens se relacionam com o ambiente, com os espaços vividos.

Umas das problemáticas levantadas no trabalho desse autor diz respeito à questão da

carga de imagens concentradas na casa através das lembranças que nela inserimos e que nos

levam a atribuir diferentes valores para esse espaço, principalmente o de proteção. No

ponto de vista do autor não se trata apenas de descrever a casa, mas de mergulhar no

psicológico do seu interior inerente a função de habitar (BACHELARD, 1978, p.199). A

importância de se analisar os espaços vividos tendo como ponto de partida a casa se dá por

ela se constituir como o "lugar no mundo" do sujeito, por ser o seu primeiro universo. O

seu sentido poético reside em um sentimento que lhe é intrínseco, nas lembranças que se

criam nesse espaço experienciado e que são levadas para qualquer outra moradia que o

sujeito venha a possuir ao longo da vida. O espaço vivido é o espaço ao qual o sujeito se

sente ligado por laços afetivos, um espaço familiar, é o seu "espaço de pertencimento"

(BACHELARD, 1978, p.200).

Ao ter a casa como objeto de análise o autor não se refere a ela apenas como a

estrutura física a qual damos essa denominação, mas a todo e qualquer espaço habitado,

pois ele carrega consigo essa noção de casa. Ao longo da análise de Bachelard (1978,

p.200) vemos como a imaginação possui a força de criar "paredes" nesses espaços que

convencionamos chamar de lar e lhes encher de sentido de proteção ou de perigo. O ser que

vive no espaço é quem delimita as suas fronteiras e o sentido de cada parte que o compõe,

do mesmo modo que o morador de uma casa atribui diferentes valores aos cômodos do seu

abrigo. Esses valores da casa, do espaço vivido, não são reconhecidos apenas no momento

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presente, mas é também levado pelo sonho a nova casa que o sujeito venha a habitar no

futuro, ou seja, se transforma em memória.

Todos os aposentos da casa são "vividos, experienciados pela relação que o

individuo possui com cada parte dela e ele guarda lembranças dessa relação de modo que

ela passa a ser vivida não somente no presente, mas também no passado e ele pode voltar a

viver em uma casa nova” (BACHELARD, 1978, p.200). Ao analisarmos a Eneida podemos

partir dessa mesma premissa, Eneias experimentou essa relação ao perder sua pátria, os

deuses o obrigaram a se desvincular da sua casa no plano físico, assim como das pessoas

que a habitavam, e esse sentimento de perda percorreu todo o seu ser ao longo do seu

exílio. O seu passado permanecia vivo não somente na sua memória, mas também nos seus

Penates, que enquanto estivessem nas mãos dos troianos garantiriam a existência da sua

cidade.

A memória e a imaginação trabalham juntas. Elas constituem a comunhão da

lembrança, ou seja, são produtoras de imagens, como a lembrança da casa da infância.

Essas imagens podem ser acionadas por determinados acontecimentos, como uma casa

nova que nos reporta a lembrança da casa que habitávamos na infância, que nos permitem

viver momentos de felicidade ao reviver lembranças de um lugar de proteção. Dessa

maneira a casa é considerada o abrigo do devaneio, dos sonhos. Tendo deixado isso claro

Bachelard procura mostrar como a casa é "um dos maiores poderes de interação para os

pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem" (BACHELARD, 1978, p.201).

A casa, o espaço de pertencimento do homem, é uma parte constitutiva do seu ser.

"Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades

do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano.

Antes de ser "atirado ao mundo", como o professam os metafísicos apressados, o homem é

colocado no berço da casa." (BACHELARD, 1978, p.201).

Na narrativa de Virgílio, Eneias não sonha especificamente com imagens da sua

cidade, mas com pessoas que a habitavam, além de encontrar compatriotas durante a

viagem, são lembranças da sua casa, do seu espaço de pertencimento. Antes de sair de

Troia é com a sombra do falecido Heitor lhe pedindo para que deixe a cidade e salve os

Penates que ele sonha; na Trácia encontra o corpo de Polidoro misturado às plantas que

cresciam naquelas terras e que lhe pede para sair daquele lugar amaldiçoado; e em Epiro

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encontra um simulacro do passado, uma cidade congelada no tempo, uma lembrança, nela

Andrômaca ainda chora pela morte de Heitor e juntamente com Heleno cria uma cidade do

passado, que não se recuperou das perdas sofridas e por isso permanece estagnada. As

sombras de Troia, assim como os seus deuses, os Penates, conduzem o herói troiano para

longe dessa cidade. Eneias é levado pelos deuses a afastar-se desse passado em beneficio da

fundação de uma nova pátria, ou seja, do futuro.

Sob esse ponto de vista tomamos emprestada a teoria de Bachelard (1978, p.202-

205) segundo a qual a casa é o abrigo das nossas lembranças mais íntimas, elas ficam

compartimentadas em seus cômodos e voltamos a elas durante toda a vida, em nossos

devaneios. Ao discutir esses aspectos o autor se prontifica a fazer uma topoanálise, um

estudo psicológico dos lugares físicos da vida intima do ser humano. Partindo desse

pressuposto esse autor se debruça sobre o estudo da memória, levando em consideração a

sua incapacidade de registrar a duração concreta da vida e afirma que localizar a lembrança

é uma preocupação de uso externo, ou seja, é um esforço de comunicar-se com os outros.

Da mesma maneira que cada cômodo da casa guarda memórias intimas dos seres que a

habitam ou habitaram e elas se tornam casas da lembrança. Assim, tudo o que podemos

descrever da casa da infância é devaneio, sonhos de um passado.

Tendo o mito de Eneias como base, percebemos que ele foi escrito não só nas

páginas de um livro, mas também nos monumentos arquitetônicos da capital do Império

Romano, no século I a. C., imprimindo nesses artefatos um sentimento de pertencimento a

esse espaço por aqueles que o vivenciavam. Funcionou como o registro de uma memória

compartilhada entre todos aqueles que se identificavam como romanos. Esse processo de

apreensão dos gêneros artísticos sejam eles literatura, pintura ou música, visava impactar o

receptor. O fato é que mythos e memória andam de mãos dadas, são elementos que

despertam a curiosidade e identificação no homem. Com o mito do exílio de Eneias não foi

diferente, estudado e utilizado como referência da Antiguidade à Modernidade, esse

registro da memória permanece vivo, guiando aqueles que se aventuram a embarcar na

viagem rumo à novas descobertas, tendo Eneias como comandante da embarcação.

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3. REALIZAÇÕES HEROICAS, FUNDAÇÕES E PROFECIAS NO LIVRO III DA

ENEIDA

Os mitos não são apenas estórias para o deleite do público, são narrativas que

indicam os costumes, crenças, relações políticas e militares, que nos permitem ter

conhecimento sobre como o homem interagia com a natureza e com outros homens, numa

determinada sociedade. Alguns mitos são desconexos e fragmentados, outros mais fáceis

de articular numa conexão narrativa, o mito de Eneias é um desses. Virgílio não foi o

primeiro a escrever sobre esse personagem. O seu nascimento foi contado nos Hinos

Homéricos, sua vida, como guerreiro de Troia, foi contada na Ilíada e Tito Lívio narrou em

sua História de Roma como o herói troiano sobreviveu à guerra, chegou à Itália, fundou

Lavínio e morreu em uma guerra contra os reis itálicos, Turno e Mezêncio63

. Além disso,

esse mito esteve presente também em meios imagéticos, precisamente nas paredes da Roma

na época de Augusto, o que nos leva a sugerir um amplo alcance das informações sobre

Eneias durante o principado.

Procuraremos traçar o perfil do herói virgiliano, visto que seu caráter revela muitas

informações sobre a conduta que os cidadãos deveriam possuir dentro dos muros de Roma.

Para isso, discutiremos como Eneias, personagem pertencente à tradição literária grega e

latina, foi descrita nas obras citadas anteriormente, a fim de ter uma noção do material que

Virgílio tinha ao seu dispor quando compôs sua epopeia. A partir disso, nos dedicaremos a

analisar a Eneida, especificamente o Livro III, destacando como, apesar de ter elaborado o

enredo a partir de uma personagem que já possuía uma trajetória na literatura, Virgílio

compôs uma obra singular, que tratava de especificidades romanas, apoiado no modelo de

epopeia grega.

No Livro III da Eneida, Eneias conta como se deu sua viagem de Troia à Cartago,

ao longo da qual enfrentou situações que lapidaram sua personalidade como o herói, que

pela sua pietas e virtos se mostrou merecedor, diante dos deuses, de se tornar o pater das

bases do Império Romano. Nesse contexto daremos prioridade à discussão sobre os feitos

heroicos de Eneias, tendo em vista que o caráter desse personagem revela detalhes sobre os

63

Ao longo deste capítulo discutiremos como Eneias foi descrito nessas obras, objetivando compreender

quais as principais informações sobre esse personagem estavam ao dispor de Virgílio, quando se propôs a

compor sua epopeia.

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preceitos morais que regiam a sociedade romana, da época do século I a. C. Para dar

embasamento a essas afirmações nos apoiaremos na historiografia sobre a “religião

romana”, dando destaque aos cultos presididos no ambiente público.

3.1. Para além da narrativa virgiliana: a res gestae de Eneias

Nas épicas gregas e romanas o herói geralmente é um individuo que possui algum

grau de parentesco com uma divindade e recebe a missão de realizar tarefas enviadas pelos

deuses. São essas missões que diferenciam os heróis dos outros homens. Gregory Nagy

(2005), analisando o “herói épico” a partir da comparação entre distintas construções

poéticas no mundo antigo, afirma que a palavra grega hêrôs na tradição clássica, reúne três

características básicas: a) um indivíduo atemporal ou que poderia facilmente ser deslocado

de um tempo para o outro; b) um indivíduo feito de extremos positivos ou negativos, que

sempre se destaca em todas as atividades; c) um indivíduo que se antagoniza com os

deuses, mas que desenvolve uma relação de atração, ao mesmo tempo. O autor exemplifica

com os modelos de Héracles e sua relação de antagonismo e reconciliação com Hera, e de

Eneias, com relação à Juno (NAGY, 2005, p. 87-88).

Na tradição latina, durante o principado de Otavio Augusto (14 a.C. -27 d.C.), o

mito do herói fundador das bases do Império Romano, Eneias, narrado por Virgílio na

Eneida, ganhou respaldo. Podemos dizer que seu perfil segue o modelo dos heróis da épica

grega, traçado por Hesíodo em Trabalhos e Dias e confirmados por Homero na Ilíada e

Odisseia64

. Além disso, o passado de Eneias estava ligado à tradição grega, pois o herói

romano era também um troiano sobrevivente da guerra que devastou sua pátria. O império

romano encontrava assim suas raízes no passado grego.

Hesíodo narrou como se dava a organização do mundo dos mortais, sua origem,

limitações, deveres e como se fundamentava a condição do ser humano. De acordo com

seus Trabalhos e Dias (105-195), os homens foram criados pelos deuses, especificamente

por Zeus, divididos em cinco raças, ouro, prata, bronze, os heróis e ferro. A primeira raça se

origina na época em que Cronos reinava, são homens que desconheciam os males, vivam de

64

Sobre a concepção acerca de como o perfil do herói da épica clássica foi traçado por Hesíodo e confirmado

pelos poetas que o sucederam ver também Marques Júnior (2007, p.9-32).

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festas e bonanças e quando morriam se transformavam em gênios, responsáveis por cuidar

dos vivos. A segunda era inferior à antecessora vivia cem anos como crianças, junto às suas

mães, e na adolescência morriam, além de sofrerem dores terríveis, pois se entregavam aos

Excessos e não queriam servir, nem oferecer sacríficos aos deuses. A terceira preocupava-

se apenas com as artes bélicas, eram fortes, violentos e suas armas eram feitas de bronze,

mas morriam anônimos e sem glória. A quarta raça, os heróis, caracterizava-se pela justiça

e coragem, eram semideuses e foram enviados para as guerras em Tebas e em Troia, onde

morreriam em busca de glória. Ao contrário dos deuses eram mortais, no entanto depois

que morriam Zeus os guiaria até a Ilha dos Bem-Aventurados e três vezes por ano a

natureza lhes forneceria uma rica colheita. A quinta raça, Hesíodo lamenta não ter vivido

antes ou depois, eram os homens, vivia num misto de bens e males, desrespeitam os deuses,

saqueavam cidades e por isso seu futuro era sombrio.

Os heróis a raça “mais justa e mais corajosa” (Trabalhos e Dias, 158) deveria lutar

pela manutenção da Justiça no mundo dos homens e pela realização da vontade dos deuses,

evitando a qualquer custo desrespeitá-los, caso contrário o Respeito (aidós) e a

Retribuição65

(némesis) os abandonariam, pestes os acompanhariam e nenhuma força

impediria que a vingança divina se concretizasse66

(Trabalhos e Dias, 195-200). Abaixo um

trecho do poema de Hesíodo no qual a raça dos heróis é descrita:

Zeus Cronida fez a mais justa e corajosa,

raça divina de homens heróis e são chamados

semideuses, geração anterior à nossa na terra sem fim.

A estes a guerra má e o grito temível da tribo

a uns, na terra Cadméia, sob Tebas de Sete Portas

fizeram perecer pelos rebanhos de Édipo combatendo,

e a outros, embarcados para além do grande mar abissal

a Troia levaram por causa de Helena de belos cabelos,

ali certamente remate de morte os envolveu todos

(Trabalhos e dias, 155-165).

Essa raça era chamada de semideuses, pois era concebida pela relação de um deus

com um mortal. No entanto, vale ressaltar que nos poemas homéricos isso não era uma

regra. Apesar de Aquiles ser filho de uma deusa, Thétis, e de um mortal, Peleu, Heitor era

65

De acordo com o Oxford Latin Dictionary (p.1169) o termo nemesis pode ser traduzido como a deusa grega

Retribuição. 66

Foi pelo desrespeito a Zeus que Troia, e mais precisamente a linhagem de Príamo, foi condenada à extinção

(Eneida, II, 545-560).

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filho de dois mortais e não possuía um vínculo direto com uma divindade, sendo também

considerado um herói67

. Os heróis possuem a Thémis, a justiça divina, e por esse motivo

sua missão é fazer valer a Díke, justiça que rege o mundo dos homens, garantindo a

harmonia com os deuses68

. Na Teogonia , (130-138), Hesíodo afirma que a Thémis nasceu

das forças primordiais, Urano e Gaia, ou seja, é uma titânide. Além disso, ela é também a

segunda esposa de Zeus. Dessa união nasceram as Horas, Irene (Paz), Díke (Justiça) e

Eunômia (Equidade), que eram responsáveis por guardar as portas do Olimpo e cuidar dos

campos (Teogonia, 901-906). A Díke é uma extensão da Thémis (Trabalhos e Dias, 256-

264), assim como suas irmãs, mas era responsável por garantir a justiça no mundo dos

homens. Sempre que algum mortal se atrevesse a cometer injúria contra ela à dor e o

sofrimento seriam lançados á terra até que a dívida por tal insolência fosse paga.

Uma vez chamado para realizar as tarefas designadas pelos deuses o herói

abandonava o mundo que ele conhecia e passava a viver em outro, ganhava conhecimentos

pela experiência e se tornava uma pessoa diferente. No desenrolar da Eneida percebemos

essa mudança em Eneias. Ele inicia sua jornada com medo (Eneida, II, 726-729), incertezas

(Eneida, III, 5-7), e lágrimas (Eneida, III, 10), mas a encerra como um sacerdote fundador

de cidades (Eneida, XII, 193-194) e um líder guerreiro (Eneida, XII, 950-952). No Livro III

podemos perceber nitidamente essa transformação na postura de Eneias, pois ao longo das

suas andanças se depara com situações que o obrigam a desenvolver determinadas

características que culminaram na sua transformação no herói cumpridor da vontade dos

deuses e fundador de cidades, do final da epopeia.

O personagem Eneias não foi criado por Virgílio, ele faz parte de uma tradição

literária anterior à Eneida: seu nascimento foi relatado nos Hinos Homéricos; sua

participação na guerra de Troia fez parte da Ilíada; e a sua trajetória da saída de Troia até o

dia da sua morte foi contada na História de Roma. Quando compôs a Eneida Virgílio tinha

ao seu dispor um acervo de informações sobre o herói troiano, se apoiou no que já existia

sobre ele e criou um poema autêntico e rico em referências da literatura grega e latina.

Desta forma, como a tradição literária mencionada acima contribuiu para a composição do

67

Heitor também é reconhecido como herói. Sua morte é considerada bela, sangrenta e gloriosa, pois morreu

jovem, demonstrando sua coragem ao enfrentar o melhor guerreiro dos dânaos, Aquiles, mesmo sabendo que

iria morrer. Essa forma de morrer elevou o herói acima da condição humana, principalmente por ter morrido

para defender sua pátria. Sobre o heroísmo de Heitor na Ilíada ver Vernant (1979, p.31-54). 68

Para uma discussão mais aprofundada sobre a thémis e a díke ver Albertim (2013, p.20-37).

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herói Eneias, da Eneida, mesmo apresentando esse personagem com um caráter distinto do

que foi projetado por Virgílio? Pensando nisso, procuraremos analisar como esse

personagem foi representado por autores greco-latinos e pela epopeia virgiliana, destacando

os seus principais feitos e como seu mito, relacionado à fundação de Roma, estava ligado

ao culto da cidade.

O nascimento de Eneias é narrado no Hino a Afrodite69

(5, 53-292). Anquises, seu

pai, era um pastor troiano. Um dia enquanto estava em um estábulo afastado dos seus

companheiros, tocando cítara no monte Ida, foi surpreendido por Afrodite. A deusa estava

metamorfoseada em uma bela ninfa, “vestida com peplo certamente mais brilhante que a

chama do sol,/ trazia espirais recurvadas e botões de flores brilhantes,/ colares magníficos,

todos ornados de ouro” (Hino a Afrodite 5, 85-87) e imediatamente fez acender o desejo no

mortal. Após dividirem o leito, ela induziu o sono em Anquises e quando o despertou

revelou que teriam um filho, “Eneias será seu nome, porque uma terrível aflição me

invade,/ por ter caído no leito de um mortal70

(Hino a Afrodite 5, 198-199). Essa criança

deveria passar seus primeiros anos de vida sob os cuidados das ninfas da montanha Sileno,

pelas quais seria nutrido e educado. Depois a própria deusa o entregaria ao pai mortal, que

de nenhuma forma deveria revelar a origem da criança. A quem perguntasse, Anquises

deveria dizer que a mãe de Eneias era uma ninfa, caso contrário Zeus lançaria sua ira sobre

o pastor. Assim foi feita a vontade da deusa.

Detalhes sobre a fase adulta de Eneias foram relatados por Homero. Na sua Ilíada

ele conta como o filho de Anquises se tornou um exímio guerreiro, que lutou bravamente

durante a guerra de Troia. A primeira passagem na qual o herói troiano é mencionado é o

Canto II, após a catalogação das naus, concomitante com a primeira aparição de Heitor

(Ilíada, II, 495-785). Ambos mostrados em posição de comando dos troianos. É colocada

em evidência a qualidade de Eneias como um guerreiro e um dos comandantes das forças

69

Esse texto faz parte de um conjunto de 33 poemas, dedicado a 22 divindades, Afrodite, Apolo, Ares,

Ártemis, Atena, Asclépio, Deméter, Dionísio, Dióscuros, Gaia, Hefesto, Hélio,Hera, Herácles, Hermes,

Héstia, Musas, Pã, Posídon, Reia, Selene e Zeus – reunidos no livro Hinos Homéricos. Apesar do sugestivo

título, sua autoria não é atribuída a Homero, mas a autores anônimos. Eles provavelmente eram parte dos

festivais das póleis gregas, declamados pelos rapsodos. Ver Ribeiro Júnior (2010). 70

Percebemos que o nome de Eneias aparece como um substantivo ligado a algo ruim, devido a atitude da

deusa de ter deitado com um mortal. Muito embora, tenha sido Zeus que incutiu o desejo em Afrodite de se

unir a um mortal para que ela nunca se vangloriasse por ter unido os deuses homens às mulheres mortais, pois

ela mesma, uma deusa, se uniria a um mortal (Hino a Afrodite, 45-52).

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troianas: “aos Dardânios, Eneias, filho do valente/ Anquises e da deusa Afrodite, guiava”

(Ilíada, II, 819-20).

O herói troiano volta a aparecer no Canto V, quando luta bravamente contra os

aqueus ao lado de um dos seus compatriotas, Pândaro, que acaba sendo morto. Eneias luta

pelo corpo do seu amigo. Nesse momento seu caráter guerreiro é novamente ressaltado e

ele é comparado a um leão:

Armado, Eneias baixa a defender o morto

dos Aqueus; como um leão, gira-lhe em torno e brande

lança e escudo equilátero, aos brados, terrível,

ávido de matar quem se lhe antepusesse.

(Ilíada, V, 298-301)

Eneias é salvo pela sua mãe, Afrodite, que “rodeou o filho amado com os braços

brancos,/ e desdobrou-lhe diante o peplo resplandecente, amparo contra os dardos dos

Dânaos” (Ilíada, V, 314-316). Ele volta a ser mencionado no Canto VI, no momento em

que os troianos se encontram em desvantagem na guerra. Heleno, o sacerdote de Apolo,

que também aparece na Eneida, se dirige a Heitor e Eneias pedindo para que os dois façam

os inimigos recuarem e incentivem seus companheiros a lutarem por sua cidade, pois de

ambos fluía o impulso e a decisão dos troianos pelo combate (Ilíada, VI, 77-85).

No Canto XII, durante o ataque dos troianos às naus inimigas, Eneias é o

comandante dos cinco grupos de combatentes formados para expulsar os aqueus do seu

acampamento (Ilíada, XII, 99-101). No Canto XIII dá-se a continuidade desse evento e o

herói troiano continua a lutar bravamente, assim como no Canto XVI. No Canto XVIII

acontece a luta pelo corpo de Pátroclo, o amigo mais estimado de Aquiles que foi morto por

Heitor. Eneias, instigado por Apolo, incentiva Heitor e seus companheiros a lutarem contra

os aqueus. Essa luta resulta no recuo dos inimigos. A ultima participação do filho de

Anquises na Ilíada se dá no Canto XX. Homero anuncia o futuro glorioso de Eneias e seus

descendentes:

Vamos, pois, resguardá-lo da morte, senão

Zeus Pai há de irritar-se, no caso de Aquiles

o abater. Manda a Moira que ele escape, a fim

de que, priva de sêmen, não pereça a estirpe

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de Dárdano, o rebento que Zeus mais amou

entre os que, de mulheres mortais, lhe nasceram.

Á linhagem de Príamo o Croníade detesta.

Agora, sobre os Troícos, Eneias reinará

e os seus filhos e os filhos nascituros deles.

(Ilíada, XX, 299-307)

Essas palavras são proferidas por Netuno durante o encontro de Eneias com

Aquiles, na noite em que Troia foi destruída. Júpiter convoca os deuses do Olimpo e

solicita a Mercúrio, Juno, Netuno, Minerva e Vulcano colocarem - se ao lado dos gregos, e

Marte, Apolo, Diana, Latona, o Xanto e Vênus a defenderem os troianos (Ilíada, XX, 24-

40). Apolo incita Eneias a lutar contra Aquiles e o troiano quase é morto por seu oponente,

Netuno o salva, garantindo que seu Destino se cumprisse e ele se tornasse um herói, cujos

filhos também alcançariam a glória. Descendente do filho mais amado de Zeus, Dárdano,

Eneias deveria ser salvo da morte para um dia ser o rei dos troianos.

Eneias aparece também na História de Roma (I, 1-2), de Tito Lívio. Nessa versão do

mito, o percurso do herói troiano é contado da sua saída de Troia até o dia de sua morte.

Após a destruição dessa cidade dois heróis foram salvos, Antenor e Eneias, pois sempre

haviam aconselhado o estabelecimento da paz e a devolução de Helena. Ambos passaram

por várias aventuras. O primeiro seguiu para o mar Adriático e ao final de sua viagem

fundou uma cidade chamada Troia. O segundo dirigiu-se a Macedônia e à Sicília,

desembarcou nas terras do rei Latino, com o qual se aliou. Essa união se fortaleceu quando

Eneias se casou com a filha do rei, Lavínia, e fundou uma cidade em homenagem a esposa,

Lavínio. Desse casamento nasceu Ascânio.

O momento de calmaria durou pouco tempo. Os troianos e os aliados do rei Latino

tiveram de pegar nas armas contra o rei dos rútulos, Turno, que fora pretendente de Lavínia.

Este foi derrotado e se uniu ao rei da Etúria, Mezêncio, que não via com bons olhos a

chegada dos troianos e o aparecimento de uma nova cidade, Lavínio (História de Roma, I,

1-2). Diante da ameaça de uma nova guerra, Eneias estabeleceu uma aliança com os

aborígenes e lhes concedeu o direito de serem chamados de latinos. A partir desse momento

os aborígenes rivalizaram com os troianos pela atenção do rei Eneias. Este confiando no

sentimento de lealdade levou tropas aos campos de batalha contra o rei da Etúria e Turno.

O líder troiano mais uma vez obteve a vitória, mas realizou seu ultimo feito. “Sejam quais

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forem às qualidades humanas ou divinas que se lhe atribuam, jaz agora à margem do rio

Númico e é chamado Júpiter Indígete” (História de Roma, I, 2).

O Eneias de Homero e Tito Lívio possui o caráter de guerreiro mais evidenciado,

ele é o defensor da cidade, tanto em Troia, como em Lavínio. Na Eneida isso não é

ofuscado, mas o herói assume um papeis complementares mais enfatizados que nessas

narrativas, como o de fundador de cidades e de seguidor dos fados. O Eneias de Virgílio

passa por uma série de provações para se tornar o herói cumpridor da vontade dos deuses

ao seguir para o exílio no mar, junto com seus companheiros71

. O Destino de Troia e de

Roma estava em suas mãos, pois esse era um plano divino. O percurso da viagem dos

troianos exilados, descrito por Eneias no Livro III, pode ser encarado como parte de um

ritual de iniciação desse troiano como “herói fundador”. Ele é forçado a passar por uma

série de provações que visam testar sua capacidade de realizar a missão dada pelos deuses,

passando por etapas que incitam o aprimoramento de certos detalhes da sua personalidade,

desenvolvidos nos episódios seguintes, concretizando-se no Livro XII quando vence a

guerra contra Turno e conclui a missão de fundar uma nova cidade, Lavínio, e dar origem a

estirpe cuja fama e gloria se espalhariam sobre o mundo. Além disso, são os próprios

deuses, principalmente Vênus, a mãe do herói, que fornecem auxílio, por meio de

adivinhos, sacerdotes, “aparições”, para o cumprimento dessas tarefas.

A confiança nas divindades é uma das marcas mais visíveis de Eneias. Durante toda

a viagem ele não questiona os deuses, sempre realiza preces e rituais em sua homenagem,

demonstrando sua lealdade. No entanto, a confiança nos deuses não é uma das

características apenas de Eneias, seus sócios também confiam nos seres divinos, bem como

no seu líder o qual seguem do início ao fim da viagem e por ele e pelo Destino profetizado

vão à luta, pegam nas armas, oferecem sacríficos aos deuses, enfrentam tempestades, pestes

e morte, até a luta final contra o exército de Turno, no Livro XII.

O relato de Eneias sobre seus primeiros anos de viagem no Livro III começa com a

lembrança do dia em que junto com seus companheiros partem de Atandro, cidade próxima

à Troia, onde após a guerra se abrigaram para construir as naus que os levaria ao exílio no

71

Atentar para o resumo do Livro III da Eneida, no capítulo III, no qual percebemos diferenças entre o Eneias

personagem da epopeia de Virgílio e do Eneias personagem da tradição literária que acabamos de citar,

sobretudo, quando tratamos da Ilíada. Na poesia de Homero ele aparece como o guerreiro que busca a glória

no combate, já na versão virgiliana ele é apresentado como um heroi piedoso e fundador de cidades, que foi

impedido pelos deuses de morrer lutando na guerra que devastou sua pátria.

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mar (Eneida, III, 1-7). Lidamos então com uma seção da Eneida que trata especificamente

da memória de uma viagem. São lembranças perturbadoras para aquele que as rememora,

pois o obrigam a lembrar da morte da sua pátria, daqueles que junto com ela pereceram,

como sua esposa Créusa, e dos que seguiram para o barco do Caronte durante a viagem,

como o seu pai, Anquises. Eneias é o herói que chora ao se despedir da sua pátria e lamenta

a perda dos seus companheiros, mas continua a fazer a vontade dos deuses, prestando-lhes

cultos em todos os lugares onde aporta com suas naus.

A pietas é uma das principais qualidades de Eneias. Ela é anunciada por Virgílio no

Livro I, quando o poeta pede auxílio às Musas para recordar-se das causas da guerra que

fez Juno se voltar contra os troianos: “Musa!, recorda-me as causas da guerra, a deidade

agravada:/ por qual ofensa a rainha dos deuses levou um guerreiro/ tão religioso a enfrentar

sem descanso esses duros trabalhos?72

” (Eneida, I, 8-10). No texto em latim a piedade

aparece como insignem pietate, que traduzida ao pé da letra é “notável piedade”, entendida

como estrita devoção ou obediência aos deuses. Não é por gosto (non sponte) que o herói

empreende sua viagem (Eneida, IV, 361), mas contra seu próprio querer (inuitus), pela

“vontade dos deuses” (iussa deum), pelas “ordens de cima imperiosas” (imperiis). São os

argumentos de Eneias, para Dido quando a encontra no mundo dos mortos e tenta justificar

o motivo de tê-la abandonado, para seguir viagem rumo ao destino profetizado pelos deuses

(Eneida, VI, 458-464). Vemos na Eneida características de um herói que não apresentava

otimismo com relação a sua missão. Eneias antes de ser o herói fundador das bases de um

império era um homem, possuía desejos e sentimentos humanos. Foi por respeito ou até

mesmo temor aos deuses que se prontificou a cumprir seu Destino.

Até aqui destacamos a visão positiva da Eneida de Virgílio73

, pautada no anúncio

divino da fundação de uma cidade que se tornaria império, cujas bases deveriam ser

firmadas por um homem, sobrevivente de uma guerra que durou 10 anos e causou feridas

difíceis de cicatrizar, como a morte da sua esposa, Creusa (Eneida, II, 769-770). Ao

aprofundarmos nossa análise sobre o relato de Eneias a respeito dos seus primeiros anos de

72

Musa, mihi causas memora, quo numine laeso,/quidue dolens regina deum tot uoluere casus/ insignem

pietat uirum, tot ardire labores impulerit (Eneida, I, 8-10). 73

As interpretações da epopeia virgiliana como um poema que revela o pessimismo do autor e do

personagem principal se tornou pauta de vários estudos , dentre eles: The two voices of Virgil's Aeneid (A.

PARRY); Sementes de Frustração na Eneida (V. SOARES); L'inspiration tragique de l'Enéide (W. S.

MAGUINNESS); An interpretation of the Aeneid (W. CLAUSEN); Darkness visible: a study of Vergil's

“Aeneid” (W. R. JOHNSON); A outra face de Eneias (W. S. MEDEIROS).

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exílio no mar encontramos um herói que antes de tudo é um homem, mortal, que carrega

sobre os ombros o peso de uma missão dada pelos deuses. Ele cumpre as provações que as

divindades colocam à sua frente, mas o seu maior desejo é fixar-se em uma terra.

O herói troiano é o cumpridor da vontade dos deuses, o pio. No entanto, isso não

quer dizer que ele aceitou de bom grado a sua missão. A voz de Eneias ecoa para contar o

passado. O herói troiano é um vencido, que vagou durante anos sem ter consciência clara

sobre a sua missão e que transmite na sua fala as incertezas que o perturbam: “Mandas,

rainha, contar-te o sofrer indizível dos meus”74

(Eneida, II, 3). No Livro III ele conta suas

errâncias de Troia à Cartago e se revela um homem que depositou em cada ponto de parada

a esperança de poder enfim se fixar numa terra, mas foram todas tentativas vãs, frustradas

pelos deuses. Todo esse relato emana sofrimento. Nos deparamos com a voz de um homem

que perdeu sua pátria, a esposa, os amigos e o pai.

No primeiro ponto de parada dos troianos, a Trácia, Eneias funda um povoado e

realiza todos os rituais necessários para honrar aos deuses. No entanto, um presságio o

impele a partir da nova cidade o mais rápido possível. Enquanto desbrava as novas terras,

encontra um campo de mirtos e cerejeiras e ao tentar arrancar alguns galhos vê que no lugar

da seiva as plantas jorravam sangue. Era Polidoro, o filho de Príamo, que havia sido

mandado para essas terras e acabou sendo assassinado pelo rei logo que as noticias sobre o

fim da Guerra de Troia se espalharam. Tal como Troia essas terras estavam condenadas à

destruição, pois a lei da hospitalidade havia sido desrespeitada75

. Sabendo disso, o herói

reúne seus companheiros, prestam as honras funérias ao compatriota morto e novamente se

lançam ao mar (Eneida, III, 13-68). Uma nova tentativa de fundar outra cidade, dessa vez

chamada de Pérgamo, se dá em Creta, quando os troianos exilados acreditam ter encontrado

a antiquam matrem, profetizada pelo oráculo de Apolo, em Delos, como o local no qual

deveriam erguer sua nova pátria. Essa também é destruída pela vontade dos deuses. Um

ano pestífero (Eneida, III, 94-144) deixa os homens e a vegetação doentes e destrói o novo

burgo.

Em Butroto Eneias não funda uma cidade, mas encontra uma em ascensão,

construída pelo adivinho Heleno, e pela esposa do falecido Heitor, Andrômaca. Epiro foi

74

Infantum, regina, iubes renouare dolorem (Eneida, II, vv.3). 75

Conforme destacamos no capítulo II, ao ter abrigado Páris, após o rapto de Helena, Príamo desrespeitou

Zeus, o deus da hospitalidade, condenando assim Troia à destruição.

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construída à imagem e semelhança de Troia, mas tudo nela emanava lembranças das mortes

causadas pela guerra. Por um lado, Andrômaca ainda chorava pela morte do seu esposo e

do seu filho, Astianax (Eneida, III, 302-332). Do outro lado, Eneias e seus companheiros se

animaram com a visão da cidade (Eneida, III, 351-352). As ultimas palavras de Eneias para

Heleno e Andrômaca expressam um elogio por terem encontrado a paz e não precisarem

vagar por terras desconhecidas (Eneida, III, 493-496), revelando o seu descontentamento

com o exílio, embora tenha se comprometido a seguir o Destino que os deuses haviam

profetizado.

O Destino (fatum) é uma constante na Eneida. Do Livro I ao III o termo fata76

aparece várias vezes designando as profecias dos deuses para os homens. As divindades são

os guias de Eneias e seus sócios no exílio, aparecendo em sonhos, inspirando oráculos,

enviando sinais divinos, eles não desamparam o herói e seus companheiros, piedosos e

seguidores do fatum. Segundo Robert Coleman (2009, p.143) este termo se refere à vontade

arbitrária dos deuses e foi bastante explorado por Virgílio. Podemos perceber isso nas

primeiras linhas do poema: “as armas canto e o varão que, fugindo das plagas de Troia/ por

injunções do Destino77

, instalou-se na Itália primeiro/ e de Lavínio nas praias78

” (Eneida, I,

1-3). Serão as “injunções do Destino” que guiarão Eneias e seus companheiros até a Itália e

permitiram que seu descendente, Ascânio, funde Alba Longa e que mais tarde sua gens

obtenha glória.

Essa concepção do fatum como vontade dos deuses também pode ser observada

quando os troianos chegam às praias de Cartago, após serem salvos por Netuno de uma

tempestade causada por Éolo. Vênus pergunta ao seu pai, Júpiter, se ele havia mudado de

ideia quanto ao Destino dos troianos exilados:

Ó tu, que o destino dos homens, dos deuses diriges

do alto do teu poderio, e os espantas com raios ardentes:

em quê te pôde ofender meu Eneias, em quê meus troianos

para, depois de vencerem trabalhos sem conta, os caminhos

76

Os derivados desse termo aparecem várias vezes do Livro I ao III da Eneida relacionada a vontade dos

deuses: Fato (I, 1-4) Fata (I, 205); Fatorum (I, 261); Fati (I, 299); Fata (I, 382); Fata (II, 34); Futuris (II,

246); Fatis (III, 9); Fatis (III, 182); Fata (III, 337); Fata (III, 444); Fata (III, 494). Sobre o modo como o

Destino foi explorado por Virgílio ver Coleman (2009, p. 143-168). 77

Grifo da autora. 78

Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris/Italiam, fato profugus, Laviniaque venit/ litora. (Eneida, I,

1-3)

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de acesso a Itália por mares e terras lhes sejam vedados?79

(Eneida, I, 229-233)

Nessa declaração Vênus afirma que Júpiter possui o poder de definir o Destino dos

deuses e dos homens. A promessa de glória do Império Romano era o que consolava a mãe

de Eneias, o povo descendente da gens do herói se tornaria o senhor dos mares e da terra

(Eneida, I, 234-237). Júpiter acalma sua filha e responde que “imutáveis encontram-se os

Fados80

[...]. Mudança não houve no meu pensamento81

” (Eneida, I, 257, 260). Ou seja, era

da sua vontade que dependia o desenrolar dos acontecimentos no mundo dos homens, do

futuro de Eneias. No Livro II (54) também verificamos essa relação. Quando Eneias

descreve a noite em que Troia foi destruída, lamenta e afirma que foi pelo fata deum

(vontade dos deuses) e pela ingenuidade dos seus habitantes, por terem aceitado o cavalo

dos gregos, que sua pátria deixou de existir.

A intervenção divina era característica da épica, evocando um mundo onde os

deuses e os homens estavam próximos uns dos outros. Tito Lívio fez uma declaração sobre

isso:

No que se refere aos acontecimentos que precederam ou acompanharam a

fundação de Roma, a essas tradições mais ilustradas por lendas poéticas

do que apoiadas no testemunho irrecusável da história não pretendo

afirmá-las nem contestá-las. Concede-se aos antigos a permissão de

introduzir a interferência divina nas ações humanas, para tornar mais

veneráveis as origens das cidades. E se alguma nação possui o direito de

santificar a sua origem relacionando-a com a intervenção dos deuses, a

glória militar do povo romano é de tal ordem que, quando ele atribui sua

origem e a de seu fundador ao deus Marte, de preferência a qualquer

outro, aceitem as demais nações essa pretensão com a mesma tolerância

com que aceitaram seu poderio. (Prefácio, História de Roma)

Tito Lívio não se dedicou a tecer uma crítica aos relatos poéticos, visto que a função

destes era servir de deleite aos seus ouvintes e mais que isso de tornar grandiosas as

histórias sobre a fundação das cidades, cabendo aos romanos o direito legítimo de fazer o

uso dessas narrativas, mais que qualquer outro povo, como podemos observar no final

79

O qui res hominunque deumque/ aeternis regis imperiis et fulmine terres,/ quis meus Aeneas in te

committere tantum,/ quid Troes potuere, quibus, tot funera passis,/ cunctus ob Italiam terrarum clauditur

orbis? (Eneida, I, 229-233). 80

Manent immota tuorum/fata tibi. (Eneida, I, 257) 81

Neque me sententia vertit. (Eneida, I, 260)

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desse trecho. Ao analisar essa passagem Coleman (2009, p.143-147) afirma que o impacto

da presença dos deuses variava de acordo com o grau de crença do leitor na sua existência.

Onde a narrativa está ligada a eventos históricos reais sua interpretação pode ser

dependente da crença. A alegação de que Marte foi o pater dos romanos se tornaria trivial

caso não houvesse alguém que acreditasse em uma realidade onde isso fosse possível. Esses

mitos permaneceram como a forma poética mais eficaz de retratar a presença divina nos

assuntos humanos. Portanto, não é por mera coincidência ou apenas efeito retórico que

Virgílio inseriu na Eneida a participação divina nos assuntos do mundo dos homens,

característica das épicas dos poetas que o antecederam, e de alguns ritos, principalmente

aqueles relacionados à pax augusta. Na Eneida a piedade romana foi configurada na era

heroica pela piedade dos latinos e arcadianos e, sobretudo, pelos troianos exilados.

Percebemos na Eneida preceitos morais que possivelmente regiam a sociedade

romana. O homem devia respeitar os deuses os quais deviam honrar e prestar cultos, o que

revela a importância da realização das obrigações religiosas, exemplificadas pelas ações de

Eneias, que se manteve obediente e temente aos deuses do início até a conclusão da

epopeia. A fundação de Roma havia sido permitida pela vontade dos deuses e pelo respeito

do fundador das suas bases às divindades, principalmente aquelas que o acompanharam e o

protegeram na sua jornada, Júpiter, Vênus e Apolo. As raízes romanas estavam ligadas ao

mais piedoso de todos os heróis troianos, Eneias, o fundador de Lavínio.

Destacamos aqui os principais feitos heroicos de Eneias como fundador de cidades,

no Livro III da Eneida, bem como a importância do respeito e busca de harmonia dos

homens para com os deuses, representada pelo comprometimento do heroi com os

desígnios do fatum.

A seguir continuaremos nossa discussão com uma análise sobre como as características do

perfil heroico de Eneias podem ser trabalhadas como elementos auxiliares ao entendimento

do cotidiano dos cidadãos de Roma, no século I a. C., e mais precisamente aos cultos

públicos.

3.2. Pietas, virtus e religio: da Eneida aos cultos públicos de Roma

Eneias é um herói romano. Seus feitos heroicos se destacam no desenrolar da

Eneida e podem ser entendidos como evidências das características da moral e dos valores

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que cabiam aos cidadãos romanos cultivarem, principalmente no que tange às práticas

religiosas públicas. Ao tratar de “religião romana” devemos estar atentos que seu uso sem

uma prévia explicação pode tender a uma visão simplista desse complexo sistema de

crenças. Não estamos lidando com uma religião que possuía um conjunto de dogmas bem

estruturados reunidos em um livro, como a Bíblia dos cristãos, ou de uma forma única de

vida religiosa compartilhada por todos aqueles que se identificavam como romanos. Rosa

(2008, p.77-78) reitera que um dos maiores problemas no estudo de crenças religiosas do

passado é reconhecer que nossas ideias e atitudes são históricas e culturalmente

determinadas, e não um dado natural. “Diferentes religiões têm diferentes modos de

expressão e princípios, e o nosso próprio enquadramento religioso jamais é objetivo, muito

menos neutro” (ROSA, 2008, p.78).

A “religião romana” corresponde a uma abrangência espaço-temporal significativa e

não deve ser tratada de forma homogênea82

. Isso exige que nós tenhamos bem definidos os

aspectos, o lugar e o tempo que pretendemos direcionar nossa análise. Concentraremos

nosso estudo na cidade de Roma, século I a. C., no período de governo de Otávio Augusto e

da publicação da Eneida. Levando em consideração a mensagem da epopeia de Virgílio

sobre o nascimento de uma cidade cuja “fama há de aos astros chegar83

” (Eneida, I, 287),

tendo suas bases fundadas por um sobrevivente da Guerra de Troia, procuraremos perceber

como as características desse personagem podem ser entendidas enquanto elementos

relacionados aos cultos públicos da cidade de Roma, aos princípios da moral que regia a

vida cívica dessa cidade.

No século I a. C. o autor romano Varrão84

afirmou existirem três formas de teologia,

ciência dos deuses: a mítica; a física ou natural; e a civil (Civ. Dei VI, V, 1). A primeira

corresponderia aos jogos de palavras e ficções criadas pelos poetas, cuja função era de

causar deleite e divertir o público, mas representavam também um atentado à moralidade e

à natureza dos deuses, pois nela se atribuíam aos deuses as mais terríveis injúrias, como

roubo, assassinato e o adultério. A segunda estava ligada à atividade filosófica, muito

elogiada pelo autor romano. Ela se dedicava ao estudo da essência dos deuses, suas

82

Sobre a complexidade do termo “religião romana” ver Bondioli (2012, p. 31-44). 83

Fama qui terminet astris (Eneida, I, vv.287). 84

A obra de Varrão não chegou até nós, temos conhecimento sobre suas assertivas através das extensas

citações de Agostinho de Hipona, autor do século IV d.C., em sua obra Cidade de Deus.

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funções, qualidades, se eram eternos ou não, mas apesar do seu rico conteúdo encontrava-se

limitada aos muros das escolas, ao contrário da teologia mítica, considerada mais

“mentirosa”, no entanto, mantida livre nas ruas das cidades. A terceira dizia respeito ao que

os cidadãos e principalmente os sacerdotes deveriam conhecer e pôr em prática no

cotidiano das cidades. Estava ligada aos cultos públicos, rituais e sacrifícios que todos os

cidadãos eram obrigados a conhecerem.

Jörg Rüpke (2007, p.125-130), ao analisar as três esferas de compreensão do divino

de Varrão, afirma que elas eram autônomas e, embora não fosse uma regra, podiam

interagir. Todas elas eram consideradas visões legítimas sobre o sagrado. Além disso, não

havia uniformidade nas formas como os romanos cultuavam seus deuses, embora algumas

fossem mais aceitas que outras. No entanto, isso não significa que não existia um conjunto

de práticas religiosas características do culto público. John Scheid (2003, p.117-118)

destaca que quando nos referimos aos cultos públicos (sacra publica), de Roma durante o

governo de Augusto, devemos ter em mente que eles se estendiam ao princeps e à sua

família. A “religião da pólis” estava ligada á estrutura sócio-política, seus cultos eram

presididos por uma elite cívica, que possuía autoridade sobre as práticas religiosas e os

cidadãos. A sacra publica romana era “política e politizada”. Isso se explica pelo fato de

que seus sacerdotes eram eleitos através de votação, assim como os magistrados. A

diferença é que os cargos religiosos eram vitalícios. O colégio pontifical e o augural eram

ferramentas do Senado, só entravam em ação quando solicitados. Essa situação perdurou

até Otávio Augusto assumir o governo de Roma, visto que ele reuniu em sua pessoa o

poder de várias magistraturas, dentre elas a de pontífice máximo, membro do colégio

augural e chefe militar, que até então era vetado a qualquer cidadão.

Tito Lívio, autor romano do século I a. C., discutindo sobre seu tempo articulou a

questão da tradição e da prosperidade alertando para a ameaça da degeneração moral dos

cidadãos. Do seu ponto de vista conforme Roma expandiu seu território declinou a moral

dos cidadãos fazendo com que cada vez mais houvesse um distanciamento das tradições

ancestrais, o que representava um risco à cidade (História de Roma, Prefácio, 9). Temos de

levar em consideração no argumento de Lívio que ele escreveu em um momento

conturbado da história romana, logo após as guerras civis que deixaram o Estado em uma

situação caótica. Encontramos também na literatura essa preocupação com o afastamento

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do povo romano das tradições ancestrais. A Eneida apresenta uma narrativa sobre Eneias,

um troiano que se tornou ancestral dos romanos graças à vontade dos deuses e por ter

sempre lhes prestado culto. Essa obra pode ser entendida como uma poesia alicerçada em

questões políticas e religiosas que ligava acontecimentos contemporâneos da época na qual

foi escrita a acontecimentos passados, sobretudo, relacionados à importância dos ancestrais

romanos para a fundação de Roma e à manutenção da pax deorum.

Na epopeia virgiliana as “profecias” são uma constante, avisos sobre o futuro de

Roma apontam para a grandiosidade do império alcançada durante o governo de Augusto.

No entanto, não se trata apenas de destacar o papel desse governante, mas também de

colocar em evidência a importância dos ancestrais romanos, bem como suas qualidades,

principalmente a pietas, a fim de que os homens do presente valorizassem e adotassem para

si as tradições e qualidades dos homens do passado. Como aponta Rüpke (2010, p.230-

232), apesar de fazer parte da propaganda política do princeps ele ser apresentado como o

restaurador das “tradições romanas”, mos maiorum, esse apelo só foi possível devido à

presença permanente dos antepassados no cotidiano do cidadão romano, através de

estátuas, rituais e da literatura, por exemplo.

Coleman (2009, p.145) destaca que a missão de Eneias era levar os deuses

domésticos, os Penates, da sua pátria para o Lácio. Mas isso não quer dizer que o Lácio não

possuía suas próprias divindades. Vários deles são mencionados na epopeia virgiliana,

todos ainda adorados na época de Virgílio. Fauno aparece na Eneida como um deus local

da Itália, ele é o pai de Latino (Eneida,VII, 81); e é para esse deus que Turno reza pedindo

que o ajude a vencer Eneias (Eneida, XII, 766-779). Além disso, cerimônia de abrir e

fechar o portão de Jano já se encontrava estabelecido no Lácio antes da chegada dos

troianos (Eneida, VII, 610) e é para essa divindade, juntamente à Diana e Apolo que Latino

dirige orações no Livro XII (198). Os troianos também têm as suas próprias divindades na

Eneida. Cibele é a deusa frígia85

que no Livro IX (80-110) intervêm, juntamente com

Júpiter, para salvar os navios troianos de um incêndio causado por Turno, transformando-os

em Nereidas, ninfas do mar. Muito mais importantes são Vesta e os Lares e Penates, pois

estes são os deuses que Eneias trouxe com ele de Troia para o Lácio. Vesta aparece pela

primeira vez junto com Fides na profecia de Júpiter sobre o futuro de Roma (Eneida, I,

85

A região da Frígia correspondia a Anatólia, onde se localizava Troia.

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292), mas sua origem troiana é explicitada no Livro II (293-296), quando ela e os Penates

são confiados a Eneias pelo fantasma de Heitor.

Coleman (2009, p.146-147) observa que a presença dos Penates é frequente na

epopeia de Virgílio. Eles possuíam um lugar de honra ao lado do grande altar no palácio de

Príamo (Eneida, II, 514) antes da destruição de Troia e, uma vez confiados a Eneias por

Heitor, passam a ter o estatuto de talismã para lembrar o herói da sua missão e garantir a

sua segurança na realização desta. Essas divindades aparecem para Eneias, em uma visão,

durante a praga em Creta (Eneida, III, 148-171) para avisá-lo de que seu Destino se

concretizaria na Hespéria (Itália). Essa é a sua única intervenção direta no poema e também

a única em que são equiparados a outros deuses, visto que são reconhecidos por Eneias

pelas suas feições (Eneida, III, 174-175). Esses deuses formariam a religião da nova cidade

que seria fundada no Lácio, alicerçada na pietas do herói troiano e dos seus companheiros

exilados.

Paulo Martins (2011, p.16-17) ao analisar a pietas na sociedade romana da época

augustana afirmou que esse conceito significava a valoração das coisas, principalmente o

amor pela pátria e pelos ancestrais (Manes, Lares, Penates), associando-se ao domínio

político por ser uma das bases da política de Otávio. Vinculava-se diretamente ao termo

uirtus que designava as qualidades que um homem romano deveria possuir, como o gosto

pela prática do “bem” e da “retidão”. É um conceito bastante complexo, mas que tinha

grande importância, pois foi representado em diversos monumentos, além de ser um objeto

de culto associado a honor. Vale ressaltar ainda que em Roma não existia distinção entre

moralidade e política, pois elas se encontravam entrelaçadas nas práticas dos cidadãos.

A honor e a gloria eram termos que estavam ligados a virtus, todos eles entendidos

como conceitos políticos. Se distinguiam pelo primeiro ser um pressuposto de todo vir

honestus (homem honrado, nobre, distinto) e o segundo do vir magnus (homem de elevado

status social e político). Era digno de glória aquele que fosse amado pela multidão, pois ele

inspirava a fides, obtida pela realização de boas ações e prestação de serviços a res publica.

Isso explica a importância da divulgação da imagem das ações dos homens que

promoveram bens notáveis à sociedade romana, seja na arquitetura ou na literatura

(MARTINS, 2011, p.18). No caso da literatura romana, por exemplo, Cícero, autor do

século I a. C., escreveu sobre a pietas no seu tempo e nela encontrou a explicação para o

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sucesso romano, no seu De haruspicum responso86

, afirma que o fator militar não foi o

responsável pelo domínio romano sobre o mundo, mas sim o fato de fazerem um bom uso

da pietas e da religio87

, características próprias desse povo. Além disso, nesse texto

encontramos articulada a questão da tradição religiosa romana no cenário político do final

da República, que nos permite ter conhecimento sobre as práticas religiosas na sociedade

romana desse período. O respeito às tradições e aos cultos dos deuses são reconhecidos por

esse autor como valores que norteavam a vida dos cidadãos romanos88

.

Martins (2011, p.154-155) destaca que o culto dos antepassados ocupava um lugar

privilegiado na sociedade romana da época augustana. No ambiente da domus junto aos

manes, os ancestrais eram cultuados. Quando um cidadão notável romano morria era feita

uma máscara de cera, para que a partir dela fossem feitas outras imagens mais duradouras,

de materiais como mármore ou bronze, ou simplesmente para ser colocada junto às imagens

dos ancestrais da sua gens. Esse ritual visava preencher o vazio deixado pela ausência física

do morto no seu ambiente mais íntimo, sua casa. A máscara de cera era um objeto de

preservação da memória. A história da gens se amplificava com o acúmulo de imagens

daqueles que fizeram parte do seu passado. Esse tipo de representatio não se restringia

apenas ao espaço privado, mas podia extrapolar a domus a fazer parte da esfera pública. O

direito de cultuar imagens era resguardado aos patrícios, somente eles podiam realizar os

gentilica funera, rituais funerários públicos, se tornando a “efetiva extrapolação da imagem

privada ao âmbito público” (MARTINS, 2011, p.156).

Rosa (2009, p.78-85) ao discutir sobre a relevância da religio na sociedade romana

da época de Augusto, afirma que as estátuas e outras imagens de divindades eram, mesmo

para os mais céticos, símbolos do seu poder. Elas podiam ser encontradas em vários

lugares: as casas, domus, possuíam pequenos altares dedicados ás divindades domésticas;

no campo existiam santuários dedicados a divindades locais; nas cidades havia templos

modestos e bem adornados, os quais eram residência terrena dos deuses e locais de cultos.

86

Nesse discurso Cícero lamenta o exílio por tê-lo obrigado a se afastar da sua casa, que para ele era o

símbolo de tudo o que o cidadão romano significa, em decorrência do seu banimento de Roma decretado por

Clódio, um funcionário de César incumbido de cuidar dos interesses do ditador na cidade quando decidiu se

juntar às legiões na Gália, no ano de 58 a.C. 87

É importante destacar que na época de Cícero o termo religio não possuía a mesma conotação que na

modernidade, significava um tipo de gratidão do homem para com os deuses (FINNIS, 2011, p. 1-14). 88

Para uma discussão aprofundada sobre o De haruspicum responso, de Cícero ver Carpinetti & Corrêa

(2013, p.08-22).

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Quando falamos de "religião romana" nos referimos a uma categoria bastante complexa,

que compreende um grande número de divindades, práticas, instituições e crenças. A

religio estava entrelaçada à vida do cidadão romano, disseminada pelas domus e na urbs,

encontrava-se relacionada ao respeito e cultos das divindades, assim como aos

antepassados. A casa era considerada um santuário, lar dos Lares e Penates, onde a função

de sacerdote era exercida pelo pater familiae. Em um altar (ara) de pedra, que ficava

próximo à lareira, eram realizados sacrifícios que visavam homenagear as divindades e os

antepassados. O símbolo que melhor representava a união dos membros das gens era a

lareira, ela era o coração da domus, onde ardia o fogo sagrado, emblema de estabilidade,

imutabilidade e permanência. De modo análogo, no centro da urbs havia uma lareira

circular que abrigava o fogo sagrado de Vesta, que nunca devia ser apagado, pois enraizava

a morada dos seres humanos na terra e simbolizava a perpetuidade da res publica. A defesa

das lareiras familiares e da ara dos deuses, em muitos momentos, levou os romanos a

empunharem suas armas e marcharem para a guerra.

A “religião romana” estava diretamente ligada à cidade, se baseava na exaltação da

liberdade dos seus cidadãos, principalmente no que tange à relação com o plano divino. Os

deuses romanos não exigiam dos seus adoradores uma submissão radical a uma autoridade

religiosa. Podemos dizer que a cidade preconizava a libertas89

do cidadão, pois estava

aberta a várias formas de religiosidades. “O único "artigo de fé" da religião romana é a

libertas. A racionalidade cívica era a garantia da liberdade e da dignidade dos membros da

urbs, humanos e divinos” (ROSA, 2009, p.86). Na epopeia virgiliana encontramos

descritos alguns dos preceitos morais e das condutas religiosas que os cidadãos de Roma

deveriam possuir. Não pautamos nossa análise somente em uma visão positiva do herói da

Eneida, mas elencamos também o pesar que esse personagem sentia por ter de abandonar

tudo ao que se prendia antes e durante o exílio. Percebemos que a epopeia de Virgílio não

se trata apenas de uma obra que elogia a figura do princeps, apesar de ter sido escrita a seu

pedido, mas da relação de gratidão que os cidadãos romanos mantinham para com seus

deuses, desde antes da fundação da sua cidade. Ela mostra os sacrifícios que os

89

O princípio fundamental pelo qual a “religião romana”, pelo menos no período clássico, se baseava era a

racionalidade, que garantia aos cidadãos a liberdade e a dignidade. Logo verifica-se em todo o Império a

existência não de apenas um tipo de religiosidade, mas sim de vários, resultado, principalmente, da expansão

do seu território. Ver Rosa (2008. p.85-86).

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antepassados dos romanos, os troianos, tiveram de realizar para alcançar a glória e a

harmonia com seus deuses.

O fundador de Roma, Rômulo, descendia da gens cuja história estava marcada pela

fúria das divindades. A destruição de Troia foi resultado do desrespeito do seu primeiro rei

a Zeus, talvez para mostrar que mesmo a soberania de um monarca não era párea para a

força das deidades. Os deuses salvaram da destruição da cidade o descendente do filho mais

estimado de Zeus, Dárdano, por ter sempre honrado a pietas. Porém, foi necessário que esse

homem atravessasse mares e terras em busca de um lugar distante e desconhecido, não

profanado pela desonra aos deuses, a Itália. Nesse local os deuses troianos foram bem

recebidos pelas divindades nativas, garantindo o sucesso da nova cidade que seria fundada,

livre de tudo o que levou Troia à destruição.

Podemos dizer que o exílio aparece na Eneida como sinônimo de liberdade e de

purificação daqueles que enfrentaram os anos de desterro. Mesmo descendendo do filho

preferido de Zeus, os sobreviventes da Guerra de Troia tiveram de fazer por merecer a

salvação encontrada na Itália, enfrentando várias provações, que serviram como

aprendizado ao longo da sua viagem. A experiência do exílio, principalmente nos primeiros

anos quando vagaram pelos mares à procura de um espaço para se fixar, levaram os

troianos a passarem por situações que o transformaram em um povo piedoso, virtuoso e

glorioso. Eles cumpriram suas obrigações religiosas, civis e militares, realizando sacríficos

aos deuses, fundando cidades, mesmo que elas não tenham prosperado, e indo à guerra,

conforme a descrição do próprio Eneias, no Livro III. Para nós, todos esses acontecimentos

funcionaram como exemplos caros aos personagens no desenrolar da epopeia, pois toda a

experiência adquirida foi necessária para enfrentar os novos desafios que surgiram, até a

última batalha, no Livro XII, contra Turno. Na Itália os troianos tiveram de brigar para se

estabelecer na sua nova terra. A Eneida revela assim a importância do solo, da patriae e da

vida cívica para os romanos.

3.3. Religião e cidade em Roma e na Eneida

Nessa seção nos dedicaremos a abordar a importância da patriae para os romanos da

época de governo de Otávio Augusto e da escrita da Eneida. Para isso, trataremos de temas

relativos aos rituais cívicos praticados nos ambientes públicos de Roma. De acordo com o

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Shorter Oxford Dictionary o termo cívico é definido como “adequado para um cidadão ou

cidadãos, ou ainda, relativo à cidadania, em oposição ao militar, eclesiástico, etc”. Esse

conceito foi empregado por Adam Ziolkowski (2013, p.389) para o estudo dos rituais nos

espaços públicos e privados da Roma republicana e imperial e de acordo com seu ponto de

vista essa definição teria feito pouco sentido para os romanos. O autor justifica tal

afirmativa pelo fato que nessa sociedade a vida cívica e o culto público, comandados mais

pelo Estado que pelos sacerdotes, faziam parte de um todo inseparável. Tomaremos aqui de

empréstimo a análise desse autor sobre como a religião e a política se entrelaçavam nos

rituais cívicos da capital do império, a fim de ampliar nossa discussão em torno da trajetória

política, militar e religiosa do personagem principal da Eneida, Eneias, documento através

do qual podemos identificar como essas questões estavam enraizadas na Roma augustana.

Do ponto de vista de Ziolkowski (2013, p.394-403) a cidade Antiga era a

comunidade dos deuses e dos homens, consequentemente o ritual cívico incluía elementos

culturais. Em Roma todo ato político era significativo e estava relacionado diretamente a

um ritual. Claúdia Beltrão da Rosa (2010, p.317) ao analisar a importância do solo para os

romanos no período imperial observa que um dos aspectos mais relevantes no processo de

integração política e territorial era a questão da cidadania romana. Era esperado o

reconhecimento dos deuses romanos no momento que um indivíduo recebia o direito à

cidadania romana, logo “aqueles que contavam como ‘romanos’ em termos cívicos,

também contavam como ‘romanos’ em termos religiosos” (BEARD, NORTH & PRINCE,

1998 apud. ROSA, 2010, P.317). As divindades das mais variadas instâncias, lugares,

atividades e grupos humanos, possuíam um papel de grande relevância nas relações de

poder existentes entre as cidades imperiais, desde que os homens participassem dos seus

cultos. Essa era a condição para a preservação da pax deorum, da concordia cívica, bem

como da integração das províncias, levando a uma integração dos cultos que possuíam

alguma ligação com o poder imperial. Este por sua vez era consolidado através da

construção de altares em homenagem a Roma e a Otávio Augusto e pela realização de um

juramento de fidelidade anual ao imperador (TÁCITO, Ag., 21, PLINIO, Ep., 10.35-36

apud ROSA, 2010, p.193).

Rosa (2010, p.193-194) frisa que os deuses eram uma parte integrante da urbs. O

calendário festivo designava os dias regulares para as comemorações religiosas, no entanto

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a presença das divindades não era uma garantia, pois elas respeitavam algumas leis físicas

de tempo e espaço. Sua presença num ritual não podia ser considerada certa de imediato,

por mais importante que fosse o grupo que a invocava. Era necessário que a deidade fosse

convidada a participar do ritual, de um festival ou ser testemunha de pleiteantes. Isso

implicava que os homens se esforçassem para atrair os deuses. A religião romana pode ser

classificada como uma “religião do lugar”, centrada e localizada na cidade de Roma e isso

parece ter sido um fator que dificultou a expansão dos seus cultos pelas províncias

imperiais, que eram anexadas ao domínio romano. Essa relação da religião ao solo pode ser

verificada nos mitos e nas regras que designavam o lugar ideal dos objetos de culto em caso

de sua transferência para outro local, na qual a deidade era representada pelo deslocamento

dos objetos de seu culto. No entanto, se tratando de uma religião cuja centralidade estava

em Roma, onde deuses estavam ligados a lugares e objetos específicos, exportar um culto

para outras cidades poder ter causado algumas dificuldades.

De acordo com Ziolkowski (2013, p.468-469) havia uma correlação entre o número

e diversidade de habitantes da cidade e a heterogeneidade das suas divindades, bem como

de seus cultos. Até o período imperial Roma viveu no auge da sua pluralidade cultural e

religiosa. A percepção da capital como a casa de todos os deuses contidos no imperium

romano e da imagem de todos eles como imigrantes em Roma se repetem como um tópos

da literatura divulgada a partir de Augusto. Nem os novos cidadãos, nem os imigrantes sem

cidadania romana, estavam dispostos a abandonar seus deuses e renunciar suas próprias

tradições religiosas. Eles traziam os deuses de suas respectivas pátrias (patrii di) e

necessitavam de abrigo em Roma. Além disso, comerciantes romanos e soldados levavam

constantemente para sua cidade divindades que encontraram em terras distantes. A

liberdade da comunidade para adotar deuses estrangeiros parece ter sido levada mais longe

na capital do Império Romano que em outros lugares. Da República ao Império havia nessa

cidade santuários dedicados as divindades recém-chegadas, movimento que acompanhou

seu crescimento e favoreceu o desenvolvimento de sua influência em várias regiões.

O pomerium definia a linha interna da ager effatus, um espaço demarcado pelos

augúrios a partir dos auspícios retirados do voo dos pássaros e cujo perímetro exterior, a

cerca de 6 milhas da cidade romana era simbolizado por um amontoado de pedras (Varrão,

De língua, 5.33). A principal função desses limites estava na separação das esferas da domi

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(‘em casa’, na cidade) e militae (zona de guerra). Ao exército não era permitido caminhar

no solo do pomerium, bem como a assembleia centuriata, que era um corpo de cidadãos

militarizados, às vezes chamado de exercitus (exército), seu lugar era fora da cidade, nos

Campos de Marte. Vale ressaltar que a tríade Capitolina, Júpiter Juno e Minerva, foram um

símbolo da República e, em menor medida, do Império, seu significado religioso estava

intimamente envolvidos em rituais políticos de Roma. Há quem defenda também que o

pomerium serviu como um separador de deuses romanos e estrangeiros, com apenas os

autorizados a receber culto público dentro do perímetro sagrado da cidade (ZIOLKOWSKI,

2013, p.464).

Sobre os deuses romanos Beard, North & Prince (1998, p.41) observam que é

possível fornecer um esboço do seu lugar na vida de Roma: intimamente envolvida na

atividade política e militar da cidade, eles eram vistos como forças fora da comunidade

humana com a qual o homem podia negociar e se comunicar através de regras, tradições e

rituais. As atividades dos líderes da cidade em nome dela não deviam ser realizadas em

negociações e ações conjuntas com os deuses, assim a benevolência divina foi essencial

para o sucesso do Estado. A história de Roma, em outras palavras foi determinada pelas

ações de homens e deuses em conjunto.

Uma parte fundamental da relação entre homens e deuses era a realização de

sacrifícios. Muitas das informações sobre esses eventos foram obtidas através de vestígios

arqueológicos e da literatura. Em algumas ocasiões o animal que seria sacrificado era

testado e verificado para garantir que era adequado, por isso era preciso o controle sobre a

escolha do sexo, idade e cor, em relação à divindade homenageada e a ocasião em questão.

Depois de uma procissão para o altar e dos ritos preparatórios era realizada uma oração na

qual o destinatário divino era nomeado. Em seguida, a vítima era “consagrada” com vinho e

uma refeição colocada próxima a ela. Sua morte deveria ocorrer por um único golpe, suas

entranhas eram examinadas pelo haruspice, que verificava se os augúrios eram favoráveis,

o animal era então cozido e comido pelos adoradores. Se o exame mostrasse sinais

desfavoráveis o ritual era repetido e outras vítimas poderiam ser sacrificadas. Todo o

processo era conduzido de acordo com regras e tradições, qualquer erro ou infortúnio, a

vítima fugir ou lutar ou as entranhas caírem no chão, por exemplo, era considerado um mal

presságio (BEARD, NORTH & PRINCE, 1998, p.36).

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No Livro III da Eneida encontramos referências sobre a importância da manutenção

da pax deorum através da realização de sacrifícios de animais. Em vários dos lugares onde

Eneias e seus companheiros aportam são realizados esse tipo de ritual em homenagem aos

deuses, principalmente para Netuno, Apolo, Júpiter e Vênus, os principais protetores desses

homens ao longo da epopeia, em busca de bons presságios. Na Trácia, Eneias funda um

povoado chamado Eneia, mas reconhece que ele não foi abençoado com prósperos

auspícios (Eneida, III, 16-17). A ausência de boas previsões divinas significa que essa terra

não renderia bons frutos, mas mesmo assim os troianos exilados insistem em ficar nessas

paragens até o momento em que recebem um segundo aviso para saírem da ilha90

. Em

Delos, quando os troianos se preparam para partirem em direção a Creta realizam novos

sacrifícios, em altares dedicados aos deuses Netuno e Apolo imolam um touro para cada

um desses deuses (Eneida, III, 118-119), buscando a proteção dessas divindades ao longo

do seu percurso. Mais à frente, quando aportam na Ilha das Harpias os troianos sacrificam

touros e cabras em homenagem aos deuses (Eneida, III, 219-224). No Ácio, onde

participam dos jogos ilíacos, realizam rituais de sacríficos em homenagem a Júpiter

(Eneida, III, 278-279). Percebemos nessas passagens a relação de troca que os homens

possuíam para com os deuses, além do destaque às deidades protetoras do Império,

principalmente Júpiter, o pai de Rômulo, fundador de Roma, e Vênus, a mãe de Eneias e da

gens Iulia, que desempenhavam o papel de guarda da linhagem que daria origem aos

romanos ao longo da epopeia, pois no decorrer da narrativa são mais enfatizados.

Os deuses, em especial Júpiter, Vênus e Apolo, interferem na vida dos exilados de

Troia através de aparições, oráculos e em fenômenos da natureza, guiando-os até a Itália e

promovendo vitórias nas batalhas que enfrentam no desterro, principalmente, conforme eles

se dedicam a seguir seus conselhos e oferecer-lhes as devidas homenagens. Na Eneida os

deuses não interferem apenas nos assuntos relacionados à religião, eles interagem com os

homens em várias instâncias do seu cotidiano, como a guerra e a política. Foi pela garantia

dos seres divinos que Eneias se tornou o líder dos sobreviventes da guerra de Troia, são

eles também que os protegem durante as tempestades e guerras causadas também por

interferências dos imortais, mais especificamente por Juno. Na epopeia virgiliana questões

90

Enquanto fazia uma caminhada pela ilha, encontra o corpo de um dos filhos de Príamo, Polidoro, que

adverte Eneias para que fuja dessa terra o mais rápido possível, pois ela estava condenada a destruição, tal

como Troia (Eneida, III, 37-46).

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religiosas, políticas e militares se entrelaçam. A obediência de Eneias aos deuses demonstra

a importância da observância religiosa dos romanos como garantia da manutenção da pax.

Além disso, essa poesia enaltece o passado glorioso de Roma, marcado pelos sacrifícios do

herói que levou sua pátria, deuses e compatriotas de Troia á Itália abdicando da sua própria

vontade, principalmente de morrer lutando na Guerra de Troia e de se fixar em alguma das

ilhas pelas quais aportou durante o desterro, como aconteceu em Cartago, onde encontrou o

amor da rainha Dido. Tudo isso em beneficio da vontade dos deuses e da missão que lhe

deram de fundar as bases de um futuro império. A Eneida traduz a possibilidade de

reestruturação de uma cidade, mesmo após um período de caos – no caso de Troia, através

da sua transferência para a Itália, e da Roma augustana, através da pacificação promovida

por Otavio Augusto ao fechar os portões do templo do deus Jano, inaugurando o período de

pax.

Os sacrifícios que os troianos exilados realizaram em homenagem aos deuses

podem ser vistos como forma de promover a transformação de um espaço anteriormente

alheio ao seu conhecimento em um espaço conhecido e experienciado, pela busca de bons

auspícios. O exílio na Eneida é uma experiência com o divino. Os troianos em todo o seu

percurso, descrito no Livro III, se deparam com situações que testam sua fidelidade aos

deuses sempre partindo, de onde encontram terra firme para repousar ou encontrando

ambientes hostis, são levados pelos presságios divinos a seguirem para outras paragens. A

deusa mãe, Vênus, Júpiter, Apolo e os Penates são os guias dessa viagem e Eneias é o

intermediário entre essas deidades e os seus compatriotas. O herói troiano pode ser

interpretado como uma representação de Otávio Augusto, que guiara seu povo ao “século

de ouro”, mas também como o próprio povo romano, um incentivo para que este último se

reconhecesse como descendente do herói piedoso de Troia, sempre cumpridor da vontade

dos deuses, prestando-lhes homenagens nos tempos mais difíceis, assim como nos mais

prósperos, defensor dos Penates e do respeito para com seus pares.

Encontramos representados na Eneida os princípios que regiam a relação dos

homens com os deuses, amalgamados nas relações politicas e militares. A vida cívica da

Roma augustana era pautada na realização de rituais públicos e privados que visavam

manter a pax deorum, garantindo assim os sucessos militares e políticos. Os poetas da

Antiguidade romana, entre eles Virgílio, foram responsáveis pela propagação de modelos

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de comportamento social entre os cidadãos, criando uma ideologia sobre os valores morais

instituídos não somente pelos seus trabalhos, mas também e, principalmente, pelo meio no

qual se encontravam inseridos. A fonte literária se revela para nós como um importante

acervo documental sobre essas questões, pois se encontra impregnada de interpretações e

preocupações próprias de seu tempo.

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Considerações finais

Acreditamos que a Eneida é uma rica fonte de estudo sobre a história de Roma, do

século I a. C. Quando questionado sobre a importância da Eneida nos dias atuais, em

entrevista realizada por ocasião da sua recente tradução da epopeia, Paul Veyne não

esconde a sua admiração por Virgílio. Para o historiador e latinista francês, o poeta romano,

como homem patriota e amante da ordem, queria dar a Roma o equivalente do que era a

Ilíada para os gregos: “uma origem mítica, uma lenda de fundação” (VEYNE, 2012). A

Eneida, aos olhos de Veyne, “é um romance de aventuras, rápido, nervoso, cujo poder

evocativo é incrível”, por isso, Virgílio poderia ter sido o autor de um filme de ação, porque

sua obra fornece “dezenas de aventuras em ritmo frenético” (VEYNE, 2012). Não apenas

Veyne, mas outros autores chamaram a atenção para a força poética e a construção

narrativa admiravelmente bem realizada por Virgílio. Mas os historiadores também, nunca

deixaram de ler a Eneida como uma rica fonte de estudo sobre a história de Roma, do

século I a.C.

Nesta pesquisa, procuramos demonstrar como a experiência, transformação do

espaço e fundação de cidades na Eneida articulou três elementos ligados à sociedade

romana, a política, a religião e a vida cívica, pensados a partir da relação entre mythos e

memória no mundo romano, dentro e fora da epopeia. Tentamos demonstrar aqui a

viabilidade desse estudo na interpretação de como se dava a relação dos romanos com o

espaço que a cidade abrangia e como o culto desta, ligado ao sacrifício que os antepassados

romanos enfrentaram para fundar as bases do império pautava-se na ideia de obediência aos

deuses demonstrada por Eneias e seus companheiros de exílio.

Tentamos mapear na Eneida a configuração que o principado augustano deu ao mito

de Eneias não só na literatura, mas também na estatuária, especificamente na Ara Pacis,

onde a imagem emblemática do herói e seu filho, Ascânio, se preparando para a realização

de um ritual de sacrifício em homenagem aos Penates, aparece em um dos painéis que a

compõem. Otávio Augusto buscou divulgar sua imagem como descendente da gens do

fundador das bases do Império Romano e na epopeia virgiliana essa relação foi explorada

nas profecias que os deuses realizaram sobre o futuro de Roma e os descendentes de

Eneias. Essa conexão entre o nascimento de Roma e a gens do princeps aparece na epopeia

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virgiliana de maneira tão íntima que ambas as histórias chegam a se confundir.

Acreditamos que essa questão deva ser investigada com mais profundidade. O tempo

imposto para a realização desse trabalho não nos permitiu dar mais ênfase a essa questão,

por esse motivo nos limitamos a uma observação mais disponível no capítulo I.

Foi uma de nossas principais preocupações problematizar a Eneida como

documento histórico. Diante de uma tradição literária sobre o personagem principal da

Eneida, Virgílio produziu um poema singular, mais que uma continuação dos eventos

narrados na Ilíada. A epopeia virgiliana apresenta sua própria abordagem sobre o papel do

herói, que ao contrário daqueles que foram cantados nos poemas homéricos, Aquiles e

Odisseu, não era um vencedor, mas um perdedor. Na Guerra de Troia sua cidade foi

destruída, sua esposa foi morta, assim como o rei a quem jurara fidelidade e muitos outros

compatriotas. Apesar disso, era filho de uma deusa, Vênus, que não o abandonou durante o

exílio, o auxiliou e protegeu em vários momentos. Tendo sido amparado também por

Júpiter e Apolo. Procuramos avaliar como o mito de Eneias se encontrava entrelaçado a

duas tradições, a grega e a latina, com o objetivo de problematizar como Virgílio se

apropriou de uma personagem que já havia feito parte de outros poemas para construir seu

perfil, de acordo com as especificidades necessárias para tratar de questões romanas,

principalmente relacionadas à interação entre homens e deuses.

No Livro III da epopeia virgiliana a narrativa traz à tona a importância da

rememoração do passado mítico de Roma e principalmente dos seus antepassados,

fundadores das suas bases. Eneias relembra episódios que marcaram sua viagem de Troia à

Cartago, na qual seu pai Anquises desempenhou o papel de guia do heroi, bem como de

interprete das previsões divinas até o momento da sua morte, ressaltando assim a

importância da obediência aos homens mais velhos, principalmente se este fosse membro

de sua gens. Percebemos, no decorrer da narrativa do personagem sobre seus primeiros

anos como exilado, que este adquire, nas provações que enfrenta, um conjunto de

características que delineiam a sua personalidade como herói, desenvolvida nos episódios

dos Livros seguintes.

Fundador de uma cidade, Lavínio, que nasceria livre da condenação dos deuses que

levara Troia à destruição, principalmente no que se refere ao desrespeito da linhagem de

governantes pertencente à gens de Príamo aos pactos selados com os deuses. Eneias é o

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heroi piedoso, seguidor do fatum, que realiza sacrifícios em honra aos deuses, mas também

um líder político e um guerreiro que pega nas armas para defender seu povo quando

necessário, tal como observamos no episódio da ilha das Harpias. As provações que Eneias

tem de enfrentar no percurso de Troia à Itália podem ser entendidas como garantias que os

deuses teriam de que o líder escolhido não cometeria os mesmo erros que os reis de Troia.

Isso nos leva a pensar sobre as questões políticas e religiosas ligadas à vida cívica

da cidade de Roma, durante o principado augustano, quando o princeps buscava se afirmar

como imperador utilizando-se da valorização dos antepassados romanos e das suas

tradições como uma das ferramentas para a legitimação do poder. A religião nesse período,

conforme destacamos no capítulo III andava de mãos dadas com as questões referentes ao

Estado. Mas, isso não significa que o herói da Eneida seja apenas uma metáfora da figura

de Otávio Augusto. A nosso ver Eneias trazia em si características que deviam fazer parte

também da conduta dos cidadãos de Roma, herdeiros de Eneias. O respeito aos

antepassados e às tradições religiosas, a manutenção da pax deorum e a proteção da cidade

nos tempos de guerra não eram tarefas apenas do princeps. Sendo assim, compreendemos

que provavelmente o perfil de Eneias foi elaborado por Virgílio como símbolo da

coletividade, do compartilhamento de uma memória que exaltava a história dos

antepassados dos romanos, cuja conduta deveria ser considerada como exemplo para os

cidadãos. Mesmo se tratando de um texto que certamente não chegou a todas as camadas da

sociedade, a trajetória de Eneias narrada na Eneida foi divulgada de várias formas, como na

estatuária e na numismática, outras importantes fontes de estudo da história de Roma.

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