PROSA DE VIDA

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PROSA DE VIDA - Conglomerado de frases, vago areal de palavras – de José Eduardo Lopes Contactos: Mail ([email protected] ) Url ( http://caminhoarduo.blogspot.com/ )

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PROSA DE VIDA - Conglomerado de frases, vago areal de palavras –

de

José Eduardo Lopes

Contactos:

Mail ([email protected])

Url ( http://caminhoarduo.blogspot.com/)

O elefante branco

O Natal é bonito, tem cores e vida, o Natal é para as crianças que fazem birra

por uma PSP ou um MP3 quando os pais na sua idade se contentavam com um

jogo de escadas e cobras ou um vestido novo para a boneca sem nome, o Natal é

a festa da família, abrangendo com isso os constrangimentos e sensibilidades

em relação ao sítio e à facção da família escolhida, e a convivência com alguns

familiares que podem coroar o espírito natalício com uma guerra de pedras, o

Natal é para o repasto, para perus embebedados antes e depois da festa e crostas

de açúcar nos dedos e o arrotar azedo a leitão ou bacalhau, o Natal é para os

hipermercados que fecham às 23 horas, ainda vibrando com uma orgia de

compradores com cio que se endividam até ao Natal seguinte, o Natal também é

para os que odeiam o Natal e que ficam por casa, juntando a família numa noite

comum com telenovela e leite quente e torradas para o jantar, e um filme

pornográfico na estante da sala para as horas fora de horas em que as crianças

dormem e o pai natal quer entrar na chaminé

Uma pessoa que escreve, absorto, num lugar público, é sempre olhada com

alguma estranheza, como um anormal. Está para ali, quieto, em vez de ler um

jornal ou desenferrujar a língua ou descascar amendoins num banco. Não é

realmente normal que se esteja quieto e não se esteja ali, vagando e divagando

através da forma e do teor das palavras, não é de todo normal ou aceitável que

se esteja imóvel como uma erva daninha numa escarpa, com as raízes à procura

do alimento oculto entre as rochas ásperas.

O cheiro, a velas e a flores, no velório fala-se de tudo, do preço das coisas, das

histórias sórdidas e infames desta e aquela família e, porque as pessoas estão ali

a varar a noite, fala-se da vida daquele que morreu, que a sua alminha em

trânsito agradece e porque tinha tanto para dar e muitos anos pela frente mas

morreu e é a vida. Duas velhas chicham e cochicham ao pé de mim, com o terço

a repousar no regaço das suas saias pretas, cheiram mal, entre a lida da terra e o

mercado não devem tomar banho há muito tempo. Uma conta à outra uma

história, vaga e bruxuleante como um mito urbano, sabe-se de alguém que

contou que ouviu que alguém viu e contou porque é coisa certa...Uma família de

emigrantes ia partir de férias para o nosso país, e uma parente disse-lhes: "Que

Deus vá convosco!", e o condutor, um homem de quarenta anos orgulhoso e vil,

lhe respondeu: "Só se for na bagageira do carro, que o carro vai cheio". E não é

que o carro tem um acidente na viagem e morrem todos, o carro fica todo

despedaçado à excepção da bagageira que fica milagrosamente intacta. O terço

volta às mãos piedosas das velhas, rezam qualquer coisa em surdina, e a

conversa reata-se a amaldiçoar o orgulho das pessoas que era a sua perdição. O

tal condutor deixa de ser uma personagem incerta e equívoca, passou a ser tão

real como o morto que estava morto, e como aquele homem sentado diante

delas, que no desprendimento daquela hora tira macacos das narinas largas e

peludas, que aquilo era um nojo e ele era bem capaz de dar uma resposta

idêntica à do condutor. É no condutor que me detenho a pensar enquanto as

velhas o arrastam no seu auto-de-fé - real ou imaginário ele deveria ter algumas

qualidades, ou não conseguiria levar uma família inteira de viagem no carro e

ainda guardar algum espaço livre na bagageira.

Algumas pessoas têm o privilégio de ser adultos com a infância por perto, os

lugares onde brincaram, os familiares ou vizinhos com quem compartilharam

epopeias pueris, o recanto no sótão da casa com a mala de madeira carunchosa

que guarda os seus antigos brinquedos como um baú do tesouro. Nunca soube o

que era isso, fui um exilado de muitas formas, a minha infância decorreu a

milhares de quilómetros daqui, num país de um outro continente, uma terra tão

diferente desta em que vivo que as suas formas e cores se constituem em

paisagens irreais e trémulas como as de um planeta distante. Mas isto não é um

lamento. A minha infância reencontro-a nalgumas poucas pessoas, na alvura

antiga dos seus olhos cansados, e nas memórias que a divagação e a escrita

afloram um pouco como a escova de um arqueólogo enquanto escava. E as

memórias são em grande parte, sensações, vívidas experiências. Por vezes, um

travo ou um aroma, uma música ou uma voz, resgatam momentos do princípio

mítico do mundo em que tudo se encontrava túrgido de poder e sentido, sem a

mínima suspeita da sombra pesada que acaba por nos amortalhar a nós e ao

mundo.

Apesar de termos entranhada na nossa cultura, a saudade e a culpa da vida em

contacto com a natureza, a cidade consegue seduzir por caminhos misteriosos

quem vive nela de uma forma ou de outra. Na “utopia” de Huxley, o “Admirável

Mundo Novo”, as pessoas eram condicionadas a amarem a vida cosmopolita: os

bebés de colo eram colocados diante de canteiros com plantas, arbustos e flores

e, de cada vez que tentavam gatinhar para elas era-lhes administrado um

pequeno choque eléctrico, de forma que associavam a natureza à dor e cresciam

felizes e contentes por viverem apenas nas suas cidades ideais. Se tivéssemos

uma civilização exclusivamente citadina, talvez não fossem necessários

processos tão dramáticos. O que nos condiciona no bom sentido, a gostar de

viver numa cidade é a concentração de recursos e opções, e a sua extravasante

riqueza e heterogeneidade humana. E cada cidade tem uma geografia e uma

identidade própria que molda o modo como lidamos com ela, o amor ou o

desamor que nos faz sentir. Nalgumas são as pessoas ou o núcleo histórico ou os

espaços verdes, noutras é o modo como se dispersa e espraia pelo relevo ou a

proximidade refrescante do mar ou de um rio. Em quase todas é à noite que a

cidade é mais cidade, sob a luz do néon e das estrelas as pessoas podem

metamorfosear-se, mudar de máscaras, libertar as fragrâncias e os miasmas dos

seus delírios e demências pessoais, correrem riscos a coberto da noite e da

penumbra. Por antítese, a madrugada é o tempo de uma quase redenção, de um

emergir contrito e é, talvez, a hora mais bela de uma cidade. A luz descobre ruas

e casas de cara lavada, por onde as poucas pessoas deambulam com um pé

ainda nos seus sonhos e pesadelos nocturnos. Enxugaram-se as lágrimas,

calaram-se os risos, lavou-se o pus, o sangue e o sémen, as ressacas têm poucas

horas ou minutos para serem curadas, e o lixo até já não está mais ali. A vida

retoma os seus encadeamentos e rotinas. Os polícias que olham criticamente os

poucos refractários nocturnos como se preparassem a cidade para a visita

cerimoniosa dalgum alto dignitário do Estado ou da Igreja; as bancas dos

mercados onde se expõem as frutas e verduras e os peixes de um cor metálica,

os quiosques onde se espreitam as gordas dos jornais, as lojas de vidros

embaciados onde ainda há tempo para mirar um pouco os artigos e os preços, e

as cafetarias com os seus cheiros deliciosos e os seus sons característicos. Só por

essas horas iniciais do dia, antes do caos de sons e pessoas nas ruas, sentimos

como muito nossa a cidade de todos: criatura promíscua, que é mais bela

adormecida sob os raios radiosos da manhã, do que desperta no leito nocturno

enquanto nos concede os seus favores.

A minha primeira casa não era diferente de todas as outras casas, quartos e

salas e cozinha e banheiros como todos os quartos e salas e cozinha e banheiros,

com portas de aros de madeira e corredores de penumbra, havia um quintal

grande como tantos quintais, tinha mangueiras altas e frondosas como poderia

ter limoeiros e salgueiros, e um relvado sobranceiro à grande papaieira, por

onde passeavam gatos e cães e, por vezes, cobras esquivas. Mas não era uma

casa realmente diferente. Eu é que não era o mesmo, diferente dos outros e

diferente de todas as outras pessoas em que me transformei ao longo dos anos e,

nesse sentido, a minha primeira casa, como o meu primeiro avatar, não tinha

nada com que se comparar.

«Centímetros e polegadas não, que aquilo é maior do que eu. Metro, hectare,

jarda, légua, milha, pés...Sinto um buraco dentro de mim, um vazio, grande,

imenso, tão grande que não sei com que medidas o possa medir...»

Tudo está interligado, há uma unidade subjacente a tudo, do sistema filosófico

urdido durante décadas à momentânea caganita da mosca. Mas isso é algo

exterior a nós, um fantasma ao luar que nunca chegamos a ver. Para compensar

e dar repouso e quietação ao espírito, embarcamos na generalização. Usamos o

"todos" e o "sempre" e abarcamos uma fatia do Universo, se o usarmos

regularmente, o universo é uma tarte deliciosa em fatias pronta a ser devorada e

digerida. Nada mais reconfortante. Peguemos numa generalização em voga: "o

rosto das mães pode ser diferente, mas o seu coração é sempre igual". Uma frase

de grande beleza, e para aí metade de um dos géneros humanos entra no

balanço. E, para bem da nossa paz, não devemos contaminar uma demonstração

tão sublime com historietas pessoais que pecam por serem reais, nem com as

notícias feias sobre crianças recém-nascidas largadas em contentores do lixo.

«Estou divorciado da poesia» confessou o poeta-publicado-na-tenra-juventude-

que-nunca-mais-escreveu-a-porcaria-dum-verso «A poesia já não é para mim.

Amo a poesia dos outros, a nostalgia que tenho de quando os versos se

formavam em mim como um paciente trabalho de amor. Acabou simplesmente.

Foi chão que deu uva. Cá dentro só tenho ossos e terra crestada em torrões,

donde nenhum néctar podia provir»

O passado dá-nos lições que atiramos para trás das costas como uma mochila

cheia de livros na corrida para as brincadeiras do recreio. Podíamos ser mais

prudentes e ponderados no modo como enfrentamos os dias, mas talvez não nos

divertíssemos tanto.

(Felizmente, não temos dono, não temos pátria nem patrono. Vivemos neste

árduo abandono de estarmos entregues a nós mesmos, içados às alturas da

nossa ambição, despenhados nas ravinas dos nossos erros e má-sorte).

Lusitânia paixão

Compra-se mercearias, fuma-se um cigarro, outro lê o jornal falando pelo

telemóvel com a mulher enquanto espera que a amante chegue, amanha-se um

quadradinho de terra, tecla-se num teclado comungando solidões, encrava-se

nos dentes o gume da unha para desalojar um fio de bacalhau, arreia-se o calhau

na berma da estrada adubando arbustos, e o emprego que não salta dos

classificados do jornal e o trabalho que não rende e a mercadoria que não se

vende. Caraças. Encolhe-se os ombros, um lusitano encolher de ombros. Vamos

vivendo assim, até que alguém nos diga, como é que se deve viver.

Como se fosse um verso

Suspenso de mim, mesmo quando durmo, a suspeita sem fim de que dormimos

com o mundo tacteando as trevas em busca do sonho, segregando textos e

pretextos que o alcancem por nós. Vivendo em mim, latejando como um

pequeno coração de serpente, a íntima suspeita de que morreremos procurando

nesta estrada de sal, descarnados pelo alvo calor com o sonho a luzir diante dos

nossos olhos como um Graal escarnecedor

Usamos, gastamos e malbaratamos as palavras em associações contorcionistas e

alucinadas acreditando que inventamos uma nova língua quando na medula de

tantos romances e poemas, as palavras são muito poucas e muito poderosas -

como amor, ódio, corpo, morte, desejo, deus, adeus, sonho... Por precisar de

tantas palavras, nunca nos entendemos uns aos outros.

Andamos prá aqui a fazer peso à Terra, pisando e pisoteando a sua pele, às vezes

esgravatamos, desfiladeiros, galerias de minas e covas fundas de onde os mortos

não regressem. A Terra não se queixa, gueixa complacente, aceitando a nossa

cópula e mastigando os nossos corpos como uma fêmea de louva-a-deus.

Reencontro

Pétala esmaecida, o teu rosto antes liso e belo apresenta-se agora macilento e

marcado por rugas. Mas os teus olhos, Senhora! A tua juventude refugiou-se nos

teus olhos que luzem como um perpétuo alvorecer, refúgio da Fénix prestes a

renascer.

Carapaça

Aluga-se uma casa. Ela foi-nos cedida, e ficamos a viver ali tomando de

empréstimo o halo e a energia da casa, as palavras, risos e lágrimas que

revestem as paredes. Somos desconhecidos e absorvemos os fantasmas da casa,

através dela, outras pessoas e outros dramas entram na nossa vida e emergem

durante o sono. A casa apropria-se de nós quando, na nossa inocência, ainda

olhamos para ela como algo exterior e concreto, como uma roupa, que iremos

abandonar quando deixar de nos servir ou estiver fora de moda.

Diante do mar num dia de Inverno, com um Sol inesperadamente quente, como

uma promessa primaveril. O mar está agitado e as gaivotas evoluem sobre o

areal. Passa-lhe pela mente que as gaivotas são felizes, irmãs do Sol e das ondas

numa comunhão franciscana. Mas, depois, cai em si. As gaivotas não são felizes,

são apenas gaivotas, pássaros estúpidos. Seriam felizes se pensassem e

sentissem e soubessem o que a felicidade é, seriam felizes se fossem pessoas,

com dois braços e duas pernas e asas na proporção do seu tamanho e do seu

peso. Mas se tivesse essas pessoas voadoras a planar diante de si, nem lhe

passaria pela cabeça que pudessem ser felizes: pássaros disformes e

monstruosos evoluindo nos ares com a graciosidade duma baleia numa piscina.

Confissão

Sou de um outro mundo, mas vivendo adaptado a este com uma excelência

darwiniana. Vivo positivamente para o bem comum, trabalho e sustento o

Estado e a nação, venero os deuses e as mentiras que a sociedade considera

úteis, sorrio e cumprimento e peido-me segundo os ditames dos manuais de

etiqueta e boas maneiras. Mas não é este o meu mundo, o meu mundo é

anárquico e volátil, com céus e terras que se mesclam e planícies de cinza

vulcânica onde esgravato com as mãos ossudas em busca de palavras que sinto

impossível ignorar, como um pequeno predador à cata de presas fugidias. É esse

mundo e essas palavras que me impedem de enlouquecer.

Restelo

Um Oceano por cruzar. A barca espera-nos, embalada no regaço das ondas. Há

muito tempo que a barca nos espera, e nós ainda ali, presos à dúvida e ao medo,

como ferro armado na pedra do cais.

«Socorri-me de um espanador para sacudir o pó de teologias e sistemas

filosóficos senis. No resto, servi-me de utensílios distintos: uma vassoura de

giestas para o lugar-comum boçal e prepotente, uma vassoura de piaçaba para

as tretas familiares que impregnam o nosso pensamento, uma vassoura de

ramos para a sapiência bovina dos bem-pensantes, idolatrados até quando

semeiam bosta. Agora, podem chamar-me doido varrido, mas comecei a pensar

por mim mesmo».

Adiamos manhãs confiados na estendida extensão dos caminhos e nos

momentos e sentimentos volúveis que espalhamos às mãos-cheias como o

semeador dos quadros de Van Gogh, esquecidos do ideal urgente e do pungente

amor que tarde nos arde cá dentro, como um nascituro moldado com cinzas

Em Babel, onde as línguas se confundiram, construíram-se os Jardins

Suspensos.

Sobre o caos e a desordem, as suas flores eram flores de silêncio.

O ciclo fechou-se, o destino simultaneamente enganador e escarnecedor está

consumado, o adolescente sonhador que acreditava no amor converteu-se no

jovem que o julgava ter encontrado numa mulher diferente de todas, agora,

essas ficções consumiram-se, e sobreviveu-lhes o homem portador de sonhos

residuais e incómodos, firmemente decidido a não mais sonhar ou esperar, e ser

apenas o animal conveniente, vivendo para as suas necessidades orgânicas e

imediatas.

Verdade parcial

É relativamente fácil cativar uma criança, o seu coração está mais perto da

superfície, não existem represas gigantescas nem tortuosos labirintos. Quando a

criança cresce, muitas vezes demasiado cedo ou demasiado depressa, a coisa

complica-se, ela cruza batalhas onde é ferido ou poupado mas onde tem sempre

de procurar armas e saber dissimular-se, lutar ou responder de alguma forma.

Entre o coração e a pele formam-se camadas sucessivas de escamas ou couraças,

como uma coroa de pétalas de uma flor metálica fechada, ocultando e

protegendo o interior fecundo. Num dado passo e em muitos casos, só se

consegue chegar ao coração com um bisturi e a pessoa deitada numa mesa de

operações.

Romantismos

Numa relação, a mentira enverga sempre trajes seráficos e doces, parece

inofensiva e atrai, até se revelar na sua verdadeira natureza, como uma áspide

oculta num berço vazio.

Fora de horas

Esta cidade, a esta hora da madrugada, ainda hiberna, ronrona como a arca

frigorífica deste café, guardando coisas no gelo que uma mão impiedosa

arrancará do seu repouso. A esta hora esta cidade está quieta e espera, digna e

solene, como aquela sanita branca que se divisa pela porta do W.C. que não vê a

hora de lhe cagarem em cima.

Mediocridade

Falta-nos essa coragem de loucos, para avançarmos em diante e queimar as

pontes através das quais chegamos até aqui, de varar os barcos numa praia

desconhecida e destruir-lhes as quilhas, forçando-nos a enfrentar o destino.

Mantemo-nos sensatos e prudentes, tímidos nas nossas atitudes e cuidadosos

com as palavras, não vá abalarmos o eixo do mundo e fazer o céu desabar sobre

nós.

Saudade

Alimentei as minhas memórias, doando ao seu coração morto sangue das

minhas veias, e soprei ar dos meus pulmões dentro dessa garganta putrefacta,

erguendo-a pelos braços enquanto se desfazia. Inútil o alimento das

recordações, subtraído e roubado à força que nos mantém vivos.

Mundo sublunar

Num futuro próximo, as nossas imobiliárias venderão lotes de terreno para

construção na Lua. Se hoje as urbanizações e empreendimentos têm

imaginativos nomes poéticos como Fonte dos Corações ou Encosta das Tílias

Murmurantes (sic), os agentes imobiliários dos terrenos na Lua já têm a

papinha toda feita. Já existe o Mar da Tranquilidade, não muito longe do Mar

da Serenidade, e os mares da Sabedoria, da Fecundidade, da Inteligência, do

Néctar, das Nuvens, das Chuvas (!). Entre as ditas Baías (Sinus), existe a Baía do

Amor, da Harmonia, do Arco-Íris e do Orvalho. Também existe um Oceano das

Tempestades e um Mar da Serpente, que, por motivos comerciais, poderão ser

designados pelos seus nomes latinos, plenos de musicalidade (Mare Anguis e

Oceanus Procellarum). Para quem for mais dado a erudições de pacotilha, as

crateras oferecem imensos nomes à escolha, de gente histórica e imaginária,

deuses e filósofos, sábios e exploradores. Podemos comprar aí uns hectarezitos

para construir uma casa de campo ou simplesmente fazer campismo, e termos o

gosto de telefonar aos nossos primos na terra a dizer que moramos no país de

Ísis ou Arquimedes, e que não há nenhum sítio como aquele para caçar umas

lebres e pescar umas trutas

Dionísio

Um prosador deve ser organicamente criativo, o seu constrangimento é não se

conter, as suas palavras não podem ser castas e recolhidas como se tecessem

opas de irmandades, devem derramar-se como ambrósia ou diarreia e aspergir

as cabeças dignas como umas gotinhas de água benta ou umas cuspidelas de

saliva profana; discretas e comedidas como a bicha solitária ou o bico-de-pato

do ginecologista, arrumadas em verbetes de dicionário como o gato no cantinho

ao pé da lareira onde devorou os seus donos. Não ter pudor é o seu pundonor

o asfalto molhado parece um rio sob as estrelas, no alpendre do bar contamos

histórias, histórias de noitadas e rios de cerveja, as palavras cheiram a cevada e

nicotina, cevam-nos de memórias esquecidas e bizantinas, coisas sem

importância no lugar de coisa nenhuma, mesas pejadas de canecas vazias e

cascas de amendoim, urinóis entupidos onde as cinzas dos cigarros dançam no

mijo alcoólico, o balcão alto da tasca do Mendes onde a puta bêbeda tentava

trocar broches por copos de vinho de pressão, o desespero do Marcelino, a quem

as bebidas faziam lamentar-se e prantear como um viúvo inconsolável, a dor de

corno do Marcos, a quem a namorada trocou por um pastor evangelista

abstémio e onanista. Histórias atrás de histórias. Tantos foram os seres

arrastados para longe por estes rios de alcatrão

Na noite profunda ecoa o riso da hiena, da quizumba, matando a sede no balde

sob o pingo-pingo da torneira do quintal. Vejo que é mais do que uma, figuras

peludas rodando sob a sombra das árvores enluaradas, os olhos chamejam de

encontro à luz. Ouço novamente aquela risada arrepiante, como de uma velha

louca, depois vejo surgir das trevas a silhueta enorme do nosso mainato,

António, que grita para as hienas enquanto brande uma vara, sem qualquer

assomo de medo. As hienas retiram-se, confusas. Pensei que estivéssemos livres

delas, mas vejo a silhueta duma recortar-se das trevas e aproximar-se de

António com passos curtos até se imobilizar à sua frente, a uns dois metros,

como se medisse forças, mas bate em retirada logo que ele faz a vara flagelar o

balde. António vê-me de rosto colado ao vidro da janela e acena alegremente

antes de se eclipsar nas sombras. Cessou o riso das hienas, e o silêncio repleto

da noite africana toma o seu lugar.

O torto direito à diferença

(Um POUCO de abnegação e sacrifício, alheamento e indiferença. Custa apenas

um pouco, conseguirmos reger-nos fielmente pelos padrões que a sociedade

construiu para si mesma, respeitar os tabus, venerar os ícones, servir os

imperativos sociais e económicos, pensar e urinar dentro das normas e

comedimento desejáveis. Sufocado o sonho e o inconformismo dos primeiros

anos, esboroadas as torres de babel das nossas utopias pessoais, arrumamos

propósitos e sentimentos quixotescos em arquivos mortos e vampirizamo-nos

gradualmente, agindo em conformidade com os demais numa peça estranha de

personagens artificiais e anémicas).

Message in a bottle

"Não me conformo com o que morre. Que as coisas vivam tenuamente como

num sonho, sob uma luz breve e perecível. Procuro o imutável e o absoluto. A

verdade que permanece, a beleza que não se esvai, o amor que se prolonga por

toda a vida e para além dela, o poema que não termina nunca. Deixem-me com

as minhas utopias, levem convosco os dias que passam insentidamente, os

amigos desaparecidos, os mortos e os que morreram em vida, as catedrais a ruir,

as paixões sem solução. Levem daqui as vossas dúvidas e o vazio das vossas

certezas, as vossas vidas nominais e o medo que vos impede de as frutificar.

Neste mar que me cerca encontrarei a minha ilha eterna e radiosa, a Atlântida

oculta defendida por rochedos e névoas eternas, onde me será permitido nascer

novamente e viver para sempre".

Escondemos livros por ler, encerramos capítulos com um gesto altivo, e a nossa

memória borra passagens e trechos com a eficácia de um censor. Disto não

gosto, nestes dias perdi uma pessoa que amava, noutros humilharam-me e

colocaram sobre a minha nuca a patorra do desprezo. As nossas histórias fervem

cá dentro com as suas personagens dolorosas, estraçalham-nos como a quilha

de um navio entre uma nuvem de medusas. Obrigamo-nos a esconder tudo isso,

a dor de tudo isso, virar costas à pira de livros malditos e arrostar a vida com a

vazia dignidade de uma paz exterior.

Depois dos mísseis inteligentes, os cientistas ao serviço das grandes potências

inventaram a bomba inteligente, capaz de redireccionar a sua queda por meio de

correcções de trajectória conseguidas com o emprego de flaps rotativos e

descargas de ar comprimido. A bomba inteligente foi construída para deflagrar

na exacta posição geográfica determinada previamente, e possui um mecanismo

para se auto-detonar quando essa meta não é possível. Isso evita que ela caia

sobre residências civis, escolas e hospitais, humanizando a guerra. Infelizmente

para a criação de uma mortandade de cavalheiros, as grandes potências que

empregam os cientistas chegaram ao dado estatístico objectivo que determina

que uma só bomba inteligente é mais dispendiosa do que cem comunicados

oficiais a lamentar o derramamento de sangue originado por bombas acéfalas, e

atribuir as baixas civis a factores imponderáveis como a intensidade do vento ou

o obstinado nomadismo de residências civis, escolas e hospitais.

Descia pela avenida ao entardecer, na trégua de um aguaceiro pesado. À minha

frente, a alguns metros, um caniche muito branco vagueava por entre os carros

estacionados. Segui distraidamente a evolução daquele animal felpudo que se

enfiava debaixo dos carros e reaparecia por entre as rodas. Tinha coleira e o que

restava de uma trela vermelha. Deixei de o ver e, caminhando sozinho no

passeio, abri o jornal desportivo que trazia comigo para espreitar os destaques

da primeira página. De súbito, assustei-me com um rosnar junto à minha perna,

o caniche estava ao meu lado, irado por eu o ter sujeitado ao pisar-lhe a trela. O

seu pelo branco contrastava com o sangue seco que lhe manchava a boca e o

focinho.

Pitagórico

Quando aquele minúsculo país da Ásia Menor nasceu, há cinco ou seis séculos,

os seus fundadores achavam que não se devia comer favas porque isso tornava a

alma pesada, impedindo-a de migrar depois da morte física. As leis dos

fundadores consignaram essa proibição, as instituições que criaram

preservaram as leis, e o sistema político desenvolvido salvaguardou a

perenidade das leis e instituições. Chegados ao século XXI, a pena de morte e a

tortura política eram toleradas, as mulheres viviam num regime de semi-

clausura, e ninguém se atrevia a comer favas, homens ou mulheres, porque isso

podia atrair sobre eles a prisão e a tortura, senão mesmo a morte. Morte, a que

não davam muita importância desde que a alma pudesse voar.

Lamento

Não tenho nenhuma conta off-shore na Madeira. Tenho sim, uma lavandaria

automática às moscas, e muita experiência e conhecimento na lavagem e tintura

de tecidos e todo o tipo de materiais. Mas, até hoje, ninguém veio até ao meu

pobre estabelecimento propor que eu lavasse dinheiro ou branqueasse capitais.

No espaço exíguo das nossas dependências e conveniências sociais, tentamos

ser tolerantes, condescendentes e politicamente correctos. Damos aos outros

toda a liberdade de existirem e exprimirem-se, em nome da harmonia social, da

felicidade da nação e da continuidade da espécie. O tramado é que, mal tiramos

a cabeça da carapaça para emitir uma opinião ou manifestar o nosso desprezo

por alguma coisa, cai-nos em cima a Igreja do Carmo e a Santíssima Trindade.

Logo em nós é que o mundo há-de andar concertado como no poema do

Camões, e se somos bem capazes de aguentar com a igreja, e com o Pai e o Filho,

que são dois bacanos, não há tolerância que justifique a irritação causada pelas

penas cagadas do pombo.

As coisas já não têm o peso que tinham, como as palavras, andávamos com elas

a custo como uma bandeja de esculturas de vidro e que se manuseava com

extremo cuidado com luvas e máscara para não as contaminar, as coisas foram

adquirindo partículas de anti-matéria no caprichoso equilíbrio sub-atómico da

matéria, estão mais voláteis e desaparecem, como as palavras, atraiçoam-nos e

negam-se a cumprir os fins que lhes destinávamos, como as palavras, andam

arredias dos nossos pensamentos e estranhas à nossa preguiça de as encontrar,

como as palavras, onde as coisas se embebiam de qualidades e valores.

Melancolia

O espírito debate-se sem forças, dilui-se em emoções de apatia e indiferença, e a

tristeza alastra-nos no peito. Aquilo que vemos dia após dia parece cada vez

mais amalgamado e confuso, uma névoa densa absorve os contornos e os limites

a ponto de não vermos o nosso próprio caminho. O limiar do desespero pode

estar em qualquer lado.

Esta é a tua casa no meio de um jardim cuidado, com paredes altas e

coloridas e janelas quadradas ornadas com cortinados de nuvens. Quem olhe de

fora essas paredes admirará a beleza e o seu ar acolhedor de lar e refúgio. Mas

para ti, é como se essa casa não tivesse interior, e a parede que a individualiza

do mundo fosse apenas mais um muro, de qualquer lado que olhes pelas

janelas, nada encontras de pessoal ou diferente, são detalhes e formas que

poderiam estar inseridas em qualquer paisagem ou lugar, das fotos das revistas

às planícies da superfície lunar.

De tempos a tempos apetece-me mudar de casa, sair por aí com todos os que me

são caros e remontar o circo em outras paragens, ou andanças. Cansa-me a

geometria indissolúvel das esquinas e tectos da casa, as paredes aprumadas

abicando aos cantos, as manchas antigas sob a tinta nova, os aromas de gato

velho nos sofás fechados. Olho e volto a olhar, e a casa não se molda a mim,

como uns sapatos apertados ou um fato de aluguer, até as lombadas dos livros

nas estantes, que costumo olhar como a um álbum de família, parecem-me

intrusos pouco à-vontade, não sabendo como me pedir um copo de água ou uma

soma de dinheiro. Fico por aí, emburrado, imaginando o suavizar das linhas e as

divisões cúbicas a tomarem formas esféricas e alveolares. Mas só me liberto

dessa cela irreal, quando ouço alguma voz amada, ou escrevo para ninguém

fixando palavras no vazio que permeia a seda da teia.

O tesouro

Tenho comigo, guardado numa caixa, um pequeno bloco de notas onde

escrevi os nomes e contactos de amigos meus – colegas de escola e

companheiros leais para o resto da vida. E como esse bloco, existem muitos

outros onde gravei o meu nome e telefone.

Todos nós, amigos verdadeiros requisitamos cuidadosamente esses detalhes

para não nos perdermos de vista, no nosso grupo existia a promessa velada de

que nada seria mais forte do que a vontade inabalável de nos reencontrarmos.

Tenho comigo, encafuado numa caixa, um pequeno bloco de páginas

amarelecidas pelo tempo

Ciclo

Uma folha larga cai de uma árvore, espiralando na brisa, ao atingir o solo

transforma-se num colibri iridescente que se ergue sob o seu olhar até se

fragmentar em fotões de luz, que os seus olhos absorvem, e correm no sangue

como a seiva das árvores, até transmitir aos seus braços o intoxicante delírio de

voar.

Explicação

É muito verosímil que tenhas um sósia algures, vivendo os teus sonhos, amando

a mulher que não conseguiste ter por namorada, gozando o êxito e o

reconhecimento que sempre te foi negado, as riquezas e os luxos que

desconheces. Esse sósia é igualzinho a ti, tem as mesmas crostas nos cotovelos,

os mesmos joanetes e o mesmíssimo sinal de nascença no peito do pé. Quando

pensas nisso, não há nada de improvável. O que é chato, como um chato nos

tomates, é que esse cabrão nunca tenha tido a decência de trocar de papéis

contigo, nem que fosse só por uma semana, para tu experimentares por algum

tempo o que nunca vais conhecer nesta vida.

Campanha

"Barbear é um prazer"

Depois do G2, G3 e G4, a Gravette anuncia o lançamento de uma nova lâmina

de barbear, a Gravette G10, comercializada depois de sete anos de

aperfeiçoamento e exaustivos testes de laboratório.

As dez lâminas da G10 proporcionam um corte perfeito de maior duração, que

deixa a sua pele macia e rosada como a nádega de uma virgem.

As duas primeiras lâminas acariciam a ponta do pêlo para evitar traumas

epidérmicos, as duas seguintes puxam-no para fora, as outras três cortam-no

com suavidade, as duas lâminas seguintes fecham a abertura do poro e, a última

lâmina, dá umas palmadinhas na pele para evitar aquela sensação de pele

irritada.

A lâmina G10 é a companheira ideal para a sua pele

O mundo apaixonante do origami, mil e uma formas em papel. Casas, ursos,

sapos, dragões, borboletas, casamentos, obrigações, contratos. É um mundo

fascinante, modelos intricados de dobragens que produzem um efeito final

assombroso, tudo elaborado a partir de uma folha inerte de papel. Quando se

alisam as dobras, quando se desfaz o que se construiu, quase nos custa a

acreditar que houvesse ali qualquer coisa, fosse um jumento de papel, fosse um

casamento.

A Nasa alertou para para o crescente aumento de sucata no espaço ciberal.

Fragmentos de antigos foguetes, satélites desactivados, latas de Coca-cola,

fotografias esquecidas, textos órfãos, sites eternamente em construção, simples

e sumário lixo. Um estudo prevê a construção de uma nave-transportadora que

recolha esse lixo para o reciclar, convertendo gases como o metano resultantes

da sua decomposição em biogás para utilização energética, como acontece agora

com o esterco dalgumas pecuárias.

RE: opinião sincera

Caro João:

Pediste-me por mail uma opinião sobre uma nova ideia de negócio que tu

imaginaste. Sabes que podes sempre contar comigo, dei-te muito dinheiro a

ganhar com os negócios na Bolsa e é um prazer continuar a ajudar-te. Vejamos.

Uma cadeia de casas de chá com o nome de "Tamisa Square", decoração de

requinte com detalhes vitorianos, uma pequena biblioteca anexa que servisse de

sala de fumo, empregados com roupas exóticas a servirem chás e bolachas,

alguns dias temáticos com, por exemplo, leitura de poemas de Byron ou Shelley.

Amigo João, estou certo que a ideia pode vingar, mas em vez de criares uma

casa de chá atrás de outra casa de chá - o que é muito cansativo - aconselho-te a

levares os outros a ter esse trabalho, ou sejas, crias um englishising e esperas

pelos interessados.

Cordialmente

Este teu criado

J. M.

Agrilar

(Há lugares a que se chama, levianamente, lar. A casa onde ainda vivemos, a

terra madrasta onde nos deram á luz, o redil de velhos para onde os nossos

filhos nos atiram, no seu soberano interesse. O lar não é um lugar por acidente,

circunstância ou degredo, é onde nos sentimos chegar como se nele tivéssemos

nascido novamente. Se não alcançarmos isso, não pervertam a palavra, dando-

nos castigos com o nome de lar).

História das religiões

No coração da casa, presta-se culto aos deuses Lares, os espíritos protectores

do lar e da família. É por norma num ponto de mudança de plano cósmico que

se situa o seu altar, num nicho junto à lareira ou junto à principal conduta de

água da casa, nunca na ala ou quarto reservado a hóspedes, que o poderia

contaminar. Nesse nicho, guarda-se num cofre fechado as relíquias ou símbolos

dos deuses Lares, um cofre que só a matriarca da família pode abrir, como sua

sacerdotisa privilegiada. Entre os elementos que constituem esse acervo

sagrado, são uma constante: uma bíblia, um pouco de haxixe, uma caixa de

Prozac, um vibrador, um par de algemas, um cartão American Express e os

incontornáveis bilhetes para a estrela pimba do momento. É a sacerdotisa dos

deuses Lares que determina quais os objectos que são empregues e em que

ocasião, para harmonia dos espíritos e dos corpos.

É uma chatice ser Outubro, ainda ser Outubro, tento ler um pouco, ordenar

ideias, e o Sol todo o dia a bater com força no vidro da janela aproveitando a

ausência temporária das nuvens. É uma recriminação meteorológica, como se

me dissesse: “O que estás aí a fazer, encafuado na caixa como o bolor nos cantos

escuros”. Mas não quero saber se faz Sol, ou se há pessoas nostálgicas que vão a

correr para ao pé do mar para recordarem a praia dos dias quentes e os amores

e desamores ungidos com areia da praia, ali debaixo do Sol também há corvos

que debicam nas vísceras do cão atropelado na estrada, e gente que caminha sob

a luz magicando lugubremente sobre a forma menos dolorosa de se suicidar. É

uma chatice haver chatice, e não ter vontade de fazer nada senão estar chateado,

que a culpa é do Outubro e deve pesar sobre outro ombro. Pela janela vejo os

vizinhos que regressam do seu passeio dos tristes, e apetece-me escarnecer, e

perguntar pelo que resta do cão morto e pela ambulância do INEM à frente da

casa soalheira do suicida.

Canso-me de ver os dias pelos seus olhos de máscara, são duas covas fundas

onde a luz se espirala e é absorvida como em duas covas ou buracos negros,

acredito que deve existir outra coisa mais, um estremecer de pálpebras, retinas

luminosas, nervos ópticos, visões filtradas que correm para uma mente

longínqua como um salmão subindo a correnteza com saltos enérgicos. Canso-

me de ver os dias como se os meus olhos fossem olhos de vidro e os dias um

espelho baço, que se ri de mim e do meu cansaço.

Campanha de Regresso às Aulas

Os TRUNFOS da nossa Campanha:

- Participe na revolução tecnológica. Vá para as provas com um telemóvel com

Internet e Messenger.

- Cursos técnicoprofissionais: inscreva-se nos nossos cursos técnicos

ultrapassados e viva á frente do seu tempo.

- Se está licenciado e a exercer uma profissão estranha ao seu currículo, como a

de carteiro ou pintor de construção civil, progrida para o doutoramento para

subir de categoria na carreira que abraçou.

- Se não vê grandes saídas para o curso que escolheu, temos um protocolo

firmado com a Agência de Viagens Abré, para você poder tirar uma

especialização em Nova Iorque, Londres ou Colónia.

- Se o dinheiro é um problema para a sua carreira académica, adira às benesses

do nosso cheque-educação: nós pagamos-lhe os estudos e você só tem de nos

pagar o dinheiro adiantado quando já estiver plenamente inserido no mercado

do desemprego.

Segundo Ciclo

"Houve um tempo em que eu era convidado para casamentos, inúmeros:

amigos, colegas de trabalho, camaradas da tropa, antigas namoradas. A seguir,

começou uma outra fase em que me convidavam para os baptizados dos filhos

deles, isto espaçado em meses ou anos, e lá ia eu ver os putos a apanhar com um

bocado de água gelada na cabeças redondas e nos vestidos brancos de folhos.

Depois a coisa acalmou, anos e anos de Mar de Sargaços sem brisa nem

corrente. Por estes últimos tempos (não que me convidem), tenho ido aos seus

funerais, de que sei pela necrologia dos jornais ou pelo disse-que-disse dos

vizinhos e conhecidos. A coisa está a ficar um pouco deprimente e acho que vou

começar tudo de novo. Vou começar a ir às reives (não sei se é assim que se diz)

e arranjar umas namoradas de vinte anos, a ver se volto a ser convidado para

casamentos".

?

Uma linha sinuosa como o princípio de uma espiral infinita. Ela curva sobre

os limites do mundo e estonteia-se, abandona a sua força centrífuga e

desvanece-se no desconhecido, nada mais restando dela do que um destroço

como um átomo ou fotão perdido, um pequeno ponto isolado e solitário no meio

do vazio, esperando e ansiando por respostas.

Outonais

1

No meio de um parque um velho caminha trôpego, uma calça de fazenda

desbotada, uma camisa de xadrez, um colete velho exibindo as costuras

desfiadas. Traz um saco de plástico na mão, atado, carrega talvez com um

bocado de pão seco ou um sonho velho. E pára, a contemplar as copas das

árvores durante longos minutos, que o tempo já não lhe foge, e depois retoma o

seu andar alquebrado. À sua volta, todas as árvores e objectos mantinham as

suas formas esmaecidas, gastas pelo olhar do velho. Já não havia nada ali que

povoasse a sua desolação.

2

No parque, nas margens da relva e sob as árvores, os velhos caminham com

passos novos, leves, de crianças que temem fazer peso ao mundo. Os jovens,

esses calcam a terra com cega confiança, como se quisessem usar a sua energia

para abrir a cova dos seus sonhos sem futuros.

Confiança. Estamos suspensos sobre a aniquilação, confiantes de que nada nos

acontecerá. Seria demasiado cruel que algo de horrível nos acontecesse. Que

toda a confiança que alardeamos fosse uma atitude ditada pelo medo enquanto,

a passos largos, o nosso fim caminha ao nosso encontro.

3

Contemplo a forma quase-fóssil de uma folha seca de tília e escrevinho num

bloco de notas, uma letra nervosa e sobressaltada, que corre como um riacho

breve de águas pluviais, um absinto sorvido com ânsia; esta letra irregular e

quase ilegível deambula por entre as linhas rectilíneas como um homem sem

casa cruzando sem nexo as ruas de casas de portas trancadas.

4

Só me faltava aparecer isto pela frente! Árvores sem raízes e de tronco largo

oscilando ao sabor da mínima brisa, pássaros nascidos sem asas, procurando

nervosamente a segurança dos ramos muito altos, e um gato esfomeado

capturando os pássaros saltitantes com o seu bico pardo.

(Parque D.Carlos I, Caldas da Rainha)

Não tenho comigo os meus pertences, deixei-os onde os encontrei, nas

páginas de um livro de poemas e nos dias luminosos de uma infância feliz, nos

primeiros e patéticos amores (que não saberíamos viver sem eles) e nos

caminhos titubeantes do desejo, nos movimentos graciosos da minha amada

que ergue os braços para prender os cabelos no alto da cabeça como uma Maja

ou uma pintura de um vaso grego, a frágil ameaça da cabeça do meu filho

recém-nascido que a minha mão ampara, trémula. Não tenho comigo os meus

pertences, pertenço-lhes, e no meu ar despojado de pedinte, tenho todas as

riquezas que poderia pedir.

O livro cinzento

Fundamentos da Filodoxia

A filodoxia, a inclinação para a aceitação das opiniões correntes e dos ditames

do senso-comum, exige do filódoxo, uma atitude mental adequada e um

conjunto de preceitos úteis. Eis alguns deles:

- O que se diz, o que se conta, o que se ouviu contar, tem de ter um fundo de

verdade ou ser, simplesmente, A verdade. Se serviu para os outros, também

serve para nós e não há à partida motivos para se estar em estado permanente

de alerta e cepticismo.

- As opiniões prevalecentes são, em regra, as únicas opiniões válidas, porque

são aquelas que correspondem ao nosso tempo, tal como em outras épocas

históricas havia outras pessoas com outras opiniões e crenças. Deve-se, por isso,

ter respeito e concordância pelos que criam ou emitem as opiniões, sejam

intelectuais, políticos, sacerdotes ou cronistas de revistas cor-de-rosa. Daí

decorre, que o que se ouviu falar de um livro, de uma exposição artística ou de

um novo desporto, é de vital importância e deve ser assumido por nós,

poupando-nos o esforço de ler esse livro ou de assistir a essa exposição ou a esse

desporto, o que é muito útil porque há demasiadas coisas a acontecer ao mesmo

tempo e não conseguimos ir a todas.

- A filodoxia é a melhor disciplina para quem deseja estar inserido na sociedade.

O importante é agirmos, vestir e falarmos adequadamente, em conformidade

com aquilo que a maioria das pessoas pensa disso; e assim conseguimos, com

algumas adaptações, integrar-nos em qualquer ambiente e situação, vivendo em

harmonia com os nossos semelhantes e ser uma referência pessoal no bairro

onde vivemos e no quotidiano do nosso emprego. O filódoxo é o melhor

representante do politicamente correcto. Em casa (porque aí, ele é soberano),

pode agredir a mulher ou o cão, ter proibido a filha de namorar com um negro,

ou insultar qualquer muçulmano que apareça na televisão; mas nunca, em caso

algum, será conivente ou sancionará situações dessas fora de portas, nem o

ouvirão empregar com outras pessoas, palavras de mau gosto como “vaca”, “bin

laden”, “chinoca” ou “escarumba”.

- O filódoxo deve manter reservas e suspeitas sobre as pessoas que procuram ser

muito diferentes, ou que criticam demasiado ou fazem muitas perguntas. Se não

querem ser parecidos connosco, não podem ser boa rês.

- Por último, o filódoxo deve sempre aceitar e concordar. Se as coisas lhes

parecerem estranhas ou contraditórias, deve seguir a única via possível: não

pensar nelas.

As necessidades do nosso espírito são a sua própria carta de alforria. O poder

estabelecido, o fanatismo e a ignorância tendem a ver todas as coisas de uma

forma reducionista e monocromática, sem cambiantes nem diferenças. No

entanto, a nossa espiritualidade insatisfeita pode e deve procurar respostas

onde quer suspeite existirem, em diferentes tradições religiosas ou esotéricas,

em contextos éticos, filosóficos ou artísticos, em obras narrativas ou poéticas,

até mesmo, na desprendida reflexão introspectiva, desligada da letra morta dos

tratados, bulas e teses.

Fogo-fátuo

(Carregamos com os nossos pertences e ausências, guardados em nós como

amuletos ou tumores. E acabamos por escrever profusamente sobre as mesmas

coisas de sempre, como lobos furtivos na fera noite circunvalando as presas

protegidas pelo halo misterioso de uma fogueira irreal).

Estação

Os primeiros dias de frio e nevoeiro. Já se consegue ir a uma praia sem

parecer que estamos a entrar numa Arca de Noé, adivinha-se o cheiro das

castanhas e o início do período escolar que vai dobrar a esquina na montra

consumista do Natal. O Antunes da mercearia, que só aceitava dinheiro vivo

porque os cartões multibanco são clonáveis e as notas sempre se escondem, já

começou a aceitar dinheiro plástico e cheques, visados ou olhados. Está a chegar

o tempo das vacas magras em que se vai comer o tutano dos ossos, e o Antunes

já retirou os bronzeadores da montra e, numa recuperação milagrosa da sua

simpatia, já cumprimenta a todos de igual forma, aos turistas e aos indígenas.

O mundo tem essa coisa obscura que são as línguas mortas como o latim está

morto e frio nenhuma boca ou língua acelera o seu sangue já não sabe o que é a

fome a saudade ou o desejo e é uma estátua sagrada no seu jazigo venerado de

onde irrompem línguas de fogo como as línguas de fogo dos apóstolos da

palavra que falam em tantas outras línguas que animam e enrubescem as

inflexões e palavras da língua defunta. Porque está morta os presbíteros tiveram

a ideia maquiavélica de rezarem com ela a missa sagrada que não era para os

vivos perceberem a língua dos mortos era apenas para perpetuar a memória de

um morto ilustre e para isso tanto fazia a língua estar viva ou morta que aos

carneiros apenas se pede que tenham o pêlo farto e saudável e estejam quietos

na hora da tosquia ou que não se mexam muito quando se virem esfolados e

suspensos do gancho do carniceiro.

Dos males do mundo, nada há de mais intenso para unir duas pessoas do que

a morte de uma terceira pessoa, sobretudo, se ela estava no meio. No caso de

uma vala colectiva, a ordem é comutativa e arbitrária. Ou no caso dum mega-

acidente ferroviário em que os corpos retalhados das vítimas ficam misturados e

ensarilhados no metal das carruagens.

Projecção

Retira-se da armação um globo terrestre. Não convém que seja dos luminosos

porque, senão, temos também de retirar a luz de dentro do mundo, depois,

descobre-se a junta na chapa e alivia-se com a ponta de uma chave de fendas,

correndo ao longo do friso até ele estar todo levantado e o globo soltar um

estalido no momento em que fica desmontado. Em seguida, usando um maço de

borracha, para não arrancar a tinta dos países e do nome dos países (que isso

seria uma coisa muito aborrecida), vai-se batendo na chapa, alisando-a mais e

mais até perder a sua forma esférica e ficar apenas ondulada e irregular. Para

acabar, temos de prensá-la. Podemos colocar a chapa no chão e, sobre ela, o

tampo de uma mesa pequena, sobre o qual damos alguns pequenos saltos para

exercer a pressão necessária. Se o trabalho ficar em condições, obtemos um belo

planisfério.

Há seres que existem apenas ancorados no seu corpo ausente, temem

a dor lancinante, o prazer que dilui, o frio, a chuva

na pele, o calor sudado entre lençóis,

o raio ultra-violeta e o raio-que-o-parta. Encolhem-se como se procurassem

ser de novo um feto enroscado no ventre materno, ou quisessem vegetar

fetos no dorso de uma cova funda. Andam a medo

como se não coubessem dentro da pele,

mortos em carne-viva.

A fobia de agora

Deixem-me aquilo que ninguém quer, a noite profunda no bosque onde só as

larvas e os bichos se agitam, a língua de mar entre penhascos intransponíveis, a

areia conchífera que os nossos pés nus temem pisar, a carcaça de um frigorífico

alvejando na berma da estrada, a andorinha em voos ritmados no longo

entardecer, os girassóis esguios orbitando num baldio entre caniçais, a urze

vigorosa na encosta pedregosa da montanha. Dêem-me o que mais ninguém

quer, e eu forjarei um mundo sem mais ninguém.

Vitamina c

O nosso vocabulário exíguo e pomposo usa palavras graves e grandes como

amor, amizade, existência, para interpretar uma pintura naturalista de duas

botas rotas esquecidas num monturo sob uma chuva ácida e laranja exsudada

pelos fumos de um complexo industrial.

Progresso

Com um compasso, um esquadro e uma régua T, tentou transpor para o

papel a geometria volúvel do balançar de uma árvore na brisa. Não conseguiu à

primeira. Lançou mão a todos os recursos da geometria e da matemática, a leis e

regras, projecções e trigonometrias. Á segunda já tinha alcançado alguma coisa

para começar: o desenho laborioso de uma folha examinada ao microscópio.

Verbo

(e no princípio era a palavra, a palavra em que se embrionaram galáxias, que

gerou mundos e quedou muda. No princípio era a palavra, e a palavra vive em ti,

nos silêncios dourados da tua pele, nos poros salgados que a minha língua

procura, na húmida perdição dos teus cálices)

Testemunho

partiste

dei-te as coordenadas

sulcaste os mares com a tua barca,

acreditando nesse portulano de quimeras

Não me culpes

se a ilha for uma miragem. e aportares

numa Índia absurda, rescendendo

a especiarias extraídas

das sementes da dor

Olvido

#Verso:

- "Está quieto, não corras tanto!"

- "Não sujes a roupinha. Ah, porquito! Só sabes é mexer na areia e na lama" -

"Sempre a querer trepar às coisas. Não quero saber do Darwin, tu não tens

nenhum macaco na família!".

#Reverso:

Os dias da infância eram de plenitude, não havia limites nem fronteiras para o

que se podia fazer. A paisagem seca africana era túrgida de recantos e domínios

por explorar. As margens arborizadas do pequeno rio onde íamos a pretexto

pescar, acabando por dedicar o tempo a cobóiadas ruidosas, e simulacros de

batalhas campais com bambus como espadas e folhas de bananeira a fazer de

escudos, isso, quando não finalizávamos a brincadeira com acrobáticos

mergulhos num duvidoso açude de águas esverdeadas. Nesses passeios era

comum avistarmos alguma cobra serpenteando perto de nós e, por vezes,

alguma tímida gazela que perseguíamos como se a conseguíssemos apanhar. As

árvores e as alturas eram outra atracção. Subir sempre mais alto, trepando e

saltando de ramada em ramada, com a pele dos braços e pernas a esfolarem-se

aqui e ali contra a casca rugosa do tronco e dos ramos. Quando chegava a época

das chuvas, escapulia-me para o exterior a brincar com os meus irmãos e alguns

rapazes das vizinhanças, reencenando as nossas brincadeiras sob uma chuva

intensa, juntando a elas o arremesso uns aos outros de mangas semi-podres que

se desfaziam no embate. Outro dos nossos truques era fazer pequenos diques de

terra nas valas por onde se escoava as águas pluviais, deixava-se encher e,

quando a chuva pausava, corríamos a mergulhar naquelas águas como numa

piscina privativa.

Mas tudo isso, sempre com os mais rigorosos cuidados com a saúde e a

higiene, e sem cair no descalabro de nos sujarmos ou estragar roupa e calçado.

Peixe fresco

Aquele beijo não nasceu nos lábios, vinha mais de dentro, da laringe ou da

faringe, trazia os miasmas de uma refeição mal digerida, e os folículos de pele

seca que se haviam formado na garganta de tanto engolir em seco, na boca

recolheu uns fios de carne podre pendurados dos dentes, nos dentes uns

resíduos de sangue seco de morder a boca. Da língua o beijo não herdou nada.

De tanto se passear pela boca asséptica, perfumada e elixirizada da sua

namorada, estava mais limpa do que um linguado ultra-congelado.

La cuña

Uns nascem em berços de ouro, outros em berços de palhinha ou em berços

industriais de maternidade de Hospital. Para ele, cujos primeiros meses neste

mundo eram uma incógnita, não saber qual tinha sido o seu berço, era uma

lacuna.

Miguel dixit

Uma citação. De Miguel C. , um amigo de bom íntimo, maltratado e

amarfanhado por algumas pessoas mesquinhas e pelos reveses da vida. O seu

lema é este, e cito com a devida vénia: "Quando uma pessoa tem sorte, diz-se

que ela nasceu com o cu virado para a Lua. Mas eu, que não tenho sorte

nenhuma na puta da vida, devo ter nascido com o cu virado para o caixote do

lixo".

Contra-corrente

Em pleno estio desejou as chuvas de Março, a vizinhança gelada da geada,

beber um chocolate quente junto à lareira no lar recolhido dos dias curtos,

sentiu a nostalgia de estar confinado e em torpor, profundo e meditabundo.

Num ímpeto, semicerrou os estores de toda a casa, ligou o aquecimento central

e deixou-se ficar em banho-maria numa banheira cheia de água fria, ouvindo o

rumor do aquário grande da sala como o eco dissipado da chuva longínqua.

Enquanto ali esteve adormentado, ninguém o compeliu a exteriorizar-se, a fruir

do Sol, da música, dos livros e da alegria, a beber cervejinhas em esplanadas ou

passear-se pelas ruas de comércio nas noites amenas com um sorriso fotogénico

num rosto bronzeado. Era um parvo alegre e feliz, cruzando o seu instantâneo

Inverno com pele de galinha.

pleniluz

a corda do relógio estava a acabar, puxara por ela procurando

só mais uma experiência sublime, o nascer

de um filho, uma sensação de plenitude,

uma paixão sem concessões, mas a corda chegava ao fim.

enrolava-se em torno da sua impotência em abraçar

esses momentos últimos, esfacelava as suas mãos

enrugadas, negava-lhe a vida que ainda sentia

como sua, uma íntima labareda

solar alumiando

as ruínas frias

Pandora

Decidiu deixar de ver televisão. Era demasiado atrofiante, e roubava-lhe

tempo para as coisas que eram realmente importantes. Ao fim de uma semana

de se privar da caixa mágica, não conseguira ler nenhum livro, nem conversar

com os amigos, estudar um poema, brincar com os filhos ou passear pela

natureza. Era difícil fazer qualquer dessas coisas, sentado diante da televisão de

olhos fechados.

Cabeça maciça oval numa liga metálica dourada, sem orelhas e sem nariz mas

com uma antena helicoidal no alto, uma boca rectilínea projectada apenas para

libertar os sons e palavras articulados, uns olhos em losango onde parecia luzir

uma absurda nostalgia mecânica.

Este era, em poucas palavras, o seu retrato-robô.

Telhados de vidro

Depois do repetido fracasso do Projecto Biosfera, os cientistas desenvolveram

o Projecto Blogosfera. Dentro de uma gigantesca cúpula de vidro recriaram-se

múltiplos ecossistemas terrestres com animais e plantas e, no meio deles, hot

spots onde os bloggers seleccionados desenvolveriam a sua actividade criativa. A

escolha fora aleatória e naquele grupo de pessoas estava reunida uma fértil

diversidade de pessoas, crenças e modos de vida.

Para evitar novos fracassos, a vida dessas pessoas e de todos os organismos

que as rodeavam foi rigorosamente monitorizada, enquanto se faziam testes e

estudos exaustivos. Tudo começou por correr bem, a renovação do ar e do lençol

freático subterrâneo, a saúde de pessoas e animais, as modulações e intensidade

da luz ambiente.

O que os cientistas não haviam equacionado, foi o factor humano. Um só

blogger representa um tal índice de vaidade e egocentrismo que pode causar

danos colaterais graves nos organismos que o rodeiam. Com tantos bloggers

num espaço restrito e hermético, criaram desequilíbrios energéticos

irreversíveis. Os sistemas vitais começaram a entrar em colapso, até que, numa

fase extrema, a pressão causada por tanto amor-próprio fez estilhaçar o vidro da

cúpula.

Vi um velho muito velho vestido de negro, sentado a olhar os comboios com

um olhar sombrio. Um velho como o do Restelo. Mas sem revolta. Está à espera

que chegue a morte.

Também nós somos velhos na nossa resignação. Mofando num cais. Olhando

apenas quem parte.

Cansado de tarifários manhosos e publicidade enganosa? De zonas sem rede e

lugarejos sem uma caixa Multibanco e sem a porcaria duma tomada onde ligar o

carregador?

Adira ao POMBONE, o seu serviço de pombos-correios.

Sem tarifários rígidos e sem carregamentos obrigatórios

Adira até Setembro e receba de oferta o Pombrex, um estojo de limpeza para

remover as caganitas de pombo dos tecidos e objectos da sua casa

De boas-vontades está o Inferno cheio. Os falsos piedosos, a oca gente

virtuosa, os demagogos, os vendedores de evangelhos. Todos eles juntos,

lotaram o Inferno.

Os outros, os assassinos e os cruéis, aguardam no Purgatório com o nome em

listas de espera. Que vague um condomínio no Inferno, ou, pelo menos, um

recanto quentinho e acolhedor que justifique o que pagaram de sinal.

Ultra-kafkiano

Depois de Kafka escrever "A Metamorfose" em que narra a odisseia de um

homem transformado em barata, teria, segundo os seus estudiosos, a intenção

de escrever uma "Segunda Metamorfose", do tipo fabular, em que nos iria

apresentar o tormento e a angústia de uma barata metamorfoseada num ser

hediondo e repelente: o homem.

Mudar de vida

Seja um homem de sucesso!!

Inscreva-se no G.R. F.D.P.

Quando era mais novo, B.L. era o saco de pancada das miúdas rufias da escola,

os irmãos mais novos batiam-lhe, os avós insultavam-no e os pais roubavam-lhe

o lanche.

Quando ouviu falar do nosso instituto, tinha trinta anos, era gestor e estava à

beira do suicídio. B.L. aderiu aos nossos cursos de "Auto-Valorização Pessoal" e

"Descoberta de Uma Carreira Promissora", e hoje é cobrador de cobranças

difíceis no infantário do seu bairro.

Siga o seu exemplo!

Três elementos

Antes dos relógios analógicos e digitais, os relógios eram carácteres,

identidades. A ampulheta era o medidor de tempo das pessoas secas e ásperas;

ao quadrante solar recorriam os temperamentos dominadores e autoritários; e

era na clepsidra que se irmanavam os frades sem hábito, de índole cósmica e

fraterna

Do outro lado do espelho, Alice encontrou a Rainha de Copas, o Gato Mágico,

O Chapeleiro Maluco, o Coelho Branco...Mas não encontrou sinais, borbulhas,

herpes labial, cabelo estragado, sobrancelhas desiguais, carne macilenta,

gordura na pálpebra e, sobretudo, RUGAS. Daí as maravilhas.

Rascunho de anúncio

1ª. versão:

"Procuro casa perto da praia, em qualquer zona do país. Mas não uma praia

qualquer. Não pode ter mais do que uma toalha por metro quadrado, nenhum

rotweiller a lamber-nos os pés, boladas dolorosas, música pimba em altos berros

das Festas de Verão, intoxicações alimentares nos cafés marginais e preços

exorbitantes nos comes-e-bebes, muito menos, famílias obesas a grelhar

costeletas de borrego em fogareiros de carvão".

2ª versão:

"Procuro casa perto da praia, em qualquer zona do país. Pode ser para o mês

de Dezembro ou Janeiro".

O dinossauro de Monterroso.

Sabia que era apenas um animal, mas não se queria acreditar idêntico a um

bicharoco qualquer, ao dinossauro carnívoro que investia sobre as suas presas

num festim de carne ensanguentada e corpos esviscerados. E sonhou. Sonhou

que os planetas e luminárias existiam para orquestrar a sua vidinha, sonhou que

podia mandar parar o Sol, e fechar todo o Universo num livro, sonhou que era a

coroa da Criação no empíreo de uma animalidade abjecta, sonhou que era um

deus. E quando acordou, o dinossauro ainda lá estava.

A verdade não é importante, e o nosso passado é uma chaga que qualquer dia

fecha. Somos perfeitamente capazes de viver com os nossos esqueletos no

armário. O difícil é evitar o mofo que nos atrofia, e encontrar uma forma

discreta de por os esqueletos a assoalhar nas janelas e varandas.

Hoje ao pé do Tribunal, vi um maluco a falar sozinho. É um facto.

Certifico, por minha honra e minha palavra que, das dezenas de pessoas com

que me cruzei hoje, aquele era o único que eu vi a falar sozinho.

Confuso, não ter nada de importante para dizer, ter boca para falar e luz

pulsando no cérebro como um quasar, e nenhuma palavra parecer ter sentido,

merecer ser mencionada. Nossas veias não transportam sinónimos nem

metonímias, os nossos cromossomas não soletram nem associam palavras.

Estamos diante doutra pessoa, assombrados como um réptil quando sai do ovo,

prestes a sermos a mais feliz das pessoas se as palavras aflorassem, e as palavras

não surgem, e o destino se estiola no silêncio, e a solidão cava um fosso.

Confusa, a quantidade de vezes que estivemos a poucas sílabas de mudarmos

para sempre a nossa vida, e permanecemos como antes, fechados na camisa-de-

forças da nossa infelicidade insana.

O Vizir

Não prestava grande atenção ás notícias. Nunca sabia quem tinha morrido ou

nascido, que revolução incendiava cidades, que tempestade varria o Golfo do

México. Um dia viu-se nas notícias. Não gostou muito. Não o favorecia. As

roupas muito monótonas e muito brancas, as olheiras, os dedos afilados de

internauta. Depois de tantos anos a reger na sombra a Barca de S.Pedro, agora

que estava declaradamente ao leme merecia outra imagem. Não a de um

marujo, mas a de um Papa da Renascença, com roupas ricas de cores

flamejantes a contrastarem com os seus fradescos cabelos brancos, roupas que o

fizessem parecer mais novo, e tornassem verosímil as suas palavras quando

queria fazer passar a ideia de que alguma coisa iria realmente mudar, que

frescos ventos de mudança iriam desencastoar o granito do seu báculo de

Pontífice, e permitir-lhe renovar energicamente a Igreja como já vinha fazendo

clandestinamente nos últimos quinze anos, para gáudio e euforia de milhões de

católicos.

Isto foi coisa que nunca percebi. Uma criança com poucas semanas de vida. A

sonhar. Os olhos, pouco mais fechados do que quando está desperto, e a carita

macia e redonda perturbada por rictos e estremecimentos. Mas a sonhar com

quê? Nada viu do mundo, as cores ainda não existem, a luz é uma suspeita, as

pessoas são como distantes papagaios de papel. Mas sonha, por vezes ri

enquanto sonha, e sai-lhe da garganta um som primevo que prenuncia os gritos

e os cânticos de toda a sua vida. E enquanto se contempla uma criança que

sonha, um vago temor e um trémulo devaneio amanhecem em nós

Na Heráldica do teu espírito. Um leão rampante simboliza a tua vocação

ascensional e o teu alter-ego. As mãos isoladas simbolizam os teus esforços

inúteis para suster junto a ti as pessoas e os sonhos, e são mãos decepadas. Uma

águia bicéfala, a consciência clara que desejarias ter, aquela que poderia

contemplar sem concessões a tua interioridade obscura e o mundo exterior e

esfíngico; a mesma águia bicéfala que poderia evocar o teu passado que surge

nítido dos escombros como a ossada limpa e antiga de um morto, e o teu futuro

promissor, luminoso como um fogo de Fim-do-Mundo.

Herberto Helder, nos “Passos em Volta”, tinha um história memorável em

que um homem de vida rotineira e tranquila, ouvindo falar da descoberta do

celacanto, um peixe que se julgava extinto há milhões de anos, larga tudo para ir

à procura dele. Quantos de nós, na serena resignação que nos é exigida para

levar a vida para a frente, não têm algures uma poderosa imagem onírica capaz

de o arrancar de tudo e de todos? Quantos celacantos não existem à espera de

nos ser revelados? E cantos de sereia por escutar? E ocultos recantos de

prodígios?

A família é um pântano inseguro e traiçoeiro, um pântano nosso. Podemos

cruzá-lo altivamente numa canoa como os faraós egípcios nas suas caçadas,

alançeando patos entre canas e lótus - há uma imagem viva em azul e ouro de

uma tapeçaria que reproduzia um desses frescos egípcios, na parede de um meu

tio materno na sua casa da cidade do Porto - ou podemos estar atolados nele,

enterrando-nos nas areias movediças enxameadas de larvas e escaravelhos

esfomeados. Por todo o lado, vapores sulfúreos que enevoam os valores e

atitudes, fazendo germinar os gestos e as palavras mais inesperados e odientos

nas pessoas em quem mais confiávamos, e, em compensação, trazendo-nos boas

surpresas de familiares que havíamos rotulado de estranhos e cuja casa era

como se fosse uma terra maldita queimada com sal. Na nossa família temos o

mesmo sangue. Definição estéril. Alguns familiares são capazes de nos defender

e preservar até à morte, outros, não lhes causaria qualquer mossa ver-nos

apodrecer no meio do canavial.

Dentes

Carcharodon carcharias; Prionace glauca; Triaenodon obesus; Carcharhinus

obscurus ; Galeacerdo cuvier; Carcharhinus leucas; Cerapoda Marginocephalia;

Caenagnathidae; Ornithischia Ankylosauria; Avimimidae; Ingeniidae...

São nomes como estes, que me fazem uma certa espécie.

Um bilhete de comboio, a mão aberta de um pedinte, um cão que urina

deliciado no lancil do passeio, um pombo aos pés da estátua, dois namorados

num banco de jardim... Isto é o real, mas o absurdo é idêntico e toma as mesmas

formas, vive porta com porta com a mais certa e entediante realidade. O

absurdo faz os valores e as percepções oscilarem e ficarem ás avessas, faz o chão

desaparecer debaixo dos nossos pés, substitui a terra pelo céu e o céu por nada.

Mas como é que podemos acreditar ou dar crédito a estas imagens? Pela

experiência, fortuita, episódica e devastadora do absurdo. Nomeio uma, como

exemplo, idêntica a tantas outras de uma infinidade de pessoas. Num dos meus

primeiros empregos, trabalhava a doze quilómetros de casa, e como não havia

dinheiro para almoçaradas e diárias em restaurantes, era a minha mãe que me

confeccionava o almoço, que eu transportava dentro de um recipiente térmico, a

que adicionava no saco o pão e o sumo. Num dia perfeitamente real e igual aos

outros, uma manhã de sol numa cidade desprendida e sobranceira, vieram

buscar-me ao trabalho e comunicaram-me que ela havia morrido. Foi o início de

um dia terrível, o encontro com o resto da família, o pranto e os gritos, as

lamentações e o desfiar de memórias, os cumprimentos e condolências de

vizinhos, amigos e perfeitos estranhos. Ao anoitecer, esgotado de tanta dor e

tantos pensamentos, procurei um recanto na casa onde pudesse respirar um

pouco e estar só, e vi-me na cozinha, cuja obscuridade ao lusco-fusco me

pareceu convidativa. Sentei-me um pouco. Alguém havia colocado em cima da

mesa o meu saco de almoço. Abri-o, satisfeito de reencontrar um gesto rotineiro

que desse um pouco de sentido àquele dia de loucos. Retirei o têrmo,

desarrolhei a tampa, e senti nas mãos as réstias de calor da comida que a minha

mãe havia preparado na manhã daquele dia. Nunca como naquele momento, a

vida pareceu-me uma coisa tão irreal e estupidamente absurda.

Pode-se arrepiar caminho até ao fim da vida com alguma memória ou

vestígio da nossa exuberância e encantamento da infância, mas apenas isso.

Tudo o mais, que era seguramente nosso, é impiedosamente cinzelado ou

desfeito. Uma criança pode crer nas ilustrações coloridas e piedosas dos livros

de catequese, no anjo-da-guarda pousado no seu ombro, nas explicações

simplistas e ilógicas do universo. Mas quando esse ser passa a ter braços

maiores e a ir buscar o que não lhe dão, e a ter questões mais amplas do que as

respostas que pensavam poder saciá-lo, o mundo não tem mais volta. O seu

espírito desenraizado tem a tentação da solitária suficiência, as suas simpatias

transferem-se, e sem ícones nem deuses, o seu mundo é um templo em ruínas a

céu aberto onde os arbustos e as serpentes prosperam na pedra das aras, e os

corvos dessedentam-se na água parada do relicário apodrecido. Sob as estrelas,

estimulado pelo odor da chuva e do húmus, o homem consegue criar um mundo

tão válido ou tão fictício como o que lhe foi entregue em criança, mas não

consegue recuperar o seu riso intacto e despreocupado, a sua vida inconsciente e

preenchida; uma vez que os alicerces estão minados e o chão não é firme e tem

de viver e construir sobre o túmulo vazio de um deus morto.

Normas Bobónicas de Conduta para uma Sexta-Feira Santa

Este é um dia sagrado, no qual se recomenda absoluta e total contenção de

gestos e palavras e o maior cuidado e critério nas nossas acções.

1 - Se, por ser feriado, pensou em dar alguma utilidade ao seu tempo -

desparasitar o cão, polir o carro, dedicar-se à jardinagem - pensou mal. Acima

de tudo, neste dia não se deve fazer a ponta de um corno. Durma uma sesta

prolongada, assista ao Ecllesia na Dois ou às doze novelas da Quatro. NÃO

FAÇA NADA. Se tiver mesmo que fazer alguma coisa, coloque uma tiara na

cabeça, que pelo menos fica com um aspecto requintado e não dará azo a

grandes críticas.

2 - Deve evitar rir ou divertir-se. Passe o dia macambúzio como se estivesse num

velório ou na sala de espera de um Centro de Saúde. Se, porventura, não

conseguir refrear a sua boa-disposição, recorde-se de uma piada, uma das boas,

mas imagine-a contada pelo nosso Presidente da República eleito, professor

Aníbal Cavaco Silva. Também deve conseguir suster a espontaneidade e alegria

dos seus filhos, prometa-lhes um brinquedo ou um Happy-Meal se passarem o

dia a brincarem à estátua ou, em desespero de causa, ponha-os a dormir

durante o dia, nem que para isso você tenha que dedicar as suas noites seguintes

a jogar com eles na Play Station, ou ao Sudoku.

3 - Se tem um daqueles carros que parecem uma aparelhagem Hi-Fi com quatro

rodas, deixe-o na garagem em silêncio, e peça emprestado o do seu sogro ou o

de um vizinho, uma daquelas carrancas velhas cujo motor tem o som de um

rinoceronte em agonia e que, por vezes, deixam mesmo de trabalhar a meio do

percurso, o que, de qualquer modo, é mais adequado.

4 - Não seja alarve a comer ou beber. Coma pouco e com bons modos, refeições

frugais de peixe acompanhadas com água da torneira e pão tostado. Sobretudo

não arrote, ou só o faça se tiver em casa uma cave à prova de som. Á sobremesa,

evite doces e lambarices e, em caso algum, opte por doces com nomes

impróprios para este dia, como Orelhas-de-Abade, Papos-de-Anjo ou Barriga-

de-Freira.

5 - O sexo é, idealmente, evitável neste dia. Mas, como a carne é fraca e o ganso

gosta de mergulhar, evitem-se orgias, ou Kama Sutra's impróprios para pessoas

com tendinites ou dores ciáticas. Tudo deve ser feito na mais completa

escuridão de forma impessoal e desprendida, como se estivessem a almoçar uma

pratada sensaborona de couve-flor cozida.

Anamnese

Esta manhã, num momento de denso tédio, entretive-me a mirar os

movimentos de uma mosca no céu do meu quarto, seguindo o seu voo em

ângulos requebrados. Ao fim de um número indeterminado de mudanças de

sentido, pareceu-me que a mosca repetia um segmento de voo que já antes

efectuara. E a mim, contemplador inerte e preguiçoso, pareceu-me que se a

pudesse ter filmado e registado durante aquele tempo, acabaria por descobrir

que as inflexões e os ciclos do seu voo desenhavam no ar as linhas de um

icosaedro ou outro poliedro complicadíssimo, como aqueles que moviam os

sonhos de Platão e Kepler. Talvez a mosca se lembrasse de quando não era uma

mosca, e agora procurasse transmitir a forma geométrica que condensava a

estrutura do Universo...

No seio da beleza que resplandece de ti, olhas para ti mesma com um olhar

desencantado, apontando detalhes e falhas que não gostas em ti e outros que

preferias que não fossem teus. Mas também o Sol não é perfeito, o Sol tem

manchas, esse Sol que recria o mundo em cada manhã e instila luz áurea nos

nossos corações ensombrados.

Lembrete

Não me posso esquecer disto. A pequena cobra apareceu sem aviso no meio das

máquinas trepidantes do pavilhão da fábrica onde eu trabalhava. Na minha

retina custava a entrar a imagem daquela criatura viva que zizagueava por

debaixo das máquinas: das Arró's, das Jung's, das HP's. Devia ter-se enfiado por

algum tubo de ventilação, perseguindo algum rato. Os outros também a viram.

Como numa celebração pagã, numa festa dionisíaca desregrada, perseguiram-na

aos gritos até a encurralar e darem-lhe a morte. Depois, levaram-na, segura pela

cauda, para a atirarem para a noite lá fora. Por uns momentos, as máquinas e o

ruído e os gráficos deixaram de existir, e sentimo-nos outra vez seres vivos e

orgânicos

A lista

Sonhos nos quais nos fizeram acreditar enquanto éramos jovens e ávidos, e que

arrancaram de nós sem uma justificação, como se arranca um dedo a alguém

por mera desatenção.

Professores que nos marcaram como se marca uma rês de uma manada, e que

sempre nos tomaram como gado a abater apesar do nosso esforço inglório para

progredirmos e vingarmos num ambiente hostil e tóxico.

A deslealdade de amigos, que retribuíram a amizade sincera com a negligência e

a traição, e para quem a amizade representava um recurso que era válido

apenas, enquanto era útil e proveitoso.

Pessoas que fizeram de nós um preconceito erróneo e depreciativo, e que o

mantém enquanto respirarem, mesmo que lhes esfreguemos na cara o nosso

mérito pessoal, ou os façamos engolir o desprezo com os êxitos que fomos

capazes de alcançar.

Os mandos e desmandos no nosso percurso profissional de gente estúpida que

se viciou no poder e que o usa sem discrição, sem uma pinga de consideração ou

respeito pelos outros.

Patrões que exigem mais e mais horas de trabalho, e feriados e Domingos de

labuta, mais sacrifícios e produtividade em nome do bem comum, mas que se

fecham em espadas quando lhes pedimos uma manhã ou um dia para estar com

a família ou ir passear na areia da praia, para distender o espírito e não dar em

doidos.

A perfídia de colegas de trabalho que partilham o pão-nosso-amargo de cada

dia, mas que sabotam o nosso trabalho para ficarem bem vistos, ou inventam

mentiras sobre nós perante os nossos superiores para lhes conquistar o

reconhecimento e a implícita retribuição

Gente estranha de mente estreita e visão embotada, que tenta entrar como um

intruso no nosso lar-concha, para imprimir nele os moldes e as formas

dominantes da sua tacanhez.

Pessoas tão providas de defeitos e vidas atrofiadas como qualquer mortal, mas

que se julgam autorizadas no pretenso nome de um credo religioso ou moral, a

controlar a nossa vida e dizer-nos como devemos viver e sentir.

Familiares, gente nossa do nosso sangue, em quem julgávamos poder confiar e

sentir o apoio, mas que se mascaram em personagens mesquinhas e patéticas,

desempenhando papéis e atitudes absurdas ditadas pelo interesse e pela

ganância, sempre envoltos na treta monumental da família e dos imperativos do

sangue comum

A dor não tem sinónimos, nenhuma palavra que seja ela mesma com outras

letras, a dor é indizível, os poetas e os romancistas andam à volta dela mas ela

nunca se traduz como se sente, e para evocá-la escrevem-se sintomas e rizomas

como lágrima, grito, pungir, alancear. A dor passa, diz-nos a mãe distante

quando nos magoamos numa queda. Mas a dor não passa nunca, passamos nós

pela vida com ela de braçado, e num momento ou outro ela fere-nos como um

tumor reavivado.

A palavra encerra a substância diáfana da neve, e a firmeza da névoa. Se

repousa no éter varrido pelos ventos, ou adormenta sobre as coisas até que o sol

aqueça. Feita húmus e mineral e aço, a palavra corta e esmaga, é gestação e

fruto. E nega o silêncio como os vermes da sepultura negam a morte. E habita o

nosso espírito, no centro das muralhas e alicerces da nossa razão, pulsando

ainda quando a nossa memória se estiola e a nossa sanidade se eclipsa como o

fumo efémero de um fogo extinto.

Num dos meus pesadelos mais marcantes e reincidentes, sonhava que estava

a dormir e a sonhar, e quando queria acordar, não conseguia. Debatia-me,

gritava, e não conseguia acordar, como se estivesse preso num caixão ou num

gavetão de morgue. Quando acordava do sonho que albergava o sonho, ganhava

nova vida, era como se regressasse à luz depois de estar soterrado ou

conseguisse subir à superfície depois de quase me afogar dentro de água com os

pés enleados em algas ou redes.

Temos vozes, gargantas que articulam palavras, pensamento que pensa

conceitos, e somos como um contemplador num miradouro, gritando palavras

para a noite profunda e as luzes distantes de casas exteriores e inatingíveis. A

sua voz faz tanto sentido como o ladrar distante de um cão, ou o voo

esbranquiçado de uma coruja sobre as campas de um cemitério trancado. A

comunicação é tão real como o sonho que abandonamos ao despertar. Se

vivermos cem anos, são cem anos de vida suspensa. A eternidade está reservada

para alguns

Um bilhete de comboio, a mão aberta de um pedinte, um cão que urina

deliciado no lancil do passeio, um pombo aos pés da estátua, dois namorados

num banco de jardim... Isto é o real, mas o absurdo é idêntico e toma as mesmas

formas, vive porta com porta com a mais certa e entediante realidade. O

absurdo faz os valores e as percepções oscilarem e ficarem ás avessas, faz o chão

desaparecer debaixo dos nossos pés, substitui a terra pelo céu e o céu por nada.

Mas como é que podemos acreditar ou dar crédito a estas imagens? Pela

experiência, fortuita, episódica e devastadora do absurdo. Nomeio uma, como

exemplo, idêntica a tantas outras de uma infinidade de pessoas. Num dos meus

primeiros empregos, trabalhava a doze quilómetros de casa, e como não havia

dinheiro para almoçaradas e diárias em restaurantes, era a minha mãe que me

confeccionava o almoço, que eu transportava dentro de um recipiente térmico, a

que adicionava no saco o pão e o sumo. Num dia perfeitamente real e igual aos

outros, uma manhã de sol numa cidade desprendida e sobranceira, vieram

buscar-me ao trabalho e comunicaram-me que ela havia morrido. Foi o início de

um dia terrível, o encontro com o resto da família, o pranto e os gritos, as

lamentações e o desfiar de memórias, os cumprimentos e condolências de

vizinhos, amigos e perfeitos estranhos. Ao anoitecer, esgotado de tanta dor e

tantos pensamentos, procurei um recanto na casa onde pudesse respirar um

pouco e estar só, e vi-me na cozinha, cuja obscuridade ao lusco-fusco me

pareceu convidativa. Sentei-me um pouco. Alguém havia colocado em cima da

mesa o meu saco de almoço. Abri-o, satisfeito de reencontrar um gesto rotineiro

que desse um pouco de sentido àquele dia de loucos. Retirei o têrmo,

desarrolhei a tampa, e senti nas mãos as réstias de calor da comida que a minha

mãe havia preparado na manhã daquele dia. Nunca como naquele momento, a

vida pareceu-me uma coisa tão irreal e estupidamente absurda.

Inveja. De não ser um filatelista. De não ser capaz de estar concentrado num

rectângulo de papel serrilhado, examinando à lupa o estado do selo, a marca do

carimbo, a falha que o valoriza. Inveja, de não estar ali no aquém da lupa,

sentindo euforia e transportes místicos com uma letra que é vermelha quando

deveria ser azul, com uma bandeira em que faltam estrelas, com um retrato de

Presidente em que faltam dentes. E de conseguir permanecer ali, imperturbável,

mesmo que o buraco do ozono se converta num Buraco Negro, mesmo que as

montanhas mais altas se convertam em abismos ou que os oceanos se

evaporem, mesmo que os americanos não "salvem" mais nenhum país.

Sou manco de palavras, o mundo sonha em mim lugares e abismos diante dos

quais pasmo e emudeço sem que uma só palavra, uma só sílaba, se forme nessa

ácida crisálida; e as poucas ideias são castelos de areia que as marés de silêncio

dissolvem em nada, e os poucos versos esboçados, intenções vãs como os

sentimentos eternos e pungentes gravados em lápides de cemitério.

Sou manco de palavras, tolhido de gestos e passos, gárgula de secas fauces

abertas, quebrado querubim de jazigo. E no centro de mim, como uma sede

antiga, este querer arenoso de palavras e versos, este incontido fascínio pelas

ideias e pelos livros que me sustém no estéril deserto que albergo em mim

Algumas pessoas, afortunadas, nasceram para serem nascente. Outras, apenas

vieram ao mundo para sentirem o enlevo do murmúrio dos rios

os acasos e os descasos da vida vão folheando o nosso espírito com finas peles

translúcidas como uma asa de libélula,

são as experiências,

que nos recobrem, umas sobre outras, como as camadas de uma cebola,

ou as películas de ouro que se colam num ídolo budista.

sob elas julgamo-nos mais argutos

mais sensatos e mais fortes

rochedo fálico desafiando as vagas do mar

depois é chegada, a onda que nos vence

o acaso que nos relativiza

como se vivêssemos a hora primeira dum recém-nascido

é chegada a ameaça risível e ridícula

que estraçalha as nossas camadas e defesas,

deixando-nos a sangrar por dentro

como sangra e agoniza um porco

na hora da matança

Manifesto

Vamos fazer a cabeça dos nossos filhos, incutir-lhes, inocular, os nossos ícones e

deuses, o clube de futebol e o clube religioso, o hobby aborrecido, a causa gasta,

o partido político que já nos fez sair em festa em dia de eleições ou que nos

exilou na nossa própria casa como um gato maltratado a lamber as feridas ao pé

da lareira. Não podemos deixar que eles pensem sozinhos, têm de pensar

connosco, em uníssono, para acreditarmos nas mesmas merdas e cantarmos em

coro os Hits de há trinta anos. Têm de ter vergonha de serem eles mesmos, de

sentir culpa por nos esconder coisas, de terem pavor do que poderíamos pensar

se descobríssemos o que nos esconderam. Ah! Que não irão duvidar de nós!

Seremos para sempre os seus heróis indefectíveis, a sua bula pontifícia, a

autoridade suprema. Não irão ter vergonha das nossas falhas e lacunas e

defeitos físicos porque nem sequer lhes passará pela cabeça que tal coisa possa

existir. Não irão querer ser mais do que nós, porque seria como morderem a

mão que os alimentou. Não sonharão outra coisa do que viver os nossos sonhos,

cumprir as nossas promessas, suprir as nossas frustrações, escrever o livro que

nunca fomos capazes de iniciar.

Não! Não! Não! Não Serão!!

Vamos fazer a cabeça dos nossos filhos!

Iérreésse

No momento de recolher a lã, os carneiros são tosquiados alegremente ao som

triunfal de "A Portuguesa".

Os mais patrióticos, os que mais contribuem para a felicidade da nação, são

os carneiros esqueléticos e escanzelados de pêlo diminuto e seco como musgo

murcho. Os tosquiadores não lhes poupam um pêlo sequer, nem mesmo os das

ventas e das partes pudendas, e quantas vezes no seu afã fervoroso não lhes

lanham a pele com as lâminas, esfolando a carne nos sítios onde os ossos

ameaçam irromper na carne magra em rosáceas de sangue.

O hino que os tosquiadores amam é cantado em coro pelos carneiros mais

gordos e lãzudos. O seu pêlo intacto e acumulado assenta sobre os seus

membros como uma o.p.a. cardinalícia. Os seus cascos lustrosos foram feitos,

não para revolver a terra, mas para manusear títulos e acções. As suas orelhas

perfumadas estão acostumadas à música dos pedidos e às lambidelas das

massagistas orientais. Os carneiros gordos estão tão dissimulados no seu pêlo

abundante, que ninguém sabe como lhes chegar; e se os tosquiadores teimassem

em remexer neles, ainda acabavam por encontrar um Rolex de oferta ou uma

conta off-shore para partilhar cristãmente.

O que precisamos para escrever um verso? Quase nada, uns minutos no teclado

ou a escrever num retalho de papel. Podemos escrever versos em guardanapos

de papel, em recibos de compras, em capas de livros. Os versos somos nós,

inteiros e sem mácula ou disformes e desajeitados como o ímpeto que os

formou. Há versos que desprezamos como se nos envergonhassem, porque não

são talvez nossos, versos bastardos gerados pela sombra obsidiante de um

poema ou de um autor que se leu, noutros revemo-nos inteiramente, estão-nos

unidos como as duas hélices de ADN, somos nós no momento em que os

escrevemos e continuam nossos, mesmo depois de sucessivas mutações, quando

os relemos enfastiados muitos anos mais tarde por entre os destroços e as

sobrevivências do nosso espírito combalido.

Tenho em mim que existe em nós uma bolha oscilante como nos níveis de régua

dos pedreiros, oscila, tremula, equilibra-se ou tomba no vácuo. Há dias que

quase não se mexe como se nós vivêssemos esse dia em imersão num tanque

sulfuroso de umas termas; ou dormitando venturosos, suspensos no ar em

ataraxia epicúrica. Outros dias, e são mais que muitos, descemos rápidos

espumosos, zizagueando entre rochas aguçadas num tropel de saltos, massas

rochosas negras e denteadas e céus breves acelerando no nosso olhar. A bolha

contrai-se e incha, aperta-nos o coração ou bloqueia-nos o ar na garganta. Não

temos paz em lugar nenhum, nem num leito nem nas ruas no meio das pessoas

desalmadas, e os objectos e as paredes parecem desvirtuadas, ausentes da sua

função e do seu significado. Para quê fazer algo, agir, escrever, falar, quando

nada disso faz sentido? Quando o dia termina, estamos subjugados, como se o

rio nos tivesse projectado numa margem exígua, lacerados e exaustos. Não

parece haver equilíbrio possível, nem safa alguma, encurralados que estamos

entre as águas indomáveis e as ravinas intransponíveis.

“nada de novo debaixo do céu”, nem eu podia encontrar nada de novo debaixo

do céu, ainda que fosse o marinheiro suspenso no cesto da gávea, o operador de

sonar, o batedor militar. Os princípios e os finais estão unidos como uma

serpente mordendo a cauda, os germens são antigos, as sementes fossilizadas,

dalgum túmulo de faraó. Erguemos a cabeça sobre o oceano de tédio e

conformismo, apenas para nele mergulhar de novo, como o golfinho triste

saltando num tanque de vidro sobre o foco das objectivas. Ignoro o parvo alegre

que me diz que cada dia é um novo dia, e o alegre estúpido intoxicado com

Salmos que brada que cada manhã é um novo milagre. Dançam como dança no

patíbulo o cego iludido, julgando estar num palco; gorgolejam deliciados

bebendo o veneno rápido com nome de ambrósia. Representamos brevemente

peças absurdas, articulados com fios e cordéis, para gáudio dalgum deus

poeirento ainda mais entediado do que nós. E ainda assim o mundo move-se,

rodando as nossas ilusões graníticas sob diferentes céus.

O mundo precisa de um radical renascimento que sacuda a autoridade dos

especialistas e eruditos em coisa pouca, VOLTAR ATRÁS, mais atrás do que à

antiguidade greco-romana, para Eras mais recuadas do que aquela que produziu

os livros sagrados de judeus, cristãos, maometanos, budistas, hindus e outros. O

mundo precisa de regressar às primeiras civilizações ou ainda antes. Quando o

mundo era Mundo, que se olhava com temor e vivo espanto como nós hoje

olhamos as constelações e os seus planetas imaginados. E por todo o lado era

vastidão e desconhecido. E não havia raças, apenas adaptações da mesma

espécie que comunicavam com uma mesma língua. E se não houvesse palavras,

um punhado de sinais ou traços podiam unir as pessoas, abrir portas entre

universos contíguos e desencadear forças poderosas.

Nesse tempo, não podia haver indiferença, a vida e o espírito estavam latentes

em todos os seres e objectos, do urso feroz a um grão de areia

Nesse tempo, os velhos não eram coisas velhas que se deitam fora quando

começam a destoar. Eram guardiães dos segredos e da magia, transmissores dos

mitos de origem que explicavam tudo e sustinham o caos e a catástrofe

Nesse tempo, a natureza nutria o homem e era sua aliada, tal como uma mãe

para o feto que abriga em si

Nesse tempo, se esse tempo houve, os deuses e os espíritos viviam ombro a

ombro com as pessoas, acotovelavam-se nas grutas estreitas, e geravam

semideuses no ventre das mulheres sagradas

Sal

A memória dos pais supre a tenra e diáfana memória dos filhos pequenos, dá-

lhes elementos para compor o seu imaginário, como lápis de cor para pintar

uma paisagem no papel, a descrição de uma queda, de uma palavra

precocemente formulada, de um sorriso ou uma gracinha, de uma aflição ou de

um susto. As palavras maduras nomeiam o mundo jovem como Deus ensinando

a Adão o nome das coisas. E quando todas as memórias se irmanam e se

fundem, tornamos nossas as memórias que nos foram oferecidas, e recuamos o

nosso universo até antes de nascermos. Pois também não nos pertence as

angústias e dúvidas da nossa mãe quando nos carregava no ventre? E os serenos

debates sobre aquele que será o nosso nome? E a doce e melancólica expectativa

de se estar à espera de um filho e de se ser assaltado por tudo o que isso significa

de sublime e avassalador?

BIO-ANAGRAFIAS

Uma memória compósita:

No Verão de 73, entre muitos passeios de carro por todo o país, estanciamos

na Figueira da Foz, como já era tradição. A nossa casa de verdade, a casa em que

vivíamos, estava do outro lado do mundo, em Moçambique. A Figueira era o

nosso pouso para férias. Uma casa alugada a menos de cem metros da praia, e

umas quantas breves e intensas semanas para desfrutarmos de tudo, a praia

imensa, as brincadeiras e os jogos, os passeios pela fresca à noitinha, o cinema e

os gelados Rajá...Algumas coisas aparecem-me nitidamente, como a Torre do

Relógio, o velhinho Forte, e o saudoso colégio de Santa Catarina, onde ainda

estudei no final do Verão, e onde tive os meus primeiros rudimentos de língua

francesa: a professora desesperava por eu insistir em usar jenêtre e não fenêtre

para "janela", porque, simplesmente, achava mais parecido. O colégio foi uma

experiência agradável. Nas traseiras do colégio havia um pátio e um terraço para

brincarmos, e nesse terraço tínhamos como generoso panorama o vasto mar,

porque a Figueira desse tempo não tinha um décimo dos prédios altos que hoje

aí se vêem a amuralhar a marginal.

Quatro anos antes, em 1969, também ali havíamos passado férias, mas aí já as

memórias e os espectros são mais diluídos e confundem-se com as minhas

recordações posteriores da Figueira. Uma memória que também é minha, ainda

que se tenha formado das palavras do meu pai, é que nesse Verão de 69 eu

manifestava um fascínio irresistível pelo mar. Acordava-o muitas vezes quase de

madrugada, porque queria ir ver o mar. O meu pai ainda tentava iludir a minha

vontade (todos na casa dormiam a bom dormir, enquanto eu já estava vestido e

alimentado e pronto para sair), mas, por fim, lá se levantava a custo e íamos os

dois passear. Seguro pela mão, caminhávamos até ao fim do molhe, com as

ondas a desfazerem-se em espuma quase aos nossos pés. Não me inquietava o

frio ou o vento, queria apenas ver o mar, senti-lo. O meu pai conta que eu

parecia hipnotizado, não dizia uma única palavra, com as imagens do céu e do

mar a inundarem-me a alma, completamente esquecido de mim.

Letes

Não faças ondas

Não perturbes os espíritos que se volatilizam em fogos-fátuos,

Não agites as águas dos dias cruentos que repousam no esquecimento.

O ontem contém as feridas e as memórias ácidas que devem permanecer

ocultas, a Geena de humilhação, vergonha e dor.

Não faças ondas. O passado é uma lagoa de águas barrentas onde não existem

vidas por germinar

As águas que agitares só vão conseguir arrancar das profundezas a parte de ti

que já morreu, expondo á luz do dia a tua hórrida máscara decomposta

Os dias frios da nossa ausência, enregelando nos nossos jardins de Inverno.

Ausentes de nós, longe, vivendo nos seus mundos idílicos e perfeitos

Connosco guardamos esses mundos nas suas imagens a sépia, as suas cinzas

frias sepultadas na neve, os seus fósseis palpitando de vida pressentida

Os dias frios que nos gelam como os braços da morte, fazendo-nos sonhar e

sangrar pela nossa vida primeira, onde o ideal tinha o enlevo de um beijo e a

beleza ateava sóis nas nossas veias

Martes

Guardem-se os amantes nos seus dias nocturnos e nas suas noites extravasantes

de luz, que o prazer e a ternura contradizem os gumes e os gládios da loucura,

suavizando a dor na alma do mundo. Guardem-se os amantes, cujo desejo

abraça a vida, como uma férvida trepadeira serpenteando no dorso robusto de

um sicômoro, guarde-se como sagrado o seu ninho destelhado mas feliz, o seu

refúgio, o seu leito de deleites, onde os salmos à criação são exsudados pelos

poros da pele e o hermético Aleph tem a sonoridade bravia e livre de um

orgasmo.

Não preciso mais do que estar aqui, cismando na praia, perdido, como um búzio

vazio emanando o som espectral de um mar absoluto que não existe mas que

persiste sussurando por entre a seda arenosa de uma teia de aranha;

Não preciso mais do que isto: alguns metros quadrados de deserto salgado nas

margens do mar, sou o náufrago que a vida fez arrostar à praia desolada, por

salvados tenho apenas alguns sonhos em farrapos, uma ou duas garrafas de gin,

um terço puído e delido, um retrato envergonhado no bolso marrom do casaco,

um futuro já vivido nos olhos cansados, e uma vontade silente de calar o

pensamento ou gritar desde as entranhas o absurdo de estar aqui sozinho

mordendo o ar como um bébé faminto morde os mamilos da mãe

Por cumprir

a alma lusa é uma cortesã envelhecida, com a magreza das árvores mortas onde

só o líquen resiste, o mar lambe-lhe a roda da saia em farrapos e o passado

agoniza na desolação dos Paços e torres em ruínas. Tudo é vago e

indeterminado como as entranhas de um nevoeiro. Fosse noite e teríamos mais

estrelas para guiar as nossas naus, fossemos outros e não nos doeria esta chaga

aberta das manhãs por nascer.

O nosso destino é a Europa, que é como dizer, que é nossa a alma doutro, que

somos pagadores de promessas, que caminhamos alegremente para o martírio

movidos por um falso deus. Esta Europa é tão nossa como a Espanha de 1580, e

como o caminho é inexorável e necessário e esplendoroso, adornem de grinaldas

os arreios com que vamos caminhando, e estimem os vossos sapatos puídos e as

vossas pulgas de servos obedientes

Repousem Pessoa e Vieira, os nossos Profetas. Que seja leve e lírico o seu eterno

descanso. O nosso destino Atlântico é o de um náufrago agonizando com as suas

quimeras imperiais, um sonho edénico emergindo no despertar efémero de um

condenado. Se a alma lusa ascender ao Quinto Império será para ser coroada

como Inês, morta e podre ataviada em cetim e ouro.

Robbed

O operário fabril opera febrilmente uma máquina macaca que lhe toma os dias,

que lhe rouba as forças, o operário não tem moral nem ideal, já não se lembra

do que isso é, nem brincar já sabe nem de brincadeiras se lembra, a máquina

absorveu-o, fez diluir os seus sonhos antigos no ventre dos tubos galvanizados

de honilo e óleo, fez o seu coração sincopar na cadência decadente da sua

biologia mecânica, deu-lhe como biorritmo o gráfico da sua máquina, substituiu

as estrelas e o sol pela luz doentia e fluoretada da usina que não pode parar.

Seco, descarnado, devoluto, o operário esqueceu-se de como se vive para além

dos portões da fábrica, já não reconhece o brilho do mar, o cheiro da pele de

uma mulher, o prazer entranhado de ouvir música, as confidências das palavras

guardadas em livros. O operário já não vive, é um Homo Faber, faz, age, produz,

realiza operações, focado, concentrado, atento, dedicado, liofilizado,

estupidificado. Trabalha todas as horas de todos os dias, as rotinas e as tarefas

infligiram nele uma lobotomia eficaz, removendo como vísceras pútridas as

vastidões ociosas do seu ser, e poupando apenas as ténues zonas neurológicas

que coordenam os movimentos e os gestos necessários à manipulação da

máquina e ao acenar de cabeça que consagra a sua obediência à hierarquia

reinante e à sumidade científica dos engenheiros.

Trívia

Durante o dia, a nossa consciência agudiza-se, examina, analisa, classifica,

separando as coisas e atribuindo valores. Esse verdadeiro estado de "vigília" é

subvertido pelo regime nocturno, em que a consciência não se dissolve mas

mergulha em si mesma, adquire o talento de encontrar as semelhanças mais

ténues, os parentescos dissimulados entre as categorias em que se classificou

separadamente as coisas à luz do sol. Atribuindo imagens a esta dicotomia,

durante o dia realizamos experimentos marcadamente químicos, usando

instrumentos científicos dentro de ambientes e processos rigorosamente

controlados; a noite é o tempo da alquimia em que operações idênticas possuem

quase sempre conotações metafísicas e não são tão importantes como os

símbolos de que se revestem, em que o progresso dos conhecimentos tem

sempre um fito subjacente de elevação e aquisição de poder, procurando atingir

um estádio superior em que é possível transmutar a matéria e os seres e salvar a

humanidade frágil e sofredora.

Há muito que existe a intuição que o nosso espírito, perante as estações do

ano, oscila também entre as polaridades diurna e nocturna. Na luz maior o

comportamento solar, estival, em que separamos e destrinçamos valores e

realidades sem qualquer embaraço ou contemplação, os olhos embriagam-se de

imensidão e horizontes abertos e vivemos para fora na necessidade de

comunicar e relacionarmo-nos. No Inverno aflora a nossa natureza mais

profunda e nocturna, em que nos recolhemos em nós mesmos para melhor

compreender o que está além de nós, em que as casas se ameiam em lares

seguros dentro dos quais vivemos e sonhamos como o fazemos sob a lua e as

estrelas. Porque os dias são mais curtos e a luz é de um outro mundo, o Inverno

faz de nós um pouco artistas, artistas que se surpreendem com as cores de que

se reveste a paisagem e com a intensidade da natureza fustigada pelos

elementos, artistas que se perdem em devaneios minimalistas sobre muitos

pequenos detalhes em redor como se cada um deles reavivasse um

conhecimento antigo e ancestral adormecido em nós. Talvez fosse numa noite

de Inverno e a pensar em coisas como estas que Rilke escreveu este verso

imenso: "O mundo é grande; mas em mim, ele é profundo como o mar".

Porque chove

Porque chove forte e feio e porque é noite, os cães encolhem-se nas suas casotas

e os mochos brancos sacodem as suas penas nocturnas, dentro dos bares existe

a mesma enxuta vontade de se dissolver como o fumo do tabaco no ar, dentro

das igrejas fechadas a sete chaves a chuva não interrompe o eco inaudito e

incrédulo das confissões piedosas que ressoa pela nave como o segredo de

Midas; porque chove ninguém arreia o calhau à beira da estrada nem bebe

imperiais na esplanada de mesas e cadeiras acorrentadas, não existem montras

para ver nem prostitutas ao ar livre para apreçar. Porque chove, a noite é de

cada um no seu covil, para se aninhar junto a uma cálida lareira ou lamber

feridas ou ver as séries insípidas e boliudescas da quatro, também há junto ao

Hi-Fi aqueles Cd's adequados de Blues ou Soul, e há também o chocolate quente

que sabe tão bem com uns biscoititos de manteiga, ou um copinho de vinho

aquecido para saborear enquanto se revê um velho filme em VHS ou se lê um

pouco de Borges ou Agostinho da Silva. Porque chove, não temos de ir a lado

algum e a noite é mais nossa, o marulhar da chuva traz-nos reminiscências de

uma paz antiga, de uma paz sem causas nem ansiedades de quando estávamos

preguiçando à margem das coisas, flutuando na placenta. Porque chove e chove

sem cessar, Blog, o meu gato, vai deitar-se no seu cesto aconchegador antes que

lhe apeteça afiar as garras no cortinado e subir pelas paredes acima...

Moçambique

Algumas palavras apenas, antes que a memória me traia e eu tome as suas

formas por produtos da imaginação. Esta é uma descrição física, geográfica, de

um território que nenhum mapa ou portulano é capaz de conter. O centro do

território, o umbigo do mundo, era a minha casa. Tenho fielmente inscrito em

mim cada divisão, cada recanto, cada aroma desse lugar encantado da minha

infância, o quarto em azul, a cozinha com os seus filtros de grés e a "geleira"

onde eu ia surripiar um ou outro sorvete de fruta, o escritório do meu pai, onde

eu me infiltrava depois de ele se ir embora, para inalar o aroma adocicado do

tabaco de cachimbo que ele fumava e passear os olhos pelas gravuras dos

dicionários, a sala várias vezes modificada onde adquiri a afeição solitária pelos

livros muito antes de os começar a ler, tomava-me de amores por aqueles

volumes encadernados, pelo cheiro do papel, pelas fitas-marcadores em

variegadas cores, pela suspeita do que eles poderiam conter como um filólogo

interrogando um texto escrito numa língua estranha e desconhecida. Fora da

minha casa distante e de todas as presenças e experiências que ela continua a

guardar, o meu mundo desdobrava-se num território onde todas as coisas

tinham algum significado como um mapa-mundi medieval pontilhado de ilhas

lendárias e terras mágicas. Tudo desperta em mim a sua poderosa

insignificância, das pequenas andorinhas de louça da porta de entrada, até aos

mil e um lugares que foram teatro de brincadeiras, e jogos, e solitária e

prazenteira ociosidade: os telhados, o galinheiro, as mangueiras, os muitos

vasos e canteiros com plantas, o terreno baldio por detras do galinheiro com

rochedos escuros e árvores frondosas, para onde si ia representar cobóiadas

holiwoodescas. O meu território não é apenas um lugar concreto, é também e

sobretudo, um cadinho de vivências, um lugar vivo, imanente. Quando

chegavam as primeiras chuvas depois de meses a fio de calor e aridez, todo esse

território parecia extravasar de vida e alegria, nos minutos que precediam a

queda da chuva, a humidade no ar mesclada com o cheiro intenso das

papaieiras e da relva enchiam-nos o peito com uma euforia e uma felicidade

indizíveis. A chuva vinha em bátegas fecundantes, empapando e revolvendo a

terra. Passava depressa e aos primeiros sinais de céu limpo, eu saía para a rua

rodeado pelo rumor da água a correr pelas valas e procurava atentamente na

terra remexida os pequenos cristais de quartzo que assomavam na lama.

Recolhia-os depois de os mirar à luz do sol como um entendido em jóias, e

guardava-os num recanto do jardim onde mais tarde os ia lavar e escolher.

Havia alguns mais perfeitos e transparentes, quase como imitações de

diamantes, outros, no entanto, pareciam incompletos com reflexos amarelados

nas suas faces vítreas e alguns ainda estavam colados a pequenos grânulos de

rocha áspera. Na simplicidade alquímica da minha infância, eu estava

convencido de que era a chuva que polia e aperfeiçoava aqueles quartzos e, para

acelerar o trabalho da natureza, eu levava os quartzos mais toscos e enfileirava-

os sobre o beirado da casa, para que a água da chuva desabando sobre eles

lapidasse os seus ângulos e os tornasse mais transparentes. E eu iria jurar que

os via cada dia mais belos e valiosos, rivalizando com as melhores peças do meu

tesouro pessoal.

Palavras

Sabes, as palavras já não demovem o silêncio, esse silêncio incrustado em nós

como um crustáceo de aço, as palavras são as ondas débeis e a brisa quente

onde pairam as gaivotas, e os limos que se enrolam nas nossas gargantas e

estrangulam as mensagens por nascer, as palavras não definem o aqui nem o

longínquo, as alegrias e os pesares, o que perdemos e o que amamos sem saber.

São tão poucas e tão pequenas diante da imensa solidão que carregamos nos

nossos olhos lacustres e nos nossos corações vazios como ermos lunares. As

palavras são o ontem e o nunca, a saudade dorida do que nunca se teve e a ânsia

surda de algo majestoso e sumamente belo que nos faz debater contra o destino,

como um peixe se debate no areal à míngua d'água, saltando e cuspindo até

secar

Sabes, é o silêncio que fala mais alto e mais profundo, que traz até à luz os

abismos fundos e ergue até ás estrelas a dor e o adeus, o silêncio vive nos

líquenes da mágoa e do ódio vegetando nas imagens a sépia dos momentos

felizes dos álbuns velhos da família

Encantamento

o tempo do sonhador é o compasso de espera, a meia-estação, o entardecer ou a

primeira manhã, o ínfimo silêncio antes do despertar da orquestra, é um tempo

sempre breve que molda impressões duradouras e perenes pensamentos

residuais, no tempo do sonhador a vigília solar ainda não erradicou os

fantasmas e as pulsões nocturnas, a adaga de luz ainda não cindiu a névoa

mitológica da criação, o caos infuso e indiviso onde flutuam todos os germes e

todas as Ideias. Se concedermos tempo ao tempo de sonhar, reunimos os

opostos na matéria universal suspeitada pelos alquimistas e encontramos novas

sendas dentro de nós pavimentadas de versos, teoremas e notas musicais, e um

novo céu onde as estrelas são orifícios por onde se derrama a luz terna do

Absoluto .

Se eu tivesse o talento de um músico poderia escrever sem hesitações as notas

da melodia nervosa e límpida do teu riso. Conheço-a melhor do que conheço os

sons e os tons da minha própria voz. Podia estar imerso numa multidão,

disputado pelos ruídos e zunidos de uma cidade, que ouvindo o teu riso logo o

reconheceria, exumando-o do caos com a devoção dum mergulhador que

regressa à superfície das águas segurando na palma áspera da mão uma única e

esplêndida pérola preciosa.

Não gosto do meu nome, da pessoa que ele nomeia, não gosto das suas letras e

das suas sílabas, da memória do nome e da memória de mim, tremo de ter de

me ver ou ouvir, apavora-me a ideia de me poder encontrar algures por aí.

Apenas gosto do som do meu nome na tua boca, da cândida e sensual

reverberação do meu nome nos teus lábios, entoado pela tua garganta,

musicado pelos movimentos da tua língua. Não me importava de deixar de ser

eu, de me tornar outra pessoa num outro planeta, se ao menos me fosse

permitido continuar a ouvir-te nomear-me, vezes sem conta, como uma deusa

despertando-me para o amor no segredo cálido de um éden luxuriante

No teu olhar descubro a placidez dos álamos que se erguem na crista do monte e

ondeiam com o vento, evocando o refúgio quente aos pescadores que regressam

em barcas decrépitas e agravam o desespero daqueles que não têm onde

regressar. As tuas mãos têm a pureza imaterial das nuvens e o seu calor se é o

sol que as debrua de dourado. Na tua voz transparece a doçura das vozes

amadas, e nos teus braços delicados reencontro o vigor das raízes túmidas que

penetram no húmus da terra, repassadas de vida e esplendor. O remanso de

seara dos teus cabelos ondula sob o afago dos meus dedos, brisa sacrílega e

exaltada; e o contacto da tua pele nos botões abertos dos meus dedos faz-me

doer a inutilidade de todos esses anos em que vagueei sem te encontrar.

November, 1

Na erosão dos dias, há sempre alguém que cuida das campas, que as limpa e

enfeita de flores, pinta as letrinhas negras salientes, centra a imagem da Nossa

Senhora sobre o tampo, arranca a erva e a urze que ameaça romper à volta, na

erosão dos dias há quem acredite que isso é que conta, que finja desconhecer

que quando morre alguém que amamos é em nós que rasgam a terra para a

sepultar, que é dentro de nós que muita coisa morre e acaba e apodrece, ainda

que num momento ou outro essa morte tenha dias bonitos, dias luminosos de

uma saudade sem dor, em que a erva inocente espreita o Sol e as abelhas

rondam as flores na jarra e um ou outro pardal pouse na lousa fria, alheio aos

nossos dramas absolutos.

A noite é repleta de prodígios do seu seio túmido bebem amor e desejo riso

terror e desespero. Andam às voltas com ela como se lhe pudessem dar um

sentido. E a noite é maior, Rainha impávida extraindo de cada um com os seus

dedos melífluos, os fantasmas e os desvarios que aí lavram como amores ou

tumores

Espera

"Os maltratados e os vencidos reviram os seus olhos arenosos e resmungam:

«Vivo por viver, os dias são um fardo que carrego». Eu não, ou, pelo menos,

ainda não. Dou comigo a pensar que é próprio da vida poder converter-se numa

natureza pura, límpida e vibrante como um grito de alegria. Eu vivo para viver"

Queria saber ler-te a sina, mas a topografia quiromântica sempre me confundiu.

Troco Marte com Mercúrio, a linha da cabeça com a linha do coração, nódulos e

montes. Poderia espreitar-te o futuro se te lesse a sina, mas não sinto frustração

em estar aqui, segurando-te a mão neste Presente que me consentes.

Há tanta asa decepada, na repulsa indómita do não-querer, uma doca areada e

um farol engolido pela noite, uma náusea perene, uma espera de nada e uma

felicidade adiada, um mar de calmaria e uma teia vazia. Porque, tudo ficará

como antes

Frases Unicelulares

Futebolices

No Dia do Juízo Final, os bons serão recompensados, os maus serão castigados,

e os assim-assim terão direito a prolongamento.

Gaulismo

«Não se consegue governar um país que tem 246 variedades de queijo a ocupar

os órgãos de soberania»

Palavras

A união de facto, faz mais sentido do que o casamento não consumado

Depois de tantas contradições e dilemas religiosos, este é o único axioma a que

consegui chegar:

"Acredito que somos eternos, melhor dizendo, somos eternos até a morte

chegar"

Proposta de nome: Maria da Ascensão e Queda do Império Romano do Ocidente

Quanto mais reflectimos sobre a Roda do Destino,

mais nos parece que fomos atropelados por ela.

Crónica: “Esta madrugada caiu um peso de água tão grande, que os poucos

pássaros que se atreviam a levantar voo usavam impermeável”.

7 pecados capitais

Quando Ava Gardner estava no auge, a avareza era o mais belo pecado do

mundo.

Gramática: o plural de Ira é Irs.

O orgulho do pobre mas honrado alimenta a vaidade dos soberbos.

Capitalismo: A preguiça é a apostasia desse trabalho sério e dedicado que gera o

lucro que permite a outros experimentar a preguiça e o ócio ilimitados.

A gula apetece-nos, e só nos parece uma coisa terrível quando saímos de umas

bodas de três dias de festim.

Conveniência: Depois que se tornou padre, nunca mais quis saber da luxúria, e

até se esqueceu do que essa palavra significava.

Dos sete pecados mortais, há dois a que não consigo escapar: sou guloso por

luxúria.

As cigarras da nossa sociedade tocam guitarra em cordas entrançadas com as

tripas das formigas

Depois de Freud recuperar Édipo, a palavra matrimónio tornou-se menos

popular.

As pessoas que só trabalham em função das gorjetas são uns tip-os muito

calculistas.

Inicial

O mero f de foda, dá continuidade ao ser humano efémero.

Cada geração que passa e a nossa espécie parece cada vez mais mediana e

homogénea, como se obedecesse à ordem bíblica: "Amai-vos e fotocopiai-vos".

Se a Via Crucis tivesse sido em "Portugal”, os Evangelhos teriam registado uma

frase como esta: “Não estou bem, mas podia estar pior, em vez duma, podiam

ter-se lembrado de me fazer carregar as três cruzes”.

Quando o Sumo Pontífice toma banho de imersão, benze-se sempre três vezes

antes de abrir o ralo da banheira: é água-benta.

Palavras

As palavras são como as cerejas: vêem sempre unidas umas às outras, até se

esvaziar o saco e atingir o fundo de silêncio.

i.e.

As palavras são como as ginjas, inebriam-nos quando combinadas em licorosos

versos.

i.e

As palavras são como as ginjas, pensamos conhecer de ginjeira o seu sabor, mas

por vezes sobressaltam-nos o palato como se provássemos novos frutos.

máxima do arco da velha

É certo e sabido que não existem certezas absolutas, apenas, valores e definições

para-religiosas que escolhemos ou nos foram inculcados. É incerto e por saber,

qual o montante ou volume de dúvidas que a nossa coluna vertebral consegue

suportar sobre si sem quebrar.

homofonia

Galego, a viver há pouco tempo em Portugal, gostava de jogos de palavras e

costumava afirmar que o modo mais digno de viver em sociedade ("suciedade"),

era ser porco ou piolho.

Somos apenas destroços, seres naufragados, demandando Eras idas de uma

intacta majestade.

Dar prazer e dar alegria, é a melhor coisa que a gente tira daqui

A crise é uma ondinha nas finanças do poderoso e um tsunami na finança

virtual do apoderado

Para comida de plástico, estômago de ferro.

Sempre acorda tarde de mais quem não consegue sonhar.

Vitrúvio

O homem é a medida do Universo. Mas o comprimento é sempre uma variável.

Deixamos sempre um pouco de nós nas casas onde vivemos, como mudas de

peles de serpente enroladas na memória

O passado que gostaríamos de esquecer é um Pretérito Mais Do Que Imperfeito

Actualizamos em cada geração as questões intemporais: Quem somos? De onde

vimos? Para onde vamos? Como arranjar um estacionamento no centro da

cidade?

Conhecidos, autores, desamores. A vida espiritual de uma pessoa está cheia de

gente morta

O conjunto de todas as religiões é como a folhagem decrépita de uma árvore no

princípio do Outono. Depois do vento despir esses ornamentos vegetais, é

tempo de se esperar pela Primavera do espírito.

Antecipar

A muralha da China é a única obra humana que se vê do espaço. Depois de

perceberem para que servia, os Marcianos foram saindo de fininho.

ideal antigo

"Nenhum de nós fica cá para semente, mas não quero passar pela vida como se

estivesse nela de passagem"

["Nosotros" - o castelhanismo agrada-me. Degustado no nossa língua, podia ser

deformado num sentido filosófico: somos nós e somos outros, alojamos em nós

distâncias que nos separam de nós mesmos, procuramos fora de nós o nosso ser

alheado e obscuro.]

A praxis política conserva o aroma de velhas causas e ideais. Guardado e

exibido num camafeu ou relicário, como a mecha lamecha de cabelos de uma

namorada há muito morta, fiapos de linho do manto de um santo que nunca

existiu.

Ponto final

Não sou de ismos nem de istas. Ainda assim, quando no final de cada mês

vejo no recibo do vencimento a larga fatia que sai do pagamento do meu

trabalho para não sei bem onde, sinto uma simpatia crónica pelo anarquismo.

Definição

Amigalhaço: amigo que nos diz emocionado: "As portas da minha casa estão

sempre abertas para ti e para os teus" - e, de imediato, corre para casa para as

trancar, não vá a gente tomá-lo à letra.

Felicidade:

verso adverso

Cavername:

As traves brancas do nosso esqueleto são o último vestígio que a morte subtrai,

das naus que fomos e das viagens que fizemos

Não adianta viver do passado, não há sangue correndo nas estátuas de sal

Antes o perfume dos nardos que a carícia dos cardos

A luminosa natureza é o altar do crente de visão clara

Se uma criança soubesse o que é realmente a vida, recusava-se a crescer

O pior mesmo é que não temos emenda, somos um soneto truncado.

O modo menos trabalhoso de sair da mediocridade, é ser uma perfeita nulidade

Dinâmica inevitável

Todos os livros que lemos são Livros de Viagens

Mastrôncio

Adjectivo bicudo aplicado pela primeira vez ao cientista que descobriu o

elemento químico Ostrôncio.

Bate-chapas:

Sub-designação de carreira para os docentes da área de Linguas, fazendo jus ao

seu trabalho para minorar os danos causados por pontapés na gramática, na

sintaxe, no vocabulário e em tudo o mais.

Céus:

O céu dum crente é feito de prados floridos, arcanjos e pontes de luz. O céu de

um ateu, de cirros, cúmulos, nimbos e outras nuvens. O crente nunca consegue

uma imagem de satélite que o satisfaça.

"Estes gajos drogam-se":

Expressão que utilizamos na escola quando descobrimos que os Babilónios e os

Caldeus viam o mundo como um disco a flutuar no oceano cósmico.

A mesma expressão era usada pelos profetas caldeus e babilónios, aplicando-a

ao nosso universo quântico, composto por átomos volúveis e temperamentais

que ora são partículas, ora são ondas.

Peixe-espada:

Espécie de peixe longilíneo e espadaúdo.

Peixe-alfinete:

Exemplares diminutos do peixe-espada, com nítidos complexos sobre o seu

comprimento.

Quando os astros não nos são favoráveis, temos um horroróscopo

O nosso destino é uma espera intestina

O progresso nada mudou: ou nos manipulam ou nos mecanizam

Engravidar, é um verbo de encher

As imagens de felicidade que orientam as nossas vidas não vêem da poesia, da

filosofia ou da religião - são tiradas de anúncios publicitários

Jesus foi sempre mal interpretado, sobretudo pelas igrejas fundadas ou forjadas

em seu nome

Objecto vs. sujeito: o crente acredita em algo exterior a si; o fanático acredita

primeiro na sua ideia de crença

"Passamento" é uma palavra elegante para morte. Para quem não acredita no

Além, devia-se usar antes a palavra "terminamento"

Acento gràve, acento agúdo

gramana, nagarama, magarana, garamana: anagramas de anagrama

A web urdiu a solidão com uma teia dourada, nós continuamos a ser as moscas

de sempre

Os pais acantonam os filhos em creches e jardins, amas e avós, colónias de férias

e externatos. Os filhos retribuem, acantonando-os em Lares

Se apenas precisássemos de dormir duas ou três horas por dia...tínhamos mais

tempo para parar nas estações de serviço das auto-estradas

O televisor faz-nos viajar no tempo e no espaço: tira-nos espaço e rouba-nos

tempo

Os líquenes descorados e secos são os Jardins de Inverno dos insectos

deprimidos

Pelasgos

Um arquipélago é um conjunto de ilhas. Uma ilha habitada é um arquipélago de

pessoas-ilha.

Nem todos temos o complexo de Peter Pan, mas quase todos nos sentimos viver

na Terra do Nunca.

Uma narrativa ideal não acaba com um ponto final, deixando o leitor suspenso

duma vírgula num horizonte por definir.

Hoje sobejam acordos de divórcio. Mas, porque lhe chamam acordos?

cocktail

"Agitar antes de abusar"

Adaga/adágio

Quando o Sol nasce é para todos. Para os que não querem ser como todos, a

noite fria é o seu cálido refúgio.

Saturno

O Senhor dos Anéis

Harry Potter XLI:

"A Aventura Mágica do Cartão 65"