Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017....

139
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP Ana Carolina Schmidt Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem nos círculos restaurativos MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2010

Transcript of Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017....

Page 1: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP

Ana Carolina Schmidt

Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psico dramático sobre o lugar do jovem nos círculos restaurativos

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO 2010

Page 2: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP

Ana Carolina Schmidt

Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psico dramático sobre o lugar do jovem nos círculos restaurativos

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Social, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Cristina Gonçalves Vicentin.

SÃO PAULO 2010

Page 3: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

Banca Examinadora ________________________________________ ________________________________________ ________________________________________

Page 4: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

Aos meus pais, Delmar e Regina, aos

meus irmãos, Patrícia e Carlos, ao meu

sobrinho Leo: pelo amor, por me fazerem

acreditar e querer sempre mais.

E aos jovens que me trouxeram até aqui,

em especial, Kléber.

Page 5: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Profa. Dra. Maria Cristina Gonçalves Vicentin. Por acolher

este projeto de pesquisa. Por me acompanhar nos caminhos e descaminhos desta

pesquisa, com dedicação, cuidado e carinho. Pelo respeito aos momentos difíceis e

por perceber e valorizar os momentos produtivos. Por me ajudar a compreender que,

para chegar aos nossos objetivos, podemos seguir por diversos caminhos, buscar a

mudança por outros meios e não apenas desempenhando os conservados

Personagens “denunciantes”, porém, nunca nos esquecendo de quem somos, de

onde viemos e o que nos vez vir até aqui.

À Profa. Dra Marília Josefina Marino, pela intensidade de cada encontro e por

ser sempre essa presença apaixonante. Por estar presente em tantos momentos

desta pesquisa. Por acolhê-la como “nosso projeto” para a monografia do curso de

formação em Psicodrama. Pelas constantes contribuições e discussões, indicando

leituras, lendo e relendo meus textos, escutando minhas angústias em relação ao

campo e me fazendo ver novas alternativas. Por acompanhar e me ajudar nas tantas

mudanças necessárias ao “nosso projeto”.

À Profa. Dra Patrícia Junqueira Grandino, por fazer parte desta banca e pelas

contribuições fundamentais que trouxe a este trabalho desde o momento da

qualificação. Pelas indicações de leitura e dos caminhos possíveis a seguir.

Ao grupo de práticas restaurativas de São Caetano do Sul: aos facilitadores

comunitários, à equipe de capacitação e, em especial, ao Juiz Dr. Eduardo Melo,

pela confiança de todos neste trabalho, pela disponibilidade e por nos possibilitar a

vivência dos círculos restaurativos.

Aos professores do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia

Social da PUC-SP, pelo constante aprendizado que me proporcionaram.

À minha família. Meus pais Delmar e Regina, meus irmãos Patrícia e Carlos e

meu sobrinho Leo. Fontes e exemplos de coragem, força ética e esperança. Pelo

amor, apoio e cuidado constantes. Por todo investimento feito. Por me fazerem

acreditar e lutar pelos meus e nossos sonhos.

Aos meus “dindos” Eurico e Nita, pelo amor e por lutarem com as armas que

têm.

Page 6: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

Ao Nuclíssimo, Suzana, Ana Lúcia, Gabriela, Adriana, Carla e Fernando,

pelas inquietações e resistências. Pelas longas discussões apaixonantes, e pelas

comemorações.

À Gabriela Gramkow, a Gabi, por novamente me ajudar a realizar meus

sonhos profissionais e por me apoiar desde os primeiros passos desta conquista.

À Ana Lúcia Prado Catão, pelo apoio e ajuda essenciais nos momentos finais.

À Carla Carolina Anunciação, a Carlota, por dividirmos as angústias de um

campo novo e as dificuldades de nossas pesquisas. E por tentarmos construir um

lar, mesmo longe de nossas famílias.

À Elisabeth Maria Sene-Costa, a Beth, por me buscar de onde eu me perdia.

Por sua doçura, dedicação, amor e cuidado. A Zizi, Miguel e Márcia, companheiros

desta jornada.

À Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP) por me proporcionar

esse Encontro com o Psicodrama. Em especial à Marília Marino, Luis Russo, Sérgio

Perazzo e Gisela Castanho pelos momentos de crescimento e deste “vir a ser

psicodramatista”. E, ainda, à Maria Célia Malaquias, Izilda, Camila, Mary e Janaína

pelo acolhimento e carinho.

À turma Mexpresso 2222, pela possibilidade de pegar o bonde na hora certa,

e ter vivido momentos tão espetaculares e transformadores com vocês. Por me

acolherem nesta terra e nos desafios que ela me trazia. Por me ajudarem a construir

e a me sentir em casa.

Às amigas Carla, Bianca, Fabi, Tamara, Camila e Carol, e aos amigos Kléber,

Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa vida

paulistana.

Às amigas Renata, Paty, Marcela, Manu e Dani, e os amigos André, Marcelo,

Vini e Pedro pelo incentivo à busca pelos meus sonhos e por me deixarem partir

nesta busca.

Ao Núcleo de Estudos e Atenção à Exclusão Social (NATEX) por me

proporcionar os primeiros espaços de prática e de discussões críticas.

Aos jovens que encontrei por estes caminhos. Kléber, Carlos Eduardo, Pedro

Henrique, Rafael, Paulo Henrique, Edenezer, Paulo, Galeno e tantos outros que

resistiram como foi possível e para além de seus limites.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

pelo investimento nesta pesquisa.

Page 7: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

RESUMO SCHMIDT, Ana Carolina. Práticas Restaurativas Comun itárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem nos círculos restaurativos.

As práticas restaurativas são consideradas, em relação ao Sistema de Justiça

Tradicional, uma nova alternativa para a resolução de conflitos e a restauração das relações que foram afetadas. Nesse trabalho investigamos estas práticas no contexto comunitário do município de São Caetano do Sul, SP, e, em específico, o lugar atribuído ao jovem e à sua participação no contexto do círculo restaurativo.

O aporte teórico e metodológico é o Psicodrama, com foco na Teoria de Papéis e nos conceitos de Papel Social e Personagem.

Os dados desta pesquisa referem-se ao acompanhamento dos círculos restaurativos e realização de entrevistas com facilitadores, que conduzem os círculos restaurativos. Todas as situações de conflito que acompanhamos ocorreram no contexto escolar.

Os dados foram tratados por meio de cenas, ou passagens de cenas, ocorridas no próprio contexto do círculo restaurativo ou nos contextos onde ocorreram e se desdobraram os conflitos. Os papéis sociais que identificamos no contexto do conflito são vinculados a Personagens estereotipados, que são atribuídos aos jovens. Nos círculos restaurativos, esses Personagens se evidenciam e dificultam ou impossibilitam o diálogo entre as partes do conflito. Dessa forma, a participação dos jovens nos círculos restaurativos é comprometida e, na maioria dos casos, compromete, também, a mudança da relação que está em conflito e a vivência de Personagens menos conservados.

Palavras-chave: Justiça Restaurativa, Psicodrama, Adolescente, Conflito na escola.

Page 8: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

ABSTRACT SCHMIDT, Ana Carolina. Restorative Practices Commun ity: a psychodramatic look about the place of youth in restorative circle s.

The restorative practices are considered a new alternative for resolving conflicts and restoring the affected relationships in conflict, in opposition to the traditional justice system. In this research we have considered (acrescentei e mudei o tempo verbal) these practices inside the community of the city of São Caetano do Sul – SP. Particularly, ponder about the place given to the youth and their participation in the restorative circle.

The theoretical framework and the methodology is psychodrama, with a specific focus on the Theory of Roles and in the concepts of Social Role and Character.

The research data refers to the monitoring of restorative circles and the interviews with facilitators, who lead the restorative circles. All the conflicts, that we accompanied, occurred in the school context.

The data was processed through scenes or pieces of scenes, which took place in the actual context of the restorative circle or in the context in which the conflicts occurred. The social roles that are involved in the conflict are bound to stereotyped characters, which are attributed to young people. In the restorative circles these characters become evident and they make the dialogue between the parties involved difficult or impossible. Therefore, youth participation in restorative circles is compromised. Moreover, in most cases, it is impossible to change the relationships that is in conflict and experience a character less conserved.

Keywords: Restorative Justice, Psychodrama, Adolescent, Conflict in school.

Page 9: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................12

1. Da chegada ao tema .......................................................................................12

2. Dos caminhos e dos procedimentos de pesquisa............................................16

3. Das partes que compõem este trabalho ..........................................................20

CAPÍTULO 1 – DAS PRÁTICAS RESTAURATIVAS ................................................22

I - Justiça Restaurativa: aspectos filosóficos, jurídicos e históricos .....................22

1. No mundo ...................................................................................................29

2. No Brasil .....................................................................................................30

3. Em São Caetano do Sul .............................................................................31

II - As práticas e metodologias da Justiça Restaurativa.......................................33

1. Diferentes práticas e metodologias ............................................................33

2. No contexto de São Caetano do Sul...........................................................35

3. No contexto comunitário: o modelo Zwelethemba......................................35

4. A formação dos facilitadores em São Caetano do Sul................................42

III - Justiça Restaurativa e Juventude ..................................................................44

CAPÍTULO 2 – DAS FERRAMENTAS CONCEITUAIS PARA PENSAR AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS: UM OLHAR DESDE O PSICODRAMA...................47

I - Vida e obra de J. L. Moreno ...........................................................................47

II - A teoria socionômica: psicodrama ..................................................................49

III - Dimensões individual e relacional: A microssociologia moreniana ................51

1. Tele.............................................................................................................55

2. Encontro .....................................................................................................56

IV - Teoria de papéis e o conceito de Papel ........................................................58

V - Personagem .................................................................................................61

VI - Do Psicodrama no contexto de pesquisa ......................................................66

Page 10: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

CAPÍTULO 3 – OLHANDO PARA OS CÍRCULOS RESTAURATIVOS COMUNITÁRIOS: OS CONFLITOS NO CONTEXTO ESCOLAR.............................72

I - Dos procedimentos de análise.........................................................................72

II - Dos círculos que acompanhamos...................................................................74

1. Estrutura de desenvolvimento do círculo....................................................75

2. Sinopses dos círculos.................................................................................76

2.1. Círculo 1.............................................................................................77

2.2. Círculo 2.............................................................................................78

2.3. Círculo 3.............................................................................................79

2.4. Círculo 4.............................................................................................80

III - Dos conflitos e seus encaminhamentos.........................................................81

1. Dos tipos de conflito ...................................................................................81

1.1. Conflito aluno-aluno ...........................................................................82

1.2. Conflito professor-aluno .....................................................................82

2. Rotas institucionais do conflito ...................................................................85

3. Das ausências ...........................................................................................88

3.1. Das partes do conflito.........................................................................88

3.2. Da escola ...........................................................................................90

3.3. Dos facilitadores.................................................................................92

IV - Alguns aspectos problemáticos do manejo do círculo...................................94

1. Buscar a verdade ou construir responsabilização? ...................................94

2. A complexidade do Papel de facilitador......................................................97

CAPÍTULO 4 – QUANTO AO LUGAR DO JOVEM NOS CÍRCULOS.......................99

I - Dos modos pelos quais os jovens são referidos..............................................99

1. O Personagem aluno “problema” ...............................................................99

2. O Personagem jovem “violento” ...............................................................102

3. O Personagem “homossexual” .................................................................105

II - De quando o jovem tem voz e de como ele se apresenta ............................106

III - Do lugar do jovem no acordo ......................................................................113

1. O acordo forçado......................................................................................113

2. Acordo entre adolescentes .......................................................................118

3. Acordo encobridor ....................................................................................118

4. “Fazer-se de tonto” ...................................................................................119

Page 11: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

IV - De como o jovem é afetado pela atribuição de Personagens .....................119

V - Do lugar da família .......................................................................................121

1. Família como causa do conflito ................................................................121

2. Pai silenciado, passivo .............................................................................122

3. Família em defesa do jovem.....................................................................123

4. A família surpreendida e a escola que não fala........................................125

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................127

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................133

ANEXO....................................................................................................................137

Page 12: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

12

INTRODUÇÃO

1. Da chegada ao tema

As interfaces da Psicologia com a Justiça constituíram-se em interesse desde

a graduação em Psicologia na Universidade Católica de Brasília – UCB, em especial

o campo dos adolescentes autores de ato infracional. Ainda na graduação tive a

oportunidade de realizar estágios e a monografia de final de curso nessas

interfaces.1 Nos estágios trabalhava com grupos de jovens numa abordagem

psicodramática.

Depois de formada, trabalhei em uma instituição de semiliberdade em

Brasília, sempre com a escuta e o olhar psicodramático. No decurso do processo de

graduação e nos primeiros passos como profissional, fui voluntária no Núcleo de

Estudos e Atenção à Exclusão Social (NATEX), uma Organização Não-

governamental (ONG) que desenvolvia projetos sociais junto à população em

situação de rua e às instituições que aplicavam as medidas sócio-educativas aos

jovens autores de atos infracionais, no contexto do Distrito Federal. O NATEX

proporcionava um espaço de intervenção psicossocial e política com forte

embasamento psicodramático e, além disso, um espaço de discussão crítica em

relação às políticas públicas aplicadas a essas populações.

A partir desses trabalhos que estava realizando, surge a necessidade de

aprofundar meus estudos, tanto da teoria e prática psicodramática, quanto das

discussões críticas a respeito dos modelos institucionais de atendimento aos jovens

autores de atos infracionais. Visto que, dentro da unidade de semiliberdade, senti-

me violentada como profissional, desacreditada por ser “jovem demais”, “cheia de

ideologias”, que “não sabe do que esta falando”, “não sabe como o mundo é na

realidade”, “não vê o que esses adolescentes fizeram” e forçada a ver fotos em

processos de homicídios para “encarar a realidade dos fatos”. Sem muitas

alternativas e possibilidades de mudanças, a não ser enquadrar-me na forma

institucionalizada de trabalhar, no modo “sempre foi assim”. A valorização

profissional era dada pelos juízes, promotores e defensores da Vara da Infância e

Juventude, pois levavam em consideração os relatórios feitos, valendo-se de seus

argumentos técnicos para dar seu parecer quanto à permanência ou não do

1 Schmidt, A.C. Construindo mudanças: adolescentes em conflito com a lei e redes sociais. Trabalho final de curso, UCB, 2004.

Page 13: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

13

adolescente encarcerado, fato que incomodava profundamente os funcionários não-

técnicos da unidade. Negando-me a assumir estes Personagens profissionais, da

psicóloga que “faz relatórios adequados”, para a unidade ou para o sistema judicial,

e da psicóloga que “acalma jovens que se rebelam”, peço demissão!

Vir para São Paulo torna-se um desejo profissional e pessoal, que em poucos

meses se concretiza. Paralelamente a esta pesquisa, realizo a especialização em

Psicodrama2 e desta forma, as bases filosóficas, teóricas e metodológicas desse

campo são atravessamentos ainda mais marcados e constantes nos estudos e

escutas que realizo. Ainda relevante, considera-se que o referencial teórico-

metodológico do Psicodrama potencializa a discussão das interações indivíduo-

grupo-sociedade nas práticas restaurativas, que são interesses desta dissertação.

A Justiça Restaurativa atravessa minha prática profissional quando, ainda

trabalhando na semiliberdade em Brasília, os profissionais de diversas unidades de

atendimento aos jovens infratores são “convidados” a assistir uma palestra sobre o

tema. Apresentam-nos, então, as práticas de Justiça Restaurativa que estavam se

iniciando no Núcleo Bandeirante – DF. O encantamento imediato com as

possibilidades dessa prática, desse novo paradigma, infelizmente, se esvai no

cotidiano do trabalho.

Voltemos aos aspectos relativamente mais formais desta introdução, para

apresentar a Justiça Restaurativa, a pesquisa do Núcleo de Estudos Violências:

Sujeito e Política (NEVIS) e esta dissertação em particular.

As práticas restaurativas têm sido difundidas em diversos países desde a

década de 70 do século XX. A Nova Zelândia, pioneira na implantação de práticas

restaurativas, inspiradas em costumes dos aborígenes Maoris, reformulou, em 1995,

seu Sistema de Justiça da infância e juventude e teve grande sucesso na prevenção

e reincidência de atos infracionais. Atualmente, projetos similares estão sendo

desenvolvidos no Canadá, Austrália, África do Sul, Reino Unido e Argentina. Em

2002 o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas recomendou a aplicação

da Justiça Restaurativa aos Estados-Parte das Nações Unidas.

No ano de 2005, no Brasil, foram implementados três projetos-piloto de

Justiça Restaurativa: nas cidades de São Caetano do Sul (SP), Núcleo Bandeirante

2 Convênio entre a Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP) e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Page 14: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

14

(DF) e Porto Alegre (RS)3. Desde então, outras cidades estão aderindo a essas

práticas restaurativas, buscando, com esse meio alternativo às formas tradicionais

de justiça, dita Retributiva, uma mudança paradigmática na forma de resolução de

conflitos.

Essas práticas restaurativas ocorrem nos chamados círculos restaurativos4,

que, reunindo voluntariamente as partes5 de um conflito, familiares, pessoas da

comunidade afetadas pelo conflito e facilitadores6, buscam, através do diálogo, a

pacificação e, na medida do possível, a restauração das relações afetadas pelo

conflito.7 O círculo restaurativo visa ser um espaço de poder compartilhado, sem

julgamentos ou culpabilização, em que os participantes são estimulados a discutir,

de forma organizada, o que motivou o conflito e suas conseqüências. O objetivo é

conseguir superar o conflito e chegar, de forma cooperativa e autônoma, a um

acordo e a um plano de ação, que deve ser factível, preciso e válido para todos os

envolvidos.

Por meio do protagonismo de cada um dos envolvidos, buscam a reparação

das conseqüências de um conflito ou infração, humanizando e trazendo para o

campo da afetividade as relações atingidas, de forma a gerar maior coesão social na

sua resolução e maior compromisso na responsabilização do infrator e no seu

projeto de ajustar socialmente seus comportamentos futuros.

Parte-se do pressuposto de que o conflito, crime ou o ato infracional causa

danos às pessoas e aos relacionamentos. Entende-se que não só a vítima e o

transgressor são afetados, mas também toda comunidade sofre as conseqüências

do ato danoso. Desta forma, não se trata mais apenas de concentrar-se na

determinação da culpa e na punição aos transgressores, como ocorre no modelo

retributivo, com fraco potencial de transformação positiva do agressor, mas de

permitir a compreensão das razões de seus atos e das conseqüências deles

advindas.8

3 Com apoio do Ministério da Justiça, através da Secretaria da Reforma do Judiciário, em parceria com o PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. 4 Alguns autores também os denominam como círculos de paz ou câmaras restaurativas, fato que causa algumas confusões, pois se referem a metodologias diferentes, como veremos no item II deste capítulo. 5 Chamados de vítima e agressor no modelo de Justiça Tradicional, Retributiva. 6 Inicialmente o facilitador era chamado de conciliador, porém outros termos também são utilizados, como mediador e pacificador. Melo (2008) define o facilitador como alguém que conhece as dinâmicas dos processos restaurativos. 7 Abordaremos mais profundamente a Justiça Restaurativa, suas práticas, contextos e metodologias no Capítulo 1 deste trabalho. 8 Melo, 2004, 2005; Konzen, 2007 apud NEVIS, 2008.

Page 15: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

15

Especificamente no município de São Caetano do Sul, contexto desta

pesquisa, sob a coordenação do Juiz titular daquela comarca, a capacitação dos

facilitadores inicia-se com professores e técnicos do Fórum, que passam a aplicar as

práticas restaurativas nas escolas e no Fórum, com a metodologia da Comunicação

Não-Violenta. Posteriormente, as práticas restaurativas são expandidas também

para a comunidade e a capacitação dos facilitadores passa a incluir uma nova

técnica, baseada no modelo de Zwelethemba9, da África do Sul. Ampliam-se, assim,

os contextos de atuação, o número de facilitadores capacitados e a diversidade de

conflitos e situações em que podem atuar. Posteriormente, o projeto é ampliado para

capacitar os chamados derivadores10, atores sociais que, por sua função,

constantemente recebem encaminhamentos de casos de conflito e/ou de atos

infracionais. Esses têm a função de acolher e encaminhar os casos às diferentes

alternativas de resolução de conflito, Restaurativas ou Retributivas, informando

sobre as conseqüências de cada opção e respeitando a voluntariedade da

participação dos envolvidos.11

A pesquisa que resulta nesta dissertação é parte integrante da pesquisa

“Práticas de Justiça Restaurativa: subjetividade e legalidade jurídica”, desenvolvida

pelo núcleo de pesquisa Violências: sujeito e política (NEVIS) do Programa de

Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo (PUCSP), em parceria com a 1ª. Vara Criminal e de Crimes contra a

Criança e o Adolescente de São Caetano do Sul (SCS), que desenvolve o Projeto de

Prevenção e Resolução de Conflitos nesse município.

O referido projeto do NEVIS pretende investigar, a pedido da equipe de

práticas restaurativas de SCS, as articulações justiça e produção de subjetividade

em novas práticas de justiça – os círculos restaurativos, no âmbito do trabalho junto

ao adolescente em conflito com a lei, visando contribuir para a implantação e

qualificação dessas práticas no Sistema de Justiça e de Socioeducação juvenil.12

9 Este modelo enfatiza menos as necessidades e responsabilidades individuais, de cada parte do conflito, mudando o foco de atuação para a mudança comunitária e democracia deliberativa (Melo, 2008). 10 Juiz, promotores de justiça, diretores de escolas, assistentes sociais, policiais, agentes comunitários, conselheiros tutelares, advogados e grupos de suporte a minorias e de atendimento a drogadição e alcoolismo. 11 Melo, 2008. 12 NEVIS, 2008.

Page 16: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

16

No decurso desta pesquisa, dois outros projetos a ela vinculados estavam

trabalhando os sentidos de justiça para os jovens participantes dos círculos

restaurativos e a construção do laço social no círculo restaurativo.13

A presente pesquisa propõe-se a problematizar, a partir do referencial do

Psicodrama, as práticas restaurativas no contexto comunitário de São Caetano do

Sul, com foco nos modos pelos quais se desenha o lugar do jovem nos círculos

restaurativos e nos conflitos ali trabalhados.

2. Dos caminhos e dos procedimentos de pesquisa

Neste item temos por objetivo apresentar o desenho desta pesquisa,

explicitando seus objetivos, os procedimentos adotados, além das mudanças de

trajetória que se mostraram importantes.

Quando formulamos o objetivo desta pesquisa, entendíamos que, ainda que a

metodologia restaurativa propusesse uma maior horizontalidade das relações nos

círculos, a relação adulto-jovem merecia ser analisada, dada a persistente relação

de dominação de que essa se reveste. Ou seja, entendíamos, a partir das

formulações de Rosemberg (1985), que podemos falar de uma relação de idade, tal

como a relação de classe, enquanto relação de dominação.

No entanto, precisávamos conhecer inicialmente a metodologia utilizada na

facilitação dos círculos. Assim, começamos tomando conhecimento do material

disponibilizado, principalmente o relatório das práticas restaurativas de São Caetano

do Sul14 e o vídeo que acompanha este relatório, que apresenta e avalia a prática

naquele município. Foram-nos disponibilizados, também, pela equipe de capacitação

dos facilitadores, outros dois vídeos que se referem às práticas do Rio Grande do

Sul e Heliópolis-Guarulhos.

Nesse momento inicial, ainda visando uma primeira aproximação das práticas

restaurativas, mantivemos um olhar ampliado para as demandas que emergissem.

Assim, chamaram-nos a atenção, também, o papel e o lugar institucional dos

facilitadores, conforme explicitaremos mais à frente.

Iniciamos, então, o contato com a equipe de capacitação e com os

facilitadores de um bairro em São Caetano do Sul, o que nos permitiu acompanhar e

13 Anunciação, C.C.P. Figuras de justiça: trajetórias de jovens em práticas de Justiça Restaurativa e Lainetti, M. Justiça Restaurativa e Transformação do Laço Social: adolescência e autoria do ato infracional. Ambas realizaram entrevistas com os jovens participantes dos círculos restaurativos em São Caetano do Sul. 14 Melo, 2008.

Page 17: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

17

observar círculos restaurativos realizados naquela comunidade. Considerávamos

fundamental, antes de iniciarmos uma abordagem direta com os facilitadores,

compreendermos e nos apropriarmos da metodologia de trabalho nos círculos

restaurativos e do cotidiano da prática dos facilitadores. A possibilidade de

observação dos círculos restaurativos mostrou-se fundamental para tal objetivo.

Inicialmente realizamos uma conversa com a coordenadora das práticas

restaurativas e com uma facilitadora que atua naquela comunidade, buscando

compreender o campo em que estávamos nos inserindo. Nesse momento, o

cotidiano dos facilitadores, suas demandas e suas dificuldades na realização do seu

trabalho ganharam a cena. Já no primeiro contato afirmaram que os facilitadores que

continuavam atuando sentiam-se sozinhos e sobrecarregados, pois muitas das

pessoas que tinham sido capacitadas nas técnicas restaurativas estavam afastadas

da prática na comunidade, além do que, o afastamento da equipe responsável pelo

Projeto JR deixava-os inseguros, pois afirmavam ser essa uma prática de muita

responsabilidade.

Tínhamos desenhado uma proposta de pesquisa junto aos facilitadores com

base nas técnicas psicodramáticas e pretendíamos realizar, inicialmente, três

encontros com o grupo de facilitadores, prevendo a possibilidade de ampliação do

número de encontros. O foco era a participação dos jovens nos círculos

restaurativos e a relação de idade, considerando-se as práticas cotidianas dos

facilitadores nos círculos restaurativos.

Nessa primeira conversa, a proposta do grupo psicodramático15 com os

facilitadores foi apresentada e bem aceita. Cogitamos a possibilidade de um trabalho

conjunto com os facilitadores da escola, entretanto, essas facilitadoras preferiram,

inicialmente, um trabalho apenas com os facilitadores da comunidade, incluindo-se

os facilitadores que estavam afastados da prática, buscando o fortalecimento do

grupo. Concordaram em, posteriormente, incluirmos facilitadores das escolas.

A partir das conversas que se sucederam com as facilitadoras e da escuta de

suas demandas, começou a se configurar a necessidade de olharmos para o grupo

de facilitadores, visto que, para além do objetivo desta pesquisa, evidenciaram-se as

necessidades, por parte do grupo de facilitadores, de supervisão e de participação

15 Não apresentamos neste texto o desenho do grupo em detalhes, na medida em que não foi realizado, mas pretende-se dar seqüência ao procedimento, num desdobramento desta pesquisa, para a monografia final de formação em Psicodrama.

Page 18: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

18

de atores externos, pois sentiam necessidade de compartilhar sua prática e avaliá-la

criticamente. Na fala das facilitadoras, ficou evidente que o afastamento de vários

membros e a falta de acompanhamento e supervisão de suas práticas, tornava o

grupo fragilizado e reduzia sua capacidade de atuação.

Concomitantemente, iniciamos a observação dos círculos restaurativos com o

objetivo de nos aproximarmos de suas práticas e formas de condução do trabalho,

observando inclusive a circulação da fala, principalmente no tocante à participação

dos jovens. Inicialmente, propusemo-nos a uma observação buscando interferir o

mínimo possível no desenrolar do círculo, mesmo sabendo que nossa presença já

configurava um fator interveniente. Assim mesmo, o mero fato de observar em

silêncio o círculo restaurativo configurava uma situação de tensão e de

estranhamento para os participantes e facilitadores, visto que todos eram

convocados a manifestar-se em relação à situação de conflito de que se tratava. Já

ao final da observação do primeiro círculo, foi solicitado pelos facilitadores que a

pesquisadora participasse dos mesmos, pois consideravam importante que todos os

presentes buscassem participar na resolução do conflito.

No transcorrer das observações dos círculos restaurativos, paralelamente,

buscamos construir a possibilidade de realização do grupo com todos os

facilitadores daquela comunidade, buscando, com o apoio dos facilitadores

que estavam atuando, a participação dos que se tinham afastado. Fizemos uma

primeira tentativa de realização do grupo em um período em que não haveria

círculos restaurativos, escolhendo dias e horários em que a maioria teria

disponibilidade. Entretanto, apesar desse período ter sido apontado como o mais

adequado para a realização dos encontros com o grupo, não foi possível realizá-los,

tendo em vista a afirmação dos facilitadores de que não teriam disponibilidade de

tempo, pois resolveriam problemas pessoais nesses dias sem círculos restaurativos.

Resolvemos, assim, seguir por outro caminho, realizando inicialmente

entrevistas psicodramáticas individuais16 com os facilitadores, visto que tínhamos um

prazo para a realização deste grupo que se tornou inviável dentro dos limites

temporais desta pesquisa. Porém, ainda haveria a possibilidade de realizarmos os

encontros com o grupo de facilitadores mais ao fim da pesquisa.

16 Houve a preparação de roteiros para sua realização. Entretanto, não serão detalhados nesta dissertação, visto que não forneceram o material central aqui analisado, como veremos a seguir. Esse material será trabalhado em pesquisa subseqüente.

Page 19: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

19

Fizemos um convite aos facilitadores por e-mail, apresentando a proposta da

pesquisa e convidando-os a participar de entrevistas individuais e anunciando a

possibilidade de realização de alguns encontros em grupo. No entanto, apenas uma

facilitadora respondeu ao e-mail, disponibilizando-se a participar da entrevista. Com

ela, fizemos vários contatos telefônicos, chegando a marcar algumas vezes a

entrevista, a qual foi reiteradamente desmarcada por motivos pessoais da

facilitadora.

Passamos a uma nova estratégia e por telefone buscamos entrar em contato

com os facilitadores. Contudo, alguns dados estavam incompletos e alguns telefones

não existiam mais, as ligações não se completavam.17

Desses contatos, obtivemos êxito em apenas um contato e a entrevista foi

realizada. Esse facilitador disponibilizou-se e achou interessante a realização dos

encontros em grupo, buscando um retorno dos facilitadores que se afastaram da

prática. Após diversos contatos telefônicos, conseguimos realizar uma segunda

entrevista, desta vez com a outra facilitadora que se havia disponibilizado.

Paralelamente às entrevistas, continuávamos acompanhando os círculos

restaurativos realizados na comunidade. Em um desses círculos restaurativos

(Círculo 4),18 fui solicitada a participar mais ativamente, pois a facilitadora estava

sozinha e o círculo incluía grande número de participantes. Essas demandas de

participação dirigidas à pesquisadora repetiram-se em outros momentos e serão

analisadas no Capítulo 3.

Após acompanharmos a realização de quatro círculos e realizar duas

entrevistas, dois caminhos de pesquisa se evidenciaram: continuar as entrevistas

com os facilitadores, com o risco de seguir enfrentando as mesmas resistências que

já se evidenciaram no primeiro momento ou voltar o olhar para a riqueza de dados

fornecidos pelos círculos restaurativos acompanhados. Assim, decidimos trabalhar

fundamentalmente com o material oriundo das observações dos círculos,

considerando, então, como participantes desta pesquisa todos os presentes nos

círculos, voltando nosso olhar fundamentalmente para o lugar e o papel atribuídos

ao jovem e à sua participação nesse contexto restaurativo.

Sintetizando, os dados desta pesquisa abrangem:

17 Fato que também dificultou as pesquisas anteriores desenvolvidas pelo NEVIS, porém em relação à localização dos adolescentes que seriam entrevistados. 18 Ver análises no subitem “Ausência dos facilitadores”, no Capítulo 3.

Page 20: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

20

1- Observação de quatro círculos restaurativos conduzidos por facilitadores

comunitários no contexto de um bairro de São Caetano do Sul. Não houve

um critério de escolha dos círculos restaurativos que acompanhamos,

visto que a pesquisadora compareceu a todos os plantões restaurativos19

aos quais foi convidada. Não tínhamos acesso a nenhuma informação

referente a esses encontros antes de sua realização, apenas nos era

informado que haveria plantão restaurativo.

2- Realização de entrevistas com dois facilitadores.

3- Escrita de diário de campo no transcorrer de toda pesquisa.

Cabe esclarecer, ainda, que, desde o início, este projeto foi submetido ao

Comitê de Ética. Os participantes (incluindo-se as partes em conflito, seus

acompanhantes e os facilitadores) autorizaram verbalmente a gravação do círculo

restaurativo e foram esclarecidos quantos aos seus direitos. Os facilitadores

comunitários de Justiça Restaurativa assinaram o termo de consentimento livre e

esclarecido.20

3. Das partes que compõem esse trabalho

No primeiro capítulo desta dissertação apresentamos os aspectos filosóficos,

jurídicos e históricos da Justiça Restaurativa, nos contextos mundial, brasileiro e de

São Caetano do Sul; abordamos as práticas e metodologias da Justiça Restaurativa,

destacando as diferentes metodologias (em especial o modelo Zwelethemba, que é

o mais utilizado no contexto comunitário de São Caetano do Sul); apresentamos

rapidamente o processo de capacitação dos facilitadores de São Caetano do Sul; e

problematizamos a aplicação da Justiça Restaurativa no contexto da juventude.

No segundo capítulo, apresentamos a filosofia, teoria e metodologia

psicodramática como ferramenta conceitual e metodológica para olhar e

problematizar os círculos restaurativos.

No terceiro e quarto capítulos, apresentamos os dados da pesquisa e

desenvolvemos a análise dos mesmos, articulando-os com o aparato conceitual e

metodológico do psicodrama. 19 O Plantão Restaurativo refere-se a dois dias da semana disponibilizados pelos facilitadores comunitários nos quais recebem pessoas da comunidade que as procuram espontaneamente ou pessoas encaminhadas diretamente pelo Fórum. Pode ocorrer apenas o pré-círculo (caso uma das partes não compareça), o círculo restaurativo propriamente dito (quando há a presença das duas partes do conflito e há um acordo) ou o pós-círculo (com a presença de uma das partes ou ambas e o cumprimento do acordo é confirmado). 20 Termos de Consentimento em anexo.

Page 21: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

21

Por fim, tecemos nossas considerações finais desta pesquisa e destacamos

aspectos que ganhariam em ser mais especificamente tratados em novas pesquisas.

Page 22: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

22

CAPÍTULO 1 – DAS PRÁTICAS RESTAURATIVAS

Iniciaremos, neste capítulo, pela apresentação de alguns aspectos históricos,

jurídicos e filosóficos das práticas de Justiça Restaurativa, considerando como

surgem no contexto mundial, para depois caracterizá-las no Brasil, no estado de São

Paulo e, em específico, no município de São Caetano do Sul.

Na seqüência, ainda com o propósito de caracterizar essas práticas no

contexto de São Caetano do Sul, apresentamos as diferentes metodologias e o

processo de formação dos facilitadores comunitários.

Finalmente, problematizaremos a Justiça Restaurativa no contexto da

juventude e da Justiça Juvenil.

I - Justiça Restaurativa: aspectos filosóficos, jur ídicos e históricos

A Justiça Restaurativa surge, no âmbito do sistema judicial, como um novo

paradigma, um novo olhar para os conflitos, atos infracionais e crimes, uma ruptura

com a tradicional forma do “fazer justiça”, a chamada Justiça Retributiva. Diversos

autores21 destacam essa oposição entre o Sistema de Justiça Retributivo e o

Restaurativo, destacando as diferenças entre os dois modelos, no que se refere aos

seus aspectos filosóficos e de procedimento jurídico, principalmente aspectos como:

a relação com o Estado, o entendimento de crime ou infração, o papel da vítima, do

ofensor e dos envolvidos, dentre outros.

Por exemplo, Pinto faz um quadro comparativo entre a Justiça Retributiva e a

Justiça Restaurativa, destacando as diferenças de valores, procedimentos,

resultados e efeitos para a vítima e para o infrator22. Afirma que a mudança de

paradigma da Justiça Restaurativa afeta a todos os profissionais envolvidos nessas

práticas, indicando que precisam mudar o olhar sobre sua atuação, pois estarão

“trabalhando com uma concepção ampliada de justiça, que não é mais estritamente

jurídica, mas interdisciplinar.”23

Benedetti afirma que muitos autores, por uma mobilização militante ou por

descrever experiências pontuais, acabam por fazer esta confrontação direta entre a

Justiça Retributiva e Restaurativa, por meio de uma comparação negativa, o que

21 Melo (2005), Konsen (2007), Pinto (2005 e 2006), Scuro (2008). 22 Estas diferenças serão destacadas no transcorrer do capítulo. 23 Pinto, p.3, 2006.

Page 23: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

23

limita o desenvolvimento conceitual e a fundamentação teórica da Justiça

Restaurativa.24 Para além dessas diferenças, alguns autores25 afirmam que, no que

se refere à prática do Sistema Judicial, a Justiça Restaurativa é complementar à

Retributiva, e não substitutiva.

Segundo Pinto26, a expressão Justiça Restaurativa é atribuída a Albert

Eglash, que em 1977 afirmou que havia três possibilidades de respostas a um crime,

a Retributiva (punição), a Distributiva (reeducação) e a Restaurativa (reparação).

Além disso, considera que apesar de a expressão “Justiça Restaurativa” prevalecer

na língua portuguesa, a tradução mais adequada de Restorative Justice seria

“Justiça Reparadora”.

Analisando os aspectos contemporâneos do Sistema Judiciário, Neto destaca

que a Justiça Restaurativa conforma-se à reforma do Judiciário27 e é uma alternativa

para solucionar a paralisia desse Poder Público. Refere-se a três interseções da

relação da Justiça Restaurativa com o Sistema Judiciário: facilitando o acesso de

pessoas desprivilegiadas aos serviços de Justiça principalmente em casos de

família, infância e juventude e crimes de menor potencial ofensivo; reafirmando o

poder estatal e desfazendo o desencanto das pessoas comuns com o Judiciário; e

identificando momentos durante o processo legal em que a Justiça Restaurativa

pode ser inserida.28

Neto afirma que os Juizados Especiais, também conhecidos como de

“pequenas causas”, ao trocarem penas por outras medidas têm passado, de forma

geral, a imagem de impunidade à população. Aponta que as práticas de Justiça

Restaurativa seriam uma alternativa para mudar essa percepção, restaurando a

imagem da Justiça no Brasil, ao mesmo tempo em que a Justiça Restaurativa se

beneficiaria por estar sob “supervisão competente” do Poder Judiciário.29

Outro aspecto constantemente destacado pelos autores30 e usado como

argumento para enfatizar as vantagens da Justiça Restaurativa é o de que as

práticas de Justiça Restaurativa e Retributiva devem ser conjugadas, possibilitando

que crimes ou atos infracionais considerados como de menor gravidade e que 24 Benedetti (2009). 25 Melo (2005) e Konsen (2007), por exemplo. 26 Idem. 27 Aprofundaremos esta discussão no item 2 deste capítulo, referente à implementação da Justiça Restaurativa no Brasil. 28 Neto (2004). 29 Idem. 30 Melo (2005) e Konsen (2007).

Page 24: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

24

envolvem conflitos em relações interpessoais prolongadas no tempo possam ser

atendidos em seus contextos de origem, comunitários e escolares. Essas medidas

visam não sobrecarregar o Sistema Judicial com esses processos e, até mesmo,

possibilitar que esses conflitos, que muitas vezes seriam encaminhados para o

Sistema Judicial, sejam resolvidos nos seus contextos de origem.

Neste novo paradigma, o crime ou infração é compreendido de forma diversa

do que na Justiça Tradicional. O crime é entendido como uma “violação nas relações

entre o infrator, a vítima e a comunidade.”.31

Jaccould sustenta que: “O crime não é mais concebido como uma violação

contra o Estado ou como uma transgressão a uma norma jurídica, mas como um

evento causador de prejuízos e conseqüências.”.32

Em consonância com essas afirmações, Konsen acrescenta a relevância do

dano causado:

Delito, não mais como uma violação contra o Estado ou como uma transgressão à norma jurídica, mas como um evento causador de prejuízos e conseqüências, dimensões que não se anulam, mas que se somam no propósito de reparar os danos vividos, na abrangência das “dimensões simbólicas, psicológicas e materiais”.33

No modelo de Justiça Restaurativa entende-se que as relações entre as

pessoas envolvidas são afetadas pelo crime, ato infracional ou conflito, pois os

envolvidos não conseguem perceber o outro e colocar-se no papel do outro. Konzen

observa que a Justiça Restaurativa possibilita a “emergência do relacional, locus de

instituição de uma ética em que o outro conta como absolutamente outro.”.34

Para Konzen, a responsabilidade, as dores e as culpas intrínsecas a um

conflito são das partes envolvidas, entretanto, no modelo de Justiça Tradicional, o

Estado retira delas a possibilidade de buscar uma solução. Considera esse fato

como outra forma de violência.35

De forma geral, e ainda sem adentrar nas controvérsias da literatura de

Justiça Restaurativa, podemos afirmar que o modelo busca resolver um conflito/ato

31 Pinto, p. 5, 2006. 32 Jaccould, M, p.7, 2005, In: Achutti, p.72, 2006. 33 Konzen, p. 15, 2008. 34 Idem. 35 O autor aborda o conceito de alteridade e seu paradigma filosófico (Levinas) para desenvolver uma visão crítica no que se refere à Justiça Retributiva. Considera que o autor de ato infracional deve ser considerado como um “ente” e, dessa forma, não ser reduzido a um conceito ou a uma definição. Evitando, assim, totalizações em que o adolescente “é” o infrator, o outro, passivo, uma categoria, onde se dá “a lógica do separar para apurar melhor, para estudar melhor, para compreender melhor, para julgar melhor [...] para tratar melhor, para educar melhor.” (Konzen, p. 16, 2008).

Page 25: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

25

infracional/crime através da participação voluntária das pessoas envolvidas e da

construção de uma decisão consensual, com o objetivo de reparar o dano causado,

restaurar as relações e a harmonia, com um olhar para o futuro dessas relações e da

comunidade. Um novo paradigma, em que o conflito/ato infracional/crime é visto

como um ato que afeta não apenas as partes diretamente envolvidas (vítima e

ofensor), mas, também, suas famílias e a comunidade.

Apesar desses valores serem comuns aos pesquisadores e atores da Justiça

Restaurativa, diversos são os seus olhares e outros os embasamentos filosóficos.

Além disso, os variados campos de aplicação da Justiça Restaurativa e diferenças

culturais e sócio-econômicas entre os países e mesmo, no Brasil, os vários projetos-

piloto também influenciam e possibilitam que diversas metodologias sejam

utilizadas.36

De forma geral, pode-se afirmar que a Justiça Restaurativa é passível de

aplicação em dois contextos:

- no contexto judiciário: há uma valorização, entre alguns autores,37 da

participação da vítima durante o processo, em um papel central, destacando a

importância da reparação do dano causado pelo ofensor, que deve arrepender-se

verdadeiramente de seu ato, sendo capaz de perceber o prejuízo que causou à

vítima e responsabilizar-se por ele. Entre esses autores, defende-se que a

participação da vítima possibilita um enfrentamento do crime ao qual foi submetida e

pode evitar traumas decorrentes do mesmo.

- no contexto comunitário e educacional: percebe-se que o foco é a

restauração da relação que foi afetada, buscando cessar o conflito, a pacificação e a

construção de relações mais harmoniosas entre os envolvidos. Tem um caráter

preventivo, visando evitar que os conflitos se agravem e cheguem ao contexto

judiciário. Busca empoderar a comunidade e a escola para a resolução dos seus

conflitos e tem por objetivo um esvaziamento do Sistema Judicial, visto que muitos

casos encaminhados aos Fóruns poderiam ser resolvidos por estes meios nos

próprios contextos de origem.38

36 As diferentes metodologias serão tratadas na parte II deste capítulo. 37 Pesquisadores da abordagem da Vitimologia, campo multidisciplinar que inicialmente estava vinculado a Criminologia, e que busca, atualmente, constituir interfaces com as áreas de Direitos Humanos e Justiça Restaurativa, como, por exemplo, Walgrave, que esteve presente no 1º Seminário Internacional de Justiça Restaurativa, organizado pela ABMP e Uniabc. 38 Melo (2008).

Page 26: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

26

Durante o 1º Seminário Internacional de Justiça Restaurativa, realizado no

Brasil39, esses diferentes contextos ficam explícitos nas falas dos diversos

palestrantes40, principalmente na posição de Walgrave, que afirma que não podemos

nomear como Justiça Restaurativa as intervenções que estão sendo realizadas nos

contextos comunitários e escolares, visto que o termo define as práticas do

Judiciário, e não se trata de um conflito, mas de um crime (ou ato infracional) que

deve ser incluído nos trâmites legais. Afirma, ainda, ser necessário definir

claramente os conceitos da Justiça Restaurativa para que confusões ou usos

inadequados não sejam feitos.41

Pinto também nos aponta que, devido ao movimento emergente da Justiça

Restaurativa, “o conceito de Justiça Restaurativa ainda é algo inconcluso”.42

Vejamos como, no Brasil, demais autores têm se posicionado. Para

apresentar sua concepção de Justiça Restaurativa, Melo reporta-se aos escritos de

Van Ness e Strong que afirmam que a Justiça Restaurativa é composta de três eixos

gerais: reparação de danos; envolvimento dos afetados e de seus suportes; e

transformação do papel governamental e da comunidade em mudanças sistêmicas.43

Melo afirma ainda que:

Seus valores regentes são empoderamento, participação, autonomia, respeito, busca de sentido e de pertencimento na responsabilização pelos danos causados, mas também a satisfação das necessidades surgidas da situação de conflito.44

Um dos aspectos importantes, destacados por alguns autores45, é que a

Justiça Restaurativa tem o foco no futuro e na restauração das relações

interpessoais, principalmente quando os conflitos ocorrem entre pessoas que

convivem, seja na comunidade, na família ou em instituições, como escola, igreja,

associações.

Outro aspecto destacado está vinculado à importância da responsabilização

do causador do dano e da participação das vítimas dos crimes ou atos infracionais.

De acordo com Pinto, as pessoas, ao se inserirem nas práticas de Justiça

39 1º. Seminário Internacional de Justiça Restaurativa. Realizado entre 30 de setembro e 2 de outubro de 2009 organizado pela ABMP e Uniabc. 40 Lode Walgrave, Pedro Scuro, Leonardo Sica, Egberto Penido e Afonso Konsen. 41 Walgrave, 2009. 42 Pinto, p.21, 2005. 43 Van Ness e Strong, 1997 In: Melo (2006). 44 Melo, p. 65, 2006. 45 Por exemplo, Melo (2006 e 2008), Froestad e Shearing (2005) e Konsen (2008).

Page 27: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

27

Restaurativa participam coletiva e ativamente da construção de soluções, buscando

a superação dos traumas e a reparação das perdas causadas pelo crime.46

A Justiça Restaurativa enfatiza a importância de se elevar o papel das vítimas e membros da comunidade ao mesmo tempo em que os ofensores (réus, acusados, indiciados ou autores do fato) são efetivamente responsabilizados perante as pessoas que foram vitimizadas, restaurando as perdas materiais e morais das vítimas e providenciando uma gama de oportunidades para diálogo, negociação e resolução de questões.47

Aprofundando este aspecto da responsabilização e restituição, Achutti afirma

que os objetivos da Justiça Restaurativa seriam “restituir à vítima a segurança, o

auto-respeito, a dignidade e, mais importante, o senso de controle”, e atribuir “[...]

aos infratores a responsabilidade por seu crime e respectivas conseqüências;

restaurar o sentimento de que eles podem corrigir aquilo que fizeram e restaurar a

crença de que o processo e seus resultados foram leais e justos”.48

Em relação ao papel do Juiz na Justiça Restaurativa, comparando-o ao

modelo tradicional de Justiça, Konzen estabelece que o Juiz deveria abrir mão de

seu poder real e simbólico e dar ao adolescente, antes de ser interrogado, a

possibilidade da palavra genuína. Isto não significa deslegitimar o Estado, nem

sugerir um modelo abolicionista ou de desinstitucionalização, pois observa que “há

necessidade de instituições que arbitrem e uma autoridade política que a sustente”.49

Apresentaremos, na seqüência, alguns aspectos referentes às práticas da

Justiça Restaurativa, visando um primeiro delineamento do funcionamento deste

modelo.50

Esse novo paradigma que apresentamos até então, o da Justiça Restaurativa,

é concretizado, principalmente, nos chamados círculos restaurativos. Melo afirma

que o círculo restaurativo divide-se em três etapas que visam restaurar, reparar e

reintegrar as relações: compreensão mútua, reconhecimento das responsabilidades

e acordo. Os resultados dos círculos podem ser: pedido de desculpas, reparação,

restituição e prestação de serviços comunitários.51

Este mesmo autor afirma que o ambiente onde ocorrem os círculos deve ser

informal, estruturado, tranqüilo e seguro. Deve ser observado se há tensão ou

46 Pinto (2006) 47 Azevedo, p.6, 2005 In: Achutti, p.100, 2006. 48 Morris, p.3, 2005 In: Achutti, p.71, 2006. 49 Levinas, p. 248, 2005 In: Konzen, p. 19, 2008. 50 Aprofundaremos os aspectos teóricos referentes às práticas e metodologias restaurativas na parte II desse capítulo. 51 Melo (2008).

Page 28: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

28

ameaça, buscando evitar a re-vitimização do ofendido ou a vitimização do infrator.

Define o círculo restaurativo como:

Um espaço onde as partes envolvidas em um conflito, apoiadas por alguém com conhecimento das dinâmicas próprias ao processo (um Conciliador52), se encontram com a intenção de se expressarem e de se ouvirem uns aos outros, de reconhecerem suas escolhas e responsabilidades e chegarem a um acordo concreto e relevante em relação ao ato transgressor, que possa cuidar de todos os envolvidos.53

O processo restaurativo é estritamente voluntário para todos os envolvidos e

não pode ser imposto, direta ou indiretamente. Alguns autores54 afirmam a

relevância da participação da vítima, sendo ela o centro de todo o processo

restaurativo, no qual o principal objetivo é a reparação do dano material ou

psicológico causado. O infrator tem, então, a possibilidade de responsabilizar-se

pelo ato e de desculpar-se com a vítima. Ambos devem participar ativamente,

interagir entre si e ter suas necessidades atendidas.

Um aspecto considerado importante durante o processo restaurativo refere-se

à expressão dos sentimentos e expectativas das partes. As pessoas devem ser

francas e claras em relação a isso. A expressão dos sentimentos será usada na

construção do acordo restaurativo, que contempla a restituição e a restauração das

relações.55

Segundo Pinto, as práticas restaurativas podem ocorrer nos moldes da

mediação vítima-infrator, reuniões coletivas ou círculos decisórios. Para ele, todos

esses modelos buscam “o diálogo sobre as origens e conseqüências do conflito

criminal e construção de um acordo e um plano restaurativo.”.56 Entretanto, na

reunião coletiva e no círculo decisório as ações são mais coletivas e comunitárias do

que na mediação vítima-infrator, que é mais individualizada.

Pinto afirma que um dos aspectos mais importantes é que os núcleos de

Justiça Restaurativa trabalhem em rede, encaminhando tanto vítima quanto infrator

para os serviços públicos ou privados necessários para o cumprimento do acordo.57

52 Chamado também de facilitador ou pacificador. 53 Melo, p. 13, 2008. 54 Pinto, (2006) e Walgrave (2009). 55 Sócrates (2006) In: Pinto (2006) e Rolim (2004) In: Achutti, 2006. 56 Pinto, p. 4, 2006. 57 Idem.

Page 29: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

29

1. No mundo

Diversos autores58 afirmam que a Justiça Restaurativa tem suas bases no

método de resolução de conflitos de tribos indígenas, as quais, quando havia um

conflito interno, buscavam resolvê-lo em uma roda de discussão, com a participação

de todos. Porém, quando se tratava de um conflito com outra tribo, a solução era a

guerra, a vingança, pois não era mais um conflito entre iguais, mas com o diferente,

o externo à comunidade.

Melo afirma que, na década de 70 do século passado, no contexto judiciário

de diversos países, resgatam-se essas formas de resolução de conflitos, pois, nos

moldes dos processos judiciais tradicionais, era pequena a participação das

vítimas.59

Afirma ainda que, em 1989, com base no modo aborígene (tribo maoris) de

resolver conflitos, a Nova Zelândia tornou-se pioneira em adotar a Justiça

Restaurativa nos tribunais e escolas como forma de resolução de conflitos e como

principal modo de atuação frente aos atos infracionais de adolescentes.

Segundo afirma Pinto, seguiram-se outros países, dentre eles a Colômbia,

que também já incluiu a prática na legislação.60

Mas é em 2002 que o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas

recomenda a aplicação da Justiça Restaurativa nos Estados-Parte das Nações

Unidas.61

58 Melo (2005 e 2008), Konsen (2007), Pinto (2005 e 2006), Scuro (2008). 59 Melo 2008. 60 Pinto, (2006). 61 Programa de Justiça Restaurativa significa qualquer programa que use processos restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos. Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente da resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles). Resultado restaurativo significa um acordo construído no processo restaurativo. Resultados restaurativos incluem respostas e programas tais como reparação, restituição e serviço comunitário, objetivando atender as necessidades individuais e coletivas e definir as responsabilidades das partes, bem assim, promover a reintegração da vítima e do ofensor. Partes significa a vítima, o ofensor e quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime que podem estar envolvidos em um processo restaurativo. Facilitador significa uma pessoa cujo papel é facilitar, de maneira justa e imparcial, a participação das pessoas afetadas e envolvidas num processo restaurativo. (In: Pinto, p. 6, 2006).

Page 30: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

30

2. No Brasil

Desde o final do século XX, tem-se discutido e implementado no Brasil

reformas no Sistema Judiciário, visto que as formas até então vigentes de “fazer

justiça” não têm surtido o efeito desejado no que se refere ao controle do aumento

da criminalidade e violência, principalmente no que se refere às políticas voltadas à

infância e juventude.62

No Brasil, as primeiras experiências com práticas restaurativas iniciam-se

em 1998, no Projeto Jundiaí, que se estabelece em escolas públicas. Pesquisadores

e funcionários das escolas envolvidas no projeto delineavam e executavam as

práticas, visando à prevenção de desordem, violência e criminalidade no contexto

escolar. Buscavam, através da transformação institucional, possibilitar o

protagonismo e a co-responsabilidade dos atores, capacitando-os a transformar a

realidade, por meio de um sistema diferenciado para a resolução de conflitos e

problemas disciplinares.63

A partir desse projeto e das recomendações da ONU, alguns setores do

Sistema Judicial, principalmente os vinculados à Reforma do Judiciário, passam a

replicar e ampliar essas práticas para as políticas públicas destinadas aos jovens

infratores. As práticas restaurativas passam a ser articuladas e supervisionadas pelo

Sistema Judiciário e passam a ter papel estratégico, visando resguardar a ordem

social e viabilizar mudanças, tornando o processo legal mais apropriado às atuais

demandas individuais e sociais.64

No ano de 2004, através do Ministério da Justiça e da Secretaria de Reforma

do Judiciário, formalizam-se no contexto judiciário brasileiro três projetos-piloto de

Justiça Restaurativa que começam a ser implementados: no Núcleo Bandeirante –

DF, em Porto Alegre – RS e em São Caetano do Sul – SP.65

Apesar de não haver, na legislação brasileira, aparato legal que estabeleça o

uso da Justiça Restaurativa,66 a legislação atual permite o encaminhamento de

casos para a Justiça Restaurativa. Atualmente, conforme nos descreve Pinto, após o

parecer do Ministério Público, o caso é encaminhado para os núcleos de Justiça 62 Melo (2008). 63 Scuro (2008). 64 Idem. 65 Desses projetos, os de São Caetano do Sul e de Porto Alegre abordam a atos infracionais praticados por adolescentes e o do Núcleo Bandeirante, crimes praticados por adultos. Neste último, os casos indicados para a Justiça Restaurativa envolvem crimes de menor potencial ofensivo e contravenções penais. 66 Existe um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados, PL 7006/2006, propondo alterações visando regular o uso da Justiça Restaurativa.

Page 31: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

31

Restaurativa para avaliação multidisciplinar e só então, verificada a viabilidade,

inicia-se o processo restaurativo. Concluído o processo, o caso retorna ao Ministério

Público com relatório do acordo firmado entre as partes e a Promotoria inclui as

cláusulas para homologação do Juiz. Passa-se então à execução e, posteriormente,

à avaliação do cumprimento do acordo.67

Em relação ao uso da Justiça Restaurativa no Brasil, Pinto afirma ainda ser

importante a construção de metodologias adequadas à nossa realidade, afirmando

que “nossa criminalidade retrata mais uma reação social, inclusive organizada, a

uma ordem injusta, cruel, violenta e, por que não, também criminosa.”.68

Fazendo referência, ainda, a esses aspectos da realidade brasileira, Pinto

afirma que o empoderamento comunitário, proposto pela Justiça Restaurativa, pode

ser um risco, pois a desjudicialização do processo pode significar “um abandono das

pessoas, principalmente pobres, à própria sorte na resolução de conflitos de

natureza penal, sob pretexto de estarem “empoderados” para operarem micro-

sistemas de justiça criminal da ‘comunidade’.”.69

3. Em São Caetano do Sul 70

O processo de implementação da Justiça Restaurativa em São Caetano do

Sul abrange, de forma geral, dois momentos. Inicialmente, o projeto-piloto “Justiça e

Educação: parceria para a cidadania” contempla os contextos judiciário e escolar.

Posteriormente, um novo projeto é implementado, “Restaurando justiça na família e

na vizinhança: Justiça Restaurativa e comunitária no bairro de Nova Gerty”,

ampliando o projeto inicial para o contexto comunitário e incluindo-se novas

metodologias.71

Os objetivos centrais que motivaram a implantação do primeiro projeto foram:

evitar o encaminhamento de conflitos escolares ao sistema judicial, buscando

resolvê-los no próprio contexto escolar; resolver conflitos caracterizados como atos

infracionais com uma nova forma de práticas judiciárias, a Justiça Restaurativa; e o

fortalecimento da rede de atendimento a crianças e adolescentes no município.72

67 Pinto (2005). 68 Pinto, p. 17, 2006. 69 Idem. 70 Os dados contidos neste tópico referem-se ao relatório da implantação da Justiça Restaurativa no município de São Caetano do Sul, produzido por Melo (2008). 71 As técnicas e metodologias utilizadas em São Caetano do Sul serão expostas na parte II deste capítulo. 72 Melo (2008).

Page 32: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

32

No primeiro momento, três escolas foram inseridas no projeto e alguns

professores foram capacitados nas técnicas de Comunicação Não-Violenta. Visando

formar uma rede de encaminhamento com base na lógica restaurativa, outros

profissionais das escolas envolvidas foram convidados a participar, formando-se

assim lideranças educacionais.

Outro espaço onde a Justiça Restaurativa foi disseminada desde o começo foi

o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, envolvendo além da

educação, os contextos da saúde, assistência social e segurança. O Conselho

Tutelar também foi um espaço de realização de círculos restaurativos desde o

começo do projeto, especialmente quando envolvia situações de risco e

vulnerabilidade de crianças e adolescentes.

Inicialmente, como não havia círculos restaurativos na comunidade, nos

casos em que não havia uma relação contínua entre os envolvidos no conflito, os

círculos eram realizados no Fórum.

Em 2006 ocorre uma expansão do projeto-piloto, com a inclusão de todas as

escolas estaduais de São Caetano do Sul.73

Após avaliação do trabalho realizado até o momento, destaca-se a

necessidade de um trabalho no contexto comunitário. Capacitam-se então

facilitadores para intervir em conflitos familiares e de vizinhança. Um novo projeto-

piloto foi estabelecido “Restaurando justiça na família e na vizinhança: Justiça

Restaurativa e comunitária no bairro de Nova Gerty”.74

No novo contexto de intervenção, torna-se necessário o uso de uma nova

metodologia, pois o foco principal passa das necessidades e responsabilidades

individuais para a mudança comunitária. O novo modelo é trazido da África do Sul, o

modelo Zwelethemba e, inicialmente, 20 facilitadores são capacitados. Possui um

código de atuação (base ética e legal)75 que serve de parâmetro aos facilitadores e

aos participantes.

Em 2007 o financiamento foi interrompido, sendo necessário rever o projeto e

traçar caminhos para efetivar sua implantação, buscando diversificar as técnicas

utilizadas e fazer uma maior articulação entre os diferentes contextos (Escola, 73 Destaca-se que, também em 2006 a Justiça Restaurativa foi expandida para outras cidades do estado de São Paulo, como as cidades de Guarulhos e São Paulo (bairro de Heliópolis). E, em 2008, a cidade de Campinas também iniciou a implantação do projeto. 74 Essa comunidade foi escolhida para a implementação do novo projeto, pois é considerada um dos bairros com maior índice de violência do município de São Caetano do Sul. 75 Nomeado Código de Boas Práticas que será exposto a seguir.

Page 33: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

33

Justiça e Comunidade). Com novo financiamento surge um novo projeto, mais

amplo, e que abrange os dois projetos-piloto anteriores: “Justiça Restaurativa e

Comunitária em São Caetano do Sul: parceria pela cidadania.”

II - As práticas e metodologias da Justiça Restaura tiva

A partir deste momento, abordaremos os aspectos metodológicos das

práticas de Justiça Restaurativa, considerando-se as diferentes técnicas utilizadas e

os diferentes contextos de atuação dos facilitadores, atribuindo destaque para as

técnicas utilizadas no município de São Caetano do Sul e, em específico, em seu

contexto comunitário. Na seqüência, apontamos o processo de formação dos

facilitadores, com suas etapas metodológicas.

1. Diferentes práticas e metodologias

As práticas restaurativas têm um vasto campo de atuação: contextos jurídico,

educacional ou comunitário. Diversas demandas são por elas atendidas: crimes

graves que são encaminhados ao Sistema Judiciário; conflitos do cotidiano que

ocorrem no contexto comunitário ou escolar e que, muitas vezes, também são

encaminhados ao Sistema Judiciário; e conflitos que são tratados no próprio

contexto em que ocorrem, seja escolar ou comunitário.

As práticas restaurativas são bastante diversas no que se refere aos modelos

e técnicas restaurativas utilizadas nos diferentes países e contextos. Desde práticas

mais voltadas para conflitos particulares, com menor participação comunitária com

foco na relação entre as partes envolvidas no conflito e nas conseqüências do

conflito para elas; até práticas mais abrangentes, com maior participação

comunitária, nas quais o foco do processo restaurativo vai além do conflito concreto

entre as partes, pois inclui a comunidade como um todo e busca as origens

comunitárias dos conflitos, identificando os mais recorrentes e construindo uma

cultura de diálogo e de pacificação.76

Além disso, essas diferentes práticas restaurativas, apesar de todas

buscarem o diálogo entre as partes e chegarem a um acordo justo para todos, têm

por referências diferentes bases filosóficas. Algumas têm o foco no atendimento às

necessidades da vítima e à reparação do dano material e/ou moral causado, por

76 Froestad e Shearing (2005) e Neto (2004).

Page 34: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

34

parte do ofensor; nessas costuma-se buscar que o ofensor explique-se e demonstre

arrependimento. Outras têm o foco na relação de forma mais ampla: são

consideradas as necessidades de todos participantes e, principalmente, dos

diretamente envolvidos. Outras, ainda mais amplas, têm o foco na pacificação da

comunidade e na construção de uma cultura de paz.

Froestad e Shearing diferenciam as práticas restaurativas em mediação

vítima-infrator, reconciliação vítima-infrator, reunião restaurativa e círculo de emissão

de sentença.77 Já Neto diferencia as práticas restaurativas apenas entre mediação

vítima-infrator e câmaras restaurativas.78

Devido à diversidade de práticas vinculadas ao termo “Justiça Restaurativa”,

Froestad e Shearing afirmam ser importante definir os valores fundamentais da

Justiça Restaurativa, que são para estes autores, essencialmente, a não-dominação

e o diálogo respeitoso.79

Apesar disso, podemos perceber que Neto, ao detalhar as diferentes práticas,

ressalta a importância do arrependimento e mudança de comportamento do

infrator.80 Além disso, percebemos que alguns autores que têm por base a

Vitimologia, apesar de valorizarem o espaço de diálogo e a interação pró-ativa das

partes, destacam a importância dos efeitos normativos dos grupos na

responsabilização do infrator.

Neto destaca que essas práticas são meios de “conferir às famílias e às

comunidades autoridade suficiente para decidir o que fazer com seus jovens

infratores, contando para isso com a participação das vítimas e de grupos de

apoio.”.81

Destaca, ainda, que são práticas indicadas para casos de crianças e

adolescentes com problemas de conduta, em que se visa autorizar a família,

colocando-a em uma posição de poder e de condição de intervenção junto aos

filhos, assim como as autoridades e os profissionais.

Contrapondo-se a esses aspectos, Froestad e Shearing ressaltam que os

elementos relevantes para avaliar a capacidade restaurativa das práticas são: o grau

de inclusão e engajamento dos interessados e a pluralidade de vozes; a ampliação

77 Froestad e Shearing (2005). 78 Neto (2004). 79 Froestad e Shearing (2005). 80 Neto (2004) 81 Neto, p.12, 2004

Page 35: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

35

do olhar sobre o conflito, tratando de questões referentes à desigualdade social; e a

redistribuição do poder e da tomada de decisão, do Estado para a comunidade.82

Concluindo, Froestad e Shearing destacam que a Justiça Restaurativa precisa

de novas estratégias: focar a atenção na paz futura, mais do que na restauração ou

re-integração; receber indicações de casos não somente pelo sistema criminal;

estabelecer uma maior vinculação entre o atendimento de conflitos individuais e de

problemas genéricos; possibilitar às comunidades as responsabilidades, os recursos

e o controle das práticas restaurativas; e estabelecer regras e mecanismos de

avaliação que garantam o respeito aos valores centrais da Justiça Restaurativa.

Para estes autores, o modelo Zwelethemba de resolução de conflitos, que

abordaremos a seguir, está de acordo com estes princípios e valores da Justiça

Restaurativa.83

2. No contexto de São Caetano do Sul

Inicialmente, a técnica utilizada nos contextos jurídico e escolar em São

Caetano do Sul teve por base a metodologia da Comunicação Não-Violenta.

Entretanto, os profissionais responsáveis pelo projeto-piloto perceberam a

necessidade de ampliar as práticas para o contexto comunitário e de incluir outras

metodologias, pois a experiência lhes mostrou que diversos aspectos precisariam

ser considerados (contexto, tipo de conflito, relações entre os envolvidos, etc.) para

que o círculo restaurativo cumprisse sua função de restaurar as relações e de

construção da paz. Os facilitadores foram, então, capacitados no modelo

Zwelethemba sul-africano e começaram a utilizá-lo, principalmente no contexto

comunitário.84

3. No contexto comunitário: o modelo Zwelethemba Para Melo, os conflitos familiares e de vizinhança têm um aspecto cultural e

estrutural que se destaca e, por isso, as soluções dos conflitos devem ser

82 Froestad e Shearing (2005) utilizam-se de argumentos de McCold (2000), Digman (2005), Van Ness (2002) e Mika e Zehr (2003). 83 Froestad e Shearing (2005). 84 No caso do conflito ocorrer no contexto escolar, mas o círculo restaurativo ser realizado pelos facilitadores comunitários deve-se avaliar a necessidade da presença de algum representante da escola, além dos pais (juridicamente essencial nos casos que envolvem menores de 18 anos).

Page 36: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

36

construídas no contexto comunitário, com um olhar sistêmico e de co-

responsabilidade.85

As práticas restaurativas no contexto comunitário buscam incentivar o diálogo

em âmbito mais amplo: são processos de construção mais coletiva e de rede, não

são individuais ou da relação específica de conflito. Devem incluir horizontalidade e

equilíbrio das relações de poder86 e buscar a expressão das singularidades de

diferentes grupos, em especial os que são considerados minoritários ou que

historicamente são excluídos socialmente, problematizando, assim, os valores das

comunidades.87

As práticas restaurativas no contexto comunitário visam construir mudanças

na dinâmica social da comunidade através do empoderamento da mesma. Para isso,

é essencial que seus membros se percebam capazes e com habilidades para lidar

com os conflitos surgidos, acionando os recursos governamentais e não-

governamentais no auxílio da resolução dos conflitos e na construção de vínculos e

redes importantes.88

Para Melo, a articulação entre a comunidade e essas instituições, unindo

forças, tem se mostrado mais eficaz no que se refere à segurança pública e

promoção de justiça social e cidadania. Desta forma, os espaços comunitários

podem ser mais adequados para a promoção da segurança pública, evitando-se

processos de exclusão social.89

Afirma ainda que, para que essas perspectivas sejam fomentadas na

comunidade, é importante que as instituições comunitárias e organizações não-

governamentais proporcionem um movimento de passagem do olhar individual para

o coletivo, reforçando, com isso, a identidade individual e comunitária; bem como

possibilitem a autonomia e gerem liberdade e responsabilidade da comunidade,

85 Melo (2008). 86 Com o modelo Zwelethemba, insere-se o facilitador secretário nas práticas de Justiça Restaurativa. Jovens e alunos recém capacitados podem ser inseridos como facilitadores nos círculos restaurativos, sendo possível uma horizontalização das relações de poder com os adultos, potencializando-se o protagonismo juvenil. 87 Conforme destaca Melo (2006), visando estes objetivos, o projeto de São Caetano do Sul busca inserir nas práticas restaurativas comunitárias, quando necessário, grupos organizados de mulheres, idosos, negros e homossexuais, sendo que esta participação depende da autorização das partes e sempre em número menor que os demais participantes, visando manter um ambiente de caráter não profissional e não militante. Quando se considera necessário, pode haver também a participação de profissionais estatais, visando garantir a segurança e não re-vitimização dos participantes dos círculos restaurativos. 88 Nessa perspectiva, as instituições governamentais e não-governamentais têm a função, tanto de assegurar a participação comunitária, como de fomentá-la, por meio de suporte a esses projetos. 89 Melo, 2008.

Page 37: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

37

tornando-a relativamente independente dos serviços públicos para a resolução de

seus conflitos.90

Desta forma, o empoderamento comunitário precisa ser construído articulado

à Justiça, Segurança, Sistema de Saúde e de Desenvolvimento Social, e por meio

do esforço conjunto de suas instituições governamentais, sempre com os olhares

voltados para a perspectiva comunitária. Melo afirma que se pode perceber esse

movimento nas práticas da Justiça Restaurativa, da Polícia da Comunidade91 e do

Programa de Saúde da Família,92 e, para isso, buscam-se mudanças no foco de

atuação dessas instituições.93

Nesta nova perspectiva de ação, as instituições governamentais e seus

agentes têm um papel fundamental para o encaminhamento dos casos, buscando a

resolução dos conflitos no contexto comunitário e soluções não punitivas para o

conflito.

A Justiça Restaurativa volta-se para a comunidade e potencializa nela a

capacidade de resolução de seus conflitos, não havendo necessidade de um Juiz

que determine o certo, o bom, nem como aquela situação será resolvida. O papel do

Juiz passa a ser o de retornar à comunidade os seus conflitos, encaminhando-os

para círculos comunitários de Justiça Restaurativa. Entretanto, caso as pessoas

envolvidas mesmo assim julguem necessário, elas podem recorrer às instâncias

judiciais.94

Percebe-se que grande parte dos casos atendidos pela Justiça Restaurativa é

oriunda do próprio contexto escolar. Melo afirma que cerca de 25% dos conflitos

escolares estão sendo criminalizados no estado de São Paulo. Afirma que a Justiça

Restaurativa é uma quebra do controle estatal sobre os conflitos, mas questiona até

que ponto esse controle não está sendo exercido nas escolas e comunidades. 90 Idem. 91 A Polícia Comunitária volta-se para a comunidade como um todo e para seus conflitos, não apenas atuando em casos de criminalidade, como também em uma intervenção mais abrangentes e preventivos. Deve buscar o bem-estar de seus cidadãos e estar estreitamente vinculada à comunidade, num trabalho em conjunto, como cidadãos que fazem parte dela. O projeto de Justiça Restaurativa possibilita aos agentes de polícia que, mesmo nos casos em que os envolvidos decidem por não encaminhar a denúncia, o agente possa fazer o encaminhamento a Justiça Restaurativa. 92 Melo (2006) afirma, ainda, que o Programa de Saúde da Família atende, por meio de equipes multiprofissionais a um número determinado de famílias de uma mesma região. Seu desafio é integrar o atendimento e conhecimento da comunidade ao sistema mais amplo de saúde. Seus agentes têm uma relação de confiança e proximidade com as famílias e a comunidade e, devido a esse vínculo, identificam situações de violência, porém a denúncia pode ocasionar a descontinuidade do seu atendimento. Donde, a importância de sua vinculação a um projeto de Justiça Restaurativa, com foco na responsabilização e não na punição. 93 Melo (2006). 94 Idem.

Page 38: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

38

Afirma que as escolas trabalham, de forma geral, na lógica da racionalização e

mudança de atitudes dos alunos, deixando de valorizar os afetos e relações

envolvidas, que são pilares da Justiça Restaurativa.95

Pelo fato do modelo Zwelethemba96 ser o modelo de resolução de conflitos

mais utilizado no contexto comunitário de São Caetano do Sul, vamos detalhá-lo

mais especificamente, destacando seus valores e aspectos metodológicos.97

Este modelo busca a Construção da Paz98 partindo-se do conflito inter-

pessoal. Alguns autores também o chamam de Pacificação, visto que têm por

objetivo comum: “reduzir a probabilidade de que o conflito específico continue.”.99

São formados Comitês de Paz por pacificadores locais que realizam Reuniões

de Pacificação onde comparecem pessoas da comunidade. Os Comitês têm o

objetivo de devolver o conflito a seus donos legítimos, pois consideram que as

pessoas da própria comunidade têm mais conhecimento e capacidade para

contribuir instrumentalmente para a solução e diminuição dos conflitos. 100

O conflito é entendido de forma mais ampla, no contexto comunitário, e

considera-se que os papéis de vítima e infrator101 podem ser alternados,

principalmente quando se trata de uma relação familiar ou de vizinhança, em que a

historicidade do conflito deve ser levada em consideração.

Desta forma, a Pacificação reporta à origem dos conflitos, sua história, a série

de eventos que contribuíram para seu desenvolvimento, mas sem julgar,

envergonhar ou culpar qualquer uma das partes. Reporta-se ao passado, ao

histórico do conflito, porém privilegia o olhar para o futuro, para a resolução dos

95 No 1º. Seminário Internacional de Justiça Restaurativa, 2009. 96 Modelo que surge em 1997, com o início da democratização da África do Sul, na comunidade de Zwelethemba, próxima a Cidade do Cabo. O termo significa, no dialeto Xhosa, um lugar de esperança. Inicialmente surge como uma forma de controle e como política de segurança pública, buscando a participação da população no controle de manifestações públicas durante o período eleitoral. Em relação às mudanças que aconteciam no período, a população não estava satisfeita nem com o que ocorria nos “fóruns populares”, formas disfarçadas de controle do Estado, nem com a lentidão dessas mudanças. Vários experimentos para a resolução de conflitos passaram a ocorrer até que no ano 2000 um novo modelo toma forma e é aplicado em cerca de vinte comunidades sul-africanas. 97 Com base, principalmente, nos textos de Melo (2008) e Froestad e Shearing (2005). Entretanto, é importante destacar que este modelo foi adaptado para São Caetano do Sul. 98 Ao contrário do processo de Pacificação, a Construção da Paz “conduz freqüentemente para longe das questões da segurança para preocupações de desenvolvimento mais amplas, como saúde pública, higiene, alimentação, abrigo, coleta de lixo, educação e oportunidades recreativas. Assim, a construção da paz amplia o escopo para a realização de valores restaurativos para além da segurança.” (Froestad e Shearing, p. 112, 2005). 99 Froestad e Shearing, p. 94, 2005. 100 La Prairie, p. 80, 1995 In: Froestad e Shearing, p. 93, 2005 101 Entende-se que as pessoas que estão diretamente envolvidas no conflito não são vítima e infrator, pois estes termos já trazem em si um julgamento. Utiliza-se o termo “partes” ou “participantes”. Uso que também fazemos nesta dissertação.

Page 39: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

39

conflitos e a construção de uma Cultura de Paz. Para este processo, considera-se a

importância de se trabalhar com o tempo, pois entende-se que soluções rápidas

podem ser superficiais.

Durante o processo de Pacificação, busca-se construir um consenso quanto

ao acordo e todos os participantes são convocados a expressar-se. Apesar de

ocorrer, a expressão emocional não é o foco do encontro, a meta é instrumental, de

construção de passos e estabelecimento de combinados que contribuam para um

futuro “melhor”. O objetivo principal não é a restauração das relações, mas sim a

pacificação dos conflitos.102

O processo de chegar a um acordo é considerado muito importante, mas é o

seu cumprimento que diz da Pacificação que ocorre, sua meta principal. Percebe-se,

portanto, a relevância da construção do acordo pelas partes envolvidas, aumentando

a probabilidade de honrá-lo. Ao final da Reunião, pergunta-se a todos os

participantes se acreditam que o acordo poderá ser cumprido e como podem

comprometer-se com isso, sendo que se tornam responsáveis por acompanhar o

cumprimento ou não do acordo.

Nas Reuniões de Pacificação, a participação de todos é voluntária: tanto das

pessoas diretamente envolvidas no conflito, dos participantes convidados da

comunidade, como dos pacificadores.

Por ser relevante o conhecimento dos conflitos locais, os pacificadores são

pessoas da própria comunidade que recebem uma capacitação rápida da

metodologia de condução do encontro e de resolução de conflitos. O objetivo é que

o conhecimento de cada um seja valorizado e que possam adaptar a metodologia ao

contexto e à comunidade em que estão inseridos. Froestad e Shearing consideram

que este é um papel que deve ser aprendido na prática, o que garante a adequação

da metodologia à especificidade de cada comunidade, sua cultura, estilo de vida e

aos seus conflitos. Afirmam ainda que a religião é um elemento de conhecimento

compartilhado que, em algumas Reuniões, pode ser utilizado no processo de

Pacificação.103

102 No contexto sul-africano, o termo “restauração”, assim como o termo “reintegração”, não são adequados aos processos de Pacificação, visto que esta não é a meta central, porém podem ocorrer como resultado das Reuniões de Pacificação. Froestad e Shearing (2005) sustentam que em alguns casos, a melhor opção de Pacificação pode ser o afastamento ou evitar o encontro entre as partes do conflito, e todos que estão na Reunião buscam assegurar que isso aconteça. 103 Froestad e Shearing, 2005.

Page 40: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

40

Referendados nesses aspectos, identificam algumas características

importantes para desempenhar o papel de pacificador, como confiança, habilidade

com a fala e compreensão intuitiva e implícita de vida.

Apesar da valorização do aprendizado no exercício cotidiano do papel de

pacificador, é relevante destacar que, com a prática, os pacificadores podem

desenvolver habilidades de condução das reuniões de forma a se tornarem

“especialistas locais”. Essa situação pode promover uma tensão em relação aos

valores centrais do modelo, visto que pode causar uma hierarquia comunitária no

que se refere ao conhecimento e capacidade de facilitar as reuniões de pacificação,

indo contra a idéia inicial de democracia deliberativa do modelo. Por esse motivo,

Froestad e Shearing advertem sobre a necessidade de monitoramento para que o

afastamento dos valores centrais não ocorra. A capacidade e conhecimento dos

pacificadores não podem se tornar mais importantes do que as vozes e experiências

dos participantes da reunião, visto que eles são as pessoas cruciais do processo de

pacificação.

No que se refere ao desempenho do papel de pacificador, algumas

particularidades podem ocorrer. Assim mesmo, para que estas práticas não se

afastem por demais dos aspectos filosóficos e metodológicos, a pacificação é

regulada pelo Código de Boas Práticas104 que as guiam e limitam, desenhando aos

pacificadores um repertório de perguntas a seguir para possibilitar a mobilização e

participação de todos os envolvidos no conflito. O Código estabelece os passos,

organiza e estrutura as ações dos pacificadores.

A respeito do Código de Boas Práticas, Froestad e Shearing (2005) apontam

que: “há vantagens e desvantagens a se considerar o quanto as regras devem ser

explícitas. [...] por serem embutidas, permite-se que as regras tornem-se parte da

‘arquitetura’ e, desta forma, úteis para criar um ‘hábito’ que estrutura o

comportamento.”105

Outra questão relevante destacada por Froestad e Shearing diz respeito ao

pagamento dos pacificadores, visto que este elemento estabeleceria uma distinção e

uma classe de “peritos” na comunidade. Visando a não segmentação nos grupos

104 Este Código foi adaptado para o contexto da prática restaurativa em São Caetano do Sul e esta adaptação será exposta mais adiante. 105 Froestad e Shearing, p. 104, 2005.

Page 41: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

41

uma estratégia foi traçada.106 Cada Reunião tem uma ajuda de custo e parte desse

recurso é dividido entre os Pacificadores e outra parte é destinada a projetos locais

de desenvolvimento, que ajudam no desenvolvimento a comunidade e na criação de

empregos. Para os pacificadores, o pagamento não chega a ser uma renda que

sustente uma família, mas é uma boa contribuição para seus gastos, sendo visto

como um reconhecimento de sua capacidade e da importância de seu trabalho.

No Brasil, o modelo de Zwelethemba está sendo utilizado no contexto

comunitário do município de São Caetano do Sul – SP, sendo que o modelo original

foi adaptado ao contexto dessa comunidade e aos seus conflitos específicos.

Nesse projeto-piloto, o embasamento teórico do construcionismo social107 do

modelo de Zwetethemba tem destaque, buscando potencializar a autonomia do

sujeito e empoderar a comunidade, tornando-os capazes da resolução de seus

conflitos. Busca quebrar paradigmas no que se refere à resolução de conflitos e a

atos de violência.

Um dos aspectos que se torna prioritário neste projeto é atingir a auto-

sustentabilidade, por dois motivos principais: para potencializar a autonomia da

comunidade em relação a sua aprendizagem e sua prática; e devido à dificuldade de

disponibilizar e acessar recursos financeiros, governamentais ou não-

governamentais.108

No que se refere à relevância da autonomia da comunidade, esta é

possibilitada, assim como no contexto sul-africano, pelo Código de Boas Práticas,

adaptado ao contexto de São Caetano do Sul. O Código é o parâmetro central que

delineia a prática restaurativa nesse contexto e é lido no início de cada círculo

restaurativo:109

106 Esta estratégia não é utilizada em São Caetano do Sul, visto que, atualmente, nem os círculos restaurativos, nem mesmo os facilitadores recebem qualquer ajuda de custo. 107 “O construcionismo social, com múltiplos recursos conversacionais e com um olhar que valoriza positivamente o potencial criativo do inesperado e do novo, beneficia um projeto piloto que busca a descoberta de caminhos ainda não trilhados.” (Melo, p.143, 2008). 108 Melo (2008).

109 Ajudamos a criar um ambiente seguro e de confiança na nossa Comunidade; Respeitamos a Constituição do Brasil e as leis; Não usamos força ou violência; Não tomamos partido em disputas; Trabalhamos na comunidade como uma equipe cooperativa, não como indivíduos; Seguimos com transparência as regras para a resolução de conflitos, comuns a todos os membros da comunidade; Não espalhamos boatos ou mexericos acerca do nosso trabalho ou de outras pessoas; Nós assumimos compromisso com aquilo que fazemos; O nosso objetivo é restaurar, não ferir. (Melo, p.146-7, 2008).

Page 42: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

42

4. A formação dos facilitadores em São Caetano do S ul

As práticas restaurativas no contexto comunitário de São Caetano do Sul são

atravessadas pelo processo de formação e capacitação dos facilitadores110 que lá

atuam. Por isso, torna-se relevante destacarmos alguns aspectos dessa formação,

visto que é por meio dela que os atores sociais entram em contato com esse novo

paradigma e metodologia, a Justiça Restaurativa.

Com base em informações contidas no relatório do projeto-piloto de São

Caetano do Sul,111 buscaremos destacar elementos relevantes no processo de

formação dos facilitadores daquele município, com especial atenção para os que

atuam no contexto comunitário.

Como destacamos anteriormente, a capacitação dos primeiros facilitadores

restaurativos para atuaram nas escolas, Fórum e Conselho Tutelar de São Caetano

do Sul ocorre em 2005 e é ministrada por Dominic Barter, com base na metodologia

da Comunicação Não-Violenta.

Em 2006, constatou-se que a técnica, apesar de eficiente, não comportava os

diferentes contextos, com sua diversidade de instituições, conflitos e relações.

Assim, foram convidados os especialistas John Cartwright e Madeleine Jenneker e o

oficial de polícia Ganief Daniels da África do Sul que, baseados no modelo

Zwelethemba, formaram os capacitadores do Instituto Familiae112 e os facilitadores

para atuarem no contexto comunitário de um bairro de São Caetano do Sul.

A partir daí, as complementações da capacitação dos facilitadores foram

feitas visando instrumentalizá-los para atender às diversas demandas que recebem

e, inclusive, para atender casos de infrações cometidas por adolescentes, tendo por

fim a substituição do processo judicial – que atribuiria uma medida sócio-educativa –

pelo processo restaurativo. Um novo programa de capacitação foi estruturado

ouvindo-se a opinião e necessidades apresentadas pelos facilitadores, que

emergiam de sua prática. Os capacitadores buscaram identificar não só a satisfação

dos facilitadores quanto ao resultado das práticas e os recursos utilizados, como

também os aspectos em que percebiam a necessidade de serem

instrumentalizados.

110 Até então utilizamos o termo “pacificadores”, entretanto, no contexto brasileiro e em específico em São Caetano do Sul o termo utilizado é “facilitadores”. 111 As informações contidas neste tópico foram extraídas de Melo (2008). 112 A posterior adaptação do modelo sul-africano para o contexto brasileiro foi feita por Vânia Curi Yazbek do Instituto Familiae (Justiça em Círculo).

Page 43: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

43

Visando-se a auto-sustentabilidade do projeto e a autonomia das

comunidades, estabelecem-se coordenadores locais que têm a função de oferecer

apoio contínuo aos demais facilitadores e, eventualmente, capacitar novos

facilitadores.

O papel do coordenador [...] é ser um interlocutor para os demais facilitadores; é ser alguém com mais experiência que servirá como fonte de referência das práticas em uso na comunidade para os demais facilitadores recém capacitados.113

Em 2008 a técnica da Comunicação Não-Violenta também foi apresentada

aos facilitadores do contexto comunitário. A formação passa a incluir, portanto,

técnicas diversas. Desta forma, os facilitadores passam a poder utilizar uma técnica

ou outra, de acordo com o caso, considerando a diversidade dos conflitos, dos

contextos e dos envolvidos.114 Os facilitadores de círculos comunitários priorizam a

técnica Zwelethemba, porém analisam cada caso e avaliam a possibilidade do uso

de outras técnicas restaurativas.

Nesses encontros de capacitação são realizados exercícios e simulações de

círculos restaurativos, por meio da técnica psicodramática de role playing. São

trabalhados três eixos temáticos: conversação como ferramenta, violência doméstica

e de vizinhança e justiça como proposta de intervenção. Cada tema é tratado

considerando-se como o facilitador se relaciona com o tema, através de exercícios

de auto-conhecimento e levantamento dos recursos dos próprios facilitadores.

Num segundo momento da capacitação, encontros são realizados visando

possibilitar a auto-sustentabilidade do projeto, por meio de supervisão,

empoderamento do grupo, reflexão, gerenciamento de seu treinamento, busca de

apoio no grupo e sua autonomia como facilitador.

Ainda tendo em vista a sustentabilidade, num terceiro momento, foram

implementadas oficinas de acompanhamento e supervisão, utilizando-se de modelos

de conversação, troca de experiências e ajuda mútua, visando o desenvolvimento e

aprimoramento da prática, sem o acompanhamento dos capacitadores.115

Foram capacitados, aproximadamente 30 facilitadores comunitários de

práticas restaurativas comunitárias em São Caetano do Sul, sendo a maioria do sexo

113 Melo, p.155, 2008. 114 É importante destacar que diversos professores e profissionais escolares também foram capacitados nas diferentes técnicas e modelos, o que possibilita que atuem como facilitadores nos conflitos que ocorrem no contexto escolar. 115 Melo (2008)

Page 44: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

44

feminino. Os facilitadores foram selecionados na própria comunidade. Fazem parte

de organizações religiosas, associação de pais e mestres e clubes da terceira idade.

São voluntários que, inicialmente, durante a capacitação, recebem recursos

financeiros apenas para seus custos diretos na ação.116

III Justiça Restaurativa e Juventude Konzen problematiza a idéia de que a Justiça Juvenil age em nome do “bem”,

fato confirmado quando se comparam as práticas e discursos da Justiça Penal

adulta com as da Juvenil. Nos casos de delito adulto, a neutralidade e imparcialidade

para o julgamento devem-se à possível retirada da liberdade, um mal pelo mal

causado, baseado no razoável e no adequado a determinado delito. A pena,

portanto, como uma medida contra a vingança e a garantia de prevenir os delitos e

as punições injustas.117

Já no que se refere à Justiça Juvenil, Konzen destaca que a “Medida” vem

adjetivada do termo “Socioeducativa”, o que garantiria a satisfação de necessidades

desses jovens, por isso uma ação do “bem”. Aliando-se às religiões e intervenções

científicas e curativas, vinculando-se às políticas de saúde e assistência, duas

alternativas: são produzidos laudos patológicos sem crítica ou adota-se uma visão

protecionista de que o jovem foi prejudicado socialmente. São argumentos que

caminham junto às Medidas, visando seu bem-estar e sua proteção. O jovem

“incapaz de responsabilidades e de exercer o direito à palavra.”118

Konzen questiona se seria aceita a prisão de um adulto visando satisfazer

suas necessidades, argumento recorrente para os jovens, questionando a

sustentabilidade da restrição ou da privação de liberdade como método de alguma

teoria pedagógica.

Ancorada nos entulhos institucionais de bem-estar, navega a Justiça Juvenil por enredos escandalosamente arbitrários, em que o fim justifica o meio, mesmo que esse meio sacrifique bem jurídico indisponível, condição de dignidade de toda pessoa humana somente autorizada a sacrifícios em determinadas circunstâncias objetiva e previamente estabelecidas.119

116 Está em discussão a possibilidade das empresas disponibilizarem horas de trabalho de seus funcionários que são facilitadores, tendo como contrapartida o abatimento fiscal, pois é considerada uma contribuição ao Fundo Municipal da Criança e do Adolescente. Um plano de carreira para o facilitador também está sendo discutido na Secretaria de Justiça e da Educação, onde estão sendo definidos requisitos que lhe permitem capacitar e coordenar outros facilitadores. 117 Konzen (2008). 118 Konzen, p. 7, 2008. 119 Idem, p. 8.

Page 45: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

45

O rompimento com o paradigma da Situação Irregular e do Bem-estar do

menor, a partir da Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente, estabelece

uma nova doutrina: a da Proteção Integral. O adolescente, sujeito de direitos, deve

ser protegido de perdas pela imposição de restrição da liberdade, o que, segundo

Konzen, está em alinhamento com as conquistas da Justiça Penal adulta.120

Para Konzen, os jovens têm uma inclinação a transgredir a Lei Penal, pois

testam os limites da convivência. Afirma que os atos de violência dos jovens

assemelham-se aos do adulto, principalmente no modo de agir e nos resultados.

Entretanto, o jovem deve ser considerado em sua condição peculiar de

desenvolvimento. Por isso, deve-se reconhecer mais suas capacidades

diferenciadas do que focar suas incapacidades.121

A responsabilidade por seus atos é um elemento importante no processo

pedagógico previsto pelas Medidas, considerada como a condição subjetiva de

responder. Responsabilidade que, segundo Konzen, é diferente da responsabilidade

penal adulta ou da culpabilidade. É o adolescente como tendo condições de

“perceber as conseqüências do comportamento e de assumir o sentido da

resposta.”122

A Medida é

Fruto de uma relação constituída pela verticalidade, em que o poder jurisdicional impõe a sua percepção da realidade; em que o adolescente acusado é chamado a comparecer e a exercer a sua fala por interposta pessoa; em que a busca do resultado e a resistência é desenvolvida em jogos de interesses liderados por Personagens estranhos ao conflito-sede do ato infracional.123

As alternativas judiciais até então existentes desconsideram a participação

das pessoas direta ou indiretamente envolvidas no conflito. O que se dá é “o uso da

força, o poder da ordem, o controle, a segurança, o respeito ditado pela norma,

valores sociais desejados pelo jurídico e, por isso, confiados ao Estado-Juiz.”124

A Justiça Restaurativa surge nesse contexto como uma possibilidade de

resolução de conflitos, com possível restauração das relações entre as partes

envolvidas no conflito. As pessoas envolvidas retomam a possibilidade de resolver

seus conflitos, com um compromisso com o processo, que busca horizontalizar e

120 Konsen (2008). 121 Idem. 122 Vicentin, p.330, 2005 In: Konzen, p. 10, 2008. 123 Konzen, p. 13, 2008. 124 Idem.

Page 46: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

46

pluralizar as relações. A Justiça Restaurativa tem o olhar centrado nos sujeitos da

relação, nos grupos e nas comunidades.

O que se percebe nas práticas restaurativas, e em especifico nas de São

Caetano do Sul, é que os propósitos da legislação infanto-juvenil se articulam com

os da educação.

[...] assegurar às crianças e adolescentes todas as oportunidades e facilidades para lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade (art. 3º. do ECA) [...] e o papel formativo a que se atribui à educação (art. 1º. da LDB)[...] tendo por finalidade (art. 2º. da mesma legislação) o pleno desenvolvimento do educando e seu preparo ao exercício da cidadania e qualificação para o trabalho.125

Importante destacar que essas são responsabilidades da família, da

sociedade como um todo e das instituições governamentais. Assim, evidencia-se

nas práticas de Justiça Restaurativa o foco na juventude, e em uma certa concepção

de juventude, como ser em desenvolvimento, em formação. Processo de formação

que se refere à ética das relações com o Outro, com a sociedade, onde se incluem

os jovens como agentes de transformação da história.126

Konsen destaca essa pedagogia para a responsabilidade, que se constrói por

meio da linguagem dialogal; e para a ética da alteridade, da possibilidade humana

de dar prioridade ao Outro e ao sentido construído na relação. Ambas presentes nas

práticas de Justiça Restaurativa.127

Adorno afirma que “o objetivo da escola deve ser a desbarbarização da

humanidade.”128 Melo utiliza-se dessa problematização para afirmar que esse

objetivo aproxima-se dos da Justiça Restaurativa de “desbarbarizar a resposta

coercitiva e punitiva.”129

125 Melo, p. 69, 2005. 126 Melo (2005). 127 Konsen (2008). 128 Adorno, p. 117, 1995 In: Melo, p. 71, 2005. 129 Melo, p. 71, 2005.

Page 47: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

47

CAPÍTULO 2 – DAS FERRAMENTAS CONCEITUAIS PARA PENSA R AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS: UM OLHAR DESDE O PSICODRAMA

Assim nosso silêncio se serve até das coisas mais comuns

e nosso encontro é meta livre: O lugar indeterminado, em um momento indefinido,

a palavra ilimitada para o homem não cerceado. Moreno

Neste capítulo, faremos inicialmente um rápido percurso pelos aspectos mais

relevantes da biografia de J. L. Moreno, criador do Psicodrama, visto que sua

história singular, seus embasamentos filosóficos e o desenvolvimento de sua teoria

estão intrinsecamente ligados.130 Em seguida, apresentaremos os delineamentos

teóricos gerais do Psicodrama e, por fim, aprofundaremos as teorias e conceitos

centrais para esta pesquisa: as Teorias do Encontro e de Papéis e os conceitos de

Papel e de Personagem.

I - Vida e obra de J. L. Moreno

Jacob Levy Moreno (1889-1974), criador do Psicodrama, nasceu em

Bucareste e foi criado em Viena. Procuramos destacar alguns de seus momentos

vivenciais e de construção do psicodrama, pois Moreno constrói sua prática e teoria

mobilizado pelos desafios que vivencia.

Gonçalves e Marino focalizam quatro momentos criativos da produção de

Moreno: o religioso e filosófico; o teatral e terapêutico; o sociológico e grupal; e o de

organização e consolidação. Os dois momentos iniciais referem-se a sua vida e

criação ainda em Viena e os outros dois momentos ocorrem posteriormente, com

sua mudança para os EUA.131

No momento religioso e filosófico (até 1920), ainda na Europa, Moreno é

influenciado principalmente pela religião (Hassidismo) e pelos filósofos Kierkegaard

e Bergson. Trabalhava com crianças, prostitutas e refugiados de guerra,

principalmente com um viés religioso.

No momento teatral e terapêutico (de 1921 a 1924) cria o Teatro da

Espontaneidade, o Teatro Terapêutico e o Psicodrama. Ao fundar o Teatro da

Espontaneidade, em 1921, no qual atores espontâneos junto com a própria platéia

130 Para maior aprofundamento de sua história pessoal, consultar Marineau (1992) e a autobiografia de Moreno (1997). 131 Gonçalves (1988) e Marino (1992 e 2002). Utilizaremos a análise destas autoras para esta breve introdução. Entretanto, é importante destacar que outros estudos analisam a trajetória e a produção de Moreno. Para maior aprofundamento ver Marineau (1992) e Fonseca (1980).

Page 48: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

48

participavam e construíam cenas. Nele, cada ator era também autor do drama e as

pessoas que assistiam ao teatro não acreditavam que as cenas eram construídas no

aqui-agora, que não havia nem textos nem ensaios. Deste teatro, cria o Jornal Vivo,

metodologia psicodramática em que notícias do dia eram encenadas

espontaneamente pelos atores e pela qual se evidenciava a construção das cenas

no aqui-agora.

Fazendo teatro espontâneo, Moreno começa a perceber seu potencial

terapêutico quando as criações dos atores são espontâneas e não estão atreladas

ao texto. Essa percepção ocorre com o caso Bárbara,132 pois percebe que os atores

se transformam depois de dramatizarem suas histórias. Surge, então, o Teatro

Terapêutico e, a partir deste, o Psicodrama.

Quando emigra para os Estados Unidos e preocupa-se com questões grupais

e sociais, tem lugar o terceiro momento de seu trabalho: o sociológico e grupal (1925

a 1941). Fortalece seu interesse pelas relações interpessoais e seu trabalho com

psicoterapia de grupo toma força. Continua fazendo suas sessões de psicodrama e

faz estudos com diferentes grupos, a partir dos quais fundamenta a sociometria,

destacando sua importância para trabalhos em comunidades. Além disso, retoma

seus primeiros estudos realizados em Viena nos campos de refugiados, e busca

uma interlocução com a comunidade universitária. Vinha da Europa, influenciado

pela fenomenologia e o existencialismo, e encontra nos Estados Unidos o

behaviorismo e o pragmatismo, que o influenciam na criação da sociometria.

No quarto momento, de organização e consolidação teórica (1942 a 1974),

Moreno sistematiza sua produção e conceitos, validando seu método psicoterápico

no meio acadêmico e convalidando o psicodrama com o método fenomenológico-

existencial.

No transcorrer de toda sua prática e obra, o hassidismo influencia e

permanece implícito, além de ser uma influência em toda sua vivência. No

hassidismo133, a relação vertical com Deus é substituída pela relação horizontal, com

132 Bárbara é atriz do Teatro da Espontaneidade, desempenhando constantemente papéis românticos. George freqüentava o teatro e se apaixona pela atriz. Eles se casam, porém, no convívio familiar, Bárbara se mostra intransigente e agressiva. A partir das queixas de George a Moreno, este faz um trabalho com Bárbara, onde ela passa a desempenhar, no palco, papéis mais agressivos, possibilitando esta vivência a ela, e incluindo o marido. Esse fato, conforme conta George posteriormente, possibilitou que ela, na sua relação matrimonial, não desempenhasse o papel de esposa de forma tão agressiva. 133 Ao contrário do judaísmo tradicional, no hassidismo não há a figura onipotente do rabino, mas do “tzaddik”, um homem de virtude, que tem uma relação próxima, capacidade empática e que serve de modelo para os demais. Fonseca (1980) compara o “tzaddik” ao diretor de psicodrama.

Page 49: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

49

um Deus próximo dos homens, que falam diretamente com Ele, sem intermediários,

pois considera que todo homem contém uma centelha divina.

Além da influência hassídica, compartilha da filosofia do encontro de Martin

Buber e do existencialismo. Desenvolveremos rapidamente estes aspectos das

bases filosóficas de Moreno, considerando-a relevante para a problematização que

será feita a seguir, no item VI deste capítulo, sobre a epistemologia e pesquisa em

psicodrama.134

Moreno traz contribuições ao campo do existencialismo, pois estrutura o

existencialismo em três períodos: o profético (dos filósofos frustrados), o heróico

(dos que vão para a ação) e o intelectual (dos filósofos acadêmicos).135 Essa

diferenciação é relevante, visto que é a partir dela que Moreno afirma seu

posicionamento: enfatizando o “ser” como um homem de ação. Um posicionamento

existencial que se caracteriza pela busca do fluxo natural e espontâneo da

existência no aqui-agora. Ressalta que os “homens de ação”, do período heróico,

dão um passo a mais, assegurando que existência e conhecimento – ser e conhecer

– são inseparáveis; compõem uma mesma dinâmica. Em relação ao existencialismo

intelectual, Moreno é bastante crítico, pois considera que o existencialismo se torna

“lugar comum” e seus pensadores deixam de lado a existência, a vivência do “ser”.136

II - A teoria socionômica: psicodrama

Procuramos traçar um quadro geral da teoria psicodramática, visando uma

compreensão do todo da obra de J.L. Moreno, para depois aprofundarmos os

aspectos filosóficos, teóricos e técnicos que aqui nos interessam. A importância

desse delineamento está no fato de que a teoria moreniana é constituída de

princípios e conceitos que se articulam e compõe um todo, que não pode ser

considerado em partes, sob o risco de segmentação e uso inadequado destes.137

Ao conjunto de sua produção, Moreno denomina socionomia, mais conhecida

como psicodrama.

134 Para aprofundamentos referentes ao embasamento e influências filosóficas e do hassidismo na vida e obra de Moreno, ver o livro de FONSECA, J.S. Psicodrama da Loucura. Ed. Agora, São Paulo, 1980. 135 Moreno (1983) 136 Para um maior aprofundamento, ver Moreno (1983) 137 No transcorrer desta pesquisa, em alguns momentos, será necessário colocarmos em foco algum aspecto da teoria moreniana, porém os demais continuam em cena, no palco desta pesquisa.

Page 50: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

50

O termo socionomia refere-se ao “estudo das leis que regem o

comportamento social e grupal”.138 Socius, do latim, significa companheiro, grupo, e

nomos, do grego, regra, lei.

A socionomia abrange três áreas: a sociodinâmica; a sociometria e a

sociatria.

- Sociodinâmica: estuda a dinâmica das relações interpessoais nos grupos

por meio do teatro espontâneo e do role-playing. Como jogo de papéis, possibilita ao

indivíduo atuar dramaticamente e desenvolver diversos papéis. Esse

desenvolvimento segue três passos: inicialmente, o indivíduo toma o papel (role-

taking); depois, joga e desempenha este papel (role-playing); e em seguida, recria e

desempenha o papel de forma singular (role-creating).

- Sociometria: é o estudo qualitativo e quantitativo das relações interpessoais

por meio do teste sociométrico e do átomo social. O teste sociométrico busca medir

as relações entre as pessoas de um grupo, em que cada uma faz escolhas positivas,

negativas e indiferentes para uma determinada ação, entre os participantes, seguida

da justificativa das escolhas. Das escolhas, é construído o sociograma, que é um

gráfico das congruências e incongruências das mesmas.139 O átomo social é o

conjunto das relações afetivas mais importantes e próximas de um indivíduo em um

determinado momento. Ele pode ser explorado vivencialmente na dramatização,

partindo-se ou não de uma representação gráfica das relações. A partir de diversos

átomos sociais entre pessoas que se relacionam é possível observar as redes

sociométricas que se estabelecem entre elas.

Moreno propõe que a sociedade deve ser compreendida pelo estudo

(sociometria) da dinâmica dos pequenos grupos, que reunidos formam uma grande

rede entre os átomos sociais, inter-individuais e inter-pessoais.140

- Sociatria: é o tratamento dos sistemas sociais, envolvendo pequenos e

grandes grupos, tendo em vista uma sociedade saudável. Moreno visava uma cura

extensiva a toda humanidade. Portanto, é a terapêutica das relações interpessoais,

por meio do psicodrama, da psicoterapia de grupo, do sociodrama e do axiodrama.

138 Gonçalves, p. 41, 1988. 139 Gonçalves, 1988. Para um maior aprofundamento ver capítulo O teste sociométrico de Kaufman. In: Monteiro, R.F. Técnicas Fundamentais do Psicodrama. São Paulo: Agora, 1998. 140 Moreno In: Fonseca (1980).

Page 51: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

51

O psicodrama caracteriza-se como o tratamento da pessoa no grupo. De

emergente grupal a protagonista, a pessoa em foco é representante do tema

protagônico.141

O psicodrama, portanto, articula o desenvolvimento da espontaneidade criativa por meio da ação dramática num contexto de psicoterapia grupal, no qual se levam em conta as inter-relações dos participantes e o desempenho de seus diversos papéis.142

O termo drama vem do grego e significa ação/acontecimento143. Psicodrama

poderia ser definido como o método que busca a verdade mediante a ação. “Em

Psicodrama, falamos da tomada de consciência pela ação, da aprendizagem pela

ação ou da catarse pela ação”.144

A psicoterapia de grupo é o tratamento das relações interpessoais, entre

pessoas que estão inseridas em um grupo, fundamentado na idéia de que a

interação entre estas pessoas é terapêutica e, à medida que interagem, conseguem

perceber-se e colocar-se no lugar do outro.

O sociodrama tem como protagonista o próprio grupo e caracteriza-se como

método de ação profunda que investiga ideologias coletivas e conflitos inter-grupais.

O axiodrama pode ser considerado um sociodrama tematizado, onde o foco

são os valores.145

Todos os métodos da socionomia configuram a “passagem da psicoterapia de

gabinete, de confessionário, de sigilo, de voz baixa, de controle das condições para

a psicoterapia do atuar, do contato, da relação, da verdade, da vida.”.146

Do mesmo modo, quando focadas as relações sócio-educacionais,

distanciamo-nos do ensino tradicional, das relações verticalizadas e conteudistas e

valorizamos uma perspectiva de co-construção do saber.

III - Dimensões individual e relacional: A microsso ciologia 147 moreniana:

Martin afirma que a visão de homem de Moreno tem uma dupla dimensão, a

individual e a relacional. No nível individual, espontaneidade-criatividade são os

conceitos centrais, os mais substanciais ao homem. Já no nível relacional, os

141 O tema protagônico refere-se às questões e conflitos daquele grupo, naquele momento. 142 Sene-Costa, p.87, 2006 In: Antônio, p.22, 2007. 143 Para um maior aprofundamento ver Marino (2002). 144 Zerka Moreno, 1975 In: Fonseca, p. 13, 1980. 145Para um maior aprofundamento ver Psicoterapia de grupo e Psicodrama de Moreno (1974), Marino (2002) e Mezher (2002). 146 Fonseca, p. 6, 1980. Sigilo aqui no sentido de silenciamento. 147 “A ‘microssociologia’ é a sociologia dos grupos pequenos, de sua estrutura atômica (‘microscopia social’).” Moreno, p. 34, 1974.

Page 52: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

52

conceitos centrais são grupo-sujeito e tele-estrutura. Essas dimensões, individual e

relacional, articulam-se na teoria de papéis (do eu-tangível), como nos afirma Martin:

“Dois eixos polarizam a teoria de Moreno relativa à pessoa humana: a

espontaneidade em sua dimensão individual, e o fator tele em sua projeção social.

Ambos se conjugam no eu-tangível, o que fundamenta sua teoria de papel.”.148

A espontaneidade, do latim sua sponte (de livre vontade) é uma possibilidade

da condição humana e é ela que garante a transformação de situações antigas ou

novas.149

Espontaneidade, um dos conceitos chave da obra de Moreno, é considerada

a base de todo o desenvolvimento humano. É ela quem garante a livre atuação dos

indivíduos e é buscada, nas práticas psicodramáticas, através do aquecimento e

preparação para a ação psicodramática. A ausência de espontaneidade é

considerada um dos aspectos que compromete a saúde do ser humano.150 Desta

forma, os processos terapêuticos e sócio-educacionais psicodramáticos buscam

devolver a espontaneidade dos indivíduos.

Apesar de muitas vezes vinculada ao tratamento do indivíduo, é atribuída por

Moreno ao potencial humano de constante criação e evolução, vinculado a sua

fundamentação hassídica da “constante criação divina”. A espontaneidade é

percebida, portanto, como um pequeno deus, inerente a todo homem.151

O inverso da espontaneidade é a conserva cultural, aspecto que cristaliza as

criações espontâneas, tornando-as obras/produtos. Moreno afirma que o processo

de criação é mais importante do que a obra, pois na criação a espontaneidade está

atuando, em ação, enquanto que a obra é conserva cultural, está finalizada.152 Para

que a espontaneidade se manifeste, a conserva cultural deve ser ponto de partida

para novas ações, novas criações.153

Retomando os aspectos referentes à microssociologia moreniana, Fonseca

afirma: “A teoria moreniana é basicamente dialógica. Nunca o Eu poderá encontrar-

se através de si mesmo, só poderá encontrar-se através de um outro, do Tu.”154

148 Martin, p.119, 1996. 149 Antônio, 2007. 150 Entende-se, no Psicodrama, que a espontaneidade apesar de inata a todo ser humano, pode se perder nos processos de adaptação social, tornando os atos conservados. 151 In: Martin, 1996. 152 In: Martin, 1996. 153 Gonçalves (1988). 154 Fonseca, p.6, 1980.

Page 53: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

53

A teoria moreniana, portanto, surge em oposição às teorias individualistas do

ser humano, considerando que o homem já nasce em um contexto grupal – a família

– que representa o contexto social e que, desde o nascimento, possibilita sua

socialização. Essa vinculação inicial da criança com a sociedade é encarnada pela

mãe/cuidadora, ou pessoa que desempenhe este papel, primeiro ego-auxiliar da

criança. Desta forma, para a teoria moreniana, “o social é constituinte da própria

personalidade”.155

Fonseca destaca quatro dimensões para pensar o homem: os papéis que

representa na vida; as suas relações; seu átomo social; e seu status sociométrico.156

Portanto, o homem é percebido em seus aspectos psicossociológicos,

considerando-se os elementos individuais e grupais que constituem, conjuntamente,

o indivíduo e o grupo. O grupo, portanto, é uma interação de sujeitos e não a

simples soma dos mesmos.

Desta forma, o conflito não é entendido como pertencente a um membro do

grupo, mas refere-se às inter-relações, se origina nas relações entre os homens.157

Além disso, um conflito que parecia inicialmente privado e individual, ao ser

compartilhado em um grupo, durante práticas psicodramáticas, por exemplo,

encontra respaldo entre os demais, pois “cada indivíduo se relaciona com os demais

através de redes que se vão tornando cada vez mais complexas.”.158

O grupo não pode ser confundido com um aglomerado de pessoas, pois só

pode ser considerado um grupo se as pessoas reunidas têm objetivos, valores ou

normas comuns, e se visam ou realizam uma ação conjunta e estão em interação.

Moreno afirma que o grupo tem uma dupla dimensão, a horizontal e a vertical.

A horizontalidade se dá na inter-relação, no equilíbrio de papéis entre indivíduos de

um grupo. A verticalidade refere-se à distribuição de papéis dentro de um grupo, que

tende a ocorrer no transcurso do tempo de constituição de qualquer grupo, quando

tarefas são distribuídas aos seus membros e surgem líderes e subordinados. As

diferenças entre os membros de um grupo podem ser analisadas por meio da

sociometria. Considerando essa dupla dimensão, para Moreno, o anarquismo é

insustentável, pois mesmo que um grupo se constitua por relações horizontais, com

155 Martin, p. 164, 1996. 156 Ancelin-Schützenberger, 1970 In: Fonseca, 1980. 157 Martin (1996). 158 Martin, p. 171, 1996.

Page 54: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

54

o passar do tempo as relações verticais emergirão, visto que se dão num processo

continuum de desenvolvimento.159

As relações horizontais e verticais também ocorrem entre grupos, nas

relações inter-grupais. Martin afirma ainda que, de forma geral, o grupo, depois de

organizar-se na direção vertical, tem uma tendência ao conservadorismo e opõe-se

às tentativas de mudança.160

Moreno faz uma leitura das relações sociais através da conceituação de

tricotomia social. Considera o universo social dividido em três dimensões: sociedade

externa, matriz sociométrica e realidade social. A sociedade externa é formada por

agrupamentos visíveis e identificáveis; a matriz sociométrica refere-se às relações

afetivas de atração, rejeição e indiferença, invisíveis inicialmente, mas que podem

tornar-se visíveis pela análise sociométrica; e a realidade social, que é a síntese

dinâmica das duas anteriores, produz o processo de vivência social.161

Entretanto, Moreno afirma que “a sociedade oficial (externa) e a matriz

sociométrica (interna) não são idênticas”.162 Afirma ainda que, quanto maior a

diferença, maior são o conflito e a tensão social.

Almeida, no prólogo da nova edição,163 faz uma importante contribuição, pois

esquematiza um quadro em que distingue três planos de aprofundamento dos

estudos e práticas no Psicodrama. A cada um atribui diferentes conceitos

psicodramáticos: o Encontro refere-se ao plano filosófico; a Tele ao plano teórico; e

a Inversão de papéis ao plano técnico. Afirma ainda que: “Tele é o elo legítimo entre

o encontro preconizado pela filosofia e a técnica da inversão de papéis, específica

do psicodrama.”.164 Assim, evidencia-se que o conceito de Tele possibilita uma

conexão teórica entre os planos filosófico e prático do Psicodrama. Essa

categorização de Almeida auxiliou-nos a eleger alguns elementos conceituais e

teóricos do psicodrama para compor este momento de apresentação geral: Tele e

Encontro. Feita essa apresentação, aprofundaremos a Teoria de Papéis e os

conceitos de Papel e Personagem, relevantes para entrarem em cena na

problematizarão a que nos propomos nesta pesquisa, pois permitirão pensar o

círculo em suas trocas relacionais. 159 Moreno (1992) In: Martin (1996). 160 Martin (1996). 161 Moreno (1992). 162 Moreno, p.182, vol.1, 1992. 163 Almeida (2006). 164 Almeida, p. 14, 2006.

Page 55: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

55

1. Tele

Representa o conjunto de fenômenos que constitui uma relação, todas as

operações que ocorrem num vínculo entre duas pessoas, em ambos os sentidos. Ao

contrário da transferência165 e contra-transferência freudianas, a Tele é constituída

no paradigma vincular do psicodrama, que não se constitui à partir da instância

individualizante ou patológica do homem.

Conforme definição de Moreno é um “sentir recíproco de um no outro”.166

Inclui reciprocidade e mutualidade relacional e possibilita o encontro. A percepção

télica está intimamente vinculada à capacidade das pessoas de realizar a inversão

de papéis, de se colocar uma no lugar da outra e, por isso, é considerada

responsável pela coesão e pela potencial integração grupal. Gonçalves destaca a

importância da capacidade télica para a comunicação, pois toda comunicação só é

possível com a percepção do outro.167

Tele ocorre em duplo sentido e, para Moreno, “o fenômeno Tele é a empatia

ocorrendo em duas direções.”.168

Apesar da semelhança, Tele e empatia são fenômenos diferentes, pois a

empatia é em um único sentido, a percepção por uma pessoa, de sentimentos de

outra pessoa ou até mesmo de um objeto. Entretanto, Fonseca destaca que a

empatia pode, até mesmo, ser usada como forma de manipulação e controle do

outro.169

De forma geral, poderíamos afirmar que o psicodrama tem como um de seus

objetivos a busca por relações télicas, e não as transferenciais. As relações télicas

fazem fluir mais espontaneamente a comunicação e possibilitam o verdadeiro

encontro, no aqui-agora, e a vivência de relações transformadoras, com diálogo e

compreensão mútua.

Diversos psicodramatistas pós-morenianos170 revisaram o conceito de Tele.

Perazzo faz uma revisão histórica das diversas contribuições ao conceito e afirma

165 Inicialmente, Moreno define a transferência como a patologia da Tele, a distorção da Tele e a incapacidade dos sujeitos de perceberem-se um ao outro, por isso um pseudo-relacionamento, não o verdadeiro encontro, que só acontece em relações télicas. Esta definição foi revista e Moreno (1983) afirma que as transferências ocorrem em direção aos papéis. Autores contemporâneos, Perazzo (1994 e 2009) e Bustos (1992), por exemplo, também revisaram o conceito e afirmam que, nas relações interpessoais, transferência e Tele estão sempre presentes e se alternam, estão em movimento, como uma balança, e são constituintes do trabalho psicodramático. 166 Moreno, p.21, 1983. 167 Gonçalves (1988). 168 In: Gonçalves, p. 49, 1988. 169 Fonseca (1980). 170 No Brasil, Perazzo (2009) destaca: Paiva (1980), Almeida (1982) e Aguiar (1986).

Page 56: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

56

que seu uso deve ser atualizado. Considera que a definição a seguir não é um

esgotamento do conceito, mas é uma importante síntese das contribuições dos

diversos autores do Psicodrama:

Tele é um fenômeno da interação, viabilizado entre seres humanos, abrangendo mutualidade, coesão, globalidade vivencial e polimorfismo de desempenho de papéis, incluindo a percepção, mas não se limitando a ela, guardando correlações com posições sociométricas nos átomos sociais, também dependente dos processos intrapsíquicos que envolvem qualquer relação, caracterizada principalmente por um movimento de cocriação que constrói, viabiliza e reformula um projeto ou projetos dramáticos através de uma complementaridade de papéis dentro de um campo sociométrico.171

2. Encontro

A idéia de Encontro está presente na obra de Moreno desde seus primeiros

trabalhos e é considerada um conceito chave da teoria psicodramática.

Encontro significa mais do que uma vaga relação interpessoal (Zwischen Mensschliche Beziehung). Significa que duas pessoas se encontram, mas não somente para se enfrentarem, e sim para viverem e experimentarem-se mutuamente. [...] Em um Encontro as duas pessoas estão ali, com todas as forças e debilidades, dois atores humanos explodindo de espontaneidade, apenas em parte conscientes de seus fins comuns.172

Conforme destacamos anteriormente, o encontro, no sentido moreniano, só é

possível entre duas pessoas que estão em uma relação télica, de real percepção

mútua. Desta forma, mesmo que entre duas pessoas não haja o Encontro

moreniano, os processos psicodramáticos buscam o aprimoramento das percepções

mútuas entre as pessoas. Moreno assim define Encontro: “dois indivíduos com

experiências pregressas diversas, com expectativas e papéis diferentes, encarando

um ao outro, um terapeuta em potencial de frente para outro terapeuta em

potencial.”.173

Nessa passagem, Moreno discute o Encontro e as relações de saber-poder

atribuídas aos coordenadores de um grupo, sejam eles médicos, conselheiros ou

sacerdotes, afirmando que o status profissional pode afastar o indivíduo do real

Encontro com o outro.

Moreno amplia essas afirmações referentes às relações de poder em um

grupo com os seguintes postulados: “(a) o grupo está em primeiro plano e o

terapeuta encontra-se subordinado a ele; (b) o terapeuta, antes de emergir na

171 Perazzo, p.35, 2009. 172 Moreno, p. 336, 1966 In: Bustos, p. 39, 1992. 173 Moreno, p. 20, 1983.

Page 57: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

57

qualidade de líder terapêutico, é simplesmente outro membro do grupo; (c) ‘cada

homem é o agente terapêutico do outro.’”.174

Bustos afirma que, em relações marcadamente assimétricas (professor-aluno,

pai-filho, empregador-empregado, terapeuta-paciente) existem papéis e condutas

específicos, que remetem a direitos, obrigações e responsabilidades diferentes e, se

as diferenças são quebradas, as disposições se confundem.175 Apesar da assimetria,

Bustos, afirma ainda que o Encontro entre as pessoas nesses papéis é possível e

que as responsabilidades são proporcionais aos papéis. Nas relações simétricas as

responsabilidades são as mesmas. Nas relações assimétricas há um “contrato” que

estabelece os papéis que estão em jogo. A quebra do “contrato” pode impossibilitar

o encontro, o que não significa que não possa haver profunda interação emocional

entre as pessoas nos papéis. “Moreno disse que o Encontro não inclui apenas a

aceitação, mas também a resposta, a recusa, ‘a soma total de aspectos emocionais

de uma relação.’”.176

Portanto, Bustos afirma que em relações entre papéis assimétricos certa

verticalização é necessária e saudável, devendo ser evitada a tentativa de

horizontalização “artificial”, pois gera uma situação de anarquismo e,

conseqüentemente, de autoritarismo. Isto ocorre porque, na tentativa de escapar de

regras rígidas, as mesmas são desconstruídas. Porém a pessoa que está no papel

complementar tem expectativas em relação às regras pertinentes a essa relação e

sente-se desorientada sem elas. Assim, ciclicamente, volta-se ao autoritarismo.177

Se um vínculo vertical se horizontaliza, é impossível fazê-lo sem uma profunda modificação do código. Caso essa modificação ocorra, o novo código assumirá o comando do vínculo. Logo, não é possível sobrepor o código gerado no vínculo vertical até um horizontal. Isso só cria confusão e caos.178

Desta forma, a assimetria das relações, que implica verticalidade, por remeter

a Papéis sociais e âmbitos diferentes de responsabilidade, não significa que a

horizontalidade das relações não possa ocorrer, uma possibilidade, sempre, para as

relações humanas compartilhadas.

174 Moreno, p. 24, 1983. 175 Bustos (1992). 176 Bustos, p. 43, 1992. 177 Bustos (1992). 178 Idem, p. 49.

Page 58: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

58

IV - Teoria de papéis e o conceito de papel

A palavra papel (role, rotulus) tem origem grega e romana e refere-se aos

“rolos” em que eram escritas as peças de teatro. Com o teatro moderno retomou-se

a prática, sendo os rolos de peças lidos para os atores decorarem seus papéis.

Cada parte cênica passou a ser chamada de papel ou role. Naffah faz este estudo

etimológico da palavra papel (rotulus, role, rótulo) e afirma que “na medida exata em

que o rótulo aumenta, diminui nosso contato com a substância que ele envolve”.179

Moreno destaca que o Papel é:

A forma de funcionamento que o indivíduo assume no momento específico em que reage a uma situação específica, na qual outras pessoas ou objetos estão envolvidos. [...] A função do papel é penetrar no inconsciente, desde o mundo social, para dar-lhe forma e ordem.180

Martin afirma que, para Moreno, o homem só tem consciência de si

experimentando um Papel. Fazendo referência à tese de Moreno, afirma: “uma

criança nunca poderá ter consciência do seu eu, se não começar a desempenhar

Papéis. O primeiro que existe é o Papel e dele surge o eu.”181

Moreno faz a distinção entre três diferentes categorias de Papéis vivenciadas

pelo sujeito: psicossomáticos, psicodramáticos e sociais.182 É importante destacar

que essa formulação teórica está pautada na Matriz de Identidade,183 em que

Moreno discorre sobre o desenvolvimento humano desde seu nascimento: um

momento inicial de indiferenciação do “ser” em relação ao outro (fase do duplo); em

seguida, o “ser” passa a se diferenciar (fase do espelho); e, depois de perceber o

outro, pode atuar como outro (fase da inversão de papéis). Retomemos sua

diferenciação dos Papéis:

Papéis Psicossomáticos – Papéis iniciais da infância, vinculados às

necessidades fisiológicas iniciais e de sobrevivência, como ingeridor, eliminador e

dormidor.

Papéis Psicodramáticos - Papéis imaginados, vinculados à fantasia, podem

ou não ser vivenciados no palco psicodramático ou no contexto social.

Papéis Sociais – Papéis reais de pai, mãe, filho, professor.

Os papéis psicossomáticos, ao serem desempenhados, ajudam a criança a experimentar o que chamamos “corpo”; [...] os papéis psicodramáticos a ajudam a experimentar o que denominamos “psique”; e [...] os papéis sociais

179 Naffah, p. 170, 1979. 180 Moreno, p. 27-8, 1984. 181 Martin, p. 213, 1996. 182 Moreno (1984). 183 Para maior aprofundamento de Matriz de Identidade ver Moreno (1984).

Page 59: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

59

contribuem para fazer surgir o que chamamos “sociedade”. Corpo, psique e sociedade são, portanto, as partes intermediárias do eu total.184

Assim, Moreno destaca que a criança começa a atuar desde o nascimento,

desempenhando Papéis psicossomáticos. Inicialmente, a criança integra-se na

sociedade familiar, para através dela integrar-se no ambiente sócio-cultural. “O

desempenho de Papéis é anterior ao surgimento do ego. Os Papéis não decorrem

do eu, mas o eu pode emergir dos Papéis.”.185

Além disso, Moreno verificou que a representação de um Papel não significa

capacidade de percebê-lo, assim como percebê-lo não significa conseguir

representá-lo.186

A teoria psicodramática aponta, além disso, para a frágil delimitação entre as

três categorias de Papéis, visto que elas se entrelaçam quando o ser está

desempenhando os diferentes Papéis.

Alguns autores187 retomaram as proposições de Moreno e problematizaram a

conceituação dos diferentes Papéis. Exporemos a seguir essas contribuições, visto

que são importantes revisões e aprofundamentos da teoria de Papéis de Moreno.

Ao definir Papel como “um conjunto de atos, segundo o modelo prescrito por

uma determinada sociedade, na interação entre seres humanos”.188, Mezher

questiona a própria existência dos Papéis psicossomáticos, visto que, neles essa

interação não seria possível e propõe a substituição do conceito de Papel

psicossomático por “zona corporal em ação”.189

Já Perazzo, estudando os Papéis imaginários e psicodramáticos, afirma que

Moreno não os diferenciava, pois ambos incluem fantasia e imaginação,

independentemente do locus.190

Essa diferenciação foi feita por Naffah, ao considerar que psicodramático é o

Papel atuado no palco psicodramático e imaginário é o Papel não atuado, que

permanece na imaginação e fantasia do sujeito, não é inter-relacional.191

A partir das proposições de Mezher e Naffah, Bustos e Perazzo aprofundam a

problematização referente à Teoria de Papéis moreniana e, em específico, sobre

184 Moreno (1984) In: Martin, pp. 214, 1996. 185 Moreno, p. 210, 1984. 186 Moreno (1984). 187 Naffah (1979), Mezher (1980), Gonçalves (1988) e Perazzo (1994 e 2009). 188 Mezher, p. 221, 1980. 189 Mezher, p. 223, 1980. 190 Perazzo (1994). 191 Naffah (1979).

Page 60: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

60

Papel psicossomático. Para eles, o que Moreno havia definido como Papel

psicossomático, refere-se a funções vitais essenciais ao desempenho do Papel

social de filho.192

Segundo Bustos,

Para que uma ação tenha categoria de papel, deve preencher alguns requisitos básicos, sendo o mais importante a consciência possível sem a qual não se pode admitir esse comportamento como sendo unidade de conduta.193.

Com base nisso, considera que em relação à criança não é adequado usar

um conceito de interação social como o conceito de Papel, pois ainda está no

período de Matriz de Identidade, tem uma precária maturação psicofísica, e o

desempenho deste Papel social de filho tem a função de internalizar as regras

trazidas pela mãe, convertendo-as em estruturas do eu.194

Perazzo desenvolve essas discussões e cria uma categoria que nomeia como

Papéis de fantasia os quais, apesar de serem do âmbito imaginário, são livres de

transferências e podem ser jogados fora do contexto psicodramático.195

Moreno define o Papel social como “uma unidade de experiência sintética em

que se fundiram elementos privados, sociais e culturais [...] uma experiência inter-

pessoal que necessita, usualmente, de dois ou mais indivíduos para ser

realizada”.196

Para Bustos os Papéis sociais são “os que correspondem às generalizações

convencionais de acordo com determinantes culturais”.197 Destaca que, segundo

Moreno, cada Papel social é formado por fatores individuais e coletivos. Outra

característica dos Papéis sociais é que eles são complementares,198 papel e contra-

papel e como o indivíduo estabelece diversas relações, forma-se o Cacho de Papéis,

ou clusters.199 Esses Papéis complementares trazem vínculos de dinâmica passiva

(filho-mãe), ativa (filho-pai) ou interativa (irmão-irmão).

192 Bustos (1990) e Perazzo (1994 e 1999). 193 Bustos, p. 72, 1990. 194 Bustos (1990). 195 Perazzo (1994 e 1999). 196 Moreno, p. 238, 1974. 197 Bustos, p. 73, 1990. 198 Por papel ser um conceito inter-relacional, qualquer papel possui um contra-papel, o papel complementar, que completa a relação formando um vínculo. Por exemplo, ao papel de mãe corresponde o complementar filho. Cada papel existente tem seu complementar. (Bustos, 1990). 199 Cachos de papéis, também conhecido como agrupamento de papéis ou ainda clusters. Bustos (1990) desenvolve a teoria dos clusters. Os papéis se agrupam segundo sua dinâmica, configurando três clusters, a partir da Matriz de Identidade. O cluster um está relacionado aos papéis mais passivos; o cluster dois aos papéis mais

Page 61: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

61

Perazzo define Papel social como “um atributo do indivíduo, conferido

consensualmente pela sociedade”.200

Conforme afirma Martin, os indivíduos podem, de certa forma, escolher o

Papel social que querem desempenhar, mas em alguns casos têm de aceitar o que

lhes é imposto. Em ambos os casos, os Papéis assumidos exigem uma conduta

socialmente determinada.201

Moreno afirma ainda conclui que é uma vantagem metodológica estudar

Papéis, visto que é mais concreto que personalidade ou ego. Se considerarmos os

Papéis que o indivíduo desempenha podemos observar o “eu” que experimenta, são

os aspectos tangíveis e operacionais do “eu”.202

Levando-se em consideração as contribuições contemporâneas ao conceito

de Papel e suas diferentes classificações, tomaremos por base de análise a

classificação adotada por Perazzo:

- Papéis sociais: designa todos os papéis da vida cotidiana, vivenciados nas

relações mais diversas (papel de pai, de médico, de amigo, de filho, de marido, etc.)

- Papéis psicodramáticos: jogados apenas no cenário psicodramático,

servindo de elo de ligação entre os Papéis sociais e os Papéis imaginários.

- Papéis imaginários: Papéis conservados dentro do sujeito (encapsulado) e

não atuados (conservados ou não pela transferência). Expressão conservada do

desejo.

- Papéis de fantasia: não atuados e não conservados necessariamente pela

transferência, podendo ser jogados dentro ou fora do cenário psicodramático.

- Papéis dramáticos: desempenhados por atores.203

V - Personagem

Como pudemos perceber, o conceito de Papel já foi bastante aprofundado e

teorizado, desde seu fundador (Moreno) até os psicodramatistas contemporâneos.

Já em relação ao conceito de Personagem, como evidencia Perazzo, há pouca

discussão e escritos. Segundo ele, há uma incorporação desses termos por parte

dos psicodramatistas devido ao seu constante uso, considerando-os muitas vezes

ativos, e o cluster três refere-se aos papéis interativos, que são os mais simétricos. As três dinâmicas são possibilidades alternativas no desempenho de todos os papéis. (Bustos, 1990). 200 Perazzo, p. 83, 1986. 201 Martin (1996). 202 In: Martin, 1996. 203 Perazzo (2009).

Page 62: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

62

como sinônimos, ambos referidos “a uma representação de um ser humano e

sempre produto da imaginação.”.204

Entretanto, como o psicodrama tem suas bases nas técnicas de ação,

derivadas do teatro, consideramos importante aprofundar a discussão do conceito

de Personagem para além de seus aspectos práticos, visto que abre uma chave

conceitual para a discussão que nos propomos nesta pesquisa.

Aguiar contribui afirmando que os Personagens podem ser não-humanos e

trabalha o conceito de Personagem vinculado às práticas do teatro espontâneo.

Afirma que, de forma geral, o Personagem possui um conflito, o qual não

necessariamente pertence ao ator. No teatro espontâneo psicoterápico é freqüente

que esse conflito pertença ao ator e ao Personagem, assim, é preciso que seja

definido para construir o Personagem e trabalhado.205

Calvente desenvolve o conceito de Personagem paralelamente à Teoria de

Papéis de Moreno, ampliando-a.206 Outros autores psicodramáticos contemporâneos

aprofundaram também a Teoria de Papéis, como foi visto anteriormente, visto que,

em sua origem, Moreno não diferenciava especificamente Papel de Personagem,

principalmente em relação aos Papéis psicodramáticos.

Para Calvente, “o Personagem não nasce da natureza e, sim, da imaginação.

Sua origem é a subjetividade.”.207 O Personagem integra aspectos relacionais e está

entre a elementariedade do Papel e a complexidade da Identidade. Afirma que é

pelo Personagem que se revela e é colocada em evidência a subjetividade. Diz ele:

“suspeito que seja um híbrido, um produto transicional, um mestiço. [...] está ligado à

fantasia e à imaginação, e também ao ambiente. Contém aspectos conscientes e

inconscientes”.208

Um Personagem rígido (conservado) pode tomar grande parte da

subjetividade de uma pessoa, fazendo com que se relacione, nos diferentes

contextos, sempre através daquele mesmo Personagem, com pouca ou nenhuma

espontaneidade.

Fazendo uma análise comparativa entre Personagens e Papéis, Calvente

afirma que o Personagem não se constitui especificamente enquanto aspecto

204 Perazzo, p. 55, 2009. 205 Aguiar (1998). 206 Calvente (2002). 207 Calvente, p. 26, 2002. 208 Calvente, p. 26, 2002.

Page 63: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

63

vincular, ele possui uma intencionalidade e roteiro próprios, estabelecidos na sua

origem, no status nascendi e, por isso, é mais independente do aspecto relacional

no aqui-agora. Enquanto isso, o Papel é um conceito com a lógica e coerência

relacional, delimitado pelo contra-papel e pelo efeito Cacho de Papéis.209

É nessa lógica da complementaridade de Papéis e Cacho de Papéis que “um

mesmo Personagem aparece representando papéis diferentes, mas com uma

coerência e uma lógica próprias do Personagem.”.210 Lógicas conservadas e

vivenciadas pelo ator social nos diferentes Papéis. A função do Personagem está

vinculada, de acordo com Calvente, à sua origem, ao seu processo de formação e

ao contexto em que se insere. “A origem é a fantasia e a imaginação que,

modeladas pelas relações, geram Personagens mais ou menos expressivos e úteis,

que permanecem ou vão sendo abandonados.”.211

Calvente afirma que os Personagens podem ter origem recente ou ser muito

antigos na história do sujeito e, normalmente, têm a função de auxiliá-lo em

momentos de dificuldade e em situações em que o sujeito sente-se ameaçado,

ocasiões em que surgem como ato criativo. Entretanto, o próprio Personagem pode,

no seu processo de estabelecimento, tornar-se uma ameaça para o sujeito e para as

inter-relações, enrijecendo-as e tornando-as pouco espontâneas, pois são as formas

de comportar-se deste Personagem que se repetem nas diferentes relações e

contextos, configurando uma “resposta velha às situações novas”.212

Em relação à formação do Personagem, Calvente afirma haver três diferentes

formas,213 conforme segue:

- Personagem assumido (equivalente ao role-taking): em parte elaborado e

em parte imposto ao sujeito, com pouca espontaneidade. São Personagens rígidos,

têm característica defensiva e estão vinculados a situações de rejeição.

- Personagem representado (equivalente ao role-playing): é menos rígido e

tem mais espontaneidade. Aparece em situações novas, e busca dar conta da

ansiedade nessas situações. Aos poucos, ao se sentir seguro, a pessoa por detrás

do Personagem pode ir se despindo e revelando-se.

209 Calvente (2002). 210 Calvente, p. 27-8, 2002. 211 Calvente, p. 29-30, 2002. 212 Calvente, p. 31, 2002. 213 Calvente (2002).

Page 64: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

64

- Personagem criativo (equivalente ao role-creating): com maior

espontaneidade, Personagem e pessoa quase se confundem, um está incluído no

outro. Ainda assim, a subjetividade “cria” o Personagem que, em sua criação, foi

espontâneo.

Para Calvente, o Personagem é um recurso que a pessoa possui e pode ou

não utilizar. Podem ser generalizações sociais, de âmbito coletivo, que aludem a

características das pessoas, por exemplo, católicos, provincianos e marginais.

Nesses casos, refere-se a um pré-juízo, geralmente utilizado de forma depreciativa e

pode personificar-se em apenas uma pessoa, que se torna representante daqueles

que se identificam com o mesmo. Em instituições, esses Personagens podem

apresentar-se como estereótipos institucionais e referir-se propriamente àquele

contexto ou expandir-se para outros contextos vivenciais.214

Segundo Perazzo,

A contribuição notável de Calvente é a de nos chamar a atenção para determinadas formas repetitivas de comportamento em papéis sociais diferentes como que configurando um Personagem conservado que se repete em situações e contextos diversos.215

Perazzo acrescenta que o Personagem estereotipado, conservado, “migra

através do efeito cacho ou feixe de papéis em múltiplas complementaridades dos

mais diferentes papéis sociais.” 216

Calvente e Perazzo privilegiam em suas práticas o contexto psicoterápico e é

a partir desse olhar que teorizam e fazem uso do conceito de Personagem. Para

Perazzo, interessa identificar qual Personagem interno dos vínculos primários

potencializa a co-construção de transferências217 em seu status nascendi.218

Buscando integrar as contribuições teóricas dos autores219 que tem por base, propõe

que:

A transferência e seu status nascendi representam um conjunto em que, em um vínculo primário, através de uma complementaridade de papéis sociais se estrutura um Personagem conservado pelo poder simbólico atribuído ao outro, tendo como pauta uma lógica afetiva de conduta.220

214 Calvente (2002). 215 Perazzo, p. 55, 2009. 216 Perazzo, p.55, 2009. 217 Transferência entendida aqui como transferência de papéis. 218 Perazzo (2009). 219 Calvente (2002), Nery (2003), Baiocchi (2003). 220 Perazzo, p. 56, 2009.

Page 65: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

65

No contexto psicoterápico, a função do trabalho psicodramático é desvendar,

desmontar, desmascarar e desconstruir os aspetos transferenciais do Personagem e

possibilitar a construção de novas formas relacionais, mais espontâneas.221

Perazzo222 destaca a importância dessas discussões para trabalhar

psicodramaticamente com repetições, heranças e destinos intergeracionais, que são

cumpridos passivamente pelo sujeito. Buscando, dessa maneira, romper com o

poder simbólico do contra-papel no status nascendi e esta conserva, possibilitando

um insight dramático que aciona um impulso de transformação e a ação dramática e

vivencial espontâneo-criativa.

Calvente afirma ainda que, em relação ao Papel complementar: “Temos

constatado que o complementar pode ser o verdadeiro gerador desse

Personagem”223

Podemos afirmar, assim, que, apesar do Papel estar mais vinculado ao inter-

relacional e à complementaridade de Papéis, o Personagem pode ser atribuído e

imposto ao sujeito pelo Papel complementar. Sendo que o sujeito poderá

desempenhá-lo com comportamentos reiterados e estereotipados.224

Calvente define o Personagem como “aquele que nos habita, que

construímos, que nos foi imposto e aceito.”225 Também encontramos, nesta

pesquisa, Personagens impostos pelos papéis complementares, porém, em muitos

casos, estes não são aceitos e atuados pelo ser, afirmando os movimentos de

resistência e espontaneidade como potenciais deste ser, em sua singularidade e em

seus aspectos inter-relacionais.

Perazzo nos chama atenção, no entanto, para o fato de que “o papel é um

roteiro agido por um ator ou atriz através de um Personagem”.226

Podemos afirmar que os conceitos de Papel e Personagem pertencem ao

mesmo território da co-existência: trazem a marca de como o “ser” se percebe e é

percebido. Entretanto, Papel é o roteiro de conduta na ação, e o Personagem

aglutina, num “modo de ser”, aspectos e dimensões desses roteiros de conduta.

221 Perazzo, 2009. 222 Fazendo referência ao artigo de Naffah (1980) O drama da família pequeno-burguesa e à dissertação de mestrado de Márcia Almeida (1995) Valorizando os avós na matriz de identidade. 223 Calvente, p. 41, 2002. 224 Calvente (2002) afirma que este Personagem estereotipado, conservado, emerge por metáforas, conforme foi destacado por Contro,224 e, por estar no contexto figurado, pode ser atravessado por diversos sentidos. 225 Calvente, p. 63, 2002. 226 Perazzo, p. 55, 2009.

Page 66: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

66

Do lugar da Psicologia Social, o conceito de Personagem nos ajuda a

identificar, nos contextos das instituições, os Personagens estereotipados atribuídos

ao ser, e suas resistências a essas imposições. Do lugar de quem se preocupa com

a possibilidade de transformação do outro, o drama se dá quando o ator social

incorpora o Personagem atribuído ou vive a agonia de lutar contra ele e resistir.

VI - Do Psicodrama no contexto de pesquisa

Propomos, inicialmente, uma problematização do psicodrama como

metodologia de pesquisa, sua inserção na pesquisa acadêmica, para além de

técnicas de intervenção, destacando seus referenciais epistemológicos e as

contradições existentes desde seu fundador (J.L.Moreno) até os psicodramatistas

contemporâneos. Na seqüência, esclarecemos o modelo de pesquisa desta

dissertação, evidenciando o seu embasamento filosófico e teórico no Psicodrama.

Seguimos a partir da pergunta de Brito: “O que o psicodrama tem a oferecer

no âmbito da pesquisa universitária?”.227 Sua resposta: um método de pesquisa

qualitativo (pesquisa-ação) e a máxima moreniana: “sê espontâneo!” Ora, como a

Espontaneidade e a Criatividade podem auxiliar o trabalho do pesquisador-

psicodramatista no contexto da pesquisa acadêmica?

Buscando esclarecimentos, recorremos aos textos de Moreno e de

psicodramatistas que analisam, em uma perspectiva histórica, o desenvolvimento do

psicodrama e discutem sua inserção no meio acadêmico, como metodologia de

pesquisa, sua epistemologia e bases teóricas228.

Retomemos, inicialmente, os quatro momentos, apresentados anteriormente,

que caracterizam o desenvolvimento da filosofia e técnicas de Moreno: religioso e

filosófico; teatral e terapêutico; sociológico e grupal; e de organização e

consolidação.229

Conforme já destacamos anteriormente, os dois primeiros momentos, ainda

na Europa, são fortemente influenciados pelo hassidismo, fenomenologia,

existencialismo, e pelos filósofos Kierkegaard e Bergson. A partir de 1925, quando

Moreno emigra para os EUA, é convidado ao diálogo com intelectuais da época no 227 Brito (2006). 228 Gonçalves (1990) destaca que muitos psicodramatistas buscam complementar suas práticas e pesquisas em outras teorias e em outras bases epistemológicas. Perazzo (1994) enfatiza que, no Brasil, o psicodrama foi bastante influenciado pela psicanálise, antipsiquiatria, etologia e teoria da comunicação, fato que lhe confere uma diversidade de pensamentos e formas de atuação. 229 Segundo Gonçalves (1988) e Marino (2002).

Page 67: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

67

contexto acadêmico e, influenciado pelo behaviorismo e pragmatismo, cria a

Sociometria. Posteriormente sistematiza sua produção e conceitos e convalida o

psicodrama com o método fenomenológico-existencial.

Desde já podemos perceber a diversidade no desenvolvimento do

pensamento e das práticas de Moreno ao buscar um novo modo de ver e conceituar

o homem e a sociedade. De certa forma, os psicodramatistas contemporâneos

também trilham esses caminhos e buscam articular o psicodrama com outras

filiações: fenomenológico-existencial, construtivista, comportamental, psicanalítica230.

A teoria psicodramática foi sendo construída a partir de práticas e intervenções de

Moreno, que, por ser um homem de ação, aprofunda a fundamentação teórica do

psicodrama nos seus últimos trabalhos, revendo e sistematizando seus escritos

anteriores. Caminho este também percorrido por diversos psicodramatistas pós-

morenianos.231

Brito afirma que “o legado de Moreno é menos um legado de mandatos do

que de escolhas”,232 fato que se evidencia pelas diferentes articulações teóricas de

muitos psicodramatistas. Contudo, Moreno percebe a necessidade de validação

científica e de seus pares para a teoria que estava em construção.

Ao descrever processos experimentais para desenvolver sua teoria, métodos

e técnicas, Moreno afirma haver três diferentes formas de validação de um

fenômeno: a científica, a existencial e a estética.233

A validação científica refere-se aos processos acadêmicos de verificação dos

fenômenos estudados, com o rigor metodológico da pesquisa científica. A validação

estética refere-se à forma dos fenômenos, sua beleza artística.

A validação existencial pertence ao “ser” que a vivenciou, “in situ, no aqui e no

agora, sem qualquer tentativa de confirmar o passado ou de predizer o futuro”.234

Portanto, uma vivência pode ser satisfatória no momento de sua consumação, no

aqui-agora, mas não pode ser generalizada porque a validação é para quem a viveu.

Em relação a essas validações, existencial e estética, um dos aspectos

técnicos e metodológicos destacados por Moreno refere-se ao fato do psicodrama

criar um espaço, o palco psicodramático, para o comportamento “desviante” realizar- 230 Gonçalves, 1990. 231 Por exemplo: Naffah (1979), Gonçalves (1990), Fonseca (1980), Perazzo (1994, 1999 e 2009), Almeida (2006), Contro (2009), dentre outros. 232 Brito, p. 17, 2006. 233 Moreno (1983). 234 Moreno, p. 105, 1983.

Page 68: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

68

se e transformar-se. Moreno sustenta que este é um método que inclui a associação

livre da Psicanálise, porém pela ação, fenômeno que torna a subjetividade

revelada.235

Isolando, esclarecendo e utilizando o mais irritante dos aspectos da terapia, o da atuação, conseguiu, talvez, a mais original e mais profunda das mudanças na literatura e na técnica da psicoterapia desde os começos.236

Mudança essa que não se restringe ao contexto psicoterápico, pois expande-

se para os contextos sócio-educacionais, inclusive o da pesquisa acadêmica. Martin

acrescenta:

Interessa-lhe o atuar e não o resultado da atuação, não a conduta. Quer a atuação em seu estado nascendi e quer conhecê-la de maneira científica. A solução para objetivar o subjetivo – a novidade de seu método – dá-se ao conseguir que o ator seja ao mesmo tempo experimentador, e que o observador seja ao mesmo tempo ator.237

A diferenciação entre as validações feita por Moreno busca clarificar o estudo

dos fenômenos em suas diferentes dimensões, problematizando a cientificidade dos

métodos qualitativos e principalmente da metodologia psicodramática, tendo por

referência uma concepção positivista de ciência.238

O movimento de busca por validação científica também é percebido entre

alguns psicodramatistas inseridos no contexto acadêmico que procuram, através do

estudo epistemológico e metodológico, desenvolver os conceitos e métodos do

psicodrama, principalmente no que se refere ao seu uso em pesquisas acadêmicas.

Por ser essencialmente um método de ação e, desse modo, de intervenção

individual e social, o processo de inserção do psicodrama na academia é bastante

complexo e muitas vezes questionado. Enquanto método de levantamento de dados

para a pesquisa, o psicodrama é considerado uma alternativa interessante, desde

que com critérios bem especificados. Entretanto, no que se refere à teorização, em

diferentes focos de pesquisa, a validade de seu aparato teórico e conceitual é

bastante questionado e percebe-se a necessidade, entre alguns pesquisadores, de

buscar fundamentação teórica em outras abordagens.

235 Moreno (1983). 236 Comentário de Lynn Smith a respeito da revisão conceitual, realizada por Moreno, do acting out e o seu uso no psicodrama (Moreno, p.124, 1983). 237 Martin, p.39, 1996. 238 Deve-se considerar o momento histórico no qual Moreno busca a concretização e o reconhecimento científico/acadêmico de sua teoria e método. Um contexto acadêmico ainda bastante carregado de elementos positivistas.

Page 69: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

69

É fato que, desde seu criador, o psicodrama tem múltiplas faces, teorias e

práticas, principalmente pelas diferentes influências filosóficas e teóricas de Moreno

e, sobretudo, dos psicodramatistas pós-morenianos. Por isso, retomamos a questão

de Brito: “Que psicodrama?”239 A necessidade de associar a teoria moreniana com

outras abordagens, principalmente na pesquisa acadêmica com metodologia

psicodramática, abre brecha para que essas vinculações sejam falhas e faz com que

seus métodos e técnicas sejam, de certa maneira, usados de forma dissociada da

teorização.

Moreno postula que essas validações (científica, existencial e estética) não se

excluem, são complementares, e devem ser construídas num continuum. Pode-se

apreender de seus escritos que, na teoria e metodologia psicodramáticas, essas três

validações atuam dinamicamente, constituindo assim, uma forma estética (teatro),

científica (sociometria) e existencial (psicodrama) de percepção do fenômeno. E,

podemos acrescentar:240 estética/filosófica (teatro e encontro); teórica/científica (tele

e sociometria); e existencial/técnica (psicodrama, inversão de papéis e demais

técnicas).

Brito, questionando o que o psicodrama tem a oferecer à Universidade e

como pode se inserir neste contexto, salienta que: “temos a oferecer à pesquisa

universitária um modelo próprio de investigação, uma metodologia de pesquisa

fundamentada na co-criação, na categoria do momento, na criatividade-

espontaneidade”.241

Além disso, os referenciais teóricos e filosóficos do Psicodrama permitem, por

meio de seus métodos, compreender os emaranhados entre os planos real e

imaginário, do social e do psíquico, tencionando e problematizando os nós desse

emaranhado, pois o Psicodrama aborda as relações interpessoais e intergrupais, e

inclusive as ideologias coletivas. Portanto, percebe-se que o psicodrama, enquanto

metodologia de pesquisa qualitativa, da ordem da pesquisa-ação crítica e da

pesquisa-intervenção, tem amplo alcance como método de pesquisa e de

intervenção social e política.

Contro aprofunda essa problematização afirmando que o psicodrama pode

ser articulado à pesquisa-ação crítica, assim como à pesquisa-intervenção, visto

239 Brito (2006) 240 Conjugando as disposições de Moreno (1983) e Almeida (2006) 241 Brito, p. 23, 2006

Page 70: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

70

que, em ambas o potencial de transformação político-social está presente, pois

questionam os jogos de interesse e as relações de poder, e não se constituem como

um modo de re-estabelecimento da ordem vigente.242

Segundo ele, devemos considerar a pesquisa-ação e a pesquisa-intervenção

“não como métodos, mas como estratégias gerais ou correntes de pesquisa que

podem agregar diversos métodos e técnicas e delinear um instrumento coletivo e

participativo de intervenção.”.243

Apesar disso, o autor ressalta que existem múltiplas diferenças entre as

estratégias gerais de pesquisa, destacando, principalmente, como elementos da

pesquisa-intervenção, aqueles referentes à análise da demanda (encomenda) e da

implicação.

Entendendo, portanto, as validações científica, existencial e estética,

postuladas por Moreno como complementares e construídas num continuum,

podemos afirmar que o uso da teoria, filosofia e técnicas psicodramáticas possibilita

olharmos, de uma maneira diferenciada para o fenômeno que pesquisamos. Olhar

para as cenas, Papéis e Personagens que se apresentam nas práticas restaurativas

possibilita a problematização do lugar do jovem nos círculos restaurativos.

Com base na teoria e metodologia do Psicodrama, esta pesquisa inclui-se no

modelo de pesquisa qualitativa, a pesquisa-ação crítica. Entende-se que essa

fundamentação filosófica e teórica estabelece que a pesquisa e a prática estão

visceralmente ligadas, pois o pesquisador é co-participante, é parte do objeto de

estudo e está implicado em seus processos ao mesmo tempo em que busca

dispositivos analisadores e processos de mudança grupal, social e política, durante

toda a pesquisa. Aqui, a relação entre pesquisador e pesquisado é entendida como

constitutiva da pesquisa, e não como um aspecto interveniente que deve ser

controlado.

Isso não impede que entendamos que a demanda (avaliação das práticas

restaurativas naquele contexto) trazida pelos solicitantes, no caso, a equipe

responsável pela implantação das práticas restaurativas naquele município estão

sendo colocadas em análise, gradualmente, ao longo da realização desta pesquisa e

do conjunto de pesquisas que compõem o projeto maior. Um exemplo bem

ilustrativo é o caso do lugar institucional – pouco legitimado – do facilitador, cuja

242 Contro (2009). 243 Contro, p. 22, 2009 (grifos do autor).

Page 71: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

71

resistência em participar nos permitiu analisar o mal-estar do grupo e ao mesmo

tempo o desejo de serem acompanhados e vistos.

Page 72: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

72

CAPÍTULO 3 – OLHANDO PARA OS CÍRCULOS RESTAURATIVOS COMUNITÁRIOS: OS CONFLITOS NO CONTEXTO ESCOLAR

Este capítulo tem por objetivo apresentar e problematizar a estrutura geral

dos círculos restaurativos e suas etapas de desenvolvimento, tendo por base os

círculos restaurativos que acompanhamos no contexto comunitário de São Caetano

do Sul. Para isso, inicialmente, apresentaremos os procedimentos de análise dos

dados. Em seguida, apresentaremos uma sinopse de cada círculo restaurativo

acompanhado para que o leitor possa apreender o contexto das falas, cenas e

passagens de cenas que serão destacadas. Num terceiro momento,

problematizaremos os tipos de conflito que se apresentam e suas rotas institucionais

até chegar ao círculo restaurativo, tendo em conta os modos como são trabalhados;

momento em que também problematizaremos as ausências de alguns participantes

importantes para o processo restaurativo. Num quarto momento, problematizaremos

as práticas restaurativas no contexto comunitário de São Caetano do Sul e o papel

do facilitador.

I - Dos procedimentos de análise

Os círculos restaurativos foram gravados e transcritos integralmente.244 As

gravações dos círculos foram escutadas atentamente durante o processo de

transcrição e, após a transcrição, foram lidos diversas vezes. Deste modo,

anotações e observações feitas durante os círculos foram acrescentadas à

transcrição, buscando associar as falas com seus aspectos cênicos, de gesticulação,

troca de olhares e expressões faciais e corporais. Além disso, tanto durante a

observação, como na transcrição e processo de análise, fizemos algumas anotações

de percepções e sensações com base nas técnicas psicodramáticas do Duplo,

Tomada de Papel e Solilóquio.245 Essas técnicas visam uma aproximação e

aprofundamento, por parte do pesquisador-psicodramatista, dos elementos afetivos

e relacionais dos participantes. Visa ampliar a percepção do pesquisador quanto aos

244 Com exceção do Círculo 1, pois ainda não havia autorização para gravação, apenas para observação do mesmo e anotações. 245 No contexto desta pesquisa: a técnica do Duplo refere-se à expressão, por parte do pesquisador, do que o participante do círculo restaurativo, por diversos motivos, não consegue ou não pode expressar; a Tomada de Papel é o movimento do pesquisador de colocar-se no lugar do participante do círculo; e o Solilóquio é a expressão, por parte do pesquisador, de percepções referentes aos participantes ou ao círculo restaurativo como um todo.

Page 73: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

73

elementos trazidos pelos participantes e serão considerados de diferentes modos na

análise dos dados. Nos poucos momentos em que essas percepções foram

expressas verbalmente nos círculos restaurativos, elas aparecem nas transcrições;

quando as percepções da pesquisadora não foram verbalizadas nos círculos

restaurativos, aparecem nas transcrições, mas entre parêntesis. Por auxiliarem o

processo de análise, essas expressões se evidenciam no texto que antecede ou

vêm logo após cada cena ou passagem de cena.

O primeiro passo de tratamento dos dados, foi a identificação de cenas,

passagens de cenas ou falas significativas para esta pesquisa: as que evidenciam o

manejo dos círculos e, principalmente, o lugar do jovem nos círculos restaurativos.

Em algumas situações, a relevância do conteúdo apresenta-se pela força de uma

fala, em outras, pela força de um gesto, olhar ou postura corporal. Esses elementos

foram nomeados com títulos que destacam seus principais núcleos de sentido,

processo que nos possibilitou iniciar a construção de dois eixos temáticos:

- Estrutura de desenvolvimento do círculo: tipos de conflitos; rotas

institucionais do conflito; ausências nos processos restaurativos; e algumas

situações problemáticas no manejo dos círculos restaurativos.

- O lugar do jovem nos círculos restaurativos: modos pelos quais os jovens

são referidos e modos pelos quais se apresentam.

Importante destacar que esses eixos temáticos emergem das próprias

passagens destacadas nas transcrições. E, a partir daí, tornam possível mesclar

cenas e passagens, dos diferentes círculos. O corpo do texto de análise passa,

então, a ser organizado não mais no seu aspecto cronológico de acompanhamento

dos círculos, mas sim, em função dos eixos temáticos.

No primeiro grande eixo, focalizaremos o contexto cênico dos círculos

restaurativos e os conflitos de que tratam. Nos círculos, Papéis sociais determinados

são desempenhados: o facilitador, as partes (a que fez o Boletim de Ocorrência e a

outra que recebeu a intimação), seus responsáveis (pai, mãe, irmã, avó) e

convidados (colega, amigo). Transpostos do contexto escolar para o do círculo

restaurativo, estão presentes, também, os Papéis de professor e aluno.

Já no segundo grande eixo,246 interessa-nos problematizar o lugar do jovem

no círculo restaurativo e, para isso, focalizaremos na análise os Personagens

246 Este eixo temático será tratado no próximo capítulo.

Page 74: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

74

atribuídos aos jovens e/ou desempenhados pelos mesmos. As cenas em que

aparecem são o pano de fundo para esta discussão, visto que, os Personagens

surgem em diferentes contextos: escolar, social e no próprio círculo restaurativo.

É importante destacar que, além dos relatos de cenas conflitivas que deram

origem ao círculo restaurativo, emergem cenas conflitivas vividas no aqui-agora, no

contexto do próprio círculo restaurativo. Cabe frisar também que, nessas cenas,

emergem Personagens outros, que não apenas os Papéis sociais jogados nos

respectivos contextos, Personagens mais ou menos conservados, que tornam mais

complexas as relações nos diversos contextos (escola e sociedade) e no próprio

círculo restaurativo. Aprofundaremos essas discussões, com a análise de cenas e

passagens de cenas que colocam em questão os diferentes Papéis sociais do

jovem: aluno, filho, irmão e seus desdobramentos estereotipados, identificados pelos

Personagens.

Além disso, sempre que pertinente, serão pontuados alguns elementos das

entrevistas realizadas com os facilitadores, sobretudo no que se refere às

perspectivas de continuação das práticas restaurativas naquela comunidade e à

ausência, nas práticas dos círculos restaurativos, de diversos facilitadores

capacitados.

Passamos agora à análise dos círculos restaurativos que acompanhamos.

II - Dos círculos que acompanhamos

As análises referem-se a quatro círculos restaurativos que acompanhamos e

que ocorreram em plantões restaurativos numa escola pública de um bairro de São

Caetano do Sul. Nesses plantões, que continuam acontecendo, os facilitadores

recebem a população da comunidade em busca da resolução de um conflito. Os

casos atendidos podem ser encaminhados pelo Fórum, os quais incluem registro de

Boletim de Ocorrência, ou decorrentes de uma procura espontânea, sem nenhuma

relação com o Poder Judiciário. Todos os círculos restaurativos que acompanhamos

referem-se a conflitos encaminhados pelo Fórum.

Desses quatro círculos que acompanhamos, em apenas dois deles estavam

presentes as duas partes do conflito e pôde-se realizar o pré-círculo e o círculo,

sendo que, em um destes círculos, acompanhamos também o pós-círculo. Nos

outros dois círculos, compareceu apenas uma das partes, que foi ouvida, relatou o

conflito e foi realizado o pré-círculo. Os facilitadores afirmam ser importante acolher

Page 75: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

75

as pessoas que vão ao plantão e realizar o pré-círculo, mesmo que a outra parte não

compareça. Não sabemos qual foi o desdobramento de nenhum desses dois casos:

se o círculo foi realizado em momento posterior com a presença das duas partes do

conflito, se não houve mais procura pelo círculo ou se o caso resultou em processo

judicial.

Em um dos círculos que acompanhamos (Círculo 3) havia um grande número

de pessoas presentes, conforme veremos a seguir. Só compareceu uma das partes

do conflito, constituída por três pessoas, entretanto havia a presença de quatro

facilitadores e três pesquisadoras. Além disso, no início do círculo, uma das

facilitadoras apresentou as pesquisadoras como parte do projeto Justiça

Restaurativa e pontuou novamente que as falas estavam sendo gravadas, sendo

que anteriormente isso já havia sido informado aos participantes e eles haviam

autorizado a gravação. Essa mesma facilitadora fez uma longa explicação dos

procedimentos, em postura formal, leu o Código de Boas Práticas, detalhando-o.

Situou a relevância e o histórico do projeto como um todo e, em específico, em São

Caetano do Sul. Essas explicações, ao contrário do que ocorreu nos demais

círculos, foram longas, criando um ambiente mais formal, relativamente aos outros

círculos que acompanhamos.

1. Estrutura de desenvolvimento do círculo

Podemos afirmar que, de forma geral, os círculos restaurativos seguem um

protocolo no qual confluem elementos teóricos aprendidos durante a formação dos

facilitadores e elementos que os mesmos trazem de sua prática, da experiência de

conduzir diversos círculos.

É importante destacar que, independentemente de sua origem – encaminhado

pelo Fórum ou resultante de uma busca espontânea da comunidade – o chamado

círculo restaurativo é divido em três grandes momentos: pré-círculo, círculo e pós-

círculo.

1- Pré-círculo. Apresentação: Todos os participantes entram na sala, o

facilitador explica o que estão fazendo ali, o que é a Justiça Restaurativa, como

acontece o círculo e as normas de seu funcionamento são lidas.247 As facilitadoras248

coletam os dados dos participantes como nome, idade, endereço, telefone e

247 Código de Boas Práticas, apresentado no capítulo 1, parte II. 248 De forma geral, utilizaremos o termo no feminino, visto que este é o gênero predominante.

Page 76: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

76

profissão e registram no documento que será encaminhado ao Fórum juntamente

com o eventual acordo firmado no transcorrer do círculo restaurativo. Além disso, as

facilitadoras identificam qual das partes registrou o Boletim de Ocorrência, explicam

que ouvirão cada parte em separado para depois ouvi-las juntas e construírem todos

em conjunto um acordo.

2- Círculo. Com a concordância de todos, dá-se início ao círculo restaurativo

propriamente dito, que inclui quatro etapas:

- Escuta da parte que registrou o Boletim de Ocorrência, incluindo-se aí a

pessoa diretamente envolvida no conflito e seus acompanhantes.

- Escuta da outra parte, acompanhada das pessoas que convidou.

- Reunião de todas as partes novamente, normalmente acompanhadas dos

responsáveis ou dos convidados. Aqui, primeiro fala a parte que registrou o Boletim

de Ocorrência, depois a outra parte. Nesta etapa, o círculo é conduzido visando o

esclarecimento e o entendimento da natureza do conflito. Nos círculos que

acompanhamos em que estavam presentes as duas partes, as versões do conflito

não coincidiam e as facilitadoras afirmavam que era importante falar a verdade, que

ninguém estava ali para julgar ou ser julgado, mas que seria pela verdade que

poderiam chegar ao acordo.249

- Construção do acordo, o qual deverá ser elaborado de tal modo que possa

ser cumprido por ambas as partes e satisfazê-las mutuamente. O acordo precisa

abranger a compensação dos danos provocados pelo conflito e ser uma solução

para o conflito, pensando-se em como as partes se relacionarão dali em diante.

Chegando ao acordo, o pós-círculo é agendado pela facilitadora para acompanhar o

cumprimento do mesmo.

6- Pós-círculo. Este acontece após um determinado período, normalmente

algumas semanas. As partes devem comparecer novamente ao círculo restaurativo

para avaliar se foi encerrado o conflito e se foi cumprido o acordo. Caso isso tenha

acontecido, novo relatório é encaminhado ao Fórum e o processo arquivado.

2. Sinopses dos círculos

Cenário dos círculos: biblioteca de uma escola estadual. A biblioteca é uma

sala ampla e bem iluminada, com muitas mesas redondas, cada uma com várias

249 Apresentaremos estas análises a seguir.

Page 77: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

77

cadeiras. Tem prateleiras cheias de livros, muitos dos quais são novos. A porta é

dupla, com uma porta comum de madeira e outra de ferro, gradeada e com cadeado.

2.1. Círculo 1: 250

Comparecem as duas partes do conflito. Uma das partes é constituída por um

adolescente de 14 anos e sua mãe. A outra parte é constituída por uma adolescente

também de 14 anos, sua mãe e a irmã, de aproximadamente 7 anos. Fazem parte

do círculo restaurativo, também, duas facilitadoras e a pesquisadora.

O conflito refere-se à agressão, em sala de aula, do adolescente, que deu um

tapa/soco na cabeça da adolescente, apesar de ambos afirmarem que sempre

tiveram um bom relacionamento. Quem fez o Boletim de Ocorrência foi a

adolescente, pois o tio a levou ao hospital e o médico que a atendeu afirmou que

deveriam fazer o Boletim de Ocorrência. A professora estava em sala, mas os

adolescentes não sabem se ela viu o que ocorreu.

O adolescente afirma que fez isso porque ele estava copiando a matéria do

quadro e ela ficou na frente e, apesar de pedir licença, ela não saiu. Ele é tido na

escola como aluno “de inclusão”.251 A adolescente conta que ele não tem

dificuldades de relacionamento com os outros adolescentes e que ele só mexe com

as meninas, pois tem medo dos meninos. Conta que ele é “ignorante e excluído”.

Ele já a havia seguido, a ela e a uma amiga, com uma tesoura na mão, na

saída da escola, momento em que pediram ajuda a policiais que estavam por perto.

A mãe está bastante apreensiva e preocupada com a possibilidade desse conflito se

agravar.

No acordo, realizado sem a presença das mães, ele afirma que poderia pedir

licença a ela com mais educação. A proposta dele de acordo é que ela não fique na

frente do quadro e que ela saia quando ele pedir. A adolescente diz que sairá da

frente do quadro e respeitá-lo.

As mães são convidadas a entrar na sala novamente e as facilitadoras

contam para elas o acordo que foi feito entre os adolescentes.

250 É importante destacar que este círculo não foi gravado, pois os facilitadores ainda não haviam assinado o Termo de Consentimento (anexo). Entretanto, o uso das anotações feitas foi permitido verbalmente pelos facilitadores e pelos participantes. Os círculos que se seguiram foram gravados com autorização dos facilitadores e dos participantes dos círculos. 251 A expressão “de inclusão” refere-se ao processo de inclusão, em salas regulares de ensino, de alunos tidos anteriormente como “de classe especial”, que incluíam alunos com necessidades especiais de ensino, desde dificuldades de aprendizagem até diferentes síndromes e deficiências físicas ou mentais.

Page 78: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

78

O adolescente pede desculpas à menina e ela diz que não tinha a intenção de

prejudicá-lo, fez o Boletim de Ocorrência porque o médico disse que deveria fazer. O

pós-círculo é marcado para dali a 15 dias.

Depois de 15 dias, comparecem para o pós-círculo. A adolescente e sua mãe

chegam no horário e são ouvidas, confirmam que o acordo foi cumprido e o conflito

cessado, que o relacionamento está melhor. Assinam o documento que será

encaminhado ao fórum e são dispensadas. Quando o adolescente e sua mãe

chegam já está em andamento a realização de outro círculo e lhes é pedido que

aguardem um pouco. Depois de alguns minutos, a facilitadora que conduzia o círculo

pede que eu vá até o local onde os dois estão aguardando, confirme se o acordo foi

cumprido e o se o conflito cessou e, em caso positivo, colha suas assinaturas. Assim

faço. As partes não se encontram no espaço do pós-círculo, mas relatam que se

encontraram nos corredores da escola.

2.2. Círculo 2: 252

Comparecem ao plantão restaurativo o adolescente de 17 anos e sua irmã de

34 anos. Estão presentes também duas facilitadoras e a pesquisadora. Apesar de

ter afirmado em audiência no Fórum que compareceria, a professora (que constitui a

outra parte do conflito) não foi ao círculo. Trata-se de um conflito prolongado entre

professor e aluno, em que o jovem se sente constantemente agredido pela

professora, com insultos verbais. Entretanto, quem registra o Boletim de Ocorrência

é a professora, pois afirma ter sido agredida fisicamente pelo jovem em episódio que

foi por ele relatado no círculo. Após o registro desse Boletim de Ocorrência, o jovem

e sua família também registraram ocorrências de bullying junto à escola e às

autoridades de ensino.

É importante destacar que os fatos relatados no círculo restaurativo referem-

se ao olhar do jovem e da sua irmã, visto que a professora não compareceu. Foi

realizado o pré-círculo com o jovem, onde ele pôde expressar-se porém, o círculo

propriamente dito não ocorreu nesse dia, pois, ultrapassado em pouco mais de 1h o

horário marcado para a sua realização sem o comparecimento da professora, a

atividade foi encerrada pela facilitadora. Não temos informações da continuidade

desse círculo.

252 Apesar de utilizarmos o termo círculo, o que de fato ocorre é o pré-círculo, pois apenas uma das partes do conflito comparece.

Page 79: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

79

2.3. Círculo 3: 253

Presentes ao círculo restaurativo uma jovem de 16 anos, acompanhada de

sua mãe, seu pai e seu irmão de aproximadamente 10 anos, que fica numa mesa ao

lado e não participa, apenas escuta. Além disso, estão presentes quatro

facilitadores, um deles que estava havia bastante tempo afastado da prática e

estava retornando. Ainda estão presentes duas pesquisadoras de mestrado e uma

de graduação, colega de uma facilitadora.

O círculo restaurativo refere-se a um conflito entre a jovem e um rapaz (23

anos), colegas de sala. O conflito inicial entre os jovens se desdobra num conflito

com os pais da jovem, principalmente o pai. Desta forma, inclui dois processos: um

da Vara da Infância e Juventude, que se refere ao conflito entre a jovem e o rapaz e

cujo Boletim de Ocorrência de agressão foi feito pela jovem; o outro, do Juizado

Especial Criminal (JECrim), que se refere a uma ameaça do pai da jovem ao rapaz,

que, por sua vez, faz o respectivo Boletim de Ocorrência, que destacaremos mais

adiante.

Comparece ao círculo restaurativo apenas uma parte do conflito, o rapaz não

comparece. Os relatos são da jovem e de sua família. Percebemos no transcorrer do

círculo restaurativo que o pai fala em poucos momentos. Além disso, ocorre uma

discussão bastante acalorada sobre o conflito entre a jovem e o rapaz, que apesar

de não estar presente, é “representado” por um dos facilitadores que toma seu papel

em alguns momentos. Durante boa parte do círculo ocorrem muitos olhares e falas

paralelas.

Em linhas gerais, a jovem afirma ter sido agredida física e verbalmente pelo

rapaz, que achava que ela tinha feito algum comentário sobre a sexualidade dele.

Ao sair da escola o rapaz foi agredido por outros jovens que “tomaram as dores” da

adolescente. O rapaz chamou a polícia, que aborda a jovem no caminho de casa,

afirmando que ela teria mandado agredi-lo. Ela vai para a delegacia com seus pais,

assim como o rapaz. Lá, o conflito se desdobra e inclui os pais, pois, o jovem sente-

se intimidado pelos olhares e comentários deles em relação a ele. O conflito se

intensifica e se prolonga até o dia seguinte. A jovem passa a não ir mais para a

escola.

253 Também refere-se ao pré-círculo, pois uma das partes do conflito não comparece.

Page 80: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

80

2.4. Círculo 4:

Constituem o círculo restaurativo as duas partes do conflito: um jovem de 16

anos com sua avó; e um professor acompanhado de uma professora, que trabalha

na mesma escola. Está presente também uma facilitadora, que está sozinha. As

facilitadoras normalmente trabalham em dupla, porém neste dia as outras não

puderam comparecer. Desta forma, sou convidada a agir como facilitadora. Ela pede

a mim que a ajude se eu achar que é necessário, se eu achar que ela “tá se

perdendo”, afirmando: “você já conhece como funciona”. Além disso, no decorrer do

círculo, outra pesquisadora (mestrado na UFSCAR) chega de surpresa e, com

autorização da facilitadora, observa o círculo.

O círculo restaurativo refere-se ao conflito entre o jovem e o professor, que

fez o Boletim de Ocorrência de ameaça. Entretanto, visando resolver um problema

da escola com um grupo de jovens que fazem ameaças, agressões físicas e verbais

e com comportamentos que geram danos patrimoniais, outros 19 adolescentes são

convidados a comparecer ao círculo, juntamente com seus responsáveis. Desses

jovens, apenas um (de 15 anos) e seu pai comparecem, mas só participam da parte

inicial de apresentação do círculo, pois não estavam vinculados diretamente ao

conflito entre o professor e o aluno. A facilitadora decide privilegiar a realização do

círculo restaurativo do conflito específico professor-aluno e realizar posteriormente

um círculo restaurativo na escola com a presença dos demais alunos e

responsáveis. De forma geral, este círculo restaurativo se divide nas seguintes

etapas:

1- Apresentação: com a presença de todos, não há apresentação do Código

de Boas Práticas como normalmente é feito, apenas a explicação de que serão

ouvidos separadamente primeiro e depois todos juntos.

2- Escuta dos professores.

3- Escuta do jovem com a avó.

4- Reunião das partes novamente. O jovem fala primeiro, depois o professor.

Há uma segunda versão do conflito.

5- O jovem é convocado a assumir seus atos, ser verdadeiro. Fica

evidenciado, neste momento, que a verdade dos fatos precisa aparecer. A avó

questiona professores e escola por não ter conhecimento dos fatos e dos

comportamentos do jovem que estão relatando. Nesse meio tempo, o outro jovem e

Page 81: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

81

seu pai, que aguardavam do lado de fora, são liberados, pois participarão do círculo

na escola com todos os envolvidos.

6- Acordo.

Este círculo restaurativo, comparando-se aos anteriores, é mais complexo,

pois estão presentes as duas partes do conflito, que têm versões diferentes dos

fatos e versões que se contradizem e se alteram no desenrolar do círculo. Além

disso, neste círculo fica mais evidente as questões relativa à relação de idade, objeto

desta pesquisa e que será mais profundamente analisada no capítulo a seguir.

Passamos agora a olhar para cada cena ou passagem de cena dos círculos

restaurativos. Entretanto, é importante destacar que, visando preservar a identidade

dos participantes desta pesquisa, seguimos a legenda, abaixo, para as transcrições

de todos os círculos.

III - Dos conflitos e seus encaminhamentos

Após explanação dos aspectos mais estruturais e formais dos círculos

restaurativos e de uma visão geral de cada círculo, por meio das sinopses,

propomos a partir de agora analisar os tipos de conflitos e seus desdobramentos.

Essa análise se faz importante, pois, não só nos traz alguns elementos relativos ao

objetivo mais geral deste projeto de pesquisa, que se propõe a problematizar as

práticas restaurativas, como também situa o lugar do jovem em função do tipo de

conflito que o círculo circunscreve.

1. Dos tipos de conflito

Os quatro círculos restaurativos que acompanhamos referem-se a conflitos

ocorridos no contexto escolar, sendo dois deles entre alunos e os outros dois, entre

professores e alunos. Vejamos primeiramente os conflitos, para na seqüência

problematizá-los.

- F1, F2, F3 e F4: Facilitadores - Ad: Adolescentes ou jovens - Prof: Professor - Profa: Professora - M: Mãe - P: Pai - Av: Avó - I: Irmã - Pesq: Pesquisadora

Page 82: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

82

1.1. Conflito aluno-aluno

No Círculo 1, a adolescente conta que estava na sala de aula durante o

intervalo e que o adolescente passou e deu um soco na sua cabeça, o qual doeu

muito. Relata que a professora estava em sala, mas não sabe se ela viu. Ela e sua

mãe ficaram com medo, pois o adolescente já havia seguido a adolescente e uma

amiga, com uma tesoura na mão, na saída da escola, momento em que pediram

ajuda a policiais que estavam por perto e nada aconteceu.

O adolescente relata que deu um tapa na cabeça dela porque ele estava

copiando a matéria do quadro e ela ficou na frente. Ele pediu licença e ela não saiu.

Conta que além deste fato não aconteceu mais nenhum problema entre eles e que a

mãe nunca foi chamada na escola por seu comportamento.

No Círculo 3, o conflito também ocorreu em sala de aula, conforme relata a

jovem:

Ad – “Eu liguei pro meu namorado pra desejar boa noite pra ele. Aí ele (rapaz) pegou e me chamou de vagabunda. Falei: se eu fosse vagabunda eu teria dado pro pai dele. Ele pegou uma cadeira e falou que ia arrebentar em mim. Eu falei que não era pra ele passar vontade. Aí ele pegou uma lata de coca cheia e arremessou na minha cara e começou a me xingar de puta, de vadia, rasgadeira. Aí a professora falou pra mim que ele tinha problema e que não era pra mim ligar. Na hora da saída os meninos bateram nele e ele falou que fui eu que mandei. (Círculo3)

Este conflito se estende e acaba incluindo a família da jovem, pois o rapaz

afirma ter sido ameaçado por eles enquanto prestava depoimento na delegacia. A

jovem registra Boletim de Ocorrência pela agressão do rapaz e este registra Boletim

de Ocorrência de ameaça do pai da jovem. A agressão ao rapaz por parte de outros

alunos da escola não foi registrada na delegacia.

Percebemos, à primeira vista, nesses conflitos uma relação horizontalizada,

visto que os Papéis sociais de aluno são desempenhados com uma

complementaridade de Papéis simétrica, não hierárquica. Entretanto, olhando mais

de perto, percebemos que em ambos os casos há uma verticalização da relação

pelo lugar atribuído ao jovem que, no contexto escolar (o mesmo onde ocorre o

conflito), é considerado de “inclusão” e “com problemas.”.254

1.2. Conflito professor-aluno

Seguindo a mesma linha de problematização, podemos perceber que os

conflitos a seguir referem-se à complementaridade de papéis professor-aluno, porém

254 Termos usados por educadores, trazidos ao círculo pela fala dos jovens. Veremos que, além de “ter problemas” e ser “de inclusão” também lhes é atribuído o qualificativo “homossexual,” tanto ao adolescente do Círculo 1 como ao rapaz do Círculo 3. Discutiremos mais detidamente estes aspectos no Capítulo 4.

Page 83: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

83

assimétrica e hierárquica. Aos jovens também são atribuídos Personagens

estereotipados, como: “problema”, “silenciado”, “violento”, dentre outros.

No Círculo 2, percebe-se que há um conflito que vem se prolongando entre a

professora e o aluno. Por diversas vezes o aluno foi colocado para fora de sala e ele

se sente agredido pela professora, pois ela não percebe suas mudanças em relação

ao papel de aluno.255

No momento em que o aluno nega-se a sair da sala a professora afirma ter

sido agredida física e verbalmente por ele e registra Boletim de Ocorrência. Vejamos

como o jovem relata o episódio:

Ad – Ela (professora) falou: O A (jovem) é igualzinho a eles. Educadamente, no meio de todo mundo, levantei a mão, falei: Professora a senhora tá falando ao meu respeito ou a senhora errou meu nome? Não. É você mesmo. E me apontou com o dedo. Aí eu fiquei nervoso e falei, mas não em relação a ela, que eu só tava me f... na mão dela. Eu já tava alterado. [...] Não vou descer que eu não sou bobo de ficar subindo e descendo toda hora, por motivo besta. [...] Quando eu passei na porta a professora começou a apontar como se eu fosse cachorro: Vai, vai, vai!!!! Aí eu comecei a me alterar mais. Aí a tia veio querer me puxar também e falou: Calma A (jovem)! (Círculo 2)

Ao tomar conhecimento das supostas agressões sofridas pelo jovem em sala

de aula, a família registra a ocorrência na regional de ensino.

No Círculo 4, apresentam-se dois conflitos interligados. Um, mais amplo, inclui

a escola como um todo, conforme relata do professor:

Prof – Nós estamos tendo um período muito difícil da escola, a direção no período da tarde perdeu totalmente o controle, qualquer hora que você chega lá à tarde o pátio está sempre lotado. [...] aí eles agem em grupo, eles fazem arrastões, depredam a escola, queimam carteiras, a sala de troféus quebraram os vidros essa semana, jogaram os troféus em cima do teatro, e ele está sempre nesses grupos. [...] Aí eu fiz o Boletim de Ocorrência. Preciso fazer o Boletim de Ocorrência e quem sabe a partir daí a gente consiga com o Conselho Tutelar, ou sei lá com quem, tentar reverter um pouco, porque a tarde está sem controle algum. Professor não consegue dar aula, a própria direção não consegue mais controlar, porque no início eram sete alunos, parece que agora 18. [...] Depois eu até gostaria de saber como é que a gente vai fazer pra ajudar a escola nesse sentido, porque a gente não pode contar muito com a direção.

F1 – Se a gente fosse até a escola, pra fazer o trabalho lá, será que a direção da escola permitiria?

Prof – Permite, porque tá sem controle. Eu acredito que permite. [...] Claro que tem todo um problema todo de direção, essa direção nova, de 2000 pra cá, aí você vai entender porque tudo isso, já passaram 9 diretores por lá. Porque as direções efetivas elas tem cargos na Prefeitura ou no Estado, não ficam lá, então cada ano muda de direção. E a diretora que hoje tá lá, teve lá um problema na escola e ela chamou os pais, que não deveria chamar, chamou pra uma reunião, porque a gente sempre resolveu, a gente sempre teve problema lá. [...] Ela chamou todo mundo e ainda chamou os pais pra vir ajudar, na madrugada, tudo... Aí foi um desastre, de lá pra cá perdeu totalmente o controle. Aí quem sofre? Os professores que estão na sala de aula, os inspetores, essa inspetora, por exemplo, não sei se vocês ficaram sabendo, jogaram vidro na cara da professora, ela fez até um Boletim de Ocorrência, depois ela entrou em depressão e não voltou também mais, no dia da audiência ela nem foi porque estava doente. Ela ficou com um calombo, então essa é a situação na escola. O que a gente precisa agora é socorro, que vocês ajudem a gente. Eu acredito que não haverá empecilho da direção. [...] Porque muitos professores não são efetivos, estão o primeiro ano na escola, aí pronto, ficam apavorados, ou faltam, faltam, ou vêm e não conseguem ministrar aula.

255 Discutiremos este aspecto mais detidamente no eixo temático referente ao Personagem aluno “problema e silenciado”, no Capítulo 4.

Page 84: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

84

[...] Nós já tivemos reunião na diretoria de ensino, já protocolamos, já pedimos audiência, mas não nos atendeu, mas mandou a supervisora, ficamos um dia das 9 da manhã até as 4 da tarde. A gente já fez tudo que podia, eu sou efetivo desde 2000. E a gente sempre lutou lá, muda a direção a gente tá lá acompanhando. Teve um episódio com a inspetora que um dos alunos, [...] jogou manteiga na cara dela. De lá pra cá ela perdeu a moral totalmente: ó fulana, ó na sua testa tem manteiga. Então acabou com a vida dela, acabaram com a vida dela.

F1 – Antes tinha lá o trabalho de Justiça Restaurativa? Prof – Tem o pessoal que fez o curso, mas não pratica, precisa do apoio da direção, se não

tem apoio aí... Se a escola não abre espaço, então, buscar outro espaço que possa chamar esses alunos, porque como eles foram listados, se não acontece nada, aí pronto.

F1 – Porque aí eu junto o outro grupo de facilitadores e a gente vai até a escola e conversa. (Círculo 4)

Chama atenção o abandono em que se encontram os profissionais desta

escola, onde não conseguem desempenhar seu papel social de professor, visto que

têm de se desdobrar na tentativa de controle dos atos de vandalismo ou violentos no

interior da escola, sem terem formação nem recursos estruturais para isso. A

constante mudança da diretoria da escola parece resultar numa “falta de direção”, no

sentido de que não há linha de resolução dos conflitos escolares, apesar de haver

um grupo de facilitadores dentro da própria escola.

Com o agravamento desses conflitos, o único caminho encontrado pelos

professores é recorrer à polícia, através do registro de ocorrência e,

conseqüentemente, à Justiça, onde são encaminhados à Justiça Restaurativa.

Depositam no grupo de facilitadores comunitários suas esperanças de que

algo seja feito.

Essas demandas da escola, representada pelos professores, incluem um

conflito entre um dos professores e um dos alunos, identificado como integrante do

grupo de alunos que depredam a escola. O professor afirma que o jovem o ameaçou

e registra Boletim de Ocorrência. Vejamos:

Prof – Na verdade no dia não houve xingamento, você tava com a lâmpada, pedi a lâmpada, naquele momento não teve xingamento, você não me xingou, e eu também não. Uma semana depois, [...] falei que esse era o menino que estava com a lâmpada. Foi a partir daí que você já foi agressivo comigo. Quando você foi pra ante-sala aí lá que você me chamou pra porrada. Eu fui pra sala dos professores, quando eu saí você estava em cima do muro.

Ad – Eu? Não teve nada disso. Prof – Isso, estava lá em cima do muro aí você começou novamente chamar pra porrada. Foi a

partir daí, uma semana depois, que eu abri o Boletim de Ocorrência. Nos tumultos você estava sempre presente. (Círculo 4)

Importante destacar que um conflito geral na escola é singularizado no conflito

com o jovem, da mesma forma, esse jovem passa a representar as ações daquele

grupo como um todo. Torna-se bode-expiatório de toda uma relação conflituosa

existente na escola, entre professores e alunos. Todavia, esta situação abre a

Page 85: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

85

possibilidade de trabalhar o conflito mais amplo, no âmbito da escola, por meio da

Justiça Restaurativa.

Voltando a problematizar os conflitos de uma forma geral, chama a atenção

que os conflitos acontecem em espaços escolares, na presença ou com a

participação de educadores, os quais não intervêm para buscar uma solução do

conflito no próprio contexto escolar. O mesmo acontece com os demais funcionários

da escola, como a equipe de direção, que também não costuma intervir nos

conflitos. Os conflitos se agravam e tomam outras rotas institucionais, como veremos

no próximo item.

Essas constatações reforçam análises feitas anteriormente,256 de que os

conflitos referem-se a “incivilidades”, conflitos do cotidiano que, neste caso do

contexto escolar, poderiam ser resolvidos por mecanismos da própria escola, em

seu espaço institucional. No entanto, isentando-se de sua parcela de

responsabilidade, a escola transfere o problema para o sistema judicial.

Correndo o risco de se judicializar questões escolares cotidianas, colocando a indisciplina e as turbulências escolares no mesmo patamar do ato infracional. Se há o outro efeito – bastante importante – de redução do encaminhamento das situações de conflito escolar ao sistema de justiça propriamente (e, nesse sentido, uma “desjudicialização”), trata-se de argüir e pensar esses outros efeitos.257

2. Rotas institucionais do conflito

Neste momento, dando continuidade à análise dos conflitos, tratamos de expor

os caminhos institucionais que percorrem. Consideramos importante destacar esses

percursos, visto que os conflitos acompanhados nos círculos ocorreram no contexto

escolar e, na maioria das vezes, em escolas onde existem professores ou

funcionários capacitados em Justiça Restaurativa. Entretanto, apesar de poderem

ser trabalhados no próprio contexto escolar, tanto pela coordenação escolar quanto

pelos facilitadores de Justiça Restaurativa, acabam sendo encaminhados às

delegacias e ao Sistema de Justiça.

No Círculo 1, a adolescente afirma que, após o tapa/soco sentiu muita dor, que

chorou muito e seu tio foi buscá-la na escola e, por esse motivo levou-a ao hospital.

O médico que a atendeu afirmou que eles deveriam fazer um Boletim de Ocorrência.

Assim fizeram, foram à delegacia e registraram a queixa, que foi encaminhada ao

Fórum e, após audiência, à Justiça Restaurativa. A escola não tomou nenhuma 256 Vicentin e Rosa, 2010. 257 Vicentin e Rosa, p.12, 2010.

Page 86: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

86

providência em relação ao conflito, não chamou os alunos para uma conversa e,

nem mesmo suas famílias.

No Círculo 2, foi a professora que decidiu fazer o Boletim de Ocorrência, que

desencadeou a audiência no Fórum e o círculo restaurativo:

Ad – A diretora não teve nem tempo de... quer dizer, ela não podia parar ela (a professora), era um direito dela. Ela já foi direto pra delegacia fazer um Boletim de Ocorrência, nem a diretora sabia o que era. No outro dia, ela veio com o boletim. (Círculo 2)

A escola não pôde construir nenhuma alternativa para a resolução do conflito,

visto que a professora não abriu a possibilidade de diálogo, procurou os meios

legais.

Apesar disso, nesse caso houve comunicação entre a direção da escola e a

família, que percebeu interesse da diretora em buscar soluções e apoiá-los. Porém,

não houve uma conversa entre todas as pessoas envolvidas, apenas uma conversa

particular entre o jovem e a professora.258 O conflito desencadeou, ainda, denúncias

da família junto às autoridades de ensino. A respeito dessas denúncias não temos

informações acerca de seus encaminhamentos, tampouco a família.

No Círculo 3, é o rapaz quem toma as providências, procurando a polícia e,

novamente, a escola não toma nenhuma atitude:

Ad – Aí ele chamou a polícia pra mim, aí eu chamei meu pai, como eu sou de menor. Chegando na delegacia fomos fazer corpo de delito. Voltamos e conversamos com o delegado e ele acusou meu pai de ter ameaçado ele, só que meu pai não fez nada. (Círculo 3)

A família da jovem descreve em detalhes as cenas da delegacia e do Fórum,

tem conhecimento de cada papel desempenhado (delegado, escrivão, Juiz,

promotor, advogado) e dos procedimentos. A mãe da jovem conta que o policial a

chamou e aconselhou a não fazer a ocorrência, que “é melhor deixar passar”, mas

ela insistiu que, se foi até ali, queria que escutassem os jovens, pois não estava ali

para perder tempo.

Além disso, a mãe da jovem relata como foi a ida até o hospital, para fazer

exame de corpo de delito. A recepcionista as encaminha para a assistente social,

que faz perguntas referentes à relação dos pais da jovem e pergunta se a jovem

sofre violências no contexto familiar. Não sabemos o contexto nem os termos dessas

intervenções da assistente social, mas parecem indicar uma busca de causas

familiares para o conflito.259

258 Como veremos no próximo capítulo. 259 Trabalharemos este relato completo no próximo capítulo, no item referente à família.

Page 87: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

87

Além disso, contam como foi a audiência no Fórum e o encaminhamento para

a Justiça Restaurativa:

M – Aí a promotora disse, que ele (adolescente) agrediu ela, ela passou a ofendê-lo, o negócio lá da sexualidade dele e que meu marido ameaçou ele com o olhar. Mas meu marido nem recebeu intimação. [...] Ele (rapaz) começou a se abanar e dizer: vamos resolver logo isso, que eu não tenho tempo a perder. E começou a debochar da cara da promotora.

Ad – Aí a promotora perguntou: o senhor (rapaz) quer dar como encerrado o caso e levar pro conselho restaurativo ou prolongar aqui. Aí ele falou assim: Não, não quero nenhum dos dois. Aí ela falou: você não tem que querer alguma coisa aqui, você tem que escolher: conselho restaurativo ou levar adiante? Ele: conselho restaurativo (com ar de deboche). (Círculo 3)

Percebemos, pela fala da jovem e sua família, um descaso do rapaz envolvido

no conflito. Relatam que ele não foi à primeira audiência, atrasou na segunda e não

foi ao círculo restaurativo, o que causa incômodo à família. Além disso, com base no

relato, podemos supor pelo modo como a promotora solicita a “escolha” do rapaz,

que não só não houve uma escolha consciente pelas práticas restaurativas como

não se buscou engajar as partes do conflito no diálogo e na resolução do conflito.

No Círculo 4, o professor decide registrar o Boletim de Ocorrência, após

conversar com outros funcionários da escola e estes confirmarem que o jovem não é

bom aluno e que faz parte do grupo que depreda a escola.

Quanto à participação dos outros alunos que fazem parte do grupo,

percebemos, durante o círculo restaurativo, duas falas bastante diferentes:

Ad – O Juiz falou pra eu chamar meus amigos que tavam do lado. Só que aí chegou na diretora, ela mandou eu dar os nomes. Aí os nomes que eu dei bateu com a lista dela, que ela já aproveitou pra entrar no acordo com a escola. O nome que eu dei, só duas meninas, aí na hora que eu fui falar com a diretora, aí a professora puxou a folha, aí um monte de nome. Ué porque tudo isso? Ah eu já vou aproveitar que abriu esse negócio aí pra conversar, eu já vou aproveitar e já vou mandar todo mundo pra ouvir e não aprontar mais na escola

Prof – O Juiz pediu: A (jovem) você sabe quais são os alunos? Ele: sei. Então você vai lá na direção, conversa e vai dar os nomes, até tem um aluno aqui que ficamos sabendo até o ameaçou, fiquei pensando, nossa o Juiz falou isso! Porque é um problema. O Juiz pediu pra aqueles alunos que estivessem dando problema na escola que comparecessem hoje aqui. Razão pela qual a direção convidou todos aqueles alunos que de uma forma ou de outra se envolvem em pichação, etc., que viessem hoje aqui. (Círculo 4)

Podemos perceber que o “convite dos amigos” e a “convocação dos alunos

‘problema’” se confundem nas falas e, claramente, referem-se a práticas com

objetivos opostos: ao que parece os jovens, inicialmente, se vêem convidados ao

diálogo, entretanto, os relatos evidenciam que, para os adultos, eles são convocam

ao interrogatório. Registre-se que em um momento do círculo, faço a seguinte

intervenção:

Pesq – E todos esses foram convocados pra audiência? Prof – Pra hoje, com o Juiz, só foi com esse. O Juiz disse A (jovem) você sabe quem são os

outros alunos? Ele disse, sei. Então você conversa com eles pra comparecer no dia 24. Pesq – Aí foi a própria escola que fez a convocação pra esses outros alunos? Profa – Fez o convite. (Círculo 4)

Page 88: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

88

Faço questão, neste momento, de usar o termo “convocação”, para marcá-lo e

problematizá-lo, pois é de fato isso que ocorre nesse contexto. Entretanto, a

professora presente me corrige.

De forma geral, podemos afirmar que o roteiro institucional seguido pelo

conflito inicia-se na escola, em um dos casos passa pelo hospital, e em todos chega

à delegacia. Dali é encaminhado ao Fórum e posteriormente ao plantão de Justiça

Restaurativa.

O que pudemos observar é que, a partir do momento em que o Boletim de

Ocorrência é registrado, a rota entre as instituições não pode mais ser interrompida.

Afirmamos isso porque a professora do Círculo 2, por exemplo, afirma que iria tentar

reverter o processo, mas não consegue. Além disso, também no Círculo 1, a

adolescente arrepende-se de ter registrado o Boletim de Ocorrência, afirma que não

queria prejudicar o adolescente, mas não sabia das conseqüências do registro da

ocorrência.

3. Das ausências

Passamos a problematizar, neste momento, as ausências nos círculos

restaurativos. Participantes que, convidados, faltaram e outros que deveriam ter sido

convidados, mas não foram. Além dos facilitadores que se afastaram da prática logo

no início, em momentos de conflito no grupo ou aos poucos, no cotidiano da prática.

3.1. Das partes do conflito

Conforme já foi exposto, em dois dos círculos que acompanhamos uma das

partes do conflito não compareceu ao plantão restaurativo. Apesar disso, as pessoas

que compareceram foram acolhidas pelos facilitadores e, enquanto aguardavam a

chegada da outra parte, passaram mais de uma hora fazendo o pré-círculo, expondo

o conflito, nisso, suposições para as faltas iam sendo feitas:

F1 – Ficou certo que ela viria aqui hoje? Ad – Ficou certo. Ela confirmou. F2 – De certo ela ta dando aula, né? F1 – Tá tendo aula hoje? I – Então, achei estranho porque o Juiz marcou... Ad – E ela falou que era melhor aqui, às 2hs de sábado. Como ela marcou nesse sábado é

porque ela não tem compromisso, né? Aí eu já não sei... onde ela tá, né?. F1 – É. Às vezes atrasou. F2 – Rhum!! (vou fazer de conta que acredito!!! E muda de assunto...)

Depois de aproximadamente uma hora de conversa com o jovem e sua irmã:

Page 89: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

89

F1 – Como ela não chegou, então, vou dar um tempo ainda, pode ser que ela atrasou por algum motivo. A gente dá um tempinho, quem sabe ela ainda aparece... às vezes ela ainda tá tendo aula...

F2 – Sei lá... uma reunião... F1 – Tá tendo aula? Ad – É, aula de manhã vai até 12:30, só se ela tiver alguma aula à tarde pra repor, aí eu já

não... F2 – Só se ela dá aula em outra escola também, né? Ad – É não sei acho que é meio difícil... F1 – A gente aguarda um pouco pra ver se ela vem, porque se ela vier a gente já faz tudo hoje,

senão eu vou entrar em contato com ela e ver o dia que ela possa vir até aqui e eu peço para vocês voltarem novamente.

F1 – É, se ela dá aula à noite... tem alguma reposição pra dar... Ou às vezes atrasou por algum motivo também, né?

Ad - É, não sei. F1 – A gente não sabe, mas a gente vai aguardar um pouco. (Círculo 2)

Neste pré-círculo, evidencia-se a tentativa de encontrar justificativas para a

falta da professora. Uma das facilitadoras faz este papel, enquanto a outra alterna

entre as justificativas e o deboche em relação às desculpas imaginadas.

No Círculo 3, o rapaz não comparece e a família, após mais de uma hora

relatando o conflito, afirma:

P – Porque a pessoa que fala que não tem tempo a perder, ele teria que tá aqui no momento, como vocês que tão aqui. Se ele tá levantando o problema ele teria que tá aqui junto com nós.

M – Vocês podem chamar, ouçam ele e eu venho só na conclusão. Não quero, não vou me sentir bem, porque o que ele falar... eu não gosto disso. Chamá-lo, esclarecer o que ele fez, pronto e acabou. Agora eu não sei o que a justiça vai...

F4 – O Juiz deu uma chance pra que vocês entrassem num acordo, então eu acho que, se tivesse uma outra vez, vocês teriam que vir, pra coisa não atravessar o ano...

M – Pára e pensa junto comigo, na primeira audiência ele não foi, na segunda.... F4 – Mas você tá fazendo a sua obrigação que é vir... é mais fácil você ficar na frente do Juiz? M – Eu, como não tenho nada a temer, então na frente do Juiz... F1 – O que funciona aqui... o que eu vou relatar? Que vocês vieram, vocês vão assinar que é a

prova que vocês estiveram aqui. Segunda-feira eu vou entrar em contato com o Fórum avisando que o rapaz não veio, pegar o telefone aí eu vou conversar com este rapaz. Ele vai ter que vir até aqui. Ele não vai ter muita escolha não. A gente vai ouvir o lado dele como estamos ouvindo o de vocês. Posso ouvir o lado dele e depois ligar pra vocês pra virem fechar aqui. Pode ser assim?

Ad – Pode. M – Pode. Se eu tiver um compromisso não vou adiar F1 – Um horário que dê pra todo mundo, só que vai ter que acontecer. Mas que o Juiz vai ter

ciência que vocês estiveram aqui e ele não... pode ficar tranqüila que é documentado. Qualquer atitude que nos percebemos que ele tá zombando, nós não vamos permitir isso, porque ele também tá zombando da gente que tá aqui trabalhando. Nós vamos respeitá-lo e ele vai respeitar a gente também. Pode ficar tranqüila, a gente vai manter a ordem aqui. Da mesma maneira que a gente não vai discriminá-lo ele também tem que respeitar a gente aqui. (Círculo 3)

A família, inicialmente, não aceita retornar ao plantão restaurativo, pois percebe

descaso na atitude do rapaz. Sentem-se desrespeitados por suas constantes faltas e

atrasos e se mostram desgostosos com isso. Além disso, relatam cansaço por

estarem ali relatando o conflito depois de trabalhar a manhã toda, em pleno sábado.

Desagrada-lhes o fato de que, depois de mais de uma hora de conversa, nada foi

Page 90: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

90

resolvido e deverão voltar ao plantão restaurativo porque o rapaz não compareceu.

A situação parece agravar o conflito, conforme vimos na fala da mãe.

Nos dois casos, a pessoa que fez o Boletim de Ocorrência não comparece. O

pré-círculo é realizado com os presentes, pois os facilitadores afirmam ser

importante acolher quem comparece. Entretanto, o pré-círculo desgasta as pessoas,

é muito longo, e parece criar um clima mais conflituoso entre as partes, pois as

“vítimas”260, que seriam as interessadas, não estão presentes. Nas pesquisas

realizadas anteriormente,261 um dos jovens entrevistados também relata a ausência

da “vítima”.

Mostra-se relevante pesquisar o motivo das ausências. Medo, resistência a

enfrentar o conflito ou o “agressor”? Não podemos afirmar com certeza, não foi esse

o objeto de nossa pesquisa, mas assim mesmo parecem-nos motivos prováveis.

3.2. Da escola Em todos os círculos que acompanhamos, apesar da origem dos conflitos

situar-se invariavelmente no âmbito escolar, a escola como instituição esteve

ausente, sobretudo a equipe de direção. O único círculo em que profissionais da

escola estiveram presentes, representando-a, foi o Círculo 4, no qual dois

professores compareceram, sendo que um deles era parte diretamente envolvida no

conflito e a outra foi acompanhá-lo. Eles trazem as demandas dos funcionários da

escola em relação à equipe de direção e ao comportamento dos alunos, conforme

vimos anteriormente:

F1 – E da parte da direção você sabe me dizer se vem alguém? Prof – Não, não vem. (Círculo 4)

Nos conflitos dos círculos 1 e 3, que não incluíam diretamente funcionários da

escola, pois eram conflitos entre jovens, percebe-se que havia, no momento do

conflito, professores presentes na sala de aula. Entretanto, esses professores não

foram convidados a participar do círculo restaurativo, tampouco a equipe de direção.

No Círculo 3, a família da jovem está preocupada com a possibilidade de

agravamento do conflito. Como não encontram ninguém que se responsabilize por

solucioná-lo, desempenham seu Papel de pais e buscam a única solução que lhes

parece possível:

260 Usamos aqui o termo “vítima” apenas para diferenciar o autor do Boletim de Ocorrência da pessoa que foi intimada (agressor). Entretanto, temos o entendimento, como na Justiça Restaurativa, que ambos fazem parte do conflito, que é inter-relacional. 261 Vicentin e Rosa, 2010

Page 91: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

91

P – Eu penso assim, o rapaz tem 23 anos e ela tem 16. Por mim eu taria pegando aula junto com ela porque à noite eu não faço nada no momento...

Ad – Mas a promotora falou que isso não é... P- Eu como pai qual é a saída que você tem? Você vai esperar o cara terminar de matar o seu

filho ali dentro da escola? Tirei fora. Tá com falta justificada. M – A promotora falou que não é pra nós acompanhar, que a escola que é responsável. P –Aí eu vou falar uma coisa pra vocês. Eu estudei numa época, que vocês estudaram, que

quem resolvia o problema era o professor da escola. Na minha época pegava os dois, expulsava da escola e cada um pro seu lado. Como hoje em dia estamos numa situação em que o governo não tá nem aí, a parte de policial também não tá preocupado, a alternativa que nós tivemos no momento, pegar ela e tirar ela um pouco da escola, mesmo porque, ela tá com problema no joelho. Você se afasta pra evitar os problemas. Esse menino aí ele não tá em sã consciência, vão me desculpar. (Círculo 3)

A facilitadora intervém e afirma que poderá entrar em contato com a escola

para mudar a sala da jovem, procurando separar os jovens que estão em conflito,

pois já fizeram isso nesta mesma escola, não é a primeira vez:

P – Se não é o primeiro caso, onde tá a direção pra resolver os problemas? Aí fica difícil, porque se tá acontecendo direto problema dentro da escola, a direção não tá tomando as devidas... a escola não faz nada, aí vai pra fórum e a gente vai ficar nisso aqui. Vocês não acham que a escola não tá fazendo a parte dela? Como é que é? (Círculo 3)

A mãe da jovem é professora, sabe que diversos professores foram

capacitados como facilitadores e questiona o motivo do círculo restaurativo não ser

realizado na própria escola onde ocorreu o conflito. A facilitadora explica o

remanejamento de professores que fizeram a capacitação, fato que dificulta o

trabalho, além da direção afirmar que falta respaldo. Por isso, muitas escolas têm

professores capacitados, mas que não realizam o círculo. Afirma que a própria

escola onde são realizados os círculos restaurativos da comunidade tem

facilitadores, os quais, no entanto, não fazem os círculos e encaminham para o

grupo que atende a comunidade.

Da ausência da escola na resolução dos conflitos, podemos problematizar

alguns aspectos:

As escolas se eximiram de resolver o conflito no próprio contexto escolar pelos

“mecanismos e códigos de gestão da própria escola (conselhos, orientação

pedagógica e inclusão de temas relacionados à justiça e cidadania em seu

currículo).”;262

Muitos conflitos escolares são encaminhados ao plantão comunitário de Justiça

Restaurativa por escolas que têm educadores capacitados na metodologia

restaurativa. Nesses casos, apesar de terem à disposição esta outra metodologia de

resolução de conflitos, as escolas não a utilizam;

262 Vicentin e Rosa, 2010.

Page 92: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

92

A ausência de participação de um representante da escola nos círculos

referentes aos conflitos que ocorreram dentro de sua instituição impossibilita uma

mudança de olhar a respeito do conflito e das pessoas envolvidas. Dessa forma,

professores, diretores e coordenadores continuam estranhando os registros de

Boletim de Ocorrência e os jovens envolvidos continuam com o estigma dos

Personagens que desempenham ou lhes são atribuídos, como veremos no próximo

eixo temático.

Percebe-se, portanto, que a deserção da escola na resolução dos conflitos

possibilita a criminalização de conflitos ou, conforme já destacamos anteriormente,

de incivilidades que, ao invés de serem trabalhados no próprio contexto escolar,

seguem o mesmo caminho dos atos infracionais, postos no mesmo patamar.263

3.3. Dos facilitadores

Pudemos constatar no transcorrer da pesquisa264 que os facilitadores que

ainda estão atuantes na prática de Justiça Restaurativa na comunidade estão

sobrecarregados. Isso em função do afastamento de muitos dos quase 30

facilitadores que foram formados. De modo geral, apenas estas três facilitadoras

conduzem o trabalho que ocorre às quartas-feiras à noite e sábados durante o dia

todo, na comunidade. Uma delas está sempre presente e as outras duas se alternam

para acompanhá-la. Além delas, apenas uma outra facilitadora que comparece

algumas vezes e um facilitador que está retornando à prática após um longo

afastamento. A demanda de trabalho é grande e essas facilitadoras, principalmente

a que coordena o trabalho, estão visivelmente sobrecarregadas.

No Círculo 4, fui convidada a participar como facilitadora. Isso porque as

facilitadoras sempre trabalham em dupla e naquela ocasião apenas uma delas

estava presente. A facilitadora presente afirma que eu já sei como funciona a Justiça

Restaurativa e pede que eu a ajude, caso perceba que ela está com dificuldades. A

situação se complica porque esse foi um círculo bastante complexo, com muitos

participantes e uma nova pesquisadora chegando de surpresa (os facilitadores são

sabiam do seu encaminhamento, por parte do Fórum, para observar os círculos).

263 Vicentin e Rosa, 2010. 264 Incluímos aqui, para esta análise, alguns dados das conversas e entrevistas feitas com os facilitadores, visto que problematizam a atuação destes e a continuidade das práticas no contexto comunitário de São Caetano do Sul.

Page 93: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

93

Outro fator que parece influenciar na falta de facilitadores é o progressivo

estreitamento do campo da prática após o processo de capacitação para os

facilitadores que tinham menor disponibilidade de tempo e participação. Como os

facilitadores devem acompanhar cada processo restaurativo do começo ao fim,

muitas vezes compareciam ao plantão restaurativo e não podiam participar, pois o

circulo em andamento se referia a um processo restaurativo em curso. Outro fator,

ainda, refere-se, por exemplo, a necessidade de limitar o número de facilitadores

presentes em cada círculo restaurativo, que eram muitos no começo.

De acordo com os facilitadores, contribuíram também para seu afastamento

problemas pessoais, de saúde e a ausência de remuneração. Em relação à

remuneração, alguns facilitadores afirmaram precisar escolher entre as práticas

restaurativas e um trabalho que lhes rendesse o sustento financeiro, atividades que,

em algum momento, tornaram-se incompatíveis.

Houve falas também que destacaram a necessidade de reconhecimento do

trabalho realizado pelo facilitador, por parte da família, comunidade e outras

instituições, como o próprio Fórum e equipe de capacitação.

Um aspecto também bastante destacado pelos facilitadores foram as

divergências dentro do grupo de facilitadores. Alguns desejavam a constituição de

uma Organização Não-governamental responsável pelas práticas e que pudesse

buscar recursos financeiros, além do reconhecimento das instituições.

Outra divergência destacada foi na condução dos círculos restaurativos, tanto

em relação às particularidades das inter-relações como em relação à condução do

próprio círculo restaurativo. Assim, os facilitadores que se afastaram da prática

afirmam perceber uma apropriação do campo da prática por parte dos que

permaneceram, e se sentem, em certa medida, excluídos das práticas.

O que pudemos perceber desses encontros e conversas com os facilitadores é

que estes se sentem abandonados pela equipe responsável pelo projeto, apesar de

compreenderem a necessidade do afastamento.

Além disso, percebe-se também entre os facilitadores a atribuição de

Personagens e estereótipos, assim como aos outros participantes dos círculos

restaurativos. Fato este que interfere nos movimentos de olharem-se para além

destes Personagens de facilitador “coordenador”, “evangélico”, “jovem”, “doente”,

“sem tempo”, “que coloca lenha no conflito”.

Page 94: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

94

De forma geral, o que podemos problematizar em relação aos afastamentos

dos facilitadores é que entre eles houve um conflito e que as partes desse conflito

não puderam utilizar os recursos das práticas restaurativas para cuidarem de seus

próprios relacionamentos, construírem acordos e modos de funcionamento que

incluíssem o respeito e a participação de cada parte. O caminho foi o afastamento,

com prejuízo afetivo nas inter-relações e para a implementação das práticas

restaurativas nessa comunidade de São Caetano do Sul.

IV - Alguns aspectos problemáticos do manejo do cír culo

1. Buscar a verdade ou construir responsabilização?

Um dos aspectos relevantes percebido nos círculos em que estavam presentes

as duas partes do conflito foi a necessidade de encontrar uma verdade sobre o

conflito. Nos dois casos em que estavam presentes as duas partes, cada parte

apresentou uma versão e uma não foi confirmada pela outra.

No Círculo 1, uma das facilitadoras afirma que “precisa falar a verdade, é mais

rápido”. O foco do círculo permanece na intenção de encontrar a verdade e não no

diálogo entre as partes, inclusive com as mães, visto que na maior parte do círculo

elas não estavam presentes, apenas foram comunicadas, ao final do círculo, do

acordo que foi estabelecido.

Neste círculo, podemos considerar que a diferença entre as versões do conflito

ocorre em função dos diferentes olhares para o fato. Não necessariamente um deles

está mentindo ou distorcendo os fatos, cada um olha para o conflito do seu ponto de

vista, com o seu olhar.

Uma alternativa para resolver esse problema é apresentada pela facilitadora:

F1 – O problema tem que ser resolvido por partes. Então eu vou colocar agora o professor aqui e a professora que tá aqui também. Ele vai falar o lado dele, você vai ouvir, a mesma coisa depois, você vai falar o seu lado, ele vai ouvir, aí vocês vão tentar esclarecer o que aconteceu, e pra ver como é que pode ser feito a partir de hoje pra que não aconteça isso novamente, tanto da sua parte, quanto da parte dele. Você se colocar no lugar dele e ele se colocar no seu, tá bom? (Círculo 4)

Nesta passagem, percebemos a intenção da facilitadora de possibilitar que os

participantes coloquem-se no lugar do outro. Essa metodologia, apresentada pela

facilitadora, aproxima-se da técnica psicodramática de inversão de papel. A técnica

poderia auxiliar no diálogo entre os participantes, na problematização do conflito e

numa possível mudança relacional, pois cada participante poderia colocar-se

emocionalmente no lugar do outro e perceber seus afetos, a relação e o conflito de

Page 95: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

95

uma forma mais ampla. Mas o que percebemos, no transcorrer do círculo, é que este

“você se coloca no lugar dele e ele se colocar no seu” não se configura como uma

real inversão de papéis, pois é racionalizada, não permite uma aproximação afetiva

do outro. O que de fato acontece é um entender o que o outro está dizendo,

perceber as conseqüências dos fatos para o outro, mas não é de fato uma inversão

de papéis, em que um se coloca afetivamente no lugar do outro.

Este mesmo aspecto também é percebido no transcorrer do Círculo 4,

destacado anteriormente, em que cada participante (professor e aluno) continua

olhando para o conflito do seu ponto de vista, sem considerar os afetos do outro.

Fica a questão da dificuldade do foco do círculo restaurativo deixar de ser a verdade

dos fatos e passar a ser o diálogo e a compreensão do conflito e como ele afeta as

pessoas e relações envolvidas e, até mesmo, a família e a comunidade.

Em apenas um círculo restaurativo pudemos acompanhar um facilitador que

problematizou o conflito, procurando aprofundar a discussão a respeito do conflito,

antes que o acordo fosse realizado. Vejamos:

F4 – A (jovem), posso fazer uma pergunta? É bem simples o que eu vou perguntar pra você. Reflita na hora de responder. O garoto foi agredido por alguém que é do seu conhecimento, alguém que você conhece.

Ad – Não, olha, não! É... F4 – A (jovem), presta atenção! Alguém que você conhece... tanto é que essa pessoa (rapaz)

disse que iria ser agredido novamente. Pode até ser mentira, mas a priori ele foi agredido por um grupo de pessoas ao qual você conhece.

Ad – Foi o grupo da sala.... F4 – Aí no outro dia de aula essas pessoas devem ter comentado. Você sabe mais ou menos

quem são essas pessoas. Tem que ter pelo menos uma idéia... Ad – Não, duas pessoas eu sei que foram da minha sala, que ele até chamou a polícia para

essas duas pessoas. (a jovem se exalta, começa a falar mais alto e interrompe a fala do facilitador) F4 – Ah bom... Ad – A polícia até perguntou: por que você bateu nele? Porque ele agrediu a menina e isso não

é certo, homem bater numa mulher. F4 – Perfeito! Então tá... M – Não, a direção sabe quem foi, não foi omitido... F4 – A priori a A (jovem) disse assim: eu não sei quem foi... (M e A falam junto com F4, todos falam alto, se exaltam.) F4 – Essa pessoa vai ficar com essa mágoa... como ela disse. E ele vai ficar perseguindo ela.

Agora vocês não têm que tirar ela da escola de forma nenhuma! P – Tem duas soluções, ou eu tiro ela ou vai acontecer coisa pior. F4 – Não, eu acho que você tem uma solução, sua filha tem que continuar indo a aula e você

acompanhando, seu papel de pai é esse. P – Não, sempre foi meu papel de pai que eu tava levando e buscando ela. Agora, você é pai? F4 – Sou avô. P – Se o cara fosse bater na sua filha você ia sentir como? Chega numa situação... F3 – Um de cada vez... (o posicionamento mais assertivo do facilitador incomoda Ad e a família) (Círculo 3)

As intervenções do facilitador neste caso são bastante interessantes, pois

podemos problematizar alguns aspectos referentes à condução do círculo

Page 96: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

96

restaurativo. Esta cena acontece quase ao final do círculo e até este momento a

jovem afirmava não saber quem havia agredido o rapaz. Entretanto, parecia aos

participantes do círculo que ela conhecia os “agressores” do rapaz. Esta intervenção

do facilitador, apesar de ter a intenção de chegar à verdade, como discutimos

anteriormente, possibilita, principalmente, a problematização do conflito. Visto que os

jovens que agrediram o rapaz fazem parte desse conflito, porém, não estão

presentes no círculo restaurativo e, em nenhum momento, foi questionada a

necessidade de suas presenças.

Outro aspecto relevante nesta cena refere-se ao fato do facilitador convocar os

pais em sua responsabilidade de garantir o estudo e a segurança da filha. Isto

porque a solução encontrada pela família foi retirar a jovem da escola, usando como

argumento o fato de que ela precisa fazer uma cirurgia, como veremos mais a frente.

Entretanto, esta não é considerada a melhor solução para o conflito, visto que a

jovem ficaria sem estudar e o conflito permaneceria apenas adormecido, silenciado.

Parece, durante o círculo, que o facilitador está dificultando o processo

restaurativo, pois, aparentemente, não atua buscando a pacificação do conflito, ao

contrário, problematiza-o. Isso causa um mal-estar nos presentes, inclusive nos

facilitadores que buscam intervir acalmando os ânimos que se exaltaram. No

entanto, nosso entendimento é que, de fato, quando segue o caminho de

problematizar o conflito, o facilitador está agindo de acordo com atribuições relativas

ao seu papel. Em nenhum outro momento que acompanhamos pudemos perceber

intervenções como esta, que problematizam o conflito e ampliam o olhar de todos

sobre a natureza e as características do conflito.

Na maioria das vezes, pudemos perceber que os conflitos são silenciados pela

intervenção dos facilitadores, com a intenção de apaziguar os ânimos e chegar ao

acordo e à pacificação, evitando-se assim o confronto direto entre as partes, aspecto

que, porém, reputamos como essencial para o processo de diálogo, explicitação do

conflito e restabelecimento da relação. Entendemos que somente depois dessa

problematização do conflito e de sua análise será possível mudar realmente as inter-

relações e formalizar-se um acordo genuíno e aplicável.

É o que também não acontece, por exemplo, no Círculo 4, onde o jovem é

silenciado nas suas pontuações referentes ao funcionamento da escola e

comportamento dos professores. Suas queixas e as questões que lhe incomodam no

Page 97: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

97

contexto escolar não são ouvidas ou problematizadas, conforme veremos mais à

frente.

Este aspecto já foi destacado nas pesquisas anteriores realizadas pelo NEVIS.

A ansiedade às vezes percebida em buscar a pacificação das relações e o

estabelecimento de um acordo pode, muitas vezes, mascarar os conflitos. Nosso

posicionamento é de que a paz não significa ausência de conflitos.

E o conflito não pode ser analisado apenas pelo lado negativo, mas sim como um aspecto fundamental das relações, que desestabiliza a ordem, que quebra valores, normas, leis e, com isso, permite a transformação da sociedade.”265

Além disso, em diversos momentos dos círculos restaurativos, os facilitadores

têm falas em que afirmam seu propósito de não julgar os comportamentos das

pessoas envolvidas.

F1 – Senhora, a questão não é nem pagar, aqui não... pena, nada, o que a gente quer é que ele (jovem) se conscientize do que ele fez e daqui pra frente não faça mais. Pra mim não tem certo, não tem errado, não tem nada disso, passado a gente não apaga, não tem borracha pra apagar, aconteceu, aconteceu. (Círculo 4)

Entretanto, por maior que seja o esforço de ser imparcial, conforme a filosofia e

metodologia da Justiça Restaurativa, sabemos que esta é uma ação bastante

complexa, pois, de fato, os facilitadores expressam dimensões morais nem sempre

congruentes com o lugar de imparcialidade dele exigido, como veremos a seguir.

2. A complexidade do papel de facilitador:

Em alguns momentos, percebe-se a facilitadora influenciada pelo seu Papel

social de mãe e educadora.

F1 – [...] Então evitar, porque a escola é de vocês mesmo, é um patrimônio de vocês, vocês tão lá pra aproveitar, fazer as coisas. Então tudo que acontece, quebrar uma porta, escrever na parede, tudo é prejuízo pra vocês mesmo. Os funcionários tão lá pra limpar, merecem respeito, porque não é um trabalho fácil, os professores também, da mesma maneira que respeita o pai, a mãe, tem que respeitar lá também, como você é como aluno também merece respeito. [...] O prejudicado nessa escola é você mesmo. Que nem, a sua mãe trabalha pra sustentar você tudo. Você tá se prejudicando e você tá dando prejuízo pra sua mãe, na sua mãe. (Círculo 4)

Na passagem que veremos a seguir, percebe-se uma série de perguntas feitas

em seqüência ao jovem, logo no início do círculo. A cada pergunta da facilitadora o

jovem responde “não”.266

F1 – Como é que você é como aluno na escola? Vai sempre nas aulas, não falta muito? Tem problema de disciplina, da mãe ser chamada de vez em quando? Já teve algum incidente com outro professor na escola? Você costuma responder, trata com educação, como é que é o seu

265 Vicentin e Rosa, p. 10, 2010. 266 Veremos esta cena de forma completa no capítulo seguinte, entretanto torna-se relevante trazer, neste momento, alguns elementos referentes ao posicionamento do facilitador.

Page 98: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

98

comportamento? Em momento nenhum você ameaçou o professor? Nunca aconteceu de pegar você pichando? Porque você não precisa ter medo, aqui é informal, tudo aquilo que acontece é bom você falar, e sempre procura falar a verdade porque vai te ajudar e vai esclarecer a situação. Então não teve nenhum incidente, nenhum episódio? Depois que aconteceu isso, não teve outro incidente com esse professor que tá aí fora? E como é que você se porta na aula de Educação Física? Não tem problema com o professor? Nunca teve problema de disciplina? Nunca teve problema com os menores da quinta, sexta série, assim? Então fora o incidente da lâmpada dentro do banheiro, depois disso não aconteceu mais nada? Então fora isso não aconteceu nada? (Círculo 4)

O que podemos perceber, aqui, é uma sobreposição de Papéis, onde o

facilitador identifica-se com os professores, no que se refere aos comportamentos do

aluno. Pelo efeito Cacho de Papéis,267 elementos dos demais Papéis sociais, no

caso o de professor, são carregados para o Papel de facilitador. Além disso, essa

identificação da facilitadora com o Papel social de professor possibilita a ela olhar

apenas para o papel complementar desta relação, o de aluno. Não possibilita,

portanto, o encontro entre a facilitadora e o jovem como parte do conflito.

267 Termo do Psicodrama que estabelece que características, comportamentos e afetos de um papel social são transferidos para outro papel social.

Page 99: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

99

CAPÍTULO 4 - QUANTO AO LUGAR DO JOVEM NOS CÍRCULOS

Passamos agora à análise do lugar do jovem no círculo restaurativo. Para

tanto, organizamos o capítulo buscando apresentar, inicialmente, os modos pelos

quais os jovens são referidos nos círculos restaurativos, utilizando-nos neste

momento, principalmente do conceito psicodramático de Personagem. O jovem,

portanto, olhado pelas máscaras de Personagens nos diversos contextos: escolar,

familiar e do círculo restaurativo. Posteriormente, seguimos nos utilizando do

conceito de Personagem para problematizar os momentos em que o jovem é

convidado ao diálogo no contexto escolar ou do próprio círculo restaurativo e a sua

participação no processo de construção do acordo restaurativo.

Em seguida, problematizamos como o jovem é afetado pelo conflito e pelos

Personagens que lhe são atribuídos. Ao final, problematizamos o lugar atribuído à

família em relação ao conflito, nos contextos escolar e do círculo restaurativo e como

ela se posiciona em relação ao jovem e demais participantes dos círculos

restaurativos.

Entendemos que o conceito psicodramático de Personagem mostra-se uma

interessante chave conceitual para problematizar os aspectos relacionados ao

estereótipo do jovem, para além dos papéis sociais que estão em jogo. Os

Personagens que trazemos aqui são os que se evidenciam no contexto escolar,

onde ocorreram os conflitos, e no próprio contexto do círculo restaurativo. Os papéis

sociais de aluno, filho, irmão e neto são adjetivados pelos termos “problema”,

“violento”, “homossexual”, “silenciado”, “excluído” e “de inclusão”. Em algumas

situações, são Personagens aceitos e desempenhados pelos jovens, em outros não,

são atribuídos ou impostos aos mesmos.

I - Dos modos pelos quais os jovens são referidos

1. O Personagem aluno “problema”

Percebe-se que este Personagem, este aluno “problema”, seja por ser

“repetente”, “excluído” ou “de inclusão” é evidenciado nos quatro círculos

restaurativos que acompanhamos. Este Personagem, desempenhado ou atribuído a

aos jovens, justifica cada ação deles ou contra eles. Uma boa definição deste

Personagem é dada por um professor no círculo restaurativo:

Page 100: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

100

Prof – Mas ele já é um aluno retido (repetente), já dava problema desde o ano passado, entra na sala de aula quando quer, sai quando quer, não tem limite algum, ele já tem 191 faltas. Ó, a ficha dele, olha as notas. [...] Então, eu conversei com os professores, e os professores relataram o comportamento, que ele faz isso o tempo todo, ele tumultua a sala de aula, ele enfrenta professor... (Círculo 4)

No Círculo 1, a diretora afirma à família da adolescente que foi agredida, que o

adolescente “é de inclusão”, mas a adolescente diz que não vê nada de diferente

nele. Apesar de afirmar que ele é “ignorante e excluído”. Interessante observar que o

uso destes dois termos – “de inclusão” e “excluído” – para referir-se ao mesmo

adolescente problematiza os modos pelos quais a política educacional de inserção

dos alunos das antigas “classes especiais” nas salas de ensino regular tem ocorrido.

Esta atribuição, por parte da diretora, do termo “de inclusão” ao adolescente

evidencia esse aspecto e é utilizado para justificar comportamentos do adolescente,

que é o primeiro a entrar e o último a sair da sala de aula, pois demora muito para

copiar a matéria do quadro e, por isso, os outros alunos ficam “mexendo com ele”.

O Personagem aluno “problema” evidencia-se também no próprio círculo

restaurativo quando, por exemplo, uma das questões relevantes a ser feita no círculo

restaurativo é a seguinte:

F1 – Esse ano você acha que tem as notas? Vai dar pra passar? Ad – No que depender de mim vai. (risos de todos) Minha disciplina não era muito boa, mas

esse ano já mudou, tô bem responsável, me aplicando bastante e eu faço o máximo pra não tomar ocorrência. Até agora só tenho 3 ocorrências, que é dela. Só dela. Três ou quatro só esse ano. (Círculo 2)

Podemos perceber que este Personagem pode se tornar conservado de tal

forma que permanece enraizado no jovem, estende-se para outras relações

escolares e no próprio círculo restaurativo. Assim, em diferentes contextos, este

jovem é visto por esta mesma lente, por este Personagem:

Ad – Eu não era um aluno disciplinado na classe. F1 – Reconhece que era um aluno bagunceiro? De... (pensa e recoloca a questão) bagunceiro

na classe? Ad – De falar na classe. F1 – Conversa muito? Ad – Conversava. F1 – Atrapalhava? Ad – Atrapalh... Aquele que tá conversando comigo. Isso eu reconheço. (Círculo 2)

Essas questões podem ter relevância para compreender o contexto do conflito,

visto que, neste caso, refere-se à relação professor-aluno. Mas qual o sentido do

jovem “reconhecer”, no sentido de confessar, num círculo restaurativo, este

Personagem que lhe é atribuído no contexto escolar?

Page 101: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

101

Mesmo quando procuram recriar mais espontaneamente este Personagem,

adjetivar o Papel social de aluno com outros aspectos, percebe-se que o

Personagem aluno “problema” já apresenta um grau bastante elevado de conserva:

F1 – “Pode falar... o que ela falava pra você?” Ad – “Que eu sou um idiota, burro, não entende, vai querer repetir de novo? Eu nunca reagi.”

Ela (professora) chama aos alunos de irresponsável, repetente, que não tem jeito, já era, que já desistiu desses alunos, se abrirem o bico na sala de aula vai mandar pra baixo pra tomar advertência, suspensão, que não quer ver mais a cara de ninguém. Eu não entendo a reação dela (professora). Eu não dou motivo pra ela me tratar assim. Eu dei sim... o ano passado, esse ano não. Minha irmã falava: mostra que você é uma pessoa diferente. Mas não dá, não dá!! Depois de três meses a pessoa não reconhecer a outra, não teve jeito né? Porque todos os professores falavam comigo: Não é porque você é repetente que você não tem capacidade. E isso me incentivou, menos ela. (Círculo 2)

A complementaridade de papéis, no caso da relação professor-aluno, mantém

o jovem preso a uma relação assimétrica e hierárquica na qual as mudanças

conquistadas pelo jovem no Papel de aluno não são percebidas. Permanece

atrelado ao seu Personagem, no qual não mais se reconhece. Curioso, é que essa

conserva não ocorre na relação entre o jovem e outros funcionários da escola:

Ad – Não falando que a escola não teve atitude contra mim... teve. Eu fiz um ato errado. Eles tiveram atitude, ligaram pra minha mãe, conversaram, eu fui repreendido pela escola, mas as professoras todas falaram: Nossa! O Jonathan? A escola tratou a imprudência minha e dela com delicadeza. Sabendo que eu não sou um aluno problemático, de desrespeitar um professor. (Círculo 2)

Em um dos círculos (Círculo 4), o único em que há professores presentes,

relatórios e documentos de desempenho escolar foram apresentados para fortalecer

os argumentos dos professores a respeito do Personagem aluno “problema”.

Prof – Olha o que eu sei tá aqui no relatório, as notas, as faltas, olha, ele tem 191 faltas, é muita falta. [...] estou aqui com o relatório do professor de Educação Física, você já jogou 3 bolas pra fora da escola. A senhora é avó? Olha as notas dele? Ele só tem uma nota azul em Educação Física que é fácil mesmo. (Círculo 4)

Em outro círculo (Círculo 2), apesar da professora não estar presente, o jovem

também comenta o mecanismo documental para o controle da disciplina do aluno

“problema”.

Ad – Ai que me revoltava mais ainda porque essa anotação você fala... não é advertência, não é suspensão... mas chega no final do ano, no conselho isso pesa. Se ficar de três matérias eles faz dois conselhos pra cada aluno, e já puxa a ficha, e as minhas anotações, conversou, tá de tititi, levantou sem permissão... (Círculo 2)

“Ser excluído” por outros alunos também é destacado nas narrativas dos

jovens:

F3 – Ele te agrediu sem nada? Ad – repete a versão anterior. F4 – A (jovem), você tem que voltar um pouco no tempo... deve ter tido algum atrito entre vocês

dois que você deixou despercebido ou que você não prestou atenção, alguma coisa deve ter acontecido...

Page 102: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

102

(Conversas paralelas entre facilitadores e olhares entre eles) M – A professora me relatou que ele é excluído, a turminha ali e ele na dele. Aí quando ele

pediu silêncio a menina lá da frente falou alguma coisa e ele achou que foi ela. F4 – É, é o que eu falei. Uma coisa gratuita assim... é impossível acontecer.... (Todos falam juntos) Ad – não tem o que eu tenha feito, mesmo sendo despercebido. Eu sento com a pessoa e peço

desculpas. F4 – Dona F3 e dona F1 (facilitadoras), o que o eu vejo aí é assim, ele é uma pessoa isolada,

ela tem o grupinho dela, tem os amigos, então é isso aí que tá incomodando, pelo menos, a priori, é o que eu tô vendo e sentindo. (Círculo 3)

É interessante perceber nessa fala de um dos facilitadores (F4) que ele busca

colocar-se no lugar do rapaz que não está presente, fazendo uma Tomada de

Papel268 e tentando aproximar-se afetivamente do rapaz ausente e problematizar o

conflito.

Percebe-se também que o rapaz, além de ser considerado “excluído” no

contexto escolar, exclui-se do círculo restaurativo, ou é excluído por elementos que

podemos supor, como destacamos anteriormente, por medo ou por não valorizar ou

compreender a importância do processo restaurativo.

É importante destacar que, em ambos os casos em que a exclusão se

evidencia, ela aparece vinculada à homossexualidade do adolescente. Isto fica

explícito na fala dos participantes do Círculo 3, enquanto no Círculo 1 nada é

explicitamente comentado, apenas perpassa os entreolhares e os não-ditos dos

participantes. Aprofundaremos esta análise no tópico sobre o Personagem

“homossexual”.

2. O Personagem jovem “violento”

O único círculo em que o jovem não é apresentado por este Personagem

“violento” é o Círculo 2, vinculado diretamente ao Personagem anterior, do aluno

“problema”. É possível que ele realmente não desempenhe este Personagem ou,

simplesmente, que não lhe seja atribuído. Até por que, a professora que fez o

Boletim de Ocorrência de agressão física não estava presente no círculo. Se ela

estivesse talvez o Personagem “violento” também fosse atribuído ao jovem.

Nos demais círculos, este Personagem é atribuído aos jovens pelos adultos,

como familiares das “vítimas,” professores, facilitadores e polícia.

No Círculo 1, percebemos a mãe da adolescente bastante apreensiva com o

conflito entre os adolescentes. Está preocupada com a possibilidade dele continuar

268 Técnica Psicodramática.

Page 103: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

103

e se agravar, pois antes do conflito o adolescente já a havia seguido a ela e uma

amiga com uma tesoura na mão.

A facilitadora pergunta se a adolescente tem receio dele, ela afirma que não,

que sempre tiveram um bom relacionamento e parece não identificá-lo com este

Personagem, apesar das preocupações da mãe e da facilitadora.

A cena a seguir evidencia os Personagens “violentos” e apresenta os aspectos

cíclicos da violência e os desdobramentos do conflito:

Ad – Ele falou que eu que falei (algo em relação à sexualidade do rapaz), só que eu tava no celular. Por isso que os meninos se revoltaram. Foi aí que bateu nele e ele falou que foi eu que mandei. Sendo que...

F1 – Os meninos que bateram são da sua sala? Ad – Então ele falou que fui eu que mandei, que foi meu namorado, sendo que meu namorado

nem tava lá. F4 – As pessoas que tomaram as suas dores? Quem são essas pessoas? Ad – Foi da escola, só que eu não sei... porque eu não tava na hora que bateram nele, eu tava

indo embora. [...] Aí a polícia veio e falou: “ei mocinha, foi você que bateu nele? Foi você que mandou? Foi a sua gang que bateu nele?” Aí eu falei assim; “eu não tenho gang nenhuma senhor.” Aí ele pegou e falou assim: “ah, você bateu nele”. “Não, não bati [...] quem me bateu mesmo na sala foi ele”. Aí ele já começou: “Eu não agredi ninguém, eu não agredi ninguém!” Aí eu fiquei alterada: “Claro que você me bateu. Você arrebentou uma lata na minha cara.” Eu não tenho porque mentir. (Círculo 3)

E na seqüência retoma:

Ad – Então, eu conheço as duas pessoas, mas o resto eu não... eu não podia generalizar “eu conheço o grupo”. E a escola falou que só pode dar uma advertência verbal, que cada ação tem uma reação.

M – Os meninos vieram conversar com a gente, eles não admitem isso lá no grupo, de bater... Ad – Não querendo... generalizar e ofend... (ela interrompe) mas é periferia ali, só tem pessoal

da periferia lá. Imagina um... um bandido vê o cara batendo... bandido que é bandido não aceita! F4 – Não, eu já não vejo assim. Você está muito extremada! As pessoas da periferia são

pessoas do bem! (facilitador se exalta com o comentário preconceituoso da jovem) Ad – Não, eu não tô... não... (os dois falam alto juntos) F1 – É porque ele tem um outro.... (tenta amenizar) F4 – É... uma visão diferente... M – Eu entendo o que você tá querendo dizer, hoje os alunos não vão pra escola pra estudar, a

gente sabe disso... eu sou educadora.... os meninos falaram: não foi ela que provocou. Então os meninos tomaram as dores por ela. Ela sabe quem tava ali, mas chegar e indicar... aí ela vai tá comprando briga... quer dizer, nós fomos pra defender e a filha da mãe tá nos entregando. Ela sabe, foi o grupo, ela não mandou. [...] Porque ele também sabe... porque ele que foi o causador da situação, toda ação tem uma reação, provocou... (Círculo 3)

Os jovens que agridem o rapaz (da gang, como é afirmado pelo policial),

desempenham este Personagem “violento” e são identificados por ele, são

Personagens rígidos, conservados, ficam presos a ele e precisam desempenhá-lo,

são os responsáveis por garantir que um ato violento seja cobrado com mais

violência.

A família reforça que a jovem não deve identificar quem agrediu o rapaz, pois o

que reina é a lei da vingança, de que “toda ação tem uma reação.”. Quando a jovem

destaca que “ali é periferia” reforça este Personagem, tão atrelado ao jovem de

Page 104: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

104

periferia, onde os conflitos são resolvidos pela violência e devem ser silenciados

para as autoridades (escola, polícia, família). As pessoas por detrás do Personagem

“violento” devem, neste caso, ficar ocultas.

Os jovens “da gang” estão atrelados, para além do Personagem “violento”, ao

Personagem “bandido”, que diz de sua maior vinculação com a violência. Parecem

mais estruturalmente identificados ao Personagem “violento” e, portanto, um

Personagem aceito e, possivelmente, valorizado, apesar do ocultamento

proporcionado pela jovem. Já o rapaz tem uma atitude violenta que, como veremos

adiante, está atrelada ao seu Personagem “homossexual”, aparentando, desta

forma, ser muito mais uma atitude defensiva dele.

Podemos perceber, inclusive, certa hierarquia entre os Personagens “violento”

e “bandido”, entre o rapaz e a “gang”. Possivelmente porque, para os jovens da

“gang” o Personagem “bandido” parece ser aceito, desempenhado, e, em certa

medida, valorizado, portanto, é um Personagem que, por ser mais estrutural, repete-

se em outras relações e Papéis sociais desses jovens. O mesmo não ocorre com o

rapaz. Outro aspecto é que há uma organização de grupo, que potencializa a ação,

ao contrário do rapaz, que agiu sozinho e, de forma geral, lhe é mais atribuído o

Personagem jovem “excluído” e “homossexual” do que o “violento”.

Vejamos como as marcas do Personagem “violento” aparecem na fala da irmã

de um jovem que não se identifica com o Personagem:

I – A gente não sabia se ela tinha feito mesmo o ato (registrar o Boletim de Ocorrência). Então a gente ficou nessa, esperando. E foi uma semana muito difícil, que ele entrou em depressão, ficou sem comer, ficou sem nada ele ficou muito mal. Tanto que tinha até conversado com a coordenadora e ela queria que ele fizesse acompanhamento com psicóloga, tudo mais... que ela ia encaminhar e queria trocar ele de horário e ele chegou ao ponto de dizer que não queria mais ver a cara da professora. Isso ficou quase uma semana, que ele queria mudar de escola, queria mudar de escola e eu forçava ele a ir à escola, falei: “Não! Você vai pra escola! Você não é o errado!” E ele falava assim: “Agora eu sou fichado! Eu sou um marginal! Agora qualquer coisa que eu vou fazer eu tenho um BO lá”. Era isso que ele falava e ainda hoje fala. Que por causa dela ele tem um BO sem ter feito praticamente nada. (Círculo 2)

Chama atenção o fato de esta marca, “ter um Boletim de Ocorrência”, jogar

imediatamente o jovem no estereótipo do Personagem “violento”. Atua como uma

máscara, que não permite o relacionamento com o jovem por detrás dela, definindo,

assim, a forma pela qual muitas pessoas se relacionarão com ele a partir de agora.

O fato deste Personagem ser tão negativamente olhado pela sociedade pode, em

situações futuras, servir até mesmo de motivo e “justificar” ações violentas contra

ele, como em intervenções policiais, por exemplo. Assim, muitos jovens preferem e

buscam manter esta marca em segredo.

Page 105: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

105

3. O Personagem “homossexual”

Em dois dos círculos restaurativos que acompanhamos, pode-se perceber que

são atravessados por aspectos vinculados a sexualidade dos jovens participantes.

Ambos referem-se a conflitos entre colegas de sala de aula e são marcados pela

exclusão desde aluno, ao qual é atribuído o Personagem “homossexual” e pelo qual

os jovens são identificados por seus colegas.

No Círculo 1, apesar de não ficar explícito nas falas dos participantes, percebe-

se que este aspecto fica como não-dito, nos olhares trocados entre os participantes.

Percebem no adolescente alguns “trejeitos”, como gestos e maneira de se expressar

atribuídos ao Personagem “homossexual”. Não podemos afirmar até que ponto este

Personagem é conservado e transferido, pelo efeito Cacho de Papéis, para outros

Papéis sociais deste adolescente. Entretanto, fica evidente que no contexto escolar,

em seu Papel social de aluno, este Personagem se destaca e é um dos motivos de

sua exclusão pelos demais adolescentes da sala.

Ao final deste círculo, as facilitadoras acreditam que seria necessário

encaminhar o adolescente para atendimento psicológico. Apesar de não explicitarem

claramente o motivo do encaminhamento, parece que o mesmo está vinculado ao

Personagem “homossexual”, atribuído ao adolescente.

No Círculo 3, as falas referentes a este Personagem “homossexual” ficam mais

evidentes:

F1 – Ele alguma vez já demonstrou algum tipo de interesse por você? Que você tenha percebido?

Ad – Teve uma vez que ele falou que eu era linda e que minha pele era bonita. Só isso. (longo silêncio) (tosse) F1 – Tem namorada esse menino? Ad – Ele? Não. F1 – Nunca se insinuou pra você? Ad – Só essa vez. F2 – Por que você acha que ele fez essa agressão em palavras pra você? Ad – Então, ele disse que eu ofendi a sexualidade dele. Só que quem falou foi a minha colega

e foi ai que ele começou a me xingar, porque ele pensou que eu que tinha falado, só que eu não tenho porque falar porque eu tenho homossexuais na minha família, então eu não sou desse tipo de pessoa, porque minha mãe me deu educação. (silêncio)

F1 – Ele é... ele tem algum... (trejeito) Ad – Boatos que correm na escola... que ele é homossexual. (Círculo 3)

Novamente a atribuição deste Personagem é dada pelos “trejeitos”, ou seja,

formas de se comportar, gestos, aspectos cênicos deste Personagem. Inicialmente,

questionam o interesse do rapaz pela adolescente, para depois ela esclarecer que o

Personagem “homossexual” é atribuído ao rapaz pelos colegas, através de boatos

que circulam na escola.

Page 106: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

106

Outro aspecto referente à sexualidade é destacado no círculo desta mesma

adolescente:

Ad – Eu acho assim, ele pode ter raiva de mim por algum motivo, eu não fiz nada, sou na minha, sou quieta. Só que ele começou a me xingar do nada. Dele ter me tratado mal assim, meu, machuca, claro, mas o pior é ser ofendida com palavras que você não é. E a escola inteira olhar pra sua cara e: olha a vagabunda, rasgadeira. (Círculo 3)

Os ataques a sua reputação são percebidos pela adolescente como violências

mais graves que a própria agressão física que sofreu, pois é atribuído a ela um

Personagem com o qual não se identifica e que não aceita.

II - De quando o jovem tem voz e de como ele se apr esenta:

Apresentamos, inicialmente, o ocorrido no Círculo 1, visto que, se comparado

aos outros círculos que acompanhamos, este se diferencia por uma maior

participação dos adolescentes. É importante destacar que, num primeiro olhar, já

que este foi o primeiro círculo restaurativo que acompanhamos, impressionou-nos

positivamente perceber que, na prática, o método da Justiça Restaurativa estava

sendo aplicado. Isto porque, neste círculo, o foco foi potencializar e dar voz aos

adolescentes, como participantes ativos na explicitação e na resolução do conflito,

buscando melhorar o relacionamento inter-pessoal e cessar o conflito. No entanto, já

naquele momento, questionamo-nos acerca do porquê da não participação das

mães no estabelecimento do acordo.

Um dos argumentos utilizados pelas facilitadoras é o de que, pelo que

percebem na prática, entre os adolescentes o conflito é muito mais rapidamente

resolvido do que com a presença das mães.

Quando os dois ficaram sozinhos na sala, apenas com as facilitadoras, eles se

olharam e sorriram de maneira aparentemente afetuosa. A adolescente caminhou

para se sentar ao lado do adolescente, mas a facilitadora interrompeu e pediu que

ela se sentasse de frente para o mesmo. Esta colocação visou um afastamento

físico dos dois, evitando possíveis agressões, mas principalmente, fazer com que

eles se olhassem nos olhos enquanto conversavam.

Problematizando como a participação dos jovens se dá nos círculos

restaurativos, foco desta pesquisa Veremos que em outros círculos que

acompanhamos esse foco no diálogo entre as partes não apareceu tão fortemente

como aqui. Além disso, fica evidente que a participação dos jovens é atravessada,

tanto no contexto escolar como do próprio círculo, pelos Personagens atribuídos a

Page 107: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

107

eles ou por eles desempenhados. Na cena a seguir, descrita por um jovem no

círculo restaurativo, ele é convidado a uma conversa reservada com a professora no

dia seguinte ao conflito:

Ad – “Eu falei que eu não ia, que eu ia acabar me revoltando de novo e acabar me prejudicando, piorando minha situação. De tanto ela (inspetora) insistir acabei indo. Só que eu não sabia que ía tá só eu e ela. Sentei, abaixei minha cabeça e ela começou a falar, falar... que não queria ter tido aquela atitude, que nunca me viu daquele jeito. Aí eu expliquei pra ela porque eu reagi daquele jeito, que eu tava tentando mostrar pra ela o máximo de mim, que eu mudei, não é porque eu sou repetente que vocês vão ter que ficar me zoando, me dando esporro na sala. Ela me pediu desculpas, disse que a intenção não foi essa, o que eu precisar ela esta ali pra me ajudar. Veio querer me abraçar, essas coisas... Não sei porque ela teve essa reação, porque ninguém muda de opinião assim de um dia pro outro, tão rápido assim. Disse que ía fazer o máximo pra retirar esse Boletim de Ocorrência”. (Círculo 2)

Fica evidente neste relato que o jovem foi convocado a um conversa com a

professora e ele assume, imediatamente, a postura do Personagem que lhe cabe

nesta complementaridade de Papéis (professor-aluno), o de aluno “silenciado”:

abaixar a cabeça e ouvir. Este é o Personagem que é convocado para esta conversa

com o Personagem da professora “autoritária”, que impõe o respeito pela submissão

e silêncio do aluno.

Mas algo acontece no contexto privado:

Ad – A atitude dela mudou 100%. F1 – Talvez também ela fez uma atitude impensada né? Pesq – Porque você acha que ela mudou? (busco problematizar a mudança) Ad – Não sei, até hoje não sei o que aconteceu com ela, não sei se ela viu que ela foi um

pouco prejudicada... não sei! Não sei! F1 – Talvez ela fez isso numa atitude impensada mesmo, e depois percebeu... porque na

realidade ela também se prejudicou. Então... vai saber... às vezes... Ad – É, eu não sei, eu não vou julgar porque eu não sei... F1 – Então você tem que conversar com ela pra ver o porquê... Ad – Se ela tá fazendo isso de propósito eu não sei, só sei que o meu ambiente na sala dela tá

melhorando muito, é isso que eu quero. Se ela gosta de mim... ela não é obrigada a gostar de mim e nem eu dela. Ela tá trabalhando e minha obrigação é estudar. Então... eu entendendo o que ela tá me passando e ela entendendo que eu tô me esforçando é o que importa! Dificuldade na matéria dela eu tinha... a explicação dela é boa, é boa. Só que... eu não sei te explicar... aquele... entre eu e ela... ela... não dá! (Círculo 2)

Chama atenção a clareza do jovem em relação aos Papéis sociais que estão

em jogo na relação, assim como os afetos que a perpassam. Fatos que até então

interferiam prejudicando a relação.

Com a conversa, os dois conseguem rever a complementaridade de papéis da

relação aluno-professor e transformá-la, reconstruí-la mais espontaneamente, sem o

peso nem a interferência dos Personagens desempenhados até então. Para o jovem

não fica claro, ele não entende o que aconteceu, mas percebe a mudança na

postura da professora, e só consegue atribuí-la à possibilidade de ela ter se

prejudicado de alguma forma por sua atitude. A professora, retirando a máscara do

Page 108: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

108

Personagem professor “autoritário”, possibilita que o aluno, no contra-papel, possa

mudar e não desempenhar o Personagem do aluno “silenciado”. Assim, pode

expressar-se e dizer a ela – que agora está ouvindo – que não desempenha mais o

Personagem aluno “problema”, máscara pela qual era olhado pela professora e que

impedia olharem-se para além das máscaras.

Interessante que esta mudança inter-relacional só possa ocorrer numa

conversa reservada. Parece que os demais alunos não podem ver a professora fora

deste Personagem “autoritário”, pois é o meio que ela encontrou de garantir e não

perder o respeito deles.

O jovem estende, durante algum tempo, elementos do Personagem

“silenciado”, para as relações familiares:

Ad – A professora tava me tirando do sério e eu não tava com cabeça de ir pra aula dela. I – Ele dizia: “Me tira da escola, não quero estudar lá”. Eu não entendia o porquê. Ad – Porque eu nunca quis levar o conflito, lidar com ela. I – Eu não entendia que era porque ele tava se sentindo agredido pela professora. Ad – É que eu não levava o problema pra casa porque eu sabia que ela (irmã) ia querer

conversar, e eu conheço, ia acabar me prejudicando. (Círculo 2)

A partir daí, no círculo, começa a se evidenciar que, para deixar de

desempenhar este Personagem aluno “silenciado”, a única solução é a intervenção

de alguém com mais autoridade que ele, com voz perante a professora, pois ele,

sem voz, não pode colocar-se contra um professor:

F1 – Talvez se você tivesse descido na hora que ela mandou, talvez não tivesse... (ela pensa e recoloca a questão) você acha que talvez não tivesse chegado nesse ponto?

Ad – Ah, eu acho que não. Porque se tivesse descido acho que a coordenadora ia chamar ela e ver o que tava acontecendo. Mas também eu acho que depois de um tempo ela ia continuar igualzinho. Ela não ia ter... porque é um aluno contra um professor. Acho que a coordenadora ia conversar com ela e só. (Círculo 2)

Ele percebe que, mesmo assim, ele continuaria sendo visto pela máscara do

aluno “problema” que precisa ser “silenciado”. Como ele afirma: “Ela não ia ter...”

Poderíamos acrescentar à sua fala: “me olhado verdadeiramente”.

A – E outra, ela nunca relatou (pra diretora). Então era tipo na sala, entre eu e ela. O engraçado é que quando ela entrava na sala todo mundo sentava, não de respeito, de medo. Mas sempre 3 ou 4 alunos desciam, por implicância dela, achava coisa onde não tinha. O engraçado que a sala inteira quieta, tipo aquela autoridade, mas sempre saia alguém, sempre. (Círculo 2)

Percebemos aqui o mecanismo de imposição de respeito muito utilizado por

adultos para o controle de crianças e jovens, o medo:

I – Nem a escola sabia porque ele não descia pra falar com a coordenadora, ele tomava tudo pra si e acabou. Ele tentava resolver ele mesmo, entendeu? Uma coisa que é errada. E ele falava que com todos os alunos ela descia, ele não, simplesmente mandava sair da sala...

Ad – Como se eu fosse... Eu ficava enrolando, conversava, fingia que ía na biblioteca, disfarçava.

Page 109: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

109

I – Ela nem fazia ocorrência nem nada, ele tinha que se retirar da sala de aula, ficar pra fora, e às vezes ele tomava advertência por estar fora da aula.

F1 – E agora o que você percebe, quando acontecer alguma coisa? Você tem que fazer o quê? Procurar alguém. Não tem?

Ad – Procurar alguém... mais... superior a... F1 – Então, no caso sempre tem que descer e falar com o coordenador, direção, alguém.

Porque talvez se tivesse falado desde o começo como você se sentia, o que acontecia, a maneira que ela te tratava, talvez não tivesse chegado aqui onde chegou. Às vezes a gente por achar que pode resolver tudo sozinho... às vezes complica, né?

Ad – Eu tinha medo! Porque ela fala na sala de aula que não adianta chamar ninguém, que a gente é uma peste na sala de aula, que quem mandava ali era ela, que podia chamar qualquer um que ninguém ia passar por cima dela. (Círculo 2)

O medo reforça e mantém o silêncio do jovem, silenciando inclusive qualquer

movimento seu de resistência em relação ao conflito e às agressões sofridas. Além

disso, fica evidente que o sair de sala acaba por reforçar o Personagem aluno

“problema” para os demais professores e profissionais.

O jovem busca evitar o confronto com a professara, silenciando-se por medo,

mas também acreditando que isso apaziguaria o conflito. O que podemos ver é que,

antes da conversa reservada com a professora, ele não encontrou mecanismos para

a resolução deste conflito, pois a evitação do conflito, seja pelo silenciamento, seja

pelo apaziguamento ou distanciamento, não é capaz de cessar um conflito numa

inter-relação.

A prática restaurativa propõe um espaço onde o diálogo sem julgamentos deve

ser privilegiado, onde o jovem tenha voz, assim como todos os participantes,

possibilitando uma mudança relacional e a resolução do conflito.

Vejamos, entretanto, como foi conduzida a escuta inicial269 de um jovem no

círculo restaurativo, contrapondo-se aos círculos que problematizamos

anteriormente neste tópico:

F1 – Vamos lá. O que aconteceu? Você levou um Boletim de Ocorrência né? Você sabe que é complicado né. O primeiro não é pra assustar, é pra alertar. Primeiro o Juiz deu a oportunidade pra vir pra cá. Se você arruma outra confusão, ou seja, na escola ou com alguma outra coisa que tenha um outro Boletim de Ocorrência, então a situação pode complicar pra você, tá bom? Então fala pra mim, o que aconteceu pra você ter que vir aqui?

Ad – Então, foi assim, tinha uma lâmpada lá no banheiro, os meninos tiraram e colocaram de lado, aí eu fui no banheiro. Aí os meninos, ah vamo quebrar, aí eu falei: não quebra. Peguei a lâmpada, fui entregar pra diretora, aí ele, eu nem sabia que ele era professor, só sabia que ele ficava regando as plantas. Aí ele não sei o que, começou a xingar minha mãe, começou me xingar, aí eu não agüentei e comecei a xingar ele. Nisso, eu xinguei ele tão rápido, mas tão rápido que ele pensou que eu tinha ameaçado ele, só que eu não tinha ameaçado ele, aí os meninos me pegou, as meninas me puxaram de lado, aí eu fui lá e conversei com a diretora, aí a diretora mandou pedir desculpa pra ele, tudo, aí depois eu não vi mais ele. Aí depois foi o dia que ele abriu o negócio contra mim.

F1 – Como é que você como aluno é na escola?

269 Esta foi uma cena que ocorreu no início do círculo restaurativo, onde estava presente apenas o jovem e sua avó. Os professores já haviam sido escutados e estavam do lado de fora da sala. Este é o momento em que o jovem pode expor, por seu olhar, o que aconteceu, o conflito e seus desdobramentos, inclusive afetivos e de prejuízo da relação em questão.

Page 110: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

110

Ad – Regular. F1 – Vai sempre nas aulas, não falta muito? Ad – Não. F1 – Tem problema de disciplina, da mãe ser chamada de vez em quando? Ad – Não. (perguntas sobre a lista de alunos e sobre a família não ter sido chamada na escola) F1 – Já teve algum incidente com outro professor na escola? Ad – Não. F1 – Você costuma responder, trata com educação, como é que é o seu comportamento? Ad – É regular como eu disse pra senhora. Só que assim, quando eu tô quieto, eu faço tudo

direitinho, aí quando os outros me provocam, aí, se os professores me xingar, xingar minha mãe, eu vou responder, não pra xingar assim, só vou discutir, mas não xingar mãe e pai.

F1 – Em momento nenhum você ameaçou o professor? Ad – Não, em momento nenhum, não ameacei ninguém. Av – Ele (professor) falou que ameaçou. Ad – Tava lá no papelzinho do Fórum, ameaça, mas sendo que nem eu ameacei, os meninos

sabem que nem eu ameacei. F1 – Nunca aconteceu de pegar você pichando? Porque você não precisa ter medo, aqui é

informal, tudo aquilo que acontece é bom você falar, e sempre procura falar a verdade porque vai te ajudar e vai esclarecer a situação.

Ad – Claro. F1 – Então não teve nenhum incidente, nenhum episódio? Depois que aconteceu isso, não

teve outro incidente com esse professor que tá aí fora? Ad – Não, se teve eu falo. Av – Não, não teve, pelo que ele falou não teve mesmo. Ele não sabia nem porque tinha sido

chamado, ele não sabia. F1 – E como é que você se porta na aula de Educação Física? Ad – Normal, jogo bola, tudo. F1 – Não tem problema com o professor? Nunca teve problema de disciplina? Ad – Não, de disciplina não. F1 – Nunca teve problema com os menores da quinta, sexta série, assim. Ad – Não, também não. F1 – Então fora o incidente da lâmpada dentro do banheiro, depois disso não aconteceu mais

nada? Ad – Mais nada. F1 – Então fora isso não aconteceu nada? Ad – Nada, nem piche, nem nada. Av – Olha, ele apronta só se for dentro da escola, só se for lá dentro que eu não tô vendo.

(Círculo 4)

Ao entrar na sala do círculo, o jovem já é percebido pelo Personagem, o aluno

“problema” e “violento” e, como ele não assume os atos que lhe são atribuídos, nega

todos, o interrogatório segue para ver se em algum momento cai em contradição e

este Personagem e a verdade aparecem.

O que percebemos é que a facilitadora, por ter escutado primeiro os

professores que detalharam o Personagem, busca confirmar os fatos relatos pelos

professores, por uma escuta pouco imparcial, que dificulta olhar para o jovem sem

ser por este Personagem. Nesse momento, assim como a facilitadora, sinto minha

escuta e olhar também contaminados pelo Personagem apresentado, apesar de

permanecer em silêncio.270

270 Importante destacar que é neste círculo que sou convidada a atuar como facilitadora. Inicialmente me identifico, em certa medida, com este Papel. Entretanto, nesse momento não posso fazer nenhuma intervenção,

Page 111: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

111

O que se evidencia é que o jovem esconde-se na máscara de “bom moço” que

veste para negar as afirmações do professor, no intuito de camuflar ou mesmo negar

e resistir ao Personagem que lhe é atribuído.

Até esse momento, a avó não conhece o Personagem aluno “problema”, pois

não é jogado no contexto familiar. Mas, após o relato dos professores, no transcorrer

do círculo, é surpreendida pelo Personagem que é atribuído ao jovem.

O “interrogatório” do jovem continua, até o fim do círculo, agora com a

presença de todos participantes:

Prof – Então A (jovem), acho que você precisa assumir, eu não estou aqui para, até falei pra ela, o compromisso que eu quero aqui é de não depredar a escola e mudar de comportamento, ou seja você vai pra escola pra estudar, pra se promover na vida, porque você este ano já está fazendo a oitava pela segunda vez. Então você vai pra escola pra estudar, eu acredito que seus pais te coloquem na escola pra estudar, esse é objetivo. O objetivo não é pra você ficar fora da sala de aula, não é pra ficar no pátio, no banheiro, é estudar. É isso que a gente quer de você. Se você não assume isso A (jovem), você que se prejudica A (jovem). Porque olha a escola pra você é passageiro, nós vamos continuar na escola, você vai ficar um tempo, depois seus pais é que vão tomar conta de você. Então na escola você vai ficar um tempo e a vida? Na escola você não é xingado, todo mundo tenta conversar. Professor tem que ser profissional, eu não xinguei você. Eu simplesmente pedi a lâmpada, eu levei lá, e quando você me chamou pras porradas, primeiro eu conversei com os professores, se fosse só aquilo ali, ficaria por ali, mas você vem fazendo isso desde o começo do ano, então precisa abrir um Boletim de Ocorrência porque não pode ficar assim. A (jovem) não mente, você não tava no muro?

Ad – Não. Av – Você não tava? Então prova pra ele que você não tava. Quem é sua prova? Ad – Os meninos. Prof – Ele estava em cima do muro. F1 – A (jovem), lembra que a gente falou, quanto melhor falar a verdade, melhor é pra todo

mundo aqui. Que nem você falou, aula vaga. Aula vaga não conta. Então ele tá dizendo que você tava em cima do muro, você diz que não tava, você disse que chamou as meninas pra vir aqui, não compareceram. Então, mesmo que fosse aula vaga, tem 191 faltas, então é sinal que de algumas aulas você não participa. O prejudicado nessa escola é você mesmo. Que nem, a sua mãe trabalha pra sustentar você tudo. Você tá se prejudicando e você tá dando prejuízo pra sua mãe, na sua mãe.

Av – E muito, teve o dia do Fórum, ela teve arritmia por causa dessa história, ela tá mal pra caramba.

Prof – Porque você faz isso A (jovem), porque que você não melhora. Você faz a sua parte olha...

Av – Eu tô perguntando que tem escola que xinga, tem professores que xinga sim, eu to só perguntando, o senhor não xingou ele?

Prof – Não, se a senhora quiser uma prova, a senhora pode conversar com os alunos... Av – Eu tô só perguntando pro senhor. O senhor não xingou? Prof – Não, de modo algum. Ad – Eu conversei com a diretora e ela falou que você outro dia tinha xingado um aluno. Av – A (jovem), você não tem nada que ver com os outros, nós tamos falando é com você.

(silencia o jovem)

tão confusa que estou pela sobreposição dos Papéis que estão em jogo (pesquisadora-psicodramatista e facilitadora). Aos poucos, no transcorrer do círculo, posso me distanciar desses lugares, me utilizando da técnica psicodramática do Espelho, e buscar o Papel que de fato devo desempenhar, o de pesquisadora. Naquele momento, esta escolha, que me parecia a mais adequada, me distanciou da possibilidade de qualquer intervenção, pois assumo o Personagem de pesquisadora “positivista”, em silêncio e observando o desenrolar do círculo. Posteriormente, com a possibilidade de um maior afastamento do campo, avalio que deveria ter atuado ou o Papel ao qual fui convidada, o de facilitadora, ou o Papel de pesquisadora-psicodramatista, pois ambos me possibilitariam potencializar a voz de todos e a real problematização do conflito e das relações que estavam em cena.

Page 112: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

112

Ad – Ué, se ele xingou um, ele pode xingar dois. Av – Não interessa. (silencia o jovem novamente) Prof – Isso pode fazer acareação, pode colocar a diretora na minha frente e ela vai provar isso,

ela terá que provar, eu estou disposto a fazer a acareação. F1 – Olha nem vale falar essas coisas... Prof – É. F1 – Então, e aí o que ele falou que não bate pra você? Ad – A grade. Prof – Precisa assumir, ninguém vai punir você porque você está assumindo F1 – Senhora a questão não é nem pagar, aqui não... pena, nada, o que a gente quer é que ele

se conscientize do que ele fez e daqui pra frente não faça mais. Pra mim não tem certo, não tem errado, não tem nada disso, passado a gente não apaga, não tem borracha pra apagar, aconteceu, acontece. (toma a versão do professor)

Ad – Ah um monte de coisa. F1 – Que coisas? Av – Fala, você já é grande. Ad – Colocar mais segurança no corredor pra ver mesmo quem apronta e quem não apronta

então, só isso. (fala desconsiderada) F1 – Dessas coisas que o professor falou você acha que não fez nada disso, não tá

relacionado com nada disso, não estava em cima do muro, não cortou a rede? Ad – Não, em momento nenhum. (Círculo 4)

Na dinâmica desse momento do círculo, podemos perceber que a facilitadora e

os professores atuam buscando a verdade dos fatos e o movimento, por parte do

jovem, de “assumir” e mudar seu comportamento. A avó tem uma postura neutra,

não se posiciona ao lado de nenhuma das partes, é até mesmo bruta com o jovem,

silenciando-o. O jovem está sozinho, tentando manter um espaço para sua fala, ao

mesmo tempo em que procura escapar da imposição de “assumir” seus

comportamentos e os Personagens impostos. Sua fala é considerada falsa.

É importante destacar que neste círculo, o jovem é representante de um grupo

de alunos que “perturbam” a escola. Não podemos saber por que motivo este jovem

é tomado como protagonista (no sentido de bode expiatório) deste grupo, porém

muitos comportamentos do grupo são generalizados para este jovem. Não podemos,

portanto, perceber com clareza o limite entre o jovem, em sua subjetividade, e o

Personagem aluno “problema” e “violento” associado às generalizações dos

comportamentos do grupo de jovens. Mas de fato, parece não atuar o Personagem

“silenciado” nos diversos contextos, inclusive o escolar, no qual busca resistir. Assim

mesmo, no contexto do círculo restaurativo acaba sendo “silenciado” quando, por

exemplo, questiona o comportamento do professor e quando, mais ao final da cena,

é convocado a falar, por “já ser grande”, mas sua proposta de acordo é

desconsiderada, como veremos a seguir mais detalhadamente.

Page 113: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

113

III - Do lugar do jovem no acordo

Olharemos agora para a participação das partes do conflito na construção dos

acordos, principalmente a participação do jovem neste momento do círculo

restaurativo. Entendemos, assim como na metodologia da Justiça Restaurativa que

os acordos devem ser co-construídos, com a participação de todos.

1. O acordo forçado

Iniciamos pelo acordo feito no Círculo 4, continuando a discussão que

vínhamos fazendo, pois esta cena ocorre na seqüência da que trabalhamos

anteriormente. É uma cena longa, porém essencial para a problematização que

propomos: a do lugar do jovem no círculo restaurativo, em especial na resolução do

conflito e realização do acordo. No seu transcorrer destacamos algumas passagens

e fazemos pequenos comentários, que serão aprofundados ao final.

F1 – Então, como é que você acha que pode ser resolvido? Ad – Ah, não sei. (silêncio) (está acuado) Av – Fala A (jovem)! Tá esperando! Ad – Ah se ele quiser continuar, ele que sabe. (eu não sei) F1 – Continuar o quê? Ad – O processo. F1 – Por quê? Você sabe a conseqüência de um processo? Ad – Porque, que nem, ele tá falando de arrastão e tudo, eu não tô envolvido em nenhum, que

a diretora sabe. Av – Isso nós vamos saber depois, isso é outra coisa, tamo falando agora. Ad – O negócio da grade também não F1 – Tudo bem. Então vamos por partes. Prof – Posso dar uma sugestão? A (jovem), que você, a partir de agora, seja respeitoso com

todos que estão lá na escola que ninguém tá lá pra ser desrespeitado, com os professores, com os inspetores, com o pessoal da limpeza, que limpa a sala pra você ter uma escola decente pra você estudar. Primeira coisa, o respeito que você terá que ter, a sugestão que eu to dando pra você: (1) ser respeitoso com todo mundo lá. A segunda sugestão: (2) que você vá pra sala de aula pra estudar , não ficar lá no pátio, nu da cintura pra cima, que eu vejo, ali não é o espaço pra isso, ali não é espaço pra isso, a escola é espaço de estudo. Então você vai pra escola, pra sala de aula, fazer as lições que os professores propõem pra você fazer, sair da sala quando você precisa realmente e não na hora você bem quer e entende, nem pede licença e sai. Isso é o seu papel como aluno, se você se compromete com isso, da minha parte, eu... morre por aqui. Agora, precisa respeitar os outros, assim como você quer ser respeitado, você precisa aprender a respeitar os outros. Os funcionários que estão lá estão lá pra fazer um trabalho de educação, educativo, pra ajudar você a aprender, e estudar, não é pra ser desrespeitado por você, nem pra ser xingado, então essa é a segunda sugestão. A terceira é (3) que você não agrida mais o patrimônio que está lá, ou seja, na hora da Educação Física, você vai, na hora que não é, você vai ficar na sala de aula, não precisa ficar cortando nada, subindo em muro, etc., danificando o que tem lá na escola. Só isso, (4) sai desses grupos que não vão te ajudar a crescer . Esses grupos que tem lá na escola, porque a gente vai resolver esse problema, porque a partir daqui abre-se um espaço pra gente resolver esses problemas que estão acontecendo na escola. A gente quer uma escola alegre, uma escola que seja acolhedora pro aluno, agora do jeito que está lá o ensino fundamental, os alunos, eles mesmo saem da escola por causa do que está acontecendo. Então você tem que se comprometer a isso.

Av – Aliás, eles nem saem, né, eles fazem tudo que não presta na escola mesmo, então tem que ver tudo isso, né.

Prof – Depois da audiência com o Juiz ele já aprontou, ontem com o professor, jogando as bolas, pra que isso A (jovem)?

Page 114: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

114

Ad – Ontem eu não joguei bola nenhuma. Prof – Tá aqui o relatório do professor. Ad – Jogar vôlei forte, a bola vai. Prof – Você jogou propositalmente. F1- E essa bola não é devolvida? Prof- Não. Ad – Tem a sala de aula e a quadra do meio, então se alguém chuta a bola ela fica em cima do

telhado. Quando o professor vê que tá faltando muita bola, ele manda o cara que mora lá subir e pegar as bolas, normal.

Prof – Só que essas bolas, propositadamente, segundo professor, é a quarta bola, são caras, são jogadas pra fora da escola. Quem está do outro lado pra pegar essas bolas a gente não sabe, a gente suspeita .

Av – Suspeita não, tem que, quando a gente fala tem que ir atrás. (pela primeira vez a avó se posiciona ao lado do jovem)

Prof – A gente suspeita que tem alguém lá pra receber. Mas por que que ele joga propositadamente essas bolas?

Av – Quem falou isso, foi o professor? Então eu quero ir lá falar com ele. Ad - Só que como que o professor que falou... Prof – (interrompe) Só estou citando um dos casos, só estou pedindo pra você se

comprometer. (repete as sugestões anteriores) Tô sugerindo que você assuma essas responsabilidades que na verdade são suas, como aluno, como você não tá cumprindo, então você cumpra daqui pra frente. (não está fazendo uma citação, mas uma acusação)

Ad – Só como o professor viu eu jogando... Se são dois professores, um fica na sala e o outro fica dentro da sala de aula.

Prof – Mas você vai se comprometer daqui pra frente? (repete as sugestões novamente) Ad – Vou. Prof – É isso que eu estou sugerindo que você faça, que, aliás, é seu papel como aluno em

sala de aula. Ad – Mas no mesmo dia que aconteceu esse negócio da lâmpada, vi o senhor regando, não

foi? Peguei a mangueira reguei e o senhor foi lá e perguntou meu nome, não foi? Aquele dia lá eu faltei com o respeito com o senhor?

Prof – (interrompe a fala) Não tô falando aquele dia. Pesq – Mas é importante ele falar um pouco também. (tento manter um espaço para a voz do

jovem) Prof – Sim , sim. Ad – Aí sendo que quarta-feira eu não desrespeitei ninguém, peguei um monte de florzinha, dei

pra fulana, dei pra todos os tios, elas deram beijinho em mim tudo. Mas só que como o professor falou, sendo que não dá pra ver se sou eu que jogo a bola, se o menino joga a bola aí o professor fala que é eu? Aí fica colocando meu nome no meio aí? Joga... eu só joguei uma, eu ia até pegar, mas o professor falou: “Não, deixa que depois o fulano vai lá e pega”. Aí eu falei: Tá bom professor, mas se o senhor quiser que eu pague outra, eu pago. O professor tá até de prova...

F1 – O que aconteceu não dá pra voltar atrás, mas daqui pra frente você acha que dá pra melhorar, que dá pra não se envolver? Às vezes também os outros tão no meio e aí entra junto? Então quando perceber que tem alguém depredando, fazendo alguma coisa, procura não tá junto. Porque às vezes tem casos que acontece, a pessoa entra, não sabe nem porque tá entrando, mas tá no meio.

Ad – Uhum. F1 – Então evitar, porque a escola é de vocês mesmo, é um patrimônio de vocês, vocês tão lá

pra aproveitar, fazer as coisas. Então tudo que acontece, quebrar uma porta, escrever na parede, tudo é prejuízo pra vocês mesmo. Os funcionários tão lá pra limpar, merecem respeito, porque não é um trabalho fácil, os professores também, da mesma maneira que respeita o pai, a mãe, tem que respeitar lá também, como você é como aluno também merece respeito. (silêncio) E você acha que dá pra fazer o que o professor sugeriu? (toma a versão dos professores como verdadeira, desconsidera as negativas do jovem)

Ad – Dá. F1 – Mas da boca pra fora ou porque eu acho que deve ser feito? Ad – Eu vou fazer porque eu acho que tem que ser feito. (não parece estar comprometido) F1 – Eu vou tá acompanhando tá bom, eu vou tá em contato com a escola, em contato com a

sua família, pra saber como é que tá as coisas, se você tá fazendo, se não vai tá mais seu nome envolvido na direção, procurar assistir as aulas mesmo não gostando de um ou outro professor que

Page 115: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

115

às vezes fica pega no pé, mas procurar freqüentar as aulas, entrar na sala de aula, evitar ficar no pátio. Dá pra fazer isso?

Ad – Uhum Profa – Me permite uma perguntinha? Que aquele passeio do Play Center, eu não sei, eu

não fui, mas parece que houve alguma coisa lá que você também tava envolvido. (outra acusação ao jovem, novamente de furto, nos momentos finais do círculo)

Ad – Não, já foi esclarecido já. Profa- Ah tá. Av - O que foi? O que aconteceu? (novamente avó não foi informada) Ad – É que tinha um menino lá que tinha roubado um discplay, aí falaram que tava 4, 5

moleques junto, aí nisso eles chamaram tudo, conversaram, mas ninguém sabia que menino que tinha roubado. Aí eu cheguei perto pra perguntar, aí perguntaram se eu era da mesma escola, aí conversaram com nós, chegou na escola, a diretora conversou com nós e falou que não deu nada.

Av – Engraçado, isso a gente não fica sabendo nada, é inacreditável ! Eu vou atrás dessas coisas tudo, (bate na mesa ) porque é inadmissível uma coisa dessas. As coisas que acontece com ele dentro da escola, no passeio... ah, isso é inadmissível! (bate na mesa ) Vai A (jovem) decide logo, que eu tenho que trabalhar, fala logo.

Ad – Tá bom. F1 – Você acha que tem que pedir desculpas? Você se arrepende de alguma coisa que você

fez, ou você acha que tudo que você fez foi correto? Ad – Não, desculpa. F1 – Desculpa pra quem? Ad – Pro professor. F1 – Mas você pede desculpa é de dentro pra fora? Desculpa do que? Do que você

realmente acha que tem que pedir desculpa? Ad – Do que eu fiz com ele. F1 - E o que você fez com ele? Ad – O negócio da lâmpada. (conflito não está claro) F1 – Então fala pra ele, não pra mim. Ad – Desculpa professor . Prof – Tudo bem, eu só quero que daqui pra frente seja o que eu acabei de falar: respeito com

os professores, funcionários, não deprede mais o patrimônio, freqüente as aulas, faça as lições...(silêncio)

F1 – Você se compromete a fazer tudo isso que o professor falou? (acordo unilateral que desconsidera o pouco que o jovem conseguiu falar)

Ad – Comprometo. (quase não se entende o que diz) F1- Compromete? (jovem confirma com a cabeça) Pesq – E vai dar pra fazer? Ad – Dá. Pesq - Dá? F1 – Mas vai fazer com convicção , ou vai fazer porque tá todo mundo aqui perguntando a

mesma coisa pra você? Porque é bem isso, fala que vai fazer porque tão falando tanto. Ad – Não, eu vou fazer. (solilóquio: Não vai fazer. Busca apenas sair desta situação do círculo,

ninguém parece acreditar que ele cumprirá o “acordo”) Pesq – É. A importância você sabe, o professor sabe, tá todo mundo dizendo né. (silêncio) F1 – Vou pôr que você se compromete a freqüentar as aulas, respeitar os professores, os

funcionários, evitar qualquer tipo de arruaça na escola, tá bom? (silêncio) Quando tiver algum problema A (jovem), procurar esclarecer, ir no coordenador pedagógico. É que a escola também tá deixando uma falha porque ela teria que chamar os responsáveis.

Av – Agora, quando o pai dele vir, porque o pai dele é caminhoneiro, quando ele vim ele vai resolver tudo isso, porque tem que resolver, eu acho errado, a escola tem que comunicar , seja lá o que for, ou é bom, ou é ruim, ou não presta não vale nada, ela tem que comunicar, é obrigação dela!

Prof – Mas por parte da escola, deve ter... porque... ela tem relatório de cada ocorrência... Av – Não, não foi nada... Prof – Eu também não sei... Deve ter as ocorrências, assim como essa que o professor

entregou, deve ter outras. Eu aceito a acareação tranquilamente, quando ele disse que a diretora disse que eu tinha xingado um aluno. Pode chamar, que a gente pode fazer a acareação.

Pesq – É que é importante também a família ficar sabendo, porque parece que não tá sabendo...

Av – Não sabe nada , nada minha filha, nada.

Page 116: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

116

Pesq – Mas tem coisas talvez que você não tá contando o que acontece, quando você é chamado na diretoria...

Av – Quando foi que ele comentou a mãe dele foi lá. É a única coisa, do resto nada, tem telefone, tem tudo, manda uma comunicação, dá uma suspensão. Tem que ter. Vamos supor que ele não deu, que ele não desse então, não compareceu, a mãe não veio (bate na mesa ), qual a obrigação da escola? Não vai entrar na escola, eu quero sua mãe e seu pai aqui. (bate várias vezes na mesa) Não tem nada disso. (família disponível)

Ad – Mas esse ano eu não tomei nenhuma suspensão não, nem advertência. Av – Bom, você pediu desculpa pra ele não pediu? E vai fazer o que ele falou não vai? Ad – Uhum. (quase não se ouve) Av – Então o resto você deixa. (duplo: chega!) F1 – Eu vou aparecer lá na escola, aí provavelmente eu vou chamar todos vocês. Av – Pode chamar, qualquer hora, qualquer minuto. F1 – Só tem uma coisinha que eu queria te falar: Cuidado pra não tá no meio de depredação,

pichação, porque eu já atendi alunos de outra escola, que coordenador, inspetor abriu o BOLETIM DE OCORRÊNCIA e o adolescente fica enrolado, toma cuidado, tá? Evita, se você ver tumulto, sai do outro lado, porque aí a coisa pode complicar pra vocês também. É o que eu falei no começo, você já tem um Boletim de Ocorrência, toma muito cuidado pra não se envolver em outro, porque o Juiz pediu pra vir pra cá, é uma Justiça informal, não é que não tem valor, tem valor sim , porque tudo isso vai ser documentado lá e vai ser juntado no processo que tá no Fórum. Mas evita se envolver num outro boletim , porque aí o Juiz puxa a ficha , vê que já tem um processo lá, aí ele vai entender se é caso de você vir de novo pra Justiça Restaurativa ou se é uma pena legal , uma coisa que você tem que fazer um trabalho voluntário, ou a família pagar uma cesta, aí fica a critério do Juiz. E pra você mesmo, porque a experiência não deve ter sido boa , você ter ido na frente do Juiz, no Fórum, desgasta a família inteira, você é menor de idade, tem que ser seu responsável. Então daqui pra frente tenta seguir com responsabilidade, sempre procurando fazer as coisas da maneira mais certa tá? Aí pra semana a gente vai ver o que faz esse outro problema da escola tá bom? Eu vou pedir pra vocês assinarem aqui. Eu vou pedir pra vocês voltarem mais uma vez aqui tá? Daqui uns 20 dias, pra ver como ele tá se portando .

Av – Aí o pai dele vem. F1 – Ou senhora também, um responsável... fica a critério. Vou marcar pro dia 14, tá?

(conversas paralelas) Av – Se ele não vir eu venho... Só que independentemente disso... meu filho pode ir lá e tomar

as providências . (buscar a parte do acordo que cabe ao professor e não é feito no círculo) F1 – Pode. Prof – Ver se tem relatório, se não tem... Av – Ah, porque é isso que eu quero, é isso que eu queria saber. F1 – A senhora tem todo direito , de ver o histórico dele, relatórios dele, as notas. Olha vão te

perguntar o que aconteceu aqui dentro, então o que aconteceu aqui dentro A (jovem), você não precisa falar o que foi falado, o que não foi, você só conta a experiência e fala: vamos procurar não fazer isso. Tá tudo bem, a gente já acertou. Evita escutar muito buchicho que isso é a melhor coisa, tá? Aí eu vou lá depois pra gente conversar com o restante, tá bom?

Ad – Tá bom . (Círculo 4)

Percebe-se, no início desta cena, que o jovem não consegue fazer uma

sugestão de acordo, está acuado, pois lhe fizeram tantas acusações que acredita

que o processo possa ter que dar continuidade no Sistema de Justiça Tradicional.

Quem sugere o acordo é o professor, que o repete diversas vezes e que

posteriormente é confirmado pela facilitadora. Não há, em nenhum momento a

participação do jovem ou de sua avó. É um acordo unilateral, não se refere à relação

professor-aluno, mas sim às atitudes do jovem. São feitas quatro sugestões pelo

professor que visam mudar os comportamentos do jovem, que deve aceitá-las.

Page 117: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

117

Podemos entender a colocação da avó, ao final do círculo, em relação à ida

dela e do pai à escola, para além do fato de confirmar os comportamentos do jovem.

Parece-nos que a avó busca também uma comunicação com a escola e informações

quanto às acusações de furto feitas ao jovem ao final do círculo. Além disso,

confirmar se o professor xingou ou não o jovem, visto que o professor negou o

xingamento e é tomado, no contexto do círculo, como uma verdade, pois novamente

o jovem é silenciado, suas afirmações a este respeito foram desconsideradas.

Além disso, para além dessas confirmações dos fatos, podemos perceber no

movimento da avó, uma busca, de certa forma, pela outra parte do acordo, uma

discussão, também, dos comportamentos do professor em relação ao aluno. Além

do jovem, apenas a avó o questionou, mesmo assim com muito cuidado para não

fazer acusações.

As falas do jovem, em que nega todas as acusações feitas, são

desconsideradas e ele é tomado pelos Personagens que não aceita, do aluno

“problema” e “violento”. Os elementos levados pelos professores evidenciam, para

todos, e para a surpresa da avó, que ele os desempenha. Suas tentativas de

justificar as acusações, ao contrário, parecem confirmar o Personagem.

As novas acusações, feitas ao final do círculo, deixam no imaginário dos

participantes, a possibilidade de envolvimento do jovem com aqueles atos, com os

furtos/roubos. A avó, que até então aparentava imparcialidade, pela primeira vez se

posiciona e passa a defender o jovem, que até esse momento estava sozinho. Fica

indignada com o fato da família não saber o que acontece, mesmo estando sempre

disponível e presente na escola.

O círculo não ocorre como um espaço onde se privilegiou o diálogo livre de

pré-conceitos e julgamentos, onde o foco é a relação que está em conflito e não os

comportamentos de um ou outro. Podemos perceber que, nos momentos em que o

jovem começa a “aceitar” o acordo que lhe está sendo imposto, não há de fato um

comprometimento, mesmo porque, fica muito evidente a sua intenção de fugir

daquela situação do círculo. Depois das acusações feitas ao jovem, sua avó também

se posiciona dessa maneira. O que lhes cabe, naquele contexto, é aceitar as

imposições e sugestões; e ao jovem: pedir desculpas.

Parece que no imaginário dos professores e da escola as ações atribuídas ao

jovem, para além dos Personagens aluno “problema” e “violento”, aproximam-se do

Personagem jovem “infrator”. Isso parece influir no fato de, no contexto escolar, as

Page 118: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

118

ações da direção da escola e dos professores aparentemente não incluírem o

diálogo com o jovem e sua família. Supomos que se trate de outro nível de resolução

dos conflitos/infrações: com imposições ao jovem de mudança do comportamento e,

se ineficazes, com a alternativa de acionar a polícia e encaminhar para o Sistema de

Justiça Tradicional.

2. Acordo entre adolescentes

No Círculo 1, no momento da construção do acordo, o adolescente sugere que

a sala precisa ser mais quieta e que ele poderia pedir licença a sua colega com mais

educação. A proposta dele de acordo é que ela não fique na frente do quadro e que

ela saia quando ele pedir. A adolescente concorda e diz que sairá da frente do

quadro e o respeitará. O adolescente diz que eles têm um bom relacionamento.

As mães são convidadas a entrar na sala novamente e as facilitadoras relatam

para elas o acordo que foi feito entre os adolescentes.

O adolescente, voluntariamente, pede desculpas à adolescente e ela diz que

não tinha a intenção de prejudicá-lo ao fazer o Boletim de Ocorrência.

Chama-nos atenção o fato do acordo ser realizado entre os adolescentes, sem

a participação das mães, que apenas garantem a legalidade (autorização) da

conversa entre os jovens.271 Apesar de ser interessante, por garantir que os

adolescentes sejam protagonistas na resolução de seu conflito e no acordo,

questionamo-nos sobre os motivos do círculo ser conduzido desta forma. Seria mais

interessante que as mães tivessem participado desse processo, onde se evidencia

que os adolescentes têm recursos para resolver seus próprios conflitos.

3. Acordo encobridor

No Círculo 3, o acordo não foi realizado pois uma das partes não estava

presente, entretanto algumas sugestões foram feitas:

M – Eu não vejo assim. Eu! Ele (pai) tem a opinião dele eu tenho a minha. Eu não vejo que é um caso de envolvimento de polícia, de jornal. Tem que colocar os dois juntos, vê o que ocorreu, você me ofendeu, eu te ofendi, ele segue a vida dele ela segue a dela.

Ad – Porque eu acho que a mágoa não passa assim, nem da parte dele e nem da minha. Então eu acho que uma desculpa é o mais correto. (Círculo 3)

E mais ao final do círculo retomam algumas possibilidades pra cessar o conflito: F1 – E o que vocês gostariam que fosse feito pra que não acontecesse mais isso e não

prejudicasse mais ela também? (dirigindo-se ao pai) 271 As facilitadoras pedem autorização às mães para conversarem a sós com os adolescentes, fato que remete aos procedimentos policiais e judiciais de escuta de menores de 18 anos, mas de fato não sabemos ao certo da necessidade de acompanhamento ou autorização de responsáveis nos círculos restaurativos.

Page 119: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

119

P – Que apaziguasse. Separa , cada um num canto, ficou insustentável. M – Eles que têm que amenizar entre eles. F1 – A gente pode intervir pra mudar a classe, já aconteceu nessa mesma escola... Ad – Eu acho que uma desculpa vai ficar bom pros dois, vai reconfortar os dois, a amizade

acho que não vai ter como, vai ser sempre colega. F1 – Independente, a gente pode também ir na escola e ver uma possibilidade da situação ser

diferente. (Círculo 3)

Apesar da jovem e sua mãe acharem que eles precisam conversar e pedir

desculpas, ainda assim o pai, principalmente, mas também a facilitadora, acham

necessário silenciar o conflito, apaziguá-lo, com a separação dos jovens. A mãe

tenta trazer o lugar dos jovens na resolução do conflito, no processo de construir um

acordo.

Parece-nos que o mero distanciamento não implica a possibilidade de um

perceber o outro, rever a relação e os Personagens atribuídos a cada um, e o

próprio conflito. A nosso ver, esse distanciamento precisaria vir acompanhado de

uma reflexão acerca dos lugares ocupados no conflito.

4. “Fazer-se de tonto”

No Círculo 2, também não há um acordo, pois uma das partes do conflito não

estava presente. Entretanto, uma sugestão é feita pela facilitadora para que o jovem

evite novos conflitos:

F1 – Tem que pensar duas vezes pra não entrar em outra fria, porque às vezes a gente perde a cabeça, é difícil às vezes controlar, mas a gente tem que... tem coisas que a gente tem que engolir, se fazer de tonta , pra não se prejudicar, né. Porque isso é transtorno pra todo mundo. Você é menor de idade, a família tem que ir junto porque tem que ir um responsável. Aí passou dos 18, aí você que vai ter que responder pelos seus atos, também é complicado porque muda toda a sua vida. Então procurar sempre... pensar direitinho... respirar. Tem as vezes que é melhor a gente fingir que não ouviu, passar por bobo do que responder, né? Que tem casos que às vezes a gente acaba se prejudicando. (Círculo 2)

Evidencia a importância de se “silenciar”, e desconsidera o movimento de

resistência do jovem. Entretanto, é importante lembrar a situação de violência a que

o jovem estava submetido na relação professor-aluno, onde se manteve, por

bastante tempo, “silenciado”. Vitimiza o jovem, despotencializando seu movimento

de reagir às agressões, potencializando o Personagem que até então

desempenhava, de aluno “silenciado”.

IV - De como o jovem é afetado pela atribuição de P ersonagens

Pudemos perceber, nos quatro círculos que acompanhamos, como foram

atribuídos aos jovens Personagens pelos quais são identificados. Essa atribuição,

em certa medida, foi co-construída nas relações em jogo. Preocupa-nos perceber

Page 120: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

120

que, em alguns casos, os Personagens são impostos aos jovens e eles são olhados

pelos estereótipos, com pouca ou nenhuma possibilidade de serem percebidos em

sua subjetividade, o que reduz muito a possibilidade de mudança nas inter-relações.

Isso fica bastante evidente nas falas do jovem e sua irmã, presentes no Círculo

2, onde podemos olhar com mais atenção como o jovem foi afetado pelos conflitos e

pela imposição dos Personagens aluno “problema”, “silenciado” e jovem “violento”.

I – Eu só o vi nervoso uma vez na vida, bravo dessa forma. [...] E pra ele se alterar dessa forma pra agredir uma pessoa, porque não deixa de ser uma agressão, verbal, ele chegou ao extremo dele.

Ad – Eu tava tremendo muito, até me levou pro hospital. I – É verdade, ele quase desmaiou lá de tão alterado que ele tava. A coordenadora até ligou lá

pra casa pra alguém levar ele pro pronto-socorro porque tava passando mal. (Círculo 2)

A irmã do jovem relata seu desejo de proteger o irmão das agressões da

professora, tomando para si a responsabilidade de ir em defesa de um jovem que foi

silenciado, que não tem o direito a voz na relação professor-aluno e não consegue,

sozinho, proteger-se destas agressões:

I – Eu queria conversar com ela, ele que não quis. Porque... eu gosto de pôr todos os pingos nos is, preto no branco, eu ia conversar diretamente com ela, mas ele não quis porque achou que eu ia brigar, falar alguma coisa, não que eu sou uma pessoa agressiva, que vai bater, nada disso. É que verbalmente ele sabe que eu sei falar muito bem e chego até a colocar uma pessoa no lugar só com uma simples palavra. Mas ele não queria que eu falasse nada porque ele pensou que eu poderia prejudicá-lo com ela. Então só falei com a coordenadora mesmo, ela me aconselhou. Como o BO já foi pra frente... que o mínimo que ia acontecer era isso, uma reunião restaurativa entre os dois. Como a gente nunca lidou com esse tipo de coisa, nunca lidou com advogado, com polícia, nada disso, a gente nem sabia como agir, mas ela deu bastante assistência pra gente, aconselhou... até pra ele mesmo, que ele ficou mal, foi uma semana muito ruim, tanto pra ele como pra gente ver como ele ficou deprimido, que nem computador... adolescente é computador, televisão, vídeo game... ele não fazia nada, dormia o dia inteeeiro, só queria fica dormindo. Então foi uma semana muito difícil, depois também a gente conversou novamente. Não é bem assim, que não podia ficar desse jeito, que a vida continua, mesmo que tenha um BO, aí foi que ele começou a voltar a ser o Jonathan que ele era, computador, vídeo game, som alto, tudo... (risos de todos).

F1 – É que pra ele foi... Ad – É. Nunca aconteceu isso comigo, aí fica meio que abatido, né? Porque... nossa tá

acontecendo mesmo? E no momento eu fiquei mais nervoso porque eu sempre me prejudiquei por causa dela. E agora prejudicar de novo, caramba! (Círculo 2)

Podemos perceber, na fala da irmã, um Personagem que se opõe ao

Personagem aluno “silenciado”, destacando suas característica que diz de um

Personagem “articulado”, contrário ao assujeitamento imposto ao jovem/aluno.

Entretanto, o jovem consegue identificar aspectos positivos no

encaminhamento do conflito para a Justiça, no caso a Justiça Restaurativa, como

segue:

F1 – Quando você recebeu a intimação, como é que você se sentiu? Ad – Ah, no momento me senti meio que prejudicado, né? Pela minha ação, né? Fiquei

arrependido de ter feito aquilo. E... pensei que eu podia ter mudado a situação e ter escutado o que ela tinha falado e descer, falar com a coordenadora, ela falar com os meus responsáveis. E no momento, não é que eu fiquei feliz, né, mas eu fiquei meio que ah, pelo menos vai pro Fórum e ela vai ver que eu tenho família, que ela pensava que eu não tinha, sei lá, ela pensava que eu era um bobo, achou que ia ficar pisando em mim toda hora.

Page 121: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

121

F1 – Você acha que pra ela você não tinha ninguém, que ninguém se incomodava com você. Ad – Acho que ela pensou que ia continuar pisando em mim e eu ia ficar quieto. Achei até bom

porque ai pelo menos resolve civilizadamente, né, não com... porque eu sei que se eu fosse reclamar na superior dela ia continuar a mesma coisa. Porque um aluno contra um professor é meio difícil a palavra do aluno. (Círculo 2)

O jovem deixa de ser o aluno “problema”, porém não é reconhecido na

mudança. Silenciado, chega a ser identificado como jovem “violento”, Personagem

que não desempenha e com o qual não se identifica, mas, assim mesmo, é nele

enquadrado, pois agora é um jovem “fichado”. Ver-se nesse Personagem assusta o

jovem, afeta sua subjetividade e mesmo a percepção que tem de si, pois sabe que

ser “fichado” significa arcar com uma carga emocional bastante forte e de muito

preconceito.

O jovem reforça a idéia de que, no contexto escolar, o aluno não tem voz

quando diz de um conflito na relação professor-aluno. É preciso que a família

reafirme e dê potência a sua queixa.

Na seqüência, aprofundaremos a discussão referente à família, no contexto

dos círculos restaurativos.

V - Do lugar da família

A família e cada um de seus membros aparecem, nos diferentes contextos, por

diversos Personagens, atribuídos ou desempenhados. De forma geral, assim como

aos jovens, também às famílias são atribuídos alguns Personagens estereotipados e

conservados, como veremos a seguir. Além disso, podemos identificar o

desempenho de alguns Personagens por pessoas da família que dizem de sua

função em relação ao jovem: como causa dos comportamentos dos jovens, como

defensoras e capazes de dar voz ao jovem, como quem não sabe o que acontece e

como quem não tem voz.

1. Família como causa do conflito

No Círculo 2, a conversa reservada entre professor e aluno que discutimos

anteriormente traz outros elementos, como poderemos ver a seguir. A irmã do

jovem, já quase no final do círculo restaurativo, insiste para que ele relate este

trecho da conversa que havia ficado de fora anteriormente:

I – Fala pra ela (F1) o que a professora falou pra você no dia que vocês sentaram juntos... que a coordenadora achou ruim... que tinha que ter chamado eu...

Ad – Ela falou pra mim... porque eu falei que eu tô fazendo o máximo... pra mostrar pra ela que eu não era aquilo que ela pensava...

Page 122: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

122

I – O que ela falou da tua família... Ad – Calma! Porque eu tô cansado de tentar mostrar pras pessoas, porque eu quero passar de

ano, que eu tô melhorando e que ela só ta prejudicando... aí ela falou que não sei o que, que se eu tava com um problema familiar, que ela ia me ajudar... Aí eu falei: “Olha! Familiar... não tenho nenhum problema familiar, graças a Deus, eu só quero é resolver o meu problema é com você, não bota minha família no meio”. Ela falou: “Nossa! Não precisa ficar assim!” Aí ela até falou: “Você não quer que eu procure um psicólogo pra você, a gente só tá aqui pra te ajudar”. Eu falei que não tinha necessidade. Aí ela até comentou que adolescente... aí começou a distorcer... “que você tem um problema em casa, vem e desconta aqui na escola, eu sei que vocês adolescente é assim mesmo”. Aí eu falei: “se você sabe então porque você não ajuda... e outra, eu não tenho nenhum problema, acho que quem deve ter algum problema acho que é você, porque todo dia você vem revoltada...” (Círculo 2)

A professora, tentando ajudar o aluno “problema” que está na sua frente, intui

que o problema deve ser familiar, algo que acontece em casa e que ele traz para a

escola, prejudicando a relação de ensino professor-aluno.

No Círculo 3, a família como possível causa dos conflitos também aparece:

M – Chegando lá (hospital) a recepcionista perguntou: “tá machucada?” Eu falei: “aparentemente não, mas acredito que por dentro ela esteja machucada. Porque você imagina, você nunca apanhou dos pais, de repente uma pessoa que aparece do nada, você nunca viu, nunca conviveu, te atira uma latinha”. Aí fomos pra assistente social e ela perguntando se ela sofria agressão dentro de casa, como era a relação minha com o meu marido... e eu só na escuta. (Círculo 3)

Nesse círculo, conforme discutimos anteriormente, pudemos perceber a

mesma preocupação da assistente social que atende a jovem no hospital. Ela

preocupa-se em identificar a existência de conflitos ou violência familiar.

Sabe-se que já se tornou conserva, entre diferentes profissionais, atribuir a

causa de “desvios de comportamento” de crianças, adolescentes e jovens a

possíveis causas familiares como violência doméstica, abusos e separação dos pais.

2. Pai silenciado, passivo

No único círculo em que um pai esteve presente (Círculo 3), pudemos perceber

que ele se expressou pouco e, muitas vezes, foi necessário que os facilitadores

interviessem para que o mesmo conseguisse falar, mesmo sendo parte do conflito:

P – Eu posso falar a minha parte agora? F4 – Claro! Com certeza! F1 – Tanto pode como deve! Ad – Calma pai, deixa só eu complementar... ele falou que a minha voz incomoda ele, a minha

risada. M – Não é culpa dela. O grupo exclui ele. Por que será? F2 – Agora eu vou dar a palavra pro pai. O pai retoma a versão da jovem e da mãe e acrescenta: P – Eu vou agredir com o cara aqui dentro? Dentro da delegacia. Eu falei: Ela tem que

continuar estudando. Ela pode continuar na escola? Acabou aqui. Aí eu e a mãe dela indo buscar todo dia na escola, pra evitar esse tipo de problema... (Círculo 3)

Page 123: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

123

O pai é interrompido pela esposa e pela filha e, em outros momentos, quando é

feita uma pergunta a ele, quem responde é sua esposa ou a filha. É preciso que os

facilitadores garantam espaço para ele falar. Ele não participa das discussões, nem

verbalmente, nem com olhares ou expressões. Apenas acompanha as discussões,

com uma postura que parece, por vezes, arrogante, por outras, dando pouca

importância ao trabalho que está sendo feito no círculo restaurativo.

3. Família em defesa do jovem

Podemos notar, em todos os círculos acompanhados, o desempenho de

Personagens que vêm em defesa dos jovens, nos diferentes contextos. Essa defesa

aparece na situação de conflito ou no círculo restaurativo.

No Círculo 1, a mãe da adolescente, que estava envolvida no conflito,

preocupa-se com a segurança da filha em relação ao adolescente que a agrediu.

Procura defendê-la de futuras agressões.

No Círculo 2, fica evidente que, antes de saber do conflito entre o jovem e a

professora, a família do jovem não podia protegê-lo das agressões que sofria da

professora. Depois de saber do jovem o que estava acontecendo, as constantes

agressões, a família toma providências, conforme conta a irmã:

I – Mas isso já havia acontecendo, de ele não entrar na aula dela antes desse ocorrido porque ele já se sentia agredido por ela verbalmente. Tanto que depois eu fiz uma ocorrência na delegacia de ensino, de bullying. Aí que a gente ficou sabendo de outros fatos de agressão a outros alunos. (Círculo 2)

No Círculo 3, a mãe da jovem descreve sua preocupação e incômodo ao saber

que sua filha foi agredida:

M – Tinha uma viatura da polícia de SCS com ela, e ela estava chorando, ela estava alterada. Ela falou: o moleque me bateu. Como mãe, tanto eu quanto ele, nós nunca batemos nela, nem de criança e nem de adolescente, sempre procuramos conversar. (Círculo 3)

Essa mãe percebe também que sua família, como um todo, foi exposta a uma

situação de violência com a qual não costuma lidar:

M – Não quero ficar indo em delegacia, em fórum, porque eu tenho um filho homem, o que acontece dentro do meu lar é retrato pra ele, pra ela não, que ela é mulher, mas pro meu filho vai retratar pra ele lá na frente. Eu entrei na escola às 7hs, tô aqui sem almoço, sem banho e ele não tá aqui. Então tá bom, se ela é um fardo pra ele na escola, ele não tem mais ela.

F1 – E ela não vai perder o ano? M – Não, porque entramos com o pedido médico, já conversei com a direção. F4 – cochicha com F1 F1 – O ideal seria ele vir? M – Eu não virei mais, como eu respondo por ela, eu acredito que ela não virá mais, porque eu

tô expondo meu filho, tô tirando ele do lazer dele. P – Eu vou falar sinceramente, pra mim encerrou aqui, se ele quiser... (Círculo 3)

Page 124: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

124

Percebe que a jovem ficou exposta durante o registro de Boletim de

Ocorrência, conforme discutimos no eixo temático rota do conflito, e demonstra

preocupação em relação ao filho, de aproximadamente 10 anos, que está presente

no círculo, porém sem participar.

Explicita que também se sente desrespeitada ao comparecer no círculo, pois

está ali por mais de 1 hora, expondo a si e a sua família, e é informada que precisará

voltar para finalizar o círculo. Nesse momento, prefere não dar continuidade ao

círculo restaurativo, sente que o rapaz está debochando deles. Visando sua

proteção e de sua família, prefere que, nesse momento, a filha fique afastada da

escola para fazer uma cirurgia que é necessária. O pai apóia a decisão da esposa,

desejando que o círculo não tenha continuidade.

No relato que segue, podemos perceber o Personagem da mãe “defensora de

sua cria”, não aceita a agressão sofrida por sua filha e enfrenta o rapaz:

M – Ele entrou. Ele encarava nós. Ele olhava pra nós e nós olhava pra ele. Aí o delegado saiu da sala. Aí eu falei pra ele: Bata nela agora! Mas não que eu fosse pra cima dele, eu queria ver ele batendo nela, porque se ele bateu nela na sala, queria ver ali, no meio dos pais, dos policias, num ambiente de segurança... aí ele ficou com cara de deboche, tirando sarro com a minha cara. Ele estava sentado bem de frente e ele encarava nós, não tinha outro ambiente. Eu ia desviar meu olhar por quê? Eu não matei, eu não roubei, eu não fiz nada contra ele. Ele dava depoimento e olhava pra mim. Mas ele dizia: elas que estão olhando pra mim. Quando eu converso com a pessoa eu olho nos olhos, então não tinha onde eu colocar meu olhar. (Círculo 3)

Apesar de afirmar que não agrediria o rapaz, percebe-se que o Personagem da

mãe “defensora da cria” tem uma função clara: defender sua filha e família e evitar

outras agressões à jovem.

Apesar de estar tomada pelo Personagem, podemos perceber que essa mãe é

capaz de afastar-se dele e tentar se colocar no lugar do rapaz, olhar para ele

tomando o seu papel e buscando compreender os motivos da agressão:

M – Pagar com serviços, eu não queria isso. Colocar os dois frente a frente pra ver o que aconteceu. Esclarecer pra mim, pro pai dela o porquê da agressão. Eu cheguei a uma conclusão que alguma coisa nela incomoda ele. Alguma coisa aconteceu, alguma coisa ela pode ter feito, inconscientemente ou conscientemente, que machucou ele e que foi o momento pra ele atirar ali e se defender. Eu, como mãe, como educadora, como sociedade, eu vejo assim, alguma coisa nela o incomoda. E o que é? Só ele pode dizer, eu não posso dizer, ela não pode dizer, ninguém, só ele. Então por que ele não tá aqui? Se ele não veio, futuramente eles não podem freqüentar a mesma sala. Tanto é que agora ela tá afastada porque voltou o problema no joelho, a gente tá correndo atrás de cirurgia. (Círculo 3)

Apesar de continuar sem compreender os motivos da agressão, um não-dito

paira no ar, inveja, mas ninguém pode afirmar ser esse o motivo da agressão, o

rapaz não está presente. Um facilitador verbaliza esse motivo quando faz uma

tomada do papel do rapaz e a família parece acreditar ser esse o motivo do conflito,

mas é preciso ouvi-lo diretamente do rapaz.

Page 125: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

125

Outro aspecto importante é perceber como a mãe, mesmo tomada pelos afetos

de seu Personagem “defensor”, pode despir-se dele e tentar aproximar-se

afetivamente do rapaz para compreender sua motivação. Sabe-se que a capacidade

e disponibilidade de sair do Papel e Personagem que desempenha e experimentar-

se no contra-papel, no lugar do outro, é saudável e possibilita a empatia e percepção

dos afetos desta inter-relação. Este é um importante caminho para co-construção e a

mudança de relações que estão em conflito.

No Círculo 4, podemos perceber a emergência de um Personagem que vem

em defesa do jovem, a avó “que bate na mesa”.

Av – Se ele (professor) xingou também a mãe dele, por sua vez, piorou, ele não tem que xingar ninguém, entendeu? Porque professor que xinga e fala, ofende os outros... Então, tem um monte de coisa aí que tem que ser apurada, né.

Entretanto, a emergência deste Personagem da avó, “que bate na mesa”, não

faz uma defesa irrestrita do jovem, mas busca perceber o conflito em seu aspecto

mais amplo, considerando a fala de todos e, durante a maior parte do círculo fica

imparcial, passando a defender o neto apenas quando percebe que ele pode ter sido

agredido também e quando lhe são feitas acusações mais graves, conforme vimos

anteriormente.

4. A família surpreendida e a escola que não fala

Em todos os círculos acompanhados existe algum elemento que surpreende a

família, seja pelo Personagem desempenhado ou atribuído ao jovem na escola, que

não conheciam, seja pelo próprio conflito, que não foi informado à família.

No primeiro círculo, a mãe do adolescente é surpreendida pela convocação

para a audiência, pois não havia sido informada pela escola do conflito que ocorrera

envolvendo seu filho. Fica surpresa com o fato da escola não a ter chamado para

uma conversa.

No Círculo 2, tanto a família quanto a escola são surpreendidos pelo conflito,

pois nem o jovem e nem a professora relatavam as agressões ocorridas entre eles.

A irmã, que não conhecia o Personagem aluno “silenciado”, cobra que o irmão

deveria ter contado antes, para que pudessem tomar providências e que a situação

não se agravasse.

No Círculo 3, o elemento surpresa refere-se à intimação do pai para audiência,

visto que nem ele nem sua família sabia, até o dia da audiência, que o rapaz havia

feito um Boletim de Ocorrência de ameaça contra ele.

Page 126: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

126

Entretanto, é no Círculo 4 que os elementos surpresas estão mais presentes.

Em relação aos Personagens aluno “problema” e aluno “violento”, atribuídos ao

jovem e que a família não conhece; e em relação ao conflito entre o jovem e o

professor, de que a família não tinha sido comunicada pela escola.

Av – Não teve um comunicado, que eu acho errado, porque a obrigação da escola era chamar a mãe, o pai, tem que comparecer, vamos ver o que é. Não foi comunicado, quando eu vi já veio pra ir na audiência, até o Juiz falou, tem que comunicar, ele achou errado, a escola tem que comunicar, ninguém sabia, foi de supetão. Porque ele trabalha, ele trabalha com meu marido, chegou lá ele até assustou, meu marido ficou que quase dá um troço nele.

E completa em outro momento do círculo:

Av – Tem só uma coisinha que eu quero saber, não quero nem pensar em defender ele, eu só quero... por que que tudo que ele fez, como o senhor tá falando, não é comunicado aos pais, por que não chama a mãe? Vamos conversar, ele tá fazendo isso? Então vai expulsar, vamos fazer qualquer coisa, porque que não é chamado? A mãe foi chamada pras reuniões, ela foi. Mas essas coisas que o senhor tá falando não falou não. Aí eles mandam ela assinar lá na hora. A escola também tem muito erro. Aliás, eles nem saem, né, eles fazem tudo que não presta na escola, então tem que ver tudo isso.

Em relação aos Personagens aluno “problema” e aluno “violento” que são

apresentados à avó, ela não reconhece nele essas características, pois o jovem que

ela conhece é o que trabalha, não sai de casa e é esse que ela tenta proteger de

influências negativas, como segue:

Av – Olha, ele apronta só se for dentro da escola, só se for lá dentro que eu não to vendo. Mas ele não sai pra nada, ele trabalha, ele não tem nem lazer, porque ele fica já lá dentro de casa mesmo de tanto medo que eu tenho, que eu que cuido, eu tenho medo dele sair por aí, droga que mais rola na porta de escola, isso eu sei, eu morro de medo é disso, a coisa que eu mais peço pra ele é isso, droga. Então eu falo pra ele, você não vai brincar, na festa não deixo, quer ir aqui, não deixo, até o Juiz falou, ele não pode, ele tem que ter lazer também, mas o meu medo dele sair e aprontar. Se ele apronta é só dentro da escola. Porque fora dali até o caminho de escola, eu vou levar, eu vou buscar, os 4, tem mais 3. Eu cuido dele, vou levar na escola e busco. Ele não faz nada? Eu não sei, só se for na escola, ele não sai de casa.

Ao ser surpreendida pelos Personagens atribuídos ao jovem pela escola, a avó

sente-se ofendida e cobrada no seu papel de responsável pelo jovem, porém

também percebe suas limitações e as da escola, que não se comunica com a

família.

Av – A família dele é decente, não é pilantra, não é sem vergonha, a gente educa ele, não vou passar a mão na cabeça dele não, nem vou dizer que ele é santo, mas a escola devia ter informado a gente, é obrigação, ele tá lá dentro, ele não tava na rua, ele tava lá dentro, tinha que comunicar a gente.

Page 127: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

127

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não admito, minha esperança é imortal. Eu repito, ouviram?

Imortal! Sei que não dá para mudar o começo

Mas, se a gente quiser, Vai dar para mudar o final!

Elisa Lucinda

De forma geral, os jovens constroem suas identidades com base no que está

estabelecido no mundo adulto, com suas normas e formas socialmente adequadas

de comportar-se. Entretanto, uma parcela dos jovens questiona as normas impostas

das mais diferentes formas e nos mais diferentes espaços. Muitas vezes, esses atos

de resistência e de manutenção de sua dignidade, da sua subjetividade, são

criminalizados pela sociedade, como se pode perceber em muitos dos casos

encaminhados à Justiça Restaurativa, em que conflitos relacionais escolares, entre

jovens ou entre jovens e adultos, são encaminhados à Justiça. Tornam-se, portanto,

objetos de intervenção policial e legal, ao invés de se buscar a construção de

soluções no próprio contexto escolar.

O que pudemos perceber é que o conflito segue os caminhos institucionais

até chegar ao círculo restaurativo. Mesmo nesse contexto percebemos, por parte da

escola, uma falta de envolvimento na resolução dos conflitos, pois, de forma geral,

não comparecem ao círculo.

“Assujeitados”, os professores têm demonstrado atitude defensiva e acuada diante de situações em que não se percebem capazes de enfrentar a relação pessoal com seus alunos, sobretudo se eles são adolescentes e transgridem a norma. [...] mecanismos defensivos de uma ameaça ao não reconhecimento do profissional da educação como “sujeito” ativo na condição educativa.272

A escola, apesar de resistir, tem a função de socialização de crianças e

jovens na contemporaneidade, visto que os outros espaços de socialização foram se

restringindo, produzindo um afastamento destes da “vida real”, em sociedade. O que

se vê é que os impasses e conflitos de convivência passam a ser mais freqüentes no

contexto escolar.273

272 Grandino, p. 149, 2001. 273 Castro e Correa (2005).

Page 128: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

128

Conflitos e divergências são, em geral, contidos e abafados, visto que geram

dispersão em relação ao que deve ser alcançado: a reprodução dos conteúdos

escolares do mestre para o aluno e a internalização das regras de conduta.274

O que se percebe, inclusive nos conflitos que chegam aos círculos

restaurativos, é a dificuldade de lidar com os conflitos no próprio contexto escolar.

Pudemos perceber que muitos facilitadores capacitados se afastaram da

prática. Este fator sobrecarrega os facilitadores que estão atuando e enfraquece a

possibilidade de transformação comunitária por meio da Justiça Restaurativa.

Destacamos que, se não houver um investimento, com novas capacitações, e,

principalmente, com valorização dos facilitadores, a continuidade e potência das

práticas podem ser afetadas.

Além das ausências da escola e de facilitadores nos círculos restaurativos,

pudemos perceber, também, que algumas pessoas diretamente ligadas ao conflito

não estiveram presentes, em especial a pessoa que registrou o Boletim de

Ocorrência, identificada como “vítima” no Sistema Judicial Tradicional. Por isso,

consideramos essencial desenvolver estratégias que possam favorecer a

participação da “vítima”, visto que as pesquisas até então realizadas parecem

apontar certa resistência destas em participar dos processos restaurativos. Além

disso, no transcorrer dos círculos, ficou evidente a necessidade da presença de

outras pessoas relacionadas ao conflito, que, porém, não foram convidadas. Essas

ausências dificultaram a condução dos círculos e a real problematização dos

conflitos.

Castro e Correa, ao analisarem processos participativos de jovens no

contexto escolar, observaram a dificuldade de ouvir e ser ouvido pelo outro, pelo

colega:

Ao se propiciar aos jovens um espaço livre de fala e reflexão, parece “vir à tona” uma massa virulenta de emoções que entope as vias de comunicação: são queixas, ódios e ressentimentos, desconfianças e hostilidades.275

As pesquisadoras consideram ainda importante, antes da construção de

ações coletivas, “construírem uma sentimentalidade propícia à troca de idéias.”

Afirmando, ainda, a importância dos adultos propiciarem esse movimento.

O suporte institucional da escola é fundamental nesse processo, quando professores e a direção acreditam na capacidade dos alunos e lhes dão

274 Castro e Correa, p.20, 2005. 275 Castro e Correa, p. 21, 2005.

Page 129: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

129

crédito. Significa um investimento paciente nas tentativas que os jovens ensaiam, tímida e canhestramente, de assumir responsabilidades de sentir e dizer.276

Destacamos esses processos essenciais também nos processos

restaurativos, onde a percepção do outro e a possibilidade de colocar-se no lugar do

outro, para além de racionalizações, potencializam os processos de mudança inter-

relacional a que se propõem as práticas restaurativas.

Outro aspecto relevante é que o círculo, de forma geral, é conduzido visando

a explicitação dos fatos, a verdade concreta e racionalizada do fato. O que pudemos

perceber é que não há uma condução visando uma aproximação afetiva entre os

participantes, para que se possam colocar emocionalmente no lugar do outro. Tal

tarefa exigiria maiores investimentos no tocante à formação dos facilitadores.

Em relação à imparcialidade do facilitador no processo restaurativo, pudemos

perceber que este é um processo complexo, visto que os facilitadores estão

atravessados por outros Papéis sociais e, deixá-los de lado para desempenhar

apenas o Papel de facilitador, requer capacitação e prática. O que percebemos é

que, em diversos momentos, a atuação do facilitador dizia de outro Papel social, de

mãe ou de educadora, principalmente em momentos de aconselhamento aos jovens.

O que percebemos é o estereótipo do jovem se estender desde as relações

nos contextos escolares e comunitários até o do círculo restaurativo, até porque se

dá como um desdobramento desses contextos. Assim, aos jovens que estiveram nos

círculos restaurativos foram atribuídos Personagens, estereótipos de

comportamentos que perpassavam, principalmente, a relação professor-aluno. Seja

no contexto do conflito ou no próprio círculo, foram-lhes atribuídos Personagens:

“problemático”, “silenciado”, “violento”, “homossexual”. Todos com forte carga de

pré-conceito. Em alguns momentos, pudemos perceber que os jovens aceitam o

Personagem, em outros, que o rejeitam e têm movimentos de não assujeitamento,

de resistência. Do lugar de quem se preocupa com a transformação do outro, o

drama se dá quando o jovem incorpora o Personagem atribuído ou vive a agonia de

lutar contra, de resistir.

Nesse sentido, as ações consideradas violentas, no interior dos espaços escolares, podem ser compreendidas como sinais de alerta, como manifestações pouco elaboradas, mas contundentes, de alunos pretendendo ser ouvidos e pleiteando, de alguma maneira, esse pertencimento nas agências de socialização e o reconhecimento de sua condição de sujeitos.277

276 Castro e Correa, p. 21, 2005 277 Grandino, p. 145, 2001.

Page 130: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

130

A participação dos jovens nos círculos restaurativos mostrou-se como um

aspecto que deve ser problematizado pelas práticas restaurativas, pois visa, muitas

vezes, a confissão do jovem, seu pedido de desculpas e a promessa de que mudará

seus comportamentos.

Em relação aos acordos, percebe-se uma forte condução por parte dos

adultos presentes no círculo, sejam eles professores, facilitadores ou familiares.

Acordos feitos sem a efetiva problematização do conflito e de seus desdobramentos

para as pessoas e relações envolvidas. Acordos unilaterais, impostos aos jovens.

Acordos que visaram o afastamento das partes e que buscaram silenciar o conflito.

Em apenas um dos círculos o acordo foi realizado entre os jovens, pois estavam

presentes as duas partes do conflito e a relação entre eles era, a princípio,

horizontalizada; referia-se a um conflito entre colegas de sala.

As famílias aparecem em algumas situações como causa do conflito ou dos

comportamentos dos jovens. Muitas vezes são surpreendidas pelos Personagens

atribuídos aos seus filhos, irmãos ou netos, afirmando que a escola não comunica a

elas fatos que ocorrem no contexto escolar. Nos círculos que acompanhamos, em

sua maioria, são as mulheres da família (mães, avós e irmãs) que acompanham os

jovens nos círculos.

De forma geral, o aspecto protetor e defensor da família em relação ao jovem

se destaca. Porém, pudemos ver, por exemplo, uma avó que busca ser imparcial no

círculo, não desempenhando imediatamente a função de proteção e defesa do

jovem, mas, ao perceber que o mesmo estava sofrendo acusações e sendo

assujeitado, revolta-se e passa a defendê-lo, buscando encerrar a situação de

sujeição.

Os círculos restaurativos, se comparados ao Sistema Judicial Tradicional,

possibilitam um espaço de diálogo. Entretanto, não deixam de ser fortemente

atravessados pelas relações de poder adulto-jovem e, em específico, pela relação

professor-aluno. Relações verticalizadas e de dominação, onde os jovens são

objetos da ação e proteção dos adultos. Dessa forma, repetem-se no contexto do

círculo as práticas e mecanismos utilizados em diversos contextos para a sua

educação, controle e formação pois, também nesse espaço, o foco prioritário é a

mudança dos comportamentos “inadequados” dos jovens

Com isso, vemo-nos diante de um dos numerosos paradoxos da atualidade: quanto mais se alargam e se reconhecem as especificidades do ciclo vital da infância, dos direitos a ela assegurados em leis e documentos, tanto mais se

Page 131: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

131

criam práticas de coerção e controle, sob argumento de proteção, e tanto mais, também, se acirram os conflitos entre adultos e crianças e as situações de violência a que os mais jovens estão expostos.278

Pudemos perceber que a proposta restaurativa de proporcionar um espaço

diferenciado, valorizando a participação de todas as pessoas não consegue, ainda,

possibilitar a participação efetiva do jovem para além dos Personagens que lhe são

atribuídos. No espaço dos círculos são reproduzidos os modos sociais dos adultos

relacionarem-se com os jovens. Ora, essas mudanças devem ocorrer no cotidiano

das diversas instituições vinculadas ao atendimento aos jovens, além da reflexão

dos adultos de seu Papel frente aos jovens contemporâneos.

Na sociedade contemporânea democrática, a nova concepção de crianças e

adolescentes como sujeitos de direito, convocados à participação em relações

simétricas e bidirecionais, esbarra nos limites de recursos dos adultos para

reconhecê-los como tal.

As gerações anteriores se constituíram como sujeitos em uma ordem e referências distintas das atuais, em que direitos individuais e civis não eram reconhecidos, tanto pela condição menorizada que crianças e adolescentes viviam antes, como também, de maneira mais ampla, durante o período do regime autoritário.279

Destaca-se a importância da desconstrução dos Papéis conservados dos

adultos, pois são convocados a relacionarem-se com o jovem contemporâneo. Neste

novo contexto, de diálogo e de relações horizontalizadas, exigem-se modificações e

maior espontaneidade no desempenho dos Papéis. “Fortalecer os adultos pode

significar o fortalecimento das ações que devem tomar nos lugares de referência,

tais como a família, a escola e a comunidade em geral.”280

Sabe-se que este é um processo complexo e que inclui toda uma mudança

nos relacionamentos entre jovens e adultos, visto que, no contexto brasileiro, por se

terem constituídos como sujeitos em um contexto ditatorial, muitos adultos de hoje

têm dificuldades de acolher as mudanças que ocorreram nos últimos anos nas

relações entre adultos e jovens. Vivenciaram tão fortemente, inclusive nas relações

jovem-adulto, aspectos punitivos e de assujeitamento, que a reconstrução dos

Papéis sociais adultos e dos modos de relacionar-se com as novas gerações exigem

esforço.

278 Grandino, p. 98, 2007. 279 Grandino, p. 46, 2007. 280 Grandino, p. 108, 2006.

Page 132: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

132

São evidentes e destacados, por diversos autores, os ganhos que têm sido

proporcionados pelas práticas restaurativas em relação às da Justiça Retributiva,

inclusive já destacado em pesquisas anteriores do NEVIS.281 Entretanto, buscamos

aprofundar as discussões em relação às práticas restaurativas e como têm se dado

no contexto comunitário, principalmente no que refere à participação dos jovens nos

círculos restaurativos, visto que se propõem a um “acertamento horizontal do justo,

de um modo pluralista e participativo, mas também crítico e com um chamamento

pessoal à responsabilidade.”282

Do lugar de quem se preocupa com a transformação social e do outro, se as

práticas restaurativas apontam para a experimentação de formas jurídicas com base

na co-responsabilização e na consideração da alteridade, é importante que essas

práticas possam ser problematizadas sempre que produzam a normalização dos

conflitos e a heteronomia dos jovens. É importante garantirmos espaços de

expressão, autonomia e não assujeitamento aos jovens.

281 Anunciação, C.C.P. Figuras de justiça: trajetórias de jovens em práticas de Justiça Restaurativa, 2009. 282 Melo, p. 56, 2005.

Page 133: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

133

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACHUTTI, D.S. A Crise do processo penal na sociedade contemporânea: uma análise a partir das novas formas de administração da justiça criminal. Dissertação de Mestrado em Direito. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2006.

AGUIAR, M. Teatro espontâneo e psicodrama. São Paulo: Ed. Agora, 1998.

ALMEIDA, W.C. Psicoterapia aberta: o método do psicodrama, a fenomenologia e a psicanálise. São Paulo: Ed. Agora, 2006.

ANTONIO, R. Psicoterapia Psicodramática Grupal Breve para pacientes bipolares: um diálogo entre o Psicodrama e a Psiquiatria. Monografia apresentada na Sociedade de Psicodrama de São Paulo para obtenção do título de Didata-supervisora pela Federação Brasileira de Psicodrama, 2007.

BENEDETTI, J.C. Tão próximos, tão distantes: a Justiça Restaurativa entre comunidade e sociedade. Dissertação de Mestrado em Direito. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

BRITO, V. Um convite à pesquisa: epistemologia qualitativa e psicodrama. In: Monteiro, A. M. Pesquisa Qualitativa e psicodrama. São Paulo: Ed. Agora, 2006.

BUSTOS, D.M. Novos Rumos em Psicodrama. São Paulo: Ed. Atica, 1992.

____________________ Perigo... Amor a vista! Drama e psicodrama de casais. São Paulo: Ed. Aleph, 1990.

CALVENTE, C.F. O Personagem na psicoterapia: articulações psicodramáticas. São Paulo: Ed. Agora, 2002.

CASTRO, L.R e CORREA, J. Juventudes, transformações no contemporâneo e participação social. In: Juventude Contemporânea: perspectivas nacionais e internacionais. Rio de Janeiro: NAU Editora: FAPERJ, 2005.

CONTRO, L. Psicodrama e Pesquisa: projetos, processos, resultados. Revista Brasileira de Psicodrama. Vol. 17, n.2, p. 13-24, 2009.

____________________ Temas protagônicos contemporâneos. Monografia para professor-supervisor. Campinas, 2000.

FONSECA, J.S. Psicodrama da Loucura. São Paulo: Ed. Agora, 1980.

FROESTAD, J. e SHEARING, C. Práticas da Justiça: o modelo Zwelethemba de Resolução de Conflitos. In: Slakmon, C., R. De Vitto e R. Gomes Pinto (org). Justiça Restaurativa, Ministério da Justiça, Brasília, 2005.

GONÇALVES, C.S. Epistemologia do Psicodrama. In: Naffah Neto, A. Psicodramatizar. São Paulo: Ed. Agora, 1980.

Page 134: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

134

____________________ Lições de Psicodrama: introdução ao pensamento de J.L.Moreno. São Paulo: Ed. Agora, 1988.

GRANDINO, P. J. O paradoxo do atendimento a adolescentes em conflito com a lei em tempos de reconstrução de relações entre crianças, jovens e adultos. Dialogia, São Paulo, v. 5, p.101-109, 2006. ____________________ Violências nas escolas e a dignidade dos sujeitos. Eccos revista científica. n. 1, vol. 3, p.141-151, junho, 2001. ____________________ Educação Comunitária e a construção de valores de democracia e de cidadania: a dimensão relacional entre adultos, crianças e adolescentes – Relatório final de pesquisa (FAPESP), Mimeo, 2007.

KONZEN, A. A. Justiça Restaurativa e Alteridade – Limites e Frestas para os Porquês da Justiça Juvenil - Artigo originalmente publicado na Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, vol. 9, n. 49, br./maio 2008, pp. 178-198.

____________________ Justiça Restaurativa e Ato infracional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

MARINEAU, R. F. Jacob Levy Moreno 1889-1974 – Pai do Psicodrama, da Sociometria e da Psicoterapia de Grupo. São Paulo: Ed. Agora, 1992.

MARINO, M. J. O acontecimento educativo psicodramático: encontro entre Heidegger, Moreno e uma psicodramatista educanda educadora. Tese de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação da PUC-SP, 1992.

____________________ Vir a ser psicodramatista: um caminho de singularização em co-existência. Tese de doutorado em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2002.

MARTIN, E.G. Psicologia do Encontro: J.L. Moreno. São Paulo: Ed. Agora, 1996.

MELO, E. R. Comunidade e justiça em parceria para a promoção de respeito e civilidade nas relações familiares e de vizinhança: um experimento de justiça restaurativa e comunitária. Bairro Nova Gerty, São Caetano do Sul - SP. In: Slakmon, C; Machado, M.R.; Bottini, P.C. Novas Direções na Governança da Justiça e da Segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006.

____________________ Justiça restaurativa e seus desafios histórico-culturais. Um ensaio crítico sobre os fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em contraposição à justiça retributiva. In: Slakmon, C., R. De Vitto e R. Gomes Pinto (org). Justiça Restaurativa, Ministério da Justiça, Brasília, 2005.

____________________ Projeto Justiça e Educação: parceria para a cidadania. Mimeo, 2004.

MELO, E. R.; EDNIR M.; YASBEK, V. C. Justiça Restaurativa e Comunitária em São Caetano do Sul – Aprendendo com os conflitos a respeitar direitos e promover

Page 135: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

135

cidadania. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2008.

MEZHER, A. Abordagem dos Valores ético-culturais pelo axiodrama in Weil , Pierre el all. In: A Ética nos grupos: contribuição do Psicodrama. São Paulo: Ed. Agora, 2002.

____________________ Um Questionamento a cerca da Validade do Conceito de Papel Psicossomático. Revista da FEBRAP,ano 3,n.1,p.221-223,1980.

MORENO, J. L. Autobiografia. Organizacao e trad.: Luiz Cuschnir. São Paulo: Ed. Saraiva, 1997.

____________________ Fundamentos do Psicodrama. São Paulo: Ed. Summus, 1983.

____________________ Psicodrama. São Paulo: Ed. Cultrix, 1984.

____________________ Psicoterapia de grupo e Psicodrama. São Paulo: Ed. Mestre Jou, 1974.

____________________ Quem sobreviverá? Goiânia: Ed. Dimensão, 1992.

NAFFAH, A. Psicodrama – Descolonizando o imaginário. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1979.

NETO, P. S. Por uma Justiça Restaurativa “real e possível”. Apresentação ao Seminário Internacional Justiça Restaurativa. Um caminho para os direitos humanos? Instituto de acesso a Justiça (Brasil/Inglaterra), Porto Alegre, 29-30 outubro, 2004.

NEVIS (Núcleo de estudos Violências: sujeito e política) PEPGPSP, PUC-SP. Projeto de pesquisa Subjetividade e legalidade jurídica: a justiça restaurativa no âmbito do sistema de justiça juvenil, 2008.

____________________ Relatório analítico das pesquisas realizadas juntos à experiência de Justiça Restaurativa em São Caetano do Sul pelo PEPGPSO da PUC-SP no período de agosto/2008 a março de 2010, Mimeo, 2010.

OXHORN, P. e SLAKMON C. Micro-justiça, desigualdade e cidadania democrática. A construção da sociedade civil através da justiça restaurativa no Brasil. In: Slakmon, C., R. De Vitto e R. Gomes Pinto (org). Justiça Restaurativa, Ministério da Justiça, Brasília, 2005.

PERAZZO, S. Ainda e sempre psicodrama. São Paulo: Ed. Agora, 1994.

____________________ Descansem em paz os nossos mortos dentro de mim. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1986.

____________________ Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo: Ed. Agora, 1999.

Page 136: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

136

____________________ Psicodrama: o forro e o avesso. No prelo, 2009.

PINTO, R.S.G. A construção da Justiça Restaurativa no Brasil: o impacto no sistema de justiça criminal, Revista do MP-GO, Goiânia, 2006.

____________________ Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: Slakmon, C., R. De Vitto e R. Gomes Pinto (org). Justiça Restaurativa, Ministério da Justiça, Brasília, 2005.

ROSEMBERG, F. Literatura infantil e ideologia. São Paulo: Ed. Global, 1985.

SCHMIDT, A.C. Construindo mudanças: adolescentes em conflito com a lei e redes sociais. Trabalho final de curso, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2004.

SCURO, N.P.; PRUDENTE, N.M. Justiça Restaurativa, um novo olhar. Revista Visão Jurídica, Ed. Escalada, n. 24, p. 38-40, abril, 2008.

VICENTIN, M.C.G e ROSA, M.D. Relatório analítico das pesquisas realizadas juntos à experiência de Justiça Restaurativa em São Caetano do Sul pelo PEPGPSO da PUC-SP no período de agosto/2008 a março de 2010, Mimeo, 2010.

WALGRAVE, L. Apresentações ao 1º. Seminário Internacional de Justiça Restaurativa. Organização UniABC e ABMP, São Caetano do Sul, 30 de setembro a 2 de outubro, 2004.

Page 137: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

137

ANEXOS

Pesquisa: Práticas de justiça restaurativa: subjetividade e l egalidade jurídica Coordenação da pesquisa: Profa. Miriam Debieux Rosa e Profa. Maria Cristina G. Vicentin, do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da PUC-SP - Núcleo de estudos e pesquisa: Violências: sujeito e política (NEVIS). Pesquisadora: Ana Carolina Schmidt Endereço: Rua Ministro de Godoy, 969 – Perdizes – São Paulo. Telefone: (11) 3670-8520 \ 8646-6623 E-mail: [email protected] e [email protected]

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você está sendo convidado(a) a participar, como voluntário, em uma pesquisa. Após receber as Informações sobre a pesquisa , no caso de aceitar fazer parte do estudo, assine ao final deste documento o Consentimento Livre e Esclarecido. Você tem total liberdade para recusar-se a participar da pesquisa.

I. Informações sobre a pesquisa Sua participação fará parte da pesquisa Práticas de Justiça Restaurativa: subjetividade e

legalidade jurídica, sob orientação das Professoras. Dra. Maria Cristina Vicentin e Miriam Debieux Rosa do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e de uma equipe de pesquisadores, como requisitos para obtenção do título de Mestrado/Doutorado em Psicologia Social.

Nesse sentido, esta pesquisa tem por objetivo: investigar os sentidos de justiça, responsabilidade e conflito para os participantes do Projeto de Prevenção e Resolução de conflitos desenvolvido em São Caetano do Sul; investigar os impactos subjetivos experimentados na participação dos círculos restaurativos; analisar as práticas de Justiça Restaurativa no tocante à sua implantação (atores envolvidos, construção de redes) e à construção de uma cultura diferenciada de resolução de conflitos.

Se aceitar participar da pesquisa, você será entrevistado(a) pelo pesquisador individualmente e/ou em grupo sobre sua experiência e conhecimentos da Justiça Restaurativa. Participar da entrevista não o(a) obriga a participar do grupo. A entrevista e o grupo serão gravados e transcritos. As gravações de voz e outros elementos resultantes das atividades serão de uso restrito da equipe de pesquisa, assegurando que, na análise e divulgação de quaisquer dados sua identidade será preservada.

Em qualquer momento você poderá se recusar a participar ou retirar o seu consentimento de participação da pesquisa, sem qualquer tipo de penalização ou prejuízo para você. O sigilo será garantido, assegurando sua privacidade quanto a eventuais dados confidenciais envolvidos na pesquisa. O pesquisador estará à disposição para esclarecimentos sobre qualquer aspecto da pesquisa, sempre que você considerar necessário. Os resultados finais da pesquisa serão disponibilizados e, caso seja de seu interesse, discutidos com você. O pesquisador compromete-se a e zelar pelas garantias de sigilo e segurança mencionadas.

II - Declaração do participante: Este termo, em duas vias, é para certificar que eu,

____________________________________________________, abaixo assinado, declaro ter sido esclarecido sobre os objetivos de pesquisa e que concordo em participar desta pesquisa acadêmica de acordo com os seguintes princípios: - Considero preservada minha participação como voluntário(a), sem coerção pessoal e institucional, dando minha permissão para ser entrevistado e para essa entrevista e minha participação no grupo ser gravada. - Estou ciente de que sou livre para recusar a dar respostas a determinadas questões, retirar minha autorização e terminar minha participação a qualquer momento, bem como terei a oportunidade de perguntar sobre qualquer questão que eu desejar. - Sei que, além do pesquisador, colegas pesquisadores e especialistas da área poderão conhecer trechos do conteúdo para discussão dos resultados, mas meu nome será omitido e estas pessoas estarão sempre submetidas às normas do sigilo profissional. A pesquisa estará disponível para todos quando estiver concluído o estudo, inclusive para apresentação em encontros científicos e publicação, podendo conter citações, mas sempre de modo a garantir o anonimato.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL

Page 138: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

138

- Compreendo, também, que não haverá benefícios diretos ou imediatos a mim enquanto participante desta pesquisa, além das reflexões por falar e trocar idéias sobre o assunto tratado, bem como nenhuma remuneração. - Fui informado ainda de que não existem riscos ou desconfortos associados com este projeto.

Considero-me suficientemente informado e para certificar que concordo livremente em participar dessa pesquisa, assino esse termo em duas vias.

São Paulo, ___ de ____________ de 200__.

_______________________________________

Assinatura do participante.

_______________________________________

Assinatura do pesquisador

_______________________________________

Assinatura da orientadora

Pesquisa: Práticas de Justiça Restaurativa: subjetividade e legalidade Coordenação da pesquisa: Profa. Miriam Debieux Rosa e Profa. Maria Cristina G. Vicentin, do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da PUC-SP - Núcleo de estudos e pesquisa: Violências: sujeito e política (NEVIS). Pesquisadora: Ana Carolina Schmidt Endereço: Rua Ministro de Godoy, 969 – Perdizes – São Paulo. Telefone: (11) 3670-8520 \ 8646-6623 E-mail: [email protected] e [email protected]

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você está sendo convidado(a) a participar, como voluntário, em uma pesquisa. Após receber as Informações sobre a pesquisa , no caso de aceitar fazer parte do estudo, assine ao final deste documento o Consentimento Livre e Esclarecido. Você tem total liberdade para recusar-se a participar da pesquisa.

I. Informações sobre a pesquisa Título: Práticas de Justiça Restaurativa: subjetividade e legalidade jurídica. Sua participação fará parte desta pesquisa, sob orientação das Professoras. Dra. Maria

Cristina Vicentin e Miriam Debieux Rosa do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e de uma equipe de pesquisadores, como requisitos para obtenção do título de Mestrado/Doutorado em Psicologia Social.

Nesse sentido esta pesquisa tem por objetivo: investigar os sentidos de justiça, responsabilidade e conflito para os participantes do Projeto de Prevenção e Resolução de conflitos desenvolvido em São Caetano do Sul; investigar os impactos subjetivos experimentados na participação dos círculos restaurativos; analisar as práticas de Justiça Restaurativa no tocante à sua implantação (atores envolvidos, construção de redes) e à construção de uma cultura diferenciada de resolução de conflitos.

Se aceitar participar da pesquisa, os círculos restaurativos que você facilitar serão gravados e transcritos. As gravações de voz e outros elementos resultantes das atividades serão de uso restrito da equipe de pesquisa, assegurando que, na análise e divulgação de quaisquer dados, sua identidade e a dos participantes do círculo restaurativo serão preservadas.

Em qualquer momento você poderá se recusar a participar ou retirar o seu consentimento de participação da pesquisa, sem qualquer tipo de penalização ou prejuízo para você ou para os participantes. O sigilo será garantido, assegurando sua privacidade e a dos participantes dos círculos restaurativos quanto a eventuais dados confidenciais envolvidos na pesquisa. Os pesquisadores estarão à disposição para esclarecimentos sobre qualquer aspecto da pesquisa, sempre que você ou os participantes dos círculos restaurativos considerarem necessário. Os resultados finais da pesquisa serão disponibilizados e discutidos, caso seja de seu interesse ou dos participantes dos círculos

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL

Page 139: Práticas Restaurativas Comunitárias: um olhar psicodramático sobre o lugar do jovem ... · 2017. 2. 22. · Chagas e Walter por serem meus anjos da guarda e companheiros nessa

139

restaurativos. Os pesquisadores comprometem-se zelar pelas garantias de sigilo e segurança mencionadas.

II - Declaração do participante: Este termo, em duas vias, é para certificar que eu, _________________

_________________________________________________, abaixo assinado, declaro que os participantes dos círculos restaurativos estão de acordo com a gravação e transcrição dos círculos restaurativos e declaro ter sido esclarecido sobre os objetivos de pesquisa e que concordo em participar desta pesquisa acadêmica de acordo com os seguintes princípios: - Considero preservada minha participação como voluntário(a), sem coerção pessoal e institucional, dando minha permissão para que os círculos restaurativos que eu facilitar sejam gravados e transcritos. - Estou ciente de que sou livre para retirar minha autorização e terminar minha participação a qualquer momento, bem como terei a oportunidade de perguntar sobre qualquer questão que eu desejar. - Sei que, além do pesquisador, colegas pesquisadores e especialistas da área poderão conhecer trechos do conteúdo para discussão dos resultados, mas meu nome será omitido e estas pessoas estarão sempre submetidas às normas do sigilo profissional. A pesquisa estará disponível para todos quando estiver concluído o estudo, inclusive para apresentação em encontros científicos e publicação, podendo conter citações, mas sempre de modo a garantir o anonimato. - Compreendo, também, que não haverá benefícios diretos ou imediatos a mim enquanto participante desta pesquisa, bem como nenhuma remuneração. - Fui informado ainda de que não existem riscos ou desconfortos associados com este projeto.

Considero-me suficientemente informado e para certificar que concordo livremente em participar dessa pesquisa, assino esse termo em duas vias.

São Paulo, ___ de ____________ de 2009.

_______________________________________

Assinatura do facilitador

_______________________________________

Assinatura do pesquisador

_______________________________________

Assinatura da orientadora