Psicanálise e Ciência a Emergência de Um Sujeito Sem Qualidades

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    210*Psicanalista, Mestre em psicanlise pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro; Docente do Departamento dePsicologia da Universidade Veiga de Almeida Campus Cabo Frio e Universidade Estcio de S CampusMaca.** Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Procientista da UERJ, Pesquisadora doCNPq, Psicanalista Membro da Escola de Psicanlise dos Fruns do Campo Lacaniano. Endereo: Rua JooAfonso, 60 casa 22. 22261-040 Rio de Janeiro/RJ. E-mail: [email protected]. Tel./Fax: 21 25273154.

    PSICANLISE E CINCIA: A EMERGNCIA DE UM SUJEITO SEMQUALIDADES

    Mrcio Ramos*

    Sonia Alberti**

    RESUMO: O presente artigo visa contribuir com o debate entre a psicanlise e a cinciaenquanto fundamento para a emergncia do sujeito tal como definido pela psicanlise. Partedo recurso Koyr realizado por Lacan para o reordenamento epistemolgico da psicanliseno mundo moderno. Tal recurso permite levantar a hiptese de que a psicanlise, para alm desubverter o sujeito cartesiano, e por ser filiada cincia, o instrumento mais eficaz paraefetuar um furo no saberes biologicistas apoiados nas ideologias de quantificao do real e noerro epistemolgico do realismo psicolgico.

    PALAVRAS-CHAVE: Psicanlise. Cincia. Sujeito.

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    A psicanlise desempenhou um papel na subjetividade moderna e ela no podersustent-lo sem orden-lo no movimento em que a cincia elucida (Lacan,1953/1988, p.283).

    Introduo

    Em seu curso As palavras e as coisas (1966/2000) que trata das condies deemergncia das cincias humanas, Foucault afirma que a psicanlise uma contra cincia-humana. O filsofo destaca que isso no quer dizer que ela seja menos racional, ouobjetiva que as outras, mas que ela no cessa de desfazer esse homem que, nas cinciashumanas, faz e refaz sua positividade.

    Do mesmo modo que Foucault, Lacan em seu escrito A cincia e a Verdade (1966/1998), realiza uma anlise crtica das cincias humanas sustentando que o objeto queelas reivindicam o homem no pode ser objetivado por nenhuma cincia. Por isso, Lacan(1966/1998) afirma que o homem da cincia no existe, mas apenas seu sujeito (p. 873).

    Lacan se vale dos estudos de Alexandre Koyr para estabelecer a vocao cientfica da psicanlise. Chega a dizer: Koyr nosso guia [...] (1966/1988, p. 870) e o articula ao pensamento estruturalista, adequando-o psicanlise, incluindo o sujeito do conhecimento e aincompletude da estrutura coisa que Lvi-Strauss no iria compreender, como retomaremos.

    A forma pela qual Alexandre Koyr trabalha a histria das cincias se diferencia dasnarrativas do sculo XIX, que tratavam a revoluo cientfica atravs de uma marchacontnua, progressiva e evolucionria. O epistemlogo destaca a modificao da estrutura doconhecimento a partir da alterao do pensamento cientfico e busca entender, por meio deanlises de tratados cientficos, como se deu a modificao da estrutura do conhecimentocientfico, visando uma historicidade lgica para a revoluo cientfica.

    Com o objetivo de refutar as interpretaes continustas de tendncia positivista dacincia, Koyr mostra como a matematizao do real dependeu da passagem do mundoantigo, baseado na cosmologia aristotlica, para o mundo da cincia galileniana. A concepode histria da cincia de Lacan, influenciada pelos trabalhos de Koyr, caracteriza a cinciacomo um dispositivo no qual a certeza se apoia apenas na consistncia significante. Issosignifica que a formalizao do real, prpria da prtica cientfica, na verdade um arranjo

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    simblico. A prtica cientfica consiste numa matematizao do real, o que se d nacontramo de uma quantificao.

    Levantamos a hiptese de que o recurso aos trabalhos de histria da cincia de Koyr

    tem grande importncia no retorno Freud feito por Lacan. O desenvolvimento da proposiode que o inconsciente estruturado como uma linguagem viabilizou um programa deformalizao do conceito de inconsciente, assumindo uma posio frente ao discursocientfico, sem colocar a psicanlise do lado de uma cincia da natureza, como algunsquiseram depreender de uma leitura possvel do texto de Freud.

    Na nossa hiptese, atravs da lingustica estrutural, Lacan supera velhas dicotomiascomo a existente entre cincias humanas e cincias naturais e inaugura um novo campoconceitual. Ter a lingustica como referncia de cincia, no implica em um modelo de

    formalizao exterior psicanlise. Ela no funciona como um modelo de cincia, nem comouma fonte de emprstimo de conceitos sem que a psicanlise possa legislar sobre eles. Alingustica funciona para a psicanlise como uma via de trabalho conceitual. De acordo comCanguilhem (1963): trabalhar um conceito fazer variar sua extenso e compreenso,generaliz-lo mediante a importao de traos de exceo, export-lo para fora de sua regiode origem, tom-lo como modelo ou, inversamente, fornecer-lhe um, em resumo, dar-lhe progressivamente a funo de uma forma. Desse modo, Lacan no subordina a psicanlise lingustica estrutural, ele adqua os seus conceitos ao campo de problemas psicanalticos.

    O sujeito o significante

    Tal adequao, consiste em um trabalho de esclarecimento quanto ao estatutoepistemolgico do sujeito para a psicanlise, centralizando as questes relativas ao sujeito:Freud funda a psicanlise a partir da formalizao da hiptese do funcionamento doinconsciente; diferencia o sujeito como fora do campo da conscincia, diferente da tradiofilosfica cartesiana; apresenta uma ciso do homem que no pode ser mais visto como uma

    unidade ou como identidade, sem uma abertura para a alteridade.O sujeito da psicanlise, ento, deduzido da representao, ele no mais uma coisa

    que pensa, umares cogitans , com Koyr e com o estruturalismo, Lacan deduz o sujeito com osignificante. A consequncia dessa empreitada a estruturao de um dos axiomas centrais doincio do seu ensino: o significante o que representa o sujeito para o outro significante, o queleva, necessariamente, a uma dessubstancializao do sujeito. As bases para tal desconstruo

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    j estavam dadas em Freud, muito antes, mesmo se este tinha dificuldades em formaliz-la, pelo pioneirismo da coisa. De todo modo, poderamos localizar sua primeira tentativa naconhecida Carta 52, escrita para Fliess, em 1896. Ela expe uma tentativa de sistematizaodo aparelho psquico de forma lgica, atravs de letras e nmeros:

    Fig 1: (Freud, 1896/2006, p.80)

    As letras W, Wz, Ub, Vb, Bws correspondem, respectivamente, s percepes

    (Wahrnehmungen ), traos de percepo (Wahrnehmungszeichen ), inconsciente (dasUnbewusste ), pr-consciente (Vorbewusste ) e estar consciente ( Bewusstsein ). A presenadessas letras representando os sistemas psquicos nos d uma indicao de que, apesar deFreud ainda recorrer base neuronal nessa poca, tambm j emprega esses sistemasrepresentados por letras numa associao sistemtica. Esta formalizao guarda certaaproximao com o modelo lgico-matemtico empregado pela cincia e testemunha doesforo de Freud para criar um modelo terico de explicao do psiquismo que no tivesseque recorrer somente ao material emprico. Entendemos que esse procedimento marca a

    tentativa de Freud, presente desde o Projeto uma psicologia (Freud, 1895/2006), de, a partirde smbolos, apreender o real do qual a psicanlise se ocupa.

    A elaborao do conceito de inconsciente problematizou a concepo psicolgica deconscincia e interrogou o estatuto da psicologia no incio do sculo XIX. Mas isso tem porconsequncia interrogar tambm as orientaes psicolgicas hoje. O sentido da subverso dosujeito promovido por Freud e conceituado por Lacan a partir da dita dessubstancializao, amais potente arma contra o avano das tentativas de subordinar o psiquismo a uma questo dofuncionamento orgnico.

    Essas novas disciplinas psicolgicas e teraputicas compem a engrenagem de umdispositivo normalizador que visa produo de indivduos teis para a sociedade disciplinar.Tais tticas de normalizao esto longe de estarem relacionadas ao modo de apreenso doreal. Como j destacava Carmen Gallano em 2002: hoje, atravs da psiquiatria biolgica e das

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    psicologias de base neurofisiolgica, decreta-se a morte da psicanlise e descarta-se aespecificidade de seu discurso, acusando-a de ser um tratamento muito custoso e quedemanda muito tempo; afirma-se que a tcnica neurocognitiva poderia produzir resultados

    mais rpidos e mais eficazes. Tais psicoterapias prometem ao sujeito o bem-estar mentalvisando a adapt-lo sociedade e s funes ditas normais. So discursos que visam alcanarum reconhecimento cientfico se servindo de um ideal de cientificidade das neurocincias.Trata-se, na realidade, do que Canguilhem (1977) denominou de ideologias cientficas. No possuem um mtodo prprio, se valem da tentativa da apropriao da linguagemneurogentica, para se afirmarem como cincias. Na defesa sua cientificidade, entoamhinos de louvores quantificao e localizao cerebral, atribuindo ao crebro e agentica a causa primeira das psicopatologias, a ponto de darem a entender que o crebro e a

    gentica ocupam o mesmo lugar que Deus ocupava no mundo pr-cientfico: o de causa primeira inquestionvel.

    Sustenta-se nesse artigo que a psicanlise antinmica ao modelo ideolgico queconverteu o tratamento das questes psquicas como fato fsico. Esse movimento teminfluencia de um discurso de cientificidade de cunho que no deixa de ser positivista.Diferente do biologicismo que se abriu no estatuto epistemolgico presente na psiquiatriadesde o sculo XIX, Freud defendeu a hiptese do inconsciente e do recalcamento paraexplicar a causalidade dos sintomas neurticos. Isso colocou a doena mental como uma

    questo relativa ao simblico, deixando de submeter o psiquismo a um modelo biolgico.Essa ruptura com o biologicismo possibilitou a psicanlise operar com um campo no qual noest em questo nem um organismo nem um homem, mas um sujeito.

    Jacques Lacan retomou o conceito de inconsciente e a concepo de sujeito subjacente elaborao freudiana, aprofundando a relao lgica da psicanlise com a cincia. Para isso,ele descartou a referncia biolgica e aproximou a psicanlise das cincias da linguagem pois,desde o incio, no h psicanlise sem fala.

    Da ontologia ao homem no Universo

    Em A cincia e a verdade , Lacan (1966/1998) afirma que o sujeito sobre o qual operaa psicanlise o sujeito da cincia. Tal afirmao tem a forma de um axioma do qual seextraem mais trs: 1- A psicanlise opera sobre um sujeito e no sobre um eu (moi); 2- H umsujeito da cincia; 3- Os dois sujeitos so um.

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    Como se pode notar, os trs axiomas se referem ao sujeito. A primeira afirmao dizrespeito ao estatuto epistemolgico psicanaltico. A segunda recorre a um conceito que umahiptese lacaniana: sujeito da cincia. A terceira sustenta-se em correlaes histricas. Tais proposies no afirmam nada da psicanlise enquanto cincia, mas supem uma teoriavinculada constituio de um sujeito a partir do aparecimento da cincia.

    H em Lacan uma teoria da cincia. A cincia fundamental para existncia da psicanlise, pois a partir dela opera-se um corte que lhe d condies de operar no mundomoderno. Lacan se apoia nos trabalhos de histria da cincia de Koyr para demarcar osefeitos do corte que promoveu as condies de aparecimento de uma cincia moderna. A partir da matematizao da fsica, o mundo finito, hierarquizado e qualitativo, d lugar aouniverso da preciso. Tal corte fica esclarecido se abordamos a ruptura que a atividade

    cientfica causou na organizao cosmolgica aristotlica.Conforme Koyr em seus Estudos de historia do pensamento cientfico (1991a; 1991b;

    1991c; 1991d; 1991e), oCosmo de Aristteles era organizado em uma hierarquia formada portrs nveis. Esses nveis estavam localizados tomando como referncia a perfeio. Eram eles:Ser (ou Deus), as esferas celestes e a natureza. Cada um desses nveis era estudado por umsaber especifico: a Ontologia, a Astronomia e a Fsica. Desse modo, cada campo de saberestudava um gnero determinado e dotado de qualidades distintas de acordo com seu grau de perfeio.

    A hierarquizao e a ideia de perfeio do Cosmo tinham como base a noo de lugarnatural. Ela consistia numa noo puramente esttica de ordem. Cada coisa que estivesseem sua ordem estaria no seu lugar natural, e tenderia a permanecer ali sempre. O corpo nos permaneceria no seu lugar natural como tambm oferecia uma resistncia a todo esforode afast-lo. A nica possibilidade de tirar um corpo do seu lugar natural seria pela via daviolncia. Mesmo assim, se o corpo depois de ter sofrido certa violncia pudesse voltar ao seulugar natural, procuraria voltar a ele. Isso expe que a noo de movimento na fsicaaristotlica implicava em uma desordem csmica, uma perturbao no equilbrio do Universo,

    pois ele efeito direto da violncia ou esforo do Ser em compensar essa violncia pararecuperar a ordem e o equilbrio perdido, para recolocar as coisas em seus lugares naturais.

    no retorno ordem que est implcita a ideia de movimento natural. Destarte, omovimento concebido como algo transitrio. Ele no pode ser concebido como um estado,mas sim, um vir a ser pelo qual as coisas se atualizam e se realizam. O fato de que cada

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    mudana precisa de uma causa para se explicar, implica um motor que atua conforme omovimento se efetua.

    Se o movimento implica certa desordem csmica, o que se encontra no lugar mais

    elevado da hierarquia Deus deve ser compreendido como um ser imvel e perfeito, ele concebido como ponto fixo e esttico do Cosmo. Assim, o que no era Deus estava emmovimento e ainda no teria encontrado o lugar natural. A perfeio de Deus era explicada por sua posio no Cosmo, ele estava em seu lugar natural, exatamente no lugar no qualdeveria estar, era o mais perfeito porque no precisava se mover. O prprio ponto fixo deDeus no Cosmo impossibilitava que os outros seres chegassem a essa perfeio, a nica coisaque poderia ocorrer seria aproximar-se dele, pois cada Ser j ocupava o lugar que deveriaocupar no Cosmo. Por ser concebido no ponto fixo e central dessa hierarquia, no poderia ser

    colocado em questo, sendo assim, todo movimento era um motor movido por Deus, ele eraa referncia ltima das coisas que moviam. Essa referncia ltima em Deus garante que todosos elementos do Cosmo se movimentem comandados por esse referencial absoluto: Deus o primeiro motor do Cosmo.

    Era preciso uma regio de estudo diferente da ontologia para estudar as categorias dasesferas celestes: a Astronomia. A ordem imutvel e necessria implicada no carter de perpetuidade e de continuidade das esferas celestes permitia um estudo matemtico baseadona geometria euclidiana. No se pode dizer a mesma coisa da fsica sublunar. Conforme

    Koyr (1991c), a Fsica sublunar se baseava na percepo, e era, por definio, anti-matemtica.

    Ela se caracterizava pela recusa em substituir o senso-comum e os fatosqualitativamente determinados pela administrao geomtrica dos fatos. A fsica pr-galileneana se fundamentava na heterogeneidade entre os conceitos matemticos e os dadosda experincia sensvel, na incapacidade da matemtica explicar a qualidade e deduzir omovimento. As explicaes para os eventos do mundo sublunar eram meramente descritivas.

    Koyr (1991d) esclarece bastante bem a impossibilidade colocada pela cosmologia

    aristotlica de estudar de forma matemtica o mundo sublunar. Para tal concepo de mundotentar aplicar as matemticas ao estudo da natureza era cometer um contra-senso. Nacosmologia aristotlica a explicao do real dada pelo impossvel. Seria impossvel seexplicar os seres reais (sublunares) pelos seres matemticos (esferas celestes) porque, como jmencionamos, os corpos que se movem em linha reta num espao vazio infinito ocupavamoutro lugar na hierarquia do Cosmo. Diferente dos seres reais que se deslocam num espao

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    real, os corpos celestes se deslocam num espao matemtico. No se concebia demonstraesmatemticas relativas natureza. Por qu? Porque a natureza do ser fsico era qualitativa evaga, tudo que se poderia fazer era elencar as principais categorias do Ser (quente, mole,natural, violento, retilneo). Era natural que uma pedra que fosse jogada para cima se dirigisse para baixo e que uma chama sempre se dirigisse para cima.

    Era preciso determinadas virtudes para se estudar cada regio de saber. Na viso dacosmologia aristotlica, usando as palavras de Koyr (1991b): [...] quanto mais um espritoestiver acostumado preciso e rigidez do pensamento geomtrico, menos ele ser capaz deassimilar a diversidade mvel, cambiante e qualitativamente determinada do Ser (p. 168).

    necessrio destacar que o que visa a ideia de Cosmo de Aristteles no tratar deuma teologia ou de uma cincia. O objetivo da cosmologia aristotlica era encontrar um lugar

    para o homem no Universo. Ora, o que podemos deduzir que sua resposta seria quehomemno seria nem divino e nem celeste, ele seria uma natureza .

    A emergncia do sujeito da cincia moderna

    Galileu, ao tratar matematicamente a fsica, rompeu com as coordenadas de mundoque regiam a Idade Antiga (KOYR, 1991d). A noo de mundo natural, com todas ascaractersticas da antiga Cosmologia (finitude, qualidade, hierarquia) d lugar ao chamado

    universo infinito da preciso. Os problemas a propostos reorganizam a forma de se fazer e pensar a cincia. Neste universo sobressai o pensamento sem qualidades do clculo. O campode problemas cientficos no necessita de virtudes para fabricar o real; conseqentemente,neste novo campo de problemas a Natureza no tende nem para nenhum sentido, nem paraum mal ou para um bem. Koyr destaca que Galileu e, mais tarde e pela mesma razo,Descartes foram obrigados a suprimir a noo de qualidade, declarando-a subjetiva e banido-acom o estudo da natureza. Isso indica que, com a fundao da cincia, suprimiu-se a percepo e os sentidos como fonte de conhecimento, declarando a postura intelectual

    matematizada como nica forma de apreender o real.Ora, para Galileu mostrar que seria possvel estabelecer as leis matemticas nos

    estudos da natureza foi preciso realizar o impossvel. Tratar as questes do movimento doscorpos matematicamente realizar algo que no tinha sido feito at ento, realizar oimpossvel para a cosmologia aristotlica. em um novo mundo no qual a matemtica fabrica

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    a realidade que as leis da fsica clssica ganharam novo valor. A nova fsica rompeu com asconcepes de movimento que fundamentavam a cosmologia aristotlica. A concepo dosespaos naturais caducou depois que Galileu demonstrou matematicamente que no vcuo o

    objeto poderia ficar eternamente em repouso ou eternamente em movimento. Tal ideia seriaconsiderada impossvel na cosmologia aristotlica uma vez que o movimento seria a busca deuma perfeio referenciada na figura central de Deus. Dessa forma, a posio cientficadesloca Deus da posio central do universo e de causa ltima e primeira das coisas. Comesse corte efetuado pela cincia, no s Deus perde o seu lugar central, o homem perde areferncia em relao a sua causa e a seu lugar no mundo.

    Para Koyr, a atitude intelectual da cincia moderna pode ser descrita em dois traosque se completam. So eles: A destruio do Cosmo e, consequentemente, o desaparecimento

    na cincia de todas as consideraes baseadas nessa noo; A geometrizao do espao, isto, a substituio do espao qualitativamente diferente da fsica pr-galileneana pelo espaohomogneo e abstrato de uma fsica baseada na geometria euclidiana. Tal concepo deespao foi substituda pela ideia de espao infinito governado por leis universais.

    O que fizeram os reformadores da cincia dentre eles Descartes e Galileu no foisomente substituir, combater ou evoluir as teorias erradas. O que realizaram os fundadores dacincia moderna foi a destruio de um mundo no qual a forma de se construir oconhecimento cientfico seria a atribuio de qualidades e o senso comum. A consequncia da

    revoluo cientfica foi a constituio de um conceito de cincia no qual o senso comum e os preconceitos so os primeiros obstculos a serem derrubados.

    No quadro epistemolgico dessa retificao operada a partir da histria das cincias,os axiomas de Koyr assim se escrevem: Existe um corte entre aepisteme antiga e a cinciamoderna, que consiste na passagem do mundo do mais ou menos para o Universo da preciso;A cincia moderna galileana, e seu projeto consiste em submeter o real exigncia de preciso e rigor do smbolo matemtico; O determinismo da cincia moderna estabelece acausa formal dos fenmenos sobre os quais se aplica: trata-se da elaborao de leis regulares

    para os fenmenos em ruptura com a concepo medieval do finalismo.A cincia moderna solidria formulao de uma teoria do sujeito, destitudo de

    qualidades empricas, e fundamento desta.

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    O sujeito cartesiano e o freudiano

    A hiptese de Lacan sobre o sujeito da cincia tem como fundamento a destituioteorizada por Koyr, e passa por Descartes. Afinal, O prprio sujeito, reduzido equao'penso, logo sou' , se torna um sujeito sem qualidades (SOUZA, 2007). Considerado porLacan o primeiro filsofo moderno, Descartes mostra que a cincia moderna precisa do pensamento para operar a formalizao do real, o testemunho doCogito , que concebeu.

    Descartes visou encontrar a verdade na cincia. O que verdadeiro para Descartes oque formulado unicamente pela razo, esse o ato que funda a cincia moderna. Na criaodo seu mtodo baseado na lgica e nas matemticas , Descartes rejeita o uso dos sentidos, pois eles so enganadores, da ele definir o sujeito como uma pura coisa pensante,res

    cogitans . Sofreu de maneira subjetiva a dessubstancializao que seu mtodo provocou, todasas certezas vacilaram para ele, e deve ter vivido uma experincia que a personagem assumida por Jim Carrey, Truman Burbank, sofre no consagrado filme dirigido por Peter Weir (1998) eescrito por Andrew Niccol,O show de Truman o show da vida : a realidade fake falsa!Dessa experincia, Descartes, como sujeito-pensamento, emerge de uma nova maneira, a queconsidera verdadeiro tudo o que a razo concebe claramente lgicamente e de formamatematizada.

    Conforme Koyr (1992), o ceticismo do primeiro momento do cogito produziu o

    racionalismo da cincia moderna. O cientista j no sofre com a dvida como nossoDescartes-Truman, ele a exerce metodicamente. Ao mesmo tempo, fez-setabula rasa de todaautoridade do mundo das qualidades. A dvida como mtodo separa o verdadeiro do falso, a partir de juzos atributivos.

    Se foi Galileu o responsvel por criar o mtodo que inseriu o pensamento naconstruo do real, coube a Descartes a insero do sujeito no processo racional da cincia.Ele estabeleceu a quebra da relao direta entre o real e a realidade e a disjuno entre percepo e pensamento.

    Conforme Alberti e Elia (2008), a partir de Descartes inaugura-se uma separao entreo objeto na cincia e no discurso. A ciencia constri seu objeto de forma lgico-matemticade construir seu objeto, ou seja, metafrica, introduzindo uma hincia necessria entre oobjeto tal como nos aparece na realidade e o objeto produzido conceitualmente pela cincia. Odiscurso do mtodo cientfico distingue um mundo em que as coisas existem atravs da

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    representao conceitual, deixando de fora outro, onde as coisas so dadas pela experinciasensvel.

    Este pensamento moderno, destitudo de qualidades no s necessrio cincia

    moderna, ele foi tambm indispensvel para fundamentar o inconsciente freudiano. Oinconsciente freudiano cartesiano, no porque esse datado no mundo moderno, mas porafinidade discursiva. Assim como a fsica matemtica elimina as qualidades dos existentes, ateoria do sujeito que responde a essa fsica deve despoj-lo de qualquer qualidade porque, nofim das contas, o sujeito sem qualidades o sujeito da cincia.

    Ora, a teorizao de Freud sobre o inconsciente baseia-se nisso, e mesmo em seu textoem que mais parece idealizar a cincia O futuro de uma iluso (Freud, 1927) , escrito, narealidade, para colocar em questo o sujeito da crena religiosa, o caminho que faz ,

    fundamentalmente, o mesmo de Descartes. Verifiquemos a concepo de cincia em Freud,articulada as suas tentativas de formalizao do aparelho psquico.

    Assim como em Lacan, h em Freud uma teoria da cincia, que Lacan (1964/1998)chama de cientificismo porque o modelo de cincia ao qual Freud tentava articular a psicanlise normalmente visto como o da cincia natural. Na realidade, o ideal de cincia para Freud bem mais a fsica, afinal seu texto bombstico que afirma uma sexualidadeinfantil j em 1905, absolutamente contemporneo publicao da teoria da relatividade, deEinstein, tambm em 1905, E qualquer um de ns sabe o quanto aqueles Ensaios e essa

    teoria significaram para todo novo tempo ento inaugurado (ALBERTI, 2008, p. 77).Sabemos tambm do respeito mtuo, sobre o que ainda testemunha a correspondncia quetrocaram muitos anos depois (Freud, 1932/2006)

    Com efeito, a teoria da cincia de Freud inclui o conceito de inconsciente, o quesignifica afirmar que, apesar de Freud visar um modelo de cientificidade para a psicanlise, narealidade ele rompeu com uma forma de pensamento orientado pelo positivismo e pela defesadas cincias da natureza como ideal de cientificidade para as cincias humanas. Comoesclarece Mezan (2007), no contexto histrico de Freud as atividades humanas tambm

    entendidas como civilizao eram estudadas pelas chamadas cincias do esprito(Geisteswissenschaften ) que se diferenciavam das cincias da natureza ( Naturwissenschaften ).Mas Freud no se submeteu a essa distino, h em Freud uma preocupao em estabeleceruma cincia do psiquismo que estivesse rigorosamente de acordo com o paradigma decientificidade da poca, fornecido pelo conjunto das cincias naturais.

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    Existem vrios textos em que Freud trabalha a relao do estatuto da psicanlise com acincia (cf. os textos de 1914/2006b; 1915/2006; 1925/2006b; 1926/2006, entre outros),detenhamo-nos em Sobre umaWeltanschauung (1933/2006). A questo que orienta Freudnessa conferncia a seguinte: a Psicanlise envolveria uma concepo filosfica de homem,de sua natureza? No, responde o texto, ao aproximar os sistemas filosficos

    Weltanschauung que Freud define como construo intelectual que soluciona todos os problemas da nossa existncia uniformemente, com base em uma hiptese superiordominante, a qual, por conseguinte, no deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudoo que nos interessa encontra seu lugar fixo (p.155).

    De sada ento, demonstra como a ideia de umaWeltanschauung traz, intrinsecamente,ideais de conduta para orientar as aes humanas: pela necessidade de se sentirem seguros

    que os homens defendem suas vises de mundo, recusando considerar qualquer objeo sobreela.

    Freud contrape a isso a psicanlise porque ela apresenta uma especificidade sobre ateorizao do psiquismo, seria, ento, inadequado que a psicanlise desenvolvesse umaconcepo prpria do Universo que lhe extrnseco. Ento, por um lado, a psicanliseapresenta um recorte muito especfico e estuda apenas uma parte do real, tal como os outrossaberes, cientficos, por outro, no tem uma soluo para nossa existncia. Por isso ela precisaria aceitar aWeltanschauung da cincia que, como a psicanlise, inclui seus limites e,

    por no alcanar auniformidade da explicao do universo [...] o faz apenas na qualidade de projeto, cuja realizao relegada ao futuro (p. 156). J em 1895 essa a visada freudiana,quando anota em seus papis que jamais publicaria que A finalidade desse projeto estruturar uma psicologia que seja uma cincia natural [...] isto representar os processos psquicos como estados quantitativamente determinados (1895[1950]/2006, p.102).

    Em seu Projeto, como vimos, faz uma primeira tentativa, mas subvertendo qualquer possvel relao direta com o cientismo quando, ao esquematizar o psiquismo pela via dasletras que aparecem designando sistemas e quantidade de energia do aparelho subordina

    sua primeira explicao sobre o aparelho psquico, que se tornou o fundamento para ametapsicologia, ao discurso da cincia no que ele tem de mais distante, justamente, de uma

    Weltanschauung : a matematizao ou, melhor, a matemizao, como diria Jacques Lacananos depois, de seus conceitos.

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    Cinco anos depois, ao publicar A Interpretao dos sonhos , sustenta que existe um pensamento inconsciente e que possvel de construir um mtodo cientfico para ainvestigao desse inconsciente. A Interpretao dos sonhos explicita o ncleo do programa

    epistemolgico da psicanlise, a cincia do inconsciente, ou seja, uma cincia que localiza o pensamento fora da conscincia de si. Trata-se doCogito freudiano (MILNER, 1996) quesubverte o cartesiano, sem de deixar de responder s exigncias cientficas doCogito : 1-Excluso de todo e qualquer contedo qualitativo do saber, do domnio do pensamento; 2- Oevanescimento do sujeito.

    O segundo axioma diz respeito que o sujeito do inconsciente aparece em um carter pontual. Tal proposio fica mais clara em seu artigo de 1915O inconsciente.

    Em 1915, Freud afirma, logo de incio, que nas lacunas do consciente que se deve

    procurar o caminho para o inconsciente: nas formaes do inconsciente, como as nomeia. Noque se refere s suas caractersticas, nenhum processo qumico ou psicolgico pode dar-nosqualquer ideia a respeito da sua natureza. Estas lacunas no significam uma negao do pensamento, pelo contrrio, elas significam que o domnio do pensamento o inconscienteque possui uma lgica diferente da conscincia de si. Tomando como modelo a forma pelaqual Milner (1996), conceitua o inconsciente freudiano, atravs desse artigo metapsicolgico, podemos afirmar que o conceito de inconsciente pode ser delimitado a partir de quatro proposies. So elas: 1- Existem pensamentos inconscientes; 2- Existem pensamentos que

    so estranhos conscincia de si; 3- O sonho, o chiste, o ato falho, e o sintoma so pensamentos estranhos conscincia de si; 4- A conscincia de si no a propriedadehegemnica do pensamento; 5- O sonho, o chiste, o ato falho, e o sintoma so a via rgia doinconsciente.

    Atravs do conceito de inconsciente, podemos entender que o sujeito do pensamentono sua identidade, o que dessubstancializa oCogito cartesiano. OCogito freudianoresponde s exigncias da cincia moderna visto que ele no uma realidade emprica poisa ordem do sensvel no interessa em nada a cincia e nem a psicanlise e que sua

    teorizao se fundamenta na excluso de todo e qualquer contedo qualitativo do saber. DaLacan deduzir que a psicanlise opera justamente com o que a cincia excluiu do seu campodo saber: o sujeito. Este, por sua vez, no pode ser apreendido, como um objeto emprico.Podemos pensar, com o auxlio de Lacan (1954-1955/2010), que o que Freud coloca emquesto atravs da teoria psicanaltica que o sujeito e o objeto no so de maneira nenhuma

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    a materializao da teoria. Portanto, a cincia trabalha com a teorizao e no pelaquantificao baseada nos fatos observados (KOYR, 1991).

    Como argumentamos, os reformadores da cincia, dentre eles Galileu e Descartes,

    realizaram a destruio de um mundo no qual a forma de se construir o conhecimento seria aatribuio de qualidades e o senso comum. A consequncia da revoluo cientfica foi aconstituio de uma histria de retificao na qual a produo de conhecimento pelo primadoda experincia (aquela criada pelos rgos do sentido) foi o primeiro obstculo a serderrubado.

    Os historiadores da cincia de base positivista insistem no seu carter emprico econcreto em oposio o carter lgico-abstrato para definir a estrutura do fazer cientfico. Tal posio de histria das cincias defende que o conhecimento cientfico se constituiu atravs

    de uma evoluo da experincia propiciada pelos rgos dos sentidos e no uma ruptura comela, justamente. Entretanto, como destaca Koyr (1991e), no foi a experincia, mas sim, aexperimentao:

    Uma pura coleo dos dados da observao no constitui uma cincia. Os fatosdevem ser ordenados, interpretados, explicados. Em outras palavras, s quandosubmetido a um tratamento terico que o conhecimento dos fatos se torna umacincia (1991e, p.272).

    No modo em que a cincia opera, o experimento funciona como um mtodo de produo de dados regido pela matematizao. De acordo com Koyr (1991e), quando

    Galileu declarou que o livro da natureza escrito em caracteres geomtricos, fez com que aobteno do conhecimento fosse vinculada ao arranjo matemtico. O experimento s existecomo uma hiptese, um modo de dar realidade teoria.

    H uma distino em Koyr entre a quatificao e a matematizao do real. Eledescreve a matematizao prpria do trabalho cientfico, como um processo de formalizao,isto , uma substituio de uma concepo baseada no imaginrio da experincia, para umaconcepo baseada no arranjo simblico da teoria. como Lacan retomar Koyr naarticulao com sua leitura do estruturalismo.

    O Estruturalismo disjunto do positivismo

    De acordo com Coelho (1967), no podemos falar de um conceito nico para o termoestruturalismo. As diversas disciplinas constitudas sobre a gide do estruturalismo seconstruram sobre uma orientao de escolas lingsticas totalmente diferentes, tornando

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    Lacan questiona: O que o sujeito? para logo afirmar: O sujeito ningum. Ele decomposto, despedaado. E ele se bloqueia, aspirado pela imagem, ao mesmo tempoenganadora e realizada do outro, ou, igualmente, por sua imagem especular. L, ele encontra

    sua unidade (1954-1955/2010, p.79). Com isso, rompe com a ideia de uma substncia para osujeito e introduz uma interao tica dinmica entre sujeito e estrutura (COSTA-MOURA &SILVA, 2012, p. 379). Sendo o eu uma iluso que se constitui por uma identificao, o sujeitono o eu, localiza-se no inconsciente que constitudo pela estrutura e linguagem simblica.Eis tambm o que Lvi-Strauss no compreendeu, porque no era, justamente, um psicanalista. Como observa Elia (2012, p. 13), Lvi-Strauss questiona Lacan por causa do usoque faz do estruturalismo que surgiu para retirar o humanismo das ciencias conjecturais evem voc insistir em enfiar esse tal de sujeito na estrutura!. Na realidade, esse tal de

    sujeito de Lacan, no representava a reintroduo, pela porta dos fundos, do humanismo[...], mas a incidncia do real, do irredutvel ao simblico, na prpria estrutura (Elia, idem).

    Levaria ainda alguns anos para Lacan demonstr-lo de forma definitiva, o queaconteceu no momento em que pode definir o campo da psicanlise como distinto do campoda lingustica que estuda a linguagem desencarnada (CALDAS, 2012, p. 88), ou seja, o lugarda estrutura em psicanlise como derivado, antes de tudo, delalangue , conceito e neologismoque faz o equvoco entre a lngua, a linguagem e a lalao do beb em um tempo anterior aoda fala.

    A emergncia do sujeito

    A psicanlise desempenha no mundo moderno a funo de teorizar sobre o sofrimento particular atravs do universal do conceito. Para tanto, ela opera com o que a cincia excluidos seus clculos: o sujeito e sua verdade. A hiptese fundamental desse trabalho implicousustentar que os conceitos psicanalticos se direcionam ao sujeito do inconsciente que, pordefinio, no pode ser dotado de realidade emprica ou de unidade. Por se direcionar a um

    sujeito, a psicanlise se vale da materialidade presente na palavra e na linguagem comosuporte da constituio subjetiva. A linguagem e as palavras, para a psicanlise, soelementos no naturais constituintes da ordem humana.

    Os axiomas citados serviram de alicerce para avaliar a psicanlise como uma dasconsequncias lgicas do aparecimento da cincia. Com base no recurso de Lacan a Koyr, pode-se vislumbrar que enquanto Galileu tornou possvel a literalizao do real, Descartes

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    elaborou o sujeito da cincia atravs docogito . Esse sujeito coloca seu modo de emergnciano pensar, por isso ele um sujeito totalmente dessubstanciado e evanescente, visto que ele semerge no momento de irrupo do pensamento. O pensamento, desprovido de todos osdados empricos e de substncia fundamenta o inconsciente freudiano. O conceito freudianode inconsciente retificou ocogito cartesiano, tirando do pensamento, as qualidades empricas.

    A psicanlise se aproxima dos axiomas da cincia ao destituir seu objeto de todocarter emprico. A ordem do sensvel no interessa em nada a cincia e nem a psicanlise. Oque psicanlise efetua a partir da sua teoria a ciso entre o sujeito e o objeto. A lgica defuncionamento inconsciente introduz a separao radical entre o campo das representaes e ocampo da coisa. Isso est presente na prpria constituio subjetiva, e nos conduz a afirmarque o sujeito no pode ser apreendido, como um objeto emprico. Pode-se confirmar, com o

    auxlio de Lacan (1954-1955/2010), que o que Freud coloca em questo atravs da teoria psicanaltica que o sujeito e o objeto no so de maneira nenhuma a mesma coisa. O ser do ponto de vista cientfico, no pode ser apreendido, pois o ser no da ordem cientfica.

    Para concluir, preciso lembrar que Lacan utilizou clinicamente o conceito deestrutura (ROCHA MIRANDA, 2012, pp. 425-6), e isso para incluir nele o registro do real.Assim, o real que comanda toda significncia no campo estabelecido por Freud (idem, p.427) e, em ltima instncia, essa a grande subverso desse campo. Da ser compreensvel adificuldade de outros discursos alcanarem a representabilidade da psicanlise, ela, na

    verdade, no existe, o real se define por estar fora do simblico.

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    PSYCHOANALYSIS AND SCIENCE: the emergence of a subject without qualities

    ABSTRACT: This paper aims to contribute to the debate between psychoanalysis and science as the basisfor the emergence of the subject as defined by psychoanalysis. Part of the appeal to Koyredone by Lacan to the epistemological reorganization of psychoanalysis in the modern world.This feature allows to hypothesize that psychoanalysis, in addition to subvert the Cartesiansubject, and be affiliated with science, is the most effective tool to make a hole in biologicistknowledge supported the ideologies of quantification of the real and the epistemological error psychological realism.

    KEYWORDS: Psychoanalysis. Science. Subject.

    LA PSYCHANALYSE ET DE LA SCIENCE: l'mergence d'un sujet sans qualites

    RESUME:

    Cet article vise contribuer au dbat entre la psychanalyse et la science comme fondement pour l'mergence du sujet tel que dfini par la psychanalyse. Une partie de l'appel Koyr fait par Lacan la rorganisation pistmologique de la psychanalyse dans le monde moderne.Cette fonction permet de faire l'hypothse que la psychanalyse, en plus de subvertir le sujetcartsien, et tre affili la science, est l'outil le plus efficace pour faire un trou dans laconnaissance biologicist soutenu les idologies de la quantification du rel et de l'erreurpistmologique ralisme psychologique.

    MOTS-CLS:Psychoanalysis. Science. Sujet.

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    Recebido em: 15-10-2012Aprovado em: 03-12-2012

    2013 Psicanlise & Barroco em revista

    www.psicanaliseebarroco.pro.br

    Ncleo de Estudos e Pesquisa em Subjetividade e Cultura UFJF/CNPq

    Programa de Ps-Graduao em Memria Social UNIRIO.

    Memria, Subjetividade e Criao.

    www.memoriasocial.pro.br/proposta-area.php

    [email protected] www.psicanaliseebarroco.pro.br/revista