PSICOLOGIA E A QUESTÃO DAS IDENTIDADES SURDAS · Seminário de Educação Bilíngue ... que...
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Congresso Internacional
Seminário de Educação Bilíngue para Surdos
Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educação. Salvador/BA.
Biblioteca Professor Edivaldo Machado Boaventura. CDD: 371.912
Volume 1, 2016. Páginas: 258-271. Publicação: 24 de Abril de 2017
ISSN: 2526-6195
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PSICOLOGIA E A QUESTÃO DAS IDENTIDADES SURDAS
Ester Maria Dias Fernandes de Novaes1
Juliana Lopes Souza2
Zirlene dos Santos Matos3
Universidade do Estado da Bahia
Departamento de Educação. Colegiado de Psicologia
RESUMO
A identidade não é algo inato ao indivíduo, mas um elemento que é adquirido aos
poucos, no decorrer da vida dos sujeitos. Logo, diversos fatores perpassam por ela,
como a educação, o contexto familiar e sociocultural, dentre outros. Nesse sentido,
entende-se o conceito de identidade no campo da diversidade e de forma dinâmica.
Discutir identidade, desse modo, é discutir diversidade, e esse é um debate que precisa
acontecer cada vez mais, considerando que na sociedade existem preconceitos e
estereótipos que influem na vida das pessoas, sobretudo na vida dos surdos. Diante
disso, o presente estudo, que é fruto de um trabalho apresentado no componente
curricular Libras no curso de Psicologia da Universidade do Estado da Bahia, apresenta
uma discussão teórica acerca da questão das identidades surdas no campo da Psicologia.
Nosso objetivo é entender de que maneira a Psicologia pode auxiliar na compreensão
das identidades e da constituição destas nos sujeitos surdos para que, a partir disso,
possa-se pensar nas possíveis contribuições desta área para estas comunidades. Por sua
vez, a metodologia se pautou em uma breve revisão de literatura em livros e bancos de
dados científicos, nos quais se buscou produções que discutissem a relação entre
Psicologia, Identidade e Surdez. Quanto à conclusão, percebe-se que a Psicologia
precisa estar atenta a que concepção de surdez ela estará a serviço, de maneira a não
ratificar preconceitos já existentes na sociedade, mas colaborar para a erradicação dos
estigmas referentes às pessoas surdas, elucidando a sua constituição subjetiva e
identitária.
Palavras-chave: Identidade; Surdez; Psicologia.
INTRODUÇÃO
1 Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado da Bahia. E-mail: [email protected]
2 Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado da Bahia. E-mail: [email protected]
3 Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado da Bahia. E-mail:
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A formação da identidade do sujeito perpassa por diversos fatores que interferem na
sua forma de ser e estar no mundo, afinal, embora existam elementos que aproximem os
indivíduos e lhes confira o status de humano, há algo essencial que os difere e os torna
únicos em sua constituição: a subjetividade. Por subjetividade, entende-se aquilo que é
concernente ao indivíduo, mas que é construído de forma dinâmica através do contato
com o outro. Mansano (2009, p.111),baseando-se na obra de Félix Guattari, esclarece
que “a subjetividade não implica uma posse, mas uma produção incessante que acontece
a partir dos encontros que vivemos com o outro”. Nesse sentido, podemos dizer que a
subjetividade é o ponto de partida para a formação da identidade, haja vista que ela é
primordial para a diferenciação dos sujeitos em suas singularidades.
Discutir subjetividade, no entanto, não é uma tarefa fácil, pois existem inúmeras
perspectivas ao seu respeito, dentre as quais aquelas que a consideram como algo
intrínseco às pessoas. Ao invés de entendê-la segundo este parâmetro, contudo, optamos
por considerar a subjetividade a partir de uma ótica que é formada no social, de maneira
que possamos apreender o sujeito como um constructo de suas experiências e de suas
relações, estando, portanto, em constante transformação.
É nessa perspectiva, então, que podemos introduzir de maneira mais diretiva o conceito
de identidade. A partir da compreensão do sujeito dinâmico que está constantemente em
mudança, entendemos que a identidade não é algo estático e inerente ao sujeito, mas que
ela é adquirida aos poucos no decorrer das relações que o indivíduo estabelece com o
meio no qual está inserido.
Martinelli (1995, p.142 apud FERNANDES, s/d, p.2) “situa o conceito de identidade no
campo da diversidade, do movimento, da alteridade e da diferença, em contraposição à
ideia de identidade como permanência”. Nesse contexto, ter uma identidade é sinônimo
de uma identificação com o que está estabelecido na cultura e no meio social. Isto é, ela
situa-se no campo das identificações, no cenário em que o sujeito se reconhece a partir
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do outro e através disso passa a construir a si mesmo. Por este motivo, não existe uma
forma exata de se tornar sujeito ou de se constituir uma identidade; a identidade é
formada pela diferença, e é isso que constrói a pluralidade social e a diversidade com a
qual convivemos.
É nessa perspectiva da diversidade, portanto, que o presente estudo se introduz, uma vez
que estamos discutindo aqui sobre “um contexto que é transformado e movimentado no
desenrolar da diversidade” (FERNANDES, s/d, p.4) e não no plano da busca pela
igualificação que segrega. Isto é, este estudo, que é fruto de um trabalho apresentado no
componente curricular Libras, no curso de Psicologia da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), apresenta uma discussão teórica acerca da questão das identidades
surdas no campo da Psicologia. Nosso objetivo é entender de que maneira a Psicologia
pode auxiliar na compreensão das identidades e da constituição destas nos sujeitos
surdos, para que, a partir disso, possa-se pensar nas possíveis contribuições desta área
para estas comunidades.
A fim de alcançar este objetivo, a metodologia deste trabalho se pautou em uma breve
revisão de literatura em livros e bancos de dados científicos, nos quais se buscou
produções que discutissem a relação entre Psicologia, Identidade e Surdez. A partir dos
materiais encontrados foi feita uma seleção daqueles que respondiam à proposta de
discutir identidade enquanto uma categoria importante para a formação do sujeito e
também daqueles que apontavam contribuições da Psicologia no campo da Surdez.
Sendo assim, concluiu-se que “as pesquisas caminham no sentido de se pensar na
constituição subjetiva do sujeito surdo” (MELO, 2011, p.76) e que, diante disso, a
Psicologia precisa se posicionar de forma crítica acerca da questão das identidades
surdas, desmistificando os estereótipos e colaborando para a integração destes sujeitos
na sociedade.
O CONCEITO DE IDENTIDADE
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O conceito de identidade foi desenvolvido a partir dos estudos de Antonio Ciampa,
psicólogo social que, em meados da década 1980, entendeu este conceito como uma
categoria importante a ser estudada. Ciampa (1987) apreendeu a identidade como uma
metamorfose, uma vez que ela se encontra em constante transformação. Esta concepção
ganhou notoriedade e, a partir disso, novas investigações acerca da temática foram
desenvolvidas.
De acordo com os estudos antropológicos apresentados por Garcia (1993, p.135), por
exemplo, a concepção de identidade “fornece um modo de pensar a identidade diferente
daquele que a representa como uma entidade dada, fixa e fechada, resultante de uma
relação de determinação com certa instância que assim a funda, definindo-lhe uma
forma necessária”. Ou seja, a identidade não é uma categoria uniforme e estática, mas
um elemento que está em constante movimento, a partir do qual o sujeito se inscreve na
sociedade.
De modo semelhante, Cuche (1999, p.182), pautado numa perspectiva sociológica,
afirma que “não há identidade em si, nem mesmo unicamente para si. A identidade
existe sempre em relação a uma outra identidade”. Nessa perspectiva, portanto, a
identidade social é caracterizada pelo conjunto de vínculos em um sistema social, sendo
a maneira como o indivíduo se localiza no sistema social. Tais vínculos, permeados pela
identificação, é o que vai permitir que as pessoas com características e interesses
semelhantes se aproximem e desenvolvam o sentimento de pertencimento em relação a
determinado grupo.
No entanto, não podemos desconsiderar que um mesmo indivíduo integre diversos
espaços e ocupe diferentes papeis, logo, identifique-se com diferentes sujeitos. Tal
compreensão nos leva a entender, por conseguinte, que a identidade então, além de
dinâmica,
é transformada continuamente através dos papeis que o indivíduo assume ao longo da
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vida e que fazem parte da sua construção, partindo de uma identidade pressuposta.
Portanto, discutir identidade é discutir as possibilidades de apresentação do sujeito nos
seus mais variados papeis; é imprescindível, dessa forma, associar identidade à noção de
diversidade.
IDENTIDADE E DIVERSIDADE: A QUESTÃO DA SURDEZ
Todos os sujeitos possuem particularidades na sua forma de ser e estar no mundo, desse
modo, é totalmente equivocado buscar maneiras de padronizar os sujeitos sociais a fim
de estabelecer parâmetros do que é ou não aceitável como ideal ou normal.
Como vimos anteriormente, a formação da identidade perpassa pela identificação e pelo
encontro de subjetividades. Nesse sentido, não cabe falar em identidade, mas sim em
identidades, afinal, são múltiplas as formas de constituição do sujeito, e todas elas são
demarcadas por um elemento essencial: a diversidade.
Por diversidade, entende-se
um misto de pessoas com identidades grupais diferentes dentro do mesmo
sistema social, a heterogeneidade de culturas, crenças, metodologias, idade,
tempo de serviço, orientação sexual, modo de pensar e agir, vícios e
criatividade em solucionar problemas, reportando esse conceito para um
estudo dentro das organizações. (OLIVEIRA; RODRIGUEZ, 2004, p.3834)
Diversidade, portanto, é aquilo que faz da sociedade um contexto plural e enriquecedor,
onde o contato com o outro é imprescindível para a sua formação enquanto sujeito
ativo. Por isso, podemos afirmar que “a prática da valorização da diversidade estimula a
interação entre pessoas diferentes, proporcionando a troca de experiências e
enriquecimento de cada indivíduo que constitui o grupo” (OLIVEIRA; RODRIGUEZ,
2004, p.3834).
Diante disso, compreende-se que a diversidade é um fator primordial na vida social, e
por esta razão considerá-la é bastante necessário. Existem inúmeras categorias e grupos
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que podem ser entendidas no contexto da diversidade, mas aqui queremos nos ater em
uma em especial: as comunidades surdas.
Ao longo do tempo, a surdez foi entendida através de uma concepção clínicopatológica,
através da qual era encarada como uma patologia que precisava ser medicalizada. Por
isso, buscou-se de inúmeras formas enquadrar os surdos numa determinada esfera,
devido a qual eles foram estigmatizados por muito tempo, retirando-se deles a sua
dimensão subjetiva, impedindo-lhes de serem considerados sujeitos sociais.
Skliar (1997, p.83 apud SEVERO, 2015, p.23) pontua que isso se deu através de uma
perspectiva reducionista apresentada pela Psicologia da Surdez, cuja ideia “confunde a
natureza biológica do déficit auditivo com a natureza social que é consequência ao
déficit”. Com isso, algumas ideias foram propagadas intentando desconsiderar as
identidades inerentes à comunidade surda e assim buscou-se excluir socialmente os
surdos ou encaixá-los, de alguma forma, no padrão social tido como normal, a saber,
como ouvintes.
No entanto, embora tais ideias tenham sido bastante difundidas e causado muitos
problemas para a comunidade surda, como, por exemplo, o não-reconhecimento de sua
subjetividade plena, perspectivas críticas acerca da surdez começaram a surgir,
propondo então um novo paradigma. Foi o que se deu com a concepção
socioantropológica, que buscava reconhecer e garantir o direito dos sujeitos surdos a
terem acesso à língua de sinais, sua língua natural.
A partir dessa concepção, o sujeito surdo começou a ser visto como membro de uma
comunidade linguística minoritária e a sua cultura passou a ser compreendida como rica
e plena. Com isso, então, deu-se início à defesa de uma educação bilíngue, de modo a
garantir este direito para tais sujeitos, uma vez que a linguagem marca o ingresso do
homem na cultura, constituindo-o como sujeito capaz de produzir transformações.
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Em se tratando de uma mudança de paradigma, contudo, observa-se que ainda existem
alguns preconceitos sociais acerca da comunidade surda. Não obstante, importantes
avanços já foram alcançados no que tange ao reconhecimento do seu status de sujeito e
das diversas identidades dessa comunidade, compreendendo que “a identidade implica o
processo de consciência de si própria, sendo que esta ocorre por meio de relações
intersubjetivas, de comunicações lingüísticas e experiências sociais, tornando-se um
processo ativo” (DORAT; PAROT, 2001 apud MELO, 2011, p.67).
Diante disso, porém, é importante ressaltar que “a constituição da identidade pelo surdo
não está, necessariamente, relacionada à língua de sinais, mas sim, à presença de uma
língua que lhes dê a possibilidade de construir-se no mundo como ‘falante’”
(SANTANA; BERGAMO, 2005 apud MELO, 2011, p.67). Por isso, salientamos
também que não existe uma identidade exclusiva e única como identidade surda; ela é
construída por papéis sociais diferentes e também pela língua que constrói nossa
subjetividade.
Em suma, portanto, o reconhecimento do caráter cultural que envolve a surdez e a sua
visão social nos permite compreender a importância de se tratar da questão das
identidades surdas, como veremos mais detalhado a seguir.
IDENTIDADE, SURDEZ E PSICOLOGIA
Diante do que já foi discutido até aqui, é possível observar que a identidade é algo que
está em constante movimento e, por isso, não se caracteriza como um elemento dado ao
indivíduo, mas construída a partir de suas relações sociais. Dessa forma, para que o ser
humano se constitua enquanto tal, é necessário outro indivíduo com o qual ele se
identifique; esse processo é denominado alteridade. Isto posto, entende-se que a questão
da surdez suscita muitas discussões, uma vez que as relações que o surdo estabelece são
permeadas de significados e símbolos característicos de sua língua própria e de sua
identificação enquanto sujeito.
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A comunidade surda tem alcançado seu espaço ao longo dos anos lutando pelos seus
direitos e manifestando sua coragem em desconstruir estigmas que foram sendo
desenvolvidos no decorrer da história da humanidade. Neste sentido, Dalcin (2009,
p.13) aponta que
Atualmente, a comunidade surda, através do resgate de sua cidadania,
apresenta um reencontro com sua cultura e sua história, reescrevendo-a, sobre
seu olhar, reivindicando o direito legítimo de falar sobre si mesmo, visando
romper com a descrição, classificação e o rótulo de comportamentos
imputados e que a transformaram em incapacitada, arrancando-lhe o direito
de viver em liberdade e de ter escolhas e possibilidades de futuro.
Isso significa que a cultura surda carrega em si uma identidade conquistada que
singulariza sua população não apenas pelo fato dos membros não poderem escutar, mas
também pela forma como se expressam e utilizam sua linguagem de maneira única e tão
representativa. Partindo desse pressuposto, verifica-se que os aspectos sociais da surdez
devem ser levados em consideração, tendo em vista que a constituição do sujeito se
coloca sob influência significativa do meio no qual ele está inserido. Dessa forma, “na
psicologia o problema da criança deve ser apresentado e compreendido como um
problema social, porque o aspecto social, antigamente diagnosticado como secundário e
derivado, de fato é o fator principal e primário” (VYGOTSKY, 1989a apud GESUELI,
2006, p. 279).
De modo semelhante, Orlandi (2001), em uma pesquisa sobre o cotidiano escolar e suas
variações linguísticas, observou que a identidade é um movimento na história através do
qual ao significar o sujeito, significa-se; a identidade não resulta de processos de
aprendizagem, mas refere-se a posições que se constituem em processos de memória
afetados pelo inconsciente e pela ideologia. Além disso, os processos de significação
são constituídos por um deslize que se dá em redes de filiações históricas.
Diante disso, o sujeito surdo precisa ser entendido como sujeito de direitos e deveres, e
que perpassa pelo mesmo campo subjetivo para se estabelecer enquanto tal. Em outras
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palavras, da mesma maneira que o indivíduo ouvinte constrói sua subjetividade e
identidade a partir das relações desenvolvidas em seu meio social, o surdo percorre o
mesmo caminho.
É nessa perspectiva, portanto, que a Psicologia se insere diante desta questão. Quer
dizer, a fim de compreender o posicionamento desta área diante das identidades surdas,
é preciso identificar qual a concepção de surdez que é adotada por ela, pois, a depender
dessa concepção, haverá uma visão diferente sobre as identidades do sujeito surdo.
Desse modo, cabe nessa seção fazer uma breve contextualização histórica sobre o modo
como a surdez e o sujeito surdo eram vistos, inicialmente, pela Psicologia e, a partir
disso, pontuar a sua concepção atual que visa erradicar os estigmas sobre o sujeito
surdo, outrora ratificados por ela.
Como já mencionado no presente artigo, inicialmente, de acordo com Dalcin (2009), a
Psicologia compreendia a surdez conforme a perspectiva clínica-patológica, na qual o
foco era a doença, compreendendo-a como algo incapacitante, o que tornava o indivíduo
que a possuía um ser anormal. Além disso, esta área interessava-se, principalmente, pelo
desenvolvimento na área de educação dos surdos (BISOL; SIMIONI; SPERB, 2008).
Nota-se, assim, que a partir dessa concepção o objetivo no tratamento desses pacientes
era a reabilitação auditiva, a fim de possibilitar a sua inserção no contexto dos sujeitos
tido como normais, que não tinham a audição comprometida, por meio da oralização.
Nesse sentido, Dalcin (2009, p. 7) pontua que
a psicologia absorveu o discurso clínico que cataloga e classifica o surdo
como “enfermo” e o inclui no rol das deficiências, descrevendo-o como
“incapaz”, “impossibilitado”, “defeituoso”, “anormal”, “inferior”, resumindo-
o como portador de um par de orelhas não funcionais, “audição defeituosa”,
“deteriorização auditiva”, entre outras, culminando com a designação de
“deficiente auditivo”
Ao corroborar com o discurso clínico referente ao surdo, a Psicologia limitou-se apenas
a um âmbito da vida do sujeito, a perda auditiva e a limitação comunicativa gerada por
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ela, desconsiderando que este precisa ser compreendido com toda a sua complexidade,
indo além da questão patológica. Dessa forma, segundo Dalcin (2009), a Psicologia não
conseguia enxergar que havia uma forma própria desse indivíduo se expressar para o
mundo, ou seja, que havia outra forma de se comunicar além da língua oral, que
permitiria ao sujeito ser inserido no contexto social.
Por isso, Dalcin (2009) pontua que, embora a língua de sinais permitisse que os surdos
se comunicassem, esta forma de se comunicar era vista negativamente e não era
reconhecida
como uma modalidade de língua. Isso fez com que a Psicologia se colocasse sob a
perspectiva do modelo clínico-terapêutico, em que o foco não era o sujeito como um
todo, incluindo a sua subjetividade, mas sim a sua doença.
De acordo com essa mesma autora, durante muitos anos a Psicologia limitou-se a
realizar diagnósticos dos sujeitos surdos, nos quais este era, por vezes, avaliado
incorretamente, uma vez que os profissionais que realizavam essas avaliações, na
maioria das vezes, não dominavam a língua de sinais. Essa limitação por parte do
profissional dificultava ou até mesmo impossibilitava o contato do psicólogo com o
paciente surdo que era avaliado. No entanto, no decorrer dos anos, a Psicologia passou a
ter uma visão mais ampliada sobre o sujeito surdo percebendo que este não devia ser
visto meramente como um portador de deficiência, mas sim como um sujeito que
possuía suas particularidades e conflitos, oriundos ou não da surdez.
Sobre essa mudança de perspectiva da Psicologia referente à questão da surdez, Dalcin
(2009, p. 14) afirma que: “a psicologia [...] é remetida para a dimensão subjetiva
possibilitando um trabalho de escuta do sujeito surdo e de sua comunidade”. Desse
modo, a Psicologia passa a enxergar o sujeito além da surdez, compreendendo-a como
algo que faz parte do sujeito, mas que não o incapacita e nem o impede de relacionar-se
socialmente com os outros ou que seja sinônimo de deficiência cognitiva ou problemas
psicológicos, como se acreditava no passado.
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Em um levantamento bibliográfico realizado por Bisol, Simioni e Sperb (2008), os
pesquisadores brasileiros do ramo da Psicologia têm se voltado principalmente para
estudos no modelo socioantropológico, o que comprova que, de fato, os profissionais de
Psicologia têm abandonado cada vez mais a visão clínica-patológica. A partir disso,
observa-se que a Psicologia tem se preocupado com questões relacionadas à identidade
surda e percebido que o sujeito surdo deve ser visto muito além da perda auditiva, seja
ela parcial ou total.
Além deste modelo, outra maneira de conceber o sujeito surdo no âmbito da Psicologia
é através da visão psicanalítica cujo foco não é tratar a doença e sim o sujeito que faz
sintoma. Desse modo, a Psicanálise preocupa-se com “a constituição subjetiva do surdo
e não a cura da surdez” (SOLÉ, 2004 apud BISOL; SIMIONI; SPERB, 2008, p.396).
No entanto, apesar de não se prender à questão patológica, essa abordagem reconhece
que a surdez irá influenciar na constituição de identidade do sujeito pois “marca o
destino identificatório de cada sujeito e a privação da fala coloca em perigo a
possibilidade de transmissão transgenealógica dos enunciados identificatórios,
sustentados pela fala que os
pais ouvintes receberam de seus próprios pais” (SOLÉ, 1998, p.21 apud BISOL;
SIMIONI; SPERB, 2008, p.397).
Ao abandonar a concepção do sujeito surdo baseado no modelo clínico-terapêutico e
adotar o modelo socioantropológico ou o viés psicanalítico, o qual considera que “não
há sujeito completo e harmônico, surdo ou ouvinte: a falta é constituinte do sujeito”
(MELO, 2011, p. 76), a Psicologia é convidada a não ratificar os preconceitos que
existem na sociedade e colaborar para a erradicação dos estigmas referente às pessoas
surdas, elucidando a sua constituição subjetiva e identitária.
Sobre essa mudança de perspectiva, a Psicologia passa a enxergar o sujeito além da
surdez, compreendendo-o como alguém dotado de subjetividade e que é capaz de
relacionarse socialmente com os outros, diferentemente do que se acreditava no
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passado, como passa a reconhecer também a diversidade das identidades surdas,
compreendendo que elas não são uniformes, mas podem ser diferenciadas por etnia,
nacionalidade, gênero, orientação sexual, status socioeconômico, profissão, dentre
outros. Isto é, existe uma gama de identidades surdas, tal qual existe uma gama de
identidades dos sujeitos ouvintes.
Aliás, acerca desse ponto, Melo (2011) apresenta a seguinte classificação para as
identidades dos sujeitos surdos: identidades surdas; identidades surdas híbridas;
identidades surdas de transição; identidades surdas incompletas; identidades surdas
flutuantes. Por identidade surda verdadeira, entende-se aquela “representada por sujeitos
surdos de nascença, com a língua de sinais como língua materna e inseridos na
comunidade surda” (MELO, 2011, p.70). Por sua vez, identidades surdas híbridas
“referem-se aos ouvintes que, por algum motivo (enfermidade, acidentes, entre outros),
perderam ou perdem a audição e se apropriam da Língua de Sinais para se comunicar.
Estes surdos conhecem a estrutura do português falado e usam-no como língua”
(MELO, 2011, p.72). Já as identidades surdas de transição estão presentes na situação
dos surdos filhos de ouvintes, os quais cresceram com a ideia da oralização (MELO,
2011). No que tange às identidades surdas incompletas, “os surdos vivem sob as
ideologias de pessoas ouvintes latentes que trabalham para socializar os surdos de
maneira compatível com a cultura dominante” (PERLIN, 1998 apud MELO, 2011,
p.72). Por fim, as identidades surdas flutuantes “estão presentes onde os surdos vivem e
se manifestam a partir da hegemonia dos indivíduos ouvintes” (MELO, 2011, p.72).
Diante do exposto, portanto, observa-se que as identidades surdas são permeadas por
características bem definidas que as compõem e as diferenciam, tornando os sujeitos
participantes de uma comunidade bem estruturada. Nesse sentido, a Psicologia, através
da perspectiva socioantropológica, precisa estar voltada para o reconhecimento destas
identidades e para a difusão de conhecimentos acerca delas, de modo que coopere para a
desmistificação dos estereótipos relacionados à surdez e desenvolva mais pesquisas
neste campo, que ainda possui poucos estudos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frente aos pontos elencados aqui, foi possível observar a identidade surda como algo
construído socialmente a partir das relações dos sujeitos surdos com o meio social no
qual estão inseridos, relações estas que se dão a partir do encontro de subjetividades.
Dessa forma, é relevante destacar que a comunidade surda caminhou uma longa jornada
para conquistar seus direitos e seu lugar na sociedade, tendo em vista que estigmas
foram sendo criados e com isso os surdos não tinha seu lugar no meio social.
Além disso, foram muitos anos até que a língua de sinais fosse considerada língua
oficial dos surdos, o que dificultou também o processo de reconhecimento das
identidades surdas. No entanto, a partir de uma importante mudança de paradigma,
importantes avanços foram conquistados, embora muitos outros precisem ser galgados.
Nesse sentido, aliás, embora reconheça-se a relevância do papel da Psicologia no que
tange à questão das identidades surdas, principalmente considerando que atualmente os
profissionais deste ramo têm se voltado mais para o modelo socioantropológico ou
psicanalítico, o que tem levado os psicólogos que atuam com os surdos a
compreenderem esse sujeito em sua totalidade, preocupando-se com a sua subjetividade,
salienta-se a necessidade de se continuar pensando esta temática de forma ampla, para
que não mais exista a propagação de estereótipos acerca da surdez, mas para que, ao
invés disso, haja a construção de ideias que visem a integração cada vez maior dos
sujeitos surdos na sociedade.
Em suma, entende-se que a Psicologia precisa estar atenta a que concepção de surdez
ela estará a serviço, de maneira a não ratificar preconceitos já existentes na sociedade,
mas colaborar para a erradicação dos estigmas referentes às pessoas surdas, elucidando
a sua constituição subjetiva e identitária.
ANAIS
Congresso Internacional
Seminário de Educação Bilíngue para Surdos
Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educação. Salvador/BA.
Biblioteca Professor Edivaldo Machado Boaventura. CDD: 371.912
Volume 1, 2016. Páginas: 258-271. Publicação: 24 de Abril de 2017
ISSN: 2526-6195
2016
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