Psicopatologia

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Transcript of Psicopatologia

  • Aviso

    Todoesforçofoifeitoparagarantiraqualidadeeditorialdestaobra,agoraemversãodigital.Destacamos,contudo,quediferençasnaapresentaçãodoconteúdopodemocorreremfunçãodascaracterísticastécnicasespecíficasdecada

    dispositivodeleitura.

    Nota: A medicina é uma ciência em constante evolução. Àmedida que novas pesquisas e a própria experiência clínicaampliamonossoconhecimento,sãonecessáriasmodificaçõesnaterapêutica, emque também se insere o uso demedicamentos.Os autores desta obra consultaram as fontes consideradasconfiáveisnumesforçoparaoferecer informaçõescompletase,geralmente, de acordo com os padrões aceitos à época dapublicação.Entretanto, tendo emvista a possibilidadede falhahumanaoudealteraçõesnasciênciasmédicas,osleitoresdevemconfirmarestas informaçõescomoutrasfontes.Porexemplo,eem particular, os leitores são aconselhados a conferir a bulacompleta dequalquermedicamentoquepretendamadministrarpara se certificar de que a informação contida neste livro estácorretaedequenãohouvealteraçãonadoserecomendadanemnas precauções e contraindicações para o seu uso. Essarecomendação é particularmente importante em relação amedicamentos introduzidos recentemente no mercadofarmacêuticoouraramenteutilizados.

  • PsicopatologiaeSemiologiados

    TranstornosMentais

    PauloDalgalarrondo

    ProfessorTitulardePsicopatologiadaFaculdadedeCiênciasMédicasdaUnicamp.

    DoutoremAntropologiaSocialpeloInstitutodeFilosofiaeCiênciasHumanasdaUnicamp.

    DoutoremMedicinapelaUniversidadedeHeidelberg,Alemanha.

    Versãoimpressadestaedição:2019

    2019

  • ©ArtmedEditoraLtda.,2019

    Gerenteeditorial:LetíciaBispodeLima

    Colaboraramnestaedição:

    Coordenadoraeditorial:CláudiaBittencourt

    Capa,projetográficoeeditoração:PaolaManicaeequipe

    Preparaçãodooriginal:CamilaWisnieskiHeck

    Leiturafinal:AntonioAugustodaRoza

    Ilustrações:GilneidaCostaCunha

    Produçãodigital:Loope|www.loope.com.br

    D142p Dalgalarrondo,Paulo.Psicopatologiaesemiologiadostranstornosmentais[recursoeletrônico]/PauloDalgalarrondo.–3.ed.–PortoAlegre:Artmed,2019.E-pub.Editadotambémcomolivroimpressoem2019.ISBN978-85-8271-506-2

    1.Psicopatologia.2.Transtornosmentais.I.Título.

    CDU616.89-008

    Catalogaçãonapublicação:KarinLorienMenoncin–CRB10/2147

    ReservadostodososdireitosdepublicaçãoàARTMEDEDITORALTDA.,umaempresadoGRUPOAEDUCAÇÃOS.A.Av.JerônimodeOrnelas,670–Santana90040-340–PortoAlegre–RSFone:(51)3027-7000Fax:(51)3027-7070

    SÃOPAULORuaDoutorCesárioMotaJr.,63–VilaBuarque01221-020–SãoPaulo–SPFone:(11)3221-9033

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    Éproibidaaduplicaçãooureproduçãodestevolume,notodoouemparte,sobquaisquerformasouporquaisquermeios(eletrônico,mecânico,gravação,fotocópia,distribuiçãonaWebeoutros),sempermissãoexpressadaEditora.

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  • Paraminhamãe,MariaTeresa,quemeensinouacuriosidadeportudooqueéhumano.

  • Rigorosamente,todasestasnotíciassãodesnecessáriasparaacompreensãodaminhaaventura;maséummododeirdizendoalgumacoisa,antesdeentraremmatéria,paraaqualnãoachoportagrandenempequena;omelhoréafrouxararédeaàpena,eelaqueváandando,atéacharentrada.Hádehaveralguma;tudodependedascircunstâncias,regraquetantoserveparaoestilocomoparaavida;palavrapuxapalavra,umaideiatrazoutra,eassimsefazumlivro,umgoverno,ouumarevolução;algunsdizemmesmoqueassiméqueanaturezacompôsassuasespécies.

    MachadodeAssis(emPrimasdeSapucaia,Históriassemdata,1884)

  • Prefácioà3ªedição1

    Esta nova edição dePsicopatologia e semiologia dos transtornos mentais foicuidadosaeamplamenterevista,buscandoofereceraestudanteseprofissionais,além de conceitos descritivos da rica tradição da psicopatologia, osconhecimentos científicos contemporâneos mais relevantes sobre a mentehumana e seus transtornos. Assim, considerando os sistemas diagnósticos detranstornos mentais da atualidade (DSM e CID), são apresentados conceitospsicopatológicos, diretrizes e critérios diagnósticos, sempre que possível,correspondentes às versões mais recentes desses sistemas. Foi consultada arecém-publicadaclassificaçãodaOrganizaçãoMundialdaSaúde,CID-11,alémdas publicações sobre tal classificação. Buscou-se, ainda, integrar conceitos edefinições da nova linha de pesquisa em transtornos mentais, o chamadoResearch Domain Criteria (RDoC), do National Institute of Mental Health(NIMH),dosEstadosUnidos.

    A psicopatologia é, não se deve esquecer, uma linguagem, um idioma; e,comojáassinalouograndepsicopatólogofrancêsPhilippeE.A.Chaslin(1857-1923), uma ciência bem feita necessita de um idioma bem construído, claro,compreensívelehonestoparaacomunicaçãodosfatosclínicos.

    Além da expansão e da atualização do conteúdo, foi desenvolvido, para apresente edição, um hotsite exclusivo em que o leitor pode acessar materiaiscomplementares, como: instrumentos, escalas e modelos de histórias clínicas,queauxiliarãoemsuapráticaclínica;textoshistóricoscitadosnolivro,paraosinteressadosemconhecerahistóriadapsicopatologiaesuasbasesconceituais;um breve atlas com imagens neuroanatômicas, para ajudar os estudantes nacompreensão dos conteúdos; instrumentos padronizados de avaliaçãopsicológicaeneuropsicológica,parapesquisaoumesmoparaavaliaçõesclínicasquantificáveis (ou mais objetificáveis); além de questões para revisão dosconhecimentos adquiridos em cada capítulo e um glossário de denominaçõespopulares relacionadas a comportamentos, estados e transtornos mentais,substânciaspsicoativasepsicopatologiaemgeral.

    Não posso deixar de mencionar e agradecer a um grupo de professores,profissionaiseestudantesdegraduaçãoquegentilmentecontribuíramcomesta

  • novaedição,lendocriticamenteasprimeirasversões,apontandofalhasefazendovaliosas sugestões. O psicólogo de nosso departamento na Unicamp, LuizFernandoL.Pegoraro, contribuiu com revisões detalhadas de vários capítulos,assim como com orientações e sugestões referentes a testes padronizados emavaliação psicológica e neuropsicológica. A psicóloga Rafaela T. Zorzanelli,professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), leu e fezvaliosassugestõessobreoscapítulosepontosdeinterfaceentrepsicopatologiaeepistemologia, filosofia e antropologia médica. Lucas F. B. Mella e LuizFernando Lima e Silva, psiquiatras de idosos da Unicamp, revisaramcuidadosamenteostemasdepsicopatologiadoidoso.

    Meucompanheirofraternonapsicopatologia,comquembusco,nodiaadia,adecifraçãodepacientescomtranstornosmentaisgraveseintrigantes,ClaudioE.M.Banzato,leu,comentouerevisoupartesimportantesdolivro,semprecomolhar apurado e mente lúcida. Fez sugestões valiosíssimas, com precisão egenerosidade.

    Também leram os rascunhos desta edição Gabriela Jacques de MoraesDalgalarrondoeLetíciaDaherPereira,estudantesdegraduaçãoempsicologia,eLuísa Rocco Banzato, Elisa de Carvalho Iwamoto e Rafael Daher Pereira,estudantes de medicina, devolvendo ao autor uma primeira perspectiva queestudantesdegraduaçãoterãoaolerolivro.Permitiram,assim,queeupudesseadequar aomáximo o texto aos leitores nas diversas fases do aprendizado. Omédico-residente em psiquiatria Rafael Gobbo me ajudou com sugestões nocapítulo sobre sexualidade.Luísa JacquesdeMoraesDalgalarrondocontribuiunostemasrelacionadosapercepçãoeemoção,sobretudoasnãoconscientes.

    Minha amiga querida, psiquiatra de crianças e adolescentes e psicanalista,EloísaVallerCelerileuváriasdaspartesrelacionadasainfânciaeadolescênciaeaconceitospsicanalíticos,apontandofalhasefazendosugestõesvaliosas.

    Nossojovemamigo/filhoacadêmicoeprofessordepsiquiatriadaUnicamp,Amilton dos Santos Júnior, fez sugestões valiosas e me ajudou na pesquisabibliográfica.Apsicóloga JulianaT.Fiquer,pesquisadoradacomunicaçãonãoverbal em psicopatologia, deu importante contribuição, revisando o capítulosobreotema(queénovonestaedição).

    AsprofessorasdenossodepartamentoRenataC.S.deAzevedo,especialistaem dependência química, e Ana Maria G. R. Oda, psiquiatra/historiadora dapsiquiatria, fizeram correções e deram sugestões generosas e atualizadas, bemcomo ajudaram a encontrar artigos de grandes autores da área. AlexandreSaadeh,doInstitutodePsiquiatriadoHospitaldasClínicasdaUniversidadede

  • São Paulo, forneceu orientação, com toda sua generosidade e experiência, nocampodasexualidadehumana.

    TambémdevoassinalarminhagratidãoaosdemaiscolegasdoDepartamentode Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas daUnicamp, que todas as terças-feiras, em nossas reuniões clínicas, discutemquestõespsicopatológicasedilemashumanosreferentesapacientescomosmaisdiferentes quadros e dificuldades. Sou aluno e devedor dessa nossa pequena eíntimaescoladepsicopatologia.

    Minha esposa,Mônica Jacques deMoraes, fez preciosas sugestões para aorganizaçãogeraldolivro,comsuavisãopragmáticaeinteligente.Meusamigosfraternos,NeuryJoséBotegaeMárioE.CostaPereira,mederam,comosempre,dicaseconselhossábios.Utilizei-osnamedidademinhaspossibilidades.

    Finalmente, agradeço a Artmed Editora pelo incentivo, paciência, apoio ecompreensãonarealizaçãodesta3ªedição.Aspessoasqueestãoàfrentedessagrandeeditoranãopouparamesforçosemmeajudarcommaterialbibliográficoesugestõesparaqueaediçãoficasseomelhordoquepodemosproduzirnestafasedavidaedoconhecimentocientíficoehumanísticodisponível.

    Desde a 1ª edição até esta, este livro persegue um fim, busca realizar umprojetoespecíficoerelativamenteambicioso:construire tornardisponívelumaobra formada por duas grandes correntes do conhecimento científico ehumanísticosobreostranstornosmentais.

    Aprimeiradessasduascorrenteséa tradiçãodapsicopatologia, construídade forma artesanal (e, muitas vezes, genial), com apuradíssimo método deobservaçãoeanálisededadosclínicos,desenvolvidapelosgrandesautoresdosséculos XIX e XX, bebedores das melhores fontes da tradição filosófica eclínica. A segunda corrente é constituída pelas neurociências cognitivasmodernas, possivelmente uma das mais produtivas áreas do conhecimentocientíficoatual,comimplicaçõescrescentesparaoconhecimentodostranstornospsicopatológicos. Se, ao unirmos a valiosa tradição psicopatológica com assofisticadasneurociênciasmodernas,foipossívelounãoproduzirumaobraútilerelevante,cabeapenasaosleitoresdecidir.

    1ParalerosPrefáciosda1ªeda2ªedição,acesseohotsitedolivro.

  • Sumário

    ParteI:AspectosgeraisdapsicopatologiaCapítulo1|Introduçãogeralàsemiologiapsiquiátrica

    Capítulo2|Definiçãodepsicopatologiaeordenaçãodosseusfenômenos

    Capítulo3|Osprincipaiscamposetiposdepsicopatologia

    Capítulo4|Aquestãodanormalidadeedamedicalização

    Capítulo5|Contribuiçõesdasneurociênciasàpsicopatologia

    Capítulo6|Contribuiçõesdafilosofiaàpsicopatologia

    Capítulo7|Princípiosgeraisdodiagnósticopsicopatológico

    ParteII:AvaliaçãodopacienteefunçõespsíquicasalteradasCapítulo8|Aavaliaçãodopaciente

    Capítulo9|Aentrevistacomopaciente

    Capítulo10|Aspectogeraldopacienteecomunicaçãonãoverbal

    Funçõespsíquicaselementaresesuasalteraçõesnoexamedoestadomental

    Capítulo11|Introduçãoàsfunçõespsíquicaselementares

    Capítulo12|Aconsciênciaesuasalterações

    Capítulo13|Aatençãoesuasalterações

    Capítulo14|Aorientaçãoesuasalterações

    Capítulo15|Asvivênciasdotempoedoespaçoesuasalterações

  • Capítulo16|Asensopercepçãoesuasalterações(incluindoarepresentaçãoeaimaginação)

    Capítulo17|Amemóriaesuasalterações

    Capítulo18|Aafetividadeesuasalterações

    Capítulo19|Avontade,apsicomotricidade,oagiresuasalterações

    Capítulo20|Opensamentoesuasalterações

    Capítulo21|Ojuízoderealidadeesuasalterações(odelírio)

    Capítulo22|Alinguagemesuasalterações

    Funçõespsíquicascompostasesuasalterações

    Capítulo23|Introduçãoàsfunçõespsíquicascompostas

    Capítulo24|Oeu,oself:psicopatologia

    Capítulo25|Apersonalidadeesuasalterações

    Capítulo26|Inteligênciaecogniçãosocial

    ParteIII:AsgrandessíndromespsicopatológicasCapítulo27|Dosintomaàsíndrome

    Capítulo28|Assíndromesdapsicopatologia,ostranstornoseosmodosdeprocederemrelaçãoaosdiagnósticos

    Capítulo29|Síndromesdepressivas

    Capítulo30|Síndromesmaníacasetranstornobipolar

    Capítulo31|Síndromesansiosasesíndromescomimportantecomponentedeansiedade

    Capítulo32|Síndromespsicóticas(quadrosdoespectrodaesquizofreniaeoutraspsicoses)

    Capítulo33|Síndromespsicomotoras

  • Capítulo34|Síndromesrelacionadasaocomportamentoalimentar

    Capítulo35|Transtornosdevidosourelacionadosasubstânciasecomportamentosaditivos

    Capítulo36|Síndromesrelacionadasaosono

    Capítulo37|Sexualidadeepsicopatologia

    Capítulo38|Transtornosneurocognitivos(síndromesmentaisorgânicas)

    Capítulo39|Demênciaseoutrostranstornosneurocognitivosdelongaduração

    Capítulo40|Síndromesrelacionadasàcultura

    Referências

    Conheçatambém

    GrupoA

  • ParteI

  • Aspectosgeraisdapsicopatologia

  • 1.Introduçãogeralàsemiologiapsiquiátrica

    Umdiaescreviquetudoéautobiografia,queavidadecadaumdenósaestamoscontandoemtudoquantofazemosedizemos,nosgestos,namaneiracomonossentamos,comoandamoseolhamos,comoviramosacabeçaou

    apanhamosumobjetonochão.Queriaeudizerentãoque,vivendorodeadosdesinais,nósprópriossomosumsistemadesinais.

    JoséSaramago

    OQUEÉSEMIOLOGIA(EMGERALESEMIOLOGIAMÉDICAEPSICOPATOLÓGICA)A semiologia, tomada em um sentido geral, é a ciência dos signos, não serestringindo,obviamente,àmedicina,àpsiquiatriaouàpsicologia.Écampodegrande importância para o estudo da linguagem (semiótica linguística), damúsica (semiologia musical), das artes em geral e de todos os campos deconhecimentoedeatividadeshumanasqueincluamainteraçãoeacomunicaçãoentredoisinterlocutorespormeiodesistemasdesignos.

    Já a semiologia psicopatológica, por sua vez, é o estudo dos sinais esintomasdostranstornosmentais.

    Entende-se por semiologiamédica o estudo dos sintomas e dos sinais dasdoenças,oqualpermiteaoprofissionaldasaúdeidentificaralteraçõesfísicasementais,ordenarosfenômenosobservados,formulardiagnósticoseempreenderterapêuticas.

    Emboraestejaintimamenterelacionadaàlinguística,asemiologiageralnãoselimitaaesta,umavezqueosignotranscendeaesferadalíngua.Sãotambémsignos os gestos, as atitudes e os comportamentos não verbais, os sinaismatemáticos,ossignosmusicais,etc.Defato,asemiologiageralcomociênciados signos foi postulada pelo linguista suíço Ferdinand de Saussure [1916](1970,p.24),queafirmou:

  • Pode-se,então,conceberumaciênciaqueestudeavidadossignosnoseiodavidasocial;[...]chamá-la-emosdeSemiologia(dogregosemeion,“signo”).Elanosensinaráemqueconsistemossignos,queleisosregem.Charles Morris (1946) discrimina três campos distintos no interior da

    semiologia:asemântica,responsávelpeloestudodasrelaçõesentreossignoseos objetos a que se referem; a sintaxe, que compreende as regras e leis queregem as relações entre os vários signos de um sistema; e, por fim,apragmática, que se ocupa das relações entre os signos e seus usuários, ossujeitos que os utilizam concretamente, em situações e contextos sociais ehistóricosdodiaadia.

    Osignoéoelementonucleardasemiologia;eleestáparaasemiologiaassimcomoa célula estápara abiologia eo átomopara a física.O signoéum tipode sinal. Define-se sinal como qualquer estímulo emitido pelos objetos domundo.Assim,porexemplo,a fumaçaéumsinaldofogo,acorvermelha,dosangue,etc.

    Osignoéumsinalespecial,sempreprovidodesignificação.Dessaforma,nasemiologiamédica,sabe-sequeafebrepodeserumsinal/signodeumainfecção,ou a fala extremamente rápida e fluente pode ser um sinal/signo de umasíndrome maníaca. A semiologia médica e a psicopatológica tratamparticularmentedossignosqueindicamaexistênciadetranstornosepatologias.

    Os signos de maior interesse para a psicopatologia são os sinaiscomportamentais objetivos, verificáveis pela observaçãodireta dopaciente, eos sintomas, isto é, as vivências subjetivas relatadas pelos indivíduos, suasqueixas e narrativas, aquilo que o sujeito experimenta e, de alguma forma,comunicaaalguém.

    Sá Junior (1988) apresenta uma definição de sintoma e sinal um poucodiferente.Ele discriminaos sintomasobjetivos (observados pelo examinador)dossintomassubjetivos (percebidosapenaspelopaciente).Ossinais, por suavez, são definidos como dados elementares das doenças que são provocados(ativamente evocados) pelo examinador (sinal deRomberg, sinal deBabinski,etc.).

    Segundo o linguista russo Roman Jakobson (1896-1982), já os antigosfilósofosestoicosdesmembraramosignoemdoiselementosbásicos:signans(osignificante) e signatum (o significado) (Jakobson, 1962; 1975). Assim, todosigno é constituído por estes dois elementos: o significante, que é o suportematerial,oveículodosigno;eosignificado,istoé,aquiloqueédesignadoequeestáausente,oconteúdodoveículo.

  • De acordo com o filósofo norte-americanoCharles S. Peirce (1839-1914),segundo as relações entre o significado (conteúdo) e o significante (suportematerial)deumsigno,hátrêstiposdesignos:oícone,oindicadoreosímbolo(Peirce,1904/1974).

    O ícone é um tipo de signo no qual o elemento significante evocaimediatamenteosignificado,graçasaumagrandesemelhançaentreeles,comoseosignificantefosseuma“fotografia”dosignificado.Odesenhoesquemáticonopapeldeumacasapodeserconsideradoumíconedoobjetocasa.

    No caso do indicador, ou índice, a relação entre o significante e osignificadoédecontiguidade;osignificanteéumíndice,algoqueapontaparaoobjetosignificado.Assim,umanuveméumindicadordechuva,eafumaça,defogo.

    Osímbolo,porsuavez,éumtipodesignototalmentediferentedoíconeedoindicador;aqui,oelementosignificanteeoobjetoausente(significado)sãodistintosemaparênciaesemrelaçãodecontiguidade.Nãoháqualquerrelaçãodiretaentreeles;trata-sedeumarelaçãopuramenteconvencionalearbitrária.Entre o conjunto de letras agrupadas “C-A-S-A” e o objeto “casa” não existequalquer semelhança (visual ou de qualquer outro tipo), o que constitui umarelação totalmente convencional. Por isso, o sentido e o valor de um símbolodependem necessariamente das relações que este mantém com os outrossímbolos do sistema simbólico total; depende, por exemplo, da ausência oupresença de outros símbolos que expressam significados próximos ouantagônicosaele.

    DIMENSÃODUPLADOSINTOMAPSICOPATOLÓGICO:INDICADOREELEMENTOSIMBÓLICOAOMESMOTEMPOOssintomasmédicosepsicopatológicostêm,comosignos,umadimensãodupla.Elessãotantoumíndice(indicador)comoumsímbolo.Osintomacomoíndicesugere uma disfunção que está em outro ponto do organismo ou do aparelhopsíquico;porém,aqui,arelaçãodosintomacomadisfunçãodebaseé,emcertosentido,decontiguidade.Afebrepodecorresponderaumainfecçãoqueinduzosleucócitos a liberarem certas citocinas, que, por sua ação no hipotálamo,produzemoaumentoda temperatura.Assim,o sintoma febre temdeterminadarelaçãodecontiguidadecomoprocessoinfecciosodebase.

  • Alémdetaldimensãodeindicador,ossintomaspsicopatológicos,aoseremnomeados pelo paciente, por seumeio cultural ou pelomédico, passam a ser“símboloslinguísticos”nointeriordeumalinguagem.

    No momento em que recebe um nome, o sintoma adquire o status desímbolo,designolinguísticoarbitrário,quesópodesercompreendidodentrodeumsistemasimbólicodado, emdeterminadouniversocultural.Dessa forma, aangústia manifesta-se (e realiza-se) ao mesmo tempo como mãos geladas,tremoreseapertonagarganta (que indicam,p.ex.,umadisfunçãonosistemanervoso autônomo), e, ao ser tal estado designado comonervosismo, neurose,ansiedadeougastura,passaarecebercertosignificadosimbólicoecultural(porisso,convencionalearbitrário),quesópodeseradequadamentecompreendidoeinterpretado tendo-se como referência um universo cultural específico, umsistemadesímbolosdeterminado.

    Asemiologiapsicopatológica,portanto,cuidaespecificamentedoestudodossinais e sintomas produzidos pelos transtornos mentais, signos que semprecontêmessadupladimensão.

    DIVISÕESDASEMIOLOGIAAsemiologia(tantoamédicacomoapsicopatológica)podeserdivididaemduasgrandessubáreas:semiotécnicaesemiogênese(Marques,1970).

    A semiotécnica refere-se a técnicas e procedimentos específicos deobservação e coleta de sinais e sintomas, assim como da descrição de taissintomas. No caso dos transtornos mentais, a semiotécnica concentra-se naentrevistadiretacomopaciente,seusfamiliaresedemaispessoascomasquaisconvive.

    A coleta de sinais e sintomas requer a habilidade sutil em formular asperguntasmaisadequadasparaoestabelecimentodeumarelaçãoprodutivaeaconsequenteidentificaçãodossignosdostranstornosmentais.Sãofundamentaiso tipo de perguntas e “como” e “quando” fazê-las, assim como o modo deinterpretarasrespostaseadecorrenteformulaçãodenovasperguntas.

    Além disso, é crucial, sobretudo para a semiotécnica em psicopatologia, aobservação minuciosa, atenta e perspicaz do comportamento do paciente, doconteúdodeseudiscursoedoseumododefalar,dasuamímica,dapostura,davestimenta, da forma como reage e do seu estilo de relacionamento com oentrevistador,comseusfamiliarese,eventualmente,comoutrospacientes.

  • Já a semiogênese, por sua vez, é o campode investigação da origem, dosmecanismos de produção, do significado e do valor diagnóstico e clínico dossinaisesintomas.

    Por fim, alguns autores utilizam o termo “propedêutica médica” ou“psiquiátrica” para designar a semiologia. O termo propedêutica, de modogeral,éempregadoemváriasáreasdosaberparadesignaroensinoprévio,osconhecimentos preliminares necessários ao início de uma ciência ou filosofia.Prefirootermo“semiologia”a“propedêutica”,masreconheçoqueasemiologiapsicopatológica (como propedêutica) pode ser concebida como uma ciênciapreliminar, necessária a todo estudo psicopatológico e prática clínica empsiquiátricaeempsicologiaclínica.

    SÍNDROMESEENTIDADESNOSOLÓGICAS(TRANSTORNOSESPECÍFICOS)Na prática clínica, os sinais e os sintomas não ocorrem de forma aleatória;surgem em certas associações, certos clusters (agrupamentos)mais oumenosfrequentes. Definem-se, portanto, as síndromes como agrupamentosrelativamenteconstanteseestáveisdedeterminadossinaisesintomas.

    Entretanto, ao se delimitar uma síndrome (como síndrome depressiva,demencial,paranoide,etc.),nãosetrataaindadadefiniçãoedaidentificaçãodecausasespecíficas,deumcursoeevoluçãorelativamentehomogêneosedeumaestruturabásicadoprocessopatológico.Asíndromeépuramenteumadefiniçãodescritivadeumconjuntomomentâneoerecorrentedesinaisesintomas.

    Denominam-se, em medicina e psiquiatria, entidadesnosológicas,doençasou transtornosespecíficos (como esquizofrenia, doençade Alzheimer, anorexia nervosa, etc.). São os fenômenos mórbidos nos quaispodem-se identificar (ou pelo menos presumir com certa consistência) certascausasoufatorescausais(etiologia),ocurso relativamentehomogêneo,certospadrõesevolutivoseestadosterminaistípicos.

    Além disso, nas entidades nosológicas ou transtornos, busca-se identificarmecanismos psicológicos e psicopatológicos característicos, antecedentesgenético-familiares algo específicos e respostas a tratamentos eintervençõesmaisoumenosprevisíveis.

    Empsicopatologiaepsiquiatria,frequentementesomosobrigadosatrabalharnoâmbitodassíndromes,pois,muitasvezes,odiagnósticoprecisodeentidadesnosológicas, doenças ou transtornos específicos é difícil ou incerto. Embora

  • muitoesforçotenhasido(hámaisde200anos!)empreendidonosentidodeseidentificartranstornosmentaisespecíficosbemdelimitados,napráticaissoaindanãoseconsegueemtodososcasosclínicos.

    Cabe,ainda,lembrarqueoreconhecimentodessasentidadesnãotemapenasuminteressecientíficoouacadêmico(valorteórico);elegeralmenteviabilizaoufacilita o desenvolvimento de procedimentos e intervenções terapêuticos epreventivosmaiseficazes(valorpragmático).

  • 2.Definiçãodepsicopatologiaeordenaçãodosseusfenômenos

    Umfenômenoésemprebiológicoemsuasraízesesocialemsuaextensãofinal.Masnósnãonosdevemosesquecer,também,deque,entreessesdois,eleé

    mental.

    JeanPiaget

    Campbell (1986)define apsicopatologia comoo ramoda ciênciaque tratadanaturezaessencialdadoençaou transtornomental– suascausas, asmudançasestruturais e funcionais associadas a ela e suas formas de manifestação.Entretanto, nem todo estudo psicopatológico segue a rigor os ditames de uma“ciência dura”, “ciência sensu strictu”. A psicopatologia, em acepção maisampla, pode ser definida como o conjunto de conhecimentos referentes aoadoecimentomentaldoserhumano.Éumconhecimentoqueseesforçaporsersistemático,elucidativoedesmistificante.

    Como conhecimento que visa ser científico, a psicopatologia não incluicritérios de valor, nem aceita dogmas ou verdades a priori. Ao se estudar epraticarapsicopatologia,nãosejulgamoralmenteaquiloqueseestuda;busca-seapenasobservar,identificarecompreenderosdiversoselementosdotranstornomental.Alémdisso,empsicopatologia,deve-serejeitarqualquertipodedogma,qualquer verdade pronta e intocável, seja ela religiosa, seja ela filosófica,psicológica ou biológica; o conhecimento que se busca está permanentementesujeito a revisões, críticas e reformulações. Ou seja, a psicopatologia comociênciadostranstornosmentaisrequerumdebatecientíficoepúblicoconstantedetodososseuspostulados,noçõeseverdadesencontradas.

    O campo da psicopatologia inclui uma variedade de fenômenos humanosespeciais,associadosaoquesedenominouhistoricamentededoençamental.Sãovivências,estadosmentaisepadrõescomportamentaisqueapresentam,porumlado, uma especificidade psicológica (as vivências das pessoas com doençasmentaisapresentamdimensãoprópria,genuína,nãosendoapenas“exageros”donormal)e,poroutro,conexõescomplexascomapsicologiadonormal(omundo

  • da doença mental não é totalmente estranho ao mundo das experiênciaspsicológicas“normais”).

    Apsicopatologia temboapartede suas raízesna tradiçãomédica (naobradosgrandesclínicosealienistasdopassado,sobretudodosséculosXVIIIatéopresente), que propiciou, nos últimos 300 anos, a observação prolongada ecuidadosadeumconsiderávelcontingentedepessoascomtranstornosmentais.

    Emoutravertente,apsicopatologianutre-sedeumatradiçãohumanísticaeuniversitária (filosofia, literatura, artes, psicologia, psicanálise), a qual sempreviu na “alienação mental”, no pathos do sofrimento mental extremo, umapossibilidadeexcepcionalmentericadereconhecimentodedimensõeshumanasque,semofenômeno“doençamental”,permaneceriamdesconhecidas.

    Apesardesebeneficiardastradiçõesneurológicas,psicológicasefilosóficas,a psicopatologia não se confunde com a neurologia das chamadas funçõescorticais superiores (não se resume, portanto, a uma ciência natural dosfenômenos relacionados às zonas associativas do cérebro lesado) nem com ahipotéticapsicologiadas funçõesmentaisdesviadas.Assim,podemosdefini-lacomo uma ciência autônoma, e não um prolongamento da neurologia, daneuropsicologiaoudapsicologia(sejaelaexperimental,sejaelapsicométricaousocial).Ela é ricamentenutridapor essas tradições,masnão se confunde comelas.

    Karl Jaspers (1883-1969), um dos principais autores da psicopatologiamoderna,pensaqueestaéumaciênciabásica,queservedeauxílioàpsiquiatriaeàpsicologiaclínica,aqualé,porsuavez,umconhecimentoaplicadoaumaprática profissional e social concreta. Jaspers é muito claro em relaçãoaoslimitesdapsicopatologia:emboraoobjetodeestudosejaoserhumanonasua totalidade (“Nosso tema é o homem todo em sua enfermidade.” [Jaspers,1913/1979]), os limites da ciência psicopatológica consistem precisamente emnunca se poder reduzir por completo o ser humano a conceitospsicopatológicos.Odomíniodessaciência,segundoele,estende-sea“[...]todofenômeno psíquico que possa ser apreendido em conceitos de significaçãoconstantesecompossibilidadedecomunicação”(Jaspers,1979,p.13).Assim,apsicopatologia, comociência, exige um rigorosopensamento conceitual, quesejasistemáticoequepossasercomunicadodemodoinequívoco.

    Entretanto, na prática profissional, no trabalho clínico, além da ciênciapsicopatológica que o clínico deve ter, participam ainda opiniões instintivas,uma intuição pessoal que nunca se pode comunicar. Dessa forma, a ciênciapsicopatológica é tida como uma das abordagens possíveis do ser humano

  • mentalmentedoente,umapartedoquecompõeosaberclínico,masnãooúnicosaber ou conhecimento. Há, ao lado da ciência, a arte do trabalho clínico, ashabilidades,intuiçõesquecompõemoencontroclínico.

    Em todo indivíduo, oculta-se algo que não se consegue conhecer, pois aciência requer umpensamento conceitual sistemático, o qual cristaliza e tornaevidente, mas também aprisiona e limita, o conhecimento. Quanto maisconceitualiza,afirmaJaspers,“[...]quantomaisreconheceecaracterizaotípico,oqueseachadeacordocomosprincípios, tantomaisreconheceque,emtodoindivíduo,seocultaalgoquenãopodeconhecer”(Jaspers,1979,p.12).

    Assim, a psicopatologia como ciência sempre perde, obrigatoriamente,aspectos essenciais do ser humano, sobretudo nas dimensões existenciais,estéticas, éticas e metafísicas. O filósofo Hans-Georg Gadamer (1900-2002)postula para a arte o que pode ser também formulado para a prática clínica(Gadamer,1990,p.220):

    [...]diantedeumaobradearte,experimentamosumaverdadeinacessívelporqualqueroutravia;éissooqueconstituiosignificadofilosóficodaarte.Damesma formaquea experiênciada filosofia, tambémaexperiênciada arteincitaaconsciênciacientíficaareconhecerseuslimites.Ditodeoutraforma,nãosepodecompreenderouexplicartudooqueexiste

    em um ser humano por meio de conceitos psicopatológicos. Assim, ao sediagnosticarVanGoghcomoesquizofrênico(ouepiléptico,maníaco-depressivoou qualquer que seja o diagnóstico formulado), ao se fazer uma análisepsicopatológicadesuabiografia,issonuncaexplicarátotalmentesuavidaesuaobra. Sempre resta algo que transcende à psicopatologia e mesmo à ciência,permanecendonodomíniodomistério.

    FORMAECONTEÚDODOSSINTOMAS:PATOGÊNESEEPATOPLASTIAEm geral, quando se estudam os sintomas psicopatológicos, dois aspectosbásicosdevemserenfocados:aformadossintomas,istoé,suaestruturabásica,relativamente semelhante nos diversos pacientes e nas diversas sociedades (aforma“alucinação”,“delírio”,“ideiaobsessiva”,“fobia”,etc.),eseuconteúdo,ou seja, aquilo que preenche a alteração estrutural (o conteúdo de culpa,religioso, de perseguição, de um delírio, de uma alucinação ou de uma ideiaobsessiva,porexemplo).

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    Na tradição psicopatológica, seguindo-se o modelo proposto pelopsicopatólogo alemão Karl Birbaum (1878-1950), a forma dos sintomas serelacionaaoqueelechamoudepatogênese,querepresentaoprocessodecomoosdiferentessintomasdapsicopatologiaseformameseestruturam.

    Àconfiguraçãoepreenchimentodosconteúdosdossintomas,ouseja,comoa forma é preenchida pelos temas específicos, Birbaum (1923) denominoupatoplastia.Assim,oscontornosespecíficosdossintomas,ostemasehistóriasquepreenchemessasmanifestações,dependentesdahistóriadevidasingulardopacienteedaculturaemquevive,sãodeterminadospelachamadapatoplastia.

    Enfim,aforma(patogênese)seriamaisgeraleuniversal,comumatodosospacientes, em todas ou quase todas as culturas, enquanto o conteúdo(patoplastia) seria algo bem mais pessoal, dependendo da história de vidasingulardo indivíduo,de seuuniversoculturalespecíficoedapersonalidadeecogniçãopréviasaoadoecimento(Birbaum,1924).

    De modo geral, embora sejam pessoais, singulares, os conteúdos dossintomas são extraídos ou constituídos pelos temas centrais da existênciahumana, como sobrevivência e segurança, sexualidade, ameaças e temoresbásicos(morte,doença,miséria,abandono,desamparo,etc.),religiosidade,entreoutros. Esses temas representam uma espécie de substrato que participa comoingrediente fundamental na constituição da experiência psicopatológica.Nessesentido, os Quadros 2.1 e 2.2 apresentam um esquema simplificado de temas etemoresbásicoseuniversaisdoserhumano.

    Quadro2.1|Temasexistenciaisbásicosquecomfrequênciaseexpressamnoconteúdodossintomaspsicopatológicos

    TEMASEINTERESSESCENTRAISPARAOSERHUMANO OQUEBUSCAEDESEJA

    AlimentaçãoSexoConfortofísico

    SobrevivênciaPrazer

    Poder(econômico,político,social,etc.)PrestígioRelacionar-secomosoutros

    SegurançaControlesobresiesobreosoutrosSerreconhecidopelosdemais

    Quadro2.2|Temoresquefrequentementeseexpressamnoconteúdodossintomaspsicopatológicos

    TEMORESCENTRAISDOSERHUMANO FORMASFREQUENTESDELIDARCOMTAISTEMORES

    Morte Religião/mundomísticoContinuidadeatravésdasnovasgerações

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    TerumadoençagraveSofrerdorfísicaoumoralMiséria

    Viassobrenaturais/medicina/psicologia,etc.

    FaltadesentidoexistencialPerdadaidentidadeedosentidodoself

    RelaçõesinterpessoaissignificativasCultura

    AORDENAÇÃODOSFENÔMENOSEMPSICOPATOLOGIAOestudodadoençaou transtornomental,comoodequalqueroutroobjeto,seiniciapelaobservaçãocuidadosadesuasmanifestações.Aobservaçãoarticula-se dialeticamente com a ordenação dos fenômenos. Isso significa que, paraobservar, também é preciso definir, classificar, interpretar e ordenar o objetoobservado em determinada perspectiva, seguindo certa lógica observacional eclassificatória.

    Assim, desde Aristóteles, o problema da classificação está intimamenteligadoaodadefiniçãoedoconhecimentodemodogeral.Segundoele,definiréindicarogêneropróximoeadiferençaespecífica.Issoquerdizerquedefiniré,por um lado, afirmar a que o fenômeno definido se assemelha, do que éaparentado, com o que deve ser agrupado (gênero próximo) e, por outro,identificar do que ele se diferencia, ao que é estranho ou oposto (diferençaespecífica). Portanto, na linha aristotélica, o problema da classificação é aquestãodaunidadeedavariedadedosfatosedosconhecimentosquesobreelessãoproduzidos.

    Classicamente, distinguem-se três tipos de fenômenos humanos para apsicopatologia:

    Fenômenossemelhantesemtodasouquase todasaspessoas.Éoplanodosfenômenospsicológicos,fisiológicos,daquiloqueéonormal.Demodogeral, todo ou quase todo ser humano sente fome, sede ou sono. Aqui seincluitambémomedodeumanimalperigoso,aansiedadeperantedesafiosdifíceis, o desejo por uma pessoa amada, etc. Embora haja uma qualidadepessoal própriapara cada ser humano, certas experiências sãobasicamentesemelhantesparatodos.Fenômenosempartesemelhanteseempartediferentes.Éoplanoemqueopsicológico e o psicopatológico se sobrepõem.São fenômenosqueo ser

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    humanocomumexperimenta,masqueapenasempartesãosemelhantesaosvivenciados pela pessoa com transtorno mental. Assim, todo indivíduocomumpodesentirtristeza,masaalteraçãoprofunda,avassaladora,queumapaciente com depressão psicótica experimenta é apenas parcialmentesemelhanteàtristezanormal.Adepressãograve,porexemplo,comideiasderuína, lentificação psicomotora, apatia, etc., introduz algo qualitativamentenovonaexperiênciahumana.Fenômenosqualitativamentenovos,distintosdasvivênciasnormais.Éocampo específico das ocorrências e vivências psicopatológicas. Sãopraticamenteprópriosaapenas(ouquaseapenas)certasdoenças,transtornose estados mentais. Aqui, incluem-se alguns fenômenos psicóticos, comoalucinações e delírios, ou cognitivos, como turvação da consciência,alteraçãodamemórianasdemências,entreoutros.

  • 3.Osprincipaiscamposetiposdepsicopatologia

    Umas das principais características da psicopatologia, como campo deconhecimento,éamultiplicidadedeabordagensereferenciaisteóricosquetemincorporadonos últimos200 anos.Talmultiplicidade é vista por alguns como“debilidade”científica,comoprovadesua imaturidade.Ospsicopatólogossãocriticados por essa diversidade de “explicações” e teorias, por seu aspectohíbridoemtermosepistemológicos(Ionesco,1994).

    Dizem alguns que, quando se conhece realmente algo, tem-se apenas umateoriaqueexplicacabalmenteeorganizaaobservaçãodosfatos;quandonãoseconhece a realidade que se estuda, são construídas centenas de teoriasconflitantes.Discordo de tal visão; querer uma única “explicação”, uma únicaconcepção teórica que resolva todos os problemas e dúvidas de uma área tãocomplexaemultifacetadacomoapsicopatologia,éimporumasoluçãosimplistaeartificial,quedeformariaofenômenopsicopatológico.

    A psicopatologia é, por natureza e destino histórico, um campo deconhecimentoquerequerdebateconstanteeaprofundado,noqualnãoháenãopodehaverumateoriaouperspectivaamplamentehegemônica.Aqui,oconflitode ideias não é uma debilidade, mas uma necessidade. Não se avança empsicopatologianegandoeanulandodiferençasconceituaise teóricas;evolui-se,sim, pelo esforço de esclarecimento e aprofundamento de tais diferenças, emdiscussãoaberta,desmistificanteehonesta.

    A seguir, são apresentadas algumas das principais correntes dapsicopatologia,dispostasdeformaarbitrária,pormotivosestritamentedidáticos,emparesantagônicos.

    PSICOPATOLOGIADESCRITIVAVERSUSPSICOPATOLOGIADINÂMICAPara a psiquiatria descritiva, interessa fundamentalmente a descriçãodas formas de alterações psíquicas, as estruturas dos sintomas, aquilo que

  • caracterizaedescreveavivênciapatológicacomosintomamaisoumenostípico.Já para a psiquiatria dinâmica interessa o conteúdo das vivências, os

    movimentosinternosdeafetos,desejosetemoresdoindivíduo,suaexperiênciaparticular, pessoal, singular, não necessariamente classificável em sintomaspreviamentedescritos.

    Aboapráticaemsaúdementalimplicaacombinaçãohábileequilibradadeumaabordagemdescritiva,diagnósticaeobjetivaedeumaabordagemdinâmica,pessoalesubjetivadopacienteedesuadoença.Assim, logona introduçãodeseutratadodepsiquiatria,EugenBleuler(1857-1939)afirmaque:

    Quandoummédico sedefronta comagrande tarefade ajudarumapessoapsiquicamenteenferma,vêàsua frentedoiscaminhos:elepode registraroque é mórbido. Irá, então, a partir dos sintomas da doença, concluir pelaexistênciadeumdosquadrosmórbidosimpessoaisqueforamdescritos.[...]ou pode trilhar outro caminho: pode escutar o doente como se fosse umamigodeconfiança.Nessecaso,dirigiráasuaatençãomenosparaconstataro que é mórbido, para anotar sintomas psicopatológicos e, a partir disso,chegar a um diagnóstico impessoal, e mais para tentar compreender umapessoa humana na sua singularidade e co-vivenciar suas aflições, seustemores,seusdesejosesuasexpectativaspessoais(Bleuler,1985,p.1).

    PSICOPATOLOGIAMÉDICAVERSUSPSICOPATOLOGIAEXISTENCIALA perspectiva médico-naturalista trabalha com uma noção de ser humanocentradanocorpo,noserbiológicocomoespécienaturaleuniversal.Assim,oadoecimento mental é visto como um mau funcionamento do cérebro, umadesregulação, uma disfunção de alguma parte ou sistema do “aparelhobiológico”.

    Já na perspectiva existencial, o paciente é visto principalmente como“existência singular”, como ser lançado a um mundo que é apenas natural ebiológiconasuadimensãoelementar,masqueé fundamentalmentehistóricoehumano.Oseréconstruídopormeiodaexperiênciaparticulardecadasujeito,na sua relação com os outros, na abertura para a construção de cada destinopessoal. O transtorno mental, nessa perspectiva, não é visto tanto comodisfunçãobiológica oupsicológica,mas, sobretudo, comoummodoparticular

  • deexistência, uma forma,muitasvezes trágica, de sernomundo,de construirumdestino,ummodoparticularmentedolorosodesercomosoutros.

    PSICOPATOLOGIACOMPORTAMENTALECOGNITIVISTAVERSUSPSICOPATOLOGIAPSICANALÍTICANa visão comportamental, o ser humano é visto como um conjunto decomportamentos observáveis, verificáveis, que são regulados por estímulosespecíficos e gerais, bem como por suas respostas (estímulos antecedentes econsequências;contingências).Emsuma,ocomportamentosebaseiaemcertasleisedeterminantesdoaprendizado.

    Associadaaessavisão,aperspectivacognitivistacentraseufocosobreasrepresentações cognitivas (cognições) de cada indivíduo.As cognições seriamvistascomoessenciaisaofuncionamentomental,tantonormalcomopatológico.Os sintomas resultam de comportamentos e representações cognitivasdisfuncionais,aprendidasereforçadaspelaexperiênciafamiliaresocial.

    Em contraposição, navisão psicanalítica, o ser humano é visto como ser“sobredeterminado”,dominadopor forças,desejoseconflitos inconscientes.Apsicanálise dá grande importância aos afetos, que, segundo ela, dominam opsiquismo. O ser humano racional, autocontrolado, senhor de si e de seusdesejos,é,paraela,umaenormeilusão.

    Na visão psicanalítica, os sintomas e síndromes mentais são consideradosformasdeexpressãodeconflitos,predominantementeinconscientes,dedesejosquenãopodemserrealizados,detemoresaosquaisoindivíduonãotemacesso.Osintomaéencarado,nessecaso,comouma“formaçãodecompromisso”,umcertoarranjoentreodesejoinconsciente,asnormaseaspermissõesculturaiseaspossibilidadesreaisdesatisfaçãodessedesejo.Aresultantedesseemaranhadode forças, dessa “trama conflitiva” inconsciente, é o que se identifica comosintomapsicopatológico.

    PSICOPATOLOGIACATEGORIALVERSUSPSICOPATOLOGIADIMENSIONAL

  • As entidades nosológicas ou doenças mentais específicas podem sercompreendidascomoentidadescompletamenteindividualizadas,comcontornose fronteiras bem demarcados. As categorias diagnósticas seriam “espéciesúnicas”,talqualespéciesbiológicas,cujaidentificaçãoprecisaconstituiriaumadas tarefas da psicopatologia. Assim, entre a esquizofrenia e os transtornosbipolares e os delirantes, haveria, por exemplo, uma fronteira nítida,configurando-os como entidades ou categorias diagnósticas diferentes ediscerníveisemsuanaturezabásica.

    Em contraposição a essa visão “categorial”, alguns autores propõem umaperspectiva“dimensional” empsicopatologia,queseriahipoteticamentemaisadequadaà realidadeclínica.Haveria, então,dimensõescomo,porexemplo,oespectro esquizofrênico, que incluiria desde formas muito graves, tipo“demência precoce” (com grave deterioração da personalidade, embotamentoafetivo, muitos sintomas negativos residuais), formas menos deteriorantes deesquizofrenia, formas com sintomas afetivos, chegando até um outro polo, detranstornos afetivos, incluindo formas de transtorno afetivo com sintomaspsicóticosatéformaspurasdedepressãoemania(hipóteseestaqueserelacionaà antiga noção de psicose unitária). Algumas polaridades dimensionais empsicopatologiaseriam,porexemplo:

    Esquizofrenia deficitária, esquizofrenia benigna, psicoses esquizoafetivas,transtornosafetivoscomsintomaspsicóticos,transtornosafetivosmenoresouDepressões graves (estupor, psicótica), depressão bipolar, depressõesmoderadas,distimia,personalidadedepressiva,depressãosubclínica.

    PSICOPATOLOGIABIOLÓGICAVERSUSPSICOPATOLOGIASOCIOCULTURALA psicopatologia biológica enfatiza os aspectos cerebrais, neuroquímicos ouneurofisiológicosdasdoençasedossintomasmentais.Abasedetodotranstornomentalconsisteemalteraçõesdemecanismosneuraisededeterminadasáreasecircuitos cerebrais. Nesse sentido, o aforismo do psiquiatra alemão WilhelmGriesinger(1817-1868)resumebemessaperspectiva:“doençasmentaisdevemservistascomoafecçõesdocérebro”(Griesinger,1997,p.7).

    Em contraposição, aperspectiva sociocultural visa estudar os transtornosmentaiscomocomportamentosdesviantesquesurgemapartirdecertosfatores

  • socioculturais, como discriminação, pobreza, migração, estresse ocupacional,desmoralização sociofamiliar, etc. Os sintomas e os transtornos devem serestudados, segundo essa visão, no seu contexto eminentemente sociocultural,simbólicoehistórico.

    É nesse contexto de normas, valores e símbolos culturalmente construídosqueossintomasrecebemseusignificadoe,portanto,poderiamserprecisamenteestudados e tratados.Mais que isso, a cultura, em tal perspectiva, é elementofundamental na própria determinação do que é normal ou patológico, naconstituiçãodos transtornosenos repertórios terapêuticosdisponíveisemcadasociedade.

    PSICOPATOLOGIAOPERACIONAL-PRAGMÁTICAVERSUSPSICOPATOLOGIAFUNDAMENTALNavisãooperacional-pragmática,asdefiniçõesbásicasdetranstornosmentaise sintomas são formuladas e tomadas de modo arbitrário, em função de suautilidade pragmática, clínica ou orientada à pesquisa. Não se questiona anatureza da doença ou do sintoma, tampouco os fundamentos filosóficos ouantropológicos de determinada definição. Trata-se do modelo adotado pelasmodernas classificações de transtornos mentais: o Manual diagnóstico eestatísticodetranstornosmentais (DSM-5),norte-americano,eaClassificaçãointernacional de doenças e problemas relacionados à saúde (CID-11), daOrganizaçãoMundialdaSaúde(OMS).

    Por sua vez, o projeto de psicopatologia fundamental, proposto pelopsicanalista francês Pierre Fedida, visa centrar a atenção da pesquisapsicopatológicasobreosfundamentoshistóricoseconceituaisdecadaconceitopsicopatológico, os quais incluem não apenas a tradição médica dapsicopatologia,mas também as tradições literárias, artísticas e de outras áreasdashumanidades.

    Além disso, tal psicopatologia dá ênfase à noção de doença mentalcomo pathos, que significa sofrimento, paixão e passividade. O pathos, dizManoelT.Berlinck(1937-2016),éumsofrimento-paixãoque,aosernarradoaum interlocutor, em certas condições, pode ser transformado emexperiência eenriquecimento(Berlinck,1977).

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    As dicotomias apresentadas revelam a pluralidade teórica e de modos deaplicaçãoclínicadessesdiversoscamposeabordagens.Visõesmaisintegrativase menos parciais são desejáveis, no sentido de superação das dicotomias dasdimensões biológicas (o congênito, genético) e ambientais (o aprendido,cultural)nasdiversaspsicopatologias.

    CONTRIBUIÇÕESDAPSICOLOGIAÀPSICOPATOLOGIAApsicologia,emsuasdiversasáreas(psicologiadasdiferentesfunçõesmentais,experimental, social, do desenvolvimento, etc.), tem fornecido contribuiçõesfundamentais à ciência, sendo, portanto, fonte de consulta, inspiração eorientaçãoàpsicopatologiageral.

    Não cabe aqui tentar resumir de forma apressada e incompleta esse vastocampo de conhecimento. Nessa linha, sugere-se a consulta a bons textos depsicologia geral, como os excelentes tratados Ciência psicológica: mente,cérebro e comportamento (Gazzaniga; Heatherton, 2005); Desenvolvimentohumano(Papalia;Feldman,2013);eIntroduçãoàpsicologia(Feldman,2015).

    RELAÇÕESDAPSICOPATOLOGIACOMAPSICOLOGIAGERALSegundo Sonenreich e Bassitt (1979), as relações da psicopatologia com apsicologiageraleapsiquiatriasãomúltiplas.Hádiversasvisõessobreaposiçãoexatadapsicopatologiaemrelaçãoaessasduasoutrasciências(Ionescu,1997).Apresentam-seaquialgumasdessasvisões:

    Psicopatologiacomo“patologiadopsicológico”.Aqui,apsicopatologiaétidacomoum ramodapsicologiageral.Nesse sentido, seapsicologiaéoestudo sistemático da vida psíquica normal, a psicopatologia deveria servista, então, não propriamente como uma disciplina autônoma, mas comoumaparteouumramodapsicologiageral,umasubdisciplinaqueestudaosfenômenosanormais.Osfenômenospsicopatológicos(delírios,alucinações,alterações do humor, da vontade, etc.) seriam derivados dos fenômenospsicológicos normais, desvios em certa continuidade com os fenômenosnormais.

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    Psicopatologia como “psicologia (especial) do patológico” (da mentealterada ou patológica). A psicopatologia seria, neste caso, uma ciênciaautônoma,porque,emseucampodeestudo,entrariaumasériedefenômenosespeciais que não representam alterações quantitativas do normal, simplesdesvios do normal. Alguns fenômenos psicopatológicos seriam produçõesnovas, comoodelírioverdadeiro, as alucinaçõesverdadeiras, as alteraçõesde humor no transtorno bipolar (TB). Seriam fenômenos originais,descontínuos,nãoderiváveisdos fenômenospsicológicosnormais (comoopensamento e julgamento normal, as percepções normais, a afetividadenormal).Psicopatologia como semiologia psiquiátrica. Em tal concepção, apsicopatologiaseconcentrarianadescriçãoenoestudodossintomasedossinais dos transtornos mentais, como unidades de estudo, sem se ater aquestõesoutrasdapsiquiatriaepsicologiaclínica.ÉnessesentidoqueHenriEy (1965) emprega o termo, assim como muitos tratados clássicos depsiquiatria.É,aparentemente,umaperspectivamenosambiciosadeciência,masdegranderelevânciaparaoavançodoconhecimento.Psicopatologiacomopropedêuticapsiquiátrica.Nessaconceitualização,apsicopatologiapassaaservistacomoocampodeestudodosprincípiosedosmétodosdeestudodoadoecimentomental,aciênciaintrodutóriaepréviaàpsiquiatria e psicologia clínica. Ela visaria elucidar as bases conceituais eepistêmicas da prática clínica em saúdemental, da psiquiatria e psicologiaclínica como campos de saber, bem como os pressupostos filosóficos emetodológicos que fundamentam o estudo dos transtornos mentais. Seria,então, uma disciplina introdutória, preparatória para os estudos empsiquiatriaepsicologiaclínica.

  • 4.Aquestãodanormalidadeedamedicalização

    Queéloucura:sercavaleiroandanteousegui-locomoescudeiro?

    Denósdois,quemoloucoverdadeiro?Oque,acordado,sonhadoidamente?

    Oque,mesmovendado,vêorealesegueosonho

    deumdoidopelasbruxasembruxado?

    CarlosDrummonddeAndrade

    AQUESTÃODANORMALIDADEEMPSICOPATOLOGIAOconceito de saúde e de normalidade empsicopatologia é questão de grandecontrovérsia, sendo fundamental o questionamento permanente e aprofundadosobreoqueseriamonormaleopatológico(AlmeidaFilho,2000).

    Há questões particularmente difíceis na determinação denormalidade/anormalidade em psicopatologia. Historicamente, essas noçõesreceberam grande carga valorativa; assim, definir alguém como normal ouanormal psicopatologicamente tem sido associado àquilo que é “desejável” ou“indesejável”, ou àquilo que é “bom” ou “ruim”. Tais valores,mesmo que sebusque esclarecer que não devam estar presentes, retornam quase sempre, deforma explícita ou camuflada, quando se caracteriza alguém como “anormal”psicopatologicamente(Duyckaerts,1966).

    Alémdisso,ocomportamentoeoestadomentaldaspessoasnãosãofatosneutros, exteriores aos interesses e preocupações humanas. Não se ficaindiferente perante outros indivíduos, ao lidar com seus comportamentos,sentimentoseoutrosestadosmentais.AclassificaçãodePlutãocomo planeta-anãoouplutoide,asteroideoucometa,perdendo,enfim,ostatusdeplaneta,não

  • afeta nada, ou quase nada, a vida dos seres humanos. Já classificar denormal/anormaloupatológico/saudávelalguémcujaorientaçãododesejoeróticoé homossexual ou cuja identidade de gênero é de transgênero afetamarcadamente milhares de pessoas reais, para as quais essas definiçõesinterferem diretamente em suas vidas.Assim, o debate sobre normalidade empsicopatologia é um debate vivo, intenso, interessado, repleto de valores(explícitosounão),comconotaçõespolíticasefilosóficas(explícitasounão)econceitos que implicam omodo comomilhares de pessoas serão situadas emsuasvidasnasociedade.

    Obviamente, quando são casos extremos que estão em discussão, cujasalteraçõescomportamentaisementais sãode intensidadeacentuadaede longaduração,comsofrimentomentalintensoedisfunçõesgravesnodiaadia,comodemências avançadas, psicoses graves ou deficiência intelectual profunda, odelineamento das fronteiras entre o normal e o patológico não é tãoproblemático. Entretanto, hámuitos casosmenos intensos e delimitados, alémdaqueleslimítrofesecomplexosemsuadefinição,nosquaisadelimitaçãoentrecomportamentos, estadosmentais e formas de sentir normais ou patológicas ébastantedifícileproblemática.Nessassituações,oconceitodenormalidadeempsicopatologia e saúde mental ganha especial relevância. Na CID-11, otranstorno leve de personalidade (mild personality disorder) é um exemploinfeliz de criação de entidade nosológica que, por ser muito próxima aocomportamentodeumgrandenúmerodepessoasemgeraltidascomonormais(p. ex., que, em apenas alguns contextos sociais, apresentam problemas nãogravesnaidentidade,algumadificuldadeemrelaçõesinterpessoais,desempenhono trabalho e em relações sociais), poderá gerar diagnósticos psicopatológicosexageradosemedicalizaçãoinapropriada.

    Talproblemanãoéexclusivodapsicopatologia,masde todaamedicinaepsicologiaclínica(AlmeidaFilho,2001).Tome-se,comoexemplo,aquestãodadelimitaçãodosníveisdetensãoarterialparaadeterminaçãodehipertensãooudeglicemianadefiniçãododiabetes.Essasdelimitaçõesmudaramemfunçãodevisões de saúde e de políticas sanitárias da sociedade. Esse problema foicuidadosamente estudado pelo filósofo emédico francêsGeorgesCanguilhem(1943/1978),cujolivroOnormaleopatológicotornou-seumaobraclássicaeindispensávelemtaldiscussão.

    O conceito de normalidade em psicopatologia também implica a própriadefinição do que é saúde e doença/transtorno mental. Os próprios termoslevantamdiscussão.NoséculoXIX,usava-seotermo“alienação”,oriundodo

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    direito;noséculoXX,passou-seausarotermo“doençamental”;e,nasúltimasdécadas,comossistemasdiagnósticosClassificaçãointernacionaldedoençaseproblemas relacionados à saúde (CID) eManual diagnóstico e estatístico detranstornosmentais (DSM) ganhando protagonismo, passou-se a usar o termo“transtornomental”.

    Otermo“doença”foicriticadoparaaáreadepsiquiatriaepsicologiaclínica,pois implicaria sempre ou quase sempre alterações patológicas no corpo (nocaso, no cérebro). Como em muitas das condições psicopatológicas não seevidenciam alterações anatômicas, fisiológicas ou histológicas no cérebro,convencionou-se usar o termo “transtorno”. Neste livro, usam-se comosinônimosostermos“doença”e“transtorno”.

    Os temas relacionados ao debate sobre normalidade apresentamdesdobramentosemváriasáreasdasaúdementaledapsicopatologia,asaber:

    Psiquiatriaepsicologialegalouforense.Adeterminaçãodeanormalidadepsicopatológicapode ter importantes implicações legais, criminais e éticas,podendo definir o destino social, institucional e legal de uma pessoa. Adefinição de alguém como normal psicopatologicamente significa que oindivíduo em questão é plenamente responsável por seus atos e deveresponder legalmenteporeles.Casosedefinaapessoacomoanormale talanormalidade a impeça de avaliar a realidade e de agir racionalmente,respeitando as leis de sua sociedade, ela passa a ser considerada nãoresponsávelporseusatos,perdendoaautonomia,deumlado,e,deoutro,apossibilidadede ser acusadaepunida judicialmente.Assim,adefiniçãodenormalidade/anormalidadetemumpesomarcantenessadimensãodavida.

    Epidemiologia dos transtornos mentais. Nesse caso, a definição denormalidadeétantoumproblemacomoumobjetodetrabalhoepesquisa.Aepidemiologia, inclusive, pode contribuir para a discussão e oaprofundamento do conceito de normalidade em saúde em geral e empsicopatologia,emparticular.

    Psiquiatriaculturaleetnopsiquiatria.Aqui,oconceitodenormalidadeétema importante de pesquisas e debates. De modo geral, o conceito denormalidade em psicopatologia impõe a análise do contexto sociocultural.Aqui se exige necessariamente o estudo da relação entre o fenômenosupostamentepatológicoeocontextosocialnoqualtalfenômenoemergeerecebeesteouaquelesignificadocultural.

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    Planejamentoemsaúdementalepolíticasdesaúde.Nessaárea,éprecisoestabelecercritériosdenormalidade,principalmentenosentidodeverificaras demandas assistenciais de determinado grupo populacional, asnecessidades de serviços, quais e quantos serviços devem ser colocados àdisposiçãodessegrupo,etc.

    Orientação e capacitação profissional. São importantes na definição decapacidade e adequação de um indivíduo para exercer certa profissão,manipularmáquinas,usararmas,dirigirveículos,etc.–porexemplo,ocasodeindivíduoscomdéficitscognitivosequedesejamdirigirveículos,pessoaspsicóticas que querem portar armas, sujeitos com crises epilépticas quemanipulammáquinasperigosas,entreoutroscasos.

    Práticaclínica.Émuitoimportanteacapacidadedediscriminar,noprocessodeavaliaçãoeintervençãoclínica,setalouqualfenômenoépatológicoounormal, se fazpartedeummomentoexistencialdo indivíduoou seé algofrancamente patológico. De modo geral, são incluídas na prática clínicaapenasaspessoascomtranstornosmentais;entretanto, issonãoéabsoluto,poisaquelascomsofrimentomental significativo, semumapsicopatologia,tambémpodemsebeneficiardeintervençõesprofissionaisemsaúdemental,como psicoterapia, arte-terapia, orientação e mesmo, em certos casosavaliadosindividualmenteecomcuidado,usodepsicofármacosporperíodosbreves.

    CritériosdenormalidadeHá vários e distintos critérios de normalidade e anormalidade emmedicina epsicopatologia.Aadoçãodeumououtrodepende,entreoutrascoisas,deopçõesfilosóficas, ideológicas e pragmáticas doprofissional ouda instituição emqueocorre a atenção à saúde (Canguilhem, 1978). Os principais critérios denormalidadeutilizadosempsicopatologiasão:

    Normalidadecomoausênciadedoença.Oprimeirocritérioquegeralmenteseutilizaéodesaúdecomo“ausênciadesintomas,desinaisoudedoenças”.Segundo expressiva formulação de um dos fundadores das pesquisasmédicas de intervenção sobre a dor física, René Leriche (1879-1955), “asaúdeéavidanosilênciodosórgãos”(Leriche,1936).Normal,dopontodevistapsicopatológico,seria,então,aqueleindivíduoquesimplesmentenãoéportadordeumtranstornomentaldefinido.Talcritérioé

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    bastante falho e precário, pois, além de redundante, baseia-se em uma“definiçãonegativa”,ouseja,define-seanormalidadenãoporaquiloqueelasupostamenteé,masporaquiloqueelanãoé,peloque lhe falta (AlmeidaFilho&Jucá,2002).Normalidade ideal. A normalidade aqui é tomada como certa “utopia”.Estabelece-se arbitrariamente uma norma ideal, aquilo que é supostamente“sadio”, mais “evoluído”. Tal norma é, de fato, socialmente constituída ereferendada. Depende, portanto, de critérios socioculturais e ideológicosarbitráriose,àsvezes,dogmáticosedoutrinários.Exemplosdetaisconceitosdenormalidadesãoaquelescombasenaadaptaçãodoindivíduoàsnormasmorais e políticas de determinada sociedade (como nos casos domacarthismo nos Estados Unidos e do pseudodiagnóstico de dissidentespolíticoscomodoentesmentaisnaantigaUniãoSoviética).Normalidade estatística. A normalidade estatística identifica norma efrequência. Trata-se de um conceito de normalidade que se aplicaespecialmente a fenômenos quantitativos, com determinada distribuiçãoestatística na população geral (como peso, altura, tensão arterial, horas desono,quantidadedesintomasansiosos,etc.).O normal passa a ser aquilo que se observa com mais frequência. Osindivíduosquesesituamestatisticamentefora(ounoextremo)deumacurvadedistribuiçãonormalpassam,porexemplo,aserconsideradosanormaisoudoentes.Esseéumcritériomuitasvezesfalhoemsaúdegeralemental,poisnemtudooqueéfrequenteénecessariamente“saudável”,assimcomonemtudo que é raro ou infrequente é patológico. Tomem-se como exemplofenômenos como as cáries dentárias, a presbiopia, os sintomas ansiosos edepressivos leves, o uso pesado de álcool, os quais podem ser muitofrequentes, mas que evidentemente não podem, a priori, ser consideradosnormaisousaudáveis.Normalidade como bem-estar. AOrganizaçãoMundial da Saúde (WHO,1946)definiu,em1946,asaúdecomoo“completobem-estarfísico,mentale social”, e não simplesmente como ausência de doença. É um conceitocriticávelporsermuitoamploeimpreciso,poisbem-estaréalgodifícildesedefinirobjetivamente.Alémdisso,essecompletobem-estarfísico,mentalesocial é tão utópico que poucas pessoas se encaixariam na categoria“saudáveis”.

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    Normalidade funcional. Tal conceito baseia-se em aspectos funcionais enãonecessariamentequantitativos.O fenômenoéconsideradopatológicoapartirdomomentoemqueédisfuncionaleproduzsofrimentoparaopróprioindivíduoouparaseugruposocial.Normalidade como processo. Nesse caso, mais que uma visão estática,consideram-seosaspectosdinâmicosdodesenvolvimentopsicossocial,dasdesestruturações e das reestruturações ao longo do tempo, de crises, demudançasprópriasacertosperíodosetários.Esseconceitoéparticularmenteútilnachamadapsicopatologiadodesenvolvimentorelacionadaapsiquiatriaepsicologiaclínicadecrianças,adolescenteseidosos.Normalidadesubjetiva.Aqui,édadamaiorênfaseàpercepçãosubjetivadopróprio indivíduo em relação a seu estado de saúde, às suas vivênciassubjetivas.Opontofalhodessecritérioéquemuitaspessoasquesesentembem,“muitosaudáveisefelizes”,comonocasodesujeitosemfasemaníacanotranstornobipolar,apresentam,defato,umtranstornomentalgrave.Normalidade como liberdade. Alguns autores de orientaçãofenomenológica e existencial propõem conceituar a doença mental comoperdadaliberdadeexistencial.Dessaforma,asaúdementalsevinculariaàspossibilidadesdetransitarcomgrausdistintosdeliberdadesobreomundoesobreoprópriodestino.O psicopatólogo francêsHenri Ey (1900-1977) formulou com clareza estanoção:

    [...]asenfermidadesfísicassãoameaçasàvida,asenfermidadesmentaissão ataques à liberdade. [...] no transtorno mental [...] o processomórbidotravando,bloqueando,dissolvendoaatividadepsíquica,diminuialiberdadeeresponsabilidadedopacientemental(Ey,2008,p.77).

    A doença/transtorno mental é, portanto, constrangimento do ser, éfechamento, fossilização das possibilidades existenciais. Dentro desseespírito,opsiquiatragaúchoCyroMartins(apudGuilhermano,1996,p.12)afirmava que a saúde mental poderia ser vista, em certo sentido, como apossibilidadededispor de “sensode realidade,sensodehumor e de umsentido poético perante a vida”, atributos esses que permitiriam aoindivíduo “relativizar” os sofrimentos e as limitações inerentes à condiçãohumana e, assim, desfrutar do resquício de liberdade e prazer que aexistênciaoferece.

  • 9. Normalidade operacional. Trata-se de um critério assumidamentearbitrário,comfinalidadespragmáticasexplícitas.Define-se,apriori,oqueé normal e o que é patológico e busca-se trabalhar operacionalmente comessesconceitos,aceitandoasconsequênciasdetaldefiniçãoprévia.Atécertoponto, a demarcação de separação entre normal e patológico dos sistemasdiagnósticos atuais (CID e DSM) emprega critérios operacionais epragmáticosnadefiniçãodostranstornosmentais.

    Portanto,demodogeral,pode-seconcluirqueoscritériosdenormalidadeede doença em psicopatologia variam consideravelmente em função dosfenômenos específicos comosquais se trabalha e, também,de acordo comasopções filosóficas do profissional ou da instituição. Além disso, em algunscasos, pode-se utilizar a associação de vários critérios de normalidade oudoença/transtorno, de acordo com o objetivo que se tem em mente. De todaforma, essa é uma área da psicopatologia que exige postura permanentementecríticaereflexivadosprofissionais.

    MEDICALIZAÇÃO,PSIQUIATRIZAÇÃO,PSICOLOGIZAÇÃOEm excelente trabalho abrangente e crítico, Rafaela T. Zorzanelli ecolaboradores apontam para os múltiplos (e, às vezes, confusos) sentidos dotermo“medicalização”naatualidade(Zorzanellietal.,2014).

    Campos e condições como infância e transtorno de déficit deatenção/hiperatividade (TDAH), timidez e fobia social, envelhecimento emenopausa, memória e transtorno de estresse pós-traumático exemplificamtemas que são reiteradamente incluídos nas críticas sobre medicalização. Pormedicalizaçãoentende-se“oprocessopeloqualproblemasnãomédicospassamaserdefinidose tratadoscomoproblemasmédicos,frequentementeemtermosdedoençasoutranstornos”(Conrad,2007).

    Nocampodapsicopatologia,medicalizaçãoéumconceitoquesereferemaisespecificamenteàtransformaçãodecomportamentosdesviantesemdoençasoutranstornosmentais, implicandogeralmenteaaçãodocontroleepodermédicosobreascondiçõestransformadasementidadesmédicas.

    Assim,otermo“medicalização”teve,noiníciodousodesseconstruto,umsentido de denúncia sobre o chamado “poder médico” (ver, por exemplo, ascríticas de Zola, 1972). Os termos “psiquiatrização” (transformação de

  • problemasnãopsiquiátricosempsiquiátricos)e“psicologização”(transformaçãode problemas não psicológicos em psicológicos), embora menos empregados,teriamumsentidoanálogoaode“medicalização”.

    Assim,oqueestáemjogonacríticaqueotermo“medicalização”implicaéo processo ideológico e político de rotular comportamentos desviantes,moralmente repreensíveis ou mal-adaptados e transgressivos como doença,como transtornomental, e, assim,monitorar, regular e controlá-losmelhor, oudesqualificaraspessoasquerecebemtalrótulo.

    Na atualidade, a noção de medicalização se tornou mais problemática ecomplexa, sobretudo pela busca que pessoas não profissionais fazem poridentidades relacionadas a certas condições médicas e pela apropriação decategoriasmédicaspelapopulaçãoemgeral(Zorzanellietal.,2014).

    Emboraadenúnciadamedicalização,psiquiatrizaçãoepsicologizaçãosejaimportante,hádiversosaspectoscontroversosemtornodela.Emdiversospaísese no Brasil, em particular, há o paradoxo de muitas pessoas com transtornosmentais graves (como esquizofrenia, transtorno bipolar, autismo, depressãograve,etc.)não teremacessoacuidadosdesaúdementaladequados,enquantoemoutrosgrupos,socioeconomicamentemaisprivilegiados,hámedicalizaçãoepsiquiatrizaçãodecondiçõesnãomédicas(p.ex.,a tristezacomum,decorrentedeconflitose/ouinfelicidadeconjugal,sendomedicalizadacomo“depressão”etratada com psicofármacos, ou o fracasso escolar devido a inadequaçõespedagógicassendopsiquiatrizadocomoTDAH).

    A questão, na maioria das vezes, não é se o indivíduo recebe ou nãodiagnóstico e tratamento médico, psiquiátrico ou psicológico, mas, antes, seaquelesquenecessitamde fato recebemdiagnósticoe tratamentoadequados,eaqueles que não necessitam possam ficar isentos de ações médicas comimplicaçõesinadequadas(Glasziou,2013).

    Adefiniçãodeumconjuntode comportamentos comonormalou anormal,como transtorno mental, transgressão legal ou anormalidade social, temimplicaçõesmarcantessobreaeconomia(p.ex.,aindústriafarmacêutica),avidapolítica, o sistema judicial e, enfim, sobre a vida concreta, muitas vezes, demilharesdepessoas.

  • 5.Contribuiçõesdasneurociênciasàpsicopatologia

    Upa!Cáestamos.Custou-te,não,leitoramigo?ÉparaquenãoacreditesnaspessoasquevãoaoCorcovado,edizemquealiaimpressãodaalturaétal,queohomemficasendocousanenhuma.Opiniãopânicaefalsa,falsacomoJudase

    outrosdiamantes.Nãocreiastunisso,leitoramado.NemCorcovados,nemHimalaiasvalemmuitacousaaopédatuacabeça,queosmede.

    MachadodeAssis

    VISÃOGERALDOSSISTEMASNEURONAISDe fato, como Machado de Assis menciona no texto, apesar da riqueza douniverso,acabeçaqueoestudaeoadmiratalvezsejaumadesuaspartesmaisricas. A riqueza do cérebro humano está basicamente relacionada a suacapacidade de receber, armazenar e elaborar informações, bem como fazerplanos e promover ações, o que depende intimamente das conexões neuronaisviasinapses.

    Océrebrohumanocontémcercade100bilhõesdeneurônios;cadaneurônio(isto é válido, sobretudo, para neurônios do neocórtex), com seus axônios edendritos,fazaproximadamente10milconexõescomoutrosneurônios,umtotalque pode alcançar, para todo o cérebro humano, 100 trilhões de conexões(Sporns,2010).

    Hoje se pensa que a unidade funcional do cérebro não é o neurônioisolado, mas os circuitos e conexões neuronais. Percepção, imaginação,memória,emoçõesemesmoopensamentosurgemvinculadoscomaatividadedesses circuitos neuronais. O desenvolvimento de tais circuitos baseia-se, emparte, em uma programação genética, mas é intensamente dependente dasexperiênciasindividuaisdosujeitoemseuambiente(Pally,1997;Sporns,2010).

    Aarquiteturaeaorganizaçãodocérebrosãoprodutosdeumalongahistóriade evolução filogenética (Dalgalarrondo, 2011). As partes filogeneticamentemaisantigasdoórgão sãoo troncocerebral eodiencéfalo, responsáveispelas

  • funções vitais, como respiração, batimentos cardíacos, temperatura corporal eciclosono-vigília(MacLean,1990).Tambémantigassãoasestruturaslímbicas(na parte mesial dos lobos temporais e frontais), associadas às respostasemocionais e àmemória, assimcomo, emcertamedida, a padrões típicosdosmamíferos,comocuidadosparentais,amamentação,brincarechoroinfantil.

    Emtermosevolutivos,apartemaisrecentedocérebroéoneocórtexdeseiscamadas neuronais dos mamíferos. Esse córtex teve seu desenvolvimentomaior nos primatas e na espécie humana, principalmente por meio das áreasassociativastemporoparietoccipitaisedasáreaspré-frontais.Ocórtexpré-frontalé o centro executivo do cérebro, responsável pelos pensamentos abstrato esimbólico, pelo planejamento de ações futuras, pela capacidade demontar umesquema de causas, efeitos e consequências das ações (córtex pré-frontaldorsolateral),pordirigiraatençãoparaumatarefa,modularoafetoeasemoções(córtex orbitofrontal), assim como adiar uma gratificação e lidar com asfrustrações(Pally,1997).

    A localização precisa de atividades cognitivas e mentais, em geral, emtermosde regiões cerebrais emódulos cognitivos-cerebrais isoláveis, tem sidocriticada, por simplificar a análise do funcionamento do cérebro humano. Hámuitoselementosqueindicamqueosneurôniosdedeterminadaáreadocérebronão exercem apenas uma função (como linguagem, percepção de objetos,pensamentoouaçõesmotoras).

    De modo geral, segundo as pesquisas originais de Michael L. Anderson(2016),neurônioslocalizadosemumapartedocérebroexercemmuitasfunçõesdiferentesconformesãorequisitados, revelandoumaplasticidademaiordoquese imaginavadécadasatrás.Háochamadoreusoneuronal,noqualneurôniossão utilizados e reutilizados para múltiplas e distintas funções cognitivas,mentais e comportamentais. Assim, por exemplo, a área da ínsula anterioresquerdaestáenvolvidaemfunçõestãodistintascomolinguagem,memóriadetrabalho, atenção, raciocínio, audição e emoção. De acordo com os desafiosambientaiscolocadosdiantedo indivíduo,muitasáreasneuronais localizadasecircunscritas assumem diferentes funções; assim, não há muito espaço paraultraespecialistasnocérebrohumano(paraumaexcelenteapresentaçãodessetema,verAnderson,2016).

    Nosdiasatuais,estácadavezmaisevidenteque,maisimportantedoquealocalizaçãodeumneurônionocérebro,sãoasconexõesqueelefazcomoutrascélulascerebrais,omodocomoassinapsessãofeitaserefeitas.Alémdisso,hoje

  • é consenso que a construção das importantes conexões cerebrais dependeintimamentedasexperiênciaspelasquaisoindivíduopassa(Anderson,2016).

    Deve-se destacar também que nas últimas décadas foi descoberto que osneurôniosnãosãoosúnicosatoresimportantesdocérebro.Ascélulasdaglia,como os astrócitos, os oligodendrócitos e as células de Schwann, querepresentam cerca de 85% das células no cérebro humano (os neurôniosrepresentam apenas 15% das células cerebrais) e, anteriormente, eram vistasapenascomafunçãodemassadepreenchimento,de transportedenutrientesede proteção dos neurônios (estes sim, eram os atores do cérebro), foramredescobertaspelasneurociências.Descobriu-senosúltimosanos,porexemplo,que tais células da glia participam intensamente do processamento deinformaçãono cérebro, são fundamentais para o funcionamento das sinapses,controlam a comunicação sináptica, têm receptores para os mesmosneurotransmissoresdosneurônioseinfluenciamatransmissãosinápticamesmolongedaregiãoondeestãolocalizadas.Agliaestáimplicadatantoemprocessosneurofisiológicos complexos, na aprendizagem e nas alterações patológicascomonostranstornosmentais(esquizofrenia,depressãoetranstornoobsessivo-compulsivo [TOC]) eneurológicos (esclerosemúltipla e neuroquímicadador)(Fields,2010).

    DESENVOLVIMENTODOCÉREBRONOCICLOVITALEm relação ao desenvolvimento ontogenético, pode-se afirmar que o cérebrohumano “nasce prematuro”. Muito do seu desenvolvimento ocorre após onascimento,atéoperíodoadulto.Amigraçãodosneurôniosnoperíodofetaldotuboneuralparaseudestinofinal(amaiorpartenocórtexcerebral)ocorresobcontrole genético direto. Postula-se que anormalidades nesse processomigratóriopossamcontribuirparaagênesedealgunstranstornosmentais.

    Nosprimeirosanosdevida,háumgrandenúmerodesinapses,achamada“exuberânciasináptica”.Aofimdoprimeiroanodevida,acriançachegaaterodobrodesinapsesdoadultoparaomesmonúmerodeneurônios.Operíododeexuberância sináptica dura até o início da adolescência. Nesse período, assinapsesserãogradativamentereduzidas,“podadas”,deacordocomousoquesefezesefazdelasaolongodavida.Sinapsesecircuitosativadoseutilizadoscom frequência irão permanecer e serão “reforçados”; os que não são usados

  • desaparecem nos anos de adolescência e juventude. Embora esse processo depodaoureforçoocorraaolongodetodaavida,énaadolescênciaqueeleocorredeformamaisrápidaeacentuada(Dennisetal.,2013).

    Outro aspecto importante é amielinização, uma vez que as bainhas demielina permitem uma condução neuronal muito mais rápida e eficiente,potencializando em grau maior as funções cerebrais. As áreas sensoriaisprimáriassãomielinizadasnosprimeirosmesesdevida;ocórtexpré-frontal,porsuavez,responsávelporfunçõesmentaisextremamentecomplexas,sofrelentoprocessodemielinizaçãodoterceiromêsdevidaatéoiníciodoperíodoadulto,ou seja, até os 30 anos de idade, quando o córtex pré-frontal enfim seestabiliza.

    Comoenvelhecimento,océrebrohumanotambémsetransforma;onúmerodeneurôniosdecresceporvoltade5a10%,océrebrotododiminuidetamanho,easubstânciabrancaperdepartedesuaintegridade.Hádeclíniodehabilidadesneuropsicológicas, como velocidade de processamento,memória de trabalho ememóriadelongoprazo.Entretanto,navelhice,seháengajamentodapessoaematividadescognitivaseexercíciofísico,ocorremmecanismoscompensatóriosdeativaçãoaumentadadasregiõespré-frontais(Park;Reuter-Lorenz,2009).

    FUNÇÕESEÁREASCEREBRAISDeformabastantesimplificada,masdidática,podem-seidentificardoisparesdeáreas cerebrais, antagônicos em certo sentido, mas também complementares.Distinguem-se funcionalmente, no cérebro, as porções anteriores versus asposteriores,assimcomoohemisfériodireitoversusoesquerdo.Aseguir,sãoapresentadosalgunsaspectosdofuncionamentocerebralnessasduasdíades.

    Porçãoanterior(frontal)versusposteriordocérebroA porção posterior do cérebro, incluindo os lobos occipitais, parietais etemporais, contém as áreas sensoriais primárias (da visão, do tato, dapropriocepção, da audição, do olfato e da gustação); as áreas secundáriasadjacentes e funcionalmente relacionadas às primárias; e a extensa áreaterciária de associação, a saber, a grande área associativa da encruzilhadatemporoparietoccipital. Essa porção posterior do cérebro relaciona-se maisintimamenteà recepção,à identificaçãoeàordenaçãodoambienteemrelaçãoao indivíduo. Pode-se dizer, didaticamente, que é a região do cérebro que

  • “recebe” o mundo. Obviamente, essas áreas também participam de tarefasativas e motoras do indivíduo sobre o meio, mas seu funcionamento maiscaracterísticorefere-seàpercepçãodomundoeàorganizaçãodessapercepçãoem unidades ordenadas e integradas, na codificação, na decodificação e narecodificação em níveis de complexidade crescente, de todos os elementossensoriais,e,porfim,naconfiguraçãoerepresentaçãocoerentedarealidade.

    Aporçãoanterior, frontal, do cérebro relaciona-semais intimamente comasatividadesdoindivíduo.Éaporçãodocérebroque“age”sobreomundo.Asáreas anteriores do órgão, principalmente os córtices pré-frontal e frontal e osnúcleos da base (sobretudo o núcleo caudado), também participam daidentificaçãodeproblemasaseremsolucionados,assimcomosãofundamentaisparaosmecanismosdaatenção.Suaespecificidade relaciona-seàcriaçãoeaoplanejamentodeestratégiasdeação,àcolocaçãonapráticadetaisestratégias,àmonitoraçãodosefeitosdaaçãosobreomeioeàadequaçãocontínuadessaaçãoperanteascondiçõescambiantesdomeio.

    Demodosimplificadoeresumido,pode-seafirmarqueoslobosfrontaissãoresponsáveispeloplanejamentodaaçãoedofuturo,assimcomopelocontroledosmovimentos; os lobos parietais, pelas sensações táteis, imagem corporal eparte da consciência de si; os lobos occipitais, pela visão e reconhecimentovisual do ambiente; e os lobos temporais, pela audição e pelos principaisaspectosda linguageme, nas regiõesmesiais temporais (parte interna, sistemalímbico), pela memória, aprendizado e emoções (Kandel; Schwartz; Jessel,1995).

    HemisférioesquerdoversusdireitoDesdeaspesquisasdePaulBroca(1861)edeCarlWernicke(1874),noséculoXIX, sabe-se que os dois hemisférios cerebrais não são nem semelhantes doponto de vista anatômico, nem totalmente equivalentes do ponto de vistafuncional. Tanto estudos clínico-patológicos com pacientes que sofreramacidentes vasculares cerebrais ou tumores como pesquisas experimentais têmdemonstrado que os hemisférios esquerdo e direito são assimétricos emmúltiplosaspectosfuncionaisecognitivos.

    Para a maioria dos seres humanos, o hemisfério esquerdo desenvolve-seontogeneticamente de forma mais lenta que o direito e está intimamenteassociado a funções linguísticas verbais. O hemisfério direito, por sua vez,relaciona-secomhabilidadesvisuoespaciais,aspectosprosódicosdalinguageme

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    aspectosdapercepçãoeexpressãomusical.OQuadro 5.1apresentaalgumasdasfunçõesedashabilidadesdiferenciaisentreosdoishemisférios(Gaebel,1988).

    Quadro5.1|Funçõesneuropsicológicaspredominantesdoshemisfériosesquerdoedireito

    HEMISFÉRIOESQUERDO HEMISFÉRIODIREITO

    Verbal,linguísticoSemânticaSintáxica("lógica"dalíngua)

    VisuoespacialMusicalProsódica("música"dafala,entonação)

    Cabe assinalar que a chamada dominância hemisférica para a linguagem(sobretudo para os aspectos semânticos e sintáticos) é esquerda para 96%dosindivíduosdestrosepara58%doscanhotos.Pessoascanhotas, ambidestrasoucom lateralidade ambígua representam geralmente 10% da população(entretanto,empaísescomoÍndiaeJapão,sãoemtornode5%,possivelmentepor pressões culturais) (Ferrari, 2007). Em 27% dos canhotos, a dominânciahemisférica para a linguagem fica no hemisfério direito, e, em 15% deles, adominânciaparaalinguagemébilateral(Madalozzo;Tognola,2006).

    NEUROPSICOLOGIAEPSICOPATOLOGIAA neuropsicologia investiga as relações entre as funções psicológicas e aatividadecerebral.Édeseuparticularinteresseoestudodasfunçõescognitivas,como a memória, a linguagem, o raciocínio, as habilidades visuoespaciais, oreconhecimento, a capacidade de resolução de problemas, as habilidadesmusicais,etc.Asalteraçõesinicialmenteestudadaspelaneuropsicologiaforamas afasias (perda de linguagem), as agnosias (perda da capacidade dereconhecimento), as amnésias (déficits de memória) e as apraxias (perda dacapacidadederealizargestoscomplexos,dosaber-fazer).

    Alémdessasfunçõesesintomas,tem-sedadoênfaseaoutrasdimensõesdacognição, como as atividades construtivas (execução de tarefas complexas,realização de atos construtivos em sequência, tarefas psicomotoras, etc.) e ashabilidades visuoespaciais (análise e julgamento de relações espaciais,reconhecimentoememorizaçãodefigurascomplexas,etc.).

    Outras funções e dimensões estudadas pela neuropsicologia nas últimasdécadassão:habilidadesmusicais (discriminaçãode tons emelodias, ritmo eharmonia, etc.), atenção sustentada e seletiva, percepção e organizaçãotemporal, funções executivas (identificação e resolução de problemas novos,

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    elaboração de estratégias de ação, execução de tarefas sequenciais, etc.) efunções conceituais (formação de conceitos, desenvolvimento de raciocínios,pensamentológico,habilidadesaritméticas,etc.).

    A neuropsicologia é uma área de interesse crescente em psicopatologia epsiquiatria de modo geral. Nas últimas décadas, tem aumentado o uso demodelosneuropsicológicosparaoentendimentodostranstornosmentais,assimcomo o emprego de testes neuropsicológicos e o estudo de diversos déficitscognitivos sutis ou marcantes em transtornos mentais clássicos, comoesquizofrenia, depressão, autismo, transtorno de déficit deatenção/hiperatividade(TDAH)eTOC(revisãoemKeefe,1995).

    A neuropsicologia moderna ganhou importante impulso com a obra doneurologistaeneuropsicólogorussoAlexanderR.Luria(1902-1977).Elepropôssubstituiranoçãotradicionaldesintomaemneurologiaeneuropsiquiatria(que,segundoele,seriademasiadamentesimplistaemecanicista)porumaabordagemmaisdinâmicaecomplexa.

    Anoçãodesintomacomodecorrentedeumalesãodelimitadadocérebronãocorresponde à realidade diversificada da vida mental, particularmente dosprocessoscognitivos.SegundoLuria,nomodelotradicionallocalizacionistadasneurociências,haveriaalgoquecorresponderiaaoseguinteesquema:

    tecido em área cerebral específica, delimitada, é responsável pordeterminadas funções elementares (linguagem, memória, reconhecimentos,etc.)funções elementares sãodiretamente afetadaspor lesãonesse tecido, nessaárea,logo...lesãolocalizada=sintomaespecífico

    Luria (1981) propõe substituir esse esquema pela noção de sistemafuncional complexo (SFC). Segundo ele, oSFCestaria organizadode acordocomasseguintespremissas:

    Os processosmentais complexos, como linguagem, pensamento,memória,abstração, praxias, gnosias, etc.,não estão “prontos” no adulto, não sãofenômenosfixos, derivadosmecânicos de uma área cerebral que entra emação, independentemente do desenvolvimento do indivíduo. Eles são, defato, processos mentais construídos durante a ontogênese, por meio daexperiênciasocial,ouseja,pelainteraçãointensaecontínuadacriançacomseus pais e seu meio social. Essa interação é que permite ao indivíduo

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    adquirir todas as suas funções cognitivas, como memória, linguagem,pensamento,reconhecimento,etc.Dopontodevistacerebral,asfunçõeseosprocessosmentaiscomplexossãoorganizados em sistemas que envolvem zonas cerebrais distintas, cadaumadelasdesempenhandoumpapelespecíficonosistemafuncional,agindoe interagindo emconcerto.Tais zonas, namaior parte das vezes, estão emáreasdiferentese,emgeral,distantesumasdasoutrasnocérebro.Emboradistantes, agem de forma coordenada para produzir uma função mentalcomplexa.Alesãodeumadasáreascerebraisimplicadaemdeterminadafunçãomentalsuperior pode acarretar a desintegração de todo o sistema funcional.Portanto, a perdadeuma funçãoparticular pode informarpouco sobre sualocalização.Muitomaisrelevantequeumaáreacerebralcircunscritasãoossistemas funcionais complexos, constituídos por redes neuronais amplas emuitodinâmicas.

    Os três grandes sistemas funcionais do cérebro humano, segundo Luria(1981),são:

    Sistema do tônus do córtex. Formado por aferências da periferia, partessuperioresdo troncocerebral,córtex límbicoecommodulaçãodas regiõespré-frontais.Essesistema,segundoLuria,éresponsávelpelaativaçãogeraldo sistema nervoso central (SNC). Ele controla particularmente o nível deativaçãodocórtex,mantendooníveldeconsciência,avigilânciaeaatençãodosujeito.Sistemaderecepção,elaboraçãoeconservaçãodeinformações.Formadopor áreas posteriores do córtex cerebral (occipital, temporal e parietal), ouseja, por zonas sensoriais (visuais, auditivas, táteis e proprioceptivas)primárias e secundárias, além do carrefour (encruzilhada)temporoparietaloccipital.Esse sistema,deacordocomLuria, é responsávelpela recepção, pela decodificação e pela interpretação das informaçõesprovenientes do ambiente externo e interno. É o sistema que reconhece omundo nas várias modalidades sensoriais (auditiva, visual, tátil, olfativa,etc.)eintegrataisinformaçõesambientaisemumtodocoerente.Sistemadeprogramação,regulaçãoecontroledaatividade.Formadoporáreas anteriores (frontais)dosgrandeshemisférios.Esse sistema, conformeLuria,éresponsávelpelaaçãodoindivíduosobreomeioambiente.Apartir

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    do reconhecimento de problemas novos e tarefas necessárias, os sistemaspré-frontais programam a atividade complexa do indivíduo, montamestratégiasdeação,colocam-nasemfuncionamentoemonitoramaeficáciadetaisações,modulando-assegundoasvariaçõesdoambiente.

    ParaLuria,alinguageméumdoselementosorganizadoresmaisimportantesdaatividadecerebral.Apartirdela,todasasoutrasfunçõescognitivassuperioresse organizam.A linguagem, por sua vez, é fenômeno cerebral e sociocultural,produzido e modificado historicamente. Assim, o próprio funcionamento docérebro, particularmente no que concerne às funções corticais superiores(linguagem, memória, pensamento, etc.), é organizado a partir das interaçõessociofamiliaresbásicas,bemcomodocontextosocioculturalehistóriconoqualoindivíduoseinsere,desdeseusprimeirosanosdevida.

    LIMITESDAAPLICAÇÃODANEUROPSICOLOGIAEDOSTESTESNEUROPSICOLÓGICOSEMPSIQUIATRIAApesar de representar uma importante contribuição à psicopatologia, abrindonovasperspectivasdeentendimentodadoençamental,edecontribuir,pormeiodeumgrandenúmerodetestespadronizadosesofisticados,paraaavaliaçãodesutisalteraçõesdosrendimentos intelectuaisnos transtornosmentais,omodeloneuropsicológico também apresenta claras limitações quando aplicado àpsiquiatria(Lezaketal.,2012;Howieson;Loring,2004).

    A utilização, em psicopatologia, dos testes neuropsicológicos é complexa,marcadapelasseguintesdificuldades:

    Os testes neuropsicológicos, ao contrário do que às vezes se afirma,nãomedem funções absolutamente específicas. O desempenho pobre em umtestenãoindicanecessariamenteumdéficitneuropsicológicoespecífico.Porexemplo,ummaudesempenhoemumtestevisuoespacial(p.ex.,otestedeBender ou o de Benton) pode ser decorrente de déficit visual, déficit deintegraçãodeinformaçõesvisuais,apraxiaconstrucional,agnosiavisuale/oude funções executivas frontais. De modo geral, deve-se constatar que hágrandesobreposiçãoentreasváriasfunçõesneurocognitivascomplexas.Decorrente da primeira constatação, é preciso lembrar-se de que odesempenho anormal em um teste neuropsicológico não significa,

  • necessariamente,umadisfunçãocerebralregionalespecífica.Quantomaiscomplexa for a tarefa (p. ex., funções executivas, raciocínio abstrato, etc.),tantomais provável será que o déficit se deva amúltiplos fatores, algunsdeles inespecíficos,entrandoem jogodiferentes redesesistemasneuronais(revisãoemDodrill,1997).

    PLASTICIDADENEURONAL:OCÉREBROTRANSFORMA-SEPOSITIVAENEGATIVAMENTECOMAEXPERIÊNCIAA experiência é o elemento mais importante que estimula ou restringe aplasticidadeneuronal.Desdeosanosde1960,ovelhodogmadequeocérebro,umavezformado,torna-seumaestruturafixa,poucopassíveldemodificações,vemsendosubstituídopelaconstataçãodequeosistemanervoso,defato,exibeumaimportantecaracterística:aneuroplasticidade(Mellon;Clark,1990).

    Tem sido verificada a capacidade do tecido neuronal de se transformar eadaptar às exigências ambientais ou internas do organismo, não só na faseembrionária e no início da vida, mas ao longo de todo o ciclo vital. Aexperiência é elemento fu