PT SAUDAÇÕES - ieacen.files.wordpress.com · DONA QUERIDA – Ah! É que pode alguém se lembrar...

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PT SAUDAÇÕES Texto de Carlos Carvalho

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SAUDAÇÕES Texto de Carlos Carvalho

PERSONAGENS

DONA QUERIDA

MARQUINHO

CENÁRIO

Apartamento JK decorado com disfarçado mau-gosto, onde

se destacam coisas como uma bandeja de prata com frutas

de cera, um vaso com flores plásticas, etc. Um biombo

japonês esconde um guarda-roupa. Uma gaiola, enfeitada

com fitas, está vazia, perto do biombo.

CENA I

Música de aniversário, palmas, felicitações.

VOZ MASCULINA (Gravada) – Meus amigos e companheiros

de trabalho: estamos hoje reunidos – não como funcionários e

chefe desta repartição, mas, sobretudo, como amigos – para

homenagear a nossa colega Corina Assumpção, a nossa

conhecida e estimada Dona Querida. Assim, no dia em que

Dona Querida colhe mais uma flor no jardim da sua existência,

não poderíamos nós – seus amigos e colegas, e em especial a

chefia desta seção – deixar passar a data, sem uma lembrança

do nosso carinho e respeito por esta funcionária exemplar, por

esta pessoa, cujos dotes e virtudes morais e intelectuais tanto

admiramos e respeitamos. (Palmas. Vozes de ‘muito bem’,

‘apoiado’, etc. Luz na cena vazia.) Assim, é com imensa

satisfação, que fazemos entrega à Dona Querida, deste

ramalhete de flores que, embora singelo, expressa toda a nossa

admiração e respeito. (Palmas. Todos cantam.).

VOZES (Cantando) – Querida é boa colega / Querida é boa

colega / Querida é boa colega / E ninguém pode negar. (Dona

Querida entra em casa, sobraçando o ramalhete, com ar,

visivelmente, cansado. Senta no sofá, tira os sapatos,

massageia os pés. Depois levanta e arruma as flores num

vaso. Serve-se de bebida e, sempre de pés descalços, bebe,

aos pouquinhos. Consulta o relógio. Liga o rádio, procura

uma estação. Música. Vai para trás do biombo, tira a roupa e

volta, somente com a roupa de baixo e chinelos. Cantarola,

junto com o rádio, baixa o volume e começa a arrumar a

mesa: estende uma toalha limpa, vai à cozinha e traz

pratinhos e garfinhos. Põe a garrafa sobre a mesa e mais as

flores. Toca a campainha. Corre para trás do biombo.

Novamente a campainha.).

DONA QUERIDA (Gritando) – Um momentinho, por favor! (A

campainha insiste. Dona Querida volta, ainda enfiando um

chambre. Desliga o rádio.) Já vai: um momento! (Ajeita os

cabelos. Vai até a porta.) Já vai. Quem é?

MARQUINHO (De fora) – Telegrama!

DONA QUERIDA – Para quem?

MARQUINHO (De fora) – Para Corina Assumpção.

DONA QUERIDA – Assumpção com ‘p’ antes do ‘ç’?

MARQUINHO (De fora) – Assim mesmo.

DONA QUERIDA – É aqui, sim. Um momentinho, por favor. (Vai

abrir a porta.).

MARQUINHO (De fora) – É a senhora mesma?

DONA QUERIDA – Sou eu, sim. (Recebe o telegrama.).

MARQUINHO (De fora) – A senhora tem que assinar aqui. Só

que eu não tenho caneta.

DONA QUERIDA – Um momento. (Entra novamente. Procura

uma caneta e não acha.) Onde é que se meteu essa caneta?

Já vai, viu?

MARQUINHO (De fora) – Não tem pressa, não senhora. Só

que... será que a senhora podia me dar um copo d’água?

DONA QUERIDA – Claro. Mas, entre, então. Não gosto de ficar

com a porta aberta. Por causa dos vizinhos. (O rapaz entra.

Deve ter, mais ou menos, vinte anos. Aparentemente

tímido.) Já lhe dou a água. Deixa eu só encontrar a caneta.

MARQUINHO – A que eu tinha, eu esqueci numa casa. A

senhora sabe: a gente vai a tanto lugar durante o dia.

DONA QUERIDA – Eu tenho uma, só não sei onde está.

(Procura.).

MARQUINHO – Pode ser com lápis, também. Não tem

importância.

DONA QUERIDA – Não convém. Podem adulterar ou apagar a

assinatura.

MARQUINHO – Não tem perigo, não senhora.

DONA QUERIDA – Você queria água, não é? Já lhe dou. (Vai à

cozinha e volta com um copo d’água.) Só que não está

gelada.

MARQUINHO – Não tem importância, não senhora. (Bebe.

Dona Querida observa-o.).

DONA QUERIDA – Quer mais?

MARQUINHO – Se não for incômodo. A gente caminha tanto,

entregando correspondência, que nem tem tempo de comer,

quanto mais de tomar alguma coisa.

DONA QUERIDA – Claro, claro. Já lhe trago. (Vai à cozinha.)

Ah, está aqui. (Volta com a caneta e assina.) Pronto. Ah, meu

Deus: esqueci da sua água.

MARQUINHO – Não tem importância, não senhora.

DONA QUERIDA – Como não tem importância? Tem sim

senhor. (Volta à cozinha.) Quem sabe você quer tomar um

refrigerante?

MARQUINHO – A senhora não precisa se incomodar, não. Água

mesmo serve.

DONA QUERIDA – Mas não é incômodo nenhum. (Volta com

uma Coca-cola.) Hoje estou de aniversário, sabe? Tenho

bastante refrigerantes no congelador.

MARQUINHO – Muito obrigado. (Começa a tomar.).

DONA QUERIDA – Mas, tome com calma. Pode dar soluço.

MARQUINHO – A minha mãe sempre reclama. Eu sou muito

afobado, até para comer. É que a gente está acostumado com o

trabalho: não tem quase tempo.

DONA QUERIDA – Você trabalha há muito tempo?

MARQUINHO – Há um ano, mais ou menos. Quer dizer: eu

trabalho desde os dezesseis. Só que neste emprego faz um

ano, mais ou menos.

DONA QUERIDA – Deve ser cansativo andar o dia inteiro,

batendo de porta em porta.

MARQUINHO – Lá isso é. Mas a gente tem que ganhar a vida.

Também, é só por pouco tempo. Eu estudo de noite. Quando

abrir um concurso, aí eu faço.

DONA QUERIDA – Não quer mais um pouquinho?

MARQUINHO – Não senhora, muito obrigado. (Levanta-se para

sair.).

DONA QUERIDA – Espere um pouquinho. (Abre a bolsa, tira

uma nota de cinco cruzados e dá ao rapaz.) Para você fazer

um lanche.

MARQUINHO – Muito obrigado. (Vai saindo.).

DONA QUERIDA – Ei: espere aí! (O rapaz pára.) Por falar em

lanche, quem sabe você quer comer um docinho?

MARQUINHO – Não, obrigado. Eu ainda tenho que ir em casa

jantar e voltar para a aula.

DONA QUERIDA – Pois então? Nem precisa ir em casa. Pode

ficar um pouco mais, comer um docinho e ir direto para a aula.

Pode jantar na volta.

MARQUINHO (Indeciso) – A senhora não está esperando

visitas?

DONA QUERIDA – Não. Por quê?

MARQUINHO – É que eu pensei... Eu vi a mesa, ali...

DONA QUERIDA – Ah! É que pode alguém se lembrar do meu

aniversário, não é? Assim, não me pega desprevenida. Mas

nunca vem ninguém, mesmo.

MARQUINHO – E se vem?

DONA QUERIDA – E daí? Você tem medo de gente?

MARQUINHO – Não, não é isso. É que... eu sei... sei...

DONA QUERIDA – Como é? Não vai ficar?

MARQUINHO – Não sei... não quero lhe dar trabalho.

DONA QUERIDA – Mas que trabalho? Olha: eu fiz um bolo.

Você fica, eu não passo o meu aniversário sozinha e você,

depois, vai direto para a aula. Certo?

MARQUINHO – Já que a senhora insiste.

DONA QUERIDA – Mas, claro!

MARQUINHO (Sentando novamente) – Então, com licença!

DONA QUERIDA – À vontade. E não precisa ficar constrangido,

não. Você vai ser a minha visita. Bebe uísque?

MARQUINHO – Tomo, sim senhora. Mas não precisa se

incomodar comigo.

DONA QUERIDA – Ah, não. Assim não vale. Se você ficar se

desculpando o tempo todo, vai estragar a festa. Eu já disse que

você é minha visita.

MARQUINHO – Não, não é isso. É que agora eu lembrei que

não posso ficar.

DONA QUERIDA – Mas, por quê? Ainda tem telegramas para

entregar?

MARQUINHO – Não, este foi o último. É que... a senhora sabe,

a gente passa o dia andando pela rua... eu preciso ir em casa,

tomar um banho, essas coisas.

DONA QUERIDA – Bobagem. Hoje não está tão quente assim.

E, se quiser, pode tomar aqui mesmo.

MARQUINHO – Mas eu não quero dar incomodação para a

senhora. Já chega que eu tomei a água, a Coca-cola... Depois,

vai ficar tarde, não é?

DONA QUERIDA – E não precisa ficar aí, cheio de dedos. Eu

posso ser sua mãe.

MARQUINHO – Mas eu não quis dizer isso, não senhora.

DONA QUERIDA – Claro que não quis. Vamos: relaxe. Tome o

seu uísque descansado, enquanto eu preparo o resto. E, essa

história de horas, não tem importância, não. A gente só tem que

cuidar para não fazer muito barulho, por causa dos vizinhos.

MARQUINHO (Bebe, em silêncio, constrangido, enquanto

Dona Querida arruma a mesa) – Bonitas flores.

DONA QUERIDA – Gosta?

MARQUINHO – Parecem naturais.

DONA QUERIDA – Quais?

MARQUINHO – Essas daí.

DONA QUERIDA – E são. Ganhei de presente do meu chefe e

dos colegas. Aquelas ali é que são artificiais, mas a gente nem

nota muito a diferença.

MARQUINHO – São bonitas também.

DONA QUERIDA – Eu gosto mais das flores artificiais. Pelo

menos duram mais, não é? As outras murcham logo. A gente

nem chega a aproveitar.

MARQUINHO – É. Lá isso é verdade.

DONA QUERIDA – Todos os anos o pessoal da seção me dá

flores, com discurso e tudo.

MARQUINHO – Sinal que gostam da senhora.

DONA QUERIDA – Gostam, é? Você é que não sabe.

MARQUINHO – Se lhe dão flores, é porque gostam.

DONA QUERIDA – É tudo encenação, meu filho. Aquela gente

não gosta de ninguém. São uns animais. Mas, isso não

interessa. Hoje é um dia de festa e você é o meu convidado.

Deixa eu terminar de arrumar isto aqui, e depois a gente

conversa.

MARQUINHO – Só que eu não posso demorar muito. Eu tenho

a aula, a senhora sabe.

DONA QUERIDA – Ora: chegar tarde um dia não vai fazer tanta

diferença assim.

MARQUINHO – É que depois eu não ganho presença. E sem

presença, eu não posso nem fazer exames. Eles, agora, estão

dureza com esse negócio de presença. E eu já perdi muito

tempo, sabe? Parei de estudar três anos...

DONA QUERIDA – Sabe de uma coisa? A gente nem se

conhece direito ainda, mas parece que eu já te conheço há

muito tempo.

MARQUINHO (Sorri, constrangido) – É mesmo?

DONA QUERIDA – E quer saber mais? Eu estou muito contente

com isso. De verdade. Todos os anos eu faço um bolo, arrumo a

mesa e fico esperando. Mas nunca vem ninguém. Eu sempre

penso: ‘alguém pode lembrar e aparecer’. A gente tem que estar

prevenida. Acho horrível, quando chega alguém – às vezes traz

até uma lembrancinha – e a gente não tem nada para oferecer.

Para mim, isto é até falta de educação. Mas, hoje em dia, as

pessoas andam sempre tão ocupadas, não têm tempo para

nada, não é? Quem é que vai lembrar o meu aniversário? Não

que eu dê importância para essas coisas. Mas é que eu fui

criada assim. Lá em casa, não havia um aniversário, que não se

fizesse alguma coisinha, por mais simplesinha que fosse. E a

gente habitua com isso. Se eu não faço alguma coisa, fico até

angustiada. Claro que nunca vem ninguém. Há anos que nunca

vem ninguém. Mas um dia, a gente nunca sabe, pode acontecer,

não é? Por isso é que eu estou contente, hoje. Porque você...

quer dizer... porque vai ser assim um pouco diferente, hoje. Pelo

menos, a gente vai acabar com as Cocas-cola, com o uísque e

comer o bolo que eu fiz.

MARQUINHO (Tentando desviar o assunto) – A senhora nem

abriu o telegrama.

DONA QUERIDA – É mesmo. Que cabeça a minha! (Pega o

telegrama.) De quem será?

MARQUINHO – Capaz de ser de algum parente.

DONA QUERIDA – Deste mal estou livre! Parente só procura a

gente quando precisa de um favor. Quero distância! (Pensa.)

Vamos ver se eu adivinho. (Pensa.) Pode ser a Roseli. Não, não

deve ser. A Roseli, depois que casou nunca me escreveu, e já

faz tanto tempo... Já sei! Adelaidinha! Garanto que é da

Adelaidinha! Era uma amiga minha. Quer dizer: amiga, é

maneira de dizer. Nós moramos juntas mais de dois anos.

Depois, a gente se desentendeu, e cada uma foi para o seu

lado. Mas, garanto que é da Adelaidinha. Isso é bem coisa dela.

Tem um gênio difícil, mas no fundo é muito boa. Vai ver que se

lembrou de mim e pensou: ‘vou acabar com essa história de

brigas. Hoje é o aniversário da Querida, e eu vou passar um

telegrama”. Querida sou eu. Ninguém me chama de Corina. Até

na repartição é Dona Querida para cá, Dona Querida para lá...

MARQUINHO (Mostrando o copo vazio) – Se a senhora não

leva a mal...

DONA QUERIDA – Claro, meu filho. Fique à vontade. (O rapaz

se serve de mais uma dose de uísque.) Aposto que é mesmo

da Adelaidinha. (Abre, excitada, o telegrama e lê. Depois, fica

pensativa, com o telegrama na mão.) Eu devia ter imaginado!

MARQUINHO – É notícia má?

DONA QUERIDA – Não, felicitações. Ouça só:

‘cumprimentamos cliente amiga data seu natalício. PT

saudações. Modas Malvi’. Imagina se a Adelaidinha ia lembrar!

MARQUINHO – Bacana, né?

DONA QUERIDA – O que é que é bacana?

MARQUINHO – Se lembrarem assim do freguês. São

organizados, puxa!

DONA QUERIDA – É... são organizados. E nem cliente eu sou

mais. Há cinco anos não faço um crediário, e eles me mandam

telegrama todos os anos.

MARQUINHO – Mesmo?

DONA QUERIDA – É. Tenho todos aqui, olha só. (Pega um

maço de telegramas.) Eu tenho mania de guardar tudo que eu

recebo. Sou organizada, também. (Abre os telegramas, um a

um.) ‘Cumprimentamos cliente amiga... cumprimentamos cliente

amiga...’ (Conta.) Um, dois, três, quatro, cinco, seis, com este

de hoje.

MARQUINHO – Puxa vida! Isso é que é organização! Será que

eles vão mandar sempre?

DONA QUERIDA – Pelo jeito, até o fim da vida. (Lembra.) Ai,

meu Deus, que eu ia esquecendo os salgadinhos! (Abre a

gaiola e retira uma bandeja de salgados, embrulhados.) Não

liga, não. Eu sou muito desconfiada com alimentos. Não gosto

de botar na geladeira: perdem logo o gosto. Deixo aqui, que é

mais arejado. (Olha, melancólica, a gaiola vazia.) Cada vez

que eu mexo aqui, lembro do meu guri. Eu sou muito

sentimental com essas coisas.

MARQUINHO – Era seu filho?

DONA QUERIDA – Não. Um periquito que eu tinha: todo

branquinho, lindo! Morreu, assim, sem mais nem menos.

MARQUINHO – Coitado!

DONA QUERIDA – Mas não sofreu muito, não. Foi rápido.

Depois, eu tive mais três. Mas todos morreram. Passarinho não

vinga aqui. É muito abafado, tem pouca luz. Que é que se vai

fazer, não é?

MARQUINHO – A senhora podia comprar um daqueles de

palha, que imitam passarinho de verdade. Têm até penas:

engana direitinho.

DONA QUERIDA – É... eu não tinha pensado nisso. Claro que

não é a mesma coisa. Mas a gente não usa flor artificial? Taí: é

uma boa idéia. Já vi que você é mais inteligente do que eu

pensava.

MARQUINHO – Nem tanto, ora. Foi só uma idéia que eu tive.

DONA QUERIDA – Pois eu tive outra: quando você sair, eu lhe

dou um dinheirinho, e aí, você compra esse tal passarinho e me

traz amanhã, embrulhadinho. Faz de conta que é um presente

de aniversário.

MARQUINHO – Se a senhora quer, não me custa nada.

DONA QUERIDA – Quero. Como é mesmo o seu nome?

MARQUINHO – Marcos. Mas todo mundo me chama de

Marquinho, desde criança. Eu não gosto, mas todo mundo me

chama assim.

DONA QUERIDA – Pois eu gosto. Marquinho! De Marcos eu

não gosto, não combina com você. É nome de gente velha, de

gerente de banco, dono de imobiliária, sei lá.

MARQUINHO – A senhora acha?

DONA QUERIDA – Mas claro!

MARQUINHO – É, mas eu não gosto não. Quando eu conseguir

alguma coisa, assim... quando eu tiver melhor de vida, só vou

querer que me chamem de Marcos. Marquinho parece assim...

como é que eu vou dizer... assim, parece que tira um pouco do

respeito, não é? Marcos fica mais importante. Não sei...

DONA QUERIDA – Pode ser, mas envelhece muito também.

Olha só, se eu não tenho razão: Bacharel Marco Antonio da

Silveira, Dr. Marco Aurélio de Carvalho, Professor Marco Pólo

sei lá do quê...

MARQUINHO – Mas, o meu nome é só Marcos. Não tem outro

no lado.

DONA QUERIDA – Dá no mesmo. Eu prefiro chamar você de

Marquinho. É assim mais... sei lá, eu gosto. Marquinho...

MARQUINHO – Acho que está ficando tarde.

DONA QUERIDA – O meu chefe, por exemplo, se chama Marco

Pedro. Sr. Marco Pedro. Isso lá é nome? Mas, é engraçado:

nele combina. Não consigo imaginar ele com outro nome.

MARQUINHO – Acho que está na hora.

DONA QUERIDA – Que hora?

MARQUINHO – Na hora da aula. Senão eu não ganho

presença.

DONA QUERIDA – Tem tempo, Marquinho.

MARQUINHO – É que eu tenho ainda que passar na casa da

Marilene. Eu fiquei de passar lá antes da aula. A senhora sabe:

se eu não vou, ela pode não gostar, e daí...

DONA QUERIDA – Ah, já entendi tudo. Uma namorada!

MARQUINHO – É: mais ou menos.

DONA QUERIDA – Não me venha com conversa fiada. Conta

isso direitinho. Como é que ela é?

MARQUINHO – Bom, ela é assim... ela tem dezesseis anos...

DONA QUERIDA – Tão novinha?

MARQUINHO – É. Mas não parece. Não senhora. Quem vê, diz

que ela já tem dezoito. Até já entra em filme impróprio.

DONA QUERIDA – E o que é que ela faz, hein? Estuda,

trabalha?

MARQUINHO – Não: ela só estuda. E cuida do irmão menor,

que a mãe não tem tempo. O pai dela é doente, sabe?

Entrevado, o coitado. E a mãe tem que dar até banho nele, na

cama. Quem cuida mesmo da casa, é a Marilene.

DONA QUERIDA – Coitadinha! E você?

MARQUINHO – Eu o quê?

DONA QUERIDA – Não quer mais um uísque?

MARQUINHO – Eu não sei. Pode me pegar, não é?

DONA QUERIDA – Que bobagem! Eu também vou tomar um

pouquinho. (Serve os copos.) Você não sabia que uísque é

bom para equilibrar a pressão? Os médicos até recomendam.

(Levanta o copo.) Vamos brindar? (Batem os copos.) Ao

Marquinho! Agora, você faz um brinde a mim.

MARQUINHO – Como é que é?

DONA QUERIDA – Oferece para mim, ora, como ofereci a você.

Assim: levanta o copo e diz bem alto – “À Dona Querida!” Não.

Assim não. Tira esse ‘dona’ da frente. Basta Querida.

MARQUINHO – Á Dona...

DONA QUERIDA – Não, não, não. Nada de Dona, já disse. A

gente já não é amigo?

MARQUINHO – Como é que eu digo, então?

DONA QUERIDA – Diz: à Querida! Só isso. É assim que os

meus amigos me chamam.

MARQUINHO – A senhora não acha que já é tarde?

DONA QUERIDA – Nada disso. Vamos lá: um brinde só.

Depois, a gente come e você vai embora. Dá tempo. Não se

preocupe.

MARQUINHO – Eu não estou muito acostumado, não.

DONA QUERIDA – Vamos lá. (Levanta o copo.) Ao Marquinho.

MARQUINHO – Á Querida. (A contragosto.).

DONA QUERIDA – Viu como foi fácil? (Batem os copos.)

Agora a gente bebe tudo de um só gole. Vamos lá: um, dois,

três, já! (Bebem. Dona Querida se engasga e tosse.) Ai, que

eu já não estou mais muito acostumada. (Pausa.) Outro?

MARQUINHO – Acho que agora chega. Senão eu não consigo

chegar à escola.

DONA QUERIDA – Vamos lá: só mais um. (Enche os copos.)

A quem é que a gente vai brindar agora? Já sei! Você faz um

brinde para quem você quiser e eu faço outro. Que tal?

MARQUINHO – A senhora é que sabe.

DONA QUERIDA – Então, primeiro você. Depois eu faço o meu.

MARQUINHO – Mas eu não tenho ninguém.

DONA QUERIDA – Como não tem? E a Marilene?

MARQUINHO – Bom, aí é diferente. A gente não precisa meter

ela nisso, não é?

DONA QUERIDA – Bom, se você não quer, eu faço por você e

por mim. Lá vai: à Marilene, que tem dezesseis anos e é a

namorada do Marquinho, um moço de grande futuro. (Bate no

copo dele.) E agora, o meu. Deixe eu ver... Já sei. Vou brindar

ao Dr. Marco Pedro, o meu chefe. À burrice do Dr. Marco Pedro

e à estupidez dos meus colegas. Um, dois, três, já! (Bebem

tudo, de um só gole. O rapaz, agora, já está mais

descontraído.).

MARQUINHO – A senhora é engraçada! Tem cada uma!

DONA QUERIDA – Você acha?

MARQUINHO – Bom, eu não queria dizer isso, sabe... eu queria

dizer que a senhora é... é legal mesmo.

DONA QUERIDA – De verdade?

MARQUINHO – De verdade mesmo.

DONA QUERIDA – Pra valer?

MARQUINHO – Pra valer.

DONA QUERIDA – Ai, meu Deus, isso é maravilhoso! Diz de

novo.

MARQUINHO – Dizer o quê?

DONA QUERIDA – Isso que você disse aí, que eu sou legal

mesmo, pra valer.

MARQUINHO – Besteira. É que eu já estou meio tonto. Esse

uísque me pegou. (Ambos riem.).

DONA QUERIDA – Não tem importância. Se for verdade

mesmo, coisa pra valer, fala isso de novo, vai.

MARQUINHO – A senhora inventa cada uma! (Ri.).

DONA QUERIDA – Só mais uma vez, fala!

MARQUINHO (Rindo) – É isso que eu disse.

DONA QUERIDA – Repete, então.

MARQUINHO – Só um pouquinho, que a minha língua já está

enrolando (ri muito.). Eu acho que fiquei um pouco gambá,

mesmo.

DONA QUERIDA – Fala assim mesmo, que eu entendo.

MARQUINHO – A senhora é... (Ri muito.) Mas que bobagem...

(Ri.) A senhora é... é legal mesmo.

DONA QUERIDA – Viu só como conseguiu? Outra vez, só mais

uma...

MARQUINHO (Entrando completamente no jogo) – A senhora

é legal... legal mesmo. (Rindo sempre.).

DONA QUERIDA – Mais uma vez, vai.

MARQUINHO – Legal, legal. A senhora é tri-legal! (Ambos riem

muito.).

DONA QUERIDA – Deus do céu, você é genial! Liga o rádio aí.

Mas não liga muito alto, por causa dos vizinhos. (Começa a

arrastar a mesa, enquanto o rapaz liga o rádio.) Agora, me

ajuda aqui.

MARQUINHO – Pra quê?

DONA QUERIDA – Vamos dançar.

MARQUINHO (Rindo muito) – Eu acho que eu não consigo. Já

estou bem tonto.

DONA QUERIDA – Não importa. Eu também. Vem cá. (O rapaz

vai para o centro.) Agora, faz um quatro, com as pernas. (O

rapaz, sempre rindo muito, tenta fazer um quatro, até que

consegue se equilibrar.) O que é que eu sou?

MARQUINHO – Legal.

DONA QUERIDA – Legal mesmo?

MARQUINHO – Legal.

DONA QUERIDA – Viu como pode dançar? Vamos lá!

MARQUINHO – A senhora tem cada uma! (Começam a

dançar. Ambos riem muito.).

DONA QUERIDA – Não liga não, Marquinho. É que hoje... hoje

é o meu aniversário. Eu vou ganhar um passarinho novo, você é

o meu convidado e eu sou legal. Legal mesmo. Tri-legal. (A

música sobe.).

CENA II

Dona Querida está só, em cena. Sobre o sofá, estão jogadas

as roupas do rapaz.

DONA QUERIDA (Vai à porta do banheiro e grita, para

dentro) – A toalha está pendurada atrás da porta. Se precisar

de mais alguma coisa, é só pedir. (Joga-se sobre o sofá.) Ai,

meu Deus, você quase me matou. Estou demolida! (Ri.) Sabe

há quantos anos eu não dançava? Acho que... deixa eu ver...

Bom, para falar a verdade, eu acho que foi a primeira vez. Eu

sempre fui muito desajeitada para essas coisas. Depois, a idade

também não ajuda, não é? (Pausa. Junta as roupas do rapaz

e começa a dobrá-las, com cuidado, com carinho,

pendurando-as no encosto do sofá.) Eu pagava só para ver a

cara do pessoal da minha seção. Iam ficar horrorizados. Elas,

então, iam torcer o nariz, fazer carinhas de cúmplices, risinhos

de lado. Era só o que ia se ouvir pelos cantos: “Dona Querida

ficou louca, Dona Querida está esclerosada, Dona Querida não

sei mais o quê”. Tudo, para elas, é escandaloso. O Dr. Marco

Pedro, então, ia me chamar no gabinete. Parece que estou

vendo: “Dona Querida: isso não fica bem, a senhora

compreende? Não é nada pessoal, mas precisamos zelar pelo

bom nome da seção, estimular o respeito mútuo”. Como se ele

se desse o respeito, aquele sapo empafiado! Não é capaz nem

de disfarçar a história dele com a Santinha, que de santa, só

tem o nome. O primeiro cafezinho é sempre para a Dona

Santinha; o ventilador está sempre virado para a mesa da Dona

Santinha. E ela lá, sentada como uma rainha, sem fazer nada,

ensopada de Avon, lixando as unhas, controlando tudo, com

ares de primeira-dama da seção. Ah, por falar em Avon, esqueci

de avisar que tem talco e desodorante no armarinho. Pode usar

à vontade. (Pausa. Junta os telegramas de sobre a mesa.) A

minha cabeça, pensar que a Adelaidinha ia se lembrar do meu

aniversário! Aquela só pensa nela! Coitada! (Senta, novamente,

e massageia as pernas.) Ai, meu Deus, que loucura! (Pausa.

Levanta e grita para dentro do banheiro.) Marquinho!

Marquinho, você está bem?

MARQUINHO (Do banheiro) – Já vou sair.

DONA QUERIDA – Não tem pressa, não. E pode deixar que

depois eu enxugo o banheiro. (O rapaz surge, enrolado numa

toalha de banho e com uma touca de banho à cabeça.) Mas,

o que é isso? Você está uma figura!

MARQUINHO – Estou com um pouco de dor de cabeça. Acho

que foi o uísque.

DONA QUERIDA – Já vamos providenciar isso. Deite um pouco

aí. (O rapaz se recosta no sofá. Dona Querida busca um

copo d’água, na cozinha, e dá-lhe um comprimido.) Isto aqui

é tiro e queda. Dá para contar no relógio: dois minutos e você

está bonzinho, de novo.

MARQUINHO – O que é que é isso?

DONA QUERIDA – Um analgésico. É a única coisa que cura as

minhas enxaquecas. Você vomitou?

MARQUINHO – Um pouco. (Pega as roupas para se vestir.).

DONA QUERIDA – Você está louco? Nada disso. Deite um

pouco aí. Espere o remédio fazer efeito. (O rapaz deita.)

Enquanto isso, eu termino de arrumar isto aqui.

MARQUINHO – É que já está na hora da aula.

DONA QUERIDA – A aula que se dane. Com dor de cabeça,

não vai adiantar nada. E nem presença não ganha mais, já

passou da hora.

MARQUINHO – É muito azar mesmo.

DONA QUERIDA – Calminha: relaxe! (Senta.) Meu Deus, que

coisa mais impressionante! Só agora é que lembrei!

MARQUINHO (Sobressaltado) – Vão chegar visitas?

DONA QUERIDA – Que visitas, coisa nenhuma! É outra coisa.

MARQUINHO – Se vem gente, eu tenho que me arrumar.

DONA QUERIDA – Não vem ninguém, já disse. O negócio é

outro. Vamos: relaxe, senão o remédio não faz efeito. (O rapaz

deita, novamente.) Mas é engraçado, mesmo! Direitinho tudo o

que a Dona Darcila me falou. (Cúmplice.) É uma cartomante,

sabe? Eu vou lá, de vez em quando. Não que eu acredite muito

nessas coisas. É só por curiosidade. Mas, desta vez, deu tudo

certinho.

MARQUINHO – A minha mãe é que gosta dessas coisas.

DONA QUERIDA – Ela também bota as cartas?

MARQUINHO – Não. Ela gosta de ir nesses lugares assim. Uma

vez, ela até tirou uma consulta para mim. Eu andava meio

amolado, não conseguia emprego. Aí, tirou uma consulta e deu

que eu vou ser um cara muito importante, que vou subir na vida,

ter escritório só para mim, uma porção de coisas. Mas eu não

dei importância, não senhora, porque isso eu já sei. A gente não

vive é para isso mesmo, para ver se sobe na vida? Só não dá

certo, se a gente tem muito azar mesmo. Eu não pretendo ficar

o resto da vida entregando cartas: essa é que não.

DONA QUERIDA – Tá bom, tá bom, mas não fala muito.

Cuidado com a cabeça.

MARQUINHO – Já está passando.

DONA QUERIDA – Eu não falei? Mas é melhor ficar quietinho,

um pouco mais.

MARQUINHO – A senhora acha que essas coisas são assim...

como é que eu vou dizer... assim, pra valer?

DONA QUERIDA – Para falar a verdade... acho que sim. Hoje

mesmo está dando tudo o que a Dona Darcila me falou na

semana passada. Eu fui lá, só para saber se sai ou não sai a

minha promoção lá no serviço. Sabe como é aquilo lá: tudo uma

sem-vergonheira danada. Trabalho há anos. Nunca faltei, a não

ser por doença, é claro. Nunca cheguei atrasada: o meu ponto

não tem uma marquinha vermelha. Mas na hora das promoções,

a gente é sempre posta de lado. A Santinha, por exemplo, não

tem nem metade de meu tempo de serviço, chega sempre

atrasada, falta por qualquer coisinha, não faz nada, e quando

faz, é um horror. Basta dizer que bate máquina com dois dedos.

Pois a Santinha é Secretária do Dr. Marco Pedro, com função

gratificada. Sabe por quê? Acho que nem preciso dizer, não é?

MARQUINHO – Eu acho que ela faz bem, ué! Se ela não

aproveita, outra vai aproveitar. Eu acho que a gente não pode

perder as oportunidades. Senão, a gente é sempre passada pra

trás.

DONA QUERIDA – Essa não!

MARQUINHO – Eu penso assim. Claro, isso é maneira de dizer.

Não vou dizer que essa Dona Santinha está certa, eu nem

conheço ela. Mas eu acho que...

DONA QUERIDA – Bom, mas não era nada disso que eu ia

falar. Que é mesmo que eu estava falando?

MARQUINHO – Que a senhora foi na Dona Dalila, essa.

DONA QUERIDA – Claro... Claro! Que cabeça a minha! É isso

aí mesmo. Eu cheguei lá, e fui logo dizendo queria saber da

minha promoção, que eles estão me prometendo há mais de um

ano. E não é Dalila, não: é Darcila. Aí, a Dona Darcila se

concentrou, botou as cartas e sabe o que é que ela me disse?

Que a promoção vai sair, só não sabia quando.

MARQUINHO – Bom: isso qualquer um pode dizer, até eu, ora.

Que nem aquela história da minha mãe, que eu vou subir na

vida.

DONA QUERIDA – É que eu ainda não terminei. Como é? Está

melhor?

MARQUINHO – Acho que passou. Esse remédio é bom mesmo.

Não estou sentindo mais nada.

DONA QUERIDA – Eu não falei?

MARQUINHO – Eu não sei: essas coisas assim de cartas, de

sorte... eu não sei não. Tem horas que eu acredito, tem horas

que não. Eu acho que no fundo, eu não acredito mesmo. Se

fosse assim, a gente adivinhava o número da loteria. Todo o

mundo era rico.

DONA QUERIDA – Bom: isso eu não sei. Mas com a Dona

Darcila deu tudo certinho. Sabe o que mais que ela disse?

(Pausa misteriosa.) Que dentro de uma semana eu ia receber

uma carta muito importante. E que eu ia conhecer um rapaz,

assim, que nem você, num dia muito especial, que ia mudar

toda a minha vida.

MARQUINHO – E a carta, recebeu?

DONA QUERIDA – E o telegrama?

MARQUINHO – Tem muita diferença. Telegrama é uma coisa,

carta é outra.

DONA QUERIDA – Para dizer a verdade, ela não falou em

carta. Disse que eu ia receber um papel, pelo Correio.

MARQUINHO – Mas foi só um telegrama da loja. Isso não vale.

DONA QUERIDA – Aí é que está. É só um telegrama da loja.

Mas, se não fosse ele, você não tinha vindo aqui, e eu não tinha

conhecido você. E hoje é um dia especial para mim, não é?

MARQUINHO – A dor já passou. (Desviando o assunto.)

Amanhã eu tenho que me levantar cedo. (Levanta-se e pega as

roupas.) Já é tarde...

DONA QUERIDA – Que tarde, nada. A gente nem comeu ainda.

Mas é melhor se vestir, mesmo, que pode se resfriar. (O rapaz

se dirige para o banheiro.) Não, aí está tudo molhado.

(Aponta o biombo.) Ali atrás, olha. (O rapaz entra para trás do

biombo.) Sabe o que é que eu estou pensando? Se deu certo

comigo, é bem capaz de dar certo com você, também. Essa

história das cartas. Vai ver que você vai ser muito importante

mesmo. A gente, às vezes, não acredita e quando vai ver... deu

tudo certo. É só esperar.

MARQUINHO (Falando detrás do biombo) – Para ser

importante, é só a gente querer, ora.

DONA QUERIDA – É. Mas as cartas podiam dizer que você não

vai ser nada, ninguém na vida. Que vai passar a vida

entregando correspondência, como você disse.

MARQUINHO – Isso vai depender de mim, não é? Tem gente

que se acomoda. Eu não.

DONA QUERIDA – Claro. Só que se as cartas confirmam, é

melhor.

MARQUINHO – Quando a gente quer, a gente consegue as

coisas.

DONA QUERIDA – Ai, a juventude! É maravilhosa! Tudo parece

tão fácil. Com o tempo, você vai ver que nem tudo é como a

gente quer.

MARQUINHO – Se não são, a gente dá um jeitinho. Só não dá

certo, se a gente tem muito azar, mesmo. Mas ficar sentado,

esperando, é que não dá.

DONA QUERIDA – Será?

MARQUINHO – Claro. O meu pai, por exemplo.

DONA QUERIDA – O que é que tem o seu pai?

MARQUINHO – O meu pai começou como servente da firma

onde ele trabalha. Varria o chão, servia cafezinho, essas coisas

todas. Hoje, ele é subgerente. Ganha uma nota. Tem até

automóvel.

DONA QUERIDA – O teu pai deve ser um homem muito

inteligente, então. E de muita sorte.

MARQUINHO – Inteligente, lá isso é. Vivo, como só ele. Agora,

essa história de sorte... Ele chegou lá, dando duro. Claro que

entra um pouco de sorte, também. Agora mesmo, ele pegou

esse cargo de subgerente porque o outro estava roubando da

firma. O meu pai, a senhora sabe, ele é muito pelo direito.

Quando viu que o outro estava roubando, teve que falar para a

direção. Aí, botaram o outro na rua, na mesma hora, e o meu pai

ficou no lugar dele. E foi aí que o meu pai ficou sendo da

confiança da diretoria.

DONA QUERIDA – Já entendi tudo. O teu pai fez a caveira do

amigo, e...

MARQUINHO – Eles nem eram amigos, não. Só trabalhavam

juntos. O meu pai era secretário dele. Só isso.

DONA QUERIDA – E o teu pai denunciou ele para a direção.

MARQUINHO – É... só que o meu pai não queria o lugar, não.

Mas o gerente tem confiança nele e insistiu. Se não botasse ele,

ia botar outro mesmo.

DONA QUERIDA – De qualquer maneira, o teu pai deu uma de

dedo-duro.

MARQUINHO – Não, não é isso. É que... que se ele não fizesse

isso, a culpa ia cair em cima dele mesmo, que ele também tinha

responsabilidade.

DONA QUERIDA (Pensativa) – Claro. Isso é muito comum.

(Mudando de tom.) Você deve ser muito amigo do seu pai. Fala

com tanto orgulho nele.

MARQUINHO – Eu acho ele legal, sim. Só que a gente não tem

muito tempo de ser amigos, não. Ele não mora com a gente.

Mora com outra mulher... quer dizer, ele se separou da minha

mãe faz tempo, e casou de novo. Bom, quer dizer, casar não

casou, não é?

DONA QUERIDA – Mas você gosta muito dele, não gosta?

MARQUINHO – Ele é meu pai, não é? E ele é bom pra mim. Às

vezes, até me empresta o carro. Só que eu não gosto de pedir

nada pros outros. Claro, quando a gente precisa muito, a gente

tem que pedir.

DONA QUERIDA – E você?

MARQUINHO – Eu o quê?

DONA QUERIDA – Você teria coragem de denunciar um

colega, assim como o seu pai?

MARQUINHO (Aparecendo, já vestido) – Ele não denunciou

ninguém. Só falou, pra não ficar com a culpa, que ele não é

bobo. A senhora acha que ele não fez bem?

DONA QUERIDA – Ele é seu pai, não é? (Mudando de tom.)

Uhm, mas como ficou bonito!

MARQUINHO – Igual quando eu cheguei. A roupa é a mesma.

DONA QUERIDA – É, mas agora está sem dor de cabeça,

banho tomado.

MARQUINHO – A roupa é que não ajuda. Eu queria comprar

uma calça nova, de veludo, este mês. Mas não deu ainda. Eu

tenho que ajudar em casa.

DONA QUERIDA – O teu pai não dá nada, é?

MARQUINHO – Ele não pode: tem que cuidar da outra família.

Mas ele me empresta o carro de vez em quando. Agora não,

porque ele comprou um novo e tem medo de estragar. Bobagem

dele, porque eu sei dirigir. Mas ele tem medo.

DONA QUERIDA – Agora ele está ganhando mais, podia ajudar

você.

MARQUINHO – Ah, não pode, não senhora. Ele tem outra filha

com a mulher dele. E tem que pagar o carro. (Tentando desviar

o assunto.) Bom, acho que vou indo.

DONA QUERIDA – E a nossa festa?

MARQUINHO – Tem mais, ainda?

DONA QUERIDA – A gente nem comeu, ainda. E tem o bolo,

também.

MARQUINHO – Já é tarde: a gente deixa para outro dia. Aí, fica

melhor.

DONA QUERIDA – Mas o aniversário é hoje!

MARQUINHO – Pois é: eu sei...

DONA QUERIDA – Se a gente adiar vai estragar tudo. Aí, não

tem mais graça. Você fica?

MARQUINHO – Não é que eu não queira. Mas é a hora.

DONA QUERIDA – A gente só come um salgadinho, uma fatia

de bolo, toma uma Coca-cola. Depois, você vai, Marquinho.

MARQUINHO – Eu sei, claro... Mas, é que... eu tenho que falar

com um amigo meu, ainda. Tenho que pegar ele acordado,

ainda.

DONA QUERIDA – Você fala amanhã, pronto. É tão urgente,

assim?

MARQUINHO – Mais ou menos. Ele vai me emprestar um

dinheiro, que no meio do mês, assim, eu fico sem nada. A minha

mãe – sabe -, ela tem que ir ao médico. Ela anda sentindo umas

tonturas fortes. Eu acho até que é do coração.

DONA QUERIDA – Quanto é que ele vai te emprestar?

MARQUINHO – Um pouco, mais ou menos...

DONA QUERIDA – Sim, mas exatamente, quanto?

MARQUINHO – Não sei. Eu vou pedir uns cinqüenta, mais ou

menos.

DONA QUERIDA – Então, não há problema nenhum. Eu te

empresto esse dinheiro.

MARQUINHO – Isso eu não quero, não senhora. Não fica bem.

O que é que a senhora vai pensar de mim?

DONA QUERIDA – Não vou pensar nada, ora! (Outro tom.)

Você fica?

MARQUINHO – Só porque a senhora está pedindo. Não é pelo

dinheiro, é pelo seu aniversário.

DONA QUERIDA – Isso mesmo. Então, está combinado. Já dou

esse dinheiro, agora mesmo. Já! (Pega a bolsa e procura o

dinheiro.) E tem mais: não é emprestado. Eu lhe dou de

presente.

MARQUINHO – Ah, isso é que não. Assim que eu puder, eu lhe

pago.

DONA QUERIDA – Bobagem. Você não vai me dar um

passarinho, amanhã? Um daqueles, que você falou?

MARQUINHO – É. Mas aí, é com o seu dinheiro. Aí não vale.

DONA QUERIDA – Vale sim senhor. Entre amigos, não pode

haver essa história de dinheiro. Eu vou pagar, mas quem vai me

dar de presente o passarinho é você. Então, eu posso lhe dar

esse dinheiro.

MARQUINHO – Já que a senhora insiste... E o que é que eu

tenho que fazer?

DONA QUERIDA – Não estou entendendo.

MARQUINHO – Assim... a senhora vai me dar esse dinheiro

assim, sem mais nem menos?

DONA QUERIDA – Mas como sem mais nem menos? Olha

Marquinho: eu vou te dizer uma coisa com muita sinceridade. Eu

não ligo muito para essa história de aniversário, não. Mas já

andava cansada. Todos os anos eu preparo a mesa, arrumo o

bolo, compro uísque, Coca-cola, e nunca vem ninguém aqui. Aí,

você chegou, está aqui comigo, é meu convidado. Até dançou

comigo. Essas coisas, a gente não esquece assim, de uma hora

para a outra. Eu, pelo menos, sou assim: se me tratam bem,

retribuo na mesma moeda. (Estende o dinheiro.) Toma, pega.

É seu.

MARQUINHO (Guardando o dinheiro) – Muito obrigado. Mas

eu só aceito, porque estou precisando, mesmo. Eu não gosto de

pedir nada pra ninguém. Já que a senhora disse que é um

presente...

DONA QUERIDA – Agora, esquece. Então? Fica?

MARQUINHO – Claro!... Claro!...

DONA QUERIDA – E não vai mais falar em sair?

MARQUINHO – Não, senhora. De jeito nenhum.

DONA QUERIDA – E não precisa me chamar de senhora. Nós

não somos amigos?

MARQUINHO – Sim, senhora.

DONA QUERIDA – Então, para não perder tempo, vamos logo

começar a festa. (Liga novamente o rádio. Música.) Para

começar, vamos fazer um brinde, mas um brinde para valer.

Você ainda está com dor de cabeça?

MARQUINHO – Não senhora. Já passou tudo.

DONA QUERIDA – Olha o nosso trato. Nada de senhora.

MARQUINHO – Está bem.

DONA QUERIDA – Bom: nós vamos fazer um brinde especial. É

à moda húngara, ou polonesa, não sei bem. Eu vi isto há muito

tempo, num filme.

MARQUINHO – Eu não sei como é que é.

DONA QUERIDA – Já explico. É assim. A gente, primeiro, serve

a bebida com uma flor dentro. (Vai preparando a bebida,

enquanto fala.) Assim. Não fica lindo? Depois... Vem cá. (O

rapaz levanta.) Você fica em pé, aqui, no meio da sala, bem na

minha frente. Assim. Agora, a gente bebe tudo de uma só vez...

Não, não, espera eu terminar. Depois de beber, a gente pega a

flor, diz o nome do outro, dá um beijo na flor e joga para trás. E

pronto. Não é bonito?

MARQUINHO – E o que é que isso quer dizer?

DONA QUERIDA – O que quer dizer, não sei. Mas fica bonito,

não fica?

MARQUINHO – É... fica.

DONA QUERIDA – Então, vamos lá. Um, dois, três, agora!

(Bebem e fazem a cena. Beijando a flor.) Ao Marquinho!

MARQUINHO (Faz o mesmo) – À Dona... quer dizer... À

Querida!

DONA QUERIDA (Com ternura, passa a mão no rosto do

rapaz) – Marquinho!

MARQUINHO (Se afastando) – Vou tomar um pouco mais de

uísque. Posso trocar de estação?

DONA QUERIDA – Pode, mas cuidado com os vizinhos. (O

rapaz procura uma estação.).

MARQUINHO – Acho que esta é melhor: mais alegre.

DONA QUERIDA – Está ótimo. Ai, meu Deus, a nossa festa

promete ser genial! (Ri muito, enquanto a música sobe.).

CENA III

Dona Querida e o rapaz estão sentados à mesa, comendo.

Ele já está mais à vontade, mais desenvolto.

DONA QUERIDA – Não quer mais nada?

MARQUINHO – Não. Para mim chega.

DONA QUERIDA – Mas você comeu tão pouco.

MARQUINHO – Eu sempre como pouco, assim. A minha mãe

vive brigando por causa disso. Mas eu sou assim mesmo. Sou

muito chato para essas coisas.

DONA QUERIDA – Bom, se a gente não tem vontade, para que

é que a gente vai forçar, não é?

MARQUINHO – Eu sou assim, desde pequeno. Eu só faço o

que eu tenho vontade. Claro que nem sempre dá: o que é que

se vai fazer? Mas quando eu posso, eu só faço o que eu quero.

DONA QUERIDA – Isso é sinal de personalidade.

MARQUINHO – Isso eu acho que eu tenho mesmo. Quando eu

quero uma coisa, eu luto até o fim. Agora, quando eu não quero,

ninguém me obriga. Mas eu tenho um gênio bom. Não sou

desses de brigar por qualquer coisa. Só quando eu não gosto, aí

sim. A gente não pode deixar que os outros passem por cima da

gente, não é? Se a gente amolece, quando a gente tem razão,

logo tomam conta.

DONA QUERIDA – É... isso é verdade.

MARQUINHO – Essa história que a senhora... que você falou aí,

da tal Santinha lá do emprego, da promoção, essa coisa toda.

Se fosse comigo, eu não ficava calado, não. Abria a boca lá

dentro. Dizia umas verdades na cara deles, e pronto. Queria ver

só se me passavam pra trás. Comigo, não.

DONA QUERIDA – É que as coisas não são tão fáceis assim.

Se fosse assim...

MARQUINHO – Quando a gente quer, a gente consegue

arrumar tudo. É só querer. Agora, se a gente vai dizer amém pra

tudo, aí sim, não tem vez, mesmo. A senhora, porque é muito

boba mesmo.

DONA QUERIDA – Senhora? Ai, ai, ai.

MARQUINHO – É que eu não acostumei ainda. Às vezes,

esqueço.

DONA QUERIDA – Bom: você disse que eu sou muito boba. E

daí?

MARQUINHO – Não, eu não quis dizer isso. Eu quis dizer que...

Nada, não. Era só bobagem.

DONA QUERIDA – Entre amigos, nada é bobagem. Vai lá, fala!

MARQUINHO – A senhora... Você é viúva, é?

DONA QUERIDA – Deus me livre! Solteirinha!

MARQUINHO – Mas solteira... solteira mesmo?

DONA QUERIDA – Como assim, solteira mesmo?

MARQUINHO – Não, não é isso... É que... não tem ninguém,

assim, que vem aqui, de vez em quando? Assim, um

namorado... não sei...

DONA QUERIDA (Rindo) – Na minha idade?

MARQUINHO – Isso não quer dizer nada.

DONA QUERIDA – Deus do céu: era só o que me faltava! Um

namorado!

MARQUINHO – Bom, não precisava ser um namorado. Você

ainda é... ainda é bem enxuta, ora.

DONA QUERIDA – Como assim, enxuta?

MARQUINHO – É assim... como é que eu vou dizer... assim,

bem conservada. Está em forma, ainda. A minha mãe, por

exemplo, tem cinqüenta e dois e a gente dá sessenta pra ela.

DONA QUERIDA – Bom, mas eu não tenho cinqüenta ainda.

Recém estou completando quarenta e seis, hoje. E olha que eu

não minto a idade.

MARQUINHO – Pois ninguém diz. Tem assim, o corpo bem

feito... Tem mulher até de trinta, que já é um bagulho. Você não,

você...

DONA QUERIDA (Subitamente) – Deus do céu, não é que

esqueci o bolo? Espera aí. (Levanta e vai à cozinha.) E agora,

onde é que meti a vela? (O rapaz aproveita a ausência dela e

pega alguns salgadinhos, escondendo-os no bolso.) Ah,

achei! Só um instantinho. Vai apagando a luz aí. (O rapaz

apaga a luz e entra Querida com o bolo, com uma vela

acesa em cima.) Parabéns a você... (Ambos cantam. Ao final,

Dona Querida assopra a vela. Ambos batem palmas. Ela ri

muito. A cena fica às escuras.) Ai, meu Deus, não foi

divertido? Agora já pode acender a luz. (Pausa.) Marquinho,

acende a luz aí.

MARQUINHO – Assim é melhor, não acha?

DONA QUERIDA – Que bobagem: a gente não enxerga nada.

Vai, acende esta luz.

MARQUINHO – Deixa a luz assim. Está bom.

DONA QUERIDA – Mas... mas assim, a gente não consegue

nem cortar o bolo.

MARQUINHO – E quem é que está querendo o bolo?

DONA QUERIDA – Mas que coisa mais boba, Marquinho!

MARQUINHO – Vem cá, vem. Aqui, ó, no sofá.

DONA QUERIDA – Se você não quer, eu mesma vou acender.

Que coisa mais infantil. (Acende a luz. Marquinho está

deitado no sofá, de cuecas.) Meu Deus! Você ficou louco?

MARQUINHO – Vem cá, vem. Vamos comemorar esse

aniversário.

DONA QUERIDA – Não era nada disso! Você estragou tudo!

MARQUINHO (Levantando) – O que é que está errado,

pomba? Não era isso que você tava querendo?

DONA QUERIDA – Não chegue perto de mim, não me toque!

MARQUINHO – Como é que é? Não estou entendendo nada,

agora.

DONA QUERIDA – Você já vai entender. (Pega as roupas e

joga sobre ele.) Anda logo: veste isso aí. E depressa!

MARQUINHO – Deixa de frescura, pomba! Também, não

precisa ficar assim.

DONA QUERIDA – E como é que você queria que eu ficasse,

Seu... Seu prostitutozinho?

MARQUINHO – Bom, também não precisa ofender, não é? Eu

só pensei que...

DONA QUERIDA – Você não tem nada que pensar. Esta casa

aqui é minha, ouviu? Minha! Só quem pensa aqui, sou eu.

Ninguém mais.

MARQUINHO – Também, não precisa dar escândalo, ora!

Quem começou não fui eu. Até queria ir embora. Agora, não

precisa ficar aí, ofendendo a gente, que eu não sou empregado

de ninguém pra ouvir desaforo.

DONA QUERIDA – E se você não andar depressa, vai ouvir

muito mais. E só não lhe ponho para fora assim de... assim,

como você está, porque não quero dar escândalo. Não vou dar

esse gostinho para a vizinhança. Mas vontade não me falta.

MARQUINHO – Não precisa ficar aí, gritando, não. Eu já vou

embora. Ninguém me faz de bobo, não.

DONA QUERIDA – Já disse que a casa é minha, e eu grito

quando eu quiser.

MARQUINHO – Problema seu. Não sei é como eu fui cair nessa

fria. É muito azar, mesmo.

DONA QUERIDA – E ande depressa! (Senta na beira da mesa,

arrasada, enquanto o rapaz termina de se vestir.) Eu devia

ter imaginado. Você estragou tudo, tudo! (Explodindo.) Se era

para isso, por que você ficou?

MARQUINHO – Porque você pediu, ora. Eu nem queria. Você é

que ficou aí, pedindo, enchendo o saco.

DONA QUERIDA – E dobre a língua: não me chame de você.

Senhora: ouviu? Senhora! Posso ser sua mãe.

MARQUINHO – Está bom. Chega. Eu já vou.

DONA QUERIDA – Não: você não vai embora assim, não.

Passe para cá o meu dinheiro.

MARQUINHO – Que dinheiro?

DONA QUERIDA – Os cinqüenta que eu lhe dei. Ou já se

esqueceu?

MARQUINHO – Mas esse dinheiro a senhora me deu.

DONA QUERIDA – Pois quero de volta, agora. Já! Já!

MARQUINHO – Mas isso não é direito. Esse dinheiro a senhora

me deu. Não pode me tirar assim. Eu tenho que levar a minha

mãe no médico.

DONA QUERIDA – A sua mãe que morra. O meu dinheiro é que

você não vai levar daqui. Passe para cá.

MARQUINHO – E os passarinhos? Eu ia comprar os

passarinhos que a senhora queria.

DONA QUERIDA – Não quero mais saber de passarinhos de

mentira. Eu mesma vou comprar. Vivos, todinhos. Se morrer um,

eu compro outro, se morrer um, eu compro outro. Mas vivos:

vivinhos. Entendeu? E agora me passe o dinheiro.

MARQUINHO – Esse dinheiro eu não dou. É meu, a senhora

me deu. Não pode me tirar assim. Essa não.

DONA QUERIDA – Escute rapazinho: quer saber uma coisa?

Aquela senhora bondosa que você encontrou aqui, não está

mais de aniversário, não senhor. Ela morreu todinha, completa.

A Dona Querida morreu. Quem você está vendo é a Dona

Corina Assumpção, com ‘p’ antes do ‘ç’. A outra acabou. Eu não

vou nessa sua conversa de mãe doente, pai separado, sei lá o

quê. Portanto, me passe esse dinheiro, antes que se arrependa.

MARQUINHO – Esse dinheiro não vale nada para a senhora. Eu

sim... eu preciso dele. A senhora prometeu, lembra?

DONA QUERIDA – Não vai por bem? Então espere. (Grita.)

Socorro! Ladrão! Socorro! Aqui no 209!

MARQUINHO – Não faça isso, não senhora. Eu lhe dou o

dinheiro, pronto. (Começa a tirar as coisas dos bolsos, à

procura do dinheiro. Aparecem os salgadinhos que havia

escondido.).

DONA QUERIDA – Os salgadinhos, pode levar. Eu só quero o

dinheiro.

MARQUINHO – Aqui está. Olhe: todinho. Pronto. Cinqüenta que

a senhora me deu.

DONA QUERIDA (Pegando o dinheiro) – Está faltando cinco.

MARQUINHO – Mas foi cinqüenta que a senhora me deu.

DONA QUERIDA – Não se faça de bobo. Tem mais aqueles

cinco que lhe dei de gorjeta. Já esqueceu, também?

MARQUINHO – Está aqui: pronto.

DONA QUERIDA – E agora... RUA!

MARQUINHO – Sim senhora! (Vai sair.).

DONA QUERIDA – Ei espere! Não vai levar os salgadinhos?

MARQUINHO (Cada vez mais assustado) – Sim, senhora.

(Põe, novamente, os salgadinhos no bolso.).

DONA QUERIDA – Aproveite, e leve isto aqui, também. (Pega o

ramo de flores plásticas.) Tome. Uma é para o velório de sua

mãe. Outra, para enfeitar o quarto do entrevadinho, o pai da

Marilene, outro, para o seu rico pai dedo-duro levar para o chefe

dele. As outras... as outras, você pode enfiar... no seu escritório,

quando subir na vida. (Senta à beira da mesa, novamente, de

costas para o rapaz, que fica um tempo com as flores,

atônito.).

MARQUINHO – Agora eu... eu posso ir?

DONA QUERIDA – Pode.

MARQUINHO – Eu só queria lhe pedir um favor: a senhora não

leve a mal. Já é tarde, a senhora sabe. Eu fui ficando... Acho

que nem tem mais ônibus agora... Será que a senhora não

podia me emprestar uns trocados? Eu pago amanhã... no fim do

mês, quando eu receber.

DONA QUERIDA (Sem se voltar) – Socorro! Ladrão no 209!

Socorro! (Assustado, o rapaz sai correndo. Silêncio. Dona

Querida levanta, fecha a porta, olha o ambiente. Acende,

novamente, a vela do bolo e fica um tempo olhando. Depois,

fala, como se a sala estivesse cheia de gente. Enquanto

fala, vai queimando um a um os telegramas da loja.) Vocês

foram muito bons vindo aqui. Eu fico agradecida, muito

agradecida, mesmo. Dona Querida era uma boa pessoa, mas foi

melhor assim: descansou! (Tempo.) Dr. Marco Pedro: eu queria

lhe dizer uma coisa. Sei que não é o momento, mas... aquela

promoção, o senhor sabe... agora, o senhor pode dar para a

Dona Santinha. Ela merece. (Tempo.) Dona Darcila, se eu não

aparecer mais, não se preocupe. Não, não é que eu não

acredite nas cartas. Essas coisas, a gente nunca pode afirmar,

não é? É que eu não tenho mais nada para lhe perguntar.

(Tempo.) Adelaidinha, minha filha: não precisa se preocupar. A

pobre da Querida não sofreu muito, não. Morreu como um

passarinho. E gostava muito de você, sabia? Chegou a pensar

que o telegrama da loja era seu. Veja só! (Tempo.) Ah,

Marquinho! Marquinho! Não guarde rancor da Dona Querida,

viu? Eu sei que ela maltratou você, disse uma porção de coisas.

Mas ela não estava muito bem da cabeça, meu filho. Vou te

contar uma coisa que você não sabe: hoje de tarde, quando

vocês fizeram aquela festa na repartição, enquanto o Dr. Marco

Pedro falava, ela ficou olhando as caras das colegas.

Endurecidas, mumificadas, encadernadas pelo tempo de

serviço. Então, foi assim, como se tivessem virado ela pelo

avesso. Ela compreendeu que também ela estava com aquela

mesma cara. Assim como se tivesse uma porção de espelhos

na frente dela. Aquilo foi horrível, meu filho. Você não pode

imaginar. Aí, quando você chegou, ela pensou que, por uma

noite ao menos, alguma coisa podia mudar. Coitada! Só queria

ter alguém com ela no dia do seu aniversário. Você

compreende, não é? Claro que você não podia entender isso.

Você ainda é muito jovem. E o que você fez, foi uma criancice.

Tenho certeza que depois, com mais calma, ela desculpou você.

E não se preocupe, não. A sua mãe vai melhorar, não há de ser

nada grave. E o seu pai fez muito bem em denunciar o

subgerente. É como você mesmo disse: se ele não

denunciasse, a culpa seria dele. A gente entende essas coisas.

Amanhã, quando você for mais velho, se acontecer a mesma

coisa, você também vai agir assim. É normal. E será um grande

homem, tenho certeza, um homem muito importante, igualzinho

ao seu pai. E quer saber de uma coisa? Apesar de tudo, você

deu uma grande alegria à Dona Querida. De verdade, mesmo.

(Tempo. Liga o rádio. Música. Volta-se para a sala, como a

desculpar-se.) Não se preocupem, não: Dona Querida gostava

muito de música. Não dizia, porque tinha vergonha, na idade

dela. Mas eu sei que gostava. (Pega um copo e bebe uísque.

Grita para fora.) Dona Querida está morta! Viva Corina

Assumpção! (Levanta o volume do rádio, ao máximo. Bate

com a mão na coxa e solta uma sonora gargalhada.) Meu

Deus, que loucura! (Rindo sempre, joga-se sobre o sofá.).

FIM