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    VI Congresso Nacional Associao Portuguesa de Literatura Comparada /X Colquio de Outono Comemorativo das Vanguardas Universidade do Minho 2009/2010

    Entre Culturas: A Vanguarda entre o Brasil e a Europa

    K. David JacksonYale University

    No perodo das vanguardas histricas, a posio entre culturas dos intelectuais

    brasileiros emanava de uma espcie de conjugao do salo e a selva, para citar o "Manifesto

    da Poesia Pau Brasil" de Oswald de Andrade (1890-1954), motivada pelo projeto da criao e

    internacionalizao de uma realidade brasileira enraizada no interior, primitiva e folclrica. A

    definio cultural brasileira no poderia mais se apoiar exclusivamente nas referentes

    romnticas da Natureza ou o Indianismo. No modernismo de 1922 h uma intensa ao

    recproca entre os diversos componentes internacionais e o vasto interior, este sendo a fonte

    de um nacionalismo folclrico, de linguagem popular e primitivismo indgena, muito

    valorizado:

    Se por um lado os modernistas se aliaram com as vanguardas artsticas e

    culturais europeias, por outro lado o desejo de formar uma cultura moderna e nacional

    levou-os a buscar a nova "originalidade". Assim, com um olho na Europa e outro no

    Brasil, os modernistas seguem passo a passo o que se fazia nos grandes centros

    metropolitanos, mas procurando sempre privilegiar o "carter nacional" presente na

    etnia mestia influenciada por culturas primitivas (africanas e amerndias). (Atik,

    2000, p.176)

    Entraram nesse mundo pela abertura para o primitivismo das vanguardas ocidentais e pela

    chamada pesquisa esttica de Mrio de Andrade, no livro-ensaio A Escrava que no

    Isaura (1925). No Manifesto da Poesia Pau Brasil (1924), Oswald de Andrade encontrou

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    uma poesia na vivncia cotidiana Como falamos. Como somos. -- e nas fontes de cultura

    popular e folclrica o vatap, o ouro e a dana -- com as quais identificou e defendeu a

    originalidade brasileira diante da Europa. As primeiras expresses do encontro cultural

    chegaram antes na msica:

    O Brasil, pas contendo um vasto e inexplorado folclore, apresentava para os jovens

    compositores a oportunidade de trabalhar materiais, nos quais se interpenetravam os

    aportes europeus, africanos e indgenas, que por si s conferiam um forte selo de

    originalidade para quem os utilizasse (Correa do Lago, 2005, p. 36).

    Heitor Villa-Lobos (1887-1959) compe as peas para orquestra Amazonas e Uirapuru

    em 1916, com ritmos e sons que imitam a flora e fauna selvticas. Em todas as artes, a

    dinmica entre culturas, a brasileira e a europeia, que caracteriza a formao e o dinamismo

    do modernismo brasileiro, a oscilao entre os sales parisienses e as selvas tropicais. Se a

    poca marcada pelas constantes viagens transatlnticas entre o Brasil e a Europa,

    principalmente a Frana, mesmo assim o estado entre-culturas no representa simplesmente a

    alternncia entre uma e outra, mas uma mistura que pertena a ambas, uma interdependncia

    e sntese dialgica em vez de um encontro. Entre-culturas significa a co-existncia de

    qualidades dessas culturas numa nova identidade miscigenada, caracterizada por uma

    diferena alienada de suas origens, comparvel no nvel da cultura crioulizao lingstica.

    As lnguas crioulas asiticas, por exemplo, sendo sntese do portugus com as lnguas de

    contato, so lnguas nativas dos descendentes mestios de portugueses e comuns atravs do

    antigo imprio martimo.

    Num ensaio publicado pela primeira vez em ingls em 1973, o escritor e ensasta

    Silviano Santiago definiu a cultura brasileira moderna atravs do conceito de um "entre-

    lugar", ou espao do meio entre o Brasil e a Europa, sendo a conseqncia de uma conjuntura

    complexa e sutil do autctone com o europeu que estabelece "como nico valor crtico a

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    diferena...reflexo de uma assimilao inquieta e insubordinada, antropfaga... (Santiago,

    1978, pp. 21-22). Posicionados nesse "entre-lugar", os modernistas procuraram dirigir a

    descolonizao definitiva do pas por um processo de inverso, caro s vanguardas, cujo

    propsito era descaracterizar o caminho histrico dos colonizadores, atravs de operaes de

    sabotagem aos cdigos ou sistemas europeus implantados depois da chegada e colonizao

    do territrio:

    "O texto segundo se organiza a partir de uma meditao silenciosa e traioeira sobre o

    primeiro texto, e o leitor, transformado em autor, tenta surpreender o modelo original

    nas suas limitaes, nas suas fraquezas, nas suas lacunas, desarticula-o e o rearticula

    de acordo com as suas intenes..." (Santiago, 1978: 22).

    Os poemas de Pau Brasil, publicado em Paris em 1925 por Oswald de Andrade, ilustram

    exemplarmente a inverso de recortes de crnicas de descobrimento, lidos satiricamente sob

    o ttulo retrospectivo de "Histria do Brasil." Se a operao do "redescobrimento do Brasil"

    o tema principal de uma sociologia historicista, nas obras de Gilberto Freyre (1900-1987),

    Caio Prado, Jr. (1907-1990) e Srgio Buarque de Holanda (1902-1982), preciso entender

    por que Santiago descreve o espao intermedirio entre o Brasil e a Europa como

    aparentemente vazio e clandestino: deve-se a uma estratgia de subverso por sobre um texto

    prvio. O romancista Jos Saramago talvez proponha imaginativamente que esse espao

    esteja localizado no meio do Atlntico, numa jangada de pedra brasileira, isto , numa massa

    geogrfica que se separaria do continente sul-americano e andaria at o meio da carreira

    martima. Existiria uma ilha mais utpica, depois de sculos de viagens, onde brasileiros e

    europeus viveriam juntos numa cultura poliglota e miscigenada, assimilando caractersticas

    de ambos os lados? como se os modernistas j habitassem essa ilha mtica de "canibalismo

    amoroso", to ausente geograficamente dos roteiros quanto a camoniana, praticando o desvio

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    da norma com que a libido artstica brasileira balanava entre a assimilao e negao de uma

    fecundao europeia.

    O Brasil tem um papel histrico de anfitrio de culturas e povos. Como capital de

    imprio, o Rio de Janeiro depois de 1808 ocupava uma posio paralela da Europa, porm

    anmala, nem centro nem periferia, ou centro e periferia ao mesmo tempo. Indianistas e

    antroplogos europeus vieram documentar o espao polivalente. Entre o universal e o local,

    h uma polarizao de viso contrastando o ocenico, nos caminhos martimos do imprio,

    com o telrico, no serto e nas selvas. O etngrafo Theodor Koch-Grnberg (1872-1924),

    numa expedio aos rios Roraima e Orenoco de 1911-13, no podia saber que a sua coleo

    de crenas folclricas das tribos Taulipang e Arekun seria aproveitada para um dos maiores

    romances brasileiros do sculo, Macunama, de Mrio de Andrade (1893-1945). Um caso

    diferente de transculturao aquele dos europeus que vieram para ficar. Curt Nimuendaj

    Unkel (1883-1942), um colecionador de narrativas indgenas nas lnguas Ge, cerca 1914,

    mudou o sobrenome do alemo e decidiu ficar na regio amaznica. O seu mapa lingstico

    das lnguas amaznicas ainda referncia imprescindvel. E na Bahia, a partir dos anos 40, o

    fotgrafo e etngrafo Pierre "Fatumbi" Verger (1902-1996), cuja pesquisa sobre o candombl

    foi comemorada num filme narrado por Gilberto Gil, deixou no Brasil uma fundao e

    arquivo com mais de 65.000 fotografias originais.

    Da mesma maneira, o estilo moderno brasileiro nas artes e arquitetura descende

    diretamente da visita de Le Corbusier (1887-1965) ao Brasil e dos seus desenhos para a

    modernizao da cidade do Rio e Janeiro, influentes nos arquitetos Oscar Niemeyer e Lcio

    Costa (1902-1998). A primeira "casa modernista" exibida em So Paulo em 1930 desenho

    de Gregor Warchavshik (1896-1972), que chegou no Brasil da Rssia e Itlia em 1923.

    Durante esse perodo, o Brasil se torna quase m para artistas europeus e empresrios, caso

    exemplificado pelo tourne de Antnio Ferro (1895-1956) em 1922 e outro de auto-

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    provava que a Europa ainda importava como referncia, era um relacionamento reforado

    pela resistncia. Nos dois lados, havia canibais amorosos. Em alguns casos os europeus

    deixaram impresso maior no Brasil do que levaram ao partir, como a passagem do Conde

    Hermann Keyserling (1880-1946) em 1929, visita retratada no romance Parque Industrial, de

    Patrcia Galvo (1910-1962), ou Albert Camus (1913-1960) em 1949, recebido por Oswald

    de Andrade, ou Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986), em 1959,

    aos cuidados de Jorge Amado (1912-2001). Outros, talvez menos conhecidos, vieram para

    ficar e criaram notvel impacto. Na literatura, o austraco Otto Maria Carpeaux (1900-1978) e

    o hngaro Paulo Rnai (1907-1992) se tornaram estudiosos respeitados da literatura

    brasileira. Stefan Zweig, outro austraco, escreveu um livro influente sobre o Brasil como

    "pas do futuro", lanando um ttulo que ecoou na historiografia contempornea. Dois

    ucranianos mudaram o Brasil: Pedro Bloch (1914-2004), dramaturgo e empresrio da mdia e

    televiso, e Clarice Lispector (1920-1977), hoje um dos grandes nomes da literatura mundial.

    E muitos portugueses eminentes, como o poeta e crtico Adolfo Casais Monteiro (1908-

    1972), imigraram ao Brasil em meados do sculo e deixaram impacto intelectual duradouro,

    tema estudado por Rui Moreira Leite.

    A produo modernista refletia a dicotomia Brasil-Europa. Se o Brasil uma vez foi

    chamado "La France Antarctique", ento a Frana poderia ter sido chamada "le Brsil

    Arctique." O diplomata pernambucano Joaquim Nabuco (1849-1910) confessava uma

    "atrao do mundo" que o levava Europa, onde queria que o Brasil fosse recebido em p de

    igualdade, cultural e politicamente. Em conversao com o embaixador portugus, Nabuco

    descrevia a preferncia brasileira pela Frana:

    "Entre Portugal e Brasil a diferena maior. O Brasil nada sabe do seu pas; o que

    elle l, o que a Frana produz. Elle pela intelligencia e pelo espirito cidado

    francez; nasceu parisiense, em que lugar de Paris eu ignoro, v tudo como pode ver

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    um parisiense desterrado de Paris. No ha um brasileiro talvez, que tenha pensado

    meia hora sobre coisas portuguezas. Ns fallamos a mesma lngua, mas de que serve,

    se no vemos o portuguez. Para dizer a verdade, estamo-nos tornando um povo

    polyglotta" (Nabuco, 1939: 44).

    Para os modernistas, Paris sempre fora uma paixo para onde viajaram constantemente

    durante os anos 20. Srgio Milliet (1898-1966), caracterizado como "homem-ponte" por

    Antonio Candido (citado em Atik, 2005, p. 51), e Oswald de Andrade divulgaram o novo

    esforo artstico de 1922, na conferncia de Oswald na Sorbonne e Milliet num artigo que

    descreve a Semana de 22 e comenta a participao de escritores e artistas. Entre 1923-24

    Milliet escreve a coluna Cartas de Paris para a revistaAriel, com comentrios sobre as artes

    parisienses (Atik, 2005, p. 52). No seu Manifesto da Poesia Pau Brasil Oswald quis

    inverter o impacto do fluxo cultural entre o Brasil e a Europa: no a importao mas a

    exportao de cultura. Armados com esse novo princpio cultural e comercial, os

    modernistas comearam a pesquisar no prprio pas bens culturais para exportao. Havia

    apenas dois lados no seu mapa mundi, o Amazonas de um e o Sena do outro, onde iam expor

    as suas mercadorias. Foi em Paris que Pau Brasil (1925) saiu no Au Sans Pareil, dedicado a

    Blaise Cendrars, e Tarsila do Amaral (1886-1973) primeiramente exibiu os seus quadros na

    Galerie Percier em 1926. O artista Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) ilustrou o belo

    volume sobre a mitologia indgena de Pierre-Louis Duchartre, Legendes, Croyances et

    Talismans des Indiens de lAmazonie (1923), enquanto de volta ao Brasil, Oswald iria

    codificar a deglutio da cultura europeia no Manifesto Antropfago de 1928, justificada

    por sua brilhante apropriao e apoteose do primitivismo filosfico, via a Europa.

    O objetivo era substituir o velho mundo pelo novo, no que os manifestos reforam um

    americanismo generalizado, apresentando um argumento parecido ao do escritor anglo-

    americano Henry James (1843-1916):

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    Nascemos americanos -- il faut prendre son parti. Parece-me uma grande bonana; e

    penso que ser americano excelente preparao cultural. Possumos raras qualidades

    como raa e me parece que estamos na frente das raas europeias pelo fato de que,

    mais que qualquer delas, podemos tratar livremente com formas de civilizao

    diferentes da nossa, escolher da melhor e assimilar e, resumindo (esteticamente, etc.)

    encontrar propriedade nossa onde quer que a encontremos. No possuir marca

    nacional at agora tem sido considerado defeito e prejuzo, mas acho no improvvel

    que escritores americanos possam ainda provar que uma vasta fuso intelectual e

    sntese das vrias tendncias nacionais do mundo a condio de conquistas mais

    importantes do que aquelas que tenhamos visto antes. (1986:1)1

    Diferente da viso do James, porm, os brasileiros colocaram uma marca nacional no ato de

    assimilao e fuso de povos e de culturas mundiais. essa modalidade que mais separa o

    esforo intelectual brasileiro das vanguardas europeias, para as quais o primitivismo fazia

    parte de um cosmopolitismo maior, uma sntese intelectual de matrias de todas as culturas,

    que passam a ser propriedade comum, como explica Fernando Pessoa (1888-1935):

    Criar uma arte cosmopolita no tempo e no espao. A nossa poca aquela em

    que todos os pases, mais materialmente do que nunca, e pela primeira vez

    intelectualmente, existem todos dentro de cada um, que a sia, a Amrica, a

    frica e a Oceania so a Europa, e existem todos na Europa. Basta qualquer

    cais europeu--mesmo aquele cais de Alcntara--para ter ali toda a terra em

    1[We are American born --Il faut en prendre son parti. I look upon it as a great blessing; and I thinkthat to be an American is an excellent preparation for culture. We have exquisite qualities as a race, andit seems to me that we are ahead of the European races in the fact that more than either of them we candeal freely with forms of civilization not our own, can pick and choose and assimilate and in short(aesthetically, etc.) claim our property wherever we find it. To have no national stamp has hithertobeen a defect and a drawback, but I think it now unlikely that American writers may yet indicate that a

    vast intellectual fusion and synthesis of the various National tendencies of the world is the condition ofmore important achievements than we may have seen.]

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    comprimido () Por isso a verdadeira arte moderna tem que ser

    maximamente desnacionalizada--acumular dentro de si todas as partes do

    mundo. S assim ser tipicamente moderna () E feita esta fuso

    espontaneamente, resultar uma arte-todas-as-artes, uma inspirao

    espontaneamente complexa. (1966, pp. 113-14)

    A arte brasileira traz esse intercmbio e encontro cultural no modernismo, mas com o

    propsito de criar uma brasilidade feita m, sinal telegrfico ou canto de sereia. Tais

    intercmbios e fecundao cruzada no significam, portanto, que os europeus sempre ficam

    abrasileirados, ou os brasileiros europeizados. O conceito entre-culturas nos leva a

    comunidades hbridas, povos miscigenados e culturas martimas criadas por viagens e

    imigraes. Atravs dos sculos, o espao hbrido criado no Brasil pelos portugueses virou

    uma realidade outra, ao alcance de quem l fosse. Haveria algum mais "100% brasileiro" do

    que Blaise Cendrars, to gentilmente recebido ao desembarcar em Santos em 1924, ou mais

    parisiense do que Santos Dummont (1873-1932), que voou o seu dirigvel aos restaurantes da

    cidade. A tese em questo afirma que a cultura brasileira apia uma identidade sempre

    consciente de sua histria atlntica, de sua posio extra-continental, o do seu espao nem

    periferia nem centro. Os modernistas habitam uma jangada de pedra, o nem c nem l do

    Gonalves Dias (1823-1864), o espao hbrido do entre-lugar.

    Com a modernidade os sistemas europeu e brasileiro, entre outros, se imiscuram mais

    intensamente. Sou um Tupi tangendo um alade! proclamava Mrio de Andrade no poema

    O Trovador", de Paulicia Desvairada de 1922, referindo-se ao instrumento de cordas que

    chegou Europa renascentista da Prsia e das Arbicas. Enquanto passeavam de Cadillac a

    Ouro Preto, ou de Lloyd Brasileiro a Manaus, procura de um paraso topogrfico interior,

    os vanguardistas estavam com os olhos num Brasil ainda atlntico e europeu. O personagem

    Jorge, no romance A Escada Vermelha, publicado em 1934 por Oswald de Andrade,

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    escondido no exlio de uma ilha selvagem perto de Santos, observava as chegadas e sadas

    contnuas dos grandes navios transatlnticos, smbolos da viagem utpica. No desfecho de

    Pau Brasil, o autor chega de navio a Santos trazendo de contrabanda uma saudade feliz de

    Paris. Para os modernistas, os grandes transatlnticos ainda afirmaram a "paternidade

    transocenica", cujo vestgio mais duradouro certamente o carto postal do Brasil ao

    mundo, a esttua no Corcovado, no Rio de Janeiro, com os braos estendidos sobre a cidade e

    o pas, o trabalho de um escultor francs, Paul Landowsky (1875-1961), inaugurado no morro

    carioca em 1931.

    "O Atlntico, nossa vida atlntica, to dependente do velho ocidente", lamentava e

    exultava a clebre escritora e rebelde Patrcia Galvo em 1946, quando viu que "Os livros

    europeus ainda no comearam a chegar. Uma ou outra dessas preciosas raridades... O cordo

    de isolamento entre a Europa e a Amrica permanece, portanto intacto (Galvo, 1946). As

    perspectivas ocenicas de Pagu servem igualmente para a histria intelectual do Brasil, que

    assistia chegada de europeus no Brasil e de brasileiros na Europa, atenta sobretudo quando

    as visitas recprocas tratavam de educao, livros, msica ou obras de arte. Seja de breves

    visitas ou de conexes profundas, o intercmbio Brasil-Europa preparou a jangada de pedra

    modernista, eqidistante de continentes e de culturas. Esse lugar no meio do Atlntico, o

    "entre-lugar" na teorizao do Silviano Santiago, ou de "cultures croises" de Mrio Carelli

    em francs, o espao entre culturas da vanguarda histrica brasileira. Examinaremos trs

    casos de dilogos entre culturas, na msica, nas artes plsticas e na literatura, como exemplos

    de cruzamento e intercmbio.

    Villa-Lobos ha guardato il tempo negli occhi e lha scolpito in musica.

    Dirio Brasiliano, Ruggero Jacobbi

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    A Msica

    Em 1917 o compositor francs Darius Milhaud est no Rio de Janeiro, na legao

    francesa com Paul Claudel e em 1918 o pianista Arthur Rubenstein (1887-1982) e a cantora

    Vera Janacopoulos (1892-1955) chegam para uma temporada de concertos,poca em que

    Rubenstein conhece a msica de Villa-Lobos. A vida musical nessa poca muito intensa,

    com a atuao dosBallets Russes de Sergei Diaghilev (1872-1929) e Vaslav Nijinsky (1889-

    1950), a presena do Ernst Ansermet (1883-1969) e uma verdadeira invaso de msica

    francesa dos debussstas, que abriram o estilo para vrias escolas nacionais. Em 28/VI/1918

    ouve-se em casa do compositor Oswaldo Guerra (1892-1980) e da pianista Nininha Leo

    Veloso Guerra (1895-1921) duas peas de Stravinsky,a Sagrao da Primavera e O Pssaro

    de Fogo, a quatro mos,numa noite comentada por Rubenstein:

    (...) Milhaud me apresentou a uma famlia extremamente musical, com quem

    costumvamos tocar o Sacre du Printemps e outras obras a 4 mos. A filha da casa

    era uma pianista excelente e ela e Darius nos deram belas apresentaes de Sonatas

    para piano e violino, inclusive uma Sonata muito bonita de sua autoria (1980:42,

    citado em Correa do Lago, 2005: 66).

    De volta a Paris desde 1919, Darius Milhaud sente falta do clido ambiente carioca e

    confessa o seu desencanto numa carta aos Guerra:

    Eu me esforo a me re-habituar a Paris sem consegui-lo e me sinto como um estranho

    em meu apartamento [...].A cada dia eu sinto mais falta do Rio e penso o tempo todo

    no belo sol, com as grandes palmeiras e, sobretudo, as boas sesses de msica

    [20/II/1919].

    [...] Aqui a vida impossvel e estpida [...] Em Paris, vive-se numa agitao to

    ilusria (factice). Parecemos um motor de avio ou uma mquina de costura. A vida

    se parece com a tcnica pianstica de Rudge Miller, isto , to rpida, burra e sem

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    interesse [...] Desde a minha chegada na Frana eu ainda no compus nada. Ser que a

    minha msica teria ficado no Brasil? (Lago, 2005: 207-208).

    Em 1920 consegue trazer o casal Guerra a Paris, com o propsito de integr-los vida musica

    de vanguarda (Lago, 213). Em 29/XI/20 Nininha participa no Premier Concert donn par le

    Groupe des Six na Galerie Montaigne, tocando a primeira audio mundial de quatro

    peas das Saudades do Brazil (Lago, 104). A sua participao com o Grupo dos Seis acaba

    abruptamente quando adoece e morre no ano seguinte. Heitor Villa-Lobos levou a sua msica

    para a Frana graas ao pianista Arthur Rubenstein, que estreara A Prole do Beb no Rio

    de Janeiro em julho de 1922. Em Paris comeou os 14 choros (1924-29) que misturariam

    elementos temticos indgenas com tcnicas de composio da msica clssica europeia. A

    estria do Choro 10 criou um tumulto, como se mudasse a prpria natureza da msica [Le

    Monde musicale 12, a 31 Dec. 1927, citado por Wright, 1922].

    Choros No. 10 (reduo para piano) mm. 23-30

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    Os poemas para orquestra Amazonas e Uirapuru foram tocados por primeira vez em

    Paris em 1929 e 1935, respectivamente. So as flautas que contam a histria do pssaro

    Uirapuru, sobre o ritmo sincopado do obo, xilofone, piano e contrabaixos:

    Uirapuru: Melodia ndia

    Extremamente variado e improvisado, Villa-Lobos incorporava canes de rua, danas,

    msica carnavalesca e melodias populares e infantis. Desenvolve, numa sntese vigorosa com

    a msica europeia, o conselho que Milhaud oferece aos compositores brasileiros a respeito do

    nacionalismo musical no artigo Brasil", naRevue Musicale de 1920:

    Seria desejvel que os compositores brasileiros entendessem a importncia dos

    compositores de tangos, maxixes, sambas e caterets, como Tupinamb ou o genial

    Nazareth. A riqueza rtmica, a fantasia constantemente renovada, a verve, a animao

    e uma imaginao prodigiosa na inveno meldica, que se encontram em cada obra

    desses dois mestres, fazem deles a glria e a jia da arte brasileira. Nazar e

    Tupinamb esto frente da msica de seu pas assim como aquelas duas grandes

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    estrelas do cu austral (Centauro e Alfa do Centauro) precedem os cinco diamantes do

    Cruzeiro do Sul. (In Lago, 239)

    A srie de Bachianas Brasileiras continua hoje como um exemplo mximo da conjugao

    de temas folclricos brasileiros com estilos de composio europeus, com referncia especial

    ao contraponto de Bach.

    Artes Plsticas

    O pintor Vicente do Rego Monteiro alternou quase a vida inteira entre o Brasil e

    Paris. Participou no Salon des Indpendants em 1913, voltando para se exibir no Recife, Rio

    de Janeiro e So Paulo. Estuda a arte marajoara e realiza no Teatro Trianon do Rio em 1921 o

    espetculo "Lendas, Crenas e Talisms dos ndios do Amazonas." Em 1923 em Paris

    inventa mscaras e figurinos para o bal do mesmo ttulo, apoiado pelo grupo de "L'Effort

    Moderne" e ilustra o livro, raridade bibliogrfica, cuja capa mostra a influncia marajoara e

    layout com uma viso indgena. Na sua qualidade de binacional, funda uma editora, La

    Presse a Bras, para poesias brasileira e francesa, e promove sales e congressos de poesia.

    Legendes, Croyances et Talismans des indiens de LAmazone. Paris, 1923.

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    Mas o livro Quelques visages de Paris, de 1925, que imprime o novo mundo das florestas

    virgens por sobre os monumentos de Paris. Na dedicatria, um mapa do continente

    americano, dentro de um crculo, deita-se em cima do Arc de Triomphe.

    Como se invertendo o ensaio de Montaigne, que descreve um ndio brasileiro que conheceu

    em termos positivos, comentados num estudo de Luciana Stegagno Piccho (1920-2008) sobre

    o suposto canibalismo, Rego Monteiro apresenta dez desenhos de monumentos da cidade,

    sendo as impresses de um cacique durante uma curta visita a Paris, confiados ao pintor por

    sorte durante um encontro no interior do Amazonas. Acrescenta que o amazonense j reunra

    os croquis sob o ttulo "Quelques Visages de Paris." Com esse livro, Rego Monteiro prepara

    um verdadeiro "Manifesto Antropfago" s avessas. No o canibal que deglute a arte

    europeia quando chega ao Brasil, mas o selvagem ele mesmo, de visita de turista a Paris,

    quem devora os principais monumentos das cidade, sujeitando-os re-interpretao segundo

    uma leitura grfica e simblica indgena. Os monumentos de Paris adquirem significados

    amazonenses e esto acrescidos ao arquivo de arte indgena, guardadas as imagens no livro

    do chefe marajoara.

    Smbolos da linguagem icnica indgena usados em Paris

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    Para contrapor imagem de assimilao culinria no manifesto de 1928, h aqui um artista

    primitivista que impe a sua viso por sobre os cones mais clssicos da identidade

    parisiense. A Torre Eiffel se torna pssaro ou borboleta voando sobre a gua:

    A Torre Eiffel, aos olhos do chefe marajoara

    Mais do que uma radicalizao dos quadros primitivos do douanier Henri Rousseau (1844-

    1910), as imagens do Rego Monteiro viraram a mesa do primitivismo francs, mudando o

    significado e a estrutura dos monumentos da capital francesa de acordo com uma leitura

    primitiva amazonense:

    Quelques visages... tem um formato diferenciado: uma espcie de dirio de viagem

    imaginrio de um chefe indgena a Paris que, na melhor tradio dos viajantes e talvez

    com a finalidade de parodi-los, ilustra com dez belssimos desenhos locais tursticos

    clssicos, numa mistura de um art dco geomtrico, aliado a um trao estilizado de

    inspirao marajoara. O olhar espontneo do cacique amazonense que visita pela

    primeira vez o Velho Mundo contrape-se tipografia gtica na descrio da

    paisagem e da arquitetura. (Schwartz, 2005)

    Essas impresses incluem Notre Dame, Tour Eiffel, Trocadro, Viaduc D'Austerlitz, Pont de

    Passy, Sacr-Coeur, Concorde, Louvre, Jardin des Plantes, e Arc de Triomphe. Em todos, o

    artista-selvagem forma as impresses por juntar smbolos grficos, que representam

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    moradias, rvores, gua e construes beira d'gua. Esses servem de cdigo e chave de

    leitura para as dez estampas em branco e preto que seguem. A interpretao do visitante a

    cada monumento est registrada, sempre em letra gtica, no verso dos subttulos, em forma

    de poema.

    O formato complementar escolhido para a reedio fac-similar deLgendes...

    e de Quelques visages... sugere um movimento unidirecional: do Brasil para a Frana,

    do primitivo para o civilizado, da Floresta Amaznica para a Cidade luz, do

    imaginrio mitolgico para a ratio cartesiana, ou, nas palavras de Lvi-Strauss, do cru

    para o cozido. Quais as motivaes dessa luxuosa "produo brasileira" em Paris e em

    francs? ... Rego Monteiro foi um autntico cidado bi cultural e bilnge, com

    slidas razes em Recife e em Paris, para onde se mudou aos 11 anos de idade,

    acompanhando a famlia. Artista precoce, expe em Paris, dois anos mis tarde, no

    Salon des Indpendants de 1913.... (Schwartz, 2005)

    Esse livro de arte foi reeditado em So Paulo em 1005, na caixa Do Amazonas a Paris. O

    editor, Jorge Schwartz, comenta o movimento inverso Brasil-Frana, codificado no Brasil no

    "Manifesto da Poesia Pau Brasil."

    A Literatura

    "Fugitivos de uma civilizao que estamos comendo... Peste dos chamados povos cultos e

    cristianizados, contra ela que estamos agindo. Antropfagos", reza o "Manifesto

    Antropfago" de 1928, de Oswald de Andrade. Armado com a metfora da deglutio, o

    intelectual de vanguarda despe a roupa e inverte os valores da sua formao, declarando-se a

    favor de uma assimilao culinria e primitiva de matria prima estrangeira. Adotando um

    nacionalismo indgena, o manifesto apia a metamorfose dos intelectuais modernistas em

    canibais tupinambs, para subverter o legado europeu no pas tropical. A sua leitura, depois

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    de 80 anos, ainda impressiona pela exuberncia e pela originalidade da sntese. A metfora de

    digesto no deixa de ser uma estratgia, um modo de incorporar o aliengena ao indgena, o

    cozido ao cru, enquanto a resistncia aos modos europeus convertida em jogo e humor.

    Aproveita-se, ao mesmo tempo, de uma antropologia incipiente, presente no livro de Sir

    James George Frazer (1854-1941), The Golden Bough [1890], que confunde o observador

    com o seu outro, o antropfago, sujeito e alvo de suas teorias, e procura na sua imagem um

    princpio de identidade e unificao nacional. Ser possvel para o escritor transformar-se no

    tupinamb que conhecia apenas em livros e quadros, ou forjar uma nova identidade nacional

    base de uma abstrao primitivista? E, mais importante ainda, qual o futuro do artista que

    se divide entre Paris e Pindorama?

    A aparente rejeio da cultura europeia o espao negativo no corao da

    antropofagia, pois define o canibal por tudo que a Europa no seja. A cultura utpica

    indgena invocada apenas como resposta s crenas e tradies europeias, enquanto o pouco

    que se conhece do antropfago vem da narrativa de Hans Staden (1525-1579) sobre o seu

    cativeiro pelos tupinambs, de 1557, texto republicado em alemo em 1925 e em ingls em

    1928. Repete os principais temas com que a Europa definia as sociedades do Novo Mundo a

    partir do sculo 16, o canibalismo, a Utopia e o amor livre (Orgel, 41). O manifesto, ao se

    opor ao racionalismo com a declarao Mas nunca admitimos o nascimento da lgica entre

    ns", repete a mesma hiptese encontrada na introduo obra de Julien Lvy-Bruhl (1857-

    1939), parodiada no manifesto: ...on constat chez les primitifs une aversion dcide pour le

    raisonnement. Embora concorde que os primitivos no tm nem lgica nem lei, Oswald de

    Andrade tenta transformar a crtica em qualidade e o defeito em virtude, ao proclamar a

    Utopia selvagem, que teria precedido os futuros cdigos legais e religiosos. Por acaso,

    tambm precedia a existncia do Brasil, criando uma pr-histria nacional, antes da vinda de

    uma conscincia europeia e da civilizao ocidental, toda uma formao que o seu manifesto

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    ousa negar e rejeitar, enquanto se aproveita do contraste, numa das invenes mais festivas

    da vanguardas Repara Jorge Schwartz que o manifesto redime o conceito de 'brbaro' e lhe

    tira a carga preconceituosa pejorativa cristalizada no pensamento ocidental. A floresta ope-

    se escola e o carnaval serve de contraponto para a msica clssica..." (citado in Castro-

    Klarn, 2000).

    Num ensaio sobre a antropofagia, de 1981, Haroldo de Campos (1929-2003) define os

    brasileiros como os novos "brbaros alexandrinos" que mudaram a relao Europa/Amrica

    Latina pela transculturao e diferena: "...um sentido agudo dessa necessidade de pensar o

    nacional em relacionamento dialgico e dialtico com o universal...segundo o ponto de vista

    desabusado do 'mau selvagem', devorador de brancos, antropfago" (Campos, 1992, p. 234).

    Esses novos "canibais", os "novos brbaros" que assustaram a Europa com o signo da

    devorao, ocupavam um espao cultural entre o Brasil e a Europa. A sua etnografia, apenas

    lida, exprime o desafio que o pensamento europeu dirigiu aos alicerces de sua cultura, com

    razes em Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Sigmund Freud (1856-1939), da Genealogia da

    Moral, de 1887, ao Totem e Tabu, de 1913. Ao se aliar aos tupinambs, o intelectual-

    antropfago se deu o propsito de assimilar as boas qualidades dos europeus, no banquete

    canibal, e livrar-se dos conflitos e das represses associados civilizao colonial importada.

    guisa de canibal, o intelectual procurava voltar a um estado primordial de moralidade e de

    felicidade, para se opor ao legado colonial. Quanto ao primitivismo, observa Antonio

    Candido que No Brasil as culturas primitivas se misturava vida cotidiana...As terrveis

    ousadias de um Picasso, um Brancusi...um Tristan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes

    nossa herana cultural do que com a deles (Cndido, 1973:121). Embora tenham apropriado

    a cultura indgena como expresso nacional, os modernistas tiveram pouco conhecimento

    etnogrfico e menos contato com o leque de culturas no vasto interior, situao que torna

    discutvel a observao do Cndido sobre a coerncia do seu programa. Adotando uma

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    perspectiva entre-culturas, "em que j no possvel distinguir o organismo assimilador das

    matrias assimiladas" (frase do critico Augusto Meyer sobre Machado de Assis), o

    canibalismo do manifesto substitui toda a aculturao indgena histrica, enquanto cruza os

    primeiros contatos, ao reimprimir as conhecidas xilogravuras da "histria verdadeira" de

    Hans Staden com o quadro contemporneo primitivista de Tarsila do Amaral, "O abaporu",

    de 11 de janeiro de 1928.

    Xilogravura da Warhaftige Historia de Hans Staden (Marpurg, 1557)

    e oAbaporu (1928) da artista brasileira Tarsila do Amaral

    Os "novos brbaros" queriam criar uma diferena que provocasse e desafiasse a Europa,

    alegando uma superioridade brasileira em todas as reas da cultura: "Uma nova idia de

    tradio (antitradio), a operar como contravoluo, como contracorrente, oposta ao canon

    prestigiado e glorioso" (Campos, 1992, p. 237). Funda-se com os antropgafos modernistas a

    literatura e o pensamento do ex-cntrico, da desconstruo e da re-escritura.

    Concluso: O entre-lugar

    A orquestrao e politonalidade da selva amazonense nas composies de Villa-

    Lobos, a traduo plstica de monumentos parisienses em smbolos de leitura indgena por

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    Rego Monteiro e a transculturao do pensamento europeu no "Manifesto Antropfago" de

    Oswald de Andrade representam trs expresses do entre-lugar, resultados da fuso criativa

    de realidades e linguagens culturais diferentes. No nos parece o material folclrico,

    resultado de pesquisa etnogrfica, nem o carter nacional como fontes da originalidade dessas

    obras, mas o cruzamento de conceitos e suas representaes, fuso que subverte o mito da

    unidade e pureza monoltica das culturas e dos povos atravs de uma expresso miscigenada,

    uma crioulstica de leituras e de linguagens culturais.

    Qual foi a fortuna da nova identidade entre-culturas para os intelectuais de vanguarda

    e para a projeo internacional de sua cultura? O momento da "alma brasileira", no ttulo

    genial de Villa-Lobos, como entre-lugar brilhou com o breve mas intenso contato e

    intercmbio entre intelectuais e artistas modernistas brasileiros e europeus, mas no

    conseguiu substituir uma leitura dialtica ou apenas diferenciada, em que as duas culturas

    apenas se tocaram, como o encontro das guas, sem se misturarem, ou em obras que

    mantiveram uma distino palpvel entre suas vrias camadas e contedos. Uma identidade

    entre-culturas, seja cultural, lingstica ou racial, ainda hoje no encontra aceitao num

    mundo ainda estruturado por nacionalismos, mesmo que "unidos." So os "Quelques

    visages", sejam do chefe amazonense em Paris ou do antroplogo francs em Mato Grosso,

    que retratam o momento da leitura da civilizao pelo selvagem, ou da selvagem pelo

    civilizado, e que pelas suas vises cruzadas renovam e transformam as possibilidades de

    significao e leitura. a miscigenao em todos os nveis que prepara um caminho do

    colonialismo ao cosmopolitismo, e que transforma a vigem etnogrfica em experincia

    democrtica de autocrtica.

    Mas o momento do entre-lugar durou pouco. A que se atribui a instabilidade da

    chamada antropfaga no seu momento histrico? At os antropfagos eram nacionalistas e

    eram poucos os artistas que transitaram entre culturas. Representaram uma vanguarda de

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    idias e de tcnicas que no eram culturalmente nem europeias nem brasileiras, trabalharam

    exclusivamente na esfera das artes, expressaram-se pela sntese ldica e humorstica e, com o

    pano de fundo da festa de Rouen, montaram a sua performance nos centros urbanos diante de

    um pblico intelectual. Por ser um movimento de vanguarda, talvez fosse necessariamente de

    durao limitada, e por ser expresso na esfera das letras e artes, o seu impacto fosse apenas

    esttico. Mas mesmo durando pouco, a deglutio das heranas culturais j estava lanada, do

    escritor devorador de livros, do artista impuro e disperso que l e mastiga a tradio para dar

    incio "polifnica civilizao planetria", no conceito de Haroldo de Campos.

    Sempre chegava a hora inexplicvel de voltar. Por que o Caramuru deixou Moema e

    suas ninfas no recncavo baiano para se casar em Paris? Por que Nabuco abandonou a sua

    noiva Eufrsia em Paris para se casar no Brasil? Por que os marinheiros camonianos

    deixaram a Ilha dos Amores? Foi por falta de convite, de desejo, de convico ou de fortuna?

    Ao deixar a Europa ou o Brasil na viagem de regresso, a das saudades felizes, os modernistas,

    artistas e intelectuais, se encontrariam no paraso perdido da sua jangada de pedra, onde, na

    frase de Haroldo de Campos, "tudo pode coexistir com tudo" (Campos, 1992: 251).

    Abstrato: A vanguarda brasileira, cujo mximo empenho era aproveitar-se do nacionalismo

    folclrico, da linguagem coloquial e da vida cotidiana como novos temas literrios e

    artsticos, mantinha sempre um dilogo com artistas estrangeiros no Brasil e ganhava

    projeo atravs da presena de artistas brasileiros na Europa. De acordo com a teoria de

    Silviano Santiago, o intelectual de vanguarda ocupava um espao "no meio", ou seja "entre

    culturas." Para completar uma interpretao da vanguarda, seria essencial enfocar a

    necessidade e a constante presena do dilogo com a Europa, como ncleo de projetos para a

    internacionalizao da cultura brasileira.

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