Quais São as Referências Reais Usadas Na Série Game of Thrones

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Quais são as referências reais usadas na série Game of Thrones Os hábitos, as guerras e as figuras reais que serviram de referência para o best-seller As Crônicas de Gelo e Fogo. A Idade das Trevas que inspira a trama, e faz sucesso também na TV, se revela uma época mais iluminada (e muito mais sangrenta) do que se costuma supor O livro de ficção mais vendido hoje no Brasil tem 592 páginas e se chama A Guerra dos Tronos. Na 2a posição, vem A Fúria dos Reis, com 656. Publicados nos Estados Unidos em 1996 e 1999, foram escritos pelo americano George R. R. Martin e dão início ao ciclo As Crônicas de Gelo e Fogo, com 7 partes programadas. Considerado um sucessor mais apimentado e violento de O Senhor dos Anéis, um clássico da fantasia medieval, o fenômeno editorial foi parar na TV. O primeiro volume da saga inspirou a série Game of Thrones, do canal HBO. Apesar do componente fantasioso, que inclui ovos de dragão, tanto os livros como a série se reportam à realidade - o autor já se declarou fã de livros de história e coleciona cavaleiros medievais em miniatura. É na bruta e sangrenta rotina da Idade Média que o autor se inspira. Conhecer o período revela muito sobre a trama. E a ficção de R. R. Martin, por mais que seja uma fantasia, ajuda a entender aspectos da Idade das Trevas. Entre muralhas - e fora delas Nos anos 1980, numa viagem à Inglaterra, George R. R. Martin se impressionou com os restos da Muralha de Adriano, concluída pelos romanos no ano de 126 para separar o mundo civilizado dos bárbaros do norte, que viviam na atual Escócia. Essa tensão fronteiriça entre Roma e os outros povos marca a transição para a Idade Média: a Idade Antiga termina em 476, quando é expulso da cidade Rômulo Augusto, o último imperador romano, substituído pelo rei bárbaro Odoacro. Naquele momento, Roma já era apenas uma sombra de seu passado. Fazia cerca de dois séculos que a falta de controle sobre as províncias era um problema crescente, e os vizinhos ameaçavam o domínio do império, que, na prática, já caíra várias vezes. Desamparados pelo poder central e acossados por ondas de guerras e saques, os camponeses preferiam estabelecer vínculos com os grandes donos de terra das redondezas, vendendo seu trabalho em troca de proteção. A Muralha de Adriano foi a inspiração para uma das presenças mais marcantes da trama de As Crônicas de Gelo e Fogo: o paredão de gelo no norte do continente Westeros, que separa os habitantes dos Sete Reinos do desconhecido (leia mais nas págs. 32 e 33). É também uma bela metáfora para a situação geográfica do homem medieval, associado no nosso imaginário a castelos fortificados. As pessoas tinham medo de mares e florestas, territórios povoados por monstros e seres malignos. O mundo na Idade Média, para a maioria, não ia além de alguns quilômetros quadrados de casa, entre os muros do castelo ou nas redondezas. O imobilismo, porém, não era total, como se costuma imaginar. "Algumas poucas vezes na vida, as pessoas se deslocavam por distâncias mais longas", afirma a historiadora Martha Carlin, professora da Universidade de Wisconsin. "Isso aconteceu principalmente em períodos de Cruzadas ou durante visitas a feiras, que se tornaram cada vez mais comuns a partir do século 10." Na ficção de Martin, as viagens quase invariavelmente têm finalidades guerreiras. Tempos de pancadaria Game of Thrones é um banho de sangue na TV. Sua violência, porém, não tem nada de gratuita. A Idade Média foi uma das épocas mais carniceiras da História. Estudos recentes mostram que as mortes por esmagamento da face, por exemplo, eram tão comuns quanto as provocadas por lâminas. Uma demonstração nítida do grau de brutalidade no cotidiano da população. No medievo, o europeu não costumava passar dos 35 anos. (Hoje, no Afeganistão, a pior estimativa do mundo, a população vive cerca de 45.) Os senhores feudais impunham sua vontade entre os camponeses, judeus e hereges eram queimados pela Inquisição, cristãos e muçulmanos se matavam em nome da fé. O pau comia solto, e a saga se aproxima da faceta "Idade Média má", expressão do historiador Jacques Le Goff. "A violência fazia parte da vida das famílias de todas as classes", diz Mark Bailey, professor da Universidade de East Anglia, na Inglaterra. Durante a Baixa Idade Média (entre os séculos 11 e 15), as contendas por terra eram intensas. Associada à perseguição religiosa, essa instabilidade produzia muitas guerras. "Os camponeses eram obrigados a lutar para defender seus senhores. Mal equipados, eles iam para a linha de frente", diz o historiador Patrick Geary, da Universidade da Califórnia. Um episódio sangrento do fim da Idade Média influenciou diretamente a criação de dois núcleos de protagonistas de As Crônicas de Gelo e Fogo. Em 1455, estourou na Inglaterra a Guerra das Rosas - por 30 anos, duas das principais famílias do país duelaram pelo trono. A referência é explícita: no mundo real, lutaram as casas de York (simbolizada pela rosa branca) e Lancaster (a vermelha). Na ficção, são nomes semelhantes: Stark e Lannister. "O autor cita um caso conhecido, mas os conflitos entre famílias poderosas se tornaram muito comuns quando o poder começou a se concentrar em reinos", afirma Bailey. Nesse contexto de extrema violência, destaca-se uma figura que seria o grande símbolo da Idade Média: a do cavaleiro. Ética cavalheiresca Um tipo de cavalo de batalha, o destrier, se populariza na Europa na Idade Média. Vindo provavelmente da Ásia no século 7, o animal deu novo protagonismo aos animais nas guerras por seu tamanho e sua resistência. "Além disso, o aperfeiçoamento da sela, que já era conhecida pelos romanos, e a adoção

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Game of Thrones e o que é real na série!

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Quais so as referncias reais usadas na srie Game of Thrones

Quais so as referncias reais usadas na srie Game of Thrones

Os hbitos, as guerras e as figuras reais que serviram de referncia para o best-seller As Crnicas de Gelo e Fogo. A Idade das Trevas que inspira a trama, e faz sucesso tambm na TV, se revela uma poca mais iluminada (e muito mais sangrenta) do que se costuma supor

O livro de fico mais vendido hoje no Brasil tem 592 pginas e se chama A Guerra dos Tronos. Na 2a posio, vem A Fria dos Reis, com 656. Publicados nos Estados Unidos em 1996 e 1999, foram escritos pelo americano George R. R. Martin e do incio ao ciclo As Crnicas de Gelo e Fogo, com 7 partes programadas. Considerado um sucessor mais apimentado e violento de O Senhor dos Anis, um clssico da fantasia medieval, o fenmeno editorial foi parar na TV. O primeiro volume da saga inspirou a srie Game of Thrones, do canal HBO. Apesar do componente fantasioso, que inclui ovos de drago, tanto os livros como a srie se reportam realidade - o autor j se declarou f de livros de histria e coleciona cavaleiros medievais em miniatura. na bruta e sangrenta rotina da Idade Mdia que o autor se inspira. Conhecer o perodo revela muito sobre a trama. E a fico de R. R. Martin, por mais que seja uma fantasia, ajuda a entender aspectos da Idade das Trevas.

Entre muralhas - e fora delas

Nos anos 1980, numa viagem Inglaterra, George R. R. Martin se impressionou com os restos da Muralha de Adriano, concluda pelos romanos no ano de 126 para separar o mundo civilizado dos brbaros do norte, que viviam na atual Esccia. Essa tenso fronteiria entre Roma e os outros povos marca a transio para a Idade Mdia: a Idade Antiga termina em 476, quando expulso da cidade Rmulo Augusto, o ltimo imperador romano, substitudo pelo rei brbaro Odoacro. Naquele momento, Roma j era apenas uma sombra de seu passado. Fazia cerca de dois sculos que a falta de controle sobre as provncias era um problema crescente, e os vizinhos ameaavam o domnio do imprio, que, na prtica, j cara vrias vezes. Desamparados pelo poder central e acossados por ondas de guerras e saques, os camponeses preferiam estabelecer vnculos com os grandes donos de terra das redondezas, vendendo seu trabalho em troca de proteo. A Muralha de Adriano foi a inspirao para uma das presenas mais marcantes da trama de As Crnicas de Gelo e Fogo: o paredo de gelo no norte do continente Westeros, que separa os habitantes dos Sete Reinos do desconhecido (leia mais nas pgs. 32 e 33). tambm uma bela metfora para a situao geogrfica do homem medieval, associado no nosso imaginrio a castelos fortificados. As pessoas tinham medo de mares e florestas, territrios povoados por monstros e seres malignos. O mundo na Idade Mdia, para a maioria, no ia alm de alguns quilmetros quadrados de casa, entre os muros do castelo ou nas redondezas. O imobilismo, porm, no era total, como se costuma imaginar. "Algumas poucas vezes na vida, as pessoas se deslocavam por distncias mais longas", afirma a historiadora Martha Carlin, professora da Universidade de Wisconsin. "Isso aconteceu principalmente em perodos de Cruzadas ou durante visitas a feiras, que se tornaram cada vez mais comuns a partir do sculo 10." Na fico de Martin, as viagens quase invariavelmente tm finalidades guerreiras.

Tempos de pancadaria

Game of Thrones um banho de sangue na TV. Sua violncia, porm, no tem nada de gratuita. A Idade Mdia foi uma das pocas mais carniceiras da Histria. Estudos recentes mostram que as mortes por esmagamento da face, por exemplo, eram to comuns quanto as provocadas por lminas. Uma demonstrao ntida do grau de brutalidade no cotidiano da populao. No medievo, o europeu no costumava passar dos 35 anos. (Hoje, no Afeganisto, a pior estimativa do mundo, a populao vive cerca de 45.) Os senhores feudais impunham sua vontade entre os camponeses, judeus e hereges eram queimados pela Inquisio, cristos e muulmanos se matavam em nome da f. O pau comia solto, e a saga se aproxima da faceta "Idade Mdia m", expresso do historiador Jacques Le Goff. "A violncia fazia parte da vida das famlias de todas as classes", diz Mark Bailey, professor da Universidade de East Anglia, na Inglaterra. Durante a Baixa Idade Mdia (entre os sculos 11 e 15), as contendas por terra eram intensas. Associada perseguio religiosa, essa instabilidade produzia muitas guerras. "Os camponeses eram obrigados a lutar para defender seus senhores. Mal equipados, eles iam para a linha de frente", diz o historiador Patrick Geary, da Universidade da Califrnia. Um episdio sangrento do fim da Idade Mdia influenciou diretamente a criao de dois ncleos de protagonistas de As Crnicas de Gelo e Fogo. Em 1455, estourou na Inglaterra a Guerra das Rosas - por 30 anos, duas das principais famlias do pas duelaram pelo trono. A referncia explcita: no mundo real, lutaram as casas de York (simbolizada pela rosa branca) e Lancaster (a vermelha). Na fico, so nomes semelhantes: Stark e Lannister. "O autor cita um caso conhecido, mas os conflitos entre famlias poderosas se tornaram muito comuns quando o poder comeou a se concentrar em reinos", afirma Bailey. Nesse contexto de extrema violncia, destaca-se uma figura que seria o grande smbolo da Idade Mdia: a do cavaleiro.

tica cavalheiresca

Um tipo de cavalo de batalha, o destrier, se populariza na Europa na Idade Mdia. Vindo provavelmente da sia no sculo 7, o animal deu novo protagonismo aos animais nas guerras por seu tamanho e sua resistncia. "Alm disso, o aperfeioamento da sela, que j era conhecida pelos romanos, e a adoo do estribo permitiram que o cavaleiro tivesse mais controle sobre a montaria. A unio entre homem e cavalo se tornou invencvel", diz Tim Ayers, historiador da Universidade de York. As selas reforadas passaram a permitir que o guerreiro andasse a cavalo com mais peso sem perder o equilbrio. Tornou-se possvel montar usando armaduras pesadas. Essa imagem imponente passou a ser associada a herosmo e nobreza. Os cavaleiros, porm, sempre estiveram a servio de algum. No necessariamente de causas nobres, mas da elite feudal. A Guerra dos Tronos mostra muitos deles e ao menos um torneio semelhante aos que entretinham a populao, quando os combatentes exibiam suas habilidades. Na Europa, com o cavaleiro, surgem rituais de iniciao, regras de conduta e a sua cara-metade, a dama, sinnimo de mulher bela e virtuosa. Sobram esteretipos como esse, reproduzidos na composio dos personagens da saga. A maioria desses elementos traz ideais inventados pelos romances de cavalaria, um gnero inspirado na mitologia do homem e seu animal, que culminaria, em 1605, em Dom Quixote, stira de Miguel de Cervantes ao estilo.

Vida de templrio

Entre os ncleos de personagens da trama, os Patrulheiros do Norte so responsveis por guardar a muralha de gelo. Vestem preto, obedecem a uma hierarquia rgida e juram fidelidade vitalcia causa. O modelo inspirado nas ordens militares e religiosas medievais, como a dos Templrios. Fundada em 1118, chamava-se Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomo. Seus membros eram monges-guerreiros vestidos com mantos brancos e uma cruz vermelha no peito. Eles foram forados a encerrar suas atividades em 1312 pelo papa Clemente 5o, sentindo-se ameaado pela riqueza e pelo poder acumulado pela ordem. Mas as organizaes desse tipo se multiplicaram. "Os costumes dos monges eram seguidos risca. Os cavaleiros cristos faziam voto de castidade, por exemplo. Trocavam a dedicao cultura e aos necessitados por aes militares em defesa dos fiis", afirma Paul E. Szarmach, da Academia Medieval da Amrica.

Mulheres e crianas

Entre os fs ilustres da srie estaria a presidente Dilma Rousseff. Na Idade Mdia, claro, as mulheres jamais conheceram tanto poder, mas a fico permite alguma identificao com figuras como lady Catelyn Stark, uma matriarca influente. Na vida real, mudanas iniciadas no medievo ajudaram a definir o papel da mulher na sociedade atual. Surgiam a represso poligamia - deixava de existir no norte da Europa o macho com um time de esposas - e o hbito de a mulher dizer "sim" no instante do casamento (a escolha era da famlia, mas o consentimento era simblico). Para Le Goff, houve avano real na condio das mulheres, que conseguiram ocupar um espao que no tinham na Antiguidade. As da nobreza, que no podiam sequer sair sozinhas nos jardins dos castelos, tinham influncia dentro deles. As mais pobres driblavam proibies e se tornavam curandeiras, benzedeiras e parteiras. Alis, ser criana naquele perodo era muito diferente. A labuta comeava por volta dos 10 anos. No incio da saga, Eddard Stark leva Bran, seu filho de 7 anos, para ver a decapitao de um desertor. Queria que o herdeiro se acostumasse brutalidade dos maiores. Uma cena que, fatalmente, aconteceu na vida real.

Apontando para o futuro

Numa passagem emblemtica da trama, o prncipe Joffrey reclama do rei Robert me, a rainha Cersei. Ele critica a ateno paterna dada ao chefe dos Starks, Eddard. Acha-os primitivos. Para o jovem, quando ele subir ao trono e controlar os Sete Reinos, a soluo ser aumentar os impostos para o cl e for-lo a fornecer homens para as tropas reais. A cena pode servir de sntese da transio da poca medieval para os tempos do moderno Estado nacional: um rei fortalecido diante das soberanias pulverizadas dos senhores feudais, amparado por um Exrcito regular sob seu comando. Tal processo de formao de naes foi bastante tumultuado - com algumas excees, como Carlos Magno (747-814) e Lus 9 (1214-1270), durante a Idade Mdia os reis tiveram pouco poder para alm dos limites de suas propriedades. Perto do fim do perodo, a situao foi se modificando. Na Frana, por exemplo, os castelos fortificados de nobres muito poderosos eram destrudos a mando do rei. A primeira nao a conseguir completar o itinerrio de concentrao de poder na figura real foi Portugal - que, assim, saiu na frente nas grandes navegaes. No fosse isso, este texto talvez estivesse em outra lngua. No que a soluo do prncipe Joffrey estava certa?

Da Idade Mdia fantasia

As luzes da Idade das Trevas

Humanistas como o poeta Francesco Petrarca enxergaram o intervalo entre os sculos 5 e 14 como um buraco negro entre a Antiguidade racionalista, de gregos e romanos, e seu prprio tempo, precursor do Renascimento. No sculo 19, houve uma troca de sinais no exagero: o medievo passou a ser encarado como uma era de ouro pelos artistas do romantismo, cheia de homens honrados e valores nobres. Ivanho (1819), de Walter Scott, um clssico dessa tendncia. Outro que botou as lendas medievais nas alturas foi o compositor Richard Wagner, que inspirou a trilogia O Senhor dos Anis, de J. R. R. Tolkien. As Crnicas de Gelo e Fogo fazem parte dessa tradio de fantasia medieval, na qual cabem jogos de videogame e o RPG Dungeons & Dragons. No balano de trevas e luz, o certo que a Idade Mdia nos legou modos de vestir, as universidades, as lnguas da Europa e a diviso poltica do continente. "Apesar dos pesares, foi um perodo muito rico", diz Paul E. Szarmach. "Lentamente, o mundo ocidental caminhou para o formato que tem hoje."