Quando a Amazônia seca

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n.238 PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2015 Habitação social se tornou ativo financeiro no mundo todo Para Carlos Moedas, comissário europeu de Pesquisa, diversidade em parcerias faz ciência avançar Exercícios físicos revertem danos da insuficiência cardíaca Resíduo da produção de etanol, a vinhaça pode gerar energia elétrica DEZEMBRO DE 2015 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR Experimento simula estiagem prevista em cenário de mudanças climáticas e provoca morte de árvores Amazônia seca Quando a

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Pesquisa FAPESP - Ed. 238

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015

Habitação social se tornou ativo financeiro no mundo todo

Para Carlos Moedas, comissário europeu de Pesquisa, diversidade em parcerias faz ciência avançar

Exercícios físicos revertem danos da insuficiência cardíaca

Resíduo da produção de etanol, a vinhaça pode gerar energia elétrica

dezembro de 2015 www.revistapesquisa.fapesp.br

Experimento simula estiagem prevista em cenário de mudanças climáticas e provoca morte de árvores

Amazônia seca

Quando a

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Experimentos mostram que árvores gigantes da Amazônia, como essa maçaranduba, sucumbem a secas prolongadas e abrem clareiras na floresta

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O laser de HórusO espalhamento da luz em diferentes tipos de filmes formados pela

mistura de água e detergente pode produzir padrões ópticos singulares.

Manipulando uma ponteira que emite um laser azul, os físicos Adriana e

Alberto Tufaile controlaram o ângulo de incidência da luz sobre pontos

distintos de bolhas de sabão e conseguiram sobrepor duas figuras:

um conjunto de anéis concêntricos no interior de um halo, denominado

tecnicamente círculo parélico. O centro da imagem final lembra o olho

de Hórus, um símbolo do antigo Egito que significava poder e proteção.

O processo de formação do padrão óptico é explicado pelos pesquisadores

em artigo publicado em outubro no periódico Physics Letters A.

FotolAb

Imagem enviada por Adriana e Alberto Tufaile, professores da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP)

Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

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CAPA16 Experimento feito na Amazônia mostra colapso de árvores com ressecamento do solo

22 Ações adaptativas reduziriam significativamente prejuízo provocado pela subida do mar em Santos até 2100

ENTREVISTA26 Carlos MoedasComissário europeu de Pesquisa, Ciência e Inovação diz que a ciência só avança com parcerias e o Big Data é parte essencial do novo jogo

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

32 BiodiversidadeIniciativas testam soluções para recuperar a vegetação de áreas degradadas

36 BibliometriaInstituições brasileiras começam a adotar o identificador Orcid, assinatura digital global para autores científicos e acadêmicos

40 Recursos humanosEstudo sugere que disciplinas com alta presença feminina não garantem às pesquisadoras vantagem para chegar ao topo da carreira

44 ReconhecimentoPrêmios para pesquisadores se multiplicam no Brasil e no exterior

foTo dA CAPA rafael oliveira

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66 físicaEquipe internacional mede pela primeira vez o aumento da entropia em núcleos de carbono

TECNOLOGIA

68 Engenharia química Além de fertilizante, a vinhaça, resíduo do etanol, poderá ser utilizada para produzir eletricidade

72 Pesquisa empresarialBrPhotonics investe em P&D para criar dispositivos ópticos avançados e exportar

76 Indústria farmacêuticaBiolab conclui o desenvolvimento de dois novos medicamentos e aposta neles para ampliar sua presença no mercado internacional

HUMANIDADES

80 UrbanismoDos países desenvolvidos aos mais pobres, habitação pública se tornou ativo financeiro, indicam estudos

84 HistóriaPesquisador recupera interesses políticos e econômicos nos cinejornais da era desenvolvimentista

88 ArqueologiaPovo que viveu há mais de 2 mil anos na costa peruana tinha dieta de agricultor, baseada em muito carboidrato

SEçÕES

3 fotolab5 Cartas6 on-line7 Carta do editor8 Dados e projetos9 Boas práticas10 estratégias12 Tecnociência90 Memória94 arte96 resenha97 Carreiras99 Classificados

48 CooperaçãoTorneio e conferência na Alemanha promovem propostas inovadoras de outros países

CIÊNCIA

50 MedicinaPesquisadores explicam como treinamento aeróbico e de resistência muscular reverte danos decorrentes da insuficiência cardíaca

56 BiologiaForma e tamanho das mitocôndrias influenciam o amadurecimento celular

58 BotânicaBrasileiros propõem a existência de um código que regula a formação da parede celular das plantas

60 PaleontologiaCinodonte descoberto primeiro na África e agora no Brasil viveu durante o auge da diversidade dos animais precursores dos mamíferos

64 AstrofísicaGrupo do Brasil e da Argentina explica como uma classe de pulsares evolui até consumir outros objetos celestes

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Programa de rádioMuito boa a opção de baixar o mp3 das entrevistas do programa de rádio Pes-quisa Brasil.Brenda Teles

Via Facebook

VídeosSensacional o vídeo “Séculos de migra-ção”. Sempre que vejo estas coisas fico faceiro por ter sido bolsista e pesquisa-dor apoiado pela FAPESP.André Luiz Cavazzani

Via Facebook

Pesquisas nesse sentido são essenciais para o debate acerca do capital humano em potencial que temos no país (sobre o vídeo “Séculos de migração”).Adriano Alves de Aquino Araújo

Via Facebook

Tudo por uma medicina menos invasiva (sobre o vídeo “Um monitor para o cére-bro”). A humanidade agradece!Estella Sillva

Via Facebook

Impressionante, espero que a Anvisa libere o mais rápido possível (sobre o vídeo “Um monitor para o cérebro”).Gislaine Augusto

Via Facebook

Interessante observar na prática como a ciência aplicada pode ser uma poderosa ferramenta para compreender nosso am-biente (sobre o vídeo “Círculos do tempo”) João Filho

Via Facebook

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

CArTAS [email protected]

Jeter BertolettiMerecido reconhecimento na entrevista com o grande “mestre dos museus”, Je-ter Bertoletti, falando de sua brilhante carreira (“Semeador de arquivos”, edição 237). Vale a leitura. São raros os profis-sionais como ele.Guy Barcellos

Via Facebook

HumanidadesQuero parabenizar a equipe de redação pela densidade e interesse das matérias consignadas na edição de outubro (nº 236). O elenco talvez seja o mais insti-gante de todos os que eu há anos venho acompanhando. Quero especialmente destacar a reportagem sobre imigração (“As raízes da resistência”) e a entrevista de Boris Schnaiderman (“Memórias de um ex-combatente”), que, no nível de um Braudel, edificou o estudo das letras na USP. Justa homenagem. rui Granziera

Campinas, SP

LuzParabéns ao Sidney José Lima Ribeiro pela pesquisa que foi objeto da reporta-gem intitulada “Químicos criam dispo-sitivo flexível que emite luz”, no site da revista Pesquisa FAPESP, por divulgar a excelência das pesquisas desenvolvidas aqui no Instituto de Química da Univer-sidade Estadual Paulista.Vanderlan Bolzani

Instituto de Química/Unesp

Araraquara, SP

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6 | dezembro de 2015

youtube.com/user/PesquisaFaPesP

on-linew w w . r e v i s t a P e s q u i s a . F a P e s P. b r

x simulações feitas por um grupo internacional de pesquisadores estão reforçando o papel do ser humano na extinção de grandes animais como preguiças-gigantes, tigres-dentes-de-sabre e mastodontes há aproximadamente 10 mil anos nas américas. em um artigo publicado em setembro na revista Proceedings of the Royal Society B, o biólogo matias Pires, da universidade de são Paulo, e colaboradores descrevem o uso de modelos matemáticos para reconstruir o funcionamento das redes ecológicas da época. os resultados sugerem que as comunidades de grandes mamíferos do Pleistoceno eram sensíveis ao acréscimo de um predador eficaz como o homem.

x a ideia de notebooks dobráveis e papéis eletrônicos flexíveis parece estar mais próxima de se tornar realidade. em um estudo publicado em novembro na capa da revista Journal of Materials Chemistry C, pesquisadores brasileiros relatam o desenvolvimento de um substrato flexível à base de celulose produzida por bactérias e poliuretano, obtido da síntese do óleo de mamona. o material foi usado como suporte para a obtenção de um diodo flexível emissor de luz, uma das mais promissoras tecnologias para vídeo e imagem.

exclusivo no site

Vídeos do mês

Grupo Vertigem integra conhecimento científico à montagem de peças teatrais

Autor Adelto Gonçalves comenta as raízes dos desmandos públicos no Brasil

confira o processo de coleta de amostras de árvores nas fotos de Léo Ramos

Assista ao vídeo:

Assista ao vídeo:

Professor Nélio Bizzo fala a respeito do conhecimento de estudantes sobre a teoria da evolução

Rádio

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A mais vista do mês no Facebook

política c&t

Doação de órgãos: a arte de dar más notícias

15.108 pessoas alcançadas

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entre 18 e 24 de novembro no perfil de Pesquisa FAPESP

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cArtA do EdItor

Q uando esta edição estiver impres-sa, a 21a Conferência das Partes das Nações Unidas para Mudan-

ças Climáticas (COP21) já terá terminado. Pesquisa FAPESP estava na gráfica no período em que ocorreu a COP21 e, por essa razão, não traz os resultados do que foi acordado em Paris. As informações já depuradas e calibradas pela análise cui-dadosa de pesquisadores especializados da área estarão na edição de janeiro. A presente edição, no entanto, apresenta reportagens sobre projetos de pesquisa que investigam possíveis consequências nas alterações climáticas no Brasil.

A primeira delas é um longevo expe-rimento realizado na Floresta Nacional de Caxiuanã, na Amazônia (página 16). Uma equipe que inclui pesquisadores brasileiros e britânicos cobriu com 6 mil painéis de plástico, entre 1 e 2 metros do chão, 1 hectare de mata para evitar que 50% da água da chuva chegasse ao solo. A pergunta a ser respondida era: como a floresta reagiria se houvesse uma se-ca prolongada na região? Nos primeiros anos, a falta de chuva pareceu não afe-tar as árvores. Mas 13 anos depois veio a consequência: as grandes árvores, algu-mas enormes, com mais de 40 metros de altura, começaram a tombar vítimas do ressecamento do solo – das 12 mais altas, com diâmetro maior que 60 centímetros, sobraram três. O experimento Efeitos da Seca da Floresta (Esecaflor) já dura 15 anos e é o mais duradouro a avaliar o efeito da seca em uma floresta tropical.

Outro projeto que também tem a ver com a Amazônia tratou da desastrosa combinação de queimadas com seca. Le-vado a termo por uma equipe de norte--americanos e brasileiros, o estudo ava-liou um experimento com incêndios flo-restais controlados no Alto Xingu, a parte mais seca da Amazônia. Os resultados desse trabalho foram apresentados no ano passado e mostraram que as árvo-res resistiram bem à primeira queimada, em 2004. O grande prejuízo para a mata

aconteceu em 2007, quando houve uma estiagem prolongada. O fogo programa-do pelo experimento teve tal intensidade que destruiu tudo. Pouca água no solo, baixa umidade no ar, plantas ressecadas e um clima seco, juntos, mostraram ter alto poder de combustão, mesmo em regiões normalmente úmidas.

Como reportagem coordenada à da Amazônia, contamos sobre os efeitos econômicos que o aumento do nível do mar traria para Santos, no litoral paulis-ta, onde está o principal porto brasilei-ro (página 22). O estudo integra o pro-jeto Metrópole, parte do Belmont Fo-rum, mantido pelo International Group of Funding Agencies for Global Change Research (IGFA), que reúne agências de fomento à pesquisa de vários países e es-timula trabalhos relativos às mudanças climáticas. As projeções sobre um mun-do mais quente abrangeram dois outros municípios litorâneos, além de Santos: Selsey, balneário inglês, e o condado de Broward, na Flórida, que abriga a cidade de Fort Lauderdale, nos Estados Unidos.

As estimativas para a cidade brasileira foram apresentadas às autoridades e à população e, de certo modo, confirma-ram o que já se sabia: ações adaptativas reduziriam enormemente os prejuízos econômicos provocados pela elevação do mar até 2100. Para dar um exemplo: num cenário pessimista, se o nível da água subir 45 centímetros, os prejuízos chega-riam à casa do R$ 1,3 bilhão. Com medi-das paliativas – alargamento das praias, dragagem de áreas assoreadas, restauro e preservação de mangues e reforço de paredes de contenção do mar –, as perdas se restringiriam a R$ 200 milhões em oito décadas. Talvez a principal vantagem do Metrópole seja o fato de não se limitar à ciência: o projeto envolve pesquisa cientí-fica, discussão de políticas públicas e par-ticipação da população local. Não é pouco.

Boa leitura.

Efeitos das alterações climáticas

José GoldemberGPrEsidEntE

eduardo moacyr KrieGervicE-PrEsidEntE

conSElho SUPErIor

carmino antonio de souza, eduardo moacyr KrieGer, fernando ferreira costa, João fernando Gomes de oliveira, João Grandino rodas, José GoldemberG, maria José soares mendes Giannini, marilza vieira cunha rudGe, José de souza martins, Pedro luiz barreiros Passos, Pedro WonGtschoWsKi, suely vilela samPaio

conSElho técnIco-AdmInIStrAtIvo

José arana vareladirEtor-PrEsidEntE

carlos henrique de brito cruzdirEtor ciEntífico

Joaquim J. de camarGo enGlerdirEtor AdministrAtivo

conSElho EdItorIAlcarlos henrique de brito cruz (Presidente), caio túlio costa, eugênio bucci, fernando reinach, José eduardo Krieger, luiz davidovich, marcelo Knobel, maria hermínia tavares de almeida, marisa lajolo, maurício tuffani, mônica teixeira

comItê cIEntíFIcoluiz henrique lopes dos santos (Presidente), anamaria aranha camargo, carlos eduardo negrão, fabio Kon, francisco antônio bezerra coutinho, Joaquim J. de camargo engler, José arana varela, José Goldemberg, José roberto de frança arruda, José roberto Postali Parra, lucio angnes, marie-anne van sluys, mário José abdalla saad, Paula montero, roberto marcondes cesar Júnior, sérgio robles reis queiroz, Wagner caradori do amaral, Walter colli

coordEnAdor cIEntíFIcoluiz henrique lopes dos santos

dIrEtorA dE rEdAção alexandra ozorio de almeida

EdItor-chEFE neldson marcolin

EdItorES fabrício marques (Política), márcio ferrari (Humanidades), marcos de oliveira (Tecnologia), ricardo zorzetto (Ciência); carlos fioravanti e marcos Pivetta (Editores espe ciais); bruno de Pierro (Editor-assistente)

rEvISão daniel bonomo, margô negro

ArtE mayumi okuyama (Editora), ana Paula campos (Editora de infografia), alvaro felippe Jr., Júlia cherem rodrigues e maria cecilia felli (Assistentes)

FotógrAFoS eduardo cesar, léo ramos

mídIAS ElEtrônIcAS fabrício marques (Coordenador) IntErnEt Pesquisa FAPESP onlinemaria Guimarães (Editora)rodrigo de oliveira andrade (Repórter) renata oliveira do Prado (Mídias sociais)

rádIo Pesquisa Brasilbiancamaria binazzi (Produtora)

colAborAdorES alexandre affonso, daniel bueno, elisa carareto, evanildo da silveira, fabio otubo, heloisa beraldo, igor zolnerkevic, Jayne oliveira, marcella beraldo de oliveira, maria hirszman, salvador nogueira, voltaire Paes neto, valter rodrigues, yuri vasconcelos

é ProIbIdA A rEProdUção totAl oU PArcIAl dE tExtoS E FotoS SEm PrévIA AUtorIzAção

PArA FAlAr com A rEdAção (11) [email protected]

PArA AnUncIAr midia office - Júlio césar ferreira (11) 99222-4497 [email protected] Classificados: (11) 3087-4212 [email protected]

PArA ASSInAr (11) 3087-4237 [email protected]

tIrAgEm 36.200 exemplaresImPrESSão Plural indústria GráficadIStrIbUIção dinaP

gEStão AdmInIStrAtIvA instituto uniemP

PESQUISA FAPESP rua Joaquim antunes, no 727, 10o andar, ceP 05415-012, Pinheiros, são Paulo-sP

FAPESP rua Pio Xi, no 1.500, ceP 05468-901, alto da lapa, são Paulo-sP

secretaria de desenvolvimento econômico,

ciência e tecnoloGia govErno do EStAdo dE São PAUlo

issn 1519-8774

fundação de amParo à Pesquisa do estado de são Paulo

neldson marcolin | EdItor-chEFE

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8 | dezembro de 2015

dados e projetos

temáticosDesenvolvimento de novos materiais estratégicos para dispositivos analíticos integrados Pesquisador responsável: Lauro Tatsuo Kubotainstituição: IQ/UnicampProcesso: 2013/22127-2Vigência: 01/10/2015 a 30/09/2020

Plasticidade fenotípica de macacos-prego (gênero Sapajus): investigação sobre o efeito de trajetórias ontogenéticas distintas e de ativação contexto-dependente Pesquisadora responsável: Patricia Izarinstituição: Instituto de Psicologia/USPProcesso: 2014/13237-1Vigência: 01/11/2015 a 31/10/2020

Novas fronteiras em reações de acoplamento cruzado mediadas por paládio. Associando catálise enantiosseletiva, ativações c-h, novos materiais e reações em fluxo visando alta eficiência e sustentabilidade em processos sintéticos

temáticos e JoVeNs PesquisADores receNtesProjetos contratados em outubro e novembro de 2015

Pesquisador responsável: Carlos Roque Duarte Correiainstituição: IQ/UnicampProcesso: 2014/25770-6Vigência: 01/11/2015 a 31/10/2020

efeitos plasmônicos e não lineares em grafeno acoplado a guias de onda ópticos Pesquisador responsável: Christiano José Santiago de Matosinstituição: CPAGN/UPMProcesso: 2015/11779-4Vigência: 01/10/2015 a 30/09/2019

modulação de monócitos, macrófagos e pericitos pelos genes dos fatores estimuladores de colônia para tratamento de isquemia de membros em modelo murino Pesquisador responsável: Sang Won Haninstituição: EPM/UnifespProcesso: 2015/20206-8Vigência: 01/12/2015 a 30/11/2020

resolution: resilient systems for land use transportation (FAPesP-esrc-NWo)

Pesquisador responsável: Eduardo Cesar Leão Marquesinstituição: FFLCH/USPProcesso: 2015/50127-2Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2017 JoVeNs PesquisADoressinalização parácrina mediada por microvesículas e proteínas entre células ósseas e endoteliais durante o desenvolvimento e regeneração do tecido ósseo Pesquisador responsável: Willian Fernando Zambuzziinstituição: IB de Botucatu/UnespProcesso: 2014/22689-3Vigência: 01/12/2015 a 30/11/2019

Heteroestruturas em nanofios semicondutores: emissores de luz nanométricos estudados por microscopia de varredura de tunelamento Pesquisador responsável: Luiz Fernando Zagonelinstituição: IFGW/UnicampProcesso: 2014/23399-9Vigência: 01/11/2015 a 31/10/2019

reconstrução filogenética de Gastrotricha baseada em dados moleculares e morfológicos Pesquisador responsável: André Rinaldo Senna Garraffoniinstituição: IB/UnicampProcesso: 2014/23856-0Vigência: 01/11/2015 a 31/10/2019

Novas abordagens para melhorar a prospecção funcional de biocatalizadores em bibliotecas metagenômicas Pesquisadora responsável: Maria Eugenia Guazzaroniinstituição: FFCLRP/USPProcesso: 2015/04309-1Vigência: 01/10/2015 a 30/09/2019

Avaliação de técnicas e processos na fungicultura: suplementação de substrato e utilização do composto exaurido no meio agrícola Pesquisador responsável: Diego Cunha Ziedinstituição: CE de Dracena/UnespProcesso: 2015/15306-3Vigência: 01/01/2016 a 31/12/2018

Patentes concedidas no BrasilNúmero de concessões por país do primeiro depositante – INPI, 2000-2014

Obs.: As patentes com origem em outros países além do Brasil são majoritariamente (88% em 2014) processadas via o Patent Cooperation Treaty (PCT), que facilita o depósito em diversos países, além daquele no país de origem Fonte: Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC)

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estADos uNiDos 2.251 1.154 1.660 1.565 768 840 884 538 834 870 962 1.052 811 833 776

AlemANHA 870 463 580 613 316 368 374 224 362 393 492 524 403 386 404

BrAsil 649 379 337 403 279 247 231 198 233 340 313 380 363 385 374

JAPão 288 122 156 206 89 92 132 102 166 175 271 244 197 204 192

FrANçA 346 200 291 296 152 185 221 125 182 197 257 239 191 211 164

Núm

ero

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PESQUISA FAPESP 238 | 9

Ética em pesquisas patrocinadas

Revisor sem qualificação

Boas práticas

O Committee on Publication Ethics (Cope), fórum que fornece aconselhamento sobre ética e integridade para editores de revistas científicas, deu aval em novembro para o GPP3, a mais nova versão do código de boas práticas para a divulgação de pesquisas patrocinadas por empresas médicas, farmacêuticas e de biotecnologia. O guia foi lançado pela primeira vez em 2003, formulado por um pequeno grupo de profissionais com atuação em indústrias de medicamentos, e sofreu uma primeira atualização em 2009 com a colaboração de cerca de 200 editores e pesquisadores, na maioria norte-americanos. Desta vez, o escopo foi ampliado, com a contribuição de membros da Europa e da Ásia.

O código traz novas seções que incorporam diretrizes consagradas em outros documentos, como a que condena o plágio ou a que especifica os tipos de contribuição que habilitam um pesquisador a assinar um artigo como autor. Também avança ao recomendar etapas precisas para o processo de publicação, como a formulação de um planejamento para assegurar que tanto os resultados positivos como os negativos sejam divulgados, que os dados sejam apresentados em congressos médicos relevantes na primeira oportunidade possível e que se evite a publicação dos achados em mais de um periódico.

Outra novidade é o capítulo sobre o papel dos redatores médicos na confecção dos artigos. O guia recomenda que os autores tenham ajuda desses profissionais para melhorar a qualidade e a clareza dos textos. Essa contribuição, porém, apenas em casos excepcionais qualifica os redatores

a se tornarem coautores do trabalho. Mas a colaboração deve ser declarada no artigo e não se confunde com o trabalho de um ghost writer.

Segundo Liz Wager, ex-presidente do Cope que ajudou a formular as três versões do código, o tom do documento é mais assertivo do que o dos anteriores. “Muitas das normas que eram precedidas com ‘nós recomendamos’ foram substituídas por afirmações sobre o que empresas, pesquisadores e autores ‘deveriam’ ou ‘devem’ fazer”, disse ela em seu blog. Tanto a nova versão do guia como as anteriores afirmam, com clareza, que “todos os resultados de um ensaio clínico devem ser reportados”. Se hoje essa afirmação está amparada por outros códigos de boas práticas e pela legislação dos Estados Unidos, na época em que o primeiro GPP foi lançado o assunto era cercado de controvérsia. Pouco antes da

Um artigo publicado em agosto na revista Antimicrobial Agents and Chemotherapy, da Sociedade Americana de Microbiologia, foi retratado em novembro sob a justificativa de que o periódico não foi capaz de verificar a identidade de um revisor que recomendou a publicação do manuscrito. A suspensão da publicação do paper, porém, não se enquadra nos escândalos recentes de manipulação de bancos de dados de revisores, com a inclusão fraudulenta de perfis fictícios. Ao site Retraction Watch, o editor da revista Louis Rice, professor da Universidade Brown, explicou que o revisor era real, mas não tinha qualificação

suficiente para avaliar o artigo. Segundo ele, o autor do manuscrito, o biólogo Abdul Mannan Baig, da Universidade Aga Khan, do Paquistão, sugeriu pesquisadores para revisar seu trabalho, sobre o funcionamento de um patógeno. Um dos nomes foi aceito, sem que a revista checasse suas referências. O problema só foi detectado quando o artigo já estava publicado on-line. Um novo processo de revisão foi deflagrado, que desaconselhou a publicação do paper. Ao admitir o erro, Rice isentou o biólogo paquistanês de culpa. “Não houve irregularidade por parte do autor, que foi encorajado a apresentar seus trabalhos no futuro”, disse.

divulgação da primeira versão do guia, a indústria farmacêutica norte-americana lançou diretrizes próprias, segundo as quais apenas os “resultados significativos” precisariam ser divulgados. O GPP3 admite que nem sempre os resultados de testes clínicos são apropriados para gerar um artigo. Mas recomenda que todos os dados de ensaios sejam divulgados em repositórios públicos.

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10 | dezembro de 2015

estratégias

Políticas para o gerenciamento da malária na Amazônia precisam levar em conta o desmatamento na região, concluiu uma equipe do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que levantou o impacto da devastação da floresta na saúde da população. Uma análise publicada em outubro relacionou dados de desmatamento e estatísticas de doenças em 773 municípios da Amazônia Legal entre 2004 e 2012. Constatou--se que para cada 1% de floresta derrubada por ano viu-se um acréscimo de 23% nos casos de malária. A incidência de leishmaniose também cresceu com o avanço do desmatamento, com um aumento entre 8% e 9% de casos. Não foram registrados impactos da retirada da vegetação sobre doenças como sarampo, diarreia,

As doenças do desmatamento

dengue e males respiratórios. O estudo, feito pelo biólogo Nilo Saccaro Junior e os economistas Lucas Mation e Patrícia Sakowski, não investigou como o desequilíbrio leva ao aumento de algumas doenças e não de outras. Mas sugere que características dos vetores podem explicar a diferença. O mosquito Anopheles, causador da malária, vive mais tempo e viaja distâncias maiores que o Aedes aegypti, que propaga a dengue, e com isso se deslocaria até áreas povoadas após a devastação de seus hábitats. Também é possível que espécies que transmitem a malária de forma mais efetiva, como o Anopheles darlingi, tornem-se mais prevalentes do que espécies mais benignas, dizem os autores.

Índios Baré se banham no rio Cuieiras, no Amazonas: estudo mediu impacto da retirada da vegetação na saúde humana

Interesse nos tubarões

A aproximação entre Cuba e Estados Unidos começa a se traduzir em parcerias científicas. Numa recente conferência internacional sobre oceanos, representantes dos dois países anunciaram que está sendo negociado um acordo de cooperação envolvendo pesquisa e gerenciamento de áreas marinhas protegidas. Um dos focos de interesse são as 100 espécies de tubarões residentes no mar do Caribe e no golfo do México que habitam as águas cubanas. “Cuba é uma espécie de epicentro da biodiversidade para os tubarões”, disse à revista Nature Robert Hueter, diretor do Centro de Pesquisa de Tubarões, em Sarasota, Flórida, que está trabalhando com pesquisadores cubanos. “É tempo de identificarmos objetivos comuns e trabalharmos juntos”, diz Jorge Angulo-Valdés,

pesquisador do Centro de Pesquisa Marinha da Universidade de Havana e professor visitante da Universidade da Flórida, em Gainesville. Algumas espécies endêmicas na região, como o tubarão- -galha-branco-oceânico e o tubarão-mako-longfin, foram dizimadas em outras regiões e estão ameaçadas de extinção. O governo cubano criou uma área de proteção ao longo de 20% de sua costa e quer expandi-la. Pesquisadores de organizações conservacionistas, como o Environment Defense Fund, sediado em Nova York, querem fazer inventário das populações de tubarões e estão levantando recursos para começar o trabalho, promovendo, por exemplo, o treinamento de profissionais de barcos pesqueiros para identificar e registrar os tubarões que capturam.

Tubarão: as águas de

Cuba abrigam mais de uma

centena de espécies

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O Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, criou uma ferramenta on-line com informações sobre o desempenho e as condições de operação das escolas públicas da Região Metropolitana de São Paulo. A plataforma de livre acesso oferece informações sobre notas obtidas em avaliações, as instalações (laboratórios, quadras de esportes, biblioteca) e as condições socioeconômicas dos alunos. “Nossa contribuição, além de tornar as informações de livre acesso ao público, é agregá-las por escola. Qualquer cidadão poderá localizar a escola de seu interesse e obter de modo ágil dados sobre o histórico dessa escola e as condições em que ela funciona”, disse Marta Arretche, coordenadora do CEM e professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Segundo ela, a plataforma contou com a combinação de conhecimentos no campo das pesquisas de ciências sociais, de geoprocessamento, de demografia, de estatística e de programação. As informações podem ser consultadas no endereço centrodametropole.org.br/escolas/.

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A praga que destrói as oliveiras

A Comissão Europeia anunciou uma cha-mada de € 7 milhões para financiar pro-jetos de pesquisa para detecção e com-bate da Xylella fastidiosa, bactéria que está destruindo as oliveiras centenárias da região de Puglia, no sul da Itália. A praga agrícola, que atinge, ainda, regiões da França, é apontada como grande ameaça econômica para a União Euro-peia. O governo italiano também prome-teu investir € 6 milhões em projetos de pesquisa. A Xylella é bastante conhecida no Brasil pelos prejuízos que causa nos laranjais e foi objeto do primeiro sequen-ciamento genético feito no país, em 2000, com financiamento da FAPESP. Pesquisadores brasileiros têm colabora-do com os europeus nas pesquisas sobre

a interação entre a bactéria, a planta e o inseto que atua como vetor, a cigarri-nha-espumosa, nas oliveiras. “Vamos submeter um projeto em parceria com um grupo da Itália no âmbito do progra-ma Horizonte 2020, da União Europeia”, diz Alessandra Alves de Souza, pesqui-sadora do Centro de Citricultura Sylvio Moreira do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) que participa da colabo-ração com os pesquisadores italianos juntamente com Helvécio Della Coletta Filho, do IAC, e Joao Spoti Lopes, da Es-cola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP.

Para conhecer as escolas

Ciência no gabinete canadense

Um dos primeiros atos do novo premiê do Canadá, o liberal Justin Trudeau, foi criar o posto de ministro da Ciência em seu gabinete. A geógrafa kirsty Duncan, de 49 anos, professora da Universidade de Toronto, foi indicada para o cargo. Ela foi uma das autoras do relatório de 2001 do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) e escreveu um

livro sobre a expedição que fez à Noruega para investigar a causa da epidemia de gripe espanhola em 1918. Entrou para a política em 2008, eleita parlamentar pelo Partido Liberal. A decisão de Trudeau foi bem recebida pela comunidade científica, uma vez que o premiê anterior, Stephen Harper, colocara os assuntos científicos na esfera de um

departamento de assuntos da indústria. O premiê indicou o analista financeiro Navdeep Bains para a pasta da Inovação e Desenvolvimento Econômico e a advogada Catherine Mckenna para o Ministério do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas e prometeu recriar o cargo de conselheiro científico do gabinete, abolido por Harper em 2008.

Oliveiras atingidas

pela Xylella, em Puglia

A geógrafa kirsty Duncan, da Universidade de Toronto: nomeada para o ministério

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12 | DEZEmbro DE 2015

A capacidade do cérebro de ignorar distrações e se concentrar em tarefas específicas pode estar associada ao funcionamento orquestrado de circuitos neurais de uma região chamada tálamo. Pesquisadores das universidades Stanford e de Nova York, ambas nos Estados Unidos, verificaram que os neurônios do córtex

Cerca de 60% da poluição atmosférica das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro é composta de material particulado fino emitido pela frota de veículos automotores. Todas as demais fontes de poluentes atmosféricos – indústria, aerossóis vindos do mar e a poeira do chão em suspensão – respondem por aproximadamente 40% da poluição nas duas grandes cidades. Os resultados foram obtidos pelo projeto Fontes, financiado pela Petrobras e coordenado pelos pesquisadores José Marcus Godoy, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP). “A boa notícia é que, se adotarmos políticas que incentivem a redução do uso do automóvel, podemos diminuir significativamente a poluição do ar nos centros urbanos”, diz Artaxo. O estudo constatou também que cerca de 20% do material particulado fino corresponde ao chamado carbono negro (fuligem), resultante da queima incompleta de combustíveis fósseis e biomassa. Os veículos a diesel, como os ônibus, são os maiores emissores de carbono negro. Para obter os dados do

Os carros e o ar de São Paulo e do Rio

Carros em São Paulo: estudo indica que 20% do material particulado fino é resultado da queima incompleta de combustíveis

TEcnociência

Cérebro mais focado

projeto, foram realizadas medições entre os anos de 2011 e início de 2014 em oito estações, quatro na capital paulista (IF-USP, Escola de Saúde Pública da USP, Parque do Ibirapuera e Congonhas) e quatro na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Duque de Caxias, Tijuca, Recreio dos Bandeirantes e Taquara). A atmosfera nas duas cidades se mostrou muito homogênea. A composição química das amostras obtidas nas oito estações foi semelhante, embora cada lugar tenha particularidades. Outro dado interessante: o nível de poluição medido agora foi da mesma ordem do verificado em 2004, quando a frota motorizada nas duas capitais era menor. Isso indica que os veículos novos poluem menos.

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pré-frontal ajustam a sensibilidade do cérebro a estímulos sensoriais, enviando sinais que inibem e ativam neurônios do tálamo. No estudo, camundongos foram treinados para usar estímulos sonoros e visuais como pistas que os levariam a uma porta atrás da qual havia uma recompensa. Os pesquisadores observaram que, quando os camundongos se concentravam na luz para escolher a porta certa, os neurônios do tálamo inibidores dos sinais visuais eram menos ativos. Quando atentavam ao som e ignoravam a luz, os neurônios do tálamo associados à visão eram mais ativos, suprimindo os sinais visuais, fazendo o cérebro focar no som (Nature, 21 de outubro). Os resultados sugerem que o tálamo funcionaria como uma central de controle, administrando a quantidade de informações que o cérebro recebe, filtrando estímulos sensoriais nos quais ele deve ou não se concentrar.

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PESQUISA FAPESP 238 | 13

Pesquisadores e outros cidadãos se uniram em resposta ao rompimento, em novembro, das barragens da mineradora Samarco em Minas Gerais. Começou no Facebook, quando o biólogo Dante Pavan gerou um movimento que originou o Grupo Independente para Avaliação do Impacto Ambiental (Giaia). Em quatro dias, o grupo obteve financiamento coletivo para a primeira fase de análise. A página do grupo na rede social orienta quem quiser coletar água do rio e enviar ao laboratório da toxicologista Vivian Santos, na Universidade de Brasília. “Além das análises sistematizadas, seguimos um modelo de ciência cidadã”, explica a bióloga Rominy Stefani, da equipe gestora do

Pierre Auger até 2025

Giaia. “Temos amostras do rio antes da chegada dos rejeitos e gente em campo.” O grupo pretende divulgar em breve no site um relatório do dano ecológico causado, que vai além do curso d’água. O ornitólogo Renato Gaban Lima, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), por exemplo, coletará amostras de aves locais. Nesta época, aves migratórias visitam a região para alimentar- -se. Outra iniciativa vem da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que montou um grupo com uma centena de pesquisadores que vão definir ações e montar um plano de monitoramento para o baixo rio Doce e a região costeira afetada. Parte do trabalho é feita em um navio da Marinha.

Unidos pelo rio Doce

Em novembro foi assinado um acordo internacional que permitirá a continuidade da operação do Observatório Pierre Auger até 2025. A assinatura do documento ocorreu em um simpósio na cidade de Malargüe, Argentina, que reuniu pesquisadores e representantes das agências de financiamento à pesquisa dos vários países-membros do consórcio responsável pela construção e funcionamento do observatório. O Pierre Auger reúne mais de 500 cientistas de 16 países e

Salmão transgênico para alimentação humana

Depois de uma rigorosa averiguação científica, a Food and Drug Administra-tion (FDA), a agência que regula o comér-cio de remédios e alimentos nos Estados Unidos, aprovou em novembro o primei-ro animal transgênico para consumo hu-mano daquele país. A empresa AquaBounty Technologies começou a de senvolver o peixe há 20 anos. É um salmão do Atlân-tico (Salmo salar) geneticamente modifi-

cado que cresce duas vezes mais rápido que os espécimes utilizados em criações de cativeiro. Em vez de três anos, o peixe chega ao tamanho para a comercialização em até 18 meses e consome de 20% a 25% menos ração. Em um comunicado, a FDA afirma ser o salmão geneticamen-te modificado tão seguro e nutritivo como o tradicional. A engenharia genética para tornar o salmão mais produtivo utilizou

dois genes de dois outros peixes. Um, relativo ao hormônio de crescimento do salmão Chinook (Oncorhynchus tshawyts-cha), do oceano Pacífico, que cresce bem mais que o do Atlântico, e outro gene – da enguia Zoarces americanus, dos mares do Noroeste Atlântico – que codifica um promotor de proteínas anticongelamen-to que deixa o salmão geneticamente modificado crescer no inverno.

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funciona desde 1998 em Malargüe com o propósito de investigar a origem e a natureza dos raios cósmicos, as partículas mais energéticas do Universo, com energia algumas ordens de grandeza maior do que as que podem ser alcançadas no Grande Colisor de hádrons do Cern, na Europa. O acordo prevê avanços na capacidade dos 1.660 detectores de superfície (reservatórios de água sensíveis à luz Cherenkov gerada pelo chuveiro de partículas produzidas pela colisão dos raios cósmicos com a atmosfera) com o acréscimo de detectores de luz de cintilação e a construção de outros detectores para diferenciar os componentes do chuveiro de partículas vindo do espaço. Os pesquisadores brasileiros participam desse trabalho desde 1998 com apoio da FAPESP, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

Observatório na Argentina: mais 10 anos de experimentos em que partículas atravessam reservatórios de água no deserto

Empresa desenvolve

peixe que cresce duas vezes

mais rápido e consome

menos ração

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Um grupo liderado pelo glaciologista Jefferson Simões, pesquisador do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi longe (ao menos remotamente) em busca de efeitos de mudanças globais no clima. Por meio de imagens de satélite obtidas entre 1978 e 2014, o grupo mapeou os lagos na geleira Baltoro da cordilheira Caracórum, parte do himalaia no norte do Paquistão. O grupo registrou um aumento gradual no número e na área dos lagos até 2008, segundo artigo a ser publicado na edição de janeiro de 2016 da revista Geocarto International, já disponível on-line, cujo primeiro autor é o indiano Bijeesh Veettil, aluno de doutorado no Centro Polar e Climático da UFRGS. Nessa área a cerca de 3.500 metros acima do nível do mar, as geleiras são recobertas por pedregulhos e areia, em vez do gelo liso que normalmente se imagina. Essa cobertura torna mais rara a formação de

lagos, que só acontece por um aumento significativo no degelo e é, por isso, considerada um indicador de aumento da temperatura atmosférica. Nos últimos anos a área dos lagos teve uma ligeira diminuição, que os pesquisadores da UFRGS estão tentando explicar. A inversão na tendência parece ter relação com a mudança de fase do fenômeno conhecido como Oscilação Decadal do Pacífico (ODP), que afeta as temperaturas sobretudo na parte norte do oceano Pacífico. A expansão dos lagos aconteceu em sua fase quente, principalmente no período em consonância com os efeitos do El Niño. O estudo sugere a necessidade de aprofundar as análises sobre como o fenômeno ODP, que tem efeitos semelhantes aos do El Niño, mas com duração de algumas décadas, afeta as geleiras asiáticas. Os resultados mais completos poderão dar pistas importantes sobre as mudanças globais no clima do planeta.

Biólogos da Espanha e do Reino Unido podem ter encontrado uma forma de eliminar o fungo Batrachochytrium dendrobatidis, ao qual se atribui a extinção de populações de cerca de 700 espécies de anfíbios em todo o mundo (ver Pesquisa FAPESP nº 196). A estratégia tem duas frentes de ação: a aplicação de antifúngicos sobre os girinos e a desinfecção do ambiente em que vivem (Biology Letters, 18 de novembro). As duas estratégias já haviam sido antes testadas, separadamente, mas não apresentaram os resultados esperados, porque a infecção

Mais lagos no himalaia

Geleira Baltoro, no norte do Paquistão: termômetro de mudanças climáticas

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Girinos do sapo-parteiro

(Alytes muletensis) receberam antifúngico

Estratégia contra fungo

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causada pelo fungo reaparecia. Agora, o tratamento combinado parece ter funcionado. Em 2009 e 2012, os girinos do sapo-parteiro-de-maiorca (Alytes muletensis), removidos de cinco lagoas de duas ilhas do arquipélago das Ilhas Baleares, localizado a leste da Espanha, foram tratados com o antifúngico itraconazol e devolvidos ao seu ambiente. Depois, as rochas próximas às lagoas foram lavadas com o desinfetante Virkon S, à base de monopersulfato de potássio. Em 2013, não havia sinais do fungo em quatro dos cinco lugares onde a infecção tinha sido registrada. Embora não tenha sido inteiramente eficaz, porque foram encontrados sapos mortos com sinais da infecção, esta é uma das indicações de que a erradicação do fungo no ambiente natural pode ser viável. O possível impacto das substâncias químicas sobre outras espécies e no ambiente deve ser avaliado pelos pesquisadores antes da expansão dessa forma de tratamento.

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PESQUISA FAPESP 238 | 15

Consequências da febre zika

No primeiro semestre de 2015, o aumen-to do número de casos de pessoas com erupções cutâneas no corpo chamou a atenção de pesquisadores do Departa-mento de Vigilância Epidemiológica de Salvador, na Bahia, que, frente à situação, implementaram um sistema de vigilância em Unidades de Pronto-Atendimento do município para identificar casos seme-lhantes registrados no mesmo período. De fevereiro a junho deste ano, cons-tataram que 14.835 casos da doença haviam sido registrados em Salvador. Análises mais detalhadas sugeriam, porém, um cenário ainda mais preocu-pante: o aumento do número de casos de pessoas com erupções na pele se deu uma semana após os primeiros diagnós-ticos de febre zika, causada pelo vírus ZIKV, terem sido registrados em cidades próximas a Salvador. Os pesquisadores, então, avaliaram amostras de soro de alguns pacientes com essas erupções e identificaram a presença de trechos do RNA dos vírus zika, chikungunya e

dengue (Emerging Infectious Diseases, 12 de dezembro). Os resultados chamam a atenção para a circulação simultânea dos três vírus em Salvador. Assim como os vírus da dengue e da chikungunya, o zika também é transmitido por mosqui-tos do gênero Aedes spp. Até agora, a Bahia é o estado com o maior número de notificações de casos suspeitos de zika e chikungunya. Recentemente, o aumento na região Nordeste de casos de microcefalia (cérebros menores do que o normal) foi relacionado à infecção de gestantes pelo vírus. Até julho, a Bahia havia notificado 115 casos da síndrome de Guillain-Barré, doença neurológica tam-bém suspeita de ser associada ao zika.

Mosquito Aedes aegypti transmissor do vírus da dengue, da chikungunya e da zika

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Sensor de hormônios

Um sensor desenvolvido por pesquisadores da Universidade Victoria de Wellington, na Nova Zelândia, poderá ajudar a estimar os níveis de estrogênio em fluidos corporais e em cursos d’água, muitas vezes contaminados com compostos estrogênicos — vasto grupo de hormônios geralmente eliminados na urina e que trazem riscos aos seres vivos. O dispositivo combina o uso de aptâmeros, pequenos fragmentos de DNA que reconhecem e se ligam a vários tipos de moléculas, acoplados a nanotubos de carbono. No estudo, publicado na Journal of Vacuum Science and Technology B, em 9 de novembro, os pesquisadores testaram o sensor em uma solução semelhante à encontrada em fluidos biológicos. Ao entrar em contato com o dispositivo, as moléculas na solução dispuseram-se na forma de uma camada eletricamente estável sobre a superfície dos nanotubos. As moléculas de estrogênio capturadas pelos aptâmeros romperam a camada, alterando a corrente elétrica do dispositivo e gerando um sinal elétrico.

Segredos do bacuri da Amazônia

Resíduos formados por cascas de frutas em indústrias de sucos, polpas e doces são, em grande parte das vezes, um problema que esconde surpresas, como é o caso do bacuri (Platonia insignis), um fruto da região amazônica. Indústrias de pequeno porte ou familiares jogam no lixo as cascas desse pequeno fruto rico em uma substância chamada moreloflavona. “Esse flavonoide possui ação antioxidante e anti- -inflamatória conforme demonstrado por testes enzimáticos in vitro”, diz Maria Luiza Zeraik, professora da

Universidade Estadual de Londrina (UEL). Ela participou do estudo quando fez estágio de pós-doutorado no Departamento de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara, integrante do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos (CIBFar), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, sob a supervisão da professora Vanderlan Bolzani. “O projeto sobre frutos endêmicos do Brasil vem revelando uma riqueza molecular incrível. No caso do bacuri, o que

mais me impressionou foi constatar que a casca contém a moreloflavona, o que não é comum”, diz Vanderlan. “Cinco miligramas dessa substância custam em torno de US$ 60”, diz Maria Luiza. Ela diz que o processo de extração desse flavonoide das cascas é simples e rápido, podendo ser facilmente reproduzido em escala industrial. “Acredito que a pesquisa possa chamar a atenção de empresas para o aproveitamento das cascas de bacuri com o objetivo de desenvolver um antioxidante natural para cosméticos”, diz Vanderlan.

Bacuri: a casca é maior que a polpa e rica em moreloflavona, substância com ação antioxidante

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Experimento feito na maior floresta tropical do mundo

mostra colapso de árvores com ressecamento do solo

Seca ameaça a Amazônia

Ao tomar suco por um canudo é preciso cuidado para manter o tubo bem imerso. Do contrário, bolhas de ar se formam e rompem a estrutura do fio líquido que leva a bebida do copo à boca. Aumente a escala para a altura de um prédio de

10 andares e pode imaginar o fluxo de água dentro de uma das gigantescas árvores amazônicas. A transpiração pelas folhas dá origem à sucção que movimenta a água desde as raízes até as imensas copas das árvores, que podem ultrapassar os 40 metros de altura, e lança para a atmosfera uma umidade responsável por entre 35% e 50% das chuvas na região, com impacto importante na hidrologia global. Quando esse siste-ma falha, o ciclo da água não é o único afetado. As árvores,

que até então pareciam funcionar normalmente, subitamente morrem. Um experimento liderado pelo ecólogo inglês Patrick Meir, da Universidade de Edimburgo, na Escócia, e da Univer-sidade Nacional da Austrália, provocou 15 anos de seca numa parcela amazônica e revelou o papel desse mecanismo, de acordo com artigo publicado em novembro na revista Nature.

Para construir o experimento foram necessários 500 metros cúbicos (m3) de madeira, 5 toneladas de plástico, 2 toneladas de pregos e 23 mil horas-homem (10 homens trabalhando de segunda a segunda por um ano), de acordo com o meteorolo-gista Antonio Carlos Lola da Costa, da Universidade Federal do Pará (UFPA). O resultado são 6 mil painéis de plástico que medem 3 metros (m) por 0,5 m cada um, entremeados por 18

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calhas com 100 m de comprimento responsáveis por impedir que 50% da chuva que cai chegue ao solo numa parcela de 1 hectare na Floresta Nacional de Caxiuanã, no norte do Pará, onde o Museu Paraense Emílio Goeldi mantém uma estação científica. “O Patrick me procurou em 1999 com essa ideia maluca”, conta Lola. O meteorologista não sabia por onde começar, mas estudou as fotos que Meir lhe mandou de um experimento similar, o Seca Floresta, que estava sendo mon-tado na Floresta Nacional do Tapajós, no oeste do estado, e saiu a campo. “Em um ano estava feito.”

Não era um feito logístico trivial. Chegar a Caxiuanã envolve sair de Belém e passar 12 horas a bordo de um barco repleto de redes coloridas apinhadas, até Breves. Foi nessa cidade de

Do alto de uma torre de 40 metros,

fica visível a mortalidade das árvores maiores,

destacadas acima do dossel

cerca de 100 mil habitantes que Lola conseguiu o material pa-ra sua empreitada, como os tubos de ferro galvanizado para montar duas torres com 40 m de altura. De lá, 10 horas em um barco menor levam a Caxiuanã, onde o material precisou ser carregado pelo meio da densa floresta.

O experimento conhecido como Esecaflor, abreviação de Efeitos da Seca da Floresta, é o mais extenso e mais duradouro no mundo a avaliar o efeito de seca numa floresta tropical. O único comparável é o Seca Floresta, que abrangeu uma área similar e foi encerrado após cinco anos (ver Pesquisa FAPESP nº 156). Nesta última década e meia, Antonio Carlos Lola tem sido o principal responsável por monitorar a reação da floresta e manter o experimento de pé mesmo quando ele é

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constantemente derrubado por galhos e árvores que caem, uma empreitada que exige entre R$ 10 mil e R$ 15 mil por mês. Um valor que tende a subir, agora que mais árvores têm sucumbido à seca, destruindo parte da estrutura. “Passo por volta de seis meses do ano no meio do mato, com interrupções”, conta ele, que tem coordenado uma série de projetos de alunos de mestrado e doutorado no âmbito do experimento.

ObSErvAçãO prOlOnGAdAEm linhas gerais os resultados dos dois experi-mentos amazônicos contam histórias semelhan-tes, como mostra artigo de revisão publicado por Meir e colegas em setembro na revista BioScien-ce: nos primeiros anos a floresta parece ignorar a falta de chuva e mantém o funcionamento nor-mal. Passados alguns anos de seca, porém, galhos começam a cair e árvores a morrer, sobretudo as mais altas e as menores. Experimentos em outros países analisaram uma área menor ou duraram menos tempo – o maior, na Indonésia, funcionou por dois anos.

O estudo de Caxiuanã traz resultados inéditos por sua longa duração: o colapso das maiores ár-vores só aconteceu após 13 anos da seca experi-mental e pode representar um ponto de inflexão em que a floresta muda de cara. Desde 2001 os pesquisadores vêm fazendo medições fisiológicas nas árvores, comparando a área com restrição de

chuva e uma parcela semelhante sem intervenção. Nos últimos dois anos, começaram a registrar uma mortalidade drástica entre as árvores mais altas, raras por natureza, que caem causando destruição e transformando a floresta pujante numa mata de aparência degradada. “Das 12 árvores mais altas com diâmetro maior que 60 centímetros, restam apenas três”, conta Lucy Rowland, pesquisadora britânica em estágio de pós-doutorado no grupo de Meir na Universidade de Edimburgo que es-tá à frente do projeto desde 2011. A surpresa foi identificar no sistema hidráulico a causa interna dessa mortalidade. Quando o suprimento de água no solo é reduzido, aumenta a tensão na coluna d’água no interior dos vasos condutores das ár-vores, o xilema. A integridade dessa coluna, que depende da adesão natural entre as moléculas de água, acaba comprometida por bolhas de ar, um processo que os especialistas chamam de cavitação. A consequência desse colapso, que acontece de repente, é a incapacidade de levar água das raízes às folhas e a morte súbita da árvore. Meir ressalta que essa falha hidráulica funciona como um ga-tilho que inicia o processo de morte, sem ser ne-cessariamente a causa final – ainda desconhecida.

Outra hipótese favorecida para explicar a morte de árvores em situações de seca é o que os pesqui-sadores chamam de “fome de carbono”. Quando as folhas fecham os estômatos (poros que permi-tem transpiração e trocas gasosas) para evitar o

Um experimento de longo prazoforam necessários 13 anos para que o Esecaflor começasse a detectar uma mortalidade importante das árvores grandes, responsáveis por uma fração considerável da biomassa viva vegetal

2001 20052002 2003 2004 2006 2007

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com a morte progressiva de galhos, foi registrado um aumento na mortalidade de árvores médias e grandes, assim como do sub-bosque

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pESQUISA FApESp 238 | 19

ressecamento, também reduzem a absorção de carbono. O mais provável é que os dois processos aconteçam simultaneamente, mas no caso de Ca-xiuanã os pesquisadores descartaram a falta de carbono como fator principal ao verificar que as árvores continham um suprimento normal desse elemento e não pararam de crescer até a morte.

“Medimos a vulnerabilidade do sistema hi-dráulico das plantas à cavitação e vimos que ela tem relação com o diâmetro da árvore”, conta o biólogo Rafael Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), colaborador do projeto há dois anos. A observação condiz com a pre-

ponderância de vítimas avantajadas: 15 árvores com diâmetro maior que 40 centímetros caíram na área experimental, em comparação com ape-nas uma ou duas na zona de controle, onde não há exclusão de chuva. O impacto é grande, por-que essas árvores gigantescas concentram uma parcela importante da biomassa da floresta e do dossel emissor de umidade. Enquanto isso, as de tamanho médio estão crescendo até mais, graças à luz que chega até elas agora que a mata vai se tornando esparsa e cheia de frestas entre as copas.

Oliveira tem estudado as relações entre o so-lo, as plantas e a atmosfera, e em uma revisão publicada em 2014 na revista Theoretical and Experimental Plant Physiology mostrou que mu-danças no regime de precipitação podem causar um estresse hídrico letal por cavitação, mesmo que a seca seja compensada por um período de chuvas intensas, de maneira que o total anual de chuvas não se altere. Para ele, é preciso entender melhor o funcionamento fisiológico e anatômi-co das árvores nessas condições para prever sua reação às mudanças previstas no clima. Essas particularidades também devem explicar por que a reação varia entre espécies. O estudo de Caxiuanã, por exemplo, aponta o gênero Pouteria como muito vulnerável à seca e o Licania como o mais resistente, entre as árvores examinadas. Os mecanismos usados pelas plantas são diversos, como absorver água pela parte aérea – pelas fo-lhas e até pelos ramos e tronco. “Precisamos ver quais árvores na Amazônia fazem isso”, planeja.

Outro efeito da mortalidade das árvores é o acúmulo de mais folhas e galhos no solo da flores-ta. “Quem trabalha com fogo chama essa camada de combustível”, brinca o ecólogo Paulo Brando,

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biomassa

fogo experimental no mato Grosso: em condições normais de umidade, os incêndios têm baixa energia e são pouco destrutivos

a mortalidade de árvores médias e grandes iniciada

em 2010 culminou na morte das maiores árvores,

reduzindo a biomassa

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se soma aos efeitos do desmatamento, que criam ilhas de floresta com bordas vulneráveis. “A fron-teira da floresta com uma plantação de soja, por exemplo, é 5 graus Celsius mais quente do que o interior da floresta, e mais seca”, diz Brando.

Ele é coautor de um estudo feito pela geógrafa Ane Alencar, também do Ipam, que analisou re-gistros de incêndios na Amazônia, por imagens de satélite, entre 1983 e 2007. Os resultados, pu-blicados em setembro na Ecological Applications, mostram que já houve um aumento na ocorrên-cia de fogo florestal em resposta a um clima mais seco. Comparando três tipos de mata no leste da Amazônia, o grupo verificou que a floresta densa é sensível a mudanças climáticas, enquanto as for-mações aberta e de transição estão mais sujeitas à ação humana por desmatamento.

FUtUrOComo não há bola de cristal para enxergar o que vem à frente, vários grupos buscam desenvolver modelos climáticos e ecológicos. Brando parti-cipou de um estudo liderado por Philip Duffy, do Woods Hole, que comparou a capacidade de modelos climáticos acomodarem as secas que aconteceram em 2005 e 2010 na Amazônia, tão

pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e do Centro de Pesquisa Woods Hole, Estados Unidos. Um dos integran-tes do Seca Floresta, cujo imenso banco de dados ainda está em análise quase 10 anos depois de encerrado o projeto, ele mais recentemente con-duziu um estudo com incêndios florestais num experimento no Alto Xingu, a região mais seca da Amazônia. Segundo os resultados apresentados em artigo de 2014 na PNAS, as árvores resistiram bem à primeira queimada, em 2004, em parte porque a própria umidade da floresta impediu que o fogo atingisse proporções devastadoras. O resultado marcante veio em 2007, quando o incêndio programado coincidiu com uma seca acentuada e representou, na interpretação dos autores, um ponto de inflexão na floresta. “O que vimos foi fogo de grande intensidade que matou tudo, principalmente as árvores pequenas”, con-ta, concluindo que a interação entre seca e fogo potencializa as forças motrizes de degradação.

Menos água no solo, menos umidade no ar e mais combustível no chão agem em conjunto e aumentam muito a probabilidade de fogo. E não se pode esquecer a ação humana nas fronteiras agrícolas, onde o fogo é comum para manejo e

painéis de plástico impedem que metade da chuva chegue ao chão (acima) provocando queda de árvores (à direita, no alto); calhas levam a água embora (no detalhe ao lado) numa área de 1 hectare da floresta nacional de caxiuanã

ver também galeria de imagens no site www.revistapesquisa.fapesp.br

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pESQUISA FApESp 238 | 21

projetointerações entre solo-vegetação-atmosfera em uma paisagem tropi-cal em transformação (n° 2011/52072-0); Modalidade pesquisa em parceria para inovação tecnológica (pite) e acordo fapEsp-microsoft research; Pesquisador responsável rafael silva oliveira (ib-unicamp); Investimento r$ 1.082.525,94.

artigos científicosalEncar, a. a. et al. landscape fragmentation, severe drought, and the new amazon forest fire regime. Ecological Applications. v. 25, n. 6, p. 1493-505. set. 2015.branDo, p. m. et al. abrupt increases in amazonian tree mortality due to drought-fire interactions. pnAS. v. 111, n. 17, p. 6347-52. 29 abr. 2014.Duffy, p. b. et al. projections of future meteorological drought and wet periods in the amazon. pnAS. on-line. 12 out. 2015.mEir, p. et al. threshold responses to soil moisture deficit by trees and soil in tropical rain forests: insights from field experiments. bioScience. v. 65, n. 9, p. 882-92. set. 2015.olivEira, r. s. et al. changing precipitation regimes and the water and carbon economies of trees. theoretical and Experimental plant physiology. v. 26, n. 1, p. 65-82. mar. 2014.rowlanD, l. et al. Death from drought in tropical forests is triggered by hydraulics not carbon starvation. nature. on-line. 23 nov. 2015.

incertezas e antecipar o futuro, Lucy – que é es-pecialista em usar dados de campo para alimen-tar modelos – vem trabalhando em parceria com o grupo de Stephen Sitch, na Universidade de Exeter, na Inglaterra, para aprimorar a represen-tação das respostas das florestas tropicais à seca no modelo de vegetação conhecido como Jules.

A Amazônia fala claramente sobre a impor-tância de políticas que busquem reduzir as mu-danças climáticas, tema que inundou as notícias nos últimos tempos por causa da Conferência do Clima em Paris (COP21), que ocorreu este mês. Os experimentos mostram efeitos localizados, mas secas naturais como as da década passada podem afetar uma área extensa da floresta. Meir ressalta a necessidade de quebrar o ciclo: ao se decomporem, imensas árvores mortas liberam na atmosfera uma quantidade de carbono que tende a agravar o efeito estufa. “É possível desenvolver regras de energia e uso da terra que sejam econo-micamente benéficas, sem danificar o ambiente no longo prazo”, completa. n

drásticas que não era esperado que se repetissem num período menor do que um século. Os resul-tados, publicados em outubro no site da PNAS, preveem um aumento significativo de secas, com um crescimento da área afetada por essas secas na região amazônica. O problema, segundo Brando, é que boa parte dos modelos lida com médias, e o que está em questão são extremos climáticos. Este ano, caracterizado por um fenômeno El Niño mais forte do que a média, a equipe do Esecaflor encontrou, em novembro, uma floresta pratica-mente sem chuva havia mais de dois meses. A expectativa é, nos próximos anos, acompanhar as consequências desse período.

“O relatório de 2013 do IPCC ressaltou nos-sa falta de capacidade em prever a mortalidade relacionada à seca nas florestas como uma das incertezas na ciência ligada à vegetação e ao cli-ma”, conta Meir. “Nossos resultados indicam qual mecanismo fisiológico precisa ser bem represen-tado pelos modelos para prever a mortalidade das árvores”, explica. Nessa busca por reduzir FO

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Ações adaptativas reduziriam significativamente prejuízo

provocado pela subida do mar em Santos até 2100

Implementar medidas de adaptação às mudanças climáticas poderá reduzir consideravelmente os prejuízos eco­nômicos causados às moradias dos

habitantes de Santos, no litoral paulista, por inundações decorrentes da intensifi­cação de eventos extremos previstos até o final deste século, como a elevação do nível do mar e, em menor escala, a ocor­rência de fortes chuvas e de marés altas. Caso nada seja feito para minimizar a destruição provocada por esses eventos e o nível do mar suba 45 centímetros (cm) até 2100, conforme prevê o cenário mais pessimista de um estudo sobre o impacto das mudanças climáticas no balneário paulista, os prejuízos poderão atingir quase R$ 1,3 bilhão. Mas, se o município implementar um rol de ações paliativas, como o alargamento das praias, a dra­gagem de áreas assoreadas, o restauro

Prevenir vale a pena

e a preservação de mangues e o reforço estrutural de paredes de contenção do mar, as perdas acumuladas poderão se restringir a R$ 200 milhões ao longo das próximas oito décadas.

“Ficamos surpresos com a magnitude da redução do prejuízo econômico com o emprego das medidas adaptativas de acordo com nossas simulações compu­tacionais”, afirma o climatologista José Marengo, chefe da Divisão de Pesquisas do Centro de Monitoramento de Desas­tres Naturais (Cemaden), em Cachoeira Paulista, e coordenador do estudo sobre os efeitos do clima em Santos. Os custos de implementação das medidas seriam da ordem de R$ 240 milhões, bem menor do que a economia gerada pela redução dos danos. As projeções fazem parte do braço brasileiro de uma iniciativa inter­nacional, o projeto Metrópole, que es­

Marcos Pivetta

caPa

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PESQUISa FaPESP 238 | 23

tuda estratégias de adaptação aos possí­veis impactos das mudanças climáticas em três localidades costeiras do globo: Santos, no Brasil; Selsey, balneário de 11 mil habitantes no sul da Inglaterra; e o condado de Broward, na Flórida, que abriga a cidade de Fort Lauderdale. Além de cenários para 2100, o projeto também fez simulações para meados do século.

O projeto Metrópole faz parte do Bel­mont Forum, mantido pelo Internatio­nal Group of Funding Agencies for Glo­bal Change Research (IGFA), que reúne agências de fomento à pesquisa de todo o mundo e estimula estudos sobre ques­tões ligadas às mudanças climáticas. A FAPESP financia os trabalhos feitos na cidade paulista. Os resultados dos estu­dos foram apresentados em duas oca­siões, em setembro e agora em dezembro, ao poder público local e a representantes

da sociedade civil de Santos. “O projeto mescla pesquisa científica, discussão de políticas públicas e participação da população local”, afirma a geógrafa Lu­cí Hidalgo Nunes, do Instituto de Geo­ciências da Universidade Estadual de Campinas (IG­Unicamp), outra parti­cipante dos trabalhos.

O possível custo econômico das mu­danças climáticas em Santos só pode ser estimado porque os pesquisadores do Metrópole contam com uma ferramenta computacional, a plataforma Coast (si­gla em inglês para Coastal Adaptation to Sea Level Rise Tool), capaz de simular as áreas permanentemente alagadas de acordo com o nível do mar e os prejuízos provocados pelo avanço das águas sobre as moradias da região. Desenvolvida nos Estados Unidos, a plataforma precisa ser abastecida com uma série de dados do

lugar a ser estudado, como informações meteorológicas e topográficas, o histó­rico do nível do mar na região, o padrão de ocupação do solo, a localização geor­referenciada e o valor dos imóveis. “Nos Estados Unidos, há uma cultura de se preparar para eventos extremos, como os furacões que atingem o país”, diz o engenheiro Eduardo Hosokawa, da Se­cretaria de Desenvolvimento Urbano da prefeitura de Santos. “Aqui ainda es­tamos no começo desse trabalho. Mas as informações do projeto Metrópole foram bem recebidas pela população.” Hosokawa e seu colega de prefeitura Ernesto Tabuchi forneceram os dados do município paulista sem os quais o Coast não poderia rodar.

A rigor, o prejuízo econômico decor­rente da elevação do nível do mar em Santos poderá ser maior do que o esti­Fo

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contenção do mar na rica zona sudeste de Santos: investir

nessas duas regiões pode minorar os danos econômicos

das mudanças climáticas

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mado pelo projeto. A área abrangida pelo estudo não engloba todo o município e abarca apenas um quarto da população santista. Além disso, os custos contabili­zados no modelo dizem respeito apenas aos danos estruturais causados pela subi­da das águas nas habitações particulares. O prejuízo estimado é baseado no valor venal dos imóveis que aparece nos regis­tros municipais, quase sempre inferior ao preço de mercado das propriedades. Também não estão incluídos nos cálculos do Coast danos a outros tipos de patri­mônio privado, como carros e móveis, nem aos equipamentos mantidos pelo poder público ou, ainda, a destruição da infraestrutura existente. “No fundo,

as estimativas de prejuízo são conserva­doras”, explica Lucí.

Ainda assim, o estudo feito no balneá­rio paulista, de caráter inédito no país, se mostra uma ferramenta importante para planejar o futuro das cidades costeiras mais vulneráveis à elevação do nível do mar, um dos principais efeitos atribuídos às mudanças climáticas. As duas regiões de Santos analisadas no trabalho, a rica zona sudeste e a pobre zona noroeste, são as que mais sofrerão os impactos das mudanças climáticas na cidade e formam um painel de contrastes e dife­rentes vulnerabilidades. Embora tenha uma área total de 381 quilômetros qua­drados (km2), Santos concentra a qua­

Acima, as zonas noroeste (em verde) e sudeste (azul) de Santos. Abaixo, mapas mostram áreas que seriam alagadas (verde) em diferentes cenários de elevação do mar

região noroeste

2050 | Aumento de 23 cm no nível do mar 2100 | Aumento de 45 cm no nível do mar

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projetouma estrutura integrada para analisar tomada de decisão local e capacidade adaptativa para mudança ambiental de grande escala: estudos de caso de comunidades no Brasil, reino unido e Estados unidos – Acordo FApESp--Belmont Forum (nº 2012/51876-0); Modalidade projeto temático; Pesquisador responsável José marengo (ce-maden); Investimento r$ 328.168,00.

se totalidade de sua população de 420 mil habitantes em sua pequena porção insular. Mais de 99% de seus morado­res vivem nos 39,4 km2 da Ilha de São Vicente que fazem parte do município (o restante da ilha pertence ao território da cidade vizinha, São Vicente). As duas áreas escolhidas para o estudo abrangem 12 km2 e 117 mil habitantes (10 km2 e 83 mil pessoas na zona noroeste e 2 km2 e 34 mil indivíduos na sudeste).

As duas regiões são de caráter bastante distinto. A popular zona noroeste é uma área de invasão, com casas modestas, fa­velas e palafitas distribuídas por 20 mil lotes fiscais. Em um cenário de mudanças climáticas, sua principal vulnerabilidade são as inundações de verão devido a tem­pestades e à alta da maré. A zona sudeste inclui bairros verticalizados de classe média e abriga 1.400 lotes de uma área que começa no Canal 3 e vai até o bair­ro da Ponta da Praia e o porto. É a área das praias. Há décadas essa zona sofre erosão costeira e sua faixa de areia está encolhendo. De acordo com as simula­ções do Coast, os prejuízos econômicos em razão das mudanças climáticas na zona sudeste serão de três a quatro vezes maiores do que na zona noroeste. A dife­rença decorre sobretudo do maior valor dos imóveis na área das praias.

Em compensação, as mudanças adap­tativas rodadas no modelo para a zo­na sudeste (engordamento da faixa de areia das praias e reforço dos muros de contenção do mar) custariam cerca de R$ 36 milhões, quase seis vezes menos do que os procedimentos simulados pa­ra a zona noroeste (dragagem de áreas assoreadas, restauração e conservação dos mangues e construção de diques e

de sistemas para drenar a água). “As si­mulações mostram que vale a pena in­vestir nessas medidas”, afirma Marengo. “Seus custos de implementação são bem menores do que a economia gerada por elas com a redução de danos à região.”

A escolha de Santos para ser alvo do estudo não foi arbitrária. Deveu­se a dois fatores objetivos. A cidade tem enorme importância econômica para o país. Um quarto das importações e exportações brasileiras passa por seu porto, cuja área obviamente será afetada se o nível do mar subir em demasia nas próximas dé­cadas. Um segundo ponto considerado, talvez mais importante do que o anterior, foi a existência de uma série histórica com registros dos níveis do mar desde a década de 1940 até hoje. Esse tipo de informação era imprescindível para que os pesquisadores pudessem rodar os ce­nários que contabilizam as perdas eco­nômicas decorrentes de diferentes níveis de subida das águas do Atlântico.

MarégraFo E SatélItEEspecialista no estudo da dinâmica de águas oceânicas, o professor Joseph Ha­rari, do Instituto Oceanográfico da Uni­versidade de São Paulo (IO­USP), uni­ficou as informações históricas sobre o nível do mar no litoral de Santos. De 1945 até 1990, foram usados dados de um marégrafo, instrumento que mede o nível da superfície do mar em um pon­to da costa, que estava instalado no cais do porto. “De 1993 até o presente, utili­zamos dados de altimetria de satélite”, afirma Harari. As duas formas de medida apresentam diferenças metodológicas, mas os pesquisadores trataram os dados de modo que pudessem ser comparados.

Se o passado recente for uma referên­cia para o futuro próximo, os santistas têm motivo para preocupação. De 1945 até o início da década de 1990, o nível do mar subiu, em média, 1,3 milímetro (mm) ao ano em Santos. De 1993 até 2014, esse índice dobrou: foi de 2,7 mm ao ano. Quando se leva em conta apenas o período de 2003 a 2013, o número é ainda maior, de 3,6 mm ao ano, seme­lhante à média global calculada pelo Painel Intergovernamental sobre Mu­danças Climáticas (IPCC) e à média da elevação do nível do mar ao longo de toda a costa brasileira. Caso esse rit­mo seja mantido até 2050, a subida do Atlântico na cidade paulista terá sido de 18 cm na primeira metade deste sé­culo. Se essa taxa persistir até 2100, a elevação acumulada do nível do mar na cidade paulista no final do século XXI terá sido de 36 centímetros. Nesse cená­rio, tido pelos pesquisadores do projeto Metrópole como mais realista do que as previsões genéricas e globais do IPCC, os prejuízos econômicos em Santos se­riam de pouco mais de R$ 1 bilhão ao longo de todo o século XXI. “Quanto à subida do nível médio do mar, não há o que se discutir”, diz Harari. “As medi­ções são inequívocas. Os cenários e as consequências nas próximas décadas dependerão das medidas que os gover­nos vão colocar em prática.” n

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EntrEvIStA

o engenheiro civil português Carlos Moedas, de 45 anos, assumiu no ano passado o cargo de comis-sário de Pesquisa, Ciência e Inovação da União Europeia, tornando-se responsável pelo Horizonte

2020, o principal programa científico do continente. Com orçamento de € 80 bilhões para o período de 2014 a 2020, o Horizonte 2020 investe em ciência básica, pesquisa de interesse de empresas e na solução de grandes desafios da sociedade, por meio de bolsas e projetos desenvolvidos por pesquisadores de seus 28 países-membros, e também atrai recursos nacionais e do setor privado. O programa é aberto a parceiros internacionais, como consórcios e pesquisadores interessados em colaborar com os europeus.

No dia 17 de novembro, Moedas esteve no Brasil e proferiu uma palestra no auditório da FAPESP sobre as estratégias da União Europeia e do Horizonte 2020, envolvendo tópi-cos como o incremento de colaborações com cientistas de outros países, a mudança no modo de fazer pesquisa com a oferta de grandes volumes de informações, a importância de criar um ambiente regulatório que estimule a inovação e a necessidade de se ter normas para estimular a integrida-

Carlos Moedas

IdAdE 45 anos

ESPEcIAlIdAdE Engenharia Civil

FormAção Instituto Superior Técnico de Lisboa (graduação); Escola de Negócios de Harvard (MBA)

InStItUIção Comissão Europeia

Só há excelência na diversidadeComissário europeu de Pesquisa, Ciência e

Inovação diz que a ciência só avança com parcerias

e o Big Data é parte essencial do novo jogo

Fabrício marques | rETrATo Léo ramos

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de num ambiente científico em trans-formação. Ele elogiou a iniciativa da FAPESP de anunciar e oferecer recur-sos, por meio de projetos, a pesquisa-dores de São Paulo que queiram cola-borar com colegas da Europa. “Trata-se do primeiro sistema de financiamento paralelo, que assegura uma maior par-ticipação do Brasil no Horizonte 2020. Espero que sirva de inspiração para outros estados brasileiros”, afirmou. Em março passado, a FAPESP estabe-leceu um acordo de cooperação com a União Europeia para o Horizonte 2020 por meio do qual pesquisadores vincu-lados a universidades e instituições de pesquisa do estado de São Paulo podem usar modalidades de apoio oferecidas pela Fundação para financiar sua par-ticipação em propostas as-sociadas ao programa, mas seguindo os prazos do pro-grama europeu.

Pouco antes da palestra de Moedas, o diretor cientí-fico da FAPESP, Carlos Hen-rique de Brito Cruz, também anunciou uma chamada de propostas, lançada pela Co-missão Europeia e a Funda-ção, juntamente com o Con-selho Nacional das Funda-ções Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap) e o Mi-nistério da Ciência, Tecno-logia e Inovação (MCTI), com o objetivo de apoiar pesquisas colaborativas in-ternacionais em biocombus-tíveis de segunda geração. “Nós estudamos todos os ti-pos de energias renováveis e teremos o maior gosto de fazer isso com o Brasil”, disse o comissário.

Filho de um dono de jornal com mi-litância comunista e de uma professora, Carlos Moedas passou a infância e a ado-lescência em Beja, na região do Alentejo. Formou-se em engenharia pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa e trabalhou nos anos 1990 na gestão de projetos de um grupo francês. Depois de fazer um MBA na Escola de Negócios de Harvard, em 2000, trabalhou em Londres na área de fusões e aquisições do banco de in-vestimentos Goldman Sachs. Regressou a Portugal em 2004 e criou sua própria empresa de investimentos. Em 2010, en-trou para a política, tornando-se con-

selheiro econômico do Partido Social Democrata, e no ano seguinte foi eleito para o Parlamento português, mas logo assumiu a função de secretário de Esta-do adjunto do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho. Em 2014, foi indicado pelo governo português para a Comis-são Europeia e tornou-se comissário de Pesquisa, Ciência e Inovação. Moedas é casado com uma professora universitária e tem três filhos.

Logo após a palestra no auditório da FAPESP, em que respondeu a pergun-tas da plateia de forma bem-humorada e aprendeu, entre risos, o significado da palavra “xará”, o comissário europeu fez questão de reservar tempo em sua agen-da para conceder à Pesquisa FAPESP a entrevista a seguir.

Qual sua expectativa em relação a par-cerias entre pesquisadores do Brasil e da União Europeia no âmbito do pro-grama Horizonte 2020?A estratégia europeia define ciência aberta, inovação aberta e abertura para o mundo como essenciais para fazer uma ciência melhor. Nós não acreditamos que a Europa sozinha possa fazer ciência de excelência. Sozinha, a Europa não o fará. Portanto os nossos projetos são abertos ao mundo. Para o European Re-search Council, ou Centro Europeu de Investigação, que é o maior programa de bolsas mundiais de ciência funda-mental, por exemplo, qualquer pessoa no mundo pode se candidatar. Ciência tem a ver com excelência. E essa exce-

lência só se pode encontrar na diversi-dade e na capacidade do olharmos pa-ra o mundo como um todo e tentarmos encontrar os melhores pesquisadores. Nós sabemos que no Brasil existem es-ses cientistas e que eles podem ganhar em trabalhar conosco, assim como nós também ganharemos em trabalhar com eles. É uma relação de igual para igual, uma relação biunívoca. É exatamente com esse sentido que assinamos acordos com a FAPESP. Um pesquisador jovem que tenha a oportunidade de trabalhar numa equipe na Europa pode avançar na carreira. Isso pode transformá-lo. Assim como um europeu que venha trabalhar aqui com biocombustíveis pode progre-dir na carreira porque o Brasil está mais evoluído nessa área, sobretudo em ter-

mos da experiência que teve na chamada primeira gera-ção de etanol. A ideia é de-senvolver essa colaboração. Acredito profundamente que hoje em dia não se consegue inovar ou fazer ciência num só país ou numa só discipli-na. Temos mais de 150 bol-sistas [do programa da União Europeia] Marie Curie que são brasileiros. Temos três bolsistas do European Re-search Council que são bra-sileiros. Mas podemos fazer muito mais.

Qual o interesse da União Europeia na pesquisa do etanol de segunda geração? A Europa tem investido em energias renováveis, mas há

resistência ao etanol de primeira gera-ção que o Brasil produz, pelo impacto atribuído na produção de alimentos. Quando passamos à segunda e à terceira geração do etanol, estamos buscando ou-tras alternativas. Isso é importante para o Brasil porque o país também quer se diversificar. O problema energético tem que ser resolvido com diversificação de fontes. Aliás, eu diria que ele depende de eficiência energética, que no fundo é a energia não consumida, é como podemos ser mais eficientes, e depois temos que diversificar as fontes renováveis, as fon-tes não fósseis. A maior parte das fontes não fósseis são ainda muito caras. Então a maior parte da investigação que nós fa-zemos de certa forma tem esse objetivo,

Estudamos todos os tipos de energia renovável e teremos o maior gosto de fazer isso com o Brasil

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que é como podemos conseguir fazer ou diminuir o preço de tecnologias que são ainda muito recentes. Conseguiu-se aqui neste exemplo dos biocombustíveis um conjunto de vontades entre o Brasil e a Europa, mas nós gostaríamos de fa-zer muito mais. Ou seja, isso foi apenas um primeiro passo, um primeiro passo lógico. Veremos muito mais nas ener-gias renováveis. Nós estudamos todos tipos de energia renovável e teremos o maior gosto de fazer isso com o Brasil, que é um país que está engajado, como vocês dizem.

Como o senhor vê a iniciativa da FA-PESP de anunciar e oferecer recursos, mediante projetos, a pesquisadores de São Paulo que queiram colaborar com colegas da Europa?Muito bem. Nós queremos realmente que os pesquisadores brasileiros pos-sam participar mais do Horizonte 2020. E para isso é muito bom ter uma orga-nização do nível extraordinário, como a FAPESP, que consegue olhar para os nossos editais e financiar pesquisadores brasileiros para participarem. Eu pen-so que foi muito bem visto na Europa o Brasil dar mais um passo de aproxima-ção no caminho da excelência. O Hori-zonte 2020 hoje em dia é considerado uma marca de excelência. De excelência, porque os projetos que passam pelo fil-tro e recebem financiamento são aqueles nos quais todos os cientistas do mundo gostariam de participar. E até o fariam sem dinheiro, se fosse preciso, porque os grupos são muito fortes. Nesse aspec-to, isso vai dar capacidade para muitos pesquisadores de São Paulo participa-rem de projetos europeus. Acho que é

algo muito importante para a carreira de um pesquisador. Nós fizemos um estudo sobre pesquisadores que tiveram mobi-lidade de país, ou seja, que trabalharam em outros países. Eles são quase 20% mais produtivos em termos de publica-ção de artigos em relação aos que nunca mudaram de país. Ou seja, a mobilidade é importante.

Como o Horizonte 2020 vê a pesquisa básica? Do total investido pelo progra-ma, qual volume é aplicado na pesqui-sa básica?Um terço vai para a pesquisa básica. Te-mos dentro do investimento em pesqui-sa básica aquilo que achamos que é um dos melhores instrumentos do mundo, o European Research Council, que tem

uma filosofia importante. É uma filosofia bottom up, não top down. É de baixo para cima e não de cima para baixo. Os editais que são feitos para o programa não dão nenhum tipo de direção aos pesquisa-dores. São os cientistas que nos dizem o que querem fazer. Obviamente depois há um sistema de peer review, de revisão por pares, e são escolhidos os melhores projetos. Mas nós não impomos temas.

Sem dirigismo, como o senhor ressaltou na sua apresentação na FAPESP.Sem dirigismo. Há dois pontos muito importantes na política de ciência. Um é que a política de ciência não deve per-mitir aos políticos fazer escolhas científi-cas. Ou seja, o político não deve escolher projetos. A FAPESP é um exemplo muito bom desse caminho, em que há o peer review. Esse é um primeiro passo para conseguir ter ciência de qualidade. E quando nós olhamos para essa ciência de qualidade e pensamos nas características dela, qual é o outro passo? É que ela seja bottom up e não top down. Que ela não tenha dirigismo, porque o político não é cientista, o político não pode escolher, não pode dar esse tipo de orientação. Eu acho que teremos cada vez mais políti-cas que são de baixo para cima e não de cima para baixo.

E os outros dois terços do financiamen-to do Horizonte 2020? Destinam-se a que tipo de pesquisa?

Pesquisa em biocombustíveis na União Europeia: em busca de fontes de energia não fósseis mais baratas

o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, e o comissário Carlos Moedas

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Um terço vai para políticas para indús-trias e pequenas e médias empresas. E outro terço é destinado para os chama-dos desafios da sociedade, os societal challenges. A ideia é dizer que, para nós resolvermos os desafios de hoje, não se-rá só com pesquisadores de uma disci-plina isoladamente. Agora lançamos o que chamamos de inducement prize, um prêmio para quem consiga inovações na área do envelhecimento, um desafio da sociedade. Essa é uma questão médica? Uma questão de química? Não, é tudo: sociológica, antropológica, médica. O ponto é como juntamos todas as disci-plinas para resolver o problema, como é que pomos essa gente toda a falar uns com os outros.

Numa palestra realizada recentemente, o senhor falou da dificuldade da Eu-ropa em transformar o conhecimento que produz em inovação, e como esse conhecimento acaba sendo apropria-do e desenvolvido por países de outras regiões. Como enfrentar o problema?Acontece que, no fundo, a ciência bási-ca é apenas um ingrediente. Ao mesmo tempo, inovação não depende só do in-vestimento em inovação. Ela depende de uma série de condições do ecossis-tema regulatório. Isso tem a ver com as políticas públicas que permitem ou não que o investidor privado tenha confian-ça. Quais são as leis do trabalho? Qual é o sistema de Justiça? Como é que va-mos conseguir atuar sem ter medo do

futuro? O conceito de inovação aberta tem a ver também com essa parte, que é como nós olhamos para a regulação. Se regular demais, não dou incentivos à criação de novas indústrias ou de no-vos produtos. A ideia é conseguirmos ter uma regulação mais inteligente, re-formas estruturais que aumentem a fle-xibilidade do mercado de trabalho e a capacidade de o sistema de Justiça ser rápido. Por exemplo, uma reforma sim-ples: se criarmos em um país um sistema de liquidação de empresas de maneira que seja fácil acabar com uma empresa e começar outra, estaremos dando um incentivo enorme à inovação. E não é só uma medida de inovação. É uma medida do quadro legal. Estaremos a dizer: não há problema em fracassar. E não vai fi-car 10 anos liquidando a empresa porque tudo é complicado. Isso tem a ver com inovação aberta, que procura envolver mais atores no processo de inovação, de pesquisadores aos empreendedores, aos usuários da inovação, à sociedade civil e aos governos. Nós precisamos disso para capitalizar os resultados da pesquisa e da inovação da Europa.

O senhor abordou o conceito de ciência aberta, em que os pesquisadores cola-boram intensamente aproveitando o potencial de recursos digitais. E uma de suas iniciativas como comissário de Pesquisa, Ciência e Inovação é criar uma nuvem para abrigar dados de pes-quisa e facilitar colaborações entre pes-

quisadores. Como será esse trabalho em nuvem?Essa é uma ideia em que estamos trabalhando: a European Science Cloud. Não tem propriamente a ver com ser europeia, mas em como desenvolver tecnologias para a cons-trução de uma nuvem em que os cientistas possam, por um lado, utilizar es-sa nuvem, mas também terem serviços. É um bo-cadinho uma reflexão eu-ropeia de como podíamos ter um cloud europeu pa-ra a ciência, com normas para a gestão e qualida-de de dados científicos. Queremos construir uma nuvem europeia para os

pesquisadores terem um lugar seguro, um lugar em que eles possam, por exem-plo, ter serviços de mineração de dados, entre outros. Vamos lançar um edital nesse sentido.

Outra iniciativa em gestação é a cria-ção de um código de boas práticas cien-tíficas da Europa. Quais são as ambi-ções do código de integridade científica europeu?Estamos construindo um código que vai ser aplicado a todos os pesquisado-res que entrem no Horizonte 2020. Es-pero que outras instituições na Europa possam aproveitar o código para ele se tornar realmente europeu. Como o Ho-rizonte 2020 representa uma grande fa-tia de investimento para pesquisadores europeus, estamos dizendo: quem quiser participar do programa tem que respei-tar as regras de integridade. E para isso é preciso que haja realmente um código. No mundo da ciência aberta, no mundo em que os dados são acessíveis, temos que ter um cuidado ainda maior com a integridade, pois os filtros são muito menores. Temos que ter uma responsa-bilidade individual superior. E essa res-ponsabilidade individual pode começar por um código, mas depois passa pela pessoa. E, claro, pela instituição. Esse é um ponto que estamos discutindo na Europa. Muitas vezes a instituição apon-ta o pesquisador como responsável por sua própria integridade. E nós achamos que a instituição também é responsável

Sírios e iraquianos chegando à ilha na Grécia: União Europeia procura pesquisadores entre refugiados

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PESQUISA FAPESP 238 | 31

pela integridade do pesquisador. Isso precisa ser acentuado. Dentro de quatro ou cinco meses deveremos ter esse có-digo. A ciência do futuro está assentada na qualidade e na quantidade de dados disponíveis. O Big Data será parte es-sencial desse novo jogo. Definimos uma política agressiva na Europa para acesso aberto e integridade científica porque queremos integridade para podermos estar abertos.

O senhor se referiu a quatro grandes te-mas, que são segurança alimentar, água potável, energia e saúde pública, que sofrerão impacto nos próximos anos. Que mudança será essa?É o tema da fusão do mundo físico com o mundo digital. A fusão do digital com o físico vai fa-zer com que esses quatro te-mas sejam completamente transformados. A medicina no futuro vai passar não só pela ciência médica, mas também pela análise de grandes volumes de infor-mação, o Big Data. Ou seja, o médico já não vai conse-guir encontrar as soluções só pela sua disciplina e pelo estudo de medicina. Porque o Big Data, a análise dos da-dos, vai conseguir detectar e dar respostas de uma ma-neira que não está acessível ao médico, porque ele não tem todos os dados. A me-dicina, nesse aspecto, vai sofrer uma grande mudan-ça. Se nós conseguirmos ter dados que acompanhem do princípio ao fim a vi-da do doente, a vida das pessoas, vamos conseguir através de uma meta-análise de dados chegar a conclusões e preve-nir muitas doenças. Vamos conseguir tratar doenças quando elas ainda não são visíveis através dos testes normais. No caso do saneamento, hoje em dia al-guns projetos estão colocando senso-res na água dos esgotos. Com isso, será possível monitorar em tempo real várias questões de saúde pública. No fundo, es-tamos transformando, por meio de uma indústria cujo papel era apenas limpar a água ou limpar os esgotos, em algo im-portante para a medicina, detectando de forma imediata, por exemplo, um vírus que chega a uma cidade.

O senhor acha que isso vai mudar o jeito de fazer pesquisa?Acho que isso muda tudo, porque um pesquisador nunca vai poder estar so-zinho. Terá que estar aberto a outras ciências e pesquisadores. Os cientistas do Big Data, um pesquisador de mana-gement of data, vai ter cada vez maior importância nas equipes de pesquisa. Tudo tem a ver com essa capacidade de analisar os dados. Acho que vamos pas-sar do que hoje é chamado de internet das coisas, como alguém disse, para a era das coisas inteligentes. Como é que as máquinas falam entre elas? Como é que elas tomam decisões baseadas nes-sa informação? A nuvem será uma peça fundamental nesse novo ambiente.

O senhor mencionou também a questão do acesso aberto a trabalhos científicos. Como conciliar o acesso aberto com o atual modelo de negócios das editoras de revistas científicas? Quando passamos de um paradigma no qual quem lê paga para um paradigma em que quem publica paga – porque al-guém tem que pagar –, é preciso ver qual é esse o serviço. Não queremos dizer que as editoras não tenham um valor a acrescentar. Elas têm um valor acres-centado e esse valor deve ser pago. Ele não deve é ser pago pelo leitor.

E quem paga?Pode ser quem publica. Aliás, isso já ocorre com frequência. O que acontece muitas vezes e é injusto para o pesqui-

sador é quando se paga duas vezes. Isso é que não pode ser: quando se paga para publicar e se paga para ler.

Como se pode avançar na diplomacia da ciência? Como a União Europeia está pensando nesse assunto?A ciência é fundamental na criação de um ambiente para criar pontes onde as pontes muitas vezes não são possíveis. É um assunto fundamental para a resolu-ção de tantos problemas que temos, mas é sobretudo a capacidade de nós con-seguirmos ter projetos inclusivos, e ter projetos em que, por um lado, podemos dar sinais aos países que estão realmen-te num processo forte de estabilização e democratização, como é o caso da Tu-

nísia, e dizer que esse país pode participar. Isso é um sinal muito forte de aproxi-mação. Ou então ir à Ucrâ-nia e buscar pesquisadores num país que tem grandes dificuldades que possam vir para Europa. Vi recen-temente um projeto na Jor-dânia, o primeiro acelerador de partículas no Oriente Mé-dio, que conseguiu fazer se sentarem em volta da mesa nacionalidades que de outra maneira não o fariam, como Israel, Palestina, Paquistão, Irã. Eles sentam e falam de ciência. Isso os aproxima. Quando os conflitos são tão duros e difíceis, a única ma-neira de provocar uma apro-ximação é colocar as pessoas

em contato com outros temas que não sejam relativos ao conflito. São pequenos passos. Nós lançamos há pouco tempo no nosso website um projeto chamado Science 4 Refugees, para encontrar re-fugiados que são cientistas e que não sabem quem contatar. E pô-los em con-tato com as universidades, com centros de pesquisa que podem precisar desse tipo de talento.

Encontraram muita gente?Muita gente e também muitas univer-sidades interessadas. Já temos muitas pessoas que se inscreveram como refu-giados e que são cientistas. Estamos fa-lando num nicho, mas tudo pode ajudar num momento tão terrível como o que vivemos na Europa. n

A medicina no futuro vai passar pela análise de grandes volumes de informação, o Big data

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Iniciativas testam soluções para recuperar

a vegetação de áreas degradadas

Bruno de Pierro

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Modos de restaurar as florestas

Política c&t BIoDIVersIDaDe y

raio x pesquisadores fazem o diagnóstico da área devastada para levantar as causas do desmatamento e compreender as características do ecossistema local

à pecuária de corte, a propriedade tinha 17 hectares em situação irregular em 2011. Essas terras deveriam funcionar como áreas de preservação permanente (APPs), protegendo os rios, o solo e a biodiversidade local. O programa de re-cuperação também ajudou a diversificar a produção da fazenda: açaí e madeira serão comercializados em breve.

Casos como esse têm potencial para se multiplicar nos próximos anos. Em maio de 2014, o governo federal regulamen-tou o Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento criado para regularizar e monitorar cerca de 5,6 milhões de pro-

Os primeiros resultados de um projeto de restauração ecoló-gica da fazenda Marupiara, no município de Paragominas, no

Pará, começam a aparecer quatro anos depois de isoladas as áreas degradadas e plantadas as primeiras mudas de es-pécies nativas, como açaí e andiroba. Com emprego de técnicas como o enri-quecimento artificial de florestas, que acrescenta novas espécies à vegetação em crescimento, conseguiu-se recuperar cerca de 60% do território parcialmente destruído pela exploração madeireira realizada nas últimas décadas. Dedicada

priedades rurais. Com a conclusão do cadastro, prevista para 2016, terá início o Programa de Regularização Ambien-tal, que obrigará proprietários rurais a restaurar áreas desmatadas ilegalmen-te no passado. “Isso deverá aumentar a demanda por projetos de restauração de formação natural no país”, diz o biólogo Ricardo Ribeiro Rodrigues, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP).

Um dos principais polos da pecuária na Amazônia, Paragominas encabeçou a lista negra do desmatamento do Mi-

As etapas do processo

32 z dezembrO de 2015

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riência em estudos de restauração flores-tal. “Nossos resultados de pesquisa são oriundos de estudos feitos no âmbito do programa Biota-FAPESP”, diz Ricardo Ribeiro Rodrigues, referindo-se à ini-ciativa lançada em 1999 para mapear a biodiversidade paulista. Rodrigues foi o coordenador do programa entre 2004 e 2009. Um dos resultados foi um docu-mento de 2008 que apresenta diretrizes para conservação e restauração da biodi-versidade no estado de São Paulo, tendo como base o conhecimento produzido pelo Biota-FAPESP. O trabalho reco-menda, por exemplo, que os fragmen-tos remanescentes de vegetação nativa sejam considerados em projetos de re-cuperação, enfatizando as matas ciliares – a vegetação localizada às margens de

nistério do Meio Ambiente entre 2008 e 2010. Após pressões do Ministério Pú-blico, a cidade conseguiu sair da lista com o apoio da organização não gover-namental norte-americana The Nature Conservancy, que ajudou a registrar 80% das propriedades no cadastro ambiental rural do estado do Pará. Fora da lista, o dilema passou a ser outro: como evitar que o município voltasse para o rol dos grandes desmatadores? “A resposta não poderia ser outra: deveríamos adotar téc-nicas modernas capazes de transformar a pecuária praticada na região”, recorda--se Mauro Lucio Costa, dono da fazenda Marupiara e ex-presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Paragominas.

O sindicato pediu ajuda a pesquisa-dores da Esalq-USP, que acumula expe-

coBertura naturalse a capacidade de recuperação for alta, opta-se pela regeneração natural da vegetação, sem necessidade de intervenção

enriqueciMento naturalse espécies de outras áreas chegam naturalmente, trazidas pelo vento ou por animais, apenas monitora-se a região

coBertura artificialse a capacidade de regeneração for baixa, é feito o plantio de mudas e sementes de espécies capazes de atrair a fauna

enriqueciMento artificialse a dispersão não acontece naturalmente, é realizada uma segunda etapa de plantio de mudas ou sementes na área em recuperação

fase 1 0 a 3 anos fase 2 a partir de 3 anos

resistênciaavalia-se, em seguida, a resiliência local, ou seja, o potencial de autorrecuperação da área desmatada

reavaliaçãoapós três anos, os pesquisadores verificam se sementes de espécies nativas de outras áreas estão sendo trazidas à floresta em recuperação

nascentes, rios, córregos, lagos e repre-sas que protege as águas do assoreamen-to causado principalmente pela erosão, além de atuar como núcleo de dispersão de sementes e corredores ecológicos.

Havia um desafio extra: convencer os produtores de Paragominas avessos a mudanças. “O engajamento da maioria só aconteceu quando se viu que os projetos de restauração eram viáveis e poderiam diversificar a produção, gerando lucro”, diz Costa. Na fazenda Marupiara foram plantadas 12 espécies nativas em áreas de reserva legal, nas quais é permitido o manejo sustentável para o aproveita-mento econômico. Entre elas estão o ipê, o freijó, o jatobá, plantas medicinais e também madeireiras, como a andiroba. Também foi realizado um trabalho de

Pesquisa faPesP 238 z 33

fonte: esalq-usp

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34 z dezembrO de 2015

melhoramento das áreas de pastagem, que abrigam cerca de 2 mil cabeças de gado. O pasto foi melhorado e adensa-do nos terrenos mais planos e férteis. Com isso, foi possível colocar mais bois em menos espaço. Enquanto em 2003 a propriedade registrou 0,9 cabeça de gado por hectare, em 2015 a taxa subiu para 3 cabeças por hectare.

Atualmente, Ricardo Rodrigues co-manda um projeto de restauração de florestas ciliares, florestas nativas de pro-dução econômica e fragmentos flores-tais degradados. O objetivo é simular e compreender os efeitos da aplicação do novo Código Florestal. O estudo quer, por exemplo, identificar o potencial de utilização e comercialização de produtos madeireiros e não madeireiros de espé-cies nativas e desenvolver métodos de baixo custo para a restauração. Parale-lamente aos estudos acadêmicos, grupos de pesquisa, como o da Esalq, também se esforçam para testar na prática diversas técnicas disponíveis. Parte do que vem sendo feito no país está reunida no livro Restauração florestal, organizado por Rodrigues junto com Sergius Gandolfi e Pedro Brancalion, também professo-res da Esalq-USP. O livro foi lançado na 6ª edição do Simpósio de Restauração Ecológica realizado entre os dias 9 e 13 de novembro em São Paulo.

A obra atualiza o referencial teórico elaborado em 2010 para dar suporte téc-nico ao Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, esforço que reúne 350 insti-tuições públicas e privadas, empresas, órgãos de governos e proprietários. A meta é restaurar 15 milhões de hectares de Mata Atlântica até 2050. “Muitas ini-ciativas não tinham garantias de sucesso, em função de os projetos estarem sendo implementados de maneira equivocada”, diz Ricardo Rodrigues.

A recuperação florestal em fazendas do interior paulista é uma das iniciativas realizadas no âmbito do Pacto. Em 2012, foram selecionadas três fazendas em Itu, nas quais têm sido feitas ações de restau-ração voltadas para a compensação am-biental. Funciona assim: o proprietário de uma plantação de cana-de-açúcar que não tenha áreas nas quais possa fazer re-cuperação florestal em reserva legal pode, por exemplo, investir em áreas naturais remanescentes localizadas em outra pro-priedade. “Também estamos colocando à venda terrenos de 10 mil metros qua-drados em parte das fazendas. Metade da área é de vegetação nativa restaura-da. O objetivo é formar um corredor de florestas em meio às construções”, diz a empresária e socióloga Neca Setubal, proprietária de duas fazendas na região.

O atual Código Florestal permite a exploração controlada de APPs em pe-quenas propriedades, desde que sejam utilizadas espécies da região. Já em áreas em que é permitido o manejo sustentá-vel, a lei autoriza o plantio de até 50% de espécies exóticas, como o eucalipto, em meio às nativas. No estado de São Paulo, a primeira resolução editada pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente indicava 247 espécies de árvores para serem usadas em projetos de restaura-ção. O Instituto de Botânica, entidade responsável pela catalogação, anunciou recentemente a lista revisada e amplia-da para 2.315 espécies, incluindo não só árvores, mas também samambaias,

com pecuária intensiva, foi possível liberar mais espaço para a restauração florestal em áreas degradadas há décadas em paragominas, no pará

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arbustos, lianas, ervas, entre outros. “A floresta não é feita apenas de árvores. O sucesso da restauração depende da biodiversidade envolvida e da variabili-dade genética”, diz Luiz Mauro Barbosa, diretor do instituto. Em 2001, a maioria das áreas de recuperação utilizava no máximo 30 espécies, quase sempre as mesmas. E os viveiros concentravam a produção em poucos tipos de árvores. Atualmente, há no estado 207 viveiros responsáveis pela produção anual de cerca de 40 milhões de mudas de 800 espécies arbóreas.

A ampliação da lista de espécies será estratégica para o Progra-ma Nascentes, iniciativa de con-

servação de rios a partir da restauração florestal lançada pelo governo do estado de São Paulo em 2015. O objetivo é pro-teger 6 mil quilômetros de cursos d’água e restaurar cerca de 20 mil hectares de matas ciliares. Três plantios já foram realizados nas cidades de Joanópolis, Piracaia e Jacareí, utilizando mais de 270 mil mudas. A organização não governa-mental Iniciativa Verde, que participará de projetos do programa paulista, é uma das entidades que já atuam na região do sistema Cantareira, que abastece parte da capital paulista e outras cidades. A participação da ONG se dá pelo Progra-ma Produtor de Água, da Agência Nacio-nal de Águas (ANA), por meio do edital Iniciativa BNDES Mata Atlântica. “Em três anos, conseguimos perceber que o plantio de mudas melhorou a qualidade da água”, diz Pedro Barral de Sá, diretor florestal da Iniciativa Verde.

O município de Machadinho, no Rio Grande do Sul, também desenvolve há três anos um programa para aumentar a qualidade e a produção da água por meio da proteção de nascentes. Parte da ini-

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Pesquisa faPesP 238 z 35

ciativa consiste em associar a produção de erva-mate com florestas em nascentes de rios e córregos. O projeto mobiliza di-versos atores, entre eles a prefeitura da cidade e a Embrapa Florestas. “São mais de 50 propriedades envolvidas. Já con-seguimos recuperar algumas nascentes e o caso se tornou uma referência para a proteção de nascentes e restauração ecológica, inclusive com a capacitação de técnicos”, diz Emiliano Santarosa, analista da Embrapa Florestas, respon-sável por ações de transferência de tec-nologia na região.

Outro método de recuperação im-plementado pela Embrapa é o sistema agrossilvipastoril, que integra lavoura, pecuária e florestas e é capaz de aumen-tar a produtividade no campo sem ne-cessidade de expansão da área agrícola sobre a mata virgem. A Embrapa desen-volve projetos desse tipo principalmente com pecuaristas de leite ou de corte, que plantam árvores no pasto. O sombrea-mento parcial oferece conforto aos ani-mais e, quando bem planejado, resulta em ganhos de produtividade de leite, por exemplo. No Paraná, há mais de 40

propriedades que são referência no uso desse sistema em trabalhos realizados pela Embrapa em parceria com o Insti-tuto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Paraná.

em São Paulo, experiências que in-tegram plantio de cana-de-açúcar com preservação de mata nativa

indicam uma via para que a produção de bioenergia e florestas convivam no mesmo espaço. Um estudo feito em 2012 por pesquisadores brasileiros e norte--americanos mostrou que a mata nativa tem capacidade de armazenar 18 vezes mais carbono do que a cana. Já em um le-vantamento mais recente, pesquisadores da USP junto com colegas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostraram que o estado de São Paulo tem um déficit de 800 mil hectares de florestas que deveriam ser recuperadas. “Uma saída é fazer o plantio da cana no entorno de florestas, ou vice-versa”, su-gere Marcos Buckeridge, um dos autores da pesquisa e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) do Bioetanol. “Em restauração florestal,

riacho protegido pela mata ciliar em lucas do

rio Verde, em Mato grosso, e outro

desprotegido em piracicaba, no interior

paulista: vegetação impede assoreamento

dos cursos d’água

as dificuldades são no sentido de fazer as experiências ganharem escala”, observa.

Ricardo Rodrigues, da Esalq-USP, con-corda com esse diagnóstico. “Os projetos colocados em prática no país até agora ainda são muito pontuais”, avalia. A am-pliação das iniciativas, afirma Rodrigues, depende de estratégias para reduzir os custos dos projetos de restauração flo-restal e permitir ganhos econômicos. Em Itu, por exemplo, a recomposição florestal nas três fazendas custou cerca de R$ 20 mil por hectare. Em função do elevado grau de degradação foi necessá-rio fazer o plantio total de sementes ou mudas. “São projetos caros, que precisam ser barateados com uso do conhecimento científico”, diz Rodrigues. n

projetorestauração ecológica de florestas ciliares, de florestas nativas de produção econômica e de fragmentos flores-tais degradados (em app e rl), com base na ecologia de restauração de ecossistemas de referência, visando testar cientificamente os preceitos do novo código flo-restal Brasileiro (nº 2013/50718-5); Modalidade auxílio à pesquisa – programa Biota – projeto temático; Pesqui-sador responsável ricardo ribeiro rodrigues (esalq-usp); Investimento r$ 1.115.645,02.

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36 z dezembro de 2015

Instituições brasileiras começam a adotar o

identificador Orcid, assinatura digital global

para autores científicos e acadêmicos

BIBlIOmetrIa y

Nos próximos meses, os 3,5 mil docentes da Universidade Es­tadual Paulista (Unesp) serão convocados a se cadastrar no

Orcid (sigla para Open Researcher and Contributor ID) e passarão a ter um nú­mero de identificação que servirá como uma assinatura digital no ambiente cien­tífico global, sem risco de confusão com homônimos. Quando forem submeter um artigo a uma revista científica, por exemplo, precisarão apenas informar sua sequência particular de 16 números, como a de um cartão de crédito, para que suas informações, tais como nome, assinatura padronizada e afiliação, sejam preenchidas no formulário.

Essa é um das utilidades mais palpá­veis do registro, mas suas aplicações são mais amplas. Cada usuário pode, se qui­ser, construir um perfil reunindo sua produção acadêmica, numa espécie de currículo acadêmico certificado. Seus novos papers serão automaticamente recuperados, pois o número de iden­

tificação único se conecta com bancos de dados de revistas científicas e repo­sitórios de instituições que se afiliaram ao sistema. A produção científica pre­gressa também pode ser resgatada. O usuário pode intercambiar dados entre perfis acadêmicos e profissionais, tais co­mo o ResearcherID, da empresa Thom­son Reuters, o Scopus e o Mendeley, da editora Elsevier, ou o LinkedIn. Dessa forma, um currículo com informações certificadas pode se tornar acessível a editores e revisores de revistas cientí­ficas, agências de fomento e programas de avaliação.

O registro de autores é gratuito, mas instituições podem se afiliar à platafor­ma, pagando uma taxa anual para inte­gração de sistemas e suporte. A intenção da Unesp é aperfeiçoar a identificação dos seus afiliados no repositório insti­tucional, que reúne dados sobre 92 mil itens da produção científica de docentes e pesquisadores da instituição. A cons­trução do repositório partiu do zero há

pouco mais de dois anos e buscava aten­der a uma demanda da FAPESP para reu­nir, preservar e dar acesso aberto à pro­dução científica dos pesquisadores das três universidades estaduais paulistas.

Esse esforço, diz Flavia Maria Bastos, coordenadora das bibliotecas da Unesp e do programa de repositório institucional da instituição, exigiu um trabalho minu­cioso de tratamento das informações dis­poníveis em bases de revistas científicas e no currículo Lattes dos docentes para identificar a produção de cada um deles, a despeito de não usarem uma assinatu­ra padronizada em todos os artigos – é comum, principalmente quando o autor tem vários sobrenomes, que assinaturas apareçam com abreviações diferentes. “Agora, quando um docente da Unesp publicar um artigo científico, nosso siste­ma conseguirá recuperar imediatamente os dados sobre esse paper e vinculá­lo à sua produção científica”, diz Flavia. “Com isso, teremos dados de qualidade sobre a produção de cada pesquisador,

Fabrício Marques

RG de pesquisador

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38 z dezembro de 2015

de cada unidade da Unesp e da universi­dade como um todo. Ainda hoje, apesar dos esforços para criar o repositório, te­mos parte da nossa produção oculta por ambiguidade de nomes de pesquisadores e da própria Unesp, cuja sigla às vezes é confundida com a da USP e até da Uni­versidade Paulista, a Unip.”

trabalho de coletaA Unesp é a primeira instituição brasi­leira a se afiliar ao Orcid, mas em breve deverá ter companhia. A Universida­de de São Paulo (USP) também planeja afiliar­se em 2016. Com um repositório criado em 1985 que congrega mais de 700 mil registros da produção intelec­tual de seus pesquisadores, inclusive cópias físicas, a USP pretende, com o cadastro universal, tornar automática a recuperação da produção científica, facilitando o trabalho de coleta. Hoje, a equipe do Sistema Integrado de Biblio­tecas (SIBi) da USP cadastra o nome de cada um dos pesquisadores em bases de dados de publicações científicas pa­ra receber mensagens de alerta quando seus artigos científicos são publicados. O passo seguinte é baixar uma cópia do documento e preservá­lo no repositório. “Queremos usar o Orcid para facilitar o rastreamento e trazer os metadados das várias fontes que se interligam por meio de número de identificação único, como o ResearcherID. Essa ferramenta possi­bilitará que a universidade monitore sua produtividade intelectual por meio dos indicadores”, diz Maria Fazanelli Cresta­

na, coordenadora do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP.

O Orcid é uma organização sem fins lucrativos que reúne registros de 1,78 mi­lhão de pesquisadores, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Cerca de 28 mil brasileiros já se cadastraram. Em maio passado, a organização criou um escritório em São Paulo para ampliar sua presença na América Latina que, além do acordo recente com a Unesp, já obteve afiliações da biblioteca virtual Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal (Redalyc), sediada no México, e do Con­sejo Nacional de Ciencia, Tecnologia e Innovación Tecnológica, órgão de pla­nejamento científico do governo do Peru que quer integrar o Orcid ao currícu­lo dos pesquisadores do país. “Estamos conversando com autoridades brasileiras sobre a possibilidade de integrar ao Or­cid os dados da Plataforma Lattes, que

AmbiguidAde de nomes de pesquisAdores é drAmáticA nA chinA, onde 85% dA populAção compArtilhA pouco mAis de 100 sobrenomes

reúne mais de 4 milhões de currículos de pesquisadores e estudantes brasileiros”, diz Lilian Pessoa, historiadora formada na USP que se tornou representante do Orcid para a América Latina.

A plataforma foi criada nos Estados Unidos em 2011 com a intenção de con­tornar um problema que atrapalha uni­versidades, editoras de publicações cien­tíficas e bibliotecas: a dificuldade de dis­tinguir autores com sobrenomes muito comuns e identificar sua contribuição acadêmica. O peso crescente da China na ciência internacional tornou ainda mais desafiadora a tarefa de identificar a pro­dução de homônimos. Ocorre que 85% da população chinesa compartilha um conjunto de pouco mais de uma centena de sobrenomes. “O Orcid resolve o pro­blema da ambiguidade, pois não há dois pesquisadores com o mesmo número de identificação”, diz Lilian Pessoa. “Se uma pesquisadora muda de sobrenome quando se casa, seu Orcid vai permane­cer o mesmo e ela não terá dificuldades em identificar sua produção”, explica Antonio Álvaro Ranha Neves, professor da Universidade Federal do ABC, entu­siasta da nova plataforma que se regis­trou em 2013 e se tornou embaixador da iniciativa no Brasil. A função, de caráter voluntário, consiste em disseminar seu uso no ambiente acadêmico. “É possível usar o Orcid inclusive para identificação de autores em seus sites pessoais e blogs.”

A ideia de um cadastro individual pa­ra os pesquisadores não é nova. A em­presa Thomson Reuters criou em 2008 o ResearcherID, código que identifica pesquisadores e congrega sua produ­ção científica registrada na base de re­vistas Web of Science (WoS). A editora Elsevier, que mantém a base de revistas Scopus, lançou o similar Scopus Author Identifier, assim como o Google desen­

ORC

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peSQUISa FapeSp 238 z 39

volveu o Google Scholar ID, que captura a produção científica de várias fontes na internet e constrói perfis de pesquisa­dores, oferecendo inclusive indicadores como citações e índice­h. “Essas inicia­tivas tinham uma limitação. No caso do ResearcherID e do Scopus, pertencem a empresas que buscam vender serviços e indicadores e seus resultados são abertos só para assinantes”, diz Neves. “Além dis­so, baseiam­se num conjunto específico de revistas, as indexadas em cada base de dados, e não em toda a produção.”

egreSSoSA vantagem do Orcid sobre os outros sistemas é ter um registro capaz de re­cuperar dados de qualquer fonte que aceite o identificador como referência, incluindo os bancos de dados de revistas indexadas, repositórios institucionais, bancos de teses e até perfis de redes so­ciais acadêmicas. A plataforma foi cria­da com o apoio de editoras científicas, como as do grupo Nature, interessadas em melhorar o fluxo e fidedignidade dos metadados (dados sobre os dados) de ar­tigos científicos e facilitar o trabalho dos editores e revisores na avaliação de ma­nuscritos. Várias universidades se junta­ram à iniciativa, como Harvard e o Ins­tituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos. “A Boston University adotou o Orcid não só para seus professores e pesquisadores, mas até mesmo para alunos de graduação. Com isso, busca avaliar a produção dos egressos e acompanhá­los em sua traje­tória profissional”, diz Antonio Neves.

Em países como Portugal e Itália, o Orcid foi adotado por órgãos de gover­nos para identificar a produção dos pes­quisadores. O recurso ganha adeptos no Reino Unido, onde o Higher Education Funding Council for England (Hefce), um dos órgãos responsáveis pela cara e minuciosa avaliação das universidades que acontece a cada cinco anos, passou a encorajar pesquisadores a criarem seus registros e tornarem mais visível sua pro­dução. Instituições de fomento, como os Institutos Nacionais de Saúde, dos Estados Unidos, e o Welcome Trust, do Reino Unido, introduziram o registro em seus sistemas de avaliação e passaram a exigir o número de identificação dos pesquisadores que apresentam pedidos de financiamento.

Para Abel Packer, coordenador da bi­blioteca digital brasileira SciELO, que reúne 280 revistas em regime de aces­so aberto, a adoção do Orcid é uma ten­dência irreversível, mas a velocidade com que isso acontece ainda é lenta. “O crescimento tem sido constante, mas não foi o boom que se esperava”, afirma. O formulário de submissão de manuscritos de mais de uma centena de revistas do SciELO tem um campo opcional para a

A consolidAção do orcid é lentA, segundo Abel pAcker, porque muitos pesquisAdores preferem divulgAr suA produção em perfis de redes sociAis científ icAs

inclusão do Orcid. “Mas apenas 5% dos autores informam seus dados, propor­ção que se repete em revistas de outros países”, afirma. O ideal, diz Packer, é que revistas científicas e agências de fomento tornassem obrigatória a inclusão do re­gistro. “O Orcid só se tornará consenso, como o sistema de identificação DOI se tornou para identificar artigos científi­cos, se for obrigatório. A grande adesão à Plataforma Lattes se deu quando ela se tornou mandatória para os estudantes de pós­graduação e docentes”, afirma. “Mas muitas revistas científicas resis­tem em exigir o registro porque temem espantar autores.”

A consolidação do Orcid é lenta, na avaliação de Packer, porque muitos au­tores ainda não perceberam a utilidade no uso do registro assim como as univer­sidades, editoras e agências. “Um gran­de contingente de pesquisadores man­tém perfis em redes sociais científicas, como o ResearchGate, a Academia.edu e o Mendeley, onde reúnem e tornam públicos seus trabalhos científicos. Pa­ra muitos deles, inscrever­se no Orcid é apenas uma tarefa a mais para atingir o mesmo objetivo”, diz.

Para Packer, um passo fundamental para disseminar o Orcid no Brasil é in­tegrá­lo à Plataforma Lattes. “Para os pesquisadores brasileiros, seria bastante útil se a informação que eles já registra­ram no currículo Lattes fosse recuperada de forma automática pelo Orcid”, afirma o coordenador do SciELO, para quem o Lattes precisa urgentemente se rein­ventar. “A plataforma brasileira precisa de uma inovação radical para não ficar para trás. Desenvolveu­se como uma base de currículos única e exemplar no mundo, mas nos últimos anos deveria ter se tornado uma rede social por meio da qual os pesquisadores pudessem fa­zer networking e trabalhar em redes, a exemplo do que aconteceu com Mende­ley ou ResearchGate. A perda de espaço do Lattes e as barreiras que se impõem ao acesso e intercâmbio de dados é algo trágico e revela a dificuldade do Brasil em inovar”, afirma. n

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estudo sugere que disciplinas com alta

presença feminina não garantem às pesquisadoras

vantagem para chegar ao topo da carreira

recursos humanos y

as chances das

mulheres que têm um bom desempenho na graduação em algumas engenharias se direcionem à carreira acadêmica en-quanto homens na mesma condição se direcionem para o mercado de trabalho corporativo, mais aberto a eles. Isso pode-ria, ao menos em tese, contribuir para que o ambiente de trabalho acadêmico tenha certo ‘clima’. Com essa primeira etapa da pesquisa verificamos, porém, que a car-reira acadêmica não é necessariamente menos competitiva ou mais amigável às mulheres”, diz Ana Maria F. Almeida, que também é coordenadora-adjunta de Ciências Sociais e Humanas da FAPESP. “Como isso se observa em certas áreas mas não em outras, há necessidade de estudos específicos mais aprofundados.”

Outra dimensão que será investigada é o efeito da origem social dos pesquisado-res na velocidade da ascensão na carrei-ra. Segundo as autoras, é razoável supor que um docente oriundo de um ambiente próximo do ambiente universitário – fi-lho de professores do ensino superior, por exemplo – esteja mais familiarizado com as regras do universo acadêmico e

Um artigo publicado na re-vista Dados sugere que de-sigualdades de gênero têm efeitos mais complexos na carreira acadêmica no Brasil

do que a literatura sobre o assunto costu-ma contemplar. Assinado pela socióloga Marília Moschkovich e por sua orienta-dora, a professora Ana Maria Fonseca de Almeida, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o trabalho analisou dados so-bre a trajetória de professores e profes-soras da Unicamp e fez alguns achados surpreendentes. Um deles é que o fato de as mulheres serem maioria em deter-minadas áreas do conhecimento não ne-cessariamente as ajuda a alcançar o topo. O estudo analisou as chances de homens e mulheres chegarem ao nível mais alto da carreira docente da Unicamp em ca-da uma das 27 unidades da instituição. Constatou-se que professores do sexo feminino têm menos chance que os do sexo masculino de alcançar o topo nos cursos de Linguística, Educação e Me-dicina, nos quais as mulheres são maio-

ria no corpo docente. Ao mesmo tempo, professoras têm possibilidade maior de chegar ao cume nos cursos de Engenha-ria Mecânica e Agrícola, nos quais, pa-radoxalmente, elas são franca minoria.

“Os padrões de desigualdade variaram nas diferentes disciplinas, sugerindo que outros fatores também podem ter influên-cia sobre a carreira dos docentes segundo seu gênero”, diz Marília Moschkovich. A próxima fase da pesquisa, que se debru-çará sobre os dados de mais três univer-sidades públicas, ainda não definidas, vai comparar outros aspectos da carreira, como o padrão de publicação e a relação da área com o mercado de trabalho não acadêmico, por exemplo, para verificar se isso influencia a trajetória docente de modo peculiar em cada disciplina. “A car-reira acadêmica talvez não desempenhe o mesmo ‘papel’ no mercado de trabalho em geral de cada área. Há estudos docu-mentando como o mercado de trabalho corporativo para engenheiros, que têm sa-lários maiores do que a carreira acadêmi-ca na área, por exemplo, impõe diversas barreiras às mulheres. É possível que as

mulheresna universidade

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analisar o que acontece num ambiente em que essa variável praticamente não tem peso, pois os salários de homens e mulheres em posições iguais da carreira são idênticos e definidos por lei, e as re-gras de promoção são aplicadas a todos igualmente, sendo definidas em colegia-dos compostos pelos próprios docentes. Por fim, observam as autoras, a desigual-dade econômica na sociedade brasileira permite às docentes contar com empre-gadas domésticas para ajudar em tare-fas socialmente atribuídas às mulheres, como os cuidados com os filhos e com a casa, algo que não se vê tanto em países desenvolvidos. “Trata-se de uma carreira que pode, pelo menos hipoteticamente, oferecer condições mais favoráveis para superar a desvantagem feminina em rela-ção a outros contextos”, diz Moschkovich.

A pesquisa debruçou-se sobre três perguntas específicas. A primeira ava-liou as chances dos docentes de cada sexo chegarem ao posto mais alto da car-reira e a cargos de gestão na Unicamp. A segunda foi a velocidade com que os docentes de cada sexo chegam ao topo. E a terceira foi se tanto as chances de ascensão quanto a velocidade com que isso acontece variam de acordo com a proporção de mulheres em cada faculda-de ou instituto, já que em algumas áreas, como Dança e Letras, as mulheres são maioria esmagadora e em outras, como Engenharia Elétrica, elas mal chegam a 10% dos docentes (ver quadro).

A principal constatação é que as mu-lheres sofrem desvantagem. Nos três ní-veis da carreira, a proporção de mulheres é inferior à de homens, mas a desvan-tagem é superior no nível mais alto, o MS6, com 73,8% de homens para 26,2% de mulheres. Já em relação às chances de alçar a cargos administrativos, os homens estão em vantagem quando os cargos são de direção da unidade e coordenação de pós-graduação, enquanto as mulheres têm mais possibilidades de se tornarem coordenadoras de graduação. Nunca uma mulher assumiu a reitoria da Unicamp. “Isso mostra o quanto as professoras têm mais dificuldade de ocupar cargos que acumulam maior poder universitário”, afirma Ana Maria F. Almeida. Um de-senvolvimento recente envolveu as cin-co pró-reitorias: três delas são ocupadas hoje por docentes do sexo feminino.

Para calcular a velocidade de ascensão, as autoras utilizaram como referência o

consiga se afirmar mais rapidamente en-tre seus pares do que outro com pouca experiência com o mundo acadêmico, que custaria um pouco mais a compreen-der o que é preciso fazer para se impor e galgar etapas da carreira. “Essa com-petência para lidar com a carreira pode ser adquirida durante a pós-graduação ou até antes, na própria graduação, mas os códigos necessários para compreen-der as exigências da carreira nem sem-pre são disponibilizados para todos, o que pode ter influência na ascensão na carreira”, diz Ana Maria F. Almeida. As pesquisadoras pretendem acompanhar jovens professoras e professores para avaliar os desafios que enfrentam no iní-cio da carreira e ver se a situação mudou em relação à dos mais velhos. “A ideia é compreender o que elas e eles precisam fazer para se inserir e ganhar respeito”, diz Moschkovich.

a busca de igualdade de gênero no ambiente acadêmico, além de sua relevância no contexto dos direi-

tos civis, é importante para dinamizar a universidade. “Garantir o acesso de pesquisadores e docentes com origem e experiências diferentes ajuda cada dis-ciplina a diversificar seus problemas e objetos de pesquisa, suas abordagens e modos de trabalho”, diz Ana Maria F. Almeida. Mulheres são maioria entre os novos doutores (51,5% entre os titulados no Brasil em 2008) e também entre os docentes do ensino superior (55%), de acordo com dados do Instituto Nacio-nal de Estudos e Pesquisas Educacio-nais (Inep). Nas universidades públicas brasileiras, a proporção é menor, com 45% de mulheres entre os docentes. Na Unicamp, elas são 35%.

“Há quem diga que essas diferenças são assim mesmo, que resultam da forma tardia com que as mulheres ingressaram na carreira acadêmica e que a realidade está mudando para as gerações mais no-vas, mas a verdade é que não se trata de um problema apenas geracional”, ponde-ra Elizabeth Balbachevsky, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e uma estudiosa da profissão acadêmica. “Existem entraves importantes para a inserção e a ascensão da mulher na carreira acadêmica e há evidências de que esses entraves estão piorando à medida que a carreira fica mais competitiva”, afirma.

Entraves para as mulheres estão piorando à medida que a carreira acadêmica fica mais competitiva, diz Elizabeth Balbachevsky

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As autoras escolheram o universo de docentes da Unicamp porque vislumbra-ram nesse recorte – o de uma universidade pública brasileira – potencial para contri-buir com o debate internacional sobre a relação entre gênero e carreira científi-ca. Ocorre que, nesse contexto, é possível controlar variáveis que estão no centro da discussão de políticas para promover a igualdade em universidades de outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, há um debate em torno da ampliação pa-ra as mulheres do período probatório, de forte dedicação ao trabalho, ao final do qual os pesquisadores são avaliados para só aí gozar de estabilidade. Avalia-se que elas são prejudicadas em relação aos ho-mens por estarem em idade reprodutiva e serem responsáveis por cuidar dos filhos. Na universidade pública brasileira, é pos-sível controlar o impacto da estabilidade para as mulheres, pois elas a conquistam imediatamente após a admissão por con-curso, assim como os homens.

Em outros países, como os da Europa e a Austrália, discute-se como garantir salá-rios equânimes para homens e mulheres num ambiente em que as pesquisadoras têm dificuldade em negociar promoções e remuneração de forma tão eficiente quan-to os homens, sofrendo desvantagens. Na universidade pública do Brasil é possível

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ano mais recente em que docentes no nível mais alto da carreira defenderam o doutorado – e partiram do pressuposto de que todos os outros docentes titula-dos naquele ano ou antes teriam hipo-teticamente chance de atingir o topo. A quantidade de docentes estudados em cada unidade variou, chegando a 79% em Engenharia Agrícola e mais de 50% em dois terços das 27 unidades. O dado mais surpreendente surgiu na avaliação das chances de ascensão na carreira. A proporção dos docentes que alcançaram o nível mais alto, entre os considerados com condição de chegar lá, foi semelhante para homens (55,1%) e mulheres (54,1%) para o conjunto da universidade. Mas oscilou entre as áreas – e nem sempre isso estava relacionado à presença maior ou menor de mulheres. Docentes do se-xo feminino chegam ao nível mais alto com mais rapidez que os do masculino em sete unidades, na mesma velocidade em duas e em 14 os homens chegam ao topo mais rápido.

Para Marília Pinto de Carvalho, pro-fessora da Faculdade de Educação da USP que estuda diferenças de desempe-nho entre meninos e meninas no ensino fundamental, um dos méritos do artigo é mostrar com clareza que a presença de mais mulheres numa carreira não tem relação direta com possibilidades de ascensão. “Em alguns casos, ocorre o contrário. O tipo de dado levantado não permite se aprofundar nas razões, mas mostra um quadro desafiador”, diz. O fato de o estudo restringir-se a uma uni-versidade, diz Marília, é mais um mérito do que uma fraqueza. “Se elas buscas-sem dados mais genéricos, talvez não conseguissem captar esses fenômenos.”

Elizabeth Balbachevsky diz que a ori-ginalidade do trabalho está em mostrar como as culturas de diferentes discipli-nas incidem tanto sobre a incorpora-ção das mulheres no mundo acadêmico quanto na perspectiva de carreira. “Há uma tendência de afirmar que as ciên-cias duras são difíceis para as mulhe-res e as humanidades, mais amigáveis. Os dados mostram que não funciona bem assim”, afirma. “Um dado relevante do trabalho é que ele mostra o nível de competição na carreira acadêmica no Brasil. A competição existe, é notável numa universidade de pesquisa e pode variar de acordo com o perfil da área disciplinar”, afirma. n Fabrício Marques

presença e ascensão desiguais chances de docentes da unicamp dos sexos masculino e feminino chegarem ao nível mais alto da carreira em algumas unidades, em %

mulheres homens

economia 0 22,2

engenharia elétrica 0 63,8

Física 0 40,4

midialogia 0 50

matemática aplicada 12,5 29,4

engenharia civil 33,3 52,9

Filosofia 100 100

computação 33,3 31,6

matemática 40 36,8

engenharia agrícola 50 42,3

engenharia mecânica 60 31,3

Biologia 37,8 59

teoria literária 50 75

engenharia de alimentos 38,5 53,3

odontologia 53,3 71,9

Química 41,2 54,3

ciências sociais 85,7 90

Geociências 50 47,1

história 100 62,5

engenharia Química 60 33,3

educação Física 100 50

Farmácia 100 33,3

estatística 50 12,5

medicina 18,5 30

educação 45,5 55,6

linguística 60 66,7

arquitetura 66,7 0

letras 55,6 0

unicamp 54,1 55,1

de docentes do sexo feminino

de docentes do sexo feminino

de docentes do sexo feminino

de docentes do sexo feminino

unidades com predominância masculina

unidades com predominância feminina

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Prêmios para pesquisadores se

multiplicam no Brasil e no exterior

Reconhecimento y

Trabalho recompensado

A Coordenação de Aperfeiçoa-mento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a empre-sa brasileira de cosméticos Natura lançaram no dia 11

de novembro o Prêmio Capes Natura – Campus de Excelência em Pesquisa para reconhecer os melhores artigos científi-cos sobre sustentabilidade e biodiversi-dade. A cerimônia de premiação será no dia 5 de junho, dia do meio ambiente, e os vencedores receberão R$ 25 mil, além de certificados. O objetivo é estimular a pu-blicação de papers em revistas científicas de alto impacto e valorizar pesquisadores no início da carreira. A iniciativa se so-ma a outros prêmios que homenageiam pesquisadores no país, como o Almirante Álvaro Alberto e o FCW de Arte, Ciên-cia, Cultura e Medicina, patrocinados pela Fundação Conrado Wessel (FCW). “O Brasil ainda tem poucas experiên-

cias desse tipo, quando comparado com países como os Estados Unidos”, afirma Carlos Nobre, presidente da Capes. “Os premiados tornam-se modelos, ajudam a difundir os valores da ciência na socie-dade e inspiram as novas gerações.” No âmbito internacional, tem também sur-gido novos prêmios científicos, alguns deles distribuindo quantias milionárias.

No ambiente científico e tecnológi-co, honrarias têm uma função que não se restringe a prestar homenagens. “O efeito mais importante dos prêmios é sobre a reputação dos pesquisadores”, diz Elizabeth Balbachevsky, do Departa-mento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH--USP). “Um pesquisador premiado ganha respeito entre seus pares e isso o ajuda a obter recursos para pesquisas relevan-tes”, afirma a professora, lembrando que

existem outros mecanismos que rendem reconhecimento, como publicar artigos de alto impacto. Os benefícios do prêmio nem sempre são imediatos: “Ganhar um prêmio não faz alguém subir de pata-mar na carreira de uma hora para outra. Mas contribui para aumentar a notabi-lidade e a credibilidade do pesquisador, alimentando um processo cumulativo e de longo prazo”.

Eventualmente, essas distinções atraem a atenção dos candidatos pelas quan-tias que oferecem. É o caso do Prêmio Breakthrough, que no dia 8 de novembro entregou US$ 3 milhões a cada vencedor nas áreas de Ciências da Vida, Matemáti-ca e Física Fundamental. Criado em 2012, é patrocinado por grandes empresários, como Mark Zuckerberg, do Facebook, e Sergey Brin, do Google. O valor oferecido é quase três vezes superior ao pago pe-lo Nobel, mas os idealizadores afirmam

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cerimônia de entrega do Prêmio Breakthrough de 2015, nos estados Unidos: estrutura lembra a do oscar

O prêmio de Física do Breakthrough foi dividido entre o chinês Yifang Wang, o japonês Atsuto Suzuki e mais 1.380 co-laboradores. Eles fizeram parte de uma ampla pesquisa que chegou a descober-tas sobre a oscilação de neutrinos, partí-culas elementares da matéria. Um mês antes, a pesquisa sobre neutrinos ren-dera o Nobel de Física ao japonês Taka-aki Kajita, da Universidade de Tóquio, e ao canadense Arthur B. McDonald, da Queen’s University.

Uma característica dos novos prêmios internacionais é que boa parte deles en-fatiza aplicações da ciência e desdobra-mentos do conhecimento na solução de problemas da sociedade. Em 2014, por exemplo, os cientistas James Alison, da Universidade do Texas, Estados Uni-dos, e Tasuku Honjo, da Universidade de Kyoto, no Japão, receberam cerca de US$ 1,6 milhão pelo descobrimento de

moléculas com potencial para tratar o câncer. O montante fazia parte do Prê-mio Tang, criado em 2012 pelo empreen-dedor chinês Samuel Yin, conhecido por promover ações filantrópicas. Segundo Yin, o compromisso do prêmio é mais com a pesquisa do que com o pesqui-sador, ou seja, o objetivo é apoiar estu-dos promissores e não necessariamen-te homenagear cientistas pelo trabalho desenvolvido na carreira. “É a maneira que encontrei de contribuir para o de-senvolvimento mundial”, explicou Yin à revista Nature.

Outro prêmio que chama a atenção pelo montante destinado a cada laurea-do (aproximadamente US$ 1,5 milhão) é o Queen Elizabeth Prize for Enginee-ring, criado em 2013 pela Academia Real de Engenharia do Reino Unido com o apoio de patrocinadores privados. Na primeira edição, foram agraciados cin-St

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não querer concorrer com a honraria mais importante da ciência, concedida há 114 anos. “O objetivo é reconhecer o trabalho coletivo na ciência. Hoje a pesquisa é internacional, diversificada e envolve muita gente”, disse o bilioná-rio russo Yuri Milner, outro patrocina-dor do prêmio, durante a cerimônia de entrega aos laureados em um centro da agência espacial norte-americana, Nasa, na Califórnia.

O Nobel seleciona no máximo três pesquisadores por categoria científica.

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co pesquisadores da França, Inglaterra e dos Estados Unidos. Em 2015, apenas um cientista foi premiado, o americano Robert Langer, do Instituto de Tecno-logia de Massachusetts (MIT). Autor de mais de 1.300 artigos científicos na área de bioquímica e nanotecnologia, ele foi um dos primeiros pesquisadores no mundo a utilizar polímeros para con-trolar o transporte de grandes moléculas no organismo humano para o tratamento de doenças mentais e câncer. Na noite de entrega do prêmio, Langer recebeu uma medalha das mãos da rainha Elizabeth.

 

Iniciativas como essas têm despertado críticas. Entrevistado para uma repor-tagem publicada em 2013 pela Natu-

re, Jack Stilgoe, professor de política científica do University College Lon-don, disse que grandes prêmios como o Breakthrough costumam trazer mais benefícios aos patrocinadores, que se promovem como apoiadores da ciência, do que propriamente à pesquisa.

O físico Frank Wilczek, professor do MIT e um dos vencedores do Nobel em 2004, também questionou os “prêmios glamourosos”. Segundo ele, é preciso avaliar se as iniciativas de fato contri-buem para o desenvolvimento científico ou não passam de espetacularização. O comentário de Wilczek repousa no fato de que as cerimônias do Breakthrough, por exemplo, costumam lembrar as do Oscar: têm exibição ao vivo pela televi-são, tapete vermelho e são apresentadas por personalidades de Hollywood, como

o ator Morgan Freeman. Para Carlos No-bre, da Capes, isso não representa neces-sariamente um problema. “Celebridades dos esportes e do entretenimento são as grandes referências hoje, especialmente entre os jovens. Por que não usar esse mesmo modelo para ampliar o alcan-ce da ciência na sociedade?”, pergunta.

Entre as controvérsias, uma pergun-ta inevitável é: qual o impacto real dos prêmios na carreira daqueles que os re-cebem? A resposta pode ser diferente, dependendo do país. Nos Estados Uni-dos, o sistema universitário é altamente competitivo e permite a mobilidade de pesquisadores entre as instituições. Nes-se contexto, um pesquisador que apareça na TV recebendo um prêmio milionário pode ter um poder de barganha maior na hora de obter financiamentos e negociar salários. Já no Brasil e em alguns países europeus, como França e Alemanha, em que o sistema universitário é mais rígido e as condições de trabalho geralmente são estipuladas por níveis de carreira, o peso de um prêmio no currículo do pesquisador é mais simbólico.

“Os premiados tornam-se modelos e ajudam a difundir os valores da ciência”, diz Carlos Nobre

“No Brasil, o docente contratado co-mo servidor público tem estabilidade na carreira, o que contribui para sua fi-xação numa instituição muito cedo”, explica Elizabeth Balbachevsky. Aqui, ela acredita que prêmios científicos têm mais a capacidade de identificar traje-tórias exemplares do que fazer o pes-quisador subir na carreira. “A tradição das premiações brasileiras é homenagear cientistas já consagrados. Isso é uma forma de dizer aos pesquisadores mais novos o que a comunidade científica es-pera deles.”

A cirurgiã e pesquisadora Angelita Habr-Gama, professora da Faculdade de Medicina da USP, conta que depois de receber o Prêmio FCW 2010 na ca-tegoria Medicina passou a ser mais va-lorizada também fora da comunidade científica. “Alunos de graduação e pós--graduação passaram a me ver como um modelo a ser seguido. Fico muito hon-rada com isso”, diz ela. Já a arqueóloga Niède Guidon, fundadora e diretora da Fundação Museu do Homem America-no, destinou parte dos R$ 300 mil que recebeu do Prêmio FCW em 2013 para acelerar a construção das obras do ae-roporto de São Raimundo Nonato, no Piauí, que estavam atrasadas há anos e eram responsabilidade do governo esta-dual. O aeroporto era uma das condições para que o Banco Nacional de Desenvol-vimento Econômico e Social (BNDES) liberasse uma verba para a construção do Museu da Natureza, na cidade vizi-nha de Coronel José Dias. “O maior im-pacto do prêmio foi eu ter conseguido ajudar a comunidade onde trabalho e vivo”, diz Niède.

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A educadora magda Becker Soares, da UFmG, recebeu o Prêmio Almirante Álvaro Alberto em 2015

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Lançado em 2002, o Prêmio FCW é destinado a personalidades ou entidades nos campos da arte, ciência, medicina e cultura. Atualmente, o vencedor de cada uma das categorias recebe R$ 300 mil. Em 13 anos, foram 100 agraciados, es-colhidos por uma comissão formada por representantes de 10 instituições cientí-ficas parceiras da fundação, entre elas a FAPESP, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Aca-demia Brasileira de Ciências (ABC). “A Fundação Conrado Wessel é a instituição que mais premia personalidades científi-cas no Brasil”, explica José Caricati, su-perintendente da FCW. “Patrocinamos outros prêmios. Temos convênios com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico [CNPq], que, junto com a Marinha do Brasil, concede o Prêmio Almirante Álvaro Alberto, e com a Capes, no Grande Prêmio Capes de Tese.”

Considerado a principal honraria da ciência e da tecnologia do país, o Prêmio Almirante Álvaro Alberto

também segue os moldes da FCW e re-conhece todos os anos um pesquisador de renome. Em 2015, a vencedora foi a educadora Magda Becker Soares, da Faculdade de Educação da Universida-de Federal de Minas Gerais (UFMG). No pacote de honrarias do prêmio, que inclui diploma, medalha e R$ 200 mil, Magda ganhou uma viagem para a Ama-zônia. Lá, embarcou em um navio hospi-talar da Marinha, que atende populações ribeirinhas. “Sou aposentada, ganhei o prêmio mais pelo que fiz do que pelo que

eu venha fazer. Mesmo assim, teve um impacto na minha vida, porque nunca havia ido para a Amazônia. Voltei de lá me sentindo mais brasileira”, relata a professora.

Enquanto a maioria dos prêmios cien-tíficos no Brasil reconhece trajetórias de sucesso na ciência, outros buscam condecorar pesquisadores em início de

carreira. É o caso do Prêmio L’Oréal para Mulheres na Ciência, uma parceria entre a multinacional francesa, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a ABC. Além de destacar a atuação de mulheres na pesquisa, o prêmio seleciona projetos, e não trabalhos já concluídos.

“Recebi um telefonema do professor Jacob Palis, presidente da ABC, dizen-do que eu havia vencido na categoria Ciências da Vida. Pensei que fosse tro-te”, conta Alline Cristina de Campos, 33 anos, professora da Faculdade de Medi-cina de Ribeirão Preto da USP e uma das vencedoras do Prêmio L’Oréal 2015. Ao longo de 2016, Alline receberá US$ 20 mil em recursos para serem usados em uma pesquisa sobre o uso de canabinoi-des, como o canabidiol, no tratamento de ansiedade e depressão. Em dezem-bro, outro braço do projeto começa a ser financiado pela FAPESP na modali-dade Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes. “Embora o prêmio esteja em meu nome, toda a minha equipe se-rá beneficiada. O dinheiro será usado para adquirirmos equipamentos, insu-mos e financiar a divulgação de nossos resultados em congressos no Brasil e no exterior”, diz ela. n Bruno de pierro

“O maior impacto do prêmio foi eu ter conseguido ajudar a comunidade onde trabalho e vivo”, diz Niède Guidon

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Alline cristina de campos, uma das vencedoras do Prêmio L’oréal para mulheres na ciência: honraria financiará pesquisa

A arqueóloga niède Guidon doou parte dos R$ 300 mil que

ganhou do Prêmio FcW para as obras de um aeroporto no município de São Raimundo

nonato, no Piauí

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Torneio e conferência na Alemanha promovem

propostas inovadoras de outros países

CooperAção y

Um torneio internacional e uma conferência que reuniu cien-tistas, políticos e empresários nos dias 8 e 9 de novembro

em Berlim indicaram que a Alemanha, um dos maiores produtores de ciência e tecnologia do mundo, está amplian-do seu papel e promovendo trabalhos inovadores de outros países que aju-dem a resolver problemas de alcance global. Organizados pela Falling Walls, fundação criada em 2009 com apoio do Ministério da Educação e Pesquisa da Alemanha, os encontros coincidem com o aniversário da queda do Muro de Berlim para enfatizar a necessidade de derrubar barreiras também no mundo da ciência. A Little Sun, luminária por-tátil movida a energia solar apoiada pela fundação, sugere que essa meta é viável. Criada pelo artista Olafur Eliasson e pelo engenheiro Frederick Ottesen, a lâmpada em forma de girassol foi ado-tada por 200 mil moradores de regiões da África sem acesso a energia elétrica. Outros muros são mais resistentes, como a diferença de gêneros apontada por uma conferencista de Bangladesh como um obstáculo ao desenvolvimento de países pobres.

Os encontros de novembro em Berlim ajudaram a moldar “a futura visão da Europa”, fundamentada na cooperação internacional, ressaltou a ministra de Educação e Pesquisa, Johanna Wanka, na abertura da conferência. Ao dar voz para

pesquisadores criativos, observados por empresários e representantes do gover-no, o torneio e a conferência integravam--se a outras ações de fortalecimento da ciência na Alemanha, complementando os acordos internacionais de cooperação entre as instituições de pesquisa e os incentivos para pesquisadores alemães instalados nos Estados Unidos retor-narem ao país. Com o apoio da chance-ler Angela Merkel, física de formação, o investimento em ciência e inovação tem crescido continuamente, passando de € 9 bilhões (R$ 35 bilhões) em 2005 para cerca de € 14,4 bilhões (R$ 57 bi-lhões) em 2013. O Pacto para Pesquisa e Inovação tem incentivado reformas em universidades, a criação de novos cen-tros de pesquisas e o desenvolvimento de projetos colaborativos com empresas.

“Sou um exemplo da internacionaliza-ção da ciência alemã”, comentou Marcos Lana, agrônomo catarinense que desde 2009 trabalha no Centro de Pesquisa da Paisagem Agrícola, em Müncheberg. Ele colabora com o Centro Brasileiro de Tec-nologia do Etanol (CBTE), de Campinas, e coordena um projeto de agricultura de subsistência em uma região semiárida do interior da Tanzânia.

Lana foi um dos quatro brasileiros en-tre os 100 finalistas que se apresentaram na quinta edição do torneio Falling Walls Lab. Os participantes tinham apenas três minutos para expor seus trabalhos e con-vencer os jurados de que se tratava de algo realmente relevante. A diversidade dos trabalhos expostos foi grande. Um pesquisador de Israel apresentou uma técnica que permite a detecção de risco

Carlos Fioravanti, de Berlim *

Terra de novas ideias

* o jornalista viajou a convite da Falling Walls Foundation

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pesQUisa Fapesp 238 z 49

Fórum durante os intervalos da conferência em Berlim e, ao lado, a queda do Muro, em 1989: inspiração para a ciência

Universidade de Alberta, Canadá; e uma proposta para a produção de hidrogê-nio a partir da reação do alumínio com a água, do Instituto de Tecnologia Tech-nion, de Israel.

No dia seguinte, a Falling Walls Con-ference reuniu cientistas seniores e em-presários para tratar de temas de alcan-ce global. Diante de uma plateia de 700 pessoas, Saskia Sassen, professora de sociologia da Universidade Colúmbia, Estados Unidos, falou das transforma-ções das grandes cidades causadas pelos movimentos migratórios e pela valori-zação dos espaços antes ocupados por moradores pobres em áreas periféricas. Depois, em uma conversa mais informal – os palestrantes detalhavam suas ideias em debates com os interessados em fó-runs realizados durante os intervalos entre as apresentações –, ela levantou esta dúvida: “E se as ondas imigratórias de refugiados não representarem um fenômeno passageiro, mas o início de uma nova história, como resultado da perda de território causada por guer-ras, pelo avanço de plantações ou pela desertificação?”.

Ao subir ao palco, June Andrews, pro-fessora da Universidade de Stirling, In-glaterra, perguntou à plateia: “Quem de vocês quer chegar aos 90 anos?”. Vendo os braços erguidos, ela comentou que meta-de das pessoas com mais de 90 anos tinha demência, problema marcado pelo lento declínio das habilidades físicas e mentais. Ela defendeu a implantação de medidas práticas urgentes para facilitar a vida das pessoas com demência, que, ela resumiu, “se veem em um lugar sem saber que lugar é nem entender o que as pessoas falam”.

O físico Andrea Accomazzo, um dos diretores da Agência Espacial Europeia, comentou que a sonda europeia Rosetta, ao aterrissar em um cometa, em novem-bro de 2015, após uma viagem de 10 anos, pode ter marcado o início de uma nova fase da exploração do espaço. “Um dia talvez precisemos deixar este planeta”, observou. Ele não está inteiramente so-zinho nessas cogitações. No dia anterior, um pesquisador chinês, como um dos fi-nalistas do Falling Walls Lab, havia pro-posto a criação de um ambiente artificial para viver na Lua, obtendo oxigênio por meio de plantas. n

de autismo em bebês de 1 mês por meio da reação a sons; e outro, o protótipo de um filtro de água para favelas da Ín-dia. Alguns trabalhos eram conceituais, como o uso de músculos artificiais ou de nanocompostos para desintoxicação de pessoas viciadas. “Estou procurando financiamento”, disse Joshua Lee, da Universidade de Alberta, Canadá, após apresentar sua técnica de reparo de ge-nes, expressando a dificuldade da maio-ria dos inovadores ali reunidos.

No início da noite foram apresentadas as três melhores ideias inovadoras pro-postas por pesquisadores e estudantes de até 35 anos de 40 países selecionados pelo júri: um aparelho para diagnóstico precoce do risco de nascimento prema-turo durante a gestação, desenvolvido na Escola Politécnica de Zurique, na Suíça; uma técnica para detecção de metásta-ses de câncer de próstata elaborada na Fo

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50 z dezembro de 2015

Ricardo Zorzetto

Exercícios para restaurar o coração

Pesquisadores explicam como treinamento

aeróbico e de resistência muscular reverte

danos decorrentes da insuficiência cardíaca

ciência MEDICINA y

mário Pedro Bernardes é um homem grande e forte. Com 1,90 metro de altura, sempre esteve habituado a executar tarefas que exigiam força física. Foi cinegrafista de uma rede de TV du-rante anos e, nas reportagens, carregava uma

câmera de 7 quilos nos ombros. Mas em 2012, aos 47 anos, ele teve de se aposentar. Mário fez um exame para participar como voluntário saudável de um estudo e descobriu que seu coração não andava bem. Uma infecção por vírus, provavel-mente antiga, havia causado lesões no músculo cardíaco e o órgão já não bombeava mais o sangue como deveria. Ele havia desenvolvido insuficiência cardíaca, um problema complexo que reduz a capacidade do coração de distribuir o sangue pelo corpo e é uma das principais causas de morte no Brasil.

Um infarto ocorrido meses mais tarde deixou Mário inter-nado por uma semana em uma UTI e agravou o quadro. Ao receber alta, foi aposentado por invalidez e seu cardiologista à época recomendou que não fizesse atividade física. Deveria tomar os medicamentos para auxiliar o funcionamento do coração e poderia, no máximo, realizar “caminhadas leves”.

Page 51: Quando a Amazônia seca

Mas nem isso ele conseguia. “Eu andava um quarteirão e tinha de parar para descansar; se eu falasse, cansava antes disso”, contou Mário em uma manhã de novembro deste ano, logo após uma sessão de treino em que pedalou por 40 minutos uma bicicleta ergométrica em um dos laboratórios do Insti-tuto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo (USP).

Mário é um dos quase 150 voluntários que nos últimos anos passaram por um programa de treinamento no InCor desti-nado a avaliar o efeito do exercício físico sobre a saúde de pessoas com insuficiência cardíaca. Dirigido pelo fisiologista Carlos Eduardo Negrão, o programa vem ajudando a demons-trar que, ao lado do uso de medicamentos, a prática regular de exercício físico é fundamental para restaurar a saúde de quem está com o coração doente. “Das pessoas que partici-param do treinamento, a grande maioria melhorou”, conta a pesquisadora Lígia Antunes-Corrêa, integrante do grupo.

Só participa do programa quem se encontra em condição clínica estável, obtida com o auxílio de medicamentos. Os pesquisadores avaliam a capacidade cardiorrespiratória de cada indivíduo e preparam um plano progressivo de treino

até que seja alcançado o nível desejado de exercício físico. A meta é realizar 40 minutos de exercício aeróbico e outros 20 de exercícios de resistência muscular e flexibilidade três vezes na semana. O treinamento dura quatro meses, tempo suficiente para começar a resgatar a qualidade de vida e a capacidade de desempenhar muitas das atividades diárias, como tomar banho sozinho ou fazer uma caminhada até o supermercado, perdidas com a insuficiência cardíaca.

“Depois que fiz o treinamento pela primeira vez, senti mais disposição”, disse Mário, que, agora aos 50 anos, participa de um segundo estudo conduzido pelo grupo de Negrão. Boa parte dessa disposição, porém, desapareceu quando Mário deixou de fazer exercício físico. “O efeito do exercício é per-dido quando o treinamento é descontinuado”, explicou Lígia.

“A prática regular de exercício físico é mandatória para as pessoas com insuficiência cardíaca com controle clínico adequado”, afirma Negrão, diretor da Unidade de Reabilita-ção Cardiovascular e Fisiologia do Exercício do InCor. Desde fins dos anos 1990 ele e sua equipe vêm demonstrando que o exercício ajuda a estabilizar – e muitas vezes a reverter – as

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52 z dezembro de 2015

conduzido pela SBC com 1.263 pacientes atendi-dos em 51 centros do país. Aqui, 30% dos casos são consequência do infarto, 20% da hipertensão arterial não tratada e outros 11% da doença de Chagas, principal causa na região Centro-Oeste do país (ver dados na página 54).

Todas essas situações terminam por lesar o mús-culo cardíaco – em especial, do ventrículo esquer-do, que impulsiona o sangue para todo o corpo – e comprometer a capacidade de bombeamento do coração. Quando o sangue não tem a força neces-sária para penetrar nos órgãos e nos músculos, mecanismos de compensação são imediatamente acionados. Os rins liberam no sangue a proteína renina, que dispara uma sequência de reações químicas que acabam gerando o fragmento de proteína (peptídeo) angiotensina II. Esse peptídeo causa a retenção de líquidos no corpo e reduz o calibre dos vasos sanguíneos. Ao mesmo tempo, estimula o sistema nervoso simpático a enviar co-mandos que fazem aumentar a força de contração e a frequência de batimentos do coração, além de reduzir ainda mais o calibre dos vasos nos órgãos menos vitais. É um mecanismo adaptativo, que ajuda a restabelecer o equilíbrio hemodinâmico.

Por algum tempo, esse efeito é bom e até dese-jável porque compensa, em parte, a falta de força do coração. Ele garante o fornecimento de san-gue e nutrientes para os músculos de quem sobe um lance de escadas ou realiza outras atividades diárias. “Mas manter o sistema ativado é custo-so para o organismo, além de deletério”, explica Igor Lucas Gomes-Santos, da equipe do InCor.

Esse esforço provoca alterações anatômicas e funcionais no coração doente. Ele se torna mais esférico e bombeia sangue de modo ainda menos eficiente. Outro problema é a perda acentuada de massa muscular (caquexia). Quase metade das pes-

alterações que a insuficiência cardíaca provoca no organismo, funcionando de modo comple-mentar aos medicamentos.

Nesses quase 20 anos, o trabalho de seu grupo, em paralelo ao de equipes na Europa e nos Esta-dos Unidos, identificou algumas das modificações nos níveis bioquímico, celular e tecidual induzi-das pelo exercício. São alterações que reequili-bram o funcionamento dos sistemas muscular, vascular e endócrino e ajudam a explicar como o exercício físico praticado regularmente melhora o bem-estar de quem tem insuficiência cardíaca.

As evidências acumuladas nesse período levaram o exercício físico a ser incor-porado às estratégias de tratamento da insuficiência cardíaca recomendadas

pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), pelo Colégio Americano de Cardiologia e pelo Colégio Americano de Medicina do Esporte. “Até os anos 1990, havia dúvidas sobre os benefícios dos exercícios e recomendava-se repouso”, con-ta Dirceu Rodrigues de Almeida, presidente do Departamento de Insuficiência Cardíaca da SBC e responsável pela Divisão de Insuficiência Car-díaca e Transplante Cardíaco da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). De lá para cá, muito disso mudou. “Ainda nos anos 1990 co-meçaram a surgir evidências de que o exercício físico aumentava o bem-estar dos pacientes e na década seguinte passou-se a compreender como ele minimizava e, eventualmente, até revertia as alterações causadas pela insuficiência cardíaca.”

Nos Estados Unidos, onde cerca de 3% da po-pulação tem insuficiência cardíaca, a maior par-te dos casos decorre do infarto. No Brasil, onde surgem cerca de 200 mil novos casos por ano, o padrão é um pouco distinto, como mostra estudo im

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fragmentos de músculo de pessoas com insuficiência cardíaca observados ao microscópio: as fibras

musculares (vermelho e preto) de um sedentário apresentam degradação acentuada de proteínas e são mais

finas (à esquerda); quem pratica exercício físico reverte a perda proteica e tem fibras mais espessas

treinadosedentário

Page 53: Quando a Amazônia seca

FontE líGIA ANtuNEs-CorrêA E IGor GoMEs Dos sANtos – INCor-usP

coRaçãofragilizado por uma infecção ou por um infarto, perde parte da sua capacidade de bombear sangue

redução no fluxo sanguíneo

Diminui fluxo de sangue

Diminui fluxo de sangue

ativação do SiStEma nERvoSo Simpático

pUlmõESA atividade exacerbada do sistema nervoso simpático aumenta movimentos respiratórios, mais difíceis por causa da perda de massa muscular

múScUlo ESQUEléticoPrivados de oxigênio e nutrientes, músculos desenvolvem inflamação e degradam proteínas. também estimulam a ativação do sistema nervoso simpático

SiStEma nERvoSoA angiotensina II estimula o sistema nervoso simpático a enviar comandos para aumentar a contração cardíaca e estreitar os vasos sanguíneos

Angiotensina II

Uma doença complexaredução na capacidade do coração de bombear sangue gera alterações nos sistemas muscular, nervoso, endócrino e vascular

RinSCom a redução do fluxo sanguíneo, liberam renina, proteína que leva à produção de angiotensina II

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54 z dezembro de 2015

soas com insuficiência cardíaca emagrece muito porque seus músculos começam a definhar, razão da fraqueza e do cansaço que sentem.

O excesso de angiotensina II na circulação e o sistema nervoso simpático ativado, enviando estimulações contínuas para os vasos sanguíneos se manterem com o calibre reduzido (vasocons-trição), acabam por modificar o suprimento de oxigênio e nutrientes (glicose) para as células musculares. Elas contornam o problema acionan-do uma fonte alternativa de produção de ener-gia. Passam a consumir suas próprias proteínas, numa série de reações químicas que não depen-dem de oxigênio e levam ao acúmulo de ácido lático, o mesmo composto responsável pela dor muscular após um treinamento físico intenso. “Essas pessoas vivem como se estivessem em constante exaustão física”, diz a cardiologista Maria Janieire Alves, da equipe de Negrão. “Al-gumas delas sentem cansaço e falta de ar só de pentear o cabelo”, completa Lígia.

Não é só. Além de usar proteínas para gerar energia, os músculos apresentam outro desequilíbrio, constatou em 2012 a equipe da pesquisadora Patrícia Chakur

Brum, colaboradora de Negrão. Em seu labora-tório na Escola de Educação Física e Esporte da USP, ela e as pesquisadoras Aline Villa Nova Bacu-rau e Telma Cunha analisaram o funcionamento de células musculares esqueléticas de roedores e de seres humanos com insuficiência cardíaca e verificaram que, em ambos os casos, essas células mais degradavam do que sintetizavam proteínas, levando à atrofia muscular. Investigando mais, Patrícia observou um aumento na inflamação e na produção de espécies reativas de oxigênio, moléculas que danificam as proteínas do músculo. Um sistema de controle de qualidade identifica as proteínas defeituosas e as encaminha para uma linha de desmontagem, contribuindo para a perda de massa muscular.

Ainda em 2012, Júlio Cesar Ferreira, ex-aluno de doutorado de Patrícia e hoje professor no Ins-tituto de Ciências Biomédicas da USP, verificou também que havia problemas com o controle de qualidade das proteínas do músculo cardíaco. Analisando células do coração de roedores e de seres humanos operados para substituir as válvu-las cardíacas, ele constatou que as proteínas pro-duzidas por elas eram de pior qualidade e com-prometiam a capacidade de contração do órgão.

Patrícia e duas pesquisadoras orientadas por ela no doutorado – Alessandra Medeiros, da Unifesp na Baixada Santista, e Natale Rolim, da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnolo-gia – demonstraram que o exercício físico aeró-bico reverteu as alterações no funcionamento do músculo cardíaco. Por dois meses, elas colocaram

roedores com insuficiência para correr em uma esteira durante uma hora por dia, cinco vezes na semana. Após o treinamento, houve melhora no controle de qualidade nas proteínas das células do coração, que passaram a se contrair melhor. Já na musculatura esquelética, diminuiu a degradação de proteína. “O exercício melhora o condiciona-mento físico por aprimorar o funcionamento da musculatura cardíaca e esquelética”, diz Patrícia.

A prática regular de exercício físico também desfaz o desequilíbrio provocado pela angioten-sina II nos músculos. Roedores treinados produ-zem em suas células musculares compostos que transformam a angiotensina II em uma molécula menor: a angiotensina 1-7. Essa versão da angio-tensina faz os vasos sanguíneos se dilatarem e reduz o remodelamento cardíaco. “Os efeitos do exercício são complementares aos dos me-dicamentos, que não conseguem, por exemplo, inibir por completo nem de modo duradouro a ação da angiotensina II”, conta Gomes-Santos.

O exercício também restabelece o fluxo san-guíneo nos músculos por reduzir a atividade do

a insuficiência cardíaca no BrasilInfarto é a principal causa nas regiões Nordeste, sudeste e sul, já a hipertensão é a mais comum na Norte e Chagas, na Centro-oeste

n Infarto

n Causa desconhecida (idiopática)

n Hipertensão

n Doença de Chagas

n Danos nas válvulas

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FontE AlbuquErquE, D. C. ArquIVos brAsIlEIros DE CArDIoloGIA. 2015

Page 55: Quando a Amazônia seca

pESQUiSa FapESp 238 z 55

Projetos1. bases celulares e funcionais do exercício físico na doença cardiovas-cular (nº 2010/50048-1); Modalidade Projeto temático; Pesquisador responsável Carlos Eduardo Negrão (InCor-usP); investimento r$ 2.428.870,57 (para todo o projeto).2. Efeitos do treinamento físico aeróbio associado ao treinamento muscular inspiratório na miopatia esquelética em pacientes com insuficiência cardíaca (nº 2013/15651-7); Modalidade bolsas no brasil – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Carlos Eduardo Negrão (InCor-usP); Beneficiária lígia de Moraes Antunes-Corrêa (InCor-usP); investimento r$ 150.763,78. 3. Contribuição das células precursoras miogênicas na miopatia esque-lética induzida pela insuficiência cardíaca: perspectiva terapêutica do treinamento físico aeróbico (nº 2014/23703-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – regular; Pesquisadora responsável Patrícia Chakur brum (EEfE-usP); investimento r$ 369.007,10.

Artigos científicosNEGrÃo, C. E. et al. Effects of exercise training on neurovascular control and skeletal myopathy in systolic heart failure. american Journal of physiology – heart and circulatory physiology. v. 308, p. H792-H802. fev. 2015. AlbuquErquE, D. C. et al. I brazilian registry of heart failure – Cli-nical aspects, care quality and hospitalization outcomes. arquivos Brasileiros de cardiologia. v. 104 (6), p. 433-42. jun. 2015.CuNHA, t. f. et al. Exercise training prevents oxidative stress and ubiquitin-proteasome system overactivity and reverse skeletal muscle atrophy in heart failure. ploS one. 3 ago. 2012.CAMPos, J. C. et al. Exercise training restores cardiac protein quality control in heart failure. ploS one. 27 dez. 2012.GroEHs, r. et al. Exercise training prevents the deterioration in the arterial baroreflex control of sympathetic nerve activity in chronic heart failure patients. american Journal of physiology – heart and circulatory physiology. v. 308 (9), p. H1096-H1102. 1º mai. 2015.

sistema nervoso simpático. Em um estudo com 26 pessoas com insuficiência cardíaca, Lígia com-parou o funcionamento do sistema nervoso sim-pático de 13 que treinaram uma hora por dia três vezes na semana durante quatro meses com o de outras 13 que haviam apenas recebido recomen-dação de manter seus hábitos de vida. Ela cons-tatou que o exercício restaurou o funcionamento de células que detectam movimento (receptores mecânicos) e compostos químicos (receptores químicos) localizadas na musculatura e próximo aos vasos sanguíneos. Esses receptores controlam a ativação do sistema nervoso simpático durante as contrações musculares e estão desregulados na insuficiência cardíaca. Como resultado do treina-mento, o coração das pessoas batia menos acele-rado e a respiração era menos ofegante durante o esforço físico. “O exercício parece normalizar tudo o que está alterado”, avalia Gomes-Santos.

Apesar das evidências favoráveis, o exer-cício físico feito com regularidade ainda está longe de ser parte da vida de quem tem insuficiência cardíaca, segundo

Dirceu de Almeida, da SBC. Três razões contri-buem para isso: muitos médicos ainda desco-nhecem os benefícios do exercício e mandam o paciente repousar; faltam centros de reabilitação cardiovascular nos hospitais brasileiros; e os pa-cientes não têm noção da gravidade da doença.

“Antes de se adotarem os betabloqueadores no tratamento da insuficiência cardíaca, que reduzem a atividade do sistema nervoso simpático, a expec-tativa média de vida era de um ano após o diagnós-tico; hoje, essas pessoas vivem até 10 anos”, conta Maria Janieire. “O desafio é, com o treinamento,

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melhorar a qualidade de vida delas e reduzir as descompensações cardíacas.” Ela acompanhou um grupo de pessoas com insuficiência cardíaca avançada que fizeram atividade física por um ano e depois receberam orientação para se manterem ativas. Só 40% continuaram a fazer exercício. “No grupo que treinou, 10% morreram”, conta. No que não fez exercício físico, a mortalidade foi de 50%. n

Mário bernardes, durante sessão de treinamento no InCor: mais disposição para realizar as atividades diárias

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56 z dezembro de 2015

Forma e tamanho

das mitocôndrias

influenciam o

amadurecimento celular

Biologia y

O destino das células

Não são apenas os genes que definem o destino das células. Nem só o ambiente em que se desenvolvem. Algumas de suas

estruturas internas, sabe-se agora, pare-cem influenciar a função que as células vão desempenhar depois de maduras. Uma dessas estruturas capazes de alterar os rumos das células são as mitocôndrias, organelas responsáveis pela produção de energia. Um grupo de pesquisadores bra-sileiros e norte-americanos coordenado pela médica Alicia Kowaltowski e pela bióloga Maria Fernanda Forni, ambas do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), verificou que a forma e o tamanho das mitocôndrias ajudam a definir o tipo de tecido que as células-tronco adultas podem originar.

Em experimentos realizados em la-boratório, os pesquisadores extraíram da pele de camundongos células-tronco adultas e, por meio de estímulos quími-cos, as induziram a se transformar em células de osso, cartilagem ou gordura. Durante esse processo de amadureci-mento, chamado diferenciação ou espe-cialização celular, eles acompanharam as transformações por que passavam as mitocôndrias. Os resultados, apresenta-dos em dezembro em um artigo na revis-ta Stem Cells, sugerem que a forma e o tamanho das mitocôndrias, ora maiores e bastante alongadas, ora pequenas e ar-redondadas, seriam um dos fatores de-terminantes para a diferenciação celular.

O amadurecimento das células é um processo complexo, e em grande parte ainda desconhecido, em que diversas vias moleculares interagem e muitas vezes se influenciam mutuamente. É por meio de-le que as células adquirem características específicas — as células de gordura, por exemplo, tornam-se especializadas em estocar energia. Para entender um pou-co mais esse evento complicado, Alicia e Maria Fernanda decidiram analisar a dinâmica das mitocôndrias, organelas que atraem a atenção de pesquisadores nos últimos anos por estarem associadas ao desenvolvimento de doenças neu-

Rodrigo de Oliveira Andrade

rodegenerativas, ao diabetes e também ao aumento do apetite e do acúmulo de gordura (ver Pesquisa FAPESP nº 212).

Por muito tempo julgou-se que as mitocôndrias permaneciam estáticas e imutáveis no interior das células. Na últi-ma década, no entanto, estudos diversos mostraram que elas são bastante dinâ-micas. As mitocôndrias podem se fundir umas com as outras e gerar mitocôn-drias maiores e mais alongadas. Podem ainda se dividir e originar mitocôndrias menores e de formato arredondado. Vá-rias proteínas coordenam essa dinâmica mitocondrial. Uma delas, a mitofusina 2, ajuda essas organelas a se unirem e se alongarem. Já a proteína DRP1 é funda-mental para as mitocôndrias se dividirem e originarem organelas menores. Mito-côndrias mais longas produzem pro-porcionalmente mais energia na forma de trifosfato de adenosina (ATP), uma molécula que acumula muita energia em suas ligações químicas. As menores são menos eficientes na produção de ATP.

EspEciAlizAçãONo estudo publicado na Stem Cells, o grupo da USP induziu as células-tronco a se especializarem e avaliou como varia-vam a forma e a função das mitocôndrias e a produção de mitofusina 2 e DRP1. Os pesquisadores também analisaram o metabolismo energético das células ao medir o consumo de oxigênio pelas mitocôndrias. Por meio de um processo chamado respiração celular, essas or-ganelas usam o oxigênio para quebrar moléculas de açúcar (glicose), gerando energia na forma de ATP.

Os pesquisadores observaram que, durante a diferenciação celular, a pro-dução de mitofusina 2 e DRP1 variava de acordo com o destino da célula. “As células que viravam osso e gordura pro-duziam mais mitofusina 2 e tinham mi-tocôndrias alongadas, enquanto as que se transformavam em cartilagem sinteti-zavam mais DRP1 e tinham mitocôndrias menores e arredondadas”, diz Maria Fer-nanda. As células com mitocôndrias mais

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pEsQUisA FApEsp 238 z 57

alongadas respiravam mais — e produ-ziam mais energia — do que aquelas com mitocôndrias esféricas. De acordo com algumas hipóteses, as mitocôndrias mais alongadas produziriam mais energia por-que teriam mais cópias das enzimas en-volvidas no ciclo de Krebs, a sequência de reações químicas que produz ATP.

cAUsA OU cONsEQUÊNciA?Mas ainda restavam dúvidas. Esses resul-tados não permitiam saber se a mudança na forma e no tamanho das mitocôndrias estava direcionando o destino da célula ou se, ao contrário, era a função final da célula que definia a morfologia das mito-côndrias. Para desfazer a dúvida, foram necessários novos experimentos. Ali-cia e Maria Fernanda decidiram, então, restringir a síntese de mitofusina 2 nas células com mitocôndrias alongadas e bloquear a produção de DRP1 nas células em que essas organelas eram pequenas e arredondadas.

Para a surpresa de todos, quando as mitocôndrias pararam de se fundir ou de se dividir, as células perderam a capaci-dade de se diferenciar. “Elas não conse-guiam mais se transformar em células maduras”, diz Alicia. “Isso significa que a alteração na forma das mitocôndrias é es-sencial para a diferenciação das células--tronco”, conclui. Segundo as pesquisa-doras, essa mesma influência deve ocor-rer com outros tipos de célula-tronco.

O grupo agora pretende comparar camundongos submetidos a diferentes tipos de dieta, uma livre, em que os ani-mais podem comer quando e o quanto quiserem, e outra, controlada, para veri-ficar o impacto da alimentação no meta-bolismo mitocondrial e se isso interfere na diferenciação das células-tronco. n

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FONtE Forni, M. F. et al.

projetos1. Bioenergética, transporte iônico, balanço redox e me-tabolismo de dna em mitocôndrias (nº 2010/51906-1); Modalidade auxílio à pesquisa – Temático; Pesquisadora responsável alicia Juliana Kowaltowski (iq-usp); Inves-timento r$ 2.219.960,89.2. efeitos da restrição calórica sobre a morfologia, di-nâmica, bioenergética e estado redox mitocondriais (nº 2013/04871-6); Modalidade Bolsas no país – pós--doutorado; Pesquisadora responsável alicia Juliana Kowaltowski (iq-usp); Bolsista Maria Fernanda perei-ra de araújo demonte Forni (iq-usp); Investimento r$ 244.304,00.

artigo científicoForni, M. F. et al. Murine mesenchymal stem cell com-mitment to differentiation is regulated by mitochondrial dynamics. stem cells. dez. 2015.

Fusão mitocondrial

Fissão mitocondrial

Mitocôndrias

núcleo

célula do tecido adiposo

célula óssea célula de cartilagem

Célula-tronco

Rotas de especializaçãoalterações nas mitocôndrias ajudam a definir o papel das células

as células que se tornam cartilagem têm mitocôndrias menores

e arredondadas (abaixo) por conta da síntese da proteína

drp1

as células que se transformam em osso

e gordura têm mitocôndrias mais alongadas (abaixo)

devido à produção da proteína mitofusina 2

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58 z dezembro de 2015

Brasileiros propõem a

existência de um código que

regula a formação da

parede celular das plantas

Botânica y

receita de celulose

Marcos Pivetta

imagem de microscopia de

fluorescência da parede celular da

cana-de-açúcar: código glicômico determinaria sua

arquitetura

A parede celular das plantas tem um código?” A pergunta, com um quê de retórica, é o título de um artigo publicado em 1º de novembro na re-vista científica Plant Science por uma dupla de botânicos do Instituto de Biociências da Univer-

sidade de São Paulo (IB-USP), o professor Marcos Buckeridge, especialista em fisiologia vegetal, e Eveline Tavares, que faz estágio de pós-doutorado na instituição. Segundo a dupla, a resposta é sim: um código, por eles chamado de glicômico, for-nece as instruções para que a parede – uma camada flexível, geralmente rígida que serve de apoio estrutural e proteção a certos tipos de células – apresente uma dada arquitetura, mais ou menos rígida ou resistente, por exemplo.

Se a genômica estuda os genes e a proteômica trata das pro-teínas, a glicômica analisa o papel dos carboidratos, moléculas orgânicas compostas de carbono, hidrogênio e oxigênio. Esse grupo, também denominado sacarídeos, inclui os açúcares, o amido e a celulose. A parede celular representa entre 50% e 60% da biomassa dos vegetais e é rica em carboidratos com-plexos (os polissacarídeos celulose, hemiceluloses e pectinas), além de proteínas estruturais e lignina, polímero que lhe con-fere rigidez. “A forma com que os monossacarídeos, os carboi-dratos mais simples, se juntam e formam os polissacarídeos, moléculas maiores, presentes na parede celular das plantas não é aleatória”, afirma Buckeridge. “Ela contém informação

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importante sobre como a parede se es-trutura e como pode ser decomposta.”

Um código é um conjunto de regras que estabelece uma correspondência entre dois mundos independentes e for-mados por elementos distintos: o dos signos, da informação básica, e o do sig-nificado, da informação codificada. Um terceiro elemento, os adaptadores, faz a ponte entre os dois mundos e confere um sentido ao código. “O significado de um signo pode ser um processo, uma ação ou até uma estrutura que tenha um papel biológico”, afirma Eveline. Um parale-lo entre o código glicômico e o código mais conhecido da biologia, o genético, pode ser útil para entender a proposta dos pesquisadores da USP.

O DNA é composto por uma sequência de nucleotídeos, que podem ser de qua-tro tipos, as bases nitrogenadas adenina (A), citosina (C), guanina (G) ou timina (T), mais o monossacarídeo desoxirri-bose e um fosfato. Os nucleotídeos são os signos do código. Por meio da ação de enzimas, eles se juntam e ocorre a síntese (adaptador) de uma molécula maior, o próprio DNA. Os genes, que são forma-dos pelos nucleotídeos e se encontram agrupados em longas sequências de DNA (cromossomos), representam o significa-do do código. Cada gene tem uma função biológica distinta e é responsável por produzir uma certa proteína. “Os nucleo-tídeos isolados têm propriedades com-pletamente diferentes das exibidas pela molécula de DNA, ainda que esta seja composta por aqueles”, diz Buckeridge.

A mesma lógica governaria o funcio-namento do código glicômico. Nesse ca-so, os signos seriam os monossacarídeos, as formas mais simples de carboidratos, como a glicose, a frutose e a galactose. Um grupo de enzimas promove a união dessas pequenas moléculas de açúca-res e ocasiona a síntese (adaptador) de moléculas maiores, os polissacarídeos, que funcionam – agora vem o significa-do – como reserva energética (amido) ou componente estrutural da parede celular das plantas.

Há três tipos conhecidos de parede em vegetais. Cada variante é caracteriza-da por uma combinação distinta de três classes de polissacarídeos principais, ce-lulose, pectinas e hemiceluloses. As dis-tintas combinações e quantidades dessas grandes moléculas de carboidratos ge-ram estruturas com arquiteturas particu-

lares e, portanto, diferentes propriedades químicas e mecânicas. “A exemplo da relação entre os nucleotídeos e o DNA, os monossacarídeos são moléculas com propriedades totalmente distintas das dos polissacarídeos presentes na pare-de celular”, diz o botânico. Até hoje, 14 tipos de monossacarídeos foram isolados como blocos constituintes dos polissaca-rídeos que formam a parede de vegetais.

EtAnol dE SEgUndA gErAção A proposta de um código glicômico capaz de regular as características da parede celular das plantas deriva dos trabalhos em bionergia feitos pelo pesquisador nos últimos 20 anos. O botânico da USP, que publicou um primeiro esboço sobre o te-ma em um artigo impresso em 2014 no periódico BioEnergy Research, é um co-nhecido estudioso das possibilidades de obtenção do chamado etanol de segunda geração, biocombustível que seria extraído da quebra da parede celular das plantas, ou seja, do bagaço de cana-de-açúcar, do sabugo de milho ou da própria madeira.

Diferentemente dos açúcares simples – os monossacarídeos – presentes no suco da cana, que estão prontos para fermentar e se transformar em etanol, os polissaca-rídeos do bagaço da cana estão estocados em uma estrutura praticamente inaces-sível. As enzimas encarregadas de fazer a hidrólise, a quebra de polissacarídeos não fermentáveis em monossacarídeos fermentáveis por meio da adição de água, não conseguem penetrar na parede celu-lar e fazer seu trabalho de desconstru-ção. “A teoria sobre o código glicômico é uma proposta muito interessante”, diz o bioquímico Edivaldo Ximenes Ferreira Filho, do laboratório de enzimologia da Universidade de Brasília (UnB). “No ca-so da bionergia, entender melhor como a parede celular de plantas como a cana se forma pode ser útil para aprendermos a desconstruir essa estrutura e produzir etanol de segunda geração.” n

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Informação na forma de carboidrato

o modo de armazenar informação no código glicômico seguiria os mesmos princípios presentes no Dna

as unidades básicas do código seriam os monossacarídeos, as formas mais simples de carboidratos (açúcares). Quatorze tipos distintos de monossacarídeos foram encontrados na parede celular de plantas, como glicose, frutose e galactose

a junção de pelo menos 10 monossacarídeos resulta em moléculas maiores, denominadas polissacarídeos, que funcionam como reserva energética (amido) ou componente estrutural das plantas (celulose, pectinas e hemiceluloses)

há três tipos conhecidos de parede celular nas plantas. cada variante é caracterizada por uma combinação distinta de três polissacarídeos principais, celulose, pectinas e hemiceluloses. a combinação desses elementos gera cada tipo de parede, cuja arquitetura determina funções importantes para a defesa e o desenvolvimento dos vegetais

cada nucleotídeo de Dna é composto por uma das quatro possíveis bases nitrogenadas – adenina (a), citosina (c), guanina (g) ou timina (t) – mais um monossacarídeo (desoxirribose) e um fosfato

todos os trechos de Dna são formados pela união dos quatro tipos distintos de nucleotídeos. os genes são segmentos da molécula de Dna com a informação necessária para fabricar proteínas. os demais trechos da sequência regulam o funcionamento dos genes, entre outras funções estruturais

os genes estão agrupados em longas sequências de Dna, os cromossomos. as espécies vivas costumam ter um número característico de cromossomos. o homem tem, por exemplo, 46 cromossomos (23 pares) e os macacos, 48

projetoUso da abordagem de biologia de sistemas para desen-volver um modelo de funcionamento em plantas (nº 2011/52065-3); Modalidade programa pesquisa em par-ceria para inovação tecnológica (pite) e acordo fapesp--Microsoft research; Pesquisador responsável Marcos Buckeridge (iB-Usp); Investimento r$ 547.964,97.

artigo científicotavares, e. Q. p. e BUckeriDge, M. s. Do plant cell walls have a code? Plant Science. 1º nov. 2015.

Dnacódigo glicômico

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Espécie descoberta primeiro na África e agora

no Brasil viveu durante o auge da diversidade

dos animais precursores dos mamíferos

PALEONTOLOGIA y

A era de ouro dos cinodontes

Igor Zonerkevic Paisagem do Triássico: à beira d'água, o cinodonte

Menadon besairiei com filhotes, seguido por um

bando de Santacruzodon hopsoni. À esquerda, um

Dagasuchus santacruzensis, réptil carnívoro como o

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dezenas de milhões de anos antes de os dinossauros dominarem a Terra, reinava sobre os continentes uma fauna peculiar. Entre esses animais havia um grupo grande e diverso que

guarda uma curiosa semelhança com os mamí-feros atuais. Esses animais primitivos eram os cinodontes, grupo que começou a desenvolver as características que hoje são exclusivas dos mamíferos: sangue quente, pelos sobre o corpo e diferentes tipos de dentes na boca – em latim, cinodonte significa dentes de cão.

Por um longo período, havia em todos os conti-nentes cinodontes carnívoros e herbívoros, como o Menadon besairiei, que vigia seus filhotes na ilustração destas páginas e, agora se sabe, também viveu onde hoje é o Sul do Brasil. Com cerca de 1 metro de comprimento (o tamanho de um ca-chorro grande), o Menadon possivelmente teria a aparência de um descendente do cruzamento impossível de um jacaré com capivara. Era um integrante da linhagem dos traversodontídeos, a

mais diversa dos cinodontes e já extinta. Havia muitas outras linhagens e uma delas, a dos ma-maliamorfos, deu origem aos mamíferos.

Os paleontólogos Tomaz Melo e Marina Soares, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em colaboração com o paleontólogo argentino Fernando Abdala, da Universidade de Witwatersrand, África do Sul, descobriram que o Menadon besairiei, cujo fóssil foi primeiramente encontrado em rochas da Ilha de Madagascar, na costa leste da África, também viveu na mes-ma época, há cerca de 230 milhões de anos, na região que hoje ocupa o interior do Rio Grande do Sul. O Menadon existiu, portanto, em meados do chamado período Triássico, entre 250 milhões e 200 milhões de anos atrás, quando América do Sul, África (Madagascar inclusa) e os demais continentes estavam unidos em um único super-continente, a Pangeia.

O estudo, publicado on-line em setembro no Journal of Vertebrate Paleontology, confirma que traversodontídeos como o Menadon povoaram a

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Pangeia de uma ponta a outra. “A maioria dos fósseis de traversodontídeos foi en-contrada na América do Sul e no sul da África, mas também há registros na Amé-rica do Norte e na Europa”, explica Ma-rina, que orientou Melo em seu mestra-do sobre o Menadon na UFRGS. “Como não havia grandes barreiras geográficas à fauna na Pangeia, os traversodontídeos e outros grupos de animais da época ti-nham essa distribuição cosmopolita.”

dE sAntA cruZ A mAdAgAscArAbdala, considerado um dos principais especialistas em cinodontes no mundo, já havia notado em 2001 uma semelhança entre a fauna fossilizada de uma camada de rochas areníticas que aflora no muni-cípio de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, e a fauna fóssil da camada rochosa de Isalo II, encontrada em Madagascar e descrita por paleontólogos norte-ame-ricanos em 2000. Um dos traversodontí-deos descobertos em Isalo II, o Dadadon isaloi, lembrava muito o Santacruzodon hopsoni, encontrado em Santa Cruz do Sul (ele aparece na ilustração atrás do Menadon nas páginas 60 e 61). Da mesma forma, o Menadon besairiei apresentava semelhanças com o crânio de uma espé-cie encontrada em Santa Cruz, mas que ainda não havia sido identificada.

Coube a Melo esclarecer a questão no seu mestrado, comparando o crânio descrito por Abdala com materiais adi-cionais – mais crânios, pedaços de man-díbula e alguns fragmentos de ossos do corpo – da espécie não identificada, co-letados posteriormente no mesmo lo-cal e preservados por pesquisadores da UFRGS e da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul. “Podia ser uma es-pécie muito próxima, mas ao final da

mentares com essa idade preservadas na América do Sul e na África. “Cada no-vo achado permite reforçar correlações temporais entre as camadas de rocha de diferentes partes do mundo.”

Há lacunas na história do Triássico em todos os continentes. No sul da África, por exemplo, os paleontólogos já identifica-ram rochas sedimentares que se forma-ram a partir de lama ou areia no final e no início do período, mas não há rochas preservadas do meio do período, como acontece na Argentina e no Brasil.

Melo explica que é raro os pesquisado-res conseguirem datar a idade das rochas sedimentares do Triássico de maneira absoluta. Algumas camadas da Argenti-na, por exemplo, foram datadas por meio do decaimento de isótopos radiativos de cinzas vulcânicas. “Mas, em geral, depen-demos da comparação dos fósseis encon-trados em camadas diferentes para saber se possuem a mesma idade”, diz Melo.

Para determinar as idades relativas das camadas de rochas, os pesquisadores usam em geral comparações entre fósseis microscópicos como grãos de pólen e es-poros de pteridófitas, que são abundantes em todas as épocas. “Nosso problema é

Crânio de Menadon besairiei achado no rio Grande do sul: o animal tinha cerca de 1 metro de comprimento e integrava a linhagem dos traversodontídeos

Botucaraitherium belarminoi: cinodonte carnívoro um pouco maior que um rato, dotado de dentes pontiagudos (acima), adaptados a uma dieta à base de insetos

análise não encontramos nenhuma di-ferença entre ela e o Menadon besairiei”, explica Melo, que está na metade de seu doutorado sobre os traversodontídeos, orientado por Marina. “Deve ser a mes-ma espécie de Madagascar.”

A descoberta ajuda a encaixar melhor duas peças do quebra-cabeças geológico que os paleontólogos precisam montar para reconstituir a história da vida no Triássico. “Nem todos locais do mundo têm rochas preservadas de uma mesma idade”, explica Marina. A semelhança entre as faunas fósseis do Rio Grande do Sul e de Madagascar, grande a ponto de compartilharem uma espécie, confirma que as camadas de arenito de Santa Cruz do Sul e de Isalo II devem ter quase a mesma idade, entre 232 milhões e 228 milhões de anos, as únicas rochas sedi-

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Artigo científicoMELO, T. P.; ABDALA, F.; sOArEs, M. B. The Malagasy cynodont Menadon besairiei (Cynodontia; Traversodon-tidae) in the Middle-Upper Triassic of Brazil. Journal of Vertebrate paleontology. No prelo.

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que as rochas do Triássico do Rio Gran-de do Sul se depositaram em margens de rios e planícies de inundação, ambientes bem aerados”, Melo explica. “O oxigênio acabou com o pólen e os esporos. A única maneira de datar as rochas é por meio dos fósseis de vertebrados.”

O grupo de cinodontes que mais se diversificou em meados do Triássico foi o dos traversodontídeos. Diferentes dos demais cinodontes, geralmente carnívo-ros ou onívoros, os traversodontídeos eram herbívoros, com dentes especiali-zados para comer raízes, folhas ou qual-quer outra matéria vegetal disponível no clima quente e semiárido que prevalecia no interior da Pangeia.

cOmpEtIçãO EntrE hErbíVOrOsOs traversodontídeos deviam compe-tir por alimento com os outros grandes herbívoros da época: os dicinodontes, grupo aparentado dos cinodontes, mas sem características de mamíferos; e os rincossauros, que eram répteis. Os gran-des predadores desses herbívoros eram os pseudossúquios, répteis semelhantes a crocodilos gigantes. Um dos pseudos-súquios que viveram no Rio Grande do Sul foi também descoberto em rochas de Santa Cruz do Sul. É o Dagasuchus santacruzensis, descrito por Marcel La-cerda, da UFRGS, e colegas, em um artigo publicado este ano na revista PLoS One.

As camadas de rocha do Triássico mais jovens que as de Santa Cruz do Sul, po-rém, sugerem que todos os traversodon-

tídeos conhecidos foram extintos muito antes de o período acabar. Outras espé-cies de cinodontes, no entanto, persisti-ram até o fim do Triássico, com formas extraordinárias como as do Trucidocy-nodon riograndensis, um cinodonte com caninos protuberantes, que tinha 1,20 metro de comprimento e possivelmente era carnívoro. Encontrado em 2009 em rochas de 220 milhões de anos do muni-cípio de Agudo, também no Rio Grande do Sul, o esqueleto fóssil de Trucidocy-nodon é um dos esqueletos de cinodonte mais completos já descobertos.

Outro grupo interessante de cinodon-tes, encontrado apenas nas rochas do Triássico Superior (entre 230 milhões e 200 milhões de anos) da formação Santa Maria, Rio Grande do Sul, é composto de animais pequenos, com cerca de 10 centímetros de comprimento e dentes serrilhados, úteis para uma dieta à base FO

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O carnívoro Trucidocynodon riograndensis, que chegava a 1,20 metro: um dos mais completos esqueletos de cinodontes já encontrados no país

de insetos. “Não existe outro grupo de cinodontes no mundo que seja tão pare-cido com um mamífero quanto os des-cobertos no Rio Grande do Sul”, afirma Marina. Desses pequenos cinodontes co-nhecidos como mamaliamorfos, a espé-cie mais recentemente descrita por ela e seus colaboradores é o Botucaraitherium belarminoi, encontrado no ano passa-do no município gaúcho de Candelária. “Temos mais três novas espécies sendo analisadas”, conta Marina, que espera descobrir alguma espécie dos primei-ros mamíferos, que surgiram no final do Triássico e devem ter convivido com os cinodontes. “Um dia vamos encontrar.” n

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Grupo do Brasil e da Argentina explica como uma classe de

pulsares evolui até consumir outros objetos celestes

ASTROFÍSICA y

o espaço sideral é um zoológico de espécies curiosas. Dentre elas, uma das mais intrigan-tes é a dos pulsares, objetos

compactos que giram depressa e emitem pulsos regulares de ondas de rádio. Um modelo desenvolvido por pesquisadores do Brasil e da Argentina ajuda a explicar como evoluem algumas das mais exóticas variedades de pulsares, que, como seria apropriado num zoológico, receberam nomes de animais: as aranhas redback e viúva-negra.

Os pulsares fascinam os astrônomos desde a sua descoberta em 1967. Quan-do os astrônomos Jocelyn Bell e Antony Hewish observaram pela primeira vez as emissões pulsadas que deram o nome des-ses objetos, eles as acharam tão intrigan-tes que não descartavam serem transmis-sões de civilizações extraterrestres. Com bom humor, Bell e Hewish batizaram o objeto que descobriram como LGM-1, sigla para little green men ou homenzi-nhos verdes. Mas não tardou para que se descobrisse que os pulsares são uma categoria de estrelas de nêutrons, espécie de cadáver de uma estrela de massa ele-vada que, após esgotar seu combustível nuclear, explode como uma supernova.

Estrelas com massa oito vezes maior que a do Sol, ao explodir, ejetam suas camadas mais exteriores, enquanto seu núcleo sofre tamanha compactação que os elétrons mergulham na direção dos prótons e os convertem em nêutrons –

daí o nome estrela de nêutrons. São ob-jetos muito compactos, em que a massa restante, equivalente à de um a dois sóis, é comprimida numa esfera com 10 a 30 quilômetros de diâmetro. Quando seu poderoso campo magnético está desa-linhado em relação ao eixo de rotação, o feixe de radiação emitido por essas estrelas gira realizando um movimento de precessão. Da Terra, essa radiação é vista de modo intermitente, na forma dos pulsos que caracterizam esses objetos.

Muitos desses pulsares têm estrelas companheiras girando em torno deles. Alguns são acompanhados por uma es-trela cuja massa corresponde de 20% a 40% da massa do Sol e formam sistemas conhecidos como redback, aranha aus-traliana que tem uma listra vermelha no abdômen negro. Já os pulsares acompa-nhados de estrelas menores, com 5% da massa solar, são chamados viúva-negra.

Os sistemas receberam esses nomes porque, neles, a estrela de maior massa e também mais densa – o pulsar – contri-bui para “evaporar” a de menor massa. É algo semelhante ao que ocorre com es-sas aranhas: as fêmeas, bem maiores que os machos, os matam depois da cópula. “Os norte-americanos e os australianos usaram esses apelidos e pegou”, conta o astrofísico Jorge Horvath, do Institu-to de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). “Agora esses sistemas são conhecidos como spiders [aranhas].”

Salvador Nogueira

Estrelas canibais

O trabalho que Horvath desenvolveu com os colegas argentinos Omar Benve-nuto e María Alejandra De Vito, ambos da Universidade Nacional de La Plata, dá um importante passo para compreender a evolução desses sistemas. O modelo do trio mostra que há uma relação evolutiva entre os sistemas redback e viúva-negra.

Em ambos os casos os pulsares con-somem parte da massa de suas compa-nheiras por um mecanismo chamado acréscimo ou acreção. Bem mais den-sos, os pulsares apresentam um intenso campo gravitacional que atrai a massa da estrela companheira. Eles funcionam como um aspirador de pó que suga os pedaços da vizinha que se esfarela. Mas esses sistemas aranhas também podem assumir uma configuração bem mais in-teressante: a órbita de suas estrelas pode evoluir até que a distância entre as duas seja inferior à da Terra à Lua.

Nesses casos, quando a massa da com-panheira se torna muito pequena (5% da massa solar), típica dos sistemas viúva--negra, ela acaba consumida por um se-gundo mecanismo: evaporação. A radia-ção e as partículas emitidas pelo pulsar varrem parte da massa da companheira para longe, como um sopro que afasta a poeira da mesa. “Nas simulações, des-cobrimos que em alguns casos haveria tempo suficiente para o pulsar causar a evaporação total da companheira”, conta Horvath. “Vimos também que, em outros casos, poderia restar, a uma distância

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VIúVA-NEgrA Em AçãoImagem feita pelo

telescópio Chandra do

sistema binário B1957+20,

em que o feixe de

radiação e partículas do

pulsar consome a estrela

companheira (detalhe)

FoNtE jORGe e. hORvATh / IAG-uSp

“Nesses sistemas, a massa dos pulsares aumenta muito, algo importante para compreender a natureza da matéria que os compõe”, explica Horvath.

Na modelagem, Horvath e colegas in-cluíram os efeitos das emissões de radia-ção e partículas do pulsar sobre a evolu-ção do sistema. “A emissão influencia de duas maneiras: ela pode arrancar cama-das de gás da companheira [evaporação] e a matéria atraída para o pulsar gera raios X intensos o suficiente para afetar a es-trutura da companheira”, afirma Marcelo Allen, professor do Instituto Federal de São Paulo, que não participou do estudo.

A compreensão completa de redbacks e viúvas-negras exigirá novos esforços. “Es-tamos longe de uma formulação teórica sa-tisfatória para explicar o comportamento observacional em longas escalas de tempo”, avalia Flavio D'Amico, astrofísico do Ins-tituto Nacional de Pesquisas Espaciais. n

Evolução de um sistema aranhaCom maior massa e mais denso, pulsar contribui para evaporar a estrela companheira

maior do pulsar, um ‘caroço’ com massa equivalente à de um planeta”, diz.

Os pesquisadores detalharam essas trajetórias evolutivas em um artigo no periódico Astrophysical Journal Letters. Nesse trabalho, eles mostraram ainda que o comportamento desses sistemas depende tanto da distância inicial entre o pulsar e a estrela companheira quanto da massa inicial desta. Quando a com-panheira está em uma órbita próxima ao pulsar, que ela completa em menos de um dia terrestre, sua massa é consu-mida por acreção e alguns desses siste-mas evoluem para se tornar os redback. Já se a distância for menor, equivalente a uma órbita de menos de três horas, a estrela companheira é consumida por evaporação, típica dos sistemas viúva--negra. Os pesquisadores viram ainda que, sob certas condições, o primeiro sistema pode se converter no segundo.

projetoMatéria superdensa no universo (nº 2013/26258-4); Modalidade projeto Temático; Pesquisador responsável Manuel Máximo Bastos Malheiro de Oliveira (ITA); Pes-quisadores principais jorge ernesto horvath (IAG-uSp) e joão Braga (Inpe); Investimento R$ 222.701,00.

Artigo científicoBeNveNuTO, O. G., De vITO, M. A. e hORvATh, j. e. understanding the evolution of close binary systems with radio pulsars. Astrophysical Journal Letters. v. 786 (L7). mai. 2014.

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Equipe internacional mede pela primeira vez o aumento da entropia em núcleos de carbono

Físicos brasileiros e europeus de-monstraram, pela primeira vez, que um minúsculo núcleo atômi-co também sofre um fenômeno

comum, bem conhecido dos seres huma-nos: os efeitos irreversíveis da passagem do tempo. Usando equipamentos de um laboratório no Centro Brasileiro de Pes-quisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, eles registraram um aumento irreversível no grau de desordem no interior de um átomo do elemento químico carbono.

Em física, o grau de desordem é me-dido por uma grandeza chamada entro-pia, que quase sempre é crescente nos fenômenos do mundo macroscópico – no máximo ela se mantém estável, mas nun-ca diminui em um sistema dito isolado. Uma das consequências de a entropia sempre aumentar é que, quanto maior a desordem, mais difícil se torna rever-ter um fenômeno perfeitamente. “Não é possível desfazer a mistura entre o café e o leite depois de misturá-los, por exem-plo”, diz o físico Roberto Serra, pesqui-sador da Universidade Federal do ABC (UFABC) e integrante da equipe que fez os experimentos no CBPF.

Isso acontece porque o café e o leite – e tudo o mais no mundo macroscópico – são feitos de quantidades absurdamente elevadas de átomos se movimentando

FÍSICA y

Desordem irreversível no mundo dos átomos

das maneiras as mais variadas possíveis, a maioria delas aleatórias e incontrolá-veis. Ante número tão elevado de com-binações possíveis, até existe a probabi-lidade de os átomos de café se separarem dos de leite, mas ela é próxima a zero. É também por isso que não se veem os pe-daços de um prato que se parte voltarem a se unir espontaneamente.

No dia a dia, os seres humanos asso-ciam a irreversibilidade desses fenôme-nos à passagem do tempo e às noções de passado e futuro. Em condições nor-mais, café e leite só existem separados antes de se misturarem e um prato per-feitamente íntegro só existe antes de se quebrar. A noção de irreversibilidade levou o astrônomo e matemático inglês Arthur Eddington a afirmar em 1928, no livro A natureza do mundo físico, que a única seta do tempo conhecida pela fí-sica era o aumento da entropia no Uni-verso, determinado pela segunda lei da termodinâmica – a única lei irreversível da física. O conceito de seta do tempo expressa a ideia de que a passagem do tempo ocorre num sentido preferencial: do passado para o futuro.

“Embora a percepção de que o tempo não para e caminha sempre para o futuro seja óbvia em nossa experiência cotidia-na, isso não é trivial do ponto de vista da

física”, diz Serra. Essa dificuldade ocor-re porque as leis que regem a natureza no nível microscópico são simétricas no tempo – e, portanto, reversíveis. Isso significa que não haveria diferença entre ir do passado para o futuro e vice-versa.

Muitos físicos pensavam que o aumen-to da entropia pudesse ser um fenôme-no exclusivo do mundo macroscópico porque no século XIX o físico austríaco Ludwig Boltzmann explicou a segunda lei da termodinâmica pelos movimen-tos de um número elevado de átomos. Há 60 anos, porém, muitos pesquisa-dores tra balham para ampliar a teoria de Boltzmann para sistemas feitos de poucos ou mesmo um só átomo. E teo-rias atuais já estabelecem que uma única partícula deve obedecer à segunda lei da termodinâmica.

A equipe de Serra foi a primeira a me-dir variações de entropia em um sistema tão pequeno que só podia ser descrito pelas leis da mecânica quântica, que re-gem o mundo submicroscópico. O físico Tiago Batalhão, aluno de doutorado de Serra na UFABC e atualmente em um estágio de pesquisa na Áustria, realiza desde 2014 experimentos em parceria com Alexandre Souza, Roberto Sarthour e Ivan Oliveira, do CBPF, além de Mauro Paternostro, da Queen's University, na Irlanda, e Eric Lutz, da Universidade de Erlangen-Nuremberg, na Alemanha.

Os experimentos usam campos eletro-magnéticos para manipular os núcleos de átomos de carbono de uma solução de clorofórmio (ver Pesquisa FAPESP nº 226). Os núcleos possuem uma pro-priedade chamada spin, que funciona como a agulha de uma bússola e aponta para cima ou para baixo – cada sentido com uma energia diferente. Os testes começavam com os spins dos trilhões de núcleos apontando em alguma dire-ção – a maioria para cima e uma fração para baixo, dependendo da temperatura. Em seguida, disparava-se um pulso de ondas de rádio no tubo com clorofórmio. Com duração de um microssegundo, o lé

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pulso era curto demais para que cada núcleo interagisse com os vizinhos ou o ambiente. Assim, o pulso afetava cada núcleo isoladamente. “É como se cada um deles estivesse isolado do resto do universo”, explica Serra.

Formado por ondas cuja amplitude aumentava no tempo, o primeiro pulso perturbava os spins de cada núcleo, que flutuavam rapidamente e mudavam de direção. Após algum tempo, os pesqui-sadores disparavam um segundo pul-so, idêntico ao primeiro em quase tudo, exceto pelo fato de a amplitude de suas ondas decrescer com o tempo. Com o segundo pulso, que representava uma versão do primeiro pulso invertida no tempo, esperava-se fazer o spin de ca-da núcleo retornar ao estado inicial. De fato, os spins retornaram a um estado bem próximo ao do início. Mas medi-das precisas mostraram que os estados final e inicial não eram iguais. Havia uma discrepância decorrente das transições entre os diferentes estados de energia dos spins, associadas à entropia produ-zida no processo de aumentar e diminuir a amplitude das ondas, segundo artigo publicado na Physical Review Letters.

Vlatko Vedral, físico da Universidade de Oxford, Reino Unido, que faz experi-mentos semelhantes usando laser, consi-dera o trabalho uma bela demonstração do que a termodinâmica quântica prevê. “Mas não é surpreendente”, afirma. Ele diz que gostaria de saber se a entropia medida na escala subatômica é produzi-da por fenômenos descritos pelas leis da física ou se uma parte decorre de algum fenômeno desconhecido atuando sobre a seta do tempo. n Igor Zolnerkevic

Aumento no

grau de

desordem dos

sistemas torna

fenômenos

irreversíveis e é

associado pelos

seres humanos à

noção de

passagem do

tempo

ProjetoInstituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Informação Quântica (nº 2008/57856-6); Modalidade Projeto Te-mático; Pesquisador responsável Amir ordacgi Caldeira (Unicamp); Investimento r$ 1.977,654,30 (para todo o projeto).

Artigo científicoBATAlHÃo, T. B. et al. Irreversibility and the Arrow of Time in a Quenched Quantum System. Physical Review Letters. 6 nov. 2015.

Exemplo de aumento de entropia: é impossível reverter o estilhaçamento do prato completa e espontaneamente

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68 z dezembro de 2015

Além de fertilizante, resíduo do etanol

poderá ser utilizado para produzir eletricidade

tecnologia EngEnhAriA químicA y

Vinhaça para gerar energia

cessivo como fertilizante. A utilização exagerada causa danos ambientais, como contaminação do lençol freático com potássio, salinização do solo, lixiviação de metais e sulfatos, liberação de mau cheiro e emissão de gases do efeito estufa, como o óxido nitroso (N2O), que é cerca de 300 vezes mais poluente do que o dióxido de carbono (CO2).

O projeto que busca um melhor aproveita-mento da vinhaça é coordenado pelo professor Marcelo Zaiat, da EESC da USP. As pesquisas começaram no início de 2011 e envolvem nove pesquisadores, da EESC, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade Estadual Paulista (Unesp) e Instituto Mauá de Tecnologia (IMT), de São Caetano do Sul. “O nosso principal objetivo é desenvolver uma nova geração de bio-digestores anaeróbios, mais compactos, robustos e estáveis, que tenham alta eficiência de conversão de matéria orgânica da vinhaça em biogás”, diz Zaiat. Ele explica que esse tipo de equipamento é projetado para que ocorram reações catalisa-das por bactérias e arqueias. O processo anaeró-bio ocorre na ausência de oxigênio por meio da fermentação autorregulada da matéria orgânica promovida por um consórcio de microrganismos que vivem nesses ambientes.

em 2014, foram gerados no Brasil cerca de 280 bilhões de litros de vinhaça, um resíduo da produção de etanol. Quase a totalidade desse volume (97%) foi usada

como fertilizante e irrigação nas próprias lavou-ras de cana-de-açúcar. O problema é que essa prática causa impacto ambiental e desperdiça potenciais usos mais nobres do produto, como, por exemplo, a geração de energia elétrica. A transformação da vinhaça em biogás por meio de biodigestores pode vir a mudar esse panorama, como mostram dois projetos em desenvolvimen-to, um na Escola de Engenharia de São Carlos (EESC), da Universidade de São Paulo (USP), e outro no Laboratório Nacional de Ciência e Tec-nologia do Bioetanol (CTBE) do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM).

A vinhaça é um resíduo do etanol que come-çou a se tornar importante depois da criação do Programa Nacional do Álcool, mais conhecido com Proálcool, em 1975. Para produzir álcool, é utilizado o caldo da cana. O que sobra é a vinha-ça, material orgânico rico em potássio, cálcio e magnésio. Como o volume desse resíduo das cerca de 400 usinas existentes no país é muito grande, por razões econômicas, ele é usado de modo ex-

evanildo da Silveira

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peSQUiSa FapeSp 238 z 69

“O que queremos é transformar a matéria or-gânica da vinhaça por meio de uma cultura de microrganismos em biogás”, diz Zaiat. O biogás é composto prioritariamente por metano, além do dióxido de carbono e outros gases em pequenas quantidades. Após tratamento adequado, o biogás pode ser utilizado para geração de energia elétri-ca ao movimentar a turbina de um gerador. Além disso, a produção de biogás minimiza o impacto ambiental do uso do resíduo como fertilizante na cultura da cana-de-açúcar, uma vez que a vinha-ça biodigerida contém menos matéria orgânica.

Não há biorreatores em grande escala no Brasil, apenas um de pequeno porte da década de 1980 em uma usina na região de Ribeirão Preto, que biodigere uma pequena parte da vinhaça, pro-duzindo biogás usado na secagem de levedura. No caso do equipamento que sua equipe está desenvolvendo, Zaiat diz que o avanço no conhe-cimento científico dos últimos 30 anos sobre os

fundamentos do processo anaeróbio ajudou na concepção do biorreator. “Embora o processo seja o mesmo, em essência, os reatores que são desenvolvidos hoje estão muito mais avançados tecnologicamente, tornando possível maior efi-ciência de conversão, com maior estabilidade de processo, em sistemas mais compactos e segu-ros”, diz Zaiat.

O grupo trabalha com várias configurações de biodigestores. “Há várias técnicas para isso, mas a mais usada na nossa área é a de fornecer uma superfície de um material inerte, ao qual as bac-térias e arqueias aderem, formando o que chama-mos de biofilme”, explica Zaiat. “Aproveitamos a capacidade natural que elas têm de aderir a su-perfícies e ter a vinhaça como meio de cultura.”

O biogás produzido no biorreator, com menor concentração de CO2, pode ser, por exemplo, usado para cogeração de energia nas caldeiras da usina, liberando o bagaço – hoje utilizado para ser

Estocagem de vinhaça em usina no município de Porto Ferreira, no interior paulista

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70 z dezembro de 2015

queimado e gerar eletricidade – para a produção de etanol de segunda geração. O gás também po-de ser usado para substituir parte do diesel nos motores dos caminhões e tratores, tornando o processo produtivo da cana mais sustentável. A vinhaça biodigerida, líquida, pode ainda ser utilizada como fertilizante, com baixo teor de matéria orgânica, mas preservando praticamente todos os nutrientes originais do resíduo. Ou ain-da pode ser concentrada e utilizada como base para a formulação de um fertilizante organomi-neral para a cultura de cana-de-açúcar, de acor-do com as necessidades da planta. Nesse caso, a água retirada do processo de concentração pode retornar à usina para vários usos. “Isso é o que chamo de integração: os resíduos são usados no próprio processo produtivo”, diz Zaiat.

USina ViRtUalEm outro projeto, sob a coordenação do CTBE, que conta com a participação de Zaiat, se busca, por meio de modelos matemáticos, criar uma usina mais eficiente em todas as suas operações. “Nós estamos desenvolvendo os modelos mate-máticos para as diversas operações de uma usi-na, como recepção e preparo da cana, extração do caldo, fermentação, cristalização [açúcar], destilação e desidratação [etanol], cogeração de energia e biodigestão da vinhaça”, explica o coordenador do projeto, o engenheiro quími-co Antonio Bonomi. “Esses modelos tornarão possível otimizar o processo, ou seja, definir as condições operacionais em que a biorrefinaria deve trabalhar para maximizar seu rendimento e retorno econômico.”

O que o grupo de Bonomi faz nesse projeto é construir uma usina virtual de primeira geração. Para isso, os modelos matemáticos de cada ope-ração são inseridos em um software de simulação chamado Environment for Modeling, Simulation and Optimization (Emso). “No caso da operação de biodigestão da vinhaça, por exemplo, o mo-delo matemático vai indicar com que vazão é possível alimentar o biodigestor para conseguir a maior produção de biogás possível”, explica Bonomi. Um dos objetivos é também produzir um gás com maior teor de metano, com 96,5%: o biometano. Hoje o máximo que se consegue em reatores comuns é de 60%. Com isso seria pos-sível, além de substituir o diesel nos caminhões e máquinas agrícolas, injetá-lo na rede pública de distribuição de gás natural.

Quem trabalha no modelo matemático e nas avaliações da unidade de biodigestão, sob a coor-denação do professor Rogers Ribeiro, da Facul-dade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da Universidade de São Paulo (USP), é a pesquisadora Bruna de Souza Moraes, do CTBE. “Nosso trabalho busca avaliar a inclusão da produ-ção de biogás em usinas a partir de seus resíduos e as possibilidades de seu uso para promover a oti-mização energética e a sustentabilidade ambiental no setor”, explica Bruna. “A ideia é apresentar as vantagens desses cenários com números, por meio da avaliação técnica, econômica e ambiental, de forma que a aplicação real dessa nova configura-ção de biorrefinaria seja estimulada.”

Segundo Bruna, os resultados obtidos até agora mostraram que a produção de biogás a partir da vinhaça é mais vantajosa nos casos em que ele

lavoura de cana-de-açúcar é irrigada e fertilizada com a vinhaça, em fazenda no Paraná

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peSQUiSa FapeSp 238 z 71

é convertido em biometano (gás contendo pelo menos 96,5% de metano). “Nesses cenários, sua venda para a rede pública de gás natural e o uso na substituição do diesel apresentaram os melho-res indicadores econômicos e ambientais”, diz. “A mais recente avaliação revelou que é possível reduzir em até 42% as emissões de gases de efeito estufa na produção de cana-de-açúcar por meio da substituição parcial do combustível fóssil.” A taxa interna de retorno anual do investimento para esse cenário é de 25% para uma biorrefinaria com capacidade de processamento de 4 milhões de toneladas de cana por safra.

Bruna tem também números do potencial de geração de energia elétrica da vinhaça. Em uma usina que produz 50% de etanol e 50% de açúcar, com capacidade de moer 4 milhões de toneladas de cana por ano, é possível produzir anualmen-te cerca de 2 milhões de metros cúbicos (m3) do resíduo. Considerando que 1 m3 de vinhaça tem potencial para gerar até 14 m3 de biogás, essa biorrefinaria teria capacidade de fornecer 28 milhões de m3 desse gás por ano.

Esse valor corresponde a uma capacidade anual de 65 mil megawatts hora (MWh) de eletricidade. “Isso significa que a energia gerada com a pro-dução de biogás a partir da vinhaça de uma usi-na poderia suprir a demanda de eletricidade de uma cidade de cerca de 260 mil habitantes”, diz

Bruna. “Se toda a vinhaça do Brasil fosse biodi-gerida, o potencial de geração de energia elétrica no país seria equivalente a 7,5% da capacidade da hidrelétrica de Itaipu.”

Para a União da Indústria de Cana-de-açúcar (Unica), representante dos produtores de açúcar e etanol, a utilização da vinhaça na irrigação é uma forma de economizar água com a fertilização. “A fertirrigação com vinhaça também possibilita economia na aplicação de fertilizantes quími-cos”, diz Alfred Szwarc, consultor de emissões e tecnologias da Unica. “Existem novas formas de aproveitamento da vinhaça, mas elas ainda estão em pequena escala. Também existem pro-jetos para concentrar e transformar a vinhaça em fertilizante comercial”, diz Szwarc. n

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aproveitamento total de resíduosA partir de um biorreator, a vinhaça se transforma em biogás para gerar eletricidade, gás natural e fertilizante

Projetos1. Produção de bioenergia no tratamento de águas residuárias e ade-quação ambiental dos efluentes e resíduos gerados (nº 2009/15984-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável marcelo Zaiat (usP); Investimento r$ 1.855.372,36 e us$ 428.142,36. 2. simulação da biorrefinaria de cana-de-açúcar de 1a geração na plataforma Emso (nº 2011/51902-9); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Antonio bonomi (cTbE); Investimento r$ 2.410.414,09 e us$ 926.930,50.3. biodigestão anaeróbia de vinhaça e de licor de pentoses em bior-refinarias integradas de 1ª e 2ª geração (nº 2012/00414-7); Moda-lidade bolsa de Pós-doutorado; Bolsista bruna de souza moraes (cTbE); Pesquisador responsável marcelo Zaiat (usP); Investimento r$ 302.095,11.

da usina (1), a vinhaça é levada para o biorreator (2), onde microrganismos transformam a matéria orgânica do resíduo em biogás. Esse gás é levado para a produção de energia elétrica em um gerador (3). se purificado, pode ser usado como gás natural em veículos ou em cozinhas. Ainda sobram da biodigestão a matéria orgânica residual (4), possível de ser utilizada como fertilizante, e a água do processo, que pode ser levada de volta à usina para usos variados

Fonte cTbE

UsIna

Vinhaça in natura biogás

Eletricidade

gás naturalgás de cozinha

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Fertilizantes organomineral para plantação de cana

condensados recuperados

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concentrador de MatérIa orgânIca resIdUal

aProveItaMento do BIogás1

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gerador

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72 z dezembro de 2015

BrPhotonics investe em P&D

para criar dispositivos ópticos

avançados e exportar

Com pouco mais de um ano de existência, a BrPhoto-nics, focada na pesquisa e no desenvolvimento de sistemas de comunicações ópticas de alta velocidade,

comemorou há pouco tempo o fechamen-to do primeiro negócio com um cliente internacional. A empresa vendeu um mo-dulador óptico, equipamento essencial em redes de transmissão de dados, para o Instituto Nacional Tyndall, da Irlanda, um dos principais centros europeus de pesquisa em Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Do ponto de vista financeiro, a venda de uma única unida-de não é expressiva, mas está carregada de simbolismo. A BrPhotonics nasceu

mercado global é a meta

Pesquisa emPresarial y

Yuri Vasconcelos

com o objetivo de tornar-se uma grande competidora internacional na área de comunicações ópticas e essa primeira transação no exterior, em certa medida, abre as portas do mercado global.

Localizada em Campinas, no interior paulista, a empresa é uma joint venture entre a Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD) e o grupo norte-americano GigOp-tix, com sede em San Jose, na Califórnia. Antigo centro de pesquisa da Telebras e desde 1998 uma entidade de direito pri-vado instalada em Campinas, o CPqD de-tém 51% do negócio; a parceira GigOptix, uma das maiores fornecedoras mundiais de componentes semicondutores de al-ta velocidade, é dona dos 49% restantes.

“A BrPhotonics foi criada em 2014 pa-ra ser líder no mercado global de dis-positivos fotônicos e microeletrônicos para sistemas de comunicações ópticas de alta velocidade, acima de 100 giga-bits por segundo [Gbps]”, afirma Júlio César Rodrigues Fernandes de Oliveira, ex-gerente de Tecnologias Ópticas do CPqD e atual presidente da BrPhotonics. “Nossa empresa tem como objetivo ver-ticalizar a produção com a convergência entre os campos da fotônica e da micro-eletrônica, com foco nas aplicações em comunicações ópticas.” Segundo ele, os investimentos diretos e indiretos (como patentes e equipamentos) para viabili-zação do negócio somaram mais de US$ 30 milhões e o faturamento deste ano,

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pESQUISA FApESp 238 z 73

(fotodetectores) e transmissores (lasers e moduladores ópticos), responsáveis por transformar o sinal da internet de elétrico para óptico, convertendo as in-formações em sinais de luz.

A BrPhotonics é especializada no for-necimento de dispositivos que compõem os transmissores e receptores ópticos que integram as redes projetadas para operar a taxas de transmissão de 100 Gbps até 1 terabit por segundo (Tbps), que deverá ser atingido nos próximos anos. Hoje, o pico do tráfego de internet diário na Região Metropolitana de São Paulo é de 877 Gbps, de acordo com da-dos do Núcleo de Informação e Coorde-nação do Ponto BR (NIC.br), coordenado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil.

quando a empresa ainda se encontra em fase de startup, será de US$ 1,5 milhão.

O setor da economia em que a Br-Photonics atua não para de crescer. O avanço da internet, em conjunto com a computação em nuvem e a proliferação de soluções smart em celulares, tablets e televisões, tem como consequência dire-ta o aumento do tráfego de informações (voz, dados, filme e música), o que exige um esforço incessante de expansão das vias de transmissão. A maior parte desses dados trafega em redes de fibra óptica, dispositivos com diâmetro similar ao do fio de cabelo e que levam as informações por meio da luz de lasers. Além dos ca-bos, a infraestrutura das redes também é composta por amplificadores, receptores lé

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Júlio César, primeiro à esquerda, presidente da nova empresa, junto a integrantes da equipe de Pesquisa e Desenvolvimento

EmprESA

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Centro de P&D Campinas, sP

Nº de funcionários 28

Principais produtos Dispositivos que

compõem transmissores

e receptores ópticos

que integram as redes

de transmissão de alta

velocidade

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74 z dezembro de 2015

O cliente da empresa não é o usuário fi-nal da internet, mas sim as companhias e operadoras de telecomunicações que fornecem o serviço de banda larga. “Os diferenciais de nossa empresa são o do-mínio da tecnologia de lasers, modula-dores e receptores, nas tecnologias de silício e polímeros, em conjunto com a capacidade de projetar chips microele-trônicos”, destaca Júlio César.

Para alcançar seus objetivos e se in-serir com sucesso no mercado interna-cional, a BrPhotonics dedica especial atenção às atividades de pesquisa e de-senvolvimento (P&D). Nessa fase inicial de operação, o gasto tem sido mais signi-ficativo e equivale a 60% do investimento total. O plano de negócios da companhia sinaliza que o investimento em P&D será contínuo ao longo dos anos, da ordem de 25% da receita bruta. “Essa área é essen-cial para nós. É o coração da empresa, que tem por meta disputar o mercado com produtos inovadores”, diz Júlio César.

alinhamento de fibra óptica

(acima) e detalhes do transmissor

óptico de alta velocidade da

empresa, chamado de

Tosa

Júlio César Rodrigues Fernandes de Oliveira, engenheiro eletricista, presidente da BrPhotonics

universidade Federal de Campina Grande (uFCG): graduação universidade estadual de Campinas (unicamp): mestrado e doutorado

Wilson de Carvalho Júnior, físico, diretor de microfabricação

universidade Federal do Paraná (uFPr): graduaçãounicamp: mestrado

Felipe Lorenzo Della Lucia, engenheiro eletricista, pesquisador sênior da área de microfabricação

unicamp: graduação, mestrado e doutorado

Alexandre Passos Freitas, engenheiro eletricista, gerente da área de Projeto de Circuitos Fotônicos

unicamp: graduação e mestrado

Luis Henrique Hecker de Carvalho, engenheiro eletricista, diretor de sistemas Avançados

uFCG: graduaçãounicamp: mestrado e doutorado (em andamento)

Para isso, a BrPhotonics também inves-te em mão de obra qualificada. Metade do quadro de pessoal, composto por 12 funcionários diretos e 16 pesquisado-res indiretos, é de mestres ou doutores. Os empregados indiretos trabalham por meio de contratos de prestação de serviço no Brasil, nos Estados Unidos e na Itália.

A equipe, diversificada, é composta por pesquisadores experientes, como o físico Wilson de Carvalho Júnior, de 58 anos, diretor de Microfabricação que já

FormAção doS pESQUISAdorES dA EmprESA

1

trabalhou no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) e na Fundação Centro de Tecnologia da Informação Re-nato Archer (CTI), ambos em Campinas. Outros têm menos tempo de mercado, como os engenheiros elétricos Alexandre Passos Freitas, 28, e Felipe Lorenzo Della Lucia, 31, ambos formados na Universi-dade Estadual de Campinas (Unicamp), e o engenheiro mecânico Luis Henrique Hecker de Carvalho, 26, graduado na Universidade Federal de Campina Gran-de (UFCG), na Paraíba. Todos eles têm pelo menos o título de mestrado, com exceção de Felipe, que, junto com Júlio César, tem o doutorado.

trAnSFErÊncIA dE tEcnoLoGIASUma vantagem competitiva da BrPho-tonics é o fato de a empresa já possuir domínio de tecnologias ópticas, apesar de ser uma empresa tão jovem. Isso por-que o acordo firmado entre o CPqD e a GigOptix previu a transferência de co-nhecimento, propriedade intelectual e de tecnologias já desenvolvidas pe-los dois parceiros para o novo negócio. A GigOptix deslocou para o Brasil sua

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pESQUISA FApESp 238 z 75

laboratório de fabricação de chip fotônico: salas limpas para componentes sofisticados

linha de produção instalada na cidade de Bothell, no estado norte-americano de Washington, e compartilhou com a BrPhotonics sua tecnologia Thin Film Polymer on Silicon (TFPS) – ou Filme Fino de Polímero sobre Silício. Já o CPqD repassou a tecnologia de fotônica em si-lício (Silicon Photonics ou SiPh), além de sua experiência em encapsulamento óptico e recursos de projetos e testes nessa área. Também forneceu espaço para instalação da empresa em seu par-que tecnológico, a Pólis de Tecnologia. Pelo acordo, a BrPhotonics recebeu 17 patentes da GigOptix e quatro do CPqD.

As instalações industriais da empre-sa foram oficialmente inauguradas em agosto deste ano. A fábrica abriga toda a cadeia de produção do chip fotônico, da concepção ao encapsulamento e teste. De acordo com Júlio César, apenas dois países do mundo, Alemanha e Suíça, fa-bricam chips fotônicos desse nível. “Acre-ditamos que, com a nossa fábrica, o Brasil

jetado para atender à demanda de fabri-cantes de transceptores (transmissores e receptores) destinados a aplicações de longo alcance e altas taxas de trans-missão. “Seu preço é competitivo frente ao de competidores internacionais, que costumam cobrar por volta de US$ 3,5 mil por unidade em lotes com grandes volumes, a partir de 2 mil peças”, diz Júlio César.

Além do Tosa, outros dois itens já fo-ram desenvolvidos pela empresa: um modulador óptico e um equipamento de testes, batizado de Lab in a Box. O mo-dulador é o componente do transmissor responsável por converter o sinal elétrico de dados no feixe luminoso que irá tra-fegar pelos cabos de fibra óptica. O dis-positivo foi construído em um substrato polimérico e com a tecnologia de fotô-nica de silício (SiPh). O outro produto, o Lab in a Box, é um aparelho de medição para habilitar a transmissão e recepção óptica, assim como o seu processamento digital de sinais, em ambientes labora-toriais. “Esse equipamento é inédito no Brasil e tem poucos concorrentes globais, entre eles as norte-americanas Tektronics e Coherent Solutions”, diz Luis Carvalho.

A empresa tem também um proje-to no Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP aprovado no segundo semestre de 2015 e coordenado por Wilson Carvalho, cujo objetivo é desenvolver no país um tipo de laser usado em transmissores ópti-cos. “Hoje nós compramos esse laser de fornecedores externos e o integramos ao Tosa. Com auxílio da FAPESP, que-remos desenvolver nosso próprio laser”, destaca o pesquisador. “Dessa forma, te-remos maior domínio tecnológico sobre o dispositivo e tornaremos o Tosa mais competitivo no mercado global.” n

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tem uma oportunidade para substituir importações e gerar emprego e renda em nosso território”, diz ele. Para pro-dução de componentes tão sofisticados, as instalações possuem laboratórios com áreas limpas classe 100 – nas quais po-dem haver apenas 100 partículas maiores que 0,5 mícron (1 mícron é igual a 1 mi-lionésimo de metro) por pé cúbico de ar – e classe 10 mil. Enquanto a área limpa classe 10 mil abriga a infraestrutura de empacotamento dos chips, a área clas-se 100, montada com os equipamentos transferidos pela GigOptix dos Estados Unidos, reúne as etapas de fabricação dos chips fotônicos.

Por enquanto o principal produto da BrPhotonics é a plataforma integrada Tosa (sigla em inglês de Transmitter Optical Sub-Assembly). Trata-se de um transmissor óptico de alta velocidade (100 Gbps), miniaturizado, que integra laser e modulador óptico. Segundo o pre-sidente da BrPhotonics, o Tosa foi pro-

ProjetoLaser de cavidade externa em fotônica em silício com

faixa de sintonia ultralarga para aplicações em sistemas

DWDm (nº 2014/21731-6); modalidade Programa Pesqui-

sa inovativa em Pequenas empresas (Pipe); Pesquisador responsável Wilson de Carvalho Júnior (BrPhotonics);

Investimento r$ 144.037,27 e us$ 282.901,75.

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INDÚSTRIA FARMACÊUTICA y

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Biolab conclui o desenvolvimento de

dois novos medicamentos e aposta neles para

ampliar sua presença no mercado internacional

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pESQUISA FApESp 238 z 77

Dona de um portfólio formado por mais de 100 medicamentos, a Biolab Farmacêutica com­pletou 18 anos de atividade em

2015 com bons motivos para comemorar. Em novembro deste ano, o laboratório, 100% nacional, com sede em São Paulo, encaminhou à Agência Nacional de Vi­gilância Sanitária (Anvisa) a solicitação de registro do medicamento Zilt, feito a partir de uma nova molécula totalmente criada em seus laboratórios, a BL 123. O pedido de registro desse medicamento, destinado ao tratamento de infecções por fungos, veio somar­se a outro que havia sido feito no final de 2014, relativo ao Nanorap, um nanoanestésico tópico desenvolvido em parceria com pesqui­sadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

“Todo o processo de desenvolvimen­to da molécula BL 123, que recebeu o nome de dapaconazol, foi realizado por nossos cientistas, desde sua modelagem, passando pela síntese e chegando ao an­timicótico Zilt. É a primeira vez que is­so acontece na Biolab”, diz o cientista­ ­chefe da Biolab, Dante Alario Junior. “Esse fato coloca o Brasil como forne­cedor de moléculas inovadoras.” A far­macêutica conta atualmente com 38 no­vas moléculas em teste e 259 patentes

requeridas para aprovação, além de 79 projetos de inovação incremental e cin­co de inovação radical. Segundo a Reso­lução da Diretoria Colegiada de nº 37 da Anvisa, publicada em julho de 2014, a inovação incremental “resulta em uma nova forma farmacêutica, nova concen­tração, nova via de administração ou no­va indicação para uma entidade mole­cular já registrada no país”. Enquanto a radical é descrita como uma “inovação que resulta em uma nova molécula não registrada no país”. Segundo Dante Ala­rio, “o dapaconazol é uma inovação ra­dical, pois trata­se de uma nova entida­de química não descrita em literatura ou patenteada no país e no mundo”.

O Zilt foi formulado com o objetivo de oferecer ao mercado uma nova opção de antimicótico. Medicamentos dessa classe, em razão de seu uso continua­do e frequente, perdem com o tempo a eficiência na prevenção ou inibição da proliferação de fungos. Isso ocorre por causa da resistência que os microrganis­mos adquirem em relação à droga. “O dapaconazol vai servir principalmente para quem tem resistência ao miconazol, um antifúngico comercializado há anos”, destaca Gilberto De Nucci, professor do Instituto de Ciências Biomédicas e da Faculdade de Medicina da Univer­

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sidade de São Paulo (USP), responsável pela condução dos testes pré­clínicos e clínicos da droga.

A Biolab espera obter o registro do Zilt em um ano. O remédio tem pedi­dos de patente concedidos nos Estados Unidos, Japão, Austrália, África do Sul, Singapura e Ucrânia. No Brasil, o regis­tro da patente ainda está sob análise do Instituto Nacional da Propriedade In­dustrial (INPI). As pesquisas para a cria­ção da droga foram iniciadas em 2007 e ela será vendida inicialmente na forma de creme e loção dermatológica. Outras formulações estão em desenvolvimen­to, entre elas versões em comprimido, spray, creme e óvulos vaginais. “Esta­mos testando também uma versão in­jetável, mas não sei se passaremos nos testes de toxicidade. Se conseguirmos, será um medicamento bem sofisticado”, afirma De Nucci, acrescentando que as pesquisas iniciais do fármaco geraram uma tese de doutorado, duas dissertações de mestrado e vários artigos científicos.

Segundo o pesquisador, o dapacona­zol é realmente inovador, mas o mais correto é que seja classificado como um me-too, definição usada no meio farma­cêutico para designar moléculas que dão origem a medicamentos novos de uma classe já existente. “As moléculas me-too

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de nanoencapsulação de filtros químicos or­gânicos. Assim como o Nanorap, o Photo­prot foi feito com um polímero 100% bio­degradável. Sua fór­mula contém os filtros solares avobenzona e

octocrileno, que absorvem a radiação solar UVA e UVB, e óleo de buriti, um importante agente antioxidante.

MErcAdo IntErnAcIonAlUma das 10 maiores farmacêuticas do país, a Biolab aposta no sucesso de seus dois novos medicamentos para aumentar sua participação no mercado brasileiro e elevar as vendas no exterior. A empre­sa lidera o segmento de remédios para tratamentos cardiológicos, com 17% do mercado, e é a quarta colocada no setor de dermatologia. Seu Centro de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (P&D&I), situado em Itapecerica da Serra, municí­pio a 33 quilômetros de São Paulo, conta com uma equipe de 120 profissionais. Por ano, entre 7% e 10% da receita é destina­da à atividade de inovação. Em 2015, seu faturamento deve chegar a R$ 1,35 bilhão,

não representam uma quebra de para­digma, mas trazem vantagens excepcio­nais.” Ele mesmo elaborou a molécula do carbonato de iodenafila, que tem o no­me comercial de Helleva, do laboratório nacional Cristália, com sede em Itapira, no interior de São Paulo. O medicamen­to, que tem indicação contra a disfunção erétil, é um me-too do Viagra (citrato de sildenafila), da Pfizer. Para a professora Bartira Rossi Bergmann, do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Zilt é uma molé­cula nova de uma classe conhecida de antifúngicos, os imidazóis. “Mas é uma descoberta importante e, pelo que li em artigos publicados pelo próprio grupo, ele parece ter resultados melhores do que o miconazol, um outro antifúngico já consolidado no mercado”, diz Bartira.

nAnoAnEStéSIco EncApSUlAdoAssim como o Zilt, o Nanorap também foi desenvolvido em conjunto com pes­quisadores acadêmicos. As farmacêuticas Sílvia Guterres, professora da Faculda­de de Farmácia da UFRGS, e Adriana Pohlmann, do Ins­tituto de Química da mesma insti­tuição, foram as responsáveis pela tecnologia de en­capsulamento dos princípios ativos usados na formu­lação do medica­mento, a prilocaína e a lidocaína. Os dois princípios ativos são velhos conhecidos da comunidade médica. “Fizemos o desenho e o desen­volvimento das nanocápsulas, que são o meio para transportar e entregar os princípios ativos à região do organismo desejada”, explica Sílvia. Segundo ela, as nanocápsulas são esféricas, com diâ­metro médio de 200 nanômetros – um nanômetro equivale à milionésima parte do milímetro. Para efeito de compara­ção, a espessura de um fio de cabelo é de aproximadamente 50 mil nanômetros.

O Nanorap é um anestésico tópico em forma de creme destinado à aplicação na pele de pacientes que vão se submeter a pequenas intervenções dermatológicas, como retirada de verrugas ou tratamen­tos a laser. Sua patente já foi concedida nos Estados Unidos, Japão, Austrália, México e África do Sul, entre outros paí­

ses. No Brasil e na Europa, o pedido ain­da está sob análise. A principal vantagem do fármaco em relação aos anestésicos tópicos semelhantes é a ação ultrarrá­pida. O Nanorap começa a surtir efeito em 10 minutos, um sexto do tempo dos medicamentos convencionais não inje­táveis. A ação rápida reduz o tempo de espera entre a aplicação do anestésico e o início da intervenção.

A farmacêutica Sílvia Guterres ex­plica que a velocidade de ação do Na­norap deriva de sua nanoarquitetura, que garante melhor permeabilidade na pele. “A droga tem velocidade e alcance predeterminados. Por isso, seu efeito é mais rápido e duradouro, o que o torna mais eficaz diante de outros medica­mentos convencionais”, diz Sílvia. As nanocápsulas são formadas a partir de um polímero biodegradável. Elas pene­tram na camada córnea da pele, a mais superficial, e ficam ali localizadas por um período programado, liberando de forma contínua o fármaco. Em segui­da, as nanocápsulas são biodegradadas ou simplesmente removidas durante o

banho ou com uma simples fricção no local. “Essa nova formulação confere novas propriedades aos princípios ati­vos tornando­os mais eficazes. É uma abordagem de alta tecnologia. O grupo que o desenvolveu, da UFRGS, está na vanguarda nessa área de nanoencapsu­lamento. Estão bem à frente de qualquer outro grupo de pesquisa no Brasil e no exterior quanto ao domínio da produ­ção daquelas nanocápsulas”, diz Barti­ra, da UFRJ.

A parceria entre a Biolab e a UFRGS para a criação de medicamentos com na­notecnologia começou em 2005 e resul­tou, quatro anos depois, no lançamento do primeiro fotoprotetor solar brasileiro com soluções nanotecnológicas, o Photo­prot (ver Pesquisa FAPESP nº 167). Com fator de proteção solar 100, o cosméti­co foi elaborado com uma tecnologia

por dentro do nanorapConheça a composição e o modo de ação do nanoanestésico da Biolab

FontE SílvIA GUTeRReS/UFRGS

coMo é o FárMAcoO Nanorap é formado por nanocápsulas

feitas de um polímero 100% biodegradável.

Dotadas de paredes semipermeáveis,

elas possuem um núcleo oleoso contendo

os princípios ativos prilocaína e lidocaína

Princípio ativo

Núcleo oleoso

Parede polimérica

nAnocápSUlA

Além dos novos medicamentos, o grupo de pesquisa da UFrGS já colaborou em um protetor solar com nanotecnologia

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pESQUISA FApESp 238 z 79

quação do Zilt e do Nanorap ao merca­do norte­americano. Com ele, a Biolab estará mais capacitada para montar os robustos dossiês sobre novos medica­mentos exigidos pelas autoridades regu­latórias dos Estados Unidos, do Canadá e da Europa. O centro de pesquisa de Toronto, construído no principal polo de inovação canadense, terá uma área de mil metros quadrados e será o primeiro de uma indústria farmacêutica brasileira naquele país, segundo a Biolab. Ele está programado para começar a funcionar nos primeiros meses de 2016.

Uma terceira unidade fabril está sen­do construída, em Estiva, no interior de Minas Gerais, a fim de suportar os pla­nos de expansão global do laboratório. As duas fábricas em atividade ficam em Jandira e Taboão da Serra, ambas na Região Metropolitana de São Paulo. A planta mineira vai receber investimen­tos de R$ 350 milhões. “Ela está sendo projetada para atender a demanda mun­dial. Vai ter uma elevada capacidade de produção e já nasce adequada a padrões internacionais. Nossa expectativa é de que fique pronta em 2018, mesmo ano que nossos dois novos medicamentos, o Zilt e o Nanorap, devem entrar no mer­

os princípios

ativos do medicamento já são velhos

conhecidos dos médicos.

A inovação está nas

nanocápsulas

aumento de 16% em relação ao ano ante­rior. No geral, o setor farmacêutico deve crescer 8%, o que significa que a Biolab irá elevar sua participação no mercado.

O mercado brasileiro para o Nanorap é estimado em US$ 60 milhões e para o antimicótico Zilt, em US$ 450 milhões. Nos Estados Unidos, que representam 45% da demanda mundial de fármacos, o potencial comercial das duas drogas é seis vezes maior. Isso explica os esfor­ços da companhia em fortalecer a atua­ção internacional e atingir os consumi­dores norte­americanos. Atualmente, as exportações se destinam a países do Oriente Médio e da África e respondem por menos de 5% da receita. Neste ano, a Biolab abriu um escritório em Miami, como foco na ampliação de parcerias com multinacionais, e começou a mon­tar, em agosto, um braço de P&D&I em Toronto, no Canadá. O investimento é de US$ 40 milhões nos próximos dois anos.

“Não vamos desativar a pesquisa no Brasil, mas reforçá­la com o centro no Canadá. As duas unidades vão realizar trabalhos complementares”, explica Dante Alario Junior, destacando que, inicialmente, o laboratório canadense vai ter um papel fundamental na ade­

cado”, conclui o cientista­chefe da Bio­lab. “As duas inovações farmacêuticas da Biolab são importantes. É interessante para o Brasil ter medicamentos de al­ta tecnologia e qualidade. Eles podem ajudar a quebrar um paradigma de que os produtos farmacêuticos brasileiros são inferiores aos importados. Imagino que o próximo grande desafio da Biolab, depois que obtiver o registro da Anvi­sa, vai ser no campo do marketing. Eles precisam colocar os dois produtos no mercado e mostrar aos consumidores que eles são inovadores, bons e acessí­veis”, diz Bartira. n Yuri Vasconcelos

Artigos científicosMORAeS, F. C. et al. Quantification of dapaconazole in

human plasma using high-performance liquid chroma-

tography coupled to tandem mass spectrometry: Appli-

cation to a phase I study. Journal of Chromatography B.

v. 258, p. 102-7. mai. 2014.

GAGlIANO-JUCá, T. et al. Pharmacokinetic and phar-

macodynamic evaluation of a nanotechnological topical

formulation of lidocaine/prilocaine (Nanorap) in healthy

volunteers. Therapeutic Drug Monitoring. v. 37, n. 3, p.

362-8. jun. 2015.

GOBBATO, A. A. et al. A randomized double-blind, non-in-

feriority Phase II trial, comparing dapaconazole tosylate

2% cream with ketoconazole 2% cream in the treatment

of Pityriasis versicolor. Expert Opinion on Investigational Drugs. v. 24, n. 11, p. 1399-407. nov. 2015.Fo

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QUAIS São SUAS VAntAGEnSDevido ao seu tamanho, as nanopartículas

conseguem ultrapassar a pele com maior rapidez.

Com isso, sua ação anestésica é mais duradoura

e veloz. Os efeitos do anestésico começam

a ser sentidos em apenas 10 minutos diante de

60 minutos dos medicamentos convencionais

coMo ElE AGEO Nanorap atua na parte mais

externa da pele, chamada de camada

córnea. As paredes poliméricas

semipermeáveis e o tamanho diminuto

das nanocápsulas controlam a

velocidade de liberação do fármaco

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prodUto norMAl 50 mil

nanômetros200 nanômetros

EpIdErME

DeRMe

HIPODeRMe

Núcleo oleoso e parede

polimérica

Princípio ativo

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Dos países desenvolvidos aos

mais pobres, habitação pública se tornou

ativo financeiro, indicam estudos

urante seis anos, de 2008 a 2014, a arquiteta e ur-banista Raquel Rolnik exerceu a função de relatora para o direito à moradia adequada na Organização das Nações Unidas (ONU), o que a levou a realizar duas missões de observação por ano em países com diversos contextos, políticas e situações relaciona-dos à habitação. Apesar das diferenças, Raquel, pro-fessora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), pôde estabelecer nexos de um processo global que qua-lificou como financeirização das cidades, quadro que não exclui o Brasil. A reflexão despertada pela experiência do trabalho com a ONU está no livro recém-lançado Guerra dos lugares: A colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo Editorial), com dois capítulos dedicados ao cenário mundial e um terceiro ao Brasil.

Uma das primeiras missões de Raquel foi nos Estados Unidos, em 2009, no auge da crise ha-bitacional iniciada dois anos antes, que ficou co-nhecida como “crise do subprime”, nome dado

Moradia como produto

huManidades URBANISMO y

Márcio Ferrari

ao crédito bancário oferecido a pessoas de baixa renda. Era uma camada social que antes não tinha acesso ao financiamento para comprar casas por serem consideradas “de alto risco”. O desmoro-namento do sistema de hipotecas, ou estouro da bolha imobiliária, epicentro de uma crise eco-nômica mundial, forneceu a Raquel um fio de meada. “Foi possível perceber que o paradigma mundial hegemônico das políticas habitacionais é a ideia da moradia como bem individual obtido por meio do mercado”, diz a urbanista. “Mais do que mercadoria, a produção de habitações tor-nou-se um ativo financeiro, uma nova fronteira de ganhos para o mercado de capitais.”

No caso dos Estados Unidos, o crédito imobi-liário, com a permissão do governo, veio acom-panhado de um processo de securitização – lan-çamento de outros produtos financeiros, como títulos e obrigações, lastreados nas hipotecas e gerando um lucrativo mercado secundário para os bancos. O fenômeno também provocou o au-

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“Despejos: um crime organizado”, diz o cartaz no protesto de 2013 em Madri: alguns detentores de hipotecas ficaram sem as casas e com dívidas

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mento da oferta de recursos para o financiamento, a procura de propriedades mais caras e o cresci-mento dos preços dos imóveis, criando, em mui-tos casos, a necessidade de novos empréstimos. Quando a escalada de valorização se esgotou (o estouro da bolha), as prestações aumentaram, as dívidas se acumularam e começaram as execuções hipotecárias. Dada a natureza transnacional dos mercados financeiros, situações semelhantes se reproduziram pelo mundo, inclusive em países distantes e com processos históricos muito dife-rentes, como o Cazaquistão e a Croácia, ambos pertencentes ao antigo bloco comunista. “Nos Estados Unidos as pessoas perderam suas casas para os bancos e em outros lugares, como a Es-panha, foram despejadas e ainda ficaram com dívidas a pagar”, relata Raquel.

Embora o impacto maior e mais imediato desse processo incida sobre o direito à terra e à moradia dos mais pobres e so-cialmente vulneráveis – aqueles a quem se destinam as iniciativas de produção de ha-

bitações sociais –, os reflexos atingem a sociedade inteira. “Gradativamente, o modelo de financei-rização substitui todas as outras políticas habi-tacionais e formas de produção de moradia”, diz Raquel. Mesmo em lugares como o Reino Unido, em que, graças a políticas de bem-estar social do pós-guerra, o problema de escassez de moradia era apenas residual, o capital financeiro avança.

Saindo do sistema baseado no aluguel social das residências, o país passou por um processo de transferência de propriedade aos moradores e hoje é um dos casos de países desenvolvidos em que o mercado de hipoteca residencial representa mais de 50% do produto interno bruto.

No mundo todo, não se trata de ações gover-namentais transferidas para a iniciativa privada em nome da desoneração do Estado. Embora possam parecer, e os próprios discursos oficiais sejam nesse sentido, os processos são conduzi-dos e regulamentados pela máquina pública, com recursos públicos (diretamente ou via isenção de impostos, como ocorreu no Reino Unido no período de transferência da propriedade das ha-bitações a baixo preço para os moradores). “Na versão desse modelo em países como o México, o Chile, a África do Sul e o Brasil, o Estado ofe-rece diretamente às famílias o subsídio à compra de produtos do mercado imobiliário criados em massa em periferias homogêneas que se trans-formaram em cidades-dormitórios”, diz Raquel.

Embora os vínculos entre as políticas habitacio-nais pelo mundo sejam articulados pelo caráter glo-balizado e expansionista dos mercados de capitais, a pesquisadora alerta para o perigo de se considerar o processo de financeirização como algo imposto de cima para baixo, como uma força imperialista. “É muito importante ressaltar que a experiência de cada país é singular”, afirma Raquel. “A lógica do modelo depende de uma hegemonia políti-

condomínio do Minha casa Minha Vida em londrina (PR): projeto com fundos públicos e lucros privados

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ca construída localmente.” Cada país adapta seus pro-cedimentos para não afastar os recursos de que necessita para seus projetos. “Isso aju-da a entender como a finan-ceirização da moradia e da terra urbana se implanta no Brasil, via Minha Casa Minha Vida, num governo de coali-zão liderado pelo PT, com um discurso antineoliberal e uma proposta desenvolvimentis-ta”, prossegue a urbanista, que foi secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades entre 2003 e 2007, durante o pri-meiro mandato do presiden-te Luiz Inácio Lula da Silva.

Segundo Raquel, a política pública de ha-bitação no período pós-ditadura militar continuou seguindo o esquema básico que orientou a fundação, em 1964, do Banco Nacional de Habitação (BNH). Articula-

do com a indústria de construção civil, o Estado prometia “fazer de cada trabalhador um pro-prietário”. Desde 1967, o sistema é financiado com um fundo público, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). No período anterior ao Minha Casa Minha Vida, criado em 2009, Ra-quel observou a existência de articulações entre o capital financeiro e líderes do PT, especialmente os ligados ao movimento sindical e a fundos de pensão, e a criação de vínculos desses grupos com o setor imobiliário “corporativo”, aquele ligado a torres de escritórios, shopping centers e hotéis, o mais vinculado ao capital financeiro interna-

cional. Nesse período, mui-tas empresas da construção civil abriram seu capital em bolsas de valores.

“O êxito foi tão grande que municípios e estados abriram mão de seus projetos e o Mi-nha Casa Minha Vida tornou--se a única política habita-cional do Brasil”, diz Raquel. Essa afirmação foi verificada em campo por uma pesqui-sa realizada com apoio da FAPESP e pela participação em uma investigação finan-ciada pelo CNPq/Ministé-rio das Cidades. Os “poucos municípios paulistas que ti-nham um sistema próprio de habitação social” se desfize-

ram de seus sistemas. Raquel relaciona ainda o processo de financeirização às reformulações urbanísticas baseadas em remoção, como as que ocorrem em função das obras relacionadas aos megaeventos esportivos no Brasil. Com o pretexto de desapropriar áreas para fins considerados prio-ritários pelo poder público, terrenos altamente valorizados ocupados por assentamentos infor-mais são entregues ao capital privado. “Acredi-távamos que a tendência política em relação às favelas do Rio de Janeiro, por exemplo, não era mais remover, mas levar melhorias”, lamenta Alex Ferreira Magalhães, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universi-dade Federal do Rio de Janeiro (Ippur-UFRJ).

É esse o sentido da expressão “guerra dos luga-res”, que dá título ao livro de Raquel Rolnik. Vera Telles, professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-manas (FFLCH) da USP, compara esse conceito à ideia de “acumulação por despossessão”, cria-do pelo geógrafo britânico David Harvey, que vê nas políticas públicas hegemônicas uma “lógica de expropriação”. E vai mais além, citando a so-cióloga holandesa Saskia Sassen, para quem essa lógica é, na realidade, de expulsão: por meio de guerras, degradação ambiental e situações que criam o fenômeno dos refugiados, entre outros fenômenos, “destravam” territórios que, ao serem reconstruídos, “criam mercados poderosos”. n

impacto da financeirização afeta primeiro as camadas mais pobres, mas reflexos atingem toda a sociedade

Moradia embargada na

crise do subprime nos estados

Unidos em 2009, após o “estouro

da bolha”

2

livroROlNIK, R. Guerra dos lugares: A colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015, 424 p.

ProjetoPlanejamento territorial e financiamento do desenvolvimento urbano nos municípios do estado de São Paulo: marchas e contramarchas (nº 2010/18636-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisado-ra responsável Raquel Rolnik (fAU-USP); Investimento R$ 55.197,00.

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84 z dezembro de 2015

HISTÓRIA y

Pesquisador recupera interesses políticos e econômicos

nos cinejornais da era desenvolvimentista

Jogos

nas telasde poder

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pesQUIsa Fapesp 238 z 85

ntre meados dos anos 1930 e 1980, todo espectador de cinema no Brasil, cada vez que foi assistir a um longa-metragem es-trangeiro, teve também a oportunidade de ver uma compilação de atualidades, o cinejornal. Segundo o pesquisador Ro-drigo Archangelo, da Cinemateca Brasi-leira, em São Paulo, os cinejornais cor-respondem quase à metade de tudo o que foi filmado no Brasil até a época em que deixaram de ser produzidos – mais de 13 mil entre os 40 mil títulos registrados na Cinemateca, somados à estimativa de coleções conhecidas mas ainda não in-corporadas à sua base de dados.

“Os cinejornais são uma fonte históri-ca muito importante que nunca recebeu a devida atenção”, afirma Maria Luiza Tucci Carneiro, professora do Departa-mento de História da Faculdade de Filo-

sofia, Letras e Ciências Humanas da Uni-versidade de São Paulo (FFLCH-USP) e orientadora de Archangelo em suas pesquisas de mestrado e doutorado. Nes-ses estudos, o pesquisador revelou as marcas dos jogos de poder envolvendo políticos do primeiro time, entre eles os presidentes Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart.

A constância da produção dos cine-jornais se deve às leis de obrigatorie-dade de exibição de um “complemen-to nacional” nas sessões cujo programa principal era um filme estrangeiro. O espaço era destinado a curtas-metragens de qualquer espécie, embora os noti-ciosos rapidamente tenham se tornado o prato principal, por diversos fatores, entre eles o custo relativamente baixo e a oportunidade de assumir funções Fo

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A “feira do candango”, o governador Cid Sampaio com o senador Ted Kennedy, Jango com os militares e Carlos Lacerda numa recepção: pauta conservadora

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editora Alameda com o título Um ban-deirante nas telas: o discurso adhemarista em cinejornais. Nesse caso, tratava-se de um acervo menor, com variadas lacunas, mas que se encontrava relativamente bem conservado, até por ter chegado à Cinemateca a tempo (no início dos anos 1970), e o pesquisador pôde realizar sua intenção de analisar o modo como Adhe-mar era apresentado em seu “ritual do poder” – expressão cunhada pelo crítico e professor Paulo Emílio Salles Gomes, fundador da Cinemateca Brasileira, para se referir à imagem dos homens públi-cos nos filmes de “cavação” (material de propaganda paga) nos primórdios do cinema no país.

Em seu doutorado, Archangelo fez uma pesquisa inédita sobre os cinejor-nais Notícias da semana e Atualidades Atlântida, que estão guardados na Cine-mateca desde 2009 e foram produzidos pelo Grupo Severiano Ribeiro (GSR), muito atuante nos ramos de distribui-ção e exibição cinematográficas. O pes-quisador estudou o período entre 1956 e 1961. Além de analisar o ritualismo em torno dos presidentes Juscelino, Jânio e Jango, a pesquisa abordou o modo como o GSR trabalhou o noticiário de modo a oferecer visibilidade a homens públicos e entidades que representavam seus inte-resses de distribuidor e exibidor. “O pa-no de fundo são as escolhas do produtor pelas melhores oportunidades políticas e econômicas no ápice do período na-cional-desenvolvimentista e também no seu esgotamento e no rearranjo das for-ças decisórias em 1961”, diz Archangelo.

Os cinejornais do GSR apresentam similaridades com o Cine Jornal Brasi-leiro, produzido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) da dita-dura de Getúlio Vargas – hoje uma das coleções mais conhecidas entre as arqui-vadas na Cinemateca, por ser também a mais bem preservada. “A presença de Juscelino nos cinejornais retoma do Es-tado Novo a imagem de um país e de um herói nacional que caminhavam para a modernidade e a emancipação econômi-ca”, observa Maria Luiza Tucci Carneiro. “Mesmo sendo uma iniciativa privada, os

Cópias e negativos de filmes marcados pelo tempo e o material impresso usado no trabalho de pesquisa

de propaganda de interesses políticos e econômicos. A demanda pelos cinejor-nais também vinha a calhar para que as empresas produtoras se exercitassem e se mantivessem na ativa. “Eles garan-tiam uma arrecadação segura e faziam os técnicos praticarem para os filmes de ficção, que eram o grande objetivo”, diz Eduardo Morettin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

Archangelo, que começou na Cinema-teca como estagiário e hoje é pesquisador no Centro de Documentação e Pesquisa, conjuga em seus estudos a investigação do conteúdo dos cinejornais com a ve-rificação do material arquivado na insti-tuição. O baixo número de estudos histó-ricos feitos com base nos cinejornais no Brasil se deve às dificuldades de acesso e preservação de todo e qualquer arquivo em filme – mais o imediatismo com que eram tratados pelos próprios produtores. A deterioração dos negativos e cópias, dificuldade de armazenamento, falta de

mão de obra para catalogação e de ver-bas para recuperação, além de disputas judiciais, são alguns dos obstáculos que dificultam o acesso dos pesquisadores.

propaganda No entanto, estão ali testemunhos de pelo menos meio século de história do Brasil, incluindo as imagens de si pró-prios que os governantes gostariam de passar para a posteridade. O potencial propagandístico dos cinejornais foi per-cebido por líderes políticos antes mesmo da lei de obrigatoriedade. No início dos anos 1920, o governador de São Paulo e futuro presidente Washington Luís enco-mendou ao pioneiro realizador Gilberto Rossi a produção de noticiosos. Outro político paulista – o prefeito e governa-dor Adhemar de Barros – e sua imagem promovida pelo cinejornal oficial Bandei-rante da tela (1947-1956) foram objeto da dissertação de mestrado de Archangelo, que está sendo publicada em livro pela

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Jr., nos festejos oficiais da inauguração da nova capital”, diz Archangelo. As ati-vidades da Associação Comercial do Rio de Janeiro, cujos dirigentes eram referi-dos como “classes produtoras”, recebiam cobertura jornalística com regularidade. E a presença do governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda (1961-1965), um dos principais opositores de João Goulart, tornou-se cada vez mais fre-quente no final do período estudado. “O GSR mobilizou cinegrafistas para acom-panhar Lacerda numa viagem a Miami, onde falou para famílias cubanas fugidas do comunismo”, relata o pesquisador.

O elemento popular, ao contrário, pou-co foi documentado. “Na abertura da fá-brica da Volkswagen, os operários não aparecem e, na inauguração de Brasília, menciona-se um desfile dos candangos que não é mostrado em imagens”, diz Archangelo. Uma reportagem sobre a “feira do candango”, onde moradores de cidades distantes sofriam com a falta de transporte para comprar mantimentos na nova capital, mostra o evento como

cinejornais do GSR lidam com o ritua-lismo da agenda presidencial de modo semelhante ao dos cinejornais do perío-do getulista”, prossegue Archangelo. E a apresentação ganhava credibilidade pela presença de Herón Domingues na locu-ção, famosa voz que comandava o radio-fônico Repórter Esso e que seria chamada para narrar a inauguração de Brasília à frente de um consórcio de emissoras de rádio, então o meio de comunicação de maior alcance do país.

Nos cinejornais produzidos pela GSR, destacam-se em particular os Estados Unidos e sua cultura. Como distribui-dor e exibidor, o grupo precisava man-ter boas relações com a produção de Hollywood, que na época mantinha um “embaixador” (hoje se diria lobista) no Brasil, Harry Stone – representante da Motion Pictures Association of Ameri-ca. “Num contexto de ambição de mo-dernidade, o GSR cobria inaugurações de fábricas e dava ênfase à presença de convidados internacionais e do seu pró-prio presidente, Luiz Severiano Ribeiro Fo

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algo pitoresco. Segundo o pesquisador, a desapropriação do Engenho Galileia (PE) foi retratada como concessão do governador conservador Cid Sampaio, sem mencionar que a medida se seguia a uma intensa mobilização de agricultores ligados às Ligas Camponesas.

Para pesquisar o conteúdo dos dois cinejornais do GSR, Archangelo usou como guia a documentação escrita que acompanha o material fílmico nos arqui-vos da Cinemateca. Os papéis incluem os roteiros de locução e as pautas semanais de notícias. As surpresas desagradáveis vieram na comparação com o conteúdo das latas. Muito material requisitado por documentaristas – no período anterior a ser guardado na Cinemateca – foi sim-plesmente cortado e tirado dos rolos de negativos. “Tive que montar um quebra--cabeça”, conta Archangelo.

As pesquisas em cinema exigem es-se mergulho. “Todo historiador precisa ver o material original para verificar a autenticidade e se há enxertos de ima-gens, por exemplo”, diz José Inacio Melo Souza, um dos pioneiros das pesquisas com cinejornais. O trabalho de Archan-gelo chegou aos elementos mínimos (os fotogramas dos filmes e os snapshots da pequena parcela de material que já estava digitalizado). “Peguei plano a plano, fiz a captação das imagens e salvei em pas-tas de arquivo eletrônico”, diz. O traba-lho resultou em aproximadamente 15 mil imagens captadas e cerca de 60 laudos de descarte, procedimento instituído por lei para a destruição de material que já não tem condições de uso. n Márcio Ferrari

ProjetoImagens da nação: Política e prosperidade nos cinejor-nais Notícias da semana e Atualidades Atlântida (1956-1961); Modalidade Bolsa no País – Regular – doutorado; Pesquisadora responsável Maria Luiza Tucci Carneiro (FFLCH-uSP); Bolsista Rodrigo Archangelo (FFLCH-uSP); Investimento R$ 147.778,30.

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88 z DEZEmbro DE 2015

Povo que viveu há

mais de 2 mil anos

na costa peruana

tinha dieta

de agricultor,

baseada em muito

carboidrato

ArqueologiA y

O inusitado cardápio dos Paracas

Por cerca de 900 anos, entre os sécu-los IX a.C. e I d.C., os membros da antiga civilização Paracas habitaram uma faixa litorânea entre o vale de

Cañete e a bacia do Rio Grande de Nazca, no centro-sul do Peru. Distante 270 quilômetros ao sul de Lima, a área em torno da península de Paracas, com grande potencial pesqueiro, foi o cenário dos achados mais importantes dessa cultura na década de 1920, quando foram descobertos grandes cemitérios. Os Paracas são conhecidos por sua arte têxtil, em especial os mantos, cerâmica polida e técnicas de trepanação craniana para tra-tar traumatismos encefálicos causados por batalhas e outras doenças neurológicas. Os trabalhos arqueológicos mais antigos cos-tumam descrever os Paracas da península como um povo cuja alimentação se baseava em peixes e frutos do mar e era apenas com-plementada por cultivos agrícolas.

Marcos Pivetta

Um estudo feito por arqueólogos do Bra-sil e do Peru inverte a visão dominante so-bre os hábitos alimentares desse povo, que antecedeu e influenciou a cultura Nazca. “Embora alguns de seus sítios arqueológicos se situassem a apenas 400 metros do Pací-fico, os Paracas não tinham uma dieta típica de pescador, mas de agricultores”, afirma o principal autor do trabalho, o peruano Luis Pezo-Lanfranco, que concluiu o mestrado e o doutorado no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), onde hoje faz estágio de pós-doutorado. “Eles cultivavam e comiam muito carboi-drato, primeiramente tubérculos e legumes e, mais tarde, essencialmente milho.” A par-ticipação de alimentos do mar em sua dieta decresceu ao longo do tempo enquanto a de carboidratos aumentou.

Ao lado da compatriota Delia Aponte, da Universidade Nacional Maior de São Mar-

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cos, de Lima, e de sua orientadora na pós--graduação, Sabine Eggers, coordenadora do Laboratório de Antropologia Biológica do IB-USP, Pezo-Lanfranco publicou ar-tigo na edição de junho da revista Ñawpa Pacha: Journal of Andean Archaeology sobre a alimentação dos Paracas. O trio analisou a incidência de cáries e a con-servação de 690 dentes de 56 indivíduos oriundos de três fases distintas da ocupa-ção na península e em seu entorno: Kar-was, de 700 a 550 a.C.; Paracas Cavernas, de 550 a 260 a.C.; e Paracas Necrópolis, de 260 a.C. a 100 d.C. Os pesquisadores constataram a presença de ao menos uma cárie em, no mínimo, 70% dos indivíduos de cada período de ocupação e altos índi-ces de cáries de superfícies lisas ou não retentivas. Esses dados sugerem que os Paracas, ao longo de séculos de ocupa-ção costeira, consumiram regularmente carboidratos fermentáveis, tipo de comi-da que favorece a incidência de cáries.

Os dentes também se mostraram pou-co desgastados, indício de que sua dieta devia ser rica em comidas macias, co-mo cozidos de vegetais. O consumo de peixes e frutos do mar, cujos vestígios são abundantes na região, pode não ter sido tão alto quanto o esperado. Anti-gas populações litorâneas que comiam grandes quantidades de alimentos de origem marinha, como as dos sambaquis encontrados em partes da costa brasi-leira, costumam apresentar dentes des-gastados pelo constante atrito mecânico com comida envolta por restos de areia e conchas, um padrão distinto do encon-trado em Paracas.

A partir de amostras da proteína co-lágeno e do mineral apatita extraídas de dentes de 11 indivíduos representativos das três fases de ocupação, os arqueó-logos ainda analisaram a ocorrência de diferentes formas, os chamados isótopos, de três elementos químicos: carbono, ni-trogênio e oxigênio. A concentração dos elementos reflete o caráter da dieta no momento em que os dentes se formaram, durante a infância dos antigos Paracas. Os dados das análises evidenciaram que o peso dos carboidratos era maior do que se pensava e que sua importância aumen-tou com o passar do tempo, sobretudo entre os séculos V e II a.C.

De onde vinham os legumes, os tu-bérculos e o milho consumidos cotidia-namente? Há duas possibilidades, não excludentes: do cultivo feito por eles mesmos em seu território desértico à bei-ra-mar ou de trocas comerciais com po-vos que plantavam em áreas mais férteis dos vales andinos vizinhos. “De qualquer forma, o estudo mostra que os Paracas tinham um desenvolvimento agrícola e uma complexidade social mais antiga do que se imaginava, um dado que pode ter

repercussões sobre a cronologia de ocu-pação das regiões vizinhas”, comenta Sa-bine. Em um primeiro momento, a ideia de que a agricultura pode ter prosperado naquele ponto do atual Peru há mais de 2 mil anos parece um devaneio. Pratica-mente não chove ali (hoje a média anual é de 2 milímetros), há risco de terremotos e tsunamis e o vento é inclemente. “Mas existem evidências de que no passado o clima era menos seco e o lençol freático se encontrava em um nível mais super-ficial”, comenta Pezo-Lanfranco. “Isso deve ter permitido o estabelecimento de sistemas de irrigação para o cultivo mediante o aproveitamento de águas su-perficiais no próprio deserto.” n

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os Paracas eram famosos por seus mantos (página ao lado). Abaixo, dentes de membros desse povo: dieta com mais tubérculos, legumes e milho do que peixe

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Disco Verde

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Vista do Pacífico a partir do antigo território dos Paracas. no mapa, a península ocupada por essa cultura

ProjetoPadrão de subsistência e complexificação social: uma pers-pectiva bioantropológica comparativa entre populações pré--históricas de ecossistemas litorâneos da América do sul (nº 2011/50339-9); Modalidade Bolsa no Brasil – doutorado; Pesquisadora responsável sabine eggers (iB-usP); Bolsista luis Pezo-lanfranco; Investimento r$ 165.547,00.

Artigo científicolAnFrAnco, l. P. et al. Aproximación a la dieta de las socie-dades formativas tardías del litoral de Paracas (costa sur del Perú): evidencias bioarqueológicas e isotópicas. Ñawpa Pacha, Journal of Andean Archaeology. v. 35, n. 1, p. 23-55. jun. 2015.

Puerto Nuevo

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Ilustração detalhada de Joaquim Franco de Toledo revela diversidade de manchas em laranjas

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Maria Guimarães

Publicação do Instituto

Biológico ressalta importância

da ilustração científica

contratada em 1977 como desenhista no serviço que então contava apenas com duas profissionais. O volume de trabalho vinha diminuindo e, quando as colegas se aposentaram, ela perseguiu outros rumos e se especializou em museologia. No final dos anos 1990 o Serviço de Desenho se extinguiu, quando Silvana passou à equipe do Museu do Instituto Biológico e, em seguida, ao Centro de Memória. Foi nesse contexto que começou a

MEMórIA

No ápice da produtividade do Serviço de Desenho

do Instituto Biológico, que funciona num imponente prédio rosado considerado um dos maiores expoentes do estilo art déco do país, na zona sul da capital paulista, 17 desenhistas produziam uma profusão de ilustrações de plantas, animais e suas doenças para dar visibilidade à pesquisa integrando artigos científicos, aulas e folhetos de divulgação, entre outros. “Havia uma camaradagem

Uma intersecção entre ciência e arte

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Técnicas diversas: doenças de aves estudadas por José reis, no desenho de Lilly althausen, e insetos pintados por edgar Barretta

entre os pesquisadores, que em geral eram médicos, e os ilustradores”, conta a bióloga Márcia Rebouças, uma das autoras do Catálogo do acervo de ilustradores do Museu do Instituto Biológico, lançado em novembro. “Um dependia do outro para dar visibilidade ao seu trabalho, não havia uma percepção de que um fosse mais importante do que o outro.”

O acervo é resultado, em grande parte, do esforço de Silvana D’Agostini,

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garimpar ilustrações em geral destinadas à lixeira e formar o conjunto que hoje conta com cerca de 2.500 desenhos de 37 ilustradores.

“A percepção desses originais como documentos históricos é recente”, explica. No passado, a maior parte era descartada depois de enviada à gráfica para compor publicações, ou acabava em pilhas de papéis sem importância na sala ou na casa de pesquisadores. Agora recuperadas e em parte expostas no livro recém-publicado, que pode ser retirado gratuitamente na própria instituição, essas obras trazem à tona a

frutífera parceria entre ciência e arte. Silvana explica que, apesar do avanço da fotografia, a ilustração ainda é insubstituível pela possibilidade de ressaltar detalhes que interessam ao pesquisador, eliminando ruídos desnecessários, e de reunir em uma imagem todos os elementos que compõem uma descrição. “Muitas vezes nem é necessário legenda, tal a riqueza de detalhes.”

Silvana conta que os pesquisadores solicitavam os serviços de um dos desenhistas quando precisavam registrar alguma imagem de sua pesquisa e com frequência acompanhavam o trabalho apontando os detalhes relevantes. Era comum ilustradores terem mais afinidade com um tipo de objeto e formarem parcerias mais frequentes com algum cientista, embora pudessem variar de tema. A alemã Lilly Ebstein, por exemplo, na verdade funcionária da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), era colaboradora frequente de José Reis, que pesquisava doenças de aves no Instituto Biológico (além de profundamente empenhado em divulgação e educação científicas).

A variedade de técnicas e recursos correspondia à diversidade de objetos a serem retratados. “Usávamos aparelhos especiais para desenho como câmara clara e normógrafo, instrumentos ópticos como microscópios”, lembra Silvana, que antes de passar no concurso público estava habituada a técnicas completamente diferentes de desenho à mão livre. O material incluía nanquim, guache, lápis

de cor, aquarela e pastel. “Apelávamos para a técnica mista com frequência, usando vários desses recursos para um mesmo trabalho”, conta, lembrando-se do desespero de uma das desenhistas ao pintar uma borboleta de asas iridescentes que mudavam de cor a cada vez que olhava. “Era azul, depois roxa, de repente era verde!” Por vezes as estruturas eram tão delicadas que não havia pena fina o suficiente e era preciso escurecer o papel e retirar a tinta com gilete, as antigas lâminas de barbear. “Mas só servia a Gillette preta, que depois deixou de existir; a de inox não funcionava.”

Além das publicações científicas, as ilustrações eram essenciais para a

a broca-do-café (acima, por Juventina dos Santos) foi um dos motivos para a criação do Instituto Biológico. À esquerda, anomalia em osso de mula por Lilly althausen

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comunicação mais ampla que integra a razão de ser do Instituto Biológico, fundado em 1927 graças ao sucesso de uma comissão criada para elucidar e combater a praga da broca-do-café, que deixava ocos os frutos e ameaçava a safra (e a atividade econômica) paulista. Trata-se de um minúsculo besouro cuja larva entra na cereja do café por um furinho e come todo o interior do fruto, deixando a casca oca. Originária da África, a praga não tinha predador natural no Brasil. Numa ação precursora do controle biológico, termo ainda não usado na época, um funcionário do instituto foi a Uganda buscar a vespa predadora, para criar aqui e distribuir nos cafezais.

Mas nada disso surtiria efeito sem informar a população rural e os trabalhadores das plantações, que muitas vezes deixavam frutos contaminados no chão, onde as larvas se desenvolviam e acabavam infectando outras plantas. “Havia filmes projetados dentro de vagões de trem”, conta a bióloga Márcia Rebouças, que há 56 anos

entrou no Biológico como estagiária e depois foi técnica de laboratório, pesquisadora, diretora do museu e fundadora do Centro de Memória. “O trem parava perto das fazendas e os proprietários e funcionários iam assistir aos filmes.” As publicações distribuídas incluíam as minuciosas ilustrações, mas também recorriam a humor e formas didáticas de expor as questões, como no livreto História de um bichinho malvado, feito para ser distribuído em escolas.

Hoje o acervo mantido por Silvana e Márcia pode ser consultado e vale tanto como arquivo histórico como ainda pode ser referência para ilustrar doenças de laranjais (outra praga enfrentada pela pesquisa ali realizada) e uma variedade de outros fins. Embora os departamentos de pesquisa não costumem mais ter ilustradores no corpo fixo, a atividade se mantém importante. “Usamos ilustrações com frequência, principalmente nas publicações que descrevem espécies novas”, conta a botânica Lúcia Lohmann, da USP. Mas ela explica que os desenhistas são contratados por trabalho e já não têm segurança de quando serão solicitados. Além de ser mais difícil viver apenas de ilustração científica, é provável que a relação esporádica deixe de lado a cumplicidade entre os profissionais ressaltada por Silvana. “Não queremos que a ilustração seja vista como acessória, mas como ferramenta fundamental e uma colaboração entre artista e cientista”, afirma. n

Helena Franco do amaral (louva-a-deus, no alto) atuou até os anos 1990; Joaquim Franco de Toledo (verrugose do limão, acima) era botânico, além de ilustrador

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Exposição reúne

arqueologia e artistas

contemporâneos

Esculturas em pedra de tempos anteriores a Cristo e obra da artista contemporânea paraense Berna Reale: reflexão sobre os desafios atuais

Pensar a produção contemporânea a partir de nossa arte mais ancestral. Esse é o enigma proposto pela 34ª edição do Panorama da

Arte Brasileira, em cartaz até 18 de dezembro no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). O núcleo central da exposição, intitulada Da pedra da terra daqui, é um conjunto representativo de 60 esculturas em pedra polida, realizadas entre 4 mil e 1 mil anos antes de Cristo, na região costeira que hoje corresponde ao sul do Brasil e norte do Uruguai. A maioria delas foi encontrada em esca-vações feitas nos sambaquis, como são chamados os grandes acúmulos de conchas, com múltiplos usos (de residência a monumento funerário), dis-persos ao longo desse litoral. Para dialogar com a síntese formal das peças indígenas, foram convi-dados seis artistas contemporâneos: Cildo Mei-reles, Cao Guimarães, Miguel Rio Branco, Berna Reale, Erika Verzutti e Pitágoras Lopes.

“Para mim, essa exposição fala do artista que observa seu ambiente, seja há 6 mil anos ou nos dias de hoje”, explica a curadora Aracy Amaral, professora titular de História da Arte da Facul-dade de Arquitetura e Urbanismo da Universi-dade de São Paulo (FAU-USP). Há mais de 20 anos ela busca dar visibilidade à coesão, beleza e unidade estilística que caracterizam as peças arqueológicas agora em exposição. O público in-teressado em arte no Brasil que conhece bem a obra do romeno Constantin Brancusi (1876-1957), por exemplo, dificilmente teve a possibilidade de ver de perto essas esculturas de pedra polida, em sua maioria representando animais (zoólitos), que tanto lembram a elegância das formas do mestre modernista. “O fascinante é o enigma que rodeia essas peças que resistiram à depredação dos séculos”, diz Aracy. “Sua presença em locais de túmulos assinala igualmente a religiosidade que rodeia esses povos milenares, desaparecidos séculos antes da chegada dos europeus.”

O interesse da historiadora em divulgar o acer-vo em pedra remonta aos anos 1980, quando vi-

Maria Hirszman

Arte

Diálogo com um passado remoto

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Vestígios de uma cultura que não deu certo na obra de Miguel Rio Branco (acima) e peça indígena que lembra Brancusi (direita)

Abaixo, cenas do projeto de Cildo Meireles, Elevar a estatura do Brasil, executado no pico da Neblina pelo fotógrafo Edouard Fraipont

sitou quase todos os museus que abrigam essas peças em seus acervos. Em 1981, no texto “A es-cultura brasileira”, ela afirmou que a produção indígena em pedra “alcança elevado nível de solu-ção plástico-visual, ao mesmo tempo que harmo-niosamente vinculada ao contexto local, por sua inspiração e material”. Desde o início dos anos 2000, quando o desejo de reuni-las numa expo-sição se transformou em projeto, a historiadora buscou a assessoria do arqueólogo André Prous, professor da Universidade Federal de Minas Ge-rais (UFMG) e autor do livro O Brasil antes dos brasileiros (Jorge Zahar Editor, 2007).

A decisão de convidar, entre os artistas con-temporâneos, apenas um pequeno grupo, e sem a obrigatoriedade de contemplar artistas jovens, interrompe a tendência seguida pelo Panorama da Arte Brasileira nas últimas décadas de alinhavar um número grande de artistas em torno de uma tese curatorial. Os participantes foram escolhidos por Aracy Amaral e seu curador adjunto, Paulo Miyada, de maneira intuitiva, mas também por serem presenças fortes no cenário atual. Cada um celebra, de algum modo, o resgate de um passa-do distante e as implicações estéticas de pensar criticamente a cultura nacional a partir de uma base muito mais ampla do que a da costumeira cronologia a partir do descobrimento.

Cao Guimarães, em um vídeo-ensaio de 15 mi-nutos, cria um tempo dilatado e descobre em pe-

regrinação pela região onde existiam sambaquis, em Santa Catarina, algo como o elo perdido com as tradições e costumes dos povos que criaram esses tesouros pré-cabralinos. Hoje, como ontem, há pessoas que sobrevivem da pesca e separam moluscos das valvas (conchas). Já Berna Reale fala não do tempo pregresso, mas dos desafios e encruzilhadas do mundo atual. Tanto na insta-lação O tema da festa quanto no vídeo Habitus, a artista e perita criminal de Belém (PA) expõe a naturalização da violência na sociedade brasileira.

Pessimista, Miguel Rio Branco reconstrói uma representação do mundo pós-humanidade, na qual a natureza toma conta dos vestígios de uma cultura que não deu certo, representada por car-caças de televisões e restos de material retorci-do. Erika Verzutti e Pitágoras Lopes trazem os trabalhos que lidam de forma mais literal com o universo dos homens que criaram os zoólitos.

A obra mais ousada e complexa da exposição é a de Cildo Meireles. O artista concretizou um projeto idealizado em 1969, Elevar a estatura do Brasil, acrescentando no topo do pico da Nebli-na, montanha mais alta do território nacional, uma pedra tirada do fundo da terra. O projeto demandou parcerias, sobretudo a com o fotó-grafo Edouard Fraipont, incumbido de realizar a ação, e uma intensa negociação com os índios Ianomâmi, que consideram o pico da Neblina, ou Yaripo (como o chamam), território sagrado. n

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As contribuições de Vicente Coelho de Seabra Silva Telles (1764-1804), o primeiro químico mo-derno brasileiro, são tema de um capítulo, que se refere inicialmente à sua primeira obra, Disser-tação sobre a fermentação (1787). Nesse trabalho, Seabra introduz a teoria do oxigênio de Lavoisier na literatura química portuguesa. A seguir o autor analisa duas obras publicadas por Seabra em 1788, um ano antes da publicação do Traité élémentaire de chimie, de Lavoisier: Dissertação sobre o calor e Elementos de química. Nelas, as interpretações da natureza da combustão e da redução alinham-se com as ideias do químico francês.

Um capítulo é dedicado às contribuições cien-tíficas de José Bonifácio de Andrada e Silva, os trabalhos publicados por ele e suas descobertas de novos minerais, entre os quais a petalita, um mineral de lítio. José Bonifácio tornou-se o úni-co brasileiro diretamente envolvido nos eventos que levaram à descoberta de um novo elemento químico – o lítio.

Há um capítulo que trata das implicações da vinda da Corte portuguesa para o Brasil, tais co-mo a institucionalização do ensino de ciências e o início da siderurgia no país. O gosto de dom Pedro II pela ciência é matéria de um outro capí-tulo, que contém informações sobre a formação científica que o imperador deu às suas filhas, e sobre o interesse da princesa Isabel pela química.

Um capítulo aborda as origens da universidade brasileira desde a vinda dos jesuítas, a fundação das primeiras faculdades de medicina depois da che-gada da Corte portuguesa e o início das atividades de ensino superior, sem interrupção, com a cria-ção da Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho (1792), núcleo do que viria a constituir a atual Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O autor optou por enfatizar o período com-preendido entre os séculos XVI e XIX, reservando o capítulo final para nos dar sua visão da história da química e da modernização científica do país no século XX.

O texto, de leitura agradável, interessa não ex-clusivamente a químicos, mas também a cientistas de outras áreas e a historiadores.

Segundo Carlos Alberto Lombardi Filgueiras: “O sortilégio da musa Clio é universal, pois não há homem sem história, mas ele se reve-

la particularmente agudo entre homens de ciên-cia”. Em Origens da química no Brasil, Filgueiras descreve não somente as origens da química, mas também as origens das ciências e das técnicas em nosso país. Fruto de cuidadoso trabalho de pes-quisa em história da ciência empreendido pelo autor, o livro é ricamente ilustrado com figuras que coletou em museus e bibliotecas no Brasil e em Portugal, ou com material de sua própria coleção.

Começando com uma introdução sobre a na-tureza da história da ciência, o autor passa em seguida a um capítulo sobre a mundialização do conhecimento ocorrida nos séculos XVI e XVII, em que descreve as trocas de ideias, livros, plan-tas, animais e mercadorias, como resultado das grandes navegações e da exploração de novas ter-ras. Descreve também o impacto da mundializa-ção no acúmulo do conhecimento e na revolução científica, que a partir de então não pôde mais ser considerada um fenômeno puramente europeu, em razão das influências trazidas da América, da Ásia e da África à Europa. O autor menciona o efeito dos novos conhecimentos sobre os princí-pios da ciência existentes até então e comenta o papel fundamental que a periferia – o mundo ex-traeuropeu – exerceu sobre o fenômeno maior da história da ciência, a revolução científica.

Segue-se uma seção sobre o Brasil colonial e a química, que descreve as técnicas envolvidas na produção da cana-de-açúcar e de aguarden-te. O autor aborda ainda a terceira fase econô-mica colonial, a partir do final do século XVII, com os ciclos do ouro e dos diamantes, na qual serão necessários conhecimentos científicos de mineralogia e geologia. Há também uma análise da influência dos jesuítas na educação no Brasil Colônia e finalmente é discutida a contribuição científica dos holandeses durante seu domínio no Nordeste (1637-1644).

Um capítulo dedicado à ciência e às técnicas no século XVIII compreende a descrição de técnicas militares na produção de pólvora, de conhecimen-tos metalúrgicos e químicos relacionados à mine-ração e uma abordagem da medicina praticada no Brasil no mesmo período.

A química e suas origens no brasil

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Origens da química no Brasil Carlos Alberto Lombardi FilgueirasEditora Unicamp / SBQ / CLE-Unicamp504 páginas | R$ 120,00

heloisa Beraldo

heloisa Beraldo é professora do Departamento de Química da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E

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O maior desafio de novos empreendedores, sobretudo aqueles que saem direto da universidade, é apresentar a própria empresa de forma objetiva e clara em poucos minutos para que todos os possíveis interessados em apoiá-la possam entender. Isso acontece em eventos de inovação e empreendedorismo, como concursos, mostras de tecnologias, conferências, incubadoras, principalmente para investidores. Essa prática se desenvolveu em encontros de aceleradoras de empresas e é chamada de pitch – expressão inglesa para uma curta apresentação de vendas. As aceleradoras são empresas ou instituições que oferecem programas de treinamento e mentoria para o empreendedor avançar na formatação do negócio.

A maioria das apresentações ou pitches é realizada em até

sete minutos, o que exige muita concisão e clareza do negócio, do mercado, dos concorrentes, além de mostrar que o empreendedor ou a equipe são capazes de desenvolver determinada tecnologia ou inovação. “O mais difícil é contar uma história linear; se conseguir, já é meio caminho andado”, diz André Fossa, treinador de pitches no Desafio Unicamp, uma competição realizada anualmente pela Agência de Inovação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A ideia é estimular novos empreendimentos baseados em tecnologias desenvolvidas na universidade. André é administrador de empresas, fez MBA pela Columbia Business School e fundou o Agenda Pet, um portal de serviços para animais de estimação. Ele tem também um blog (www.milliondollarpitches.com) que traz dicas para apresentações.

“Eu relaciono 11 tópicos para um pitch que começa com a abertura e apresentação pessoal e vai até o fim quando é preciso apresentar algum resultado”, diz André. “Sugiro que a pessoa inicie o treinamento com duas vezes o tempo que terá na apresentação principal. Faz, grava e revisa, se policiando para ser o menos prolixo possível”, ensina.

Para Alan Leite, administrador de empresas e sócio da aceleradora de empresas Startup Farm, o empreendedor deve expor de modo claro a capacidade de transformar o projeto em algo com resultado. A Startup Farm realizou um programa de aceleração em junho deste ano em parceria com o Instituto de Matemática e Estatística (IME) da Universidade de São Paulo (USP) (ver Pesquisa FAPESP nº 233). “No pitch é preciso demonstrar uma paixão enorme e um conhecimento profundo do que se pretende fazer e do mercado”, diz Alan. “Muitas vezes, um empreendedor mais técnico pensa naquilo que faz mais sentido na cabeça dele, mas para os outros isso não está exposto de forma clara e objetiva”, comenta.

“Na fase de treinamento é que se percebe quando a estrutura do negócio tem problemas, que falta um raciocínio lógico”, diz. “O problema aí não é o pitch, mas a falta de entendimento do negócio”, afirma André. Outra recomendação que Alan faz é que todos devem ser transparentes com os números apresentados, como tamanho de mercado, por exemplo. Em apresentações mais reservadas como aquelas feitas com possíveis investidores, o ideal, segundo André, é ser flexível porque o empreendedor vai ser interrompido e as respostas têm que ser imediatas, não deixar para depois ou falar que “isso eu vou apresentar mais à frente”. n Marcos de Oliveira

empreendedorismo

Como convencer um investidoruma boa apresentação é fundamental para startups conseguirem financiamento

CArrEIrAS

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Foco e determinação doutora em bioquímica pela usp abre escritório que presta serviços de assessoria em propriedade intelectual

Ao assistir a uma palestra de um bioquímico que falava sobre patentes no segundo ano da graduação, a então estudante de 19 anos, Leonor Magalhães Galvão, resolveu que gostaria de tratar desse assunto profissionalmente. “Liguei para casa e falei para a minha mãe que tinha descoberto o que queria fazer pelo resto da minha vida”, lembra Leonor. “Nesse seminário, chamado ‘Patent Law for Academics’, eu esperava um advogado, mas apareceu um bioquímico que explicou o básico sobre patentes e a importância de uma formação técnica para atuar na área”, conta Leonor. A palestra foi no Imperial College of Science, Technology and Medicine, da Universidade de Londres, na Inglaterra, onde ela, portuguesa de Lisboa, cursou a graduação em Bioquímica entre 1996 e 2000.

Mesmo pensando em patentes, ela experimentou a bancada de laboratórios em projetos de iniciação científica, o que só reforçou sua decisão. “No laboratório a velocidade é muito lenta, as coisas demoram para acontecer, ficar observando uma molécula por quatro anos não é para mim”, diz. “Na área de patentes, não se veem os experimentos que deram errado, só chega para nós o que deu certo e podemos contribuir de forma muito positiva para que a ciência desenvolvida durante tantos anos chegue finalmente ao mercado.” Mesmo decidida, ela achou que valia a pena se doutorar. “Na Europa, o fato de ter o doutorado ajuda muito porque os escritórios de patentes querem profissionais com essa titulação, especialmente na área de ciências da vida.”

Em 2000, ela solicitou à Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal uma bolsa

para fazer o doutorado na mesma instituição inglesa. Mas, em 2001, ela conheceu seu futuro marido em uma viagem ao Brasil e resolveu mudar o seu doutorado. O governo português concordou e Leonor ingressou no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) para fazer o doutorado, sob a orientação do professor Shaker Chuck Farah.

Na época, no Brasil, o sequenciamento dos genomas de vários organismos ganhava impulso. Seus estudos sobre a bactéria Xanthomonas axonopodis citri, por exemplo, foram utilizados no Projeto Genoma Estrutural, iniciado em 2001, que tinha o objetivo de analisar as funções das proteínas descobertas nos genomas das bactérias Xylella fastidiosa e Xanthomonas spp, por exemplo. Paralelamente, ela estudava sobre a legislação de patentes por conta própria e prestou exame para se credenciar no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI). Depois atuou como consultora em alguns escritórios de patentes. Em 2005, antes de defender a tese em 2007, desistiu da bolsa e começou a trabalhar, em São Paulo, no escritório de propriedade intelectual Monsen Leonardos.

Em fevereiro de 2015, aos 37 anos e já com três filhos, Leonor montou com mais três sócios a Magellan IP, um escritório que presta serviços de assessoria em processamento administrativo e consultoria em todas as áreas de propriedade intelectual. Leonor atua na área de patentes, com especial enfoque em biotecnologia, e representa clientes nacionais e internacionais interessados em explorar a sua propriedade intelectual no país e no exterior. “A vivência da

bancada me ajuda hoje a entender o pesquisador e indicar a ele o que é necessário para que uma patente proteja uma determinada invenção da melhor forma possível”, conta. Além do trabalho no escritório de patentes, ela participa desde 2005 da coordenação da Comissão de Estudos de Biotecnologia da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual, que reúne escritórios e empresas interessadas no tema.

O grande desafio para ela agora é ser empresária e cuidar da gestão da empresa que inclui a folha de pagamento dos 17 colaboradores, marketing e financeiro. Leonor acredita que o desafio para o Brasil é entender que propriedade intelectual é investimento. “Já melhorou muito, nas universidades e empresas brasileiras, mas ainda é preciso educar as pessoas para que elas compreendam o valor e as demandas de uma patente.” Ela acredita que a disseminação de palestras como aquela que assitiu aos 19 anos na Inglaterra é da maior importância para alcançar esse objetivo. O primeiro passo foi dado na FAPESP, em outubro, quando ela foi uma das palestrantes do seminário “O valor de suas ideias: como proteger a sua propriedade intelectual no Brasil e nos Estados Unidos”. n M. O.

leonor galvão: experiência de bancada ajuda a entender melhor o pesquisador

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Pesquisa Brasil traz notícias e entrevistas sobre ciência, tecnologia, meio ambiente e humanidades. Os temas são selecionados entre as reportagens da revista Pesquisa FAPESP.

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Toda sexta-feira, das 13h às 14h, você tem um encontro marcado com a ciência na Rádio USP FM

a cada programa, três pesquisadores falam sobre o desenvolvimento de seus trabalhos recentes – e ajudam a escolher a programação musical.