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TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007 p. 138-171 E QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA: OS FAVELADOS COMO POPULAÇÃO “MATÁVEL” E SUA LUTA POR SOBREVIVÊNCIA Juliana Farias RESUMO Na primeira parte deste artigo, focalizo alguns momentos significativos dos dois primeiros anos de atuação de um movimento social que luta contra a violência policial em favelas no Rio de Janeiro, destacando situações em que uma linguagem dos Direitos Humanos é acionada, traduzida e reconfi- gurada – trazendo mais elementos para o processo de atualização dos vocabulários de protesto do grupo. Na segunda parte, invisto em uma relei- tura do histórico das favelas na cidade do Rio de Janeiro, buscando articular ferramentas teóricas e elementos empíricos capazes de me auxiliar na interpretação do processo de construção dos me- canismos que possibilitaram o enquadramento dos moradores de favelas como um grupo populacional merecedor de “tratamentos especiais” – processo que transformou o conjunto dos favelados em uma população “matável” PALAVRAS-CHAVE favelas violência policial direitos humanos ação coletiva

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TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007 p. 138-171E

QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA:

OS FAVELADOS COMO POPULAÇÃO “MATÁVEL”

E SUA LUTA POR SOBREVIVÊNCIA

Juliana Farias

RESUMO

Na primeira parte deste artigo, focalizo alguns

momentos significativos dos dois primeiros anos

de atuação de um movimento social que luta contra

a violência policial em favelas no Rio de Janeiro,

destacando situações em que uma linguagem dos

Direitos Humanos é acionada, traduzida e reconfi-

gurada – trazendo mais elementos para o processo

de atualização dos vocabulários de protesto do

grupo. Na segunda parte, invisto em uma relei-

tura do histórico das favelas na cidade do Rio de

Janeiro, buscando articular ferramentas teóricas

e elementos empíricos capazes de me auxiliar na

interpretação do processo de construção dos me-

canismos que possibilitaram o enquadramento dos

moradores de favelas como um grupo populacional

merecedor de “tratamentos especiais” – processo

que transformou o conjunto dos favelados em uma

população “matável”

PALAVRAS-CHAVE

favelas

violência policial

direitos humanos

ação coletiva

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NO DIA 16 DE ABRIL DE 2005, a primeira página do jornal Folha de S. Paulo exibia

suas manchetes encaixadas entre três fotografias coloridas. A fotografia localizada

na região central da página mostrava uma menina negra, séria, de uns seis ou

sete anos de idade, com um penteado de trancinhas bem feitas, dedo indicador

da mão esquerda na boca e olhar fixo nas lentes da câmera. Na mão direita a

menina segurava um cartaz no formato ‘pirulito’ que preenchia a fotografia de

uma margem lateral à outra, chamando a atenção do leitor para o texto: “I have

been a victim of violence!!! Who will be the next? YOU??? We hope not”. Abaixo

da fotografia, a legenda: “Globalizados. Menina exibe cartaz, em inglês, contra

violência; 1.200 sem-terra e favelados do Rio protestaram na língua para atingir

‘a opinião pública internacional’”.

A imagem havia sido registrada durante uma manifestação pública co-orga-

nizada pelo “Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra” e pela “Rede de

Comunidades e Movimentos contra Violência”. O cartaz que chamou a atenção

do fotógrafo, na verdade, é bilíngüe – de um lado o texto está em inglês e do outro

em português – e já havia estampado outras páginas de jornal em abril de 2004,

quando um grupo de moradores de favelas cariocas decidiu caminhar até a sede do

Governo do Estado para denunciar a violação dos seus direitos e exigir justiça.

Não só a imagem do cartaz bilíngue, mas outras que também retratam as duas

manifestações públicas mencionadas serão recuperadas durante a análise decritiva

que desenvolvo na primeira parte deste artigo. Após uma breve apresentação da

“Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência”, focalizo alguns momentos

significativos dos seus dois primeiros anos de atuação, destacando situações em

que uma linguagem dos Direitos Humanos é acionada, traduzida e reconfigurada

– seja através das parcerias estabelecidas, nas entrelinhas dos discursos proferidos,

ou mesmo na confecção de faixas e cartazes – trazendo mais elementos para o

processo de atualização dos vocabulários de protesto do grupo1.

1 Este artigo apresenta parte das idéias desenvolvidas na minha dissertação de mestrado,

intitulada “Estratégias de Visibilidade, Política e Movimentos Sociais: reflexões sobre a luta

de moradores de favelas cariocas contra a violência policial” – trabalho que resultou de uma

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Já na segunda parte, invisto em uma releitura do histórico das favelas na cidade

do Rio de Janeiro, buscando articular ferramentas teóricas e elementos empíricos

capazes de me auxiliar na interpretação do processo de construção dos mecanismos

que possibilitaram o enquadramento dos moradores de favelas como um grupo

populacional merecedor de “tratamentos especiais” – processo que, ao longo do

tempo, transformou o conjunto dos favelados em uma população “matável”.

1. DIREITOS HUMANOS: FOCO E FONTE DE AÇÕES COLETIVAS

1.1 Dos produtores do cartaz bilíngue

Para apresentar os produtores do tal cartaz bilíngüe, considero fundamental es-

crever algumas linhas sobre duas pessoas em especial: Thiago da Costa Correia

da Silva e Carlos Magno de Oliveira Nascimento2.

Thiago sempre gostou muito de matemática, se profissionalizou como me-

cânico e, ainda bem novo, foi pai de uma menina esperta de cabelos cacheados

chamada Gabriela. Carlos Magno gostava muito de esportes e desde que foi morar

com sua mãe e seu padrasto na Suíça aprendeu a esquiar. Carlos Magno também

estudava na Suíça, mas tinha vindo ao Brasil para se alistar no serviço militar

do seu país de origem e estava passando férias na casa da sua avó materna, que

morava no morro do Borel. Thiago da Costa também morava no morro do Borel

e os dois eram amigos de infância.

No dia 17 de abril de 2003, Thiago e Magno combinaram de se encontrar numa

barbearia para cortarem o cabelo. A barbearia, que na época era muito procurada pelos

moradores mais jovens do Borel, ficava na Estrada da Independência, a via principal

que sobe o morro e por onde é possível passar de carro. Quando Magno e Tiago saíram

pesquisa etnográfica que se estendeu de abril de 2004 a julho de 2007. Agradeço a todos os

integrantes da “Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência” (especialmente às

mães de vítimas de violência) pela confiança depositada na minha “observação participante”

e também à Dalva Correia, por todas as oportunidades de aprendizado que me proporcionou.

Agradeço, ainda, aos demais interlocutores cuja paciência eu gastei durante a elaboração deste

trabalho: Alberto Calil, Bianca Freire-Medeiros, Fabiene Gama, Jussara Freire, Lia Rocha,

Luiz Antonio Machado da Silva, Palloma Menezes, Patrícia Birman e Raíza Siqueira. Agradeço

especialmente à Marcia Pereira Leite, por nunca ter desistido de me orientar.2 Todos os nomes apresentados neste artigo são verdadeiros. Ao utilizar os nomes verdadeiros

das vítimas, de seus familiares e dos demais atores envolvidos na luta contra violência policial,

estou respeitando as suas identidades individuais e também apoiando (dentro dos limites de

um trabalho acadêmico) os esforços para trazer visibilidade e legitimidade à luta em questão.

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do barbeiro, escutaram sons de tiros e correram. Carlos Alberto da Silva Ferreira, outro

morador da comunidade que tinha acabado de chegar à barbearia, também ouviu

os tiros e correu. Pensando que os tiros estavam vindo da parte de baixo da própria

Estrada da Independência, os três rapazes atravessaram a rua e seguiram para um

beco bem em frente à barbearia, conhecido como Vila da Preguiça.

Ao entrarem na Vila da Preguiça, os três rapazes foram alvejados. Um grupo

de policiais estava na laje de uma casa em construção na mesma vila. Justamente

de cima da laje partiram os primeiros disparos. Magno, que tinha 18 anos, morreu

na hora: levou seis tiros, dentre os quais três pelas costas (cabeça, braço direito

e região escapular esquerda) e três tiros pela frente (ombro esquerdo, bacia e

clavícula)3. Mas os tiros não partiram somente de cima da laje. Tiago, que tinha

19 anos, ainda agonizou no chão pedindo socorro e dizendo que era trabalhador.

Morreu após levar cinco tiros, quatro pela frente e um pelas costas (região dorsal

direita)4. O laudo ainda atesta uma “alta energia cinética” na saída dos projéteis, o

que demonstra que alguns dos disparos foram efetuados à “queima roupa”. Confir-

mando a versão dos disparos a curta distância, o laudo de Carlos Alberto também

aponta para uma “alta energia cinética” na saída dos projéteis. “Carlinhos”, como

era conhecido, era pintor e pedreiro e tinha 21 anos. Sofreu doze disparos (sendo

sete deles pelas costas), além de fratura no antebraço e no fêmur. É importante

observar que cinco dos disparos atingiram a parte interna do seu antebraço direito

e mãos direita e esquerda – o que demonstra que tentava se defender dos tiros

efetuados contra ele com os braços dobrados na frente do corpo e/ou do rosto5.

Esta é somente uma parte do resultado desta operação – realizada por dezes-

seis policiais do 6º Batalhão da Polícia Militar (BPM), sediado no bairro da Tijuca.

Houve ainda outra vítima fatal: Everson Gonçalves Silote, que tinha 26 anos e era

taxista. Everson voltava para casa a pé quando foi rendido por policiais militares na

Estrada da Independência. Como trazia um envelope com seus documentos, o rapaz

tentou se identificar e, por esse motivo, teve seu braço direito quebrado por um

golpe do policial. Afirmando ser trabalhador, insistiu em mostrar os documentos,

mas foi executado antes de apresentá-los. Levou quatro tiros pela frente (tendo

cabeça e coração atingidos) e um pelas costas (próximo à coluna cervical)6.

Além das quatro vítimas fatais, tal incursão da polícia militar ainda deixou

baleados Pedro da Silva Rodrigues e Leandro Mendes – também moradores do

3 Laudo cadavérico 2658/2003 – Instituto Médico Legal (IML).

4 Laudo cadavérico 2659/2003 – IML.

5 Laudo cadavérico 2657/2003 – IML.

6 Laudo cadavérico 2660/2003 – IML.

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Borel. Ao fim das quatro execuções, os policiais colocaram os corpos de Magno,

Tiago, Carlinhos e Everson dentro do camburão que estava estacionado na saída da

Vila, na própria Estrada da Independência. Nenhum morador do local conseguiu

se aproximar das vítimas, nem mesmo seus familiares. Tiveram que se contentar

com as “instruções” dos policiais: “Se quiser ver, vai no [hospital do] Andaraí.”,

“Se quiser ver vai atrás, no Andaraí”7.

Hoje está evidente para mim que é impossível apresentar a ‘Rede de Comunida-

des e Movimentos contra Violência’ sem falar claramente da interrupção das vidas

de Carlos Alberto da Silva Ferreira, Carlos Magno de Oliveira Nascimento, Everson

Gonçalves Silote e Thiago da Costa Correia da Silva. Ou seja, trata-se de um grupo

de pessoas que se uniu quando as trajetórias desses quatro rapazes foram interrom-

pidas. Mas é importante ressaltar que o “quando” está destacado porque o grupo se

uniu a partir daquele episódio, mas não necessariamente por causa dele: parte dos

integrantes da ‘Rede’8 já militava em outros movimentos sociais urbanos, já estava

7 Depoimento de Dalva Correia, mãe de Tiago da Costa Correia da Silva, em entrevista realizada

por mim, em maio de 2004. Além deste depoimento, utilizei outras fontes para elaborar esta

apresentação do caso do Borel: o Relatório de Execuções Sumárias (1997–2003), do Centro de

Justiça Global; um documento redigido no dia 24 de abril de 2003, pelos moradores do Borel,

para ser encaminhado aos poderes públicos e à imprensa, além de entrevistas e conversas

com moradores do Borel e com outros familiares das vítimas desta operação policial.8 Para o texto não ficar muito repetitivo, utilizarei também a palavra ‘Rede’ para me referir à ‘Rede

de Comunidades e Movimentos contra Violência’. É necessário esclarecer ainda que, apesar da

relevância das discussões a respeito do conceito de “rede” nas ciências sociais, que têm produzido

diversas análises sobre as possibilidades e limites de suas diferentes modalidades de atuação,

sua natureza, seus objetivos e os contextos que presidem sua estruturação (consultar Castells

1999; Alvarez, Dagnino & Escobar, 2000), optei por não desenvolver este eixo analítico neste

trabalho, dado o foco de minha investigação. Entretanto, percebendo que tal esforço pode enri-

quecer as explicações a respeito do modo de operação da ‘Rede de Comunidades e Movimentos

contra Violência’, algumas observações se fazem necessárias. O termo “rede” é tomado por seus

integrantes apenas como uma parte do nome deste grupo por lhe permitir se apresentar publi-

camente enquanto um movimento social integrado por diversos atores e movimentos. Mas esta

apropriação do vocabulário político “do tempo” também indica, como sustenta Dagnino, “uma

construção coletiva que resulta [da] [...] articulação de movimentos sociais de vários tipos com

outros setores e organizações” [com base] “em um campo comum de referências e diferenças

para a ação coletiva e a contestação política (Baierle 1992: 19 apud Dagnino 2000: 80). Por

certo, esta articulação é, em vários casos, pontual e contextual – o que leva a autora a referi-la

nestas situações através da noção de “teias”. Mas, no caso em análise, esta forma de articulação

e apresentação pública de si é o que permite à ‘Rede’ lidar com as conhecidas variações de in-

serção e participação de atores individuais e coletivos – os chamados “fluxos” e “refluxos” dos

movimentos sociais (Machado da Silva & Ziccardi 1983; Scherer-Warren & Krischke 1987; Gohn

1997; Alvarez, Dagnino & Escobar 2000; entre outros) - e articular, discursiva e praticamente,

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ligada a trabalhos sociais e/ou projetos desenvolvidos em favelas do Rio de Janeiro,

ou já estava diretamente engajada em lutas contra a violência policial.

Enfim, todos estes militantes que se encontraram (ou se reencontraram) a partir

da Chacina do Borel traziam em sua bagagem experiências de participação política –

e esse é um dado fundamental para compreender a maneira como este grupo, que

hoje compõe a ‘Rede’, se organizou e como vem mantendo o seu trabalho desde

então. Para continuar a desenvolver este argumento, vou utilizar uma explicação

que um dos integrantes da ‘Rede’ apresentou na abertura de uma reunião do grupo.

Esta reunião aconteceu no dia 07 de maio de 2005, no auditório do CEDIM/RJ

(Conselho Estadual dos Direitos da Mulher)9 – espaço que foi escolhido pela ‘Rede’

tanto por estar localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, quanto por oferecer

a infra-estrutura necessária para o encontro de um número significativo de pessoas.

Era a primeira reunião ampliada da ‘Rede’ após uma série intensa de atividades e

também foi uma reunião aberta a pessoas que não militavam junto ao grupo, mas

que poderiam se interessar pelo trabalho e agregar esforços.

Responsável por fazer a apresentação da ‘Rede’ naquele evento, Maurício

Campos10

disse que o movimento era constituído por três grupos distintos: um

(do qual ele próprio afirmou fazer parte) formado por pessoas que não necessa-

riamente moram em favelas, mas que participam de movimentos sociais urbanos

e atuam em favelas e periferias; outro grupo composto por moradores de favelas

que participam de atividades políticas dentro e fora das favelas, mas que não são

familiares de vítimas diretas da violência policial; e um terceiro grupo, formado

especificamente pelos familiares de vítimas da violência policial em favelas –

“componentes diferentes, que a gente tem que saber ajustar”, segundo Maurício.

Afirmou ser este último o grupo mais forte dos três e complementou: “acostumamos

a chamar de mães, mas também existem irmãs, primos etc”.

modalidades diversas, presenciais e virtuais, de integração (ao) e participação no movimento.

Ver, a respeito das segundas, as análises de Appadurai (1996) e de Ribeiro (2000).9 O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher – CEDIM/RJ é um órgão de assessoramento

na implementação de políticas públicas, vinculado à Subsecretaria de Defesa e Promoção de

Direitos Humanos, da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos. (Mais

informações em: http://www.cedim.rj.gov.br/cedim.htm). Antes de possuir a sua própria

sede (hoje localizada na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro), a Rede de Comunidades e

Movimentos contra Violência utilizava diferentes espaços para se reunir (como salas cedidas

por ONGs localizadas dentro e fora das favelas, auditórios e/ou salas de diferentes sindicatos

do Rio de Janeiro, entre outros). 10

Maurício Campos milita em movimentos urbanos desde sua adolescência. Além de integrar a

Frente de Luta Popular, participa da Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência

desde o seu surgimento.

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Esta espécie de tripé, que Maurício apresentou em 2005 como a base de

sustentação da ‘Rede’, é o modelo que tenho utilizado para definir o grupo. Essa

constituição mantém-se a mesma até hoje e, de fato, o militante soube medir os

pesos e apresentar a parte mais forte do tripé: os familiares. São eles (especialmente

as mães das vítimas) que detêm maior capacidade para legitimar as reivindicações

do grupo e trazer visibilidade à luta contra violência policial em favelas. Ainda

utilizando as palavras de Maurício:

As mães impedem que a gente perca o foco do movimento e são a prova

de que os efeitos do genocídio e do extermínio continuam. [...] Fazem

os outros companheiros do movimento entender que também há o en-

volvimento emocional.

Este último aspecto mencionado por Maurício é outro dado fundamental para

a compreensão do encaixe dos três grupos que compõem a ‘Rede’. Reconhecer

e saber lidar com as diferentes motivações que permitiram a cada um dos inte-

grantes da ‘Rede’ se engajarem na luta contra violência policial foi – e continua

sendo – um desafio para o grupo. Para explicar melhor o que estou chamando de

‘desafio’, vou puxar a linha do tempo um pouco para trás.

Se o início da história da ‘Rede’ está diretamente relacionado à Chacina do

Borel, também fez parte desta origem o sofrimento de Dalva Correia e Marta

Dahyle – mães de Thiago da Costa e Carlos Magno, respectivamente. Ao sofri-

mento de Dalva e Marta somaram-se a indignação e a solidariedade de outros

moradores do Borel, de membros de ONGs, da Associação de Moradores e de

outras instituições locais.

Já tiveram outras mortes aqui dentro da comunidade, mas essa foi em

grande número e chocou muito a comunidade, entendeu? A comunidade

ficou muito estremecida [...] todo mundo estava sentindo na pele que

aquilo que aconteceu naquele dia poderia voltar a acontecer a qualquer

momento, com qualquer um de nós, entendeu? [...] qualquer uma pessoa

estava correndo aquele risco. A gente tinha que pedir socorro de qualquer

jeito, não dava mais pra suportar... a violência estava muito grande.11

11 Depoimento de Dona Marlene, moradora do Borel, em entrevista realizada por Márcio Jerônimo,

durante a produção do documentário “Entre muros e favelas”. Agradeço imensamente a Márcio

Jerônimo, Susanne Dzeik e Kirsten Wagenschein – co-diretores do documentário – pela dispo-

nibilização do material bruto por eles filmado, além de todo o incentivo à minha pesquisa.

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A partir do dia 16 de abril de 2003, a indignação transformou-se em alimento

para a força política que marca o histórico de ação coletiva do Borel12

. A fala de

Dona Marlene expressa os mesmos sentimentos de indignação, de desamparo, de

que “assim não dá para continuar” contidos na metáfora que Mônica Santos utilizou

para referir-se àquele e a outros episódios similares nas favelas e definir o que seria

o combustível do potencial transformador de sua população: “um coquetel molotov

de fracasso e utopia, de busca por mudança, por outro referencial”13

. A mobilização

local foi reforçada por moradores de outras favelas (dentre os quais se destacavam

algumas mães de vítimas de outros episódios de violência policial), por ONGs de defesa

dos Direitos Humanos como o Centro de Justiça Global e movimentos sociais como

a Frente de Luta Popular, o Centro de Cultura Proletária, e a Central de Movimentos

Populares. A reunião dessas pessoas configurou o embrião de um novo movimento

contra violência policial em favelas – o Movimento “Posso me identifica?”.

E de onde vem esse nome “Posso me identificar?”. Nós fomos, fizemos,

formamos um grupo, apesar de eu estar psicologicamente abalada, nós

formamos um grupo e demos..., cada uma deu uma idéia. Qual o nome que

deveríamos dar a um movimento desse? Porque todo movimento normal

tem que ter um nome. Aí uma deu um nome, a outra deu outro...14

Como eles não puderam... que eles foram mortos e depois taxados de

bandidos, né?, que eram bandidos. Então, aí nós ficamos imaginando

como é que a gente ia fazer uma coisa assim pra chamar atenção. Aí nós

resolvemos botar, teve assim uma votação, aí nós resolvemos, é saiu:

“Posso me identificar?”. Então aí nós resolvemos e botamos. [...] A gente

acha que eles deveriam ter perguntado, né?: “quem é você, não sei o quê” e

não perguntaram... então resolvemos “Posso me identificar?” e ficou.15

12 Datam do ano de 1954 as primeiras organizações de moradores de favelas no Rio de Janeiro,

dentre as quais se destaca a União dos Trabalhadores Favelados do Morro do Borel (Lima

1989; Machado da Silva 2002).13

Trecho do depoimento de Mônica Santos, também moradora do Borel, durante debate na

Fundação Getúlio Vargas, em maio de 2007. Mônica Santos é uma das maiores referências

atuais de ações coletivas protagonizadas por moradores de favelas no Rio de Janeiro e, apesar

de não fazer parte da “Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência”, concedeu-me

o privilégio da sua interlocução durante o desenvolvimento desta pesquisa. 14

Depoimento de Marta Dahyle, em entrevista realizada por mim, durante as filmagens do

documentário “Entre muros e favelas”, em dezembro de 2004.15

Trecho da entrevista de Dalva Correia. Entrevista realizada por mim, em maio de 2004.

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Foi a primeira reunião rápida! Naquele dia foi a primeira reunião rápida,

porque começou às sete e meia e terminou entre oito e oito e meia da noite –

foi rápida! Porque foi decidido que aí ia ficar o “Posso me identificar?”

mesmo, que era uma marca que iria trazer mais uma força, porque era

“Posso me identificar?” porque os garotos não tinham tido tempo pra se

identificar, então ficou “Posso me identificar?” por isso.16

Sentimentos como sofrimento, indignação e medo foram combinados a posi-

cionamentos políticos que reivindicavam a garantia plena dos direitos humanos

e civis da população residente em favelas. Apesar de terem conseguido promover

manifestações bem sucedidas, terem conquistado uma certa legitimidade para

ocupar o espaço público da cidade do Rio de Janeiro e terem ampliado a visibilidade

da luta contra a violência policial que atinge as favelas, nem todos os integrantes

do grupo concordavam com a manutenção de estratégias de atuação política

marcadas por ações reivindicatórias, atos públicos e atividades afins.

No segundo semestre de 2004, as divergências internas ao “Posso me identi-

ficar?” tomaram uma proporção maior: alguns dos integrantes responsáveis por

gerir seus eventuais recursos financeiros retiraram-se do movimento e o debate

em torno da modalidade de atuação acirrou-se. O grupo acabou se dividindo desi-

gualmente em dois blocos: um maior, que defendia a organização permanente de

passeatas e atos públicos para pressionar o poder público, exigir justiça, denunciar

a violação dos direitos humanos e reivindicar acesso à cidade; e outro, menor,

que sustentava a idéia de atuar através do desenvolvimento de projetos pontuais,

especialmente cursos profissionalizantes direcionados aos jovens17

. Na tentativa de

16 Trecho de entrevista de Patrícia Oliveira, irmã de Wagner (único sobrevivente da chacina da

Candelária). Patrícia milita em defesa dos Direitos Humanos desde 1993 e integra a “Rede”

desde sua criação. Entrevista realizada por mim e por Larissa Accioly, em junho de 2007.17

Ao analisarem o contexto dos anos 90 como período no qual se consolidaram “as metáforas da

guerra e da cidade partida como referência à violência urbana no Rio de Janeiro”, Machado

da Silva, Leite e Fridman (2005) examinam como se produziu uma “proposta, alternativa à

política de segurança pública então praticada, de “pacificação da cidade por meio de soluções

democráticas para o ’problema da segurança pública’”. Segundo os autores, a tentativa de

concretizar tal proposta deu-se através de três linhas de atuação de integrantes de ONGs,

movimentos sociais e pesquisadores interessados no processo. Gostaria de chamar a atenção

para o fato de que o grupo de integrantes do movimento “Posso me identificar?” que defendia

a realização de projetos pontuais voltados para jovens nas favelas, apesar de concentrar menor

número de pessoas, compartilhava, justamente, da aposta em uma das três linhas de atuação

apontadas por Machado da Silva, Leite e Fridman – aquela baseada na “proposição de novos

procedimentos e rotinas policiais, bem como de políticas públicas focadas nos segmentos

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solucionar o problema, o grupo majoritário decidiu ‘se emancipar’ do movimento

“Posso me identificar?”, elegendo uma nova denominação. Surgiu, então, a ‘Rede

de Comunidades e Movimentos contra a Violência’.

1.2 Sobre estratégias de visibilidade e sobrevivência

Ato público contra a violência do Estado/ Para que os direitos que são

garantidos para quem mora nos condomínios ricos sejam garantidos

também em nossas comunidades/ Será no dia 16 de abril/ Vamos nos

encontrar às 14h no Largo do Machado/ De lá, sairemos em passeata até

o Palácio do governo do Estado.

As frases acima compõem o panfleto de convocação para o ato organizado

pelo Movimento “Posso me identificar?” em 2004. Além de responsabilizarem o

Estado pelo tratamento violento que estavam recebendo, os moradores de favelas

localizavam geograficamente o grupo social que recebia um tratamento diferente

do seu e reivindicavam – em texto escrito na primeira pessoa do plural – igual-

dade de direitos. Na concentração do ato, os manifestantes se reuniram no Largo

do Machado no dia 16 de abril – um ano exato após a ‘chacina do Borel’. Foram

estendidos painéis de grafite que exibiam policiais de armas na mão, enquanto

policiais de armas na cintura rodeavam o carro de som que seria utilizado pelos

favelados.

De cima do carro de som, organizadores da manifestação conduziram o início

do ato, dando espaço às falas de várias mães de vítimas de violência policial. Uma

das principais lideranças do movimento “Mães do Rio”18

, fez um discurso direcio-

nado especialmente para as outras mães de vítimas, pedindo força para continua-

rem a luta. Uma por uma, as mães surgiram no alto do carro com o microfone na

mão e contaram as histórias das mortes dos seus filhos e de suas lutas por justiça.

No mesmo espaço oferecido às mães para fazerem seus protestos individuais, o

discurso firme de Rute Sales19

apresentou o Movimento “Posso me identificar?”:

Será que o poder público só vai funcionar pra nós como repressão? Nós

estamos pedindo pro poder público ter outras maneiras de ocupar as nossas

populacionais compreendidos como ‘de risco’, isto é, que se encontrariam em situações-limite

facilitadoras do ingresso no crime”. 18

Para uma análise específica a respeito das atuações de mães de vítimas de violência na cidade

do Rio de Janeiro, ver Leite (2004).19

Rute Sales integra o Movimento Moleque, é ex-moradora do Borel e participa ativamente das

mobilizações políticas locais.

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comunidades, não só com repressão policial. Queria dizer que esse movi-

mento “Posso me identificar?”, ele nasce nas comunidades, são pessoas de

dentro da comunidade que não agüentam mais ficar calados, vendo seus

filhos serem assassinados. Se o país não tem pena de morte, porque que

toda comunidade favelada está condenada à morte e à exclusão?

Somente depois que diversas vozes amplificaram acusações e reivindicações

ao microfone, foi anunciado o início da passeata. Todos, então, se organizaram

para uma caminhada em direção ao Palácio do Governo do Estado. Na frente dos

participantes, seguia o carro de som. Logo atrás caminhavam os parentes das

vítimas do Borel, segurando a grande “faixa abre-alas” da passeata, que trazia

sobre o tecido preto a pergunta “Posso me identificar?” escrita em letras maiores,

e abaixo, a resposta: “... os Silvas, os Santos, os Souzas, os Costas, os Oliveiras, os

Pereiras, os Nascimentos, os Rodrigues, os Gonçalves. Em busca de DIGNIDADE!”.

O texto da resposta, escrito na cor branca, sugeria a possibilidade de substituição

de todos aqueles nomes por “os Zé Ninguém”, ou seja, aqueles a quem é negado

o direito de se identificar justamente porque não podem perguntar “Você sabe

com quem está falando?”20

.

20 Chamo a atenção para a força simbólica da pergunta “Posso me identificar?” na evocação

pelos (e para) os “de baixo” das hierarquias e desigualdades que marcam nossa história,

especialmente por contraste ao recurso ao “você sabe com quem está falando?” recorrente

da parte dos “de cima” (DaMatta, 1981).

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Os manifestantes levaram dois tipos de cartazes para a passeata. Os maiores

também apresentavam fundo preto e frases como “Garantia de direitos funda-

mentais”, “Pela preservação da vida”, “Segurança às testemunhas e familiares” e

“Contra a violência”, escritas com tinta branca. Os cartazes menores (pirulitos),

com texto impresso na folha branca de formato A3, traziam as seguintes frases:

“Moro onde os meios de comunicação só chegam para contar os mortos”; “Nossa

dor não tem cor nem partido!”; “Moro no Brasil: o país com a segunda pior concen-

tração de renda do mundo!”. As frases desses cartazes menores eram escritas em

português de um lado e em inglês do outro lado – parte da estratégia de ampliar

a visibilidade e a legitimidade do movimento no exterior, especialmente para as

organizações de direitos humanos.

Durante todo o trajeto, os manifestantes tiveram que caminhar cercados

por policiais que, na maior parte do tempo, permaneciam com o cassetete na

mão. O policiamento aumentava conforme o grupo ia se aproximando do Palácio

do Governo do Estado – tornando evidente o fato de que o poder público ainda

enxergava os moradores de favelas como uma ameaça à cidade. Ao chegarem ao

Palácio, os manifestantes permaneceram no pátio. Uma fila de policiais fincou os

pés na frente do portão de ferro (já trancado) na entrada do prédio. Das janelas

do Palácio, funcionários do Governo do Estado fotografavam os manifestantes.

As mães de vítimas de violência que estavam presentes se posicionaram, também

em fila, diante dos policiais. As mães estavam seguras do seu direito de se mani-

festar; sabiam que agiam de acordo com a lei e, mesmo chorando, continuavam

face a face com os policiais – parte da instituição que estava sendo acusada como

responsável pelas chacinas. Entre as mães e os policiais, “apenas o altar formado

por fotografias, velas e flores – registros de medidas distintas das distâncias física

e moral entre as duas filas” (Leite & Farias 2008)21

.

Com o carro de som estacionado também no pátio, foi lido um documento diri-

gido à sociedade civil, enquanto uma comissão de mães de vítimas pedia permissão

para entrar no Palácio e falar com a então governadora. As mães conseguiram

entrar, mas não foram atendidas pela Governadora e sim pelos seus Secretários.

Quando voltaram, foram convidadas, assim como os outros familiares de vítimas

de violência presentes, a pronunciarem no microfone os nomes dos mortos. A cada

nome falado, os manifestantes responderiam “presente”, reeditando uma tradição

dos movimentos contra a ditadura militar. Antes da chamada, no entanto, Dalva

Correia fez um discurso carregado de emoção e posicionamento político:

21 Para uma leitura específica sobre o uso não instrumental da linguagem religiosa nas manifes-

tações contra violência policial em favelas, ver Leite (2006) e Leite & Farias (2008).

Page 13: Quando a exceção_vira_regra

TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E150

Queremos mostrar que somos pessoas pacíficas, que somos pessoas ci-

vilizadas. Não estamos aqui pra pedir. Estamos aqui pra exigir os nossos

direitos, fazendo um ato tranqüilo e civilizado. No dia 16 de abril, a essa

hora, meu filho estava voltando do trabalho, às 6:45h ele foi assassinado

quase na porta de casa. Isso é uma dor que só quem perde é que sabe.

É uma dor muito grande. Várias mães perderam seus filhos. Agora nós

vamos fazer a chamada dos filhos que eles tiraram de nós.

Dalva, então, gritou alto o nome do filho: “Thiago da Costa!” Sobe outra mãe

no carro de som e grita: “Carlos Rubens!” E assim vão chegando ao microfone

várias mães e outros parentes de vítimas de violência policial, dando continuidade

à chamada que foi iniciada por Dalva e que parecia não ter fim:

Flávio e Eduardo, Wallace e Daniel, Jonatan dos Santos, José Manuel

da Silva, Hanry, Jéferson Ricardo da Paz, Jean Alexandre - assassinado,

Bruno Muniz Paulino, Rafael Medina Paulino, Renam Medina Paulino,

Everson Gonçalves – taxista, Cristiano Oliveira Moraes, Leonardo dos

Santos, Luiz Eduardo, David Ferreira, Josué dos Santos, Ismael Sales dos

Santos, Caetano, Wanderley Soares Rodrigues, Paulo Soares Rodrigues,

Fabiano de Nova Iguaçu, Regina Célia, Valter de Oliveira Silva, assassi-

nado por PM: Márcio Antônio Maia de Souza [...].

O encerramento da manifestação foi marcado por oração e música, ambas

transmitidas pelos alto-falantes do carro de som, assim como todos os discursos

críticos e reivindicatórios. Sem tumulto, sem “quebra-quebra”, mais uma vez o

grupo mostrou que era capaz de realizar manifestações organizadas.

Após a manifestação de abril de 2004, o grupo formado a partir da Chacina

do Borel passou a ser visto (e a se ver também) como um movimento social

organizado, capaz de falar pelas favelas na cidade do Rio de Janeiro22

. O grupo

passou por períodos de reestruturação, mas conseguiu manter como foco princi-

pal a questão da violência policial. Este processo ganhou fôlego no ano de 2005,

22 Não estou querendo dizer que o “Posso me identificar?” se transformou no porta-voz das

favelas na cidade. Diferentes grupos, especialmente Ongs e projetos sociais, articulam e

desarticulam parcerias no intuito de ampliar seu espaço ou consolidar sua posição como

legítimo representante das favelas na cidade – seja para expor suas reivindicações, seja

para atrair visibilidade para o que eles consideram aspectos positivos das favelas. Dentre

esses grupos, destaco, por exemplo, o Observatório de Favelas, a Central Única das Favelas

(CUFA), o Grupo Cultural Afroreggae e o Nós do Morro – que se articularam na formação

denominada “F4 – Favela a quatro”.

Page 14: Quando a exceção_vira_regra

151QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias

quando a agenda do movimento – já reestruturado como ‘Rede de Comunidades

e Movimentos contra Violência’ – passou a incluir atividades que marcavam sua

legitimidade e que consolidavam e/ou ampliavam sua teia de relações. Mantendo

a data da chacina do Borel como representativa desta luta contra violência, foi

marcada para abril de 2005 uma nova manifestação pública. Ajustando calendá-

rios e objetivos, a ‘Rede’ acabou dividindo a organização do evento com um dos

movimentos sociais brasileiros de maior visibilidade em todo o país e também no

exterior. Se, no ato de 2004, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra participou

como apoiador da luta contra a violência policial nas favelas, em 2005 agregaria

não só suas bandeiras vermelhas, como também suas reivindicações e parte de

suas estratégias de atuação à luta dos moradores de favelas.

Nova passeata, novo formato de parceria, nova divulgação – o cartaz da ma-

nifestação de 2005 foi marcado pela soma: “Pobres do campo e da cidade se unem

por reforma agrária e contra a violência do Estado e das elites”. Mas a ampliação da

chamada não se deveu somente à inserção das palavras que localizam diretamente

a participação do MST. Enquanto o panfleto de convocação para o ato de 2004

responsabilizava o Estado pela violência denunciada, em 2005 tal responsabilidade

também foi atribuída às elites. Mesmo que geograficamente separados, os grupos

descobriram diferentes motivos para se unirem. Até mesmo a escolha do mês de

abril fazia sentido para ambos: no dia 17 de abril de 1996 aconteceu o massacre

de Eldorado dos Carajás e no dia 16 de abril de 2003, a chacina do Borel.

O ato teve início na Candelária – marco histórico do centro da cidade do Rio de

Janeiro e palco de uma das mais emblemáticas chacinas cariocas23

. Por volta das 14

horas, o local começou a ser ocupado por moradores de favelas, integrantes do MST,

integrantes do Movimento dos trabalhadores Sem-Teto, estudantes, integrantes de

Ongs, pesquisadores e jornalistas – todos dividindo o espaço com as quatro viaturas

da Polícia Militar estacionadas em cima da calçada. Policiais vestidos com coletes à

prova de balas vigiavam atentamente o momento inicial da manifestação.

Dois manifestantes abriram uma faixa produzida pela ‘Rede de Comunida-

des e Movimentos contra a Violência’, na qual estava escrito: “Os ricos querem

paz pra continuar ricos / Nós queremos paz pra continuar vivos”. Aos poucos,

outros manifestantes foram chegando e se posicionando uns ao lado dos outros.

Formou-se um grande círculo, no qual faixas, cartazes, fotografias, recortes de

jornal, bandeiras e camisetas passaram a compor um painel de denúncia das ações

23 Em 1993, oito meninos de rua que dormiam nas calçadas próximas à Igreja da Candelária foram

assassinados por policiais militares. O episódio ficou conhecido como “Chacina da Candelária”.

Sobre esta chacina e seus principais desdobramentos, consultar Ferraz (2005).

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TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E152

policiais violentas e do descaso governamental. Outro elemento fundamental

para a composição desse painel era a expressão de dor e indignação desenhada

nos rostos de cada uma das mães de vítimas de violência policial que se posicio-

naram ao longo do círculo. Uma delas – integrante de uma associação de mães

do Espírito Santo24

- segurava quatro cruzes de madeira, cada uma portando um

nome de vítima na haste horizontal.

No decorrer da manifestação, não só essas quatro cruzes, mas várias outras

passaram a integrar o conjunto de objetos utilizados para compor a denúncia das

mortes. Havia cruzes trazidas pelas mães do Espírito Santo, cruzes trazidas pelos

integrantes da ‘Rede’ e cruzes trazidas pelos integrantes do MST25

. As cruzes não

simbolizavam somente o número elevado de assassinatos cometidos por policiais.

Mais que uma referência à morte, cada cruz carregada durante o protesto sugeria

a idéia de sacrifício e doação. Seguradas pelos manifestantes, as cruzes levavam ao

cenário da passeata um aspecto de procissão – os elementos do campo religioso

estavam presentes como em 2004; desta vez, mesclados às bandeiras vermelhas

do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

O alargamento do conjunto de cobranças, acusações e palavras de ordem ocorria

à medida que militantes de outros movimentos e/ou organizações iam aderindo à

passeata. Desde integrantes da “Marcha Mundial das Mulheres” a representantes de

24 AMAFAVV-ES – Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violência do Estado do

Espírito Santo.25

Para uma análise da relação entre as estratégias de atuação política do MST e os elementos

provenientes do campo simbólico religioso (especialmente ligado à Teologia da Libertação),

ver Chaves (2002).

Page 16: Quando a exceção_vira_regra

153QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias

sindicatos e partidos políticos, muitas eram as bandeiras presentes. Em meio às cruzes

e bandeiras do MST, pairava a imagem clássica do rosto de Che Guevara fotografado

por Korda sobre um mapa da América Latina. A manifestação atingiu diferentes

setores sociais, agregando um número de manifestantes que fosse capaz de ocupar

todas as pistas da Avenida Rio Branco, uma das principais (e mais largas) do centro

da cidade do Rio de Janeiro. As faixas dos diferentes grupos presentes se uniam lado

a lado, fechando completamente a pista, interrompendo temporariamente o trânsito,

interferindo no cotidiano de outros moradores da cidade e os colocando cara a cara

com a questão da violência policial e da violação dos direitos humanos.

A passeata se encerrou no Fórum do Rio de Janeiro, onde são julgados os poli-

ciais acusados pelas mortes que ocorrem durante as incursões violentas nas favelas.

Assim como a chegada dos manifestantes no Palácio das Laranjeiras, em 2004, a

chegada ao Fórum do Rio de Janeiro em 2005 também foi marcada pelo ato de

depositar – no chão – cartazes e faixas com fotografias e mensagens. Entretanto,

as homenagens aos mortos neste local aconteceriam em diferentes etapas.

Uma parte do calçadão que fica em frente ao Fórum foi tomada pelos cartazes

com fotografias e mensagens que, desta vez, dividiam o espaço com as cruzes

brancas. Bem próximo às cruzes, foram depositados os cartazes com os nomes

de áreas urbanas e rurais onde aconteceram episódios de violência: Acari, Anapu,

Borel, Caju, Candelária, Eldorado dos Carajás, Felisburgo, Nova Iguaçu, Pavão-

Pavãozinho, Providência, Rocinha, Vigário Geral, entre outros. Dispostos lado a

lado num encaixe assimétrico, nomes e cruzes aproximavam não só sentimentos

e expectativas de grupos sociais distintos, mas também regiões do país que estão

distantes geograficamente. Desenhava-se no chão um outro mapa do Brasil a partir

da violência que atinge parcelas específicas da sua população.

Não só nomes de localidades mereceram destaque nessa etapa da manifesta-

ção pública. Coladas nas cruzes brancas, tiras de papel ofício traziam impressos

os nomes completos das vítimas do massacre de Eldorado dos Carajás. Já os

assassinados na zona urbana tiveram seus nomes e sobrenomes anunciados ao

microfone durante uma longa lista de chamada. Além de responder “presente”

após o pronunciamento de cada nome, os manifestantes foram ‘convidados’ a

irem se deitando no chão.

Foram lidos ao microfone nome e sobrenome das vítimas de chacinas do Borel,

do Caju, da Candelária, de Nova Iguaçu, da Rocinha e de Vigário Geral, somando

um total de setenta e uma respostas “presente”. Ao final da chamada, uma tinta

vermelha preparada pelos organizadores foi derramada sobre as cruzes brancas,

os nomes das vítimas e dos locais das chacinas e alguns cartazes elaborados pelas

mães de vítimas.

Page 17: Quando a exceção_vira_regra

TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E154

Um cartaz de cartolina trazia escrita à mão uma frase da relatora da Organi-

zação das Nações Unidas para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais,

Asma Jahangir: “Nenhuma sociedade civilizada deu à polícia o direito de julgar

e matar”. Depositado na calçada na frente do Fórum, o cartaz fez eco através do

grito puxado por um integrante da ‘Rede’ durante o encerramento da manifestação:

“A polícia mata o pobre, a justiça vem e encobre”. A este grito, repetido inúmeras

vezes, somou-se outro: “A impunidade começa aqui”.

2. DA TRANSFORMAÇÃO DOS MORADORES DE FAVELAS EM POPULAÇÃO “MATÁVEL”

Na manifestação de 2004, um grupo tentou ser recebido pela governadora para

cobrar justiça e exigir que seus direitos fossem garantidos; apesar de terem sido

recebidos por secretários e não pela governadora, chegaram a entrar no Palácio

do Governo, passando por uma porta que raramente se abre pra eles. Já em 2005

encerraram seu protesto ao lado de fora de um prédio onde eles sempre estão

presentes: durante diferentes audiências e julgamentos. O grito “A polícia mata o

pobre, a justiça vem e encobre” traduz para a linguagem de protesto uma denúncia

da participação de diferentes instâncias estatais no processo de transformação dos

moradores de favelas em uma população ‘matável’.

Page 18: Quando a exceção_vira_regra

155QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias

Mas a argumentação da relatora da ONU chama atenção para um outro

aspecto, que nos coloca diante da complexidade deste processo: se “nenhuma

sociedade civilizada deu à polícia o direito de julgar e matar”, como entender a

parcela da “sociedade” do estado do Rio de Janeiro que compõe o júri popular e

absolve um policial que executou um morador de favela? Dos dezesseis policiais

militares envolvidos na operação que resultou na chacina do Borel, por exemplo,

cinco foram indiciados por homicídio qualificado em junho de 2003 (os demais

não foram indiciados por falta de provas). Em outubro de 2004, o 3º sargento da

Polícia Militar, Sidnei Pereira Barreto, foi julgado e absolvido pelo júri popular na

2a Vara Criminal, II Tribunal do Júri, Rio de Janeiro, acontecendo o mesmo com

o comandante da operação, o 2o tenente da PM, Rodrigo Lavandeira Pereira, em

fevereiro de 2005. Apenas em novembro de 2006, o cabo Marcos Duarte Ramalho

foi julgado pelo júri popular na 2ª Vara Criminal, também no II Tribunal do Júri

no Rio de Janeiro, e condenado a 49 anos de prisão (45 por três homicídios e 4

por uma tentativa de homicídio).

Estamos diante de formas de se exercer o poder (e aqui está incluído também

o poder de matar) em níveis variados, através de caminhos capilares, compondo

o complexo dos micro-poderes que participam do processo de transformação dos

moradores de favelas em uma população ‘matável’. Esta segunda parte do artigo

resulta do esforço de tentar compreender algumas engrenagens deste processo.

2.1 O termo ‘matável’

Pensando no processo através do qual o corpo biológico do cidadão passou a

ocupar uma posição central nos cálculos e estratégias do poder estatal, o filósofo

Giorgio Agamben recupera a noção de homo sacer – “uma obscura figura do direito

romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente

sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade)” (Agamben

2002: 16)26

.

Em suas notas, o tradutor do texto explica que a introdução da expressão

‘vida matável’ se faz por fidelidade ao original uccidibile (de uccidere, “matar ou

provocar a morte de modo violento”). Realizava-se, assim, uma equivalência à

idéia de ‘vida exterminável’, pois esta “vida nua” (a vida do homo sacer) “podia

26 As idéias de Agamben me foram apresentadas durante as reuniões das pesquisas “Human

rights, poverty and violence in Rio de Janeiro, Brasil: slum dwellers searching for recognition

and access to justice” (UNESCO, 2005/2006) e “Rompendo o cerceamento da palavra: a voz

dos favelados em busca de reconhecimento” (FAPERJ, 2005/2007), através do sociólogo Luis

Carlos Fridman – a quem deixo registrados meus sinceros agradecimentos.

Page 19: Quando a exceção_vira_regra

TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E156

ser eventualmente exterminada por qualquer um, sem que se cometesse uma

violação” (Agamben 2002: 195). Como bem resume Fridman, “’a vida nua’ do

homo sacer é excluída da lei e dos direitos e incluída por ser aniquilável. Em suma,

matar um homo sacer não é passível de punição nem desperta culpa”; trata-se

de “destituição total, ausência absoluta de direitos, condição inapelável da ‘vida

nua’” (Fridman 2008).

Contudo, ao utilizar a expressão ‘população matável’ para me referir ao con-

junto dos moradores de favelas da cidade do Rio de Janeiro, devo ressaltar que

o faço com restrições, considerando que, contemporaneamente, esta noção só

se aplica a “situações-limite” - experiências extremas como a vivida nos campos

de concentração nazistas -, como analisa Pollak (1990 apud Catela 2001)27

. O

que evidentemente não é o caso da população e do contexto examinados. Ainda

assim, considero que o recurso à noção de “vida matável” me permite construir

meu argumento, destacando e analisando determinados aspectos do cotidiano

dos moradores de favelas em suas localidades e em suas relações com segmentos

da cidade – especialmente a polícia - que não encompassam integralmente suas

vidas e experiências28

. A noção de Agamben, portanto, enquanto apresentada

através da tradução para o português, aplica-se à minha argumentação; entre-

tanto, no original em que foi escrita, não: os favelados são “matáveis”, mas não

são homo sacer.

27 Catela segue, em sua análise do “mundo de familiares de desaparecidos na Argentina”, a

construção do termo “situação-limite” por Pollak, definindo-a como “uma ‘situação extra-

ordinária’ [que] provoca inéditas ações perante o imprevisível, situações para as quais não

fomos preparados, socializados, iniciados. Quebrando a ordem naturalizada do mundo ha-

bitual, o grupo social deve adaptar-se a um contexto novo e redefinir sua identidade e suas

relações com os outros grupos” (2001: 24). É impossível pensar como novas, extraordinárias

ou totalmente imprevisíveis as condições de vida e precariedade de direitos que marcam o

cotidiano dos moradores de favelas na cidade do Rio de Janeiro.28

Uma outra ressalva se faz necessária. Na sua obra ‘Homo sacer: o poder soberano e a vida nua’,

Agamben deixa clara a incompatibilidade da sua reflexão com muitas das idéias formuladas

por Michel Foucault para pensar questões que envolvem “soberania do Estado” e “biopoder”,

especialmente. No entanto, gostaria de destacar que, como em meu trabalho utilizo a noção

de “vida matável” de Agamben sem subscrever sua perspectiva analítica, recorro ao mesmo

tempo às idéias de Foucault. Assumo, portanto, nesta nota, que há pontos deste debate

filosófico que não são trabalhados neste artigo.

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157QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias

2.2 Da atualização dos mecanismos de controle: favelas e biopoder

Neste item, persigo duas vias analíticas distintas, no intuito de compreender como

o conjunto dos moradores de favelas foi transformado uma população “matável”.

A primeira via analítica é pautada por uma linha de pesquisa difundida pelas an-

tropólogas Veena Das e Deborah Poole (2004) como “antropologia das margens” –

através da qual se propõe investigar modalidades específicas da presença do Es-

tado em territórios considerados marginais. Já a segunda via possui como base

de sustentação a noção de “metáfora da guerra”, elaborada pela socióloga Márcia

Leite. As investigações de Leite (2000; 2008) possibilitam a compreensão dos

arranjos sociais formados em torno e a partir dos diferentes discursos a respeito

dos moradores das favelas cariocas, especialmente aqueles difundidos a partir

da década de 90.

Acompanhar o percurso dessas duas vias analíticas torna possível o cruza-

mento de uma contextualização global com uma contextualização local: enquanto

o enfoque sugerido pela “antropologia das margens” permite a inserção dos

moradores das favelas cariocas no conjunto de populações que recebem um

tratamento diferenciado em países da América Latina, da África e da Ásia, é

através da “metáfora da guerra” que se compreende a estruturação e o funcio-

namento da configuração social que definiu os rumos políticos mais recentes da

cidade do Rio de Janeiro, bem como sua interferência no destino da população

das favelas locais.

As “margens”, no contexto dos trabalhos reunidos em Anthropology in

the Margins of the State (Das & Poole 2004)29

, não são demarcadas somente a

partir de aspectos geográficos: o descolamento de um modelo espacial de centro

e periferia foi acontecendo na medida em que se percebia que várias idéias a

respeito de “margens” eram baseadas em relações entre soberania e formas de

poder disciplinar, assim como em genealogias específicas de assuntos políticos e

econômicos. São apresentadas então três alternativas para a compreensão da idéia

29 A idéia da publicação “Anthropology in the Margins of the State” (2004), organizada por Das

e Poole, surgiu a partir de um seminário realizado na School of American Research, do qual

participaram pesquisadores dispostos a refletir sobre o desenvolvimento de etnografias de

um Estado que está encravado em práticas, linguagens e lugares considerados às margens do

Estado nacional. Partindo dessa idéia, as autoras reuniram trabalhos que aceitaram o convite

para repensar as fronteiras entre centro e periferia, público e privado, legal e ilegal. Segundo

as pesquisadoras, a “antropologia das margens” torna possível alcançar uma perspectiva

específica de entendimento do Estado porque, ao invés de capturar práticas exóticas, ela

indica que determinadas populações marginais se configuram a partir de um envolvimento

com o Estado que marca a transformação das exceções em regra.

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TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E158

de “margens”: 1) periferias habitadas por pessoas consideradas insuficientemente

socializadas de acordo com as leis e a ordem vigentes; 2) lugares onde os direitos

podem ser violados através de dinâmicas distintas de interação das pessoas com

documentos, práticas e palavras do Estado; e 3) um espaço localizado entre corpos,

leis e disciplina.

Baseado na etnografia realizada por Veena Das, Asad (2004) afirma que para

identificar as margens do Estado, é necessário prestar atenção na inconstância da

lei em todos os lugares e na arbitrariedade das autoridades que buscam fazer da

lei algo constante. Das (2004) realizou um trabalho de campo na capital indiana,

acompanhando o caso das viúvas da comunidade Siglikar, cujos maridos foram

mortos em 1984, durante os conflitos ocorridos após o assassinato da Primeira-

Ministra Indira Gandhi. O que estava em questão eram as indenizações concedidas

aos familiares das vítimas: o governo reconheceu legalmente o direito das viúvas

de receberem o pagamento, mas as castas dominantes da comunidade Siglikar

entendiam que o pai de cada homem assassinado deveria ter recebido a indenização.

A solução do problema foi dividir igualmente a quantia entre as viúvas e os pais

– o que foi interpretado como um compromisso e executado em papel timbrado,

como se isto pudesse fazer do acordo algo válido “aos olhos da lei”. Para encerrar

o resumo do caso, vale destacar que tal compromisso nunca foi atribuído às leis

vigentes nem tratado como um acordo privado pelas partes concernidas – mas

conquistou legitimidade.

Para Das e Poole (2004), essas “margens”, onde uma configuração diferente

do bem comum é colocada em cena, não são simplesmente espaços nos quais o

Estado ainda tem que penetrar: elas devem ser vistas como lugares nos quais o

Estado é continuamente construído nos intervalos do cotidiano. As antropólogas

chamam atenção para o fato de que, em casos como o das viúvas Siglikar, práticas

do Estado não podem ser pensadas nos termos da lei ou da sua transgressão, mas

devem ser entendidas como práticas que se encontram simultaneamente dentro

e fora da lei.

Se a etnografia de Das em Nova Deli revela que um papel timbrado permite

que um acordo apareça como se fosse proveniente das leis do Estado, a investiga-

ção de Cohen (2004), em favelas de Mumbai e outras regiões marginalizadas da

Índia, evidencia a possibilidade da promoção de ‘sensações de cidadania’ a partir

de práticas estatais muito mais entrelaçadas com o dia-a-dia da população local.

A partir do acompanhamento de casos relacionados a três tipos de cirurgias

largamente difundidos na Índia (“operações de mudança de sexo, operações de

venda de rim e operações de planejamento familiar”), Cohen (2004) argumenta

que o arranjo da operação é fundamental para o que poderia ser chamado de

Page 22: Quando a exceção_vira_regra

159QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias

presença do Estado na relação que estabelece com suas margens políticas30

. Para

pensar na ligação deste arranjo da operação com formas de vida (novas práticas

de reconhecimento) e formas de troca (empresariamento médico e assistência sob

o neoliberalismo indiano), o autor elabora três conceitos: “suplementabilidade”,

“biodisponibilidade” e “operabilidade”.

Ser “suplementável” significa estar preparado para receber um presente

do Estado soberano na forma de um outro corpo; ser “biodisponível” significa

ser este corpo, importando somente enquanto uma articulação de mercados,

relações de afeto e desafeto e envolvendo a presença do aparato técnico; e ser

“operável” significa ser este corpo, não somente como uma articulação, mas

ser um corpo que possa servir como uma retribuição ao Estado – em alguns

casos como um sacrifício capaz de ressuscitar uma soberania problemática

ou ausente.

Cohen demonstra, em sua análise, como pobreza e vulnerabilidade política

interconectam-se ao desenvolvimento de “populações biodisponíveis”. Além desses

fatores, o autor também chama atenção para a promoção de campanhas políticas

que associavam esterilidade à modernidade, além de difundirem uma retórica

que ligava a doação de órgãos à salvação de vidas (deixando de lado os riscos

envolvidos). O pesquisador acompanha casos de diferentes mulheres, residentes

nas favelas de Chennai (Mumbai), que tinham vendido seus rins para uma clínica

sob a seguinte condição: as operações para retirada dos rins só seriam realizadas

se as mulheres aceitassem ligar as trompas.

A operação – apresentada como mais uma instância do governo – funciona,

assim, para embasar uma ordem governamental que pretende se mostrar inse-

rida na modernidade: a esterilização produz um “corpo-cidadão” que atua como

se fosse moderno e a castração produz um “corpo-politizado” com uma “relação

‘como se’” similar para a narrativa contratual da máquina do Estado moderno

(Cohen 2004). Assim mesmo, destacada, aparece em seu texto a expressão “as

if”, apresentada aqui através da tradução “como se” – é ela que caracteriza um

suposto pertencimento, algo que chamei anteriormente de ‘sensações de cidada-

nia’: assim como corpos atuam como se fossem modernos, homens passam a atuar

30 Escrevendo nos Estados Unidos durante um período marcado pela guerra contra o terrorismo,

Cohen identifica um ponto a ser discutido na modificação da política urbana americana: a

possibilidade de operações cirúrgicas serem vistas como exceção, mas também como uma

espécie de presente do governo para a população. No intuito de abrir pistas para o desen-

volvimento de uma “antropologia da operação”, o autor analisa características específicas

da operação para certos atores marginais em relação a práticas que constituem a afiliação

desses atores ao Estado, constituindo, também, o próprio Estado.

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TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E160

como se fizessem escolhas individuais, como se fossem sujeitos políticos, como se

possuíssem direitos e como se vivessem uma democracia.

No caso da etnografia de Cohen, fica evidente o controle exercido sobre a vida

de determinadas populações, sem que este processo seja visto como desumano

e/ou como movido por práticas ilegais – pelo contrário. Fiz a opção de trazer o

exemplo da operação por dois motivos: 1) ele facilita a compreensão dos processos

de controle sobre a vida de determinadas populações constituídos em contextos nos

quais o excepcional vai sendo incorporado às práticas cotidianas e se transforma

em regra; e 2) ele nos coloca diretamente em contato com o que Michel Foucault

designou de “biopoder” - uma “nova tecnologia do poder”, exercida através da

“biopolítica”.

Foucault (2005b) apresenta o “biopoder” como uma tecnologia do poder com-

posta por “mecanismos regulamentadores” destinados a “fixar um equilíbrio, manter

uma média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar compensações”;

resumindo, seria o poder de “fazer viver”. Ao se incumbir “tanto do corpo quanto da

vida”, ou “da vida em geral, com o pólo do corpo e o pólo da população”, este poder,

entretanto, passa a ser exercido de tal forma que se torna capaz de matar.

Através do “biopoder”, portanto, há um retorno do antigo poder soberano –

caracterizado pelo “direito de morte”. Ao resgatar a teoria clássica de soberania,

Foucault sugere uma interpretação da afirmação de que o soberano tinha “direito

de vida e de morte” a partir do paradoxo contido na mesma e demonstra como

esse paradoxo teórico vem acompanhado, necessariamente, de um “desequilíbrio

prático”: “o efeito do poder soberano sobre a vida só se exerce a partir do momento

em que o soberano pode matar”. Torna-se evidente, assim, que nesse “direito de

vida e de morte” não é possível haver simetria: não se trata do “direito de fazer

morrer ou de fazer viver”, nem do “direito de deixar morrer e de deixar viver”, mas

sim do “direito de fazer morrer ou deixar viver” (Foucault 2005b: 287)31

.

Voltando, então, para o exemplo trazido no caso analisado por Cohen, podemos

perceber como o “biopoder” era exercido no contexto de realização das operações,

o que nos permite refletir sobre a modalidade da presença do Estado naquelas

regiões da Índia: além de compactuar com a venda (a princípio, ilegal) de órgãos,

fornecendo espaço, profissionais e aparato técnico para a realização da retirada

31 Baseando-se nesta noção clássica de soberania, Foucault estabelece as devidas relações entre

a nova tecnologia de poder identificada por ele e o poder soberano: enquanto o “biopoder” é

exercido para “fazer viver”, ele consiste no contrário do poder soberano; entretanto, quando

passa a ser exercido para “matar, reclamar a morte, pedir a morte, mandar matar, dar a ordem

de matar, expor à morte não só seus inimigos, mas mesmo seus próprios cidadãos” (2005b:

304), o “biopoder” incorpora o poder soberano.

Page 24: Quando a exceção_vira_regra

161QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias

dos rins, o governo desenvolvia, ao mesmo tempo, um processo silencioso de

extinção daquela população através da esterilização. Era praticamente um pacote

promocional: venda seus rins e fique estéril – o governo promove sua entrada

no mundo moderno.

Passo agora de “margens” indianas para “margens” brasileiras, de operações

cirúrgicas para operações policiais. Como argumentou Asad, “o Estado não é um

objeto fixo” (2004: 279). Subscrevendo a perspectiva analítica desenvolvida pela

“antropologia das margens”, admito a existência de diferentes modalidades de pre-

sença do Estado brasileiro nessas regiões e em relação às populações ‘marginais’.

No que interessa à temática examinada neste texto, devo sublinhar que tanto a

prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, quanto os governos estadual e federal estão

presentes nas favelas de formas variadas. Mas para construir a base de sustenta-

ção de meu argumento central, faço uma opção: a presença do Estado nas favelas

cariocas é trabalhada estritamente através da análise de práticas da polícia nesses

territórios. Entendendo que a polícia é um dos pontos de apoio a partir dos quais

se garante a “governamentalização” do Estado, ou seja, a existência do Estado

na sua forma atual (Foucault 2004), sigo as pistas de Veena Das e Débora Poole

(2004) para buscar desenvolver esse eixo analítico.

Em 1997, o Instituto de Estudos da Religião (ISER) publicou os dados de uma

pesquisa acerca da letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. Coordenada por

Ignacio Cano, atualmente pesquisador do Laboratório de Análises da Violência

da UERJ, a pesquisa havia sido encomendada pela Comissão de Segurança Pú-

blica e pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado

do Rio de Janeiro32

. Foram apresentados dados condizentes com a hipótese de

que as premiações por bravura estavam incentivando os confrontos armados

(apontando, inclusive, promoções de policiais que haviam cometido execuções

de forma criminosa).

32 A demanda foi motivada pelo fato de ter se estabelecido - após uma série de matérias divulgadas

pelo Jornal do Brasil (de 7 a 16 de abril de 1996) - uma ligação entre o aumento do número

de mortos por “Autos de Resistência” e a gratificação por bravura instituída por decreto

em novembro de 1995 (período em que Nilton Cerqueira ocupava o cargo de Secretário

de Segurança do Estado do Rio de Janeiro). “No Estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de

Segurança Pública aplicou entre os anos de 1995 e 1998 um programa de “premiações por

bravura”, concedidas preferencialmente a policiais envolvidos em ocorrências com resultado

de morte de suspeitos. Essas premiações incrementavam a remuneração do agente em 50%,

75% e até 150% sobre o salário original” (Cano 2003).

Page 25: Quando a exceção_vira_regra

TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E162

Através de quadros comparativos sobre a atuação da polícia no “asfalto” e na

favela33

, também foi revelado que a incidência de mortos pela polícia nas favelas

era seis vezes maior do que no “asfalto” e que a vitimização de policiais era maior

nas intervenções no “asfalto” do que na favela: morria um policial a cada 75 inter-

venções armadas com vítimas civis nas favelas, enquanto morria um policial a cada

35 ações armadas com vítimas civis no “asfalto”. A pesquisa demonstrou ainda

que a comparação entre os índices de letalidade na favela e no “asfalto” indicava

“uma clara intenção de matar por parte dos policiais nas suas intervenções nas

áreas carentes da cidade”. Essa diferença entre a atuação da polícia no “asfalto” e

na favela expressa claramente um dos resultados da aceitação de uma divisão da

cidade do Rio de Janeiro em dois pólos social e geograficamente demarcados:

Presumindo que se vivia de fato uma guerra que opunha morro e asfalto,

favelados e cidadãos, bandidos e policiais, os partidários desta perspec-

tiva aceitavam a violência policial em territórios dos e contra os grupos

estigmatizados e assistiam passivos ao envolvimento de policiais militares

em várias chacinas (Leite 2000: 75).

Foi, portanto, através da leitura desse Rio de Janeiro que Leite (2000) ela-

borou a noção de “metáfora da guerra”. Dando conta das entrelinhas embutidas

nesta metáfora, o estudo fornece os elementos necessários para o entendimento

das conexões estabelecidas entre a percepção de diferentes setores da socieda-

de carioca e os projetos de políticas públicas apresentados na/para a cidade a

partir de então. Leite recupera eventos e debates, formando uma cronologia dos

principais episódios violentos ocorridos na primeira metade da década de 90 e a

sua repercussão na cidade. As chacinas de Acari, Candelária e Vigário Geral as-

sociam-se às brigas nos bailes funk, dos seqüestros, dos arrastões nas praias, dos

confrontos entre facções rivais ou entre estas e a polícia para compor um novo

‘retrato’ do Rio de Janeiro.

Dito de outro modo: as novas modalidades de violência presentes no Rio de

Janeiro eram diretamente associadas às dinâmicas do tráfico de drogas; os terri-

tórios das favelas eram identificados como focos irradiadores desta violência e as

políticas públicas de segurança eram percebidas como ineficientes. Daí decorre o

que Soares (1996) conceituou como “cultura do medo” – que, segundo Leite, for-

maria a base para a redefinição das “relações dos cariocas com o território urbano

e com seus concidadãos, alterando-lhes a sociabilidade” (Leite 2000).

33 Utilizo os mesmos termos empregados na publicação de divulgação da pesquisa em questão.

Page 26: Quando a exceção_vira_regra

163QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias

A construção da pauta de enfrentamento da violência era dividida, basica-

mente, entre um grupo que “defendia a combinação de políticas de promoção de

cidadania com alternativas eficientes no campo da segurança pública” e outro

que “considerava que a situação excepcional da cidade – de ‘guerra’ – não admitia

contemporizações com políticas de direitos humanos”. Diferentes setores da mídia,

parte dos moradores da cidade do Rio de Janeiro (especialmente os pertencentes

às camadas médias e abastadas) passaram a apoiar, portanto, o uso abusivo da

força durante as ações policiais em favelas.

Desta forma, portanto, consolidava-se uma estrutura que funcionaria, ao mesmo

tempo, como incentivo e respaldo para um tratamento diferenciado dos moradores

das favelas cariocas. Não se tratava da elaboração de propostas políticas que visassem

modificar a atuação de um Estado que não estaria conseguindo garantir os direitos

da população. Pelo contrário: a cidade do Rio de Janeiro produzia, assim, a sedi-

mentação de um modelo de “cidadania de geometria variável” – na qual os direitos

são “eminentemente reversíveis e precários, podendo ser postos em dúvida a cada

mudança na correlação de forças políticas”, de acordo com Lautier (1997).

Bem distante da idéia de cidadania universal, este modelo coloca em questão

as interpretações da “violência urbana”34

no Rio de Janeiro realizadas a partir da

leitura de um mal-funcionamento do Estado. Os moradores de favelas do Rio de

Janeiro não estariam experimentando a “dimensão residual de cidadania” que

configura a noção de “cidade escassa” desenvolvida por Carvalho (1995). Em um

contexto de “cidadania de geometria variável”, a atuação do Estado difere de acordo

com a posição econômica, social e política dos cidadãos, i.é, desenvolve-se sempre

“em situação”. Nas ‘margens’, o Estado não estaria deixando de “cumprir suas

obrigações” – elas apenas passavam a ser cumpridas de acordo com a perspectiva

dominante naquele momento: as exigências por tomada de medidas emergenciais

soavam mais alto que a aclamação por “um pacto estável e universalista”.

Recorro, mais uma vez, aos dados divulgados pelo ISER em 1997. Entre as com-

parações “asfalto”/favela trazidas pela pesquisa, me chamou muita atenção a que está

relacionada aos “autos de resistência”: enquanto 37,4% dos casos acontecidos fora

das favelas eram classificados como “autos de resistência”, 62% dos que ocorreram

em favelas foram registrados desta forma. Destaco o exemplo do “auto de resistên-

cia” por considerá-lo um tanto complexo e, por isso mesmo, “bom para pensar” a

modalidade de presença do Estado nas favelas através da atuação da polícia.

34 Para as diferentes representações de “violência urbana” abrigadas sob esta noção, consultar

Machado da Silva (2004).

Page 27: Quando a exceção_vira_regra

TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E164

Inicialmente regulamentado pela Ordem de Serviço “N”, no 803, de 2 de

outubro de 1969, da Superintendência da Polícia Judiciária, do antigo estado da

Guanabara, o “auto de resistência” foi registrado pela primeira vez no dia 14 de

novembro do mesmo ano35

. Em dezembro de 1974, o conteúdo da Ordem de Ser-

viço 803/69 foi ampliado pela Portaria “E”, no 0030, do Secretário de Segurança

Pública. De acordo com o juiz Sérgio Verani (1996), esta Portaria desenvolveu

uma ilegalidade básica, pois estabelecia que o policial não poderia ser preso em

flagrante nem indiciado. Verani destaca que:

A preocupação fundamental da Portaria é com o esclarecimento, no

inquérito, das ‘figuras penais consumadas ou tentadas pelo opositor

durante a resistência’. E determina que o inquérito, com o auto de exa-

me cadavérico e o atestado de óbito do opositor, seja remetido ‘ao Juízo

competente para processar e julgar os crimes praticados pelo opositor’,

com o fim de ‘permitir ao juízo apreciar e julgar extinta a punibilidade

dos delitos cometidos ao enfrentar o policial’. Se o opositor não morrer,

a autoridade deverá ‘Ordenar a lavratura do auto de prisão em flagrante

para os que foram dominados e presos’ (1996: 37).

Para o juiz, tal Portaria seria marcada por uma “absurda inconstitucionalida-

de”, pois, através dela, “quem legisla para o policial que mata é o próprio Secretário

de Segurança, de nada valendo o Código Penal, o Código de Processo Penal e a

Constituição Federal” (Verani 1996: 37). Retomando uma questão relacionada à

documentação do Estado apontada por Das e Poole (2004), o “auto de resistência”

pode ser entendido como um exemplo concreto da manutenção de um processo

de construção e reconstrução do Estado através das suas práticas de escrita.

Das e Poole (2004) deixam claro que o problema da (i)legibilidade da docu-

mentação do Estado é uma das bases de consolidação do controle estatal sobre

populações, territórios e vidas. As antropólogas ressaltam que, nas “margens” por

elas estudadas, a questão da origem da lei emerge não como o mito do Estado, mas

na forma de homens cujas habilidades para representar o Estado ou para aplicar

suas leis estão localizadas em uma disposição para se mover impunemente entre

o que aparece na forma da lei e práticas extrajudiciais.

Incursões violentas da polícia militar nas favelas cariocas continuam a aconte-

cer de forma sistemática. A manutenção de políticas de segurança pública marcadas

35 O registro ocorreu após uma ação policial realizada por integrantes do Grupo Especial de

Combate à Delinqüência em Geral – grupo que também havia sido formado em 1969 e ficou

conhecido como “Grupo dos Onze Homens de Ouro” (Verani 1996).

Page 28: Quando a exceção_vira_regra

165QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias

por estas ações vem sendo questionada e denunciada por diferentes organizações

de Direitos Humanos nacionais e internacionais. Alguns casos estão registrados

em relatórios sobre execução sumária no Brasil, ou sobre Direitos Humanos em

geral (Justiça Global 2002; 2003), mas a polícia carioca fez por onde merecer um

relatório específico sobre ela – o “Relatório Rio: Violência Policial e Insegurança

Pública”, lançado em 2004, também pela ONG Justiça Global36

.

No final de 2003, a Anistia Internacional produziu o relatório “Rio de Janeiro

2003: Candelária e Vigário Geral, 10 anos depois”. Se a chacina de Vigário Geral

aparece de forma explícita, o tempo marcado no título faz uma referência implícita

à chacina do Borel, que é descrita e analisada no interior do relatório. Entretanto,

o que eu gostaria de destacar agora não são os nomes das favelas, nem a visibili-

dade conquistada por cada caso contido no relatório. Quero chamar atenção para

o trecho “10 anos depois”.

Este trecho que compõe o título do relatório da Anistia Internacional sublinha

a continuidade do que considera um “processo de extermínio” dessas populações –

um processo que vem sendo desempenhado por alguns, legitimado por outros,

deixado de lado por muitos e denunciado por poucos. Enquanto alguns policiais

realizam incursões violentas nas favelas, outros já estão na delegacia registrando

mais um “auto de resistência”. Enquanto alguns policiais estão na delegacia re-

gistrando mais um “auto de resistência”, outros policiais estão sendo absolvidos

dentro do Fórum do Rio de Janeiro por júri popular. Enquanto alguns represen-

tantes da “sociedade civil” absolvem os policiais responsáveis pelas chacinas no

Fórum do Rio de Janeiro, outros representantes da “sociedade civil” estão em suas

casas escrevendo mensagens virtuais como:

Cada povo tem a polícia que merece, ou seja, povo abusado, polícia

abusada. Não é isso?37

Eu sou fã da bope38

porque eu quero ver todos esse bandidos mortos no

valão se do nem piedade!!! E quando prender, mata logo (sic).

36 Vale destacar também as denúncias apresentadas no relatório “Eles entram atirando”:

Policiamento de comunidades socialmente excluídas no Brasil, produzido pela Anistia

Internacional em 2005.37

Os comentários apresentados neste trecho foram retirados de comunidades virtuais do Orkut.

Este levantamento foi realizado por Larissa Accioly e Gabriela Macedo, no âmbito do projeto

de pesquisa “Cidadania e Imagem” (Oficina de Ensino e Pesquisa em Ciências Sociais, Núcleo

de Antropologia e Imagem – NAI/UERJ). Para uma abordagem da relação entre comunidades

do Orkut e discriminação de moradores de favelas, consultar Siqueira (2006).38

BOPE é a sigla que corresponde ao Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar.

Page 29: Quando a exceção_vira_regra

TEORIA SOCIEDADE nº 15.2 – julho-dezembro de 2007E166

Às vezes, a participação no processo se dá através da acumulação de funções:

o mesmo policial que realiza a incursão violenta, acessa um computador, cria um

“grupo de discussão” ou uma “comunidade virtual” e anuncia:

Olá pessoal, para a alegria de vocês, posso dizer que só ontem lá no Alemão

eu contei 28 defuntos. Tá bom ou querem mais? Não foi o número que a

mídia está apresentando, eu contei 28! Acho até que tiveram mais uns dois

que tentaram socorrer mas que já estão sentados no colo do capeta!

E uma representante da “sociedade civil” responde:

Eu como cidadã brasileira e agora mais do que nunca fã, sinto-me muito

orgulhosa e segura... espero que continuem guerreiros e que deus ilumine

sempre o caminho de vocês... e que continuem sempre tendo vitória sobre

a morte... isso prova que vocês não estão de bobeira e que defendem por

puro amor... ISSO QUE É LIMPEZA [...] Afinal de contas, morreram

quantos??? [...] Pra cima deles, Larga o Aço!!!

Esta mesma representante da sociedade civil pode um dia fazer parte do júri

popular e votar contra a condenação de um policial que assassinou um morador

de favela. Enfim, este circuito que acabei de descrever é apenas uma versão bem

resumida da engrenagem que mantém o funcionamento do “processo de exter-

mínio” dos moradores de favelas da cidade do Rio de Janeiro. Entendo que, em

uma engrenagem como esta, se articulam “micro-poderes” e “biopoder”, fazendo

dos favelados uma população matável.

3. “TRANQÜILIZAR É TAREFA DE OUTROS”

Neste artigo, apresento apenas um dos enquadramentos possíveis do período mais

recente do processo de construção social do lugar das favelas e de seus moradores

na cidade do Rio de Janeiro, no qual é possível relacionar este “tratamento espe-

cial”, ao qual venho me referindo, com as intervenções públicas e também com

outras formas de exercício do poder. Gostaria de finalizar, lembrando que Roberto

Machado, em sua introdução à coletânea de Foucault intitulada “Microfísica do

Poder”, reforça a idéia de que “os poderes se exercem em níveis variados e em

pontos diferentes da rede social e [que] neste complexo os micro-poderes existem

integrados ou não ao Estado” (Machado 2004: XII). Lidamos, portanto, com

formas de exercício do poder que diferem daquelas exercidas pelo Estado, mas

a elas se articulam de maneiras variadas – sendo inclusive “indispensáveis a sua

Page 30: Quando a exceção_vira_regra

167QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias

sustentação e atuação eficaz”, como esclarece Machado. Trata-se de um aspecto

fundamental do legado de Foucault: ter tornado evidente a existência de formas

díspares de exercício do poder, relacionadas a múltiplas áreas de ação, espalhadas

por espaços circunscritos, enraizadas em micro-relações sociais.

O caminho apontado pela linha da “antropologia das margens” é apenas uma

das possibilidades de utilização das ferramentas antropológicas para tentarmos

enxergar nas práticas cotidianas essas formas enraizadas de exercício do poder

capazes de transformar as exceções em regra. Através desta via, busco maneiras

de investigar o processo de transformação dos moradores de favelas em uma po-

pulação “matável” – compartilhando a idéia de que ainda seja necessário pensar

em direitos básicos/fundamentais quando nos propomos a abordar a temática

dos Direitos Humanos no Brasil. Nesse contexto, onde o direito à vida de deter-

minados grupos populacionais está em jogo, me posiciono a partir de um dos

ensinamentos de Clifford Geertz em Nova luz sobre a antropologia: “tranqüilizar

é tarefa de outros”.

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Page 34: Quando a exceção_vira_regra

171QUANDO A EXCEÇÃO VIRA REGRA – Juliana Farias

ABSTRACT

In the first part of this article, I focus on the two

first years action of a social movement which fight

against police violence in favelas in Rio de Janeiro,

highlighting situations that one human rights

language is activated, translated and reconfigured

– offering other elements to the actualization

process of the groups protest vocabulary. In the

second part, aiming to go deeper into the police

violence in favelas issue, I articulate theoretical

instruments and empirical elements to help me

in the interpretation of the construction process

of mechanisms which make possible a frame on

the slums dwellers like a social group who needs

“special care” – process that transformed the

entire group of favelas dwellers into a “killable”

population.

KEY WORDS

favelas

police violence

human rights

colective action

RECEBIDO EM

maio de 2008

APROVADO EM

novembro de 2008

JULIANA FARIAS

Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro – PPCIS/UERJ.