Quando Fazer é Pensar e Pesquisar

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Dança, Salvador, v. 2, n. 1, p. 58-72, jan./jun. 2013 58 Quando fazer é pensar e pesquisar: andanças epistemológicas Resumo A dança vem se expandindo de modo significativo no ambiente acadêmico. O que pressupõe investimento considerável em pesquisa, sublinhando a demanda de formular a epistemolo- gia do fazer prático que caracteriza a experiência da dança. A pesquisa em dança, assim, não se restringe ao conhecimento científico, mas com ele dialoga, compondo o conhecimento acadêmico que emerge da articulação/revezamento teoria e prática no ambiente investiga- tivo da universidade. Palavras-chave: Dança na universidade. Pesquisa artística. Pesquisa em dança. When to do is to think and research: epistemological wanderings Abstract The dance has expanded significantly in the academic environment. This presupposes con- siderable investment in art research, underlining the demand to formulate the epistemol- ogy of practical making that characterizes the experience of dance. Research in dance thus not restricted to scientific knowledge, but dialogues with it, composing the academic knowledge that emerges from the integration of theory and practice in university investi- gative environment. Keywords: Dance in the university. Artistic research. Research in dance. Joubert de Albuquerque Arrais é artista-pesquisador e crítico de dança. Doutorando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUCSP), mestre em Dança Universidade Federal da Bahia (UFBA) e bacharel em Comunicação Social/Jornalismo Universidade Federal do Ceará (UFC) com formação e estágio artísticos pelo centro em movimento – c.e.m (Lisboa). Coordena, desde 2011, os trabalhos de comitê temático sobre produção crítica em dança, da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança (ANDA). E-mail: [email protected].

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  • Dana, Salvador, v. 2, n. 1, p. 58-72, jan./jun. 2013 58

    Quando fazer pensar e pesquisar:

    andanas epistemolgicas

    Resumo

    A dana vem se expandindo de modo significativo no ambiente acadmico. O que pressupe

    investimento considervel em pesquisa, sublinhando a demanda de formular a epistemolo-

    gia do fazer prtico que caracteriza a experincia da dana. A pesquisa em dana, assim, no

    se restringe ao conhecimento cientfico, mas com ele dialoga, compondo o conhecimento

    acadmico que emerge da articulao/revezamento teoria e prtica no ambiente investiga-

    tivo da universidade.

    Palavras-chave: Dana na universidade. Pesquisa artstica. Pesquisa em dana.

    When to do is to think and research:

    epistemological wanderings

    Abstract

    The dance has expanded significantly in the academic environment. This presupposes con-

    siderable investment in art research, underlining the demand to formulate the epistemol-

    ogy of practical making that characterizes the experience of dance. Research in dance

    thus not restricted to scientific knowledge, but dialogues with it, composing the academic

    knowledge that emerges from the integration of theory and practice in university investi-

    gative environment.

    Keywords: Dance in the university. Artistic research. Research in dance.

    Joubert de Albuquerque Arrais artista-pesquisador e crtico de dana. Doutorando em Comunicao e Semitica pela Pontifcia Universidade Catlica (PUCSP), mestre em Dana Universidade Federal da Bahia (UFBA) e bacharel em Comunicao Social/Jornalismo Universidade Federal do Cear (UFC) com formao e estgio artsticos pelo centro em movimento c.e.m (Lisboa). Coordena, desde 2011, os trabalhos de comit temtico sobre produo crtica em dana, da Associao Nacional de Pesquisadores em Dana (ANDA). E-mail: [email protected].

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    Danar no revezamento teoria e prtica engenhar no e pelo corpo, que se

    organiza como dana, um entendimento de pesquisar dana como proces-

    so de articulao do conhecimento em propostas de onde emergem pr-

    ticas tericas e teorias prticas enquanto possibilidades de articulao/

    revezamento entre o fazer prtico (a prtica) e o fazer terico (a teoria).1

    A universidade um ambiente que potencializa tais acontecimentos.

    A relao arte/universidade pressupe um trnsito de informaes

    com a sociedade e, tambm, um movimento investigativo de transformar,

    por meio da curiosidade e obstinao, muitas das informaes generalis-

    tas/generalizadas em conhecimento especfico que se especializa na con-

    tinuidade investigativa. Conhecimento este que nos torna capaz, em certa

    medida, de conhecer o que conhecemos para, nesse movimento reflexivo,

    destruirmos certezas que enrijecem e que nos tornam acrticos. A dvi-

    da, aliada curiosidade, o bero da pesquisa, portanto de todo conheci-

    mento sistemtico. (FLUSSER, 2011, p. 22)

    Pesquisar, movido pela curiosidade, expande a experincia de es-

    tar pesquisando. Trata-se de uma aliana entre a descoberta e a busca,

    aquilo com que nos relacionamos e aquilo que emerge a partir dessa re-

    lao. Contudo, seguindo com Flusser (2011), se a dvida e curiosidade

    operam separadas, uma impossibilitando a outra de se mover na ao

    de pesquisar, perde-se a escuta daquilo que pode nos chega como novo.

    Deixa-nos com percepo engessada, passamos a ser reativos, o que nos

    mantm nas certezas autnticas, estas que, ao no serem atravessadas

    pela dvida, viram crenas racionalizadas, forjam um corpo sem poro-

    sidade para trabalhar com o realidade. Em estado destilado, no entan-

    to, [a dvida] mata toda curiosidade e o fim de todo conhecimento.

    (FLUSSER, 2011, p. 22)

    Na prtica acadmica do estar na Universidade, confluem vrios sa-

    beres, embora o cientfico continue sendo considerado por muitos como

    o sinnimo do fazer acadmico. No nosso caso, cabe lembrar que o arts-

    tico tambm pertence ao conjunto dos saberes que produzem conheci-

    mento, dada a complexidade e diversidades epistemolgicas de contextos

    culturais. A universidade um local possvel para que os interessados no

    conhecimento artstico encontrem formas e jeitos de lidar com as suas

    inquietaes, mas no o nico, muito menos primeira ou ltima opo.

    Se a universidade traz essa potncia, devemos habit-la enquanto espao

    investigativo e acolhedor, colaborando para que ela tambm seja habitada

    e acolhida por aquilo que est fora dela em coexistncia no mundo.

    Na relao dana-universidade, a importao de saberes histrica:

    1 Na dcada de 70, defendeu Gilles Deleuze, em conversa com Michel Foucault, intitulada Os intelectuais e o poder (FOUCAULT, 1979, p. 69-70), que: A prtica um conjunto de revezamentos de uma teoria a outra e a teoria um revezamento de uma prtica a outra. O filsofo francs, nesta conversa, refora a coexistncia entre prtica e teoria: Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espcie de muro e preciso a prtica para atravessar esse muro. (FOUCAULT, 1979, p. 69)

    ryan

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    O ensino universitrio em dana no Brasil foi implantado em 1956,

    na Universidade Federal da Bahia, com a criao da Escola de Dan-

    a. Foram contratados professores e coregrafos da Europa, esta-

    belecendo ento os primeiros conhecimentos da dana moderna,

    especificamente a dana expresso, proveniente do expressionismo

    alemo. (AQUINO, 2004, p. 7)

    Uma vez que a [...] prtica artstica a materializao do pensa-

    mento de um artista e a arte um instinto de nossa espcie. (AMORIM,

    2003, p. 19), temos como histrica tambm a contribuio epistemolgi-

    ca dos artistas de dana:

    O movimento pensante-coreogrfico que nos anos 60 tentou desli-

    gar a dana do seu auto-isolamento disciplinante e reconect-la com

    o mundo social e com novas idias de corpo e mobilizao, deixou

    frutos e se radicalizou com mais firmeza e beleza nos trabalhos de

    coregrafos e bailarinos na Europa e Estados Unidos nos anos 70, 80

    e 90. Na Alemanha, em meados dos anos 70, Pina Bausch re-equa-

    ciona o problema da dana e sua relao com estruturas de comando

    ao revolucionar a tica de ensaio. Partindo de um entendimento de-

    mocrtico de que o corpo do bailarino no deve ser relegado mu-

    dez nem subordinado vontade mono-vocal da coroegrafa, Bausch

    abre radicalmente o campo expressivo da dana ao repensar o que

    constitui o trabalho do bailarino. Seu tanztheater a mais potente

    revoluo no modo da dana entender seu cho ontolgico e sua

    proposta tica. (LEPECKI, 2006, p. 7)

    Seguindo esse trao histrico e evolutivo, temos que, na primeira d-

    cada do novo sculo, constatamos uma situao que pede um olhar ade-

    quado, pois a dana vem se expandindo de modo significativo no ambien-

    te acadmico. Com a criao do primeiro mestrado especfico em dana

    do Brasil, na Escola de Dana da Universidade Federal da Bahia (UFBA),

    que iniciou suas aulas em maro de 2006, pudemos comear a mudar a

    situao anterior, a das pesquisas em dana em nvel de ps-graduao

    estarem pulverizadas em programas de outros saberes que, felizmente,

    acolheram a dana. Isso foi e ainda importante, uma vez que o pas

    enorme e o Programa de Ps-graduao em Dana da UFBA continua

    sendo o nico Mestrado Acadmico em Dana do Brasil.

    Apesar de estrategicamente indispensvel, essa disperso, mesmo

    com todo o esforo dos pesquisadores que fazem da dana o seu obje-

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    to de investigao, implica em uma questo de natureza epistemolgica:

    pertencendo oficialmente a outros campos de conhecimento, a dana faz

    acordos que, em certa medida, so positivos, pois funcionam como res-

    piros. A permanncia e extenso dessa condio produziu um trao epis-

    temolgico, que tambm histrico e se caracteriza como uma espcie

    de migrao bibliogrfica produtiva, na medida que articulada num am-

    biente especfico da/e dana.

    Em outra medida, porm, esses mesmos acordos inter e transdis-

    ciplinares podem tambm nos manter to merc de outras referncias

    bibliogrficas que, enquanto pesquisadores de dana e danantes pes-

    quisadores considerando nestas terminologias o revezamento entre

    teoria e prtica; e a articulao do artstico no/com acadmico , passa-

    mos a trabalhar fora do que lhe especfico, afastando-se para a margem.

    Assim, o que circunstancialmente chega como bons respiros podem aca-

    bar sufocando e nos tirando a liberdade para experimentar outros ares, se

    no atentarmos para o fato que todo trnsito e deslocamento pressupe

    ajustes, perdas e ganhos. Nada sai ileso.

    Afirma Katz (1998), e que vem se confirmando nestas duas primei-

    ras dcadas do sculo 21, que quem trabalha com dana e escolhe lidar

    com ela atentando para a natureza cognitiva do corpo, precisa se manter

    muito alerta s imposturas que se efetivam no exerccio do reducionismo

    interterico (CHURCHLAND, 1998 apud GREINER, 2006). Esta postu-

    ra metodolgica coloca-nos a possibilidade de deslocamentos cujos des-

    dobramentos tem implicaes epistemolgicas decisiva e que podem sim

    ser produtivos, expansivos, ou simplesmente, no. No h garantias, por

    isso, mostra-se potente para quem pesquisa dana. O risco est no demo-

    nizar ou glorificar, sem perceber os interstcios existentes e, muitas vezes,

    desconsiderado por serem desconhecidos.

    No mundo dos pesquisadores, o termo reducionismo pode servir a

    Deus ou ao Diabo. Para alguns, representa o melhor caminho para o

    trato dos assuntos cientficos; para outros, indica uma atitude que

    empobrece aquilo que se estuda e, portanto, deve ser combatida. Na

    rea das humanidades, campeia a segunda opo, e a primeira vive

    bem entre fsicos, bilogos moleculares, qumicos. Evidentemente, a

    maior turbulncia ocorre nas zonas de fronteiras entre as duas tri-

    bos. (KATZ, 1998, p. 7)

    O reducionismo este que opera no trnsito, nem sempre tranqui-

    lo, de uma teoria outra , dialoga com a indisciplina. A postura indisci-

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    plinar refere-se outra construo terica (GREINER, 2006) que proble-

    matiza as relaes corpo-ambiente e mdia&cultura. (SODR, 2006) As-

    sim, o que definimos como interstcio indisciplinar desfaz o sentido co-

    loquial de entender-se indisciplina como um descumprimento de regras.

    Indisciplinar refere-se ao transitar por diferentes reas de conhecimen-

    to que mantm alguma forma de sintonia, fazendo dos atravessamentos

    possibilidades de reducionismo interterico. No suficiente, para lidar

    com o corpo, a tentativa esforada de buscar conhecimentos em discipli-

    nas ali, aqui, l e acol, somente para serem colados como/nos discursos

    do corpo, pois a transdisciplinaridade no d conta, muito menos a inter-

    disciplinaridade, por no serem competentes o bastante. (KATZ; GREI-

    NER, 2009) Por isso, as autoras prope a abolio da moldura da disci-

    plina em favor da indisciplina que caracteriza o corpo, em especial, o que

    dana e o que move o pesquisar em dana.

    Nesse sentido, possvel acessarmos abordagens tericas que dis-

    correrem sobre cultura, conhecimento e evoluo, enquanto escolha as-

    sertiva se quisermos evitar dualismos e maniquesmos que imobilizam o

    campo da dana, transformando-as em bibliografia bsica para pesquisa-

    dores e artistas de dana que buscam uma oxigenao de ideias a respeito

    do funcionamento do corpo que dana. No se trata, pois, da biologizao

    da arte, como alguns acusam ou temem, mas de uma prtica epistemo-

    lgica sem um decifra-me ou te devoro ou abre-te ssamo, se enten-

    demos conhecimento como uma trama tecida de saberes que travessam

    a j obsoleta separao entre disciplinas. Tais escritos, que considerem

    a complexidade da epistemologia do corpo, possibilitam-nos outros ins-

    trumentos tericos, inclusive para ler os fenmenos culturais, desvin-

    culados de ideias universalizantes, que separam corpo e mente de forma

    hierrquica. Ou ainda, que fortaleam a crena de que qualquer pessoa

    pode danar, simplesmente por que ter um corpo.

    Tudo isso precisa ser levado em conta quando se trata da demanda

    de formular a epistemologia do fazer prtico que caracteriza a experin-

    cia da dana e que se manifesta no investimento considervel no fazer

    pesquisa que vem acontecendo. Em diferentes momentos da histria

    ocidental, a atividade prtica foi menosprezada, divorciada de ocupaes

    supostamente mais elevadas. (SENNETT, 2009, p. 31) Pois, se [...] o ar-

    tfice especial por se mostrar engajado como ser humano, nem por isto

    suas aspiraes e dificuldades deixam de espelhar essas questes mais

    amplas do passado e do presente. (SENNETT, 2009, p. 31) A dana que

    acontece na Universidade nos coloca para refletir sobre as prticas na

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    medida que as problematiza como objeto de estudo ou sistematizao de

    procedimentos para compreender o que chamamos de prticas tericas

    e tericas prticas.

    Tanto que, no contexto do mestrado em Dana da UFBA, j so hoje

    mais de sessenta mestres em dana certificados, com suas dissertaes

    defendidas, um nmero significativo que traz uma pergunta intrigante:

    quantos desses mestres acadmicos so artistas atuantes que escolhe-

    ram estar na Universidade produzindo reflexo crtica a partir de suas

    prticas artsticas? E outra, que nasce dela: quais destas pesquisas acad-

    micas tiveram como objeto de investigao, pesquisas artsticas desen-

    volvidas fora da universidade ou que optaram por um trabalho apenas

    de articulao terica? Cabe refletir sobre as prticas de dana e perceber

    nelas a potncia de uma investigao que evita as armadilhas da alcunha

    da arte inefvel.

    Nas universidades temos grande experincia no setor [educacional],

    o ensino de dana tem outros objetivos. So tambm centros de ex-

    celncia artstica, mas com papel diferenciado na sociedade: ali so

    realizadas pesquisas, aprofundando estudos artstico-crtico-teri-

    cos que estimulam o desenvolvimento da dana como linguagem

    artstica. (AQUINO, 2004, p. 7)

    No queremos, com isso, defender a supremacia do conhecimen-

    to emprico/vivido, comumente colocado em oposio ao cientfico/aca-

    dmico, mas, pelo contrrio, considerar que ambos esto envolvidos na

    produo deste conhecimento. O que cabe desestabilizar os lugares-co-

    muns que colocam a dana como a arte do sentir bem ou aquilo que todos

    fazem naturalmente, desde que nascem, porque desconsideram a espe-

    cificidade do fazer da dana enquanto arte, linguagem e conhecimento.

    Agrada a muitos enunciar que a dana a linguagem universal do

    homem, uma vez que todos os homens danam desde que se en-

    tendem por homens, em todas as regies do planeta. Mas quem se

    detiver nessa justificativa da dana como linguagem universal, per-

    ceber o quanto ela tem de simplria, como acontece aos frutos de

    convico e no de descoberta. Dizer que todos os homens danam,

    esclarece muito pouco, de fato. Quem cabe nesse todos? E nesse

    danam? (KATZ, 2005, p. 43)

    ryan

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    Sendo o pesquisador de dana um fazedor de inquietaes, pode-

    mos consider-lo um artfice. Propor tal relao nos interessa, uma vez

    que temos como pressuposto fundamental que a dana pensamento do

    corpo. (KATZ, 2005) E por no se tratar de uma evidncia, tomamos pres-

    supomos ainda que a arte um tipo de conhecimento:

    s vezes as pessoas olham a artes como se fosse algo meio estranho

    ou distante... mas que a principio seria uma espcie de luxo intelec-

    tual. Eu no concordo com isto. Eu acho que a arte um tipo de co-

    nhecimento e todas as formas de conhecimento tm como direo a

    sobrevivncia da espcie humana. Ou seja, ns precisamos conhecer

    para sobreviver. Ningum conhece por luxo, esporte ou por distra-

    o. As pessoas conhecem porque necessitam. Neste sentido, a arte

    necessria e no pode ser encarada como luxo ou algo suprfluo.

    (VIEIRA; RAY, 2009, p. 12)

    Ser artfice tem um carter prtico, porm, no um trabalho que

    visa somente um jeito para alcanar uma finalidade ou meta. O trabalho

    manual e artesanal, que caracteriza o artfice, capacita pela prtica corpo-

    ral, e com um fazer que pensar. A palavra artfice, nesse movimento, evo-

    ca imagens que podem ser da rotina de uma carpintaria: Olhando pela

    janela da oficina de um carpinteiro, vemos l dentro um homem de idade

    cercado de aprendizes e ferramentas (SENNETT, 2009, p. 19); ou a de

    um laboratrio de dissecao: Nele, uma jovem tcnica franze as sobran-

    celhas diante de uma mesa na qual esto estendidos seis coelhos mortos,

    tendo voltadas para cima as barrigas abertas (SENNETT, 2009, p. 19); ou

    mesmo, como descreve o autor, sobre um ensaio de msica:

    Um terceiro artfice poderia ser ouvido na sala de concertos da cida-

    de. Uma orquestra ensaia com um regente convidado; ele trabalha

    obsessivamente com a seo de cordas, repetindo interminavelmen-

    te uma passagem para fazer com que os msicos ataquem as cordas

    com seus arcos exatamente na mesa velocidade. Os violinistas esto

    cansados, mas tambm felizes, pois o som ganha coeso. O geren-

    te da orquestra se preocupa; se o regente convidado continuar, o

    tempo do ensaio ser excedido e tero de ser pagas horas extras. O

    maestro no est nem a.

    Na dana, tais imagens artfices remetem-nos ao corpo em movi-

    mento, movido pela curiosidade da descoberta e na dvida da incerteza, e

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    que faz surgir gramticas e sintaxes, na medida que investe nesse desafio

    de ser potncia de dana:

    [...]o afastamento da experincia quotidiana dos ofcios, da deli-

    cadeza ou brutalidade do trabalho manual, do cheiro da terra, da

    construo de um conhecimento experencial que implica o corpo em

    movimento pode ter nos afastado do ritmo tremente que caracteriza

    a vida, a importncia do entendimento das diferenas-semelhanas

    pode ter-nos afastado da capacidade de percepcionar a passagem

    entre universos sem o esforo do estilhao, da segmentao, no en-

    tanto[...] no nos impermeabilizou completamente o sentir, de vez

    em quando um de ns inclina um pouco a cabea, franze as sobran-

    celhas, contorce-se de espanto e abre-se a desconfiana de que estes

    hbitos que criam formas de vida tm outras configuraes poss-

    veis. (NEUPARTH, 2011, p. 15)2

    Propondo, assim, a figura do pesquisador-artfice como filosofia

    de trabalho do pesquisador em dana - que no se restringe ao ambien-

    te acadmico, mas com ele e nele pode coexistir -, temos que tal alcunha

    refere-se ao fato que ele manuseia materiais, desenvolve procedimentos,

    encara problemas cotidianos que pedem e clamam por solues no defi-

    nitivas e provisrias. No almejar a construo que se alinha com desen-

    volvimento, compreenso e transformao do seu objeto de busca, ele

    tem que lidar, de um jeito especfico, com foras competitivas, certas frus-

    traes e, ainda, buscas obsessivas, explorando, assim, dimenses recor-

    rentes que se referem habilidade, ao esforo/empenho e s valoraes/

    avaliaes. (SENNETT, 2006) Sendo a dana o que move o trabalho do

    pesquisador-artfice, no corpo e no trabalho corporal que ela se especia-

    liza, mesmo que isso no parea to evidente ou bvio.

    Nessa direo, podemos entender a experincia cotidiana do corpo

    que dana como a de um corpo danante que constri um conhecimento

    a partir do experiencial, o que implica em um corpo em movimento com

    a vida e seus ambientes relacionais:

    [...] o fazer e fruir artstico abre-me o desdobramento de possibilida-

    des de relao e, assim, de reflexo e aco. Somos seres relacionais

    e os laos e afectos que tecemos ao longo da vida no se restringem

    ao universo humano, desde o principio do desenvolvimento embrio-

    nrio, quando o zigoto se lana no caminho ao longo do tero ma-

    terno, j entramos em contato com o acontecimento que tantos tm

    identificado como ser o no ser. O mesmo agregado de clulas em

    2 Sofia Neuparth uma artista portuguesa que coordena, desde 1992, o Centro Em Movimento (C.E.M), espao interdisciplinar que dirige com Margarida Agostinho e que investe nos estudos do corpo e movimento, na investigao e formao artsticas, com nfase no trabalho entre pessoas e lugares em bairros de Lisboa. Desde 2005, promove uma formao intensiva acompanhada, alm de aulas regulares e colaborao de pesquisadores acadmicos, como tambm o evento artstico Pedras Dgua.

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    movimento d origem ao humano e o seu ambiente imediato [...].

    (NEUPARTH, 2011, p. 15)

    Seguindo com a linhagem iluminista,3 quase todos ns podemos

    nos tornar bons artfices se houver a representao de uma condio

    humana especial, a do engajamento. Todo bom artfice sustenta um di-

    logo entre prticas concretas e ideais; esse dilogo evolui para o estabele-

    cimento de hbitos prolongados, que por sua vez criam um ritmo entre a

    soluo de problemas e a deteco de problemas. (SENNETT, 2009, p.

    20) A possibilidade do engajamento de uma forma prtica artesanal (que

    no sinnimo de uma prtica instrumental) faz do fazer artfice uma

    ao de cunho investigativo, na medida em que demonstra habilidades

    no solucionar problemas diante de situaes reais.

    No da noite para o dia. A aptido se desenvolve por horas e horas de

    experincia, que se fazem necessrias a cada tipo de situao. Para um corpo

    produzir conhecimento, precisa especializar-se a fazer determinada ao ou

    atividade com competncia e sabedoria. E isso toma um longo tempo at se

    realizar.

    Toda habilidade artesanal baseia-se numa aptido desenvolvida em

    alto grau. Uma das medidas mais habitualmente utilizadas a de

    que cerca de 10 mil horas de experincia so necessrias para pro-

    duzir um mestre carpinteiro ou msico. Vrios estudos demonstram

    que, progredindo, a habilidade torna-se mais sintonizada com os

    problemas, como no caso da tcnica de laboratrio preocupada com

    o procedimento, ao passo que as pessoas com nveis primitivos de

    habilitao esforam-se mais exclusivamente no sentido de fazer as

    coisas funcionarem. Em seus patamares mais elevados, a tcnica dei-

    xa de ser uma atividade mecnica; as pessoas so capazes de sentir

    plenamente e pensar profundamente o que esto fazendo quando o

    fazem bem. (SENNETT, 2009, p. 30)

    Na dana, essa dinmica se d, inclusive, em espaos formais e no-

    -formais, com habilidades desenvolvidas por um fazer prtico da dana

    que, quando entendido como fazer artfice de dana, acaba por se articu-

    lar com outros saberes prticos e tambm tericos:

    Para formar um danarino so necessrios muitos anos de estudo,

    que no se limita ao treinamento tcnico. Uma srie de informaes

    constri seu universo de conhecimento. Aspectos da filosofia e his-

    3 O artfice, para Richard Sennett, o smbolo do Iluminismo, mantendo certo vnculo com os pressupostos desse movimento filosfico ocorrido, em especial, na Frana, no sculo 18 (sculo das luzes); dentre os quais, um vai ao encontro do que o autor prope: a valorizao do questionamento, da investigao e da experincia como forma de conhecimento tanto da natureza quanto da sociedade, poltica ou economia.

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    tria da arte, as interfaces da dana com a msica, as artes plsticas

    e o teatro vo se consolidando ao longo dos anos como conhecimen-

    to, de forma no sistematizada, principalmente, pela prtica artsti-

    ca durante os ensaios e as montagens de espetculos. Essa forma de

    aprendizagem a tradio de nossa histria com relao formao

    em dana. Tambm, o professor de dana, oriundo dessas academias

    danarino, que por vocao ou no, resolve assumir a transmisso

    de conhecimento especfico , tem sua formao pedaggica pouco

    sistematizada. Porm, mesmo sem formao sistematizada, esses

    professores tm amplo lastro cultural em relao a sua rea de atu-

    ao. [...] Os centros de excelncia e os professores das academias

    so os responsveis pela formao do artista que, aos 18 anos, atua

    no mercado. Portanto indiscutvel a importncia dessa formao

    pr-universitria: nesse mbito que se formam os grandes artistas.

    (AQUINO, 2004, p. 7)

    A ligao do artfice com o seu fazer est entremeada por um cer-

    to entendimento que separa, no senso comum, teoria e prtica. Existem

    momentos Eureca! que soltam as amarras de uma prtica que emperrou,

    mas eles esto incorporados rotina. (SENNETT, 2009, p. 49) Pois, diz

    o autor: Na medida que uma pessoa desenvolve sua capacitao, muda o

    contedo daquilo que ela repete. (SENNETT, 2009, p. 49) Na experin-

    cia da dana, trabalhamos aguando a percepo e temos que lidar com

    os hbitos cognitivos que, assim como o artfice iluminista, est implica-

    do cotidianamente com seu fazer prtico repletos de rotinas e repeties,

    e que pode se engessar caso no perceba os insigths criativos que movem

    a criao artstica, [...] que a criatividade desloca o conhecido e a criao

    se configura no desconhecido. (NEUPARTH, 2011, p. 19) Por isso, pre-

    ciso, tanto como necessidade quanto rigor investigativos, [...] reconhecer

    a presena do corpo que dana implica ouvir-lhe a intermitncia. (NEU-

    PARTH, 2011, p. 24) Pois, essa intermitncia que permite o brilho [da

    criao]. (NEUPARTH, 2011, p. 24)

    Sennett (2009, p. 165) lembra-nos: Desde as origens da civilizao

    clssica, os artfices so incompreendidos. O que lhes permitiu ir em frente

    do ponto de vista humano foi a f no trabalho e no envolvimento com seus

    materiais. Logo, produzir conhecimento no algo s do fazer cientfico.

    Aqui se pleiteia o uso do termo acadmico, em sintonia com Katz (2012),

    para identificar o tipo de conhecimento que a universidade produz, uma vez

    que ele no restringe apenas ao fazer cientfico. E, para tal, nos cabe colabo-

    rar para a construo das epistemologias que firmem esta proposta.

  • Dana, Salvador, v. 2, n. 1, p. 58-72, jan./jun. 2013 68

    Nessa sintonia, precisamos caminhar buscando o conhecimento do

    conhecimento prtico, que pode parecer superficial, mas no . Se todo

    conhecimento produzido na universidade visa constituir-se em um sen-

    so comum com a dimenso utpica e libertadora de que nos fala Santos

    (2006, p. 88) para ser o [...] conhecimento vulgar e prtico, com o que no

    cotidiano orientamos nossas aes e damos sentido s nossas vidas, ne-

    cessrio dialogar com outras formas de pensamento deixando-se penetrar

    por elas. (SANTOS, 2006, p. 88)

    O senso comum prtico e pragmtico; reproduz colado s trajetrias

    e s experincias de vida de um dado grupo social e nessa correspon-

    dncia se afirma vivel e securizante. O senso comum transparente

    e evidente; desconfia da opacidade dos objetivos tecnolgicos e do

    esoterismo do conhecimento, em nome do princpio da igualdade do

    acesso ao discurso, competncia cognitiva e competncia lingus-

    tica. O senso comum superficial porque desdenha das estruturas

    que esto para alm da conscincia, mas, por isso mesmo, exmio

    em captar a profundidade horizontal das relaes conscientes entre

    pessoas e entre pessoas e coisas. O senso comum indisciplinar e

    imetdico, no resulta de uma prtica especificamente orientada para

    produzir; reproduzir-se espontaneamente no suceder quotidiano da

    vida. O senso comum aceita o que existe tal como existe; privilegia

    a aco que no produza rupturas significativas no real. Por ltimo,

    o senso comum retrico e metafrico; no ensina, persuade. (SAN-

    TOS, 2006, p. 89-90)

    A tarefa no fcil, pois exige rigor e sensibilidade. Para adentrar no

    senso comum que empedra a arte da dana e se diferencia deste senso co-

    mum utpico e libertador, precisamos entender o que seja sensocomuni-

    zar-se (SANTOS, 2006), isto , h que identificar a necessidade de cons-

    truir outros sensos comuns que ajudem a todos ns acessarmos a experi-

    ncia da dana no-regulada por dizeres inefveis mas sim, emancipada em

    suas possibilidades enquanto arte e conhecimento, que no se limita ao

    universo do artista, mas tambm do seu dito receptor ou destino final,

    o espectador, este de quem no podemos desconsiderar a potncia de uma

    ao implicada no fazer artstico. O espectador tambm age, como aluno

    ou o cientista. Observa, seleciona, compara, interpreta. Liga o que v com

    outras coisas que viu noutros espaos cnicos e noutro gnero de lugares.

    (RANCIRE, 2010, p. 22) E assim: Compe o seu prprio poema com os

    ryan

  • Dana, Salvador, v. 2, n. 1, p. 58-72, jan./jun. 2013 69

    elementos do poema que tem sua frente. (RANCIRE, 2010, p. 22) J a

    respeito da emancipao, este autor coaduna:

    [...] essa comea quando se pe em questo a oposio entre olhar e

    agir, quando se compreende que as evidncias que assim estruturam

    as relaes do dizer, do ver e do fazer pertencem elas prprias estru-

    tura da dominao e sujeio. A emancipao comea quando se com-

    preende que olhar tambm uma aco que confirma ou transforma

    essa distribuio de posies. (RANCIRE, 2010, p. 22)

    Ao s nos sentimos artistas apenas se estivermos no palco, que l

    acontece algo que precisa ser decifrado por quem est espera na plateia

    e o que est fora do palco no importa; camos na armadilha da legitima-

    o do espao teatral enquanto arte do espetculo, que tem a ver com uma

    viso romantizada da arte pela arte (que se autojustifica) e do espectador

    passivo (aquele que apenas frui ou est ali s pra receber e ser satisfeito,

    ou contrariado). Como defende Rancire (2010), trata-se de uma lgica

    que embrutece a relao entre artista e espectador, um jeito pedagogizante

    no qual opera uma transmisso direta conteudista, de algo que est de um

    lado e que deve ser passado para o outro lado, que o autor traz da crtica

    que nasce na relao entre o mestre e o aluno. Logo, no nos emancipamos

    e, por conseguinte, mantemo-nos regulados, principalmente se conside-

    rarmos o papel do artista enquanto espectador-artfice junto com o artista-

    -artfice. Sobre isso, o autor diz com veemncia:

    Dir-se- que o artista, por seu lado, no quer instruir o espectador. O

    artista, hoje em dia, recusa-se a utilizar a cena para impor uma lio

    ou fazer passar uma mensagem. Quer somente produzir uma forma

    de conscincia, uma intensidade de sentimento, uma energia para a

    aco. Mas continua a supor que o que ser percebido, sentido, com-

    preendido aquilo que ele prprio colocou na sua dramaturgia ou na

    sua performance. Continua a pressupor a identidade da causa e do

    efeito. H a distncia entre o artista e o espectador, mas h tambm

    a distncia inerente prpria performance, na medida em que esta

    se encontra - enquanto espetculo, enquanto coisa autnoma - entre

    a ideia do artista e a sensao ou compreenso do espectador. (RAN-

    CIRE, 2010, p. 24)

    O ambiente da universidade pode possibilitar a artistas e no artistas

    desvendar as mirades tericas do saber prtico e as mirades prticas do

  • Dana, Salvador, v. 2, n. 1, p. 58-72, jan./jun. 2013 70

    saber terico de dana, priorizando, nesse desvendar, o entendimento do

    corpo e seu funcionamento no mundo. Sabemos que no h apenas um

    tipo de dana, muito menos um modo nico de danar e experienciar a

    dana. Ainda bem. Se o homem se move, tal ao traz a potncia de ser

    dana. Mas o corpo em movimento, para ser dana, especializa-se quando

    nele faz do movimento um fluxo, que lhe traz possibilidades de entender

    que quando pesquisamos dana, danamos.

    No exerccio da experincia investigativa em dana, a elaborao de

    hipteses requer um corpo em condio de questionamento. A condi-

    o de questionamento implica a abertura de um corpo para a expe-

    rincia reflexiva do movimento. O corpo, em estado de investigao,

    um corpo capaz de questionar e questionar-se em ao de refletir

    sua prpria ao enquanto a ao acontece. (TRIDAPALLI, 2008, p.40)

    Na dana, bem como em outras artes presenciais, resguardadas suas

    devidas distines, h ainda um fosso crescente no entendimento entre

    o que o saber dizer e o saber fazer, entre a teoria e a prtica. Se digo que

    dano, sou coregrafo, danarino, bailarino etc., logo sou indagado: que

    tipo de dana voc dana? Se escrevo sobre dana, pesquiso dana na uni-

    versidade, logo sou acusado: voc da galera da teoria! Por isso, vale lem-

    brar que a fora da hierarquia entre teoria e prtica se funda na nossa his-

    tria evolutiva, motivo que nos leva a produzir bons argumentos para, ao

    mesmo tempo, exp-la e transform-la: O desejo de algo mais duradouro

    que as matrias que se decompem uma das explicaes, na civilizao

    ocidental, da suposta superioridade da cabea sobre a mo, considerando

    o terico melhor que o artfice porque as ideias perduram. (SENNETT,

    2009, p. 143)

    A arte, ao trazer a potncia de uma recusa do pensamento cartesiano,4

    , antes de tudo, a morada da experincia, sua busca deliberada, compreen-

    dendo que a investigao artstica, enquanto prtica que s se fortalece no

    fazer contnuo e que no tem um ponto exato de partida ou chegada, [...]

    detecta e reconhece essas linhas/manchas, essas configuraes efmeras

    que so a potncia da criao, trabalha-as, manuseia-as, e permite aparecer

    da forma comunicvel a que chamamos a obra. (NEUPARTH, 2011, p. 19)

    A cada leitura, a cada experimento, percebemos procedimentos e jei-

    tos outros de fazer uma mesma coisa, mobilizado pela curiosidade que faz

    o olhar passear pelo mundo na lgica da descoberta. Nesse mbito, que

    podemos apresentar algumas constataes tendo em vista certas hipteses

    4 O cartesianismo um movimento filosfico cuja origem o pensamento do francs Ren Descartes, filsofo, fsico e matemtico (1596-1650). O pensamento cartesiano uma forma de racionalismo que se sustenta na sobreposio hierrquica da mente sobre o corpo. O cartesianismo, como tambm conhecido, procura demonstrar que o homem essencialmente uma coisa pensante e que a mente (o pensamento) regula a existncia (o corpo).

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    sobre o que vem a ser a pesquisa em dana, dentro de um contexto maior,

    com proximidades e distines, que o da pesquisa em artes. Porque co-

    nhecer dana, esclarece Katz (2005, p. 43), [...] exige uma descrena b-

    sica em formas definitivas. Ela prossegue. Sendo dana semiose perma-

    nente, o que nos cabe a tarefa de empreender sries de sries de sries de

    aproximaes. (KATZ, 2005, p. 43)

    H nisso uma latncia. Quando no lidamos com o conhecimento

    como o conhecimento do conhecimento, parafraseando Santos (2006),

    acabamos por emperrar muitos movimentos, turvar muitas danas/pen-

    samentos. O socilogo portugus afirma ainda que, interessado numa

    abordagem ecolgica que articule saberes diversos, todo conhecimento

    autoconhecimento que nasce do exerccio epistemolgico de conhecer o

    conhecimento, at mesmo reconhec-lo. Sendo pesquisa movimento de

    indagao, questionamento, estudo, aes realizadas e vividas cuidadosa-

    mente no rigor e na ousadia, recorrentes em todo ato investigativo, h nela

    a continuidade cclica na forma de fluxo, que [...] esse fazer que a inves-

    tigao artstica tonifica aceita que a forma/obra a parte de um processo

    de trnsito entre um antes que acontece sempre no agora e um depois que

    densifica a possibilidade de existncia do antes. (NEUPARTH, 2011, p.

    20) Pois, se duvidamos do passado, no para lhe d uma suficincia

    que impea imaginarmos o futuro; e se vivemos o presente, no para

    lhe d uma demasia limitante que impossibilite realizar nele o futuro. Da

    a importncia, na jornada artstico-acadmica, percebermo-nos enquanto

    pesquisadores-artfices de dana.

    Afinal, a condio epistemolgica da dana repercute na condio

    existencial de quem experiencia a dana como pesquisa. Isso vale para to-

    dos, cientistas, artistas, acadmicos e outros tantos fazeres e pensares.

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