Quando o amor acontece - Capítulos Extras

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Para os leitores de QOAA, um pedacinho depois do "Fim" ♥

Transcript of Quando o amor acontece - Capítulos Extras

5 dias, 17 horas, 21 minutos e 15 segundos.

Esse é o tempo exato em que minha vida virou um grande borrão outra vez. Nunca pensei que ficar sozinha fosse tão ruim. Depois que Jake partiu para a universidade, foi como se a ficha finalmente tivesse caído.

Minha mãe se foi. De uma forma tão calma e silenciosa que eu nunca tinha me permitido chorar ou me lamentar. Seco os olhos. As lágrimas escorrem pela primeira vez em mais de três meses. A saudade é tanta que a lembrança faz meu corpo inteiro tremer. Tudo dói. A ausência é um buraco escuro e sem fundo que me impulsiona cada vez mais para baixo.

Fecho os olhos e me forço a pensar em outra coisa.

Penso em Anna, a 243 km de distância. Em Nova York. A grande maçã, o sonho americano perfeito e quase intocável. Ela parecia tão feliz na última vez que conversamos... Dava para sentir a euforia em sua voz, mesmo falhada por causa do péssimo sinal de seu telefone. Ela não poderia ter se encaixado melhor em outro lugar. Aparentemente, todos os alunos de Artes Cênicas são tão doidos quanto ela. Permito-me sorrir, me lembrando de sua promessa enfática de vir me visitar no Natal.

Então penso outra vez em Jake e na conversa que tivemos por Skype, na sexta. Só faz dois dias que aquele sorriso preencheu o vazio que sobrou aqui, mas sinto como se houvesse passado uma eternidade. Tiro o celular do bolso do casaco e mando uma mensagem escrito apenas “saudades”. O sentimento sufoca qualquer outra coisa que eu esteja sentindo agora.

Olho pela janela e tudo o que vejo é escuridão. O metrô avança com tanta rapidez que só enxergo flashes de luz desconexos. Nem sei há quanto tempo estou aqui, mas devo estar chegando. Diferente de Anna e Jake, não precisei viajar de avião até minha faculdade. Estou a apenas uma hora de casa, que agora parece mais a casa de Lena e Itan do que minha. Depois do enterro, ela decidiu levar todas as suas coisas para lá de uma vez. A situação com Jeremy parece irreparável e ela está definhando mais e mais a cada dia. Tenho medo de deixa-la sozinha, por isso ficarei nos dormitórios durante a semana e voltarei para casa nos sábados. Não era essa a experiência que eu tanto sonhava em aproveitar durante os próximos quatro anos da minha vida, mas não há nada que eu possa fazer. Preciso cumprir a promessa que fiz para Mary naquele dia no hospital. Lena precisa de mim.

Quando já consigo ver mais do que apenas manchas negras pela janela, me ajeito no banco, ficando de lado. Agora vejo prédios altos, pessoas apressadas e carros. Muitos deles. Ainda estou em Maryland, mas é tão diferente de casa que começo a sorrir sozinha. Em poucos minutos desembarco na estação e ando para fora desajeitada, puxando um carrinho e equilibrando mais duas malas pesadas nas mãos. Lena não estava se sentindo bem para me trazer de carro, mas não imaginei que fosse tão complicado andar com isso sozinha no meio de tanta gente. Me espremo entre as

pessoas, caminhando com dificuldade por entre as ruas largas. Paro quando avisto um imponente prédio branco e marfim, com suas janelas enormes, me observando como se eu fosse um inseto pronto para ser esmagado pelo mundo real.

- Uau! – digo, incapaz de pensar em qualquer outra coisa para dizer.

Washington College. É isso. O lugar onde meus sonhos começam a parecerem reais outra vez. Volto a andar pelo gramado, ainda sem acreditar que estou mesmo aqui.

A cada passo que eu dou, me sinto menor no meio de tantas pessoas. Respiro fundo. Enfio a mão no bolso e tiro um papel verificando o endereço, depois sigo em direção à ala norte, onde ficam os dormitórios. Penso em pedir ajuda, mas as pessoas passam por mim sem nem ao menos me notar. Dou de ombros e continuo andando. Todos esses anos sendo invisível já haviam me preparado para isso, de qualquer maneira.

Encontro o prédio estreito e subo as escadas, até o terceiro andar. Não sei por que imaginei que teria um elevador aqui, mas subir com todo esse peso leva mais tempo do que eu havia planejado. Chego ao meu andar ofegante e tiro o casaco, amarrando-o na cintura enquanto continuo caminhando até o número 305.

Abro a porta. O quarto é completamente branco, com uma janela grande no fundo e duas camas, uma em cada extremidade do cômodo. Entre elas há um único guarda-roupas, o que significa que, além de uma completa desconhecida e eu dividirmos o quarto e o banheiro, também dividiremos o mesmo espaço para guardar nossas coisas pessoais. Que beleza. Fecho a porta. Deposito as coisas no chão ao lado da entrada e me jogo em uma das camas, de roupa e tudo.

Assim que deito, percebo que há um mural de camurça encima de cada uma das camas. Provavelmente deve ser para colocarmos fotos de casa e lembranças da nossa família e amigos. Pego a foto de Anna, Jake e eu na praia, que tenho levado comigo para todo canto, e penduro bem no meio. É a única “memória de casa” que me lembrei de trazer. Fico olhando para todo aquele espaço vazio e percebo que é assim que vou me sentir nas próximas semanas, enquanto as aulas não começarem. Vazia. Sozinha.

5 dias, 18 horas, 37 minutos e 11 segundos.

JAKE

Sozinho. É assim que vou passar os próximos quatro anos: sendo só mais um calouro na multidão de alunos que é a Universidade de Stanford.

Vir para cá não estava nos meus planos no começo do ano. Tudo o que eu queria era esquecer toda aquela droga que era a minha família desajustada e terminar o Ensino Médio sem nenhum outro acidente de percurso. E então ela apareceu. Me apaixonar por Alex também não era algo que eu tinha planejado, mas desde o primeiro dia em que eu vi aquela criaturinha indefesa, chorando sozinha, eu soube que precisava protege-la de quem quer que tivesse a deixado naquele estado. Mal sabia eu que ela tinha que lutar contra os próprios fantasmas. Assim como eu. Foi nesse momento que eu soube que nós nos pertencíamos.

Entro pelo campus lotado com o pensamento naqueles olhos molhados da nossa última despedida. Ela tinha perdido a mãe, uma parte da sua identidade, e agora eu também precisava partir. É claro que aquilo não me impediria de fazer o possível para que nosso relacionamento sobrevivesse ao tempo e à distância. Eu precisava ser forte por nós dois. Mas agora, enquanto tento encontrar meu caminho entre gramados e dormitórios ferrados, tudo o que eu me concentro é na minha cama vazia me esperando em meu novo lar.

Novo lar... Que ironia! Como se algum dia eu tivesse me sentido em casa. Eu não pretendo voltar para lá no Natal, nem nos feriados. Pra falar a verdade, não pretendo voltar para lá nunca mais. Foi difícil o bastante reconstruir minha fachada num lugar que se parecia com tudo, menos com um lar. Aqui eu posso recomeçar. Mesmo que seja como Jake – o nerd, como Alex gostava de chamar. Nunca como um criminoso. Aquele apelido bobo compartilhado, que antes me trazia um conforto, agora me lembra de coisas antigas que eu quero com todas as forças esquecer. Alex nunca me perdoaria se soubesse. Eu ainda não me perdoei. Tudo o que eu fiz a minha vida toda foi tentar me desligar da minha figura paterna, por mais que a dor da perda fosse muita coisa para um garotinho de oito anos compreender quando os pais de todos os seus amiguinhos compareciam aos jogos de baseball e ele esperava em vão na arquibancada. Como se explica para uma criança o que a palavra morte significa? E aí eu cresci e me tornei como ele. Algo que nunca mais vai se repetir.

Me alojo no dormitório vazio e fecho a porta, me jogando no colchão sem nem ao menos tirar o tênis dos pés. Penso em ligar para Alex, mas não o faço. Ela provavelmente está chorando no seu “novo lar” e eu não vou suportar ouvi-la assim sem ficar tentado a ir atrás dela. Ao invés de ligar, respondo sua última mensagem para que

ela tenha certeza que está tudo bem e começo a organizar minhas coisas no armário grande, que vou dividir com um colega de quarto.

Essa é uma das coisas boas de estar num programa avançado: eles pareiam as duplas de alunos de acordo com seus gostos pessoais e médias escolares, o que me garante não ficar com algum garanhão de fraternidade desesperado para desvirginar calouras inocentes. No máximo vão me parear com algum jogador de videogame compulsivo ou um dos calouros de Artes Alternativas. Não tenho muito do que reclamar. Ainda mais somado ao fato de que a maioria dos alunos só chega depois da Winter Break, que eu pretendo passar aqui mesmo, vendo a neve cair e comendo qualquer besteira enquanto Alex e eu nos falamos pelo Skype. Esses foram os únicos planos para o Fim de Ano que eu me dei ao trabalho de pensar.

[...]

Os últimos dias tem sido amargos. Eu me levanto, como alguma coisa, ligo para Alex e depois passo o resto do dia enfiado na cama, lendo qualquer bobagem para me distrair. Não mais por prazer, só por realmente não ter nada para fazer no resto do dia. Eu deveria procurar um emprego, mas minha mãe continua mandando o dinheiro do marido dela toda semana. Se eu estivesse realmente preocupado com minha honra, não aceitaria. Mas eu estou cansado das discussões inflamadas de orgulho que já tivemos e simplesmente passei a aceitar a sua ajuda, mesmo não oferecendo nada em troca.

Essa é uma das coisas que eu nunca soube como fazer: fingir um sentimento. É por isso que sei que o que eu sinto por Alex é verdadeiro. E também é por esse mesmo motivo que Mika nunca vai ser como meu pai. Eu posso não tê-lo conhecido, mas isso não significa que eu não o ame. Mesmo com todos os seus erros. E essa é outra das coisas-estranhas-e-imutáveis de Jake: eu posso odiar todos os seus erros, mas nunca vou abandona-lo por isso. Alguns chamam essa coisa de lealdade. Eu chamo de coração mole, porque é exatamente isso que eu sou quando ninguém está olhando. Um coração mole idiota e solitário.

Minha mente está a mil, então decido passar o que sobrou do dia do lado de fora do quarto. Um movimento arriscado para um cara que evita a todo custo qualquer tipo de contato social. Nunca tive muitos amigos, nem uma garota para chamar de minha. Agora que eu tenho uma e sei o quanto é bom, passei a nutrir uma certa curiosidade em saber como seria sair com uma rodinha de amigos também.

Saio pelos portões, cumprimentando o que parece ser o único funcionário que restou nesse lugar imenso. Fico me perguntando se ele nunca encontrou um lar. Ou talvez ele tenha e seja como o meu, e aí eu entendo perfeitamente o motivo para ele querer ficar por aqui mesmo. Sorrio em sua direção e sou retribuído com um aceno de cabeça.

Aqui fora o vento parece me sufocar e o frio faz com que até andar seja difícil. Me pergunto se não foi o clima que me deixou assim, tão melancólico. Então sorrio novamente, dessa vez de verdade, fazendo a fumaça seca sair dos meus lábios rachados e um som rouco se espremer por entre eles. Sinto falta dos risos. Sinto falta dos últimos meses. Das escapadas até o rio. Dos beijos. Da forma com que ela me fazia perder o rumo com tanta facilidade. É como se, pela primeira vez em toda a minha vida, eu fosse dependente de algo para me manter impune da dor. Como se Alex fosse minha morfina.

Balanço a cabeça e continuo caminhando com as mãos geladas nos bolsos do casaco, sorrindo para o nada, como um imbecil viciado.