Quando o Vovô partiu
-
Upload
claudio-moreira -
Category
Documents
-
view
214 -
download
1
description
Transcript of Quando o Vovô partiu
FERNANDA OLIVEIRA CAMARGO HERREROS
QUANDO O VOVÔ PARTIU
1ª EdiçãoCampinas – SP
Edição da autora2011
ISBN 978-85-912113-0-2
Dia
gra
mação:
Bru
no P
iato
Era uma vez uma menina chamada Flávia. Flávia tinha o rosto em
forma de coração e olhos bonitos como os de uma gata. Ela gostava
muito de brincar, era muito bagunceira e queria sempre estar na
companhia de outras pessoas.
Flávia tinha um vovô e uma vovó que a amavam muito. Quando
ela chegava para visitá-los, eles a abraçavam forte e a beijavam.
A vovó sempre tinha alguma coisa gostosa para a menina comer:
um salgadinho, um bolo, um doce...
O vovô gostava muito de conversar. Ele pegava a neta no colo e
contava sobre quando era menino ou sobre os mais diversos assuntos.
Era tão bom em narrar histórias, que Flávia nem se importava em
saber se elas tinham realmente acontecido ou se eram apenas criadas
por ele.
1
A menina gostava de ficar ali, aninhada nos braços do vovô,
ouvindo e imaginando as cenas. Enquanto escutava, acariciava a barba
macia dele e pensava que nada no mundo podia ser tão branco e
fofinho quanto aquela barba.
A garota se divertia tanto nas idas à casa dos avós que ela até
achava bom quando seus pais a deixavam lá para poderem aproveitar
as noites de sábado.
De repente, o vovô ficou doente. O pai da Flávia explicou para ela
que o vovô estava ficando com as mãos fraquinhas e doloridas e que, se
a menina notasse bem, os dedos do vovô estavam mais tortos e mais
fechados. Desse modo, Flávia não devia mais pedir ao avô que a
carregasse porque ele não poderia fazer isso. Também devia agir
normalmente com o avô, não devia ficar olhando muito para as suas
mãos, porque se alguém tem um defeito a gente não deve ficar
olhando, falou o pai de Flávia.
A princípio a menina não se preocupou. Ela já tinha visto as mãos
do avô muitas vezes e por isso sabia que elas eram um pouco
esquisitas, com os dedos cheios de nós duros e virados para dentro. Ela
já estava acostumada e não entendeu porque o pai foi falar disso logo
agora.
2
Flávia tanto já sabia que aquilo era normal que uma vez ela ficou
com muita raiva de um menino que não quis apertar a mão de seu avô.
O menino estava visitando a casa da Flávia e quando seu avô estendeu
a mão para cumprimentá-lo, o menino olhou para a mão torta, fez uma
careta de nojo e afastou-se. Naquele momento Flávia sentiu o sangue
ferver e teve vontade de dar um soco bem na cara do garoto. Mas o avô
riu e falou:
- Minha mão é feia, né? Não precisa ficar com medo.
Depois o avô falou para Flávia que não se importasse com isso,
que era comum as pessoas terem medo do que não conheciam. Aquele
menino não conhecia ninguém com a mão daquele jeito e por isso tinha
agido assim.
Mas quando Flávia foi visitar o vovô naquele dia, ela entendeu
porque seu pai tinha tido aquela conversa com ela, sobre o avô estar
doente. O avô estava deitado na cama, nem se levantou para
encontrá-la quando ela chegou e as mãos dele estavam com os dedos
fechados. Ela sentou na beirada da cama dele e ficaram conversando.
E por mais que ela tentasse evitar, parecia que seus olhos sempre
voltavam para aquelas mãos.
Ela não agüentou e, quando seus pais não estavam olhando,
pegou uma das mãos de seu avô entre as suas e tentou abri-la,
puxando seus dedos para fora. Mas os dedos do avô não se esticaram,
a mão não se abriu e ele deu um grito de dor. Aí ele explicou para a
menina que daquele dia em diante sua mão ia ficar sempre fechadinha,
mas que ela não se preocupasse, que eles continuariam brincando e se
divertindo juntos.
E assim foi por um bom tempo. As sessões de histórias
continuaram, às vezes com direito a colo no sofá quando o avô estava
bom, às vezes na beirada da cama quando o avô estava meio
ruinzinho.
3
Mesmo quando o avô ficou com os pés doentes e não conseguiu
mais andar a diversão para Flávia continuou. O avô colocava a neta no
seu colo e juntos andavam de cadeira de rodas pela casa, e Flávia
achava gostoso passear desse jeito.
Com a cadeira de rodas, lá iam os dois pela manhã tomar sol no
quintal e colocar banana no muro para atrair os passarinhos que o avô
tanto gostava. Mas o avô nunca tinha aprisionado nenhum, ele gostava
que os passarinhos viessem comer para que ele e a neta pudessem
admirar a beleza e o canto daqueles bichinhos. Depois os passarinhos
levantavam vôo e iam embora, mas voltavam no dia seguinte atrás do
alimento.
Novamente, um dia, o pai de Flávia chamou a menina para uma
conversa e disse que seu avô tinha piorado, estava no hospital e que
eles iam visitá-lo mas que ela não se assustasse porque o vovô estava
muito fraquinho. A menina foi preparada para comportar-se bem e não
demonstrar sua tristeza para o avô, mas quando o viu entendeu que
aquilo era pior do que ela tinha imaginado.
O avô já não falava mais. A garota chamou por ele, tentou puxar
assunto, fez várias perguntas e ele nada de responder. Só ficava lá
deitado, de olhos fechados, sem dar uma palavra. Ela nunca tinha visto
nada igual.
4
Ela então se lembrou de uma vez em que estava brincando de
gritar no quintal, o avô chegou e ela convidou:
- Grita, vovô! Grita também!
O avô não quis gritar com ela, mas ele estava falando. Agora,
aquilo era muito diferente. O avô não respondia nada.
A menina fez uma última tentativa que imaginava ser infalível:
- Vovô, mas se o senhor ficar aqui no hospital quem vai dar banana
para os passarinhos comigo?
O avô não respondeu e não abriu os olhos nem mesmo assim e a
menina viu a avó sair do quarto chorando baixinho depois dessa
pergunta. O pai de Flávia explicou que não era que o avô não queria
conversar. É que ele estava tão doente que não conseguia mais fazer
estas coisas e que ficar doente é assim mesmo, é como se o corpo não
funcionasse direito e às vezes desse uma falhada, como se fosse uma
máquina velha ou quebrada. Além disso, o vovô estava no hospital para
isso mesmo, para ver se os médicos conseguiam consertar ele.
5
Porém os médicos não conseguiram consertar o avô de Flávia e
ele morreu. O pai contou para a menina que o vovô tinha ido embora e
que não ia mais voltar, que tinha ido para um lugar muito bonito, onde
ficaria bem, feliz, curado e descansado.
Antes da partida, o pai contara que eles iam todos se despedir do
avô. E assim a menina viu toda sua família reunida, mesmo sem ser
aniversário de ninguém. Porém não havia alegria naquela reunião. Ela
viu muita gente chorando, dizendo que sentia falta do avô, mas não
entendeu nada. Como eles podiam sentir falta dele, eles não estavam
vendo o avô lá? O pai tinha falado que o avô tinha partido mas ela bem
que viu que ele ainda estava ali perto, deitado dentro de uma caixa de
madeira.
Flávia só chorou quando viu o pai com os olhos cheios de
lágrimas, acenando para a caixa com o avô e falando alto:
-Tchau, pai. Tchau.
Nesse momento, mesmo sem saber porque, sentiu um aperto no
peito, quase como uma dor e teve vontade de abraçar seu pai e dizer
que não chorasse, que tudo ficaria bem, como muitas vezes seu pai
tinha feito com ela.
O tempo foi passando e com ele foi chegando a saudade. A
menina passou a sentir falta do colo, das histórias, das manhãs
animadas com passarinhos e até das mãos tortas do avô. Quando ela
ia visitar a avó se sentia triste porque queria ver o avô, mas ele tinha
partido e nunca mais estaria por lá para as longas conversas que
tinham.
Flávia chorava e não se conformava. Como podia ficar sem ver
alguém de quem gostava tanto? Para onde ele tinha ido?
Então, num desses dias em que a saudade parecia pior, a avó
pegou Flávia no colo, levou-a para o quintal, mostrou o céu para a
garota e disse:
6
- Não se preocupe, querida. Você queria saber do vovô, não é?
Para onde ele foi. Então, ele foi para o céu, agora é lá que ele mora,
junto dos passarinhos que ele gostava tanto. Sempre que você sentir
saudade, é só olhar para o céu que ele está lá.
Flávia então sentiu-se confortada e disse, apontando para uma
nuvem:
- É verdade, vovó. Eu estou vendo o vovô no céu. Olha a barba
dele.
7