Quando o Vovô partiu

8
FERNANDA OLIVEIRA CAMARGO HERREROS QUANDO O VOVÔ PARTIU Edição Campinas – SP Edição da autora 2011 ISBN 978-85-912113-0-2 Diagramação: Bruno Piato

description

Conta sobre a morte de um ente querido.

Transcript of Quando o Vovô partiu

Page 1: Quando o Vovô partiu

FERNANDA OLIVEIRA CAMARGO HERREROS

QUANDO O VOVÔ PARTIU

1ª EdiçãoCampinas – SP

Edição da autora2011

ISBN 978-85-912113-0-2

Dia

gra

mação:

Bru

no P

iato

Page 2: Quando o Vovô partiu

Era uma vez uma menina chamada Flávia. Flávia tinha o rosto em

forma de coração e olhos bonitos como os de uma gata. Ela gostava

muito de brincar, era muito bagunceira e queria sempre estar na

companhia de outras pessoas.

Flávia tinha um vovô e uma vovó que a amavam muito. Quando

ela chegava para visitá-los, eles a abraçavam forte e a beijavam.

A vovó sempre tinha alguma coisa gostosa para a menina comer:

um salgadinho, um bolo, um doce...

O vovô gostava muito de conversar. Ele pegava a neta no colo e

contava sobre quando era menino ou sobre os mais diversos assuntos.

Era tão bom em narrar histórias, que Flávia nem se importava em

saber se elas tinham realmente acontecido ou se eram apenas criadas

por ele.

1

Page 3: Quando o Vovô partiu

A menina gostava de ficar ali, aninhada nos braços do vovô,

ouvindo e imaginando as cenas. Enquanto escutava, acariciava a barba

macia dele e pensava que nada no mundo podia ser tão branco e

fofinho quanto aquela barba.

A garota se divertia tanto nas idas à casa dos avós que ela até

achava bom quando seus pais a deixavam lá para poderem aproveitar

as noites de sábado.

De repente, o vovô ficou doente. O pai da Flávia explicou para ela

que o vovô estava ficando com as mãos fraquinhas e doloridas e que, se

a menina notasse bem, os dedos do vovô estavam mais tortos e mais

fechados. Desse modo, Flávia não devia mais pedir ao avô que a

carregasse porque ele não poderia fazer isso. Também devia agir

normalmente com o avô, não devia ficar olhando muito para as suas

mãos, porque se alguém tem um defeito a gente não deve ficar

olhando, falou o pai de Flávia.

A princípio a menina não se preocupou. Ela já tinha visto as mãos

do avô muitas vezes e por isso sabia que elas eram um pouco

esquisitas, com os dedos cheios de nós duros e virados para dentro. Ela

já estava acostumada e não entendeu porque o pai foi falar disso logo

agora.

2

Page 4: Quando o Vovô partiu

Flávia tanto já sabia que aquilo era normal que uma vez ela ficou

com muita raiva de um menino que não quis apertar a mão de seu avô.

O menino estava visitando a casa da Flávia e quando seu avô estendeu

a mão para cumprimentá-lo, o menino olhou para a mão torta, fez uma

careta de nojo e afastou-se. Naquele momento Flávia sentiu o sangue

ferver e teve vontade de dar um soco bem na cara do garoto. Mas o avô

riu e falou:

- Minha mão é feia, né? Não precisa ficar com medo.

Depois o avô falou para Flávia que não se importasse com isso,

que era comum as pessoas terem medo do que não conheciam. Aquele

menino não conhecia ninguém com a mão daquele jeito e por isso tinha

agido assim.

Mas quando Flávia foi visitar o vovô naquele dia, ela entendeu

porque seu pai tinha tido aquela conversa com ela, sobre o avô estar

doente. O avô estava deitado na cama, nem se levantou para

encontrá-la quando ela chegou e as mãos dele estavam com os dedos

fechados. Ela sentou na beirada da cama dele e ficaram conversando.

E por mais que ela tentasse evitar, parecia que seus olhos sempre

voltavam para aquelas mãos.

Ela não agüentou e, quando seus pais não estavam olhando,

pegou uma das mãos de seu avô entre as suas e tentou abri-la,

puxando seus dedos para fora. Mas os dedos do avô não se esticaram,

a mão não se abriu e ele deu um grito de dor. Aí ele explicou para a

menina que daquele dia em diante sua mão ia ficar sempre fechadinha,

mas que ela não se preocupasse, que eles continuariam brincando e se

divertindo juntos.

E assim foi por um bom tempo. As sessões de histórias

continuaram, às vezes com direito a colo no sofá quando o avô estava

bom, às vezes na beirada da cama quando o avô estava meio

ruinzinho.

3

Page 5: Quando o Vovô partiu

Mesmo quando o avô ficou com os pés doentes e não conseguiu

mais andar a diversão para Flávia continuou. O avô colocava a neta no

seu colo e juntos andavam de cadeira de rodas pela casa, e Flávia

achava gostoso passear desse jeito.

Com a cadeira de rodas, lá iam os dois pela manhã tomar sol no

quintal e colocar banana no muro para atrair os passarinhos que o avô

tanto gostava. Mas o avô nunca tinha aprisionado nenhum, ele gostava

que os passarinhos viessem comer para que ele e a neta pudessem

admirar a beleza e o canto daqueles bichinhos. Depois os passarinhos

levantavam vôo e iam embora, mas voltavam no dia seguinte atrás do

alimento.

Novamente, um dia, o pai de Flávia chamou a menina para uma

conversa e disse que seu avô tinha piorado, estava no hospital e que

eles iam visitá-lo mas que ela não se assustasse porque o vovô estava

muito fraquinho. A menina foi preparada para comportar-se bem e não

demonstrar sua tristeza para o avô, mas quando o viu entendeu que

aquilo era pior do que ela tinha imaginado.

O avô já não falava mais. A garota chamou por ele, tentou puxar

assunto, fez várias perguntas e ele nada de responder. Só ficava lá

deitado, de olhos fechados, sem dar uma palavra. Ela nunca tinha visto

nada igual.

4

Page 6: Quando o Vovô partiu

Ela então se lembrou de uma vez em que estava brincando de

gritar no quintal, o avô chegou e ela convidou:

- Grita, vovô! Grita também!

O avô não quis gritar com ela, mas ele estava falando. Agora,

aquilo era muito diferente. O avô não respondia nada.

A menina fez uma última tentativa que imaginava ser infalível:

- Vovô, mas se o senhor ficar aqui no hospital quem vai dar banana

para os passarinhos comigo?

O avô não respondeu e não abriu os olhos nem mesmo assim e a

menina viu a avó sair do quarto chorando baixinho depois dessa

pergunta. O pai de Flávia explicou que não era que o avô não queria

conversar. É que ele estava tão doente que não conseguia mais fazer

estas coisas e que ficar doente é assim mesmo, é como se o corpo não

funcionasse direito e às vezes desse uma falhada, como se fosse uma

máquina velha ou quebrada. Além disso, o vovô estava no hospital para

isso mesmo, para ver se os médicos conseguiam consertar ele.

5

Page 7: Quando o Vovô partiu

Porém os médicos não conseguiram consertar o avô de Flávia e

ele morreu. O pai contou para a menina que o vovô tinha ido embora e

que não ia mais voltar, que tinha ido para um lugar muito bonito, onde

ficaria bem, feliz, curado e descansado.

Antes da partida, o pai contara que eles iam todos se despedir do

avô. E assim a menina viu toda sua família reunida, mesmo sem ser

aniversário de ninguém. Porém não havia alegria naquela reunião. Ela

viu muita gente chorando, dizendo que sentia falta do avô, mas não

entendeu nada. Como eles podiam sentir falta dele, eles não estavam

vendo o avô lá? O pai tinha falado que o avô tinha partido mas ela bem

que viu que ele ainda estava ali perto, deitado dentro de uma caixa de

madeira.

Flávia só chorou quando viu o pai com os olhos cheios de

lágrimas, acenando para a caixa com o avô e falando alto:

-Tchau, pai. Tchau.

Nesse momento, mesmo sem saber porque, sentiu um aperto no

peito, quase como uma dor e teve vontade de abraçar seu pai e dizer

que não chorasse, que tudo ficaria bem, como muitas vezes seu pai

tinha feito com ela.

O tempo foi passando e com ele foi chegando a saudade. A

menina passou a sentir falta do colo, das histórias, das manhãs

animadas com passarinhos e até das mãos tortas do avô. Quando ela

ia visitar a avó se sentia triste porque queria ver o avô, mas ele tinha

partido e nunca mais estaria por lá para as longas conversas que

tinham.

Flávia chorava e não se conformava. Como podia ficar sem ver

alguém de quem gostava tanto? Para onde ele tinha ido?

Então, num desses dias em que a saudade parecia pior, a avó

pegou Flávia no colo, levou-a para o quintal, mostrou o céu para a

garota e disse:

6

Page 8: Quando o Vovô partiu

- Não se preocupe, querida. Você queria saber do vovô, não é?

Para onde ele foi. Então, ele foi para o céu, agora é lá que ele mora,

junto dos passarinhos que ele gostava tanto. Sempre que você sentir

saudade, é só olhar para o céu que ele está lá.

Flávia então sentiu-se confortada e disse, apontando para uma

nuvem:

- É verdade, vovó. Eu estou vendo o vovô no céu. Olha a barba

dele.

7