QUANDO OS PENSAMENTOS SE TORNAM NOSSOS PIORES.pdf

9
QUANDO OS PENSAMENTOS SE TORNAM NOSSOS PIORES INIMIGOS PUBLICADO POR BUDAVIRTUAL ÀS 18 DE SETEMBRO DE 2013 EM UNCATEGORIZED | 14 COMENTÁRIOS QUANDO ESTAMOS INFELIZES, INEVITAVELMENTE PENSAMOS QUE CERTAS IMAGENS TÊM GARRAS E FERRÕES PARA NOS TORTURAR. ALAIN Quando somos atingidos pela morte de alguém que amamos, perturbados por um colapso, dominados pelo fracasso, assistimos com o coração partido ao sofrimento dos outros ou somos consumidos por pensamentos negativos, às vezes, sentimos que a vida como um todo está entrando em parafuso. Não parece haver nenhuma saída segura. A tristeza prevalece na mente como uma mortalha. “Basta que apenas uma pessoa nos deixe, e é como se não houvesse ninguém no mundo”, lamentou-se o poeta francês Lamartine. Incapazes de imaginar um fim para a nossa dor, retiramo-nos para dentro de nós mesmos e temos medo de cada momento. “Quando tentei pensar claramente sobre isto, senti que a minha mente estava aprisionada e não podia se expandir em nenhuma direção. O sol levantava e se punha, eu sabia, mas muito pouco da sua luz me banhava”, escreve Andrew Solomon. Por mais angustiante que possa ser a situação a morte de um grande amigo, por exemplo há incontáveis maneiras de passar por uma provação. A felicidade é ensombrecida pela angústia, quando nos faltam os recursos interiores adequados pra sustentar certos elementos básicos desukha: a alegria de estar vivo, a convicção de que ainda temos a capacidade de desabrochar, a compreensão da natureza efêmera de todas as coisas. Não são as grandes reviravoltas externas o que necessariamente nos deixa angustiados. Observou-se que as taxas de ocorrência da depressão e do suicídio declinam consideravelmente em tempos de guerra. Algumas vezes, os desastres naturais também fazem aflorar o melhor da humanidade, em termos de coragem, solidariedade e vontade de viver. O altruísmo e a ajuda mútua contribuem de maneira significativa para reduzir o estresse pós- traumático decorrente das situações trágicas. Na maioria das vezes não são os eventos externos, mas a nossa própria mente e as emoções negativas que nos tornam incapazes de manter a estabilidade interior, arrastando-nos para baixo.

Transcript of QUANDO OS PENSAMENTOS SE TORNAM NOSSOS PIORES.pdf

  • QUANDO OS PENSAMENTOS SE TORNAM NOSSOS PIORES INIMIGOS PUBLICADO POR BUDAVIRTUAL S 18 DE SETEMBRO DE 2013 EM UNCATEGORIZED | 14 COMENTRIOS

    QUANDO ESTAMOS INFELIZES, INEVITAVELMENTE PENSAMOS

    QUE CERTAS IMAGENS TM GARRAS E FERRES PARA NOS

    TORTURAR. ALAIN

    Quando somos atingidos pela morte de algum que amamos, perturbados por um

    colapso, dominados pelo fracasso, assistimos com o corao partido ao sofrimento dos

    outros ou somos consumidos por pensamentos negativos, s vezes, sentimos que a

    vida como um todo est entrando em parafuso. No parece haver nenhuma sada segura.

    A tristeza prevalece na mente como uma mortalha. Basta que apenas uma pessoa nos

    deixe, e como se no houvesse ningum no mundo, lamentou-se o poeta francs

    Lamartine. Incapazes de imaginar um fim para a nossa dor, retiramo-nos para dentro de

    ns mesmos e temos medo de cada momento. Quando tentei pensar claramente sobre

    isto, senti que a minha mente estava aprisionada e no podia se expandir em nenhuma

    direo. O sol levantava e se punha, eu sabia, mas muito pouco da sua luz me banhava,

    escreve Andrew Solomon. Por mais angustiante que possa ser a situao a morte de

    um grande amigo, por exemplo h incontveis maneiras de passar por uma provao.

    A felicidade ensombrecida pela angstia, quando nos faltam os recursos interiores

    adequados pra sustentar certos elementos bsicos desukha: a alegria de estar vivo, a

    convico de que ainda temos a capacidade de desabrochar, a compreenso da natureza

    efmera de todas as coisas.

    No so as grandes reviravoltas externas o que necessariamente nos deixa

    angustiados. Observou-se que as taxas de ocorrncia da depresso e do suicdio declinam

    consideravelmente em tempos de guerra. Algumas vezes, os desastres naturais tambm fazem

    aflorar o melhor da humanidade, em termos de coragem, solidariedade e vontade de viver. O

    altrusmo e a ajuda mtua contribuem de maneira significativa para reduzir o estresse ps-

    traumtico decorrente das situaes trgicas. Na maioria das vezes no so os eventos

    externos, mas a nossa prpria mente e as emoes negativas que nos tornam incapazes de

    manter a estabilidade interior, arrastando-nos para baixo.

  • As emoes conflitantes nos causam ns no peito difceis de desatar. Em vo

    tentamos lutar contra elas ou reduzi-las ao silncio. Assim que escapamos do julgo de uma

    delas, eis que surge outra com vigor renovado. Essa aflio emocional no d qualquer alvio,

    e toda tentativa de dar cabo dela parece fracassar. Em conflitos como esses, o nosso

    mundo se despedaa em uma multido de contradies que geram adversidade,

    opresso e angstia. O que deu errado?

    Os pensamentos podem ser os nossos melhores aliados ou piores inimigos.

    Quando fazem com que sintamos que o mundo inteiro est contra ns, cada percepo,

    cada encontro, e a prpria existncia do mundo tornam-se fontes de tormento. So os

    nossos prprios pensamentos que se erguem como inimigos. Eles percorrem a nossa

    mente com o estouro de uma boiada; cada um cria seu pequeno drama, causando uma

    confuso que aumenta cada vez mais. Nada vai bem do lado de fora, porque nada vai

    bem o interior.

    Quando olhamos com cuidado para o teor dos nossos pensamentos cotidianos,

    percebemos com que extenso eles do colorido ao filme interior que projetamos no

    mundo. Quem muito preocupado, teme o mais nfimo dos eventos: se precisa fazer

    uma viagem de avio, pensa que ele ir cair; se tem que dirigir, imagina que sofrer um

    acidente; se vai ao mdico, est certo de que tem cncer. Para um homem ciumento, as

    viagens mais incuas da pessoa amada so suspeitas, o sorriso dirigido a outra pessoa

    fonte de sofrimento, e a menor ausncia cria um sem-nmero de dvidas descabidas,

    que passam enfurecidas pela sua mente. Para esses indivduos, bem como para aquele

    que tem o pavio curto, para o avarento e miservel, para o obsessivo, os pensamentos

    transformam-se diariamente em tempestades que podem ensombrecer a vida,

    destruindo a alegria de viver da prpria pessoa e daqueles que esto ao seu redor.

    E, no entanto, este n no peito no foi atado pelo nosso marido infiel, pelo nosso objeto

    de desejo, pelo nosso colega desonesto, pelo nosso acusador injusto, mas pela nossa prpria

    mente. o resultado de construtos mentais que, ao se acumularem e solidificarem, do a

    iluso de serem externos e reais. O que fornece a matria-prima para formar esse n em nosso

    peito o sentimento exacerbado de auto-importncia. Tudo o que no responde s demandas

  • do ego se transforma em perturbao, ameaa ou insulto. O passado doloroso, no

    conseguimos desfrutar o presente e trememos diante da projeo da nossa angstia futura.

    Conforme Andrew Solomon: Na depresso, tudo o que acontece no presente a antecipao

    da dor do futuro, e o presente enquanto tal no existe mais. 2 Isso prova que a incapacidade

    de lidar com os nossos pensamentos a principal causa do sofrimento. Aprender a baixar o

    tom do incessante rudo dos pensamentos perturbadores um estgio decisivo no caminho

    para a paz interior. Como explica Dilgo Khyentse Rimpoche:

    ESSAS SRIES DE PENSAMENTOS E ESTADOS MENTAIS ESTO SEMPRE MUDANDO, COMO FORMA DAS NUVENS AO VENTO, MAS DAMOS UMA GRANDE IMPORTNCIA A ELAS. UM HOMEM IDOSO OBSERVANDO AS

    CRIANAS BRINCAREM SABE MUITO BEM QUE O QUE ELAS FAZEM TEM POUCA CONSEQUNCIA. ELE NO SE SENTE NEM EUFRICO NEM

    PERTURBADO COM O QUE ACONTECE, AO PASSO QUE AS CRIANAS LEVAM TUDO MUITO A SRIO. SOMOS EXATAMENTE COMO ELAS.

    Temos que reconhecer que, enquanto no tivemos realizado sukha, o nosso bem-estar est

    merc das tempestades. Podemos responder s batidas do corao tentando esquec-las,

    distraindo-nos, indo para outro lugar, viajando e assim por diante, mas tudo isso no passa de

    curativos feitos em uma perna de pau. Como diz Nicolas Boileau:

    Montando em um cavalo, ele foge em vo dos seus pensamentos

    Que com ele compartilham a sela e acompanham-no em seu caminho.

    PRIMEIRO O MAIS IMPORTANTE

    Como fazer as pazes com as nossas emoes? Primeiro temos que focalizar a nossa mente

    no poder bruto do sofrimento interior. Em vez de evit-lo ou enterr-lo em algum canto escuro

    da nossa mente, devemos fazer dele o objeto da nossa meditao, sem ficar ruminando os

    eventos que nos causaram dor ou recapitulando cada quadro do filme da nossa vida. Por que

    necessrio, nesse estgio, estender-se no exame das causas distantes do nosso sofrimento?

    Sobre isso, o Buda nos oferece a seguinte imagem: um homem acabou de receber uma

    flechada no peito; por acaso ele fica perguntando: De que madeira feita a flecha? De que

    tipo de pssaro provm as suas penas? Que artfice a produziu? Ele um bom homem ou um

    salafrrio? Certamente no. A sua primeira preocupao tirar a flecha do peito.

    Quando uma emoo dolorosa nos atinge, a coisa mais urgente a fazer olhar para ela

    de frente e identificar os pensamentos imediatos que a provocaram e a alimentam.

    Ento, fixando o nosso olhar interior na emoo em si, podemos gradualmente dissolv-

    la, como a neve sob o sol. E ainda mais: uma vez que a fora dessa emoo tenha se

    enfraquecido, as causas que a provocaram parecero menos trgicas e teremos

    ganhado a oportunidade de nos libertar do crculo vicioso dos pensamentos negativos.

    CONTEMPLANDO A NATUREZA DA MENTE

  • Como podemos evitar o perptuo ressurgir dos pensamentos perturbadores? Se nos

    conformamos com o papel de eternas vtimas desses pensamentos, seremos como os ces

    que sempre correm atrs do mesmo pau que jogamos para eles. Ao nos identificarmos com

    cada pensamento, ns o seguimos e o reforamos com infinitos enredamentos emocionais.

    Assim, precisamos olhar mais de perto para a mente em si. As primeiras coisas que

    observamos so as correntes de pensamento que fluem continuamente, sem que nem mesmo

    estejamos cnscios delas. Queiramos ou no, incontveis pensamentos esto sempre

    cruzando a nossa mente, nascidos das nossas sensaes, das nossas recordaes e da nossa

    imaginao. Mas h tambm uma qualidade dessa mente que est sempre presente,

    sejam quais forem os pensamentos que nos visitem. Essa qualidade a conscincia

    primeira que subjaz a todo pensamento. ela que prevalece no raro momento em que a

    mente repousa, como se estivesse imvel, conservando mesmo assim a capacidade de

    conhecer. Essa faculdade, essa presena aberta e simples, o que, no budismo, chamamos

    deconscincia pura, porque ela pode existir mesmo na ausncia de construtos mentais.

    Se continuarmos a deixar que a mente observe a si mesma, descobriremos,

    experienciando esta conscincia pura, os pensamentos que dela emergem. Essa

    conscincia de fato existe. Mas, fora isso, o que mais podemos dizer a respeito? Esses

    pensamentos tm caractersticas inerentes? Tm alguma localizao particular? No.

    Tm cor? Forma? Tambm no.Podemos conhec-los, mas no h nenhuma caracterstica

    real ou intrnseca neles. Na conscincia pura experienciamos a mente como desprovida ou

    vazia de existncia inerente. Essa noo de vacuidade do pensamento sem dvida muito

    estranha psicologia ocidental. A que propsitos ela serve? Antes de tudo, quando surge

    uma emoo ou um pensamento forte a raiva, por exemplo o que geralmente

    acontece? Com toda a facilidade, esse pensamento nos domina, amplificando-se e se

    multiplicando a seguir em numerosos novos pensamentos que nos perturbam e nos cegam,

    deixando-nos em estado de prontido para expressar palavras e cometer atos, s vezes

    violentos, que podem causar sofrimento aos outros, e dos quais logo nos arrependemos. Em

    vez de desencadear esse cataclismo, podemos examinar o pensamento raivoso em si e chegar

    a ver que, desde o incio, ele nunca foi mais do que espelhos e reflexos.

    Os pensamentos emergem da conscincia pura e podem, ento ser reabsorvidos

    por ela, como as ondas que emergem do oceano e nele novamente se dissolvem.

  • Compreendendo isso, teremos dado um grande passo na direo da paz interior. A partir

    da, os nossos pensamentos perdem muito do poder que tm de nos perturbam. Para

    familiarizar-se com esse mtodo, quando um pensamento surgir, tente ver de onde ele

    vem; quando desaparecer, pergunte-se para onde ele foi. Nesse breve instante em que

    sua mente no est obstruda por pensamentos discursivos, contemple a sua natureza.

    Nesse momento em que os pensamentos passados silenciaram e os futuros ainda no

    surgiram, voc pode perceber uma conscincia pura e luminosa, que ainda no foi

    adulterada pelos seus construtos conceituais. Por meio de experincias diretas aos

    poucos voc compreender o que o budismo quer dizer com natureza da mente.

    Ainda que no seja fcil experienciar a conscincia pura, possvel. Meu grande e

    saudoso amigo Francisco Varela confidenciou-me em um contato a distncia feito algumas

    semanas antes da sua morte causada por um cncer que ele estava conseguindo ficar quase

    todo tempo nessa presena mental pura. A dor fsica lhe parecia muito longnqua e no

    constitua obstculo algum para sua paz interior. Alm disso, bastavam-lhe os analgsicos

    mais fracos. Mais tarde, a sua esposa, Amy, disse-me que ele manteve a sua serenidade

    contemplativa at o ltimo suspiro.

    EXERCCIO PERMANECER NA PRESENA MENTAL

    Observe o que est por trs da cortina dos pensamentos discursivos. Tente encontrar, ali,

    uma presena desperta, livre de construtos mentais, transparente, luminosa, no perturbada

    pelos pensamentos do passado, do presente ou do futuro. Tente repousar no momento

    presente, livre de conceitos. Observe a natureza do intervalo que existe entre os pensamentos,

    onde no h elaboraes mentais. Aos poucos prolongue o intervalo que existe entre os

    pensamentos, onde no h elaboraes mentais. Aos poucos prolongue o intervalo que existe

    entre o desaparecimento de um pensamento e o emergir do prximo.

    Permanea nesse estado de simplicidade que livre de construtos mentais, porm

    atento; sem fazer esforo e ao mesmo tempo alerta e presente.

    COM MAIS DE UMA CORDA NO ARCO

  • medida que as dores que nos afligem ficam mais fortes, o nosso universo

    mental se contrai. Eventos e pensamentos continuamente colidem com os muros da

    nossa priso interior e retornam mais rpidos e mais fortes, produzindo mais feridas a

    cada ir e vir. Portanto, precisamos ampliar nossos horizontes interiores at que no haja

    mais muros em que as emoes negativas possam rebater. Quando desabam esses

    muros, construdos tijolo a tijolo pelo eu, os projteis do sofrimento erram o alvo,

    desaparecendo na vasta extenso da liberdade interior. Percebemos, ento, que o nosso

    sofrimento era um simples esquecer-se da nossa verdadeira natureza, que permanece

    intocada sob a nvoa das emoes. essencial desenvolver e sustentar esse

    alargamento dos horizontes internos. Pois os eventos exteriores e pensamentos

    passaro a surgir como estrelas que se refletem na superfcie calma de um vasto

    oceano, sem perturb-lo.

    Uma das melhores maneiras de atingir esse estado meditar sobre os

    sentimentos que transcendem e ultrapassam as nossas aflies mentais. Por exemplo: ao

    permitirmos que a nossa mente seja tomada por sentimentos de amor e compaixo

    por todos os seres, provvel que o calor desses pensamentos derreta o gelo das nossas

    frustraes e a suavidade deles emanada faa cessar o fogo dos nossos desejos. Teremos,

    assim, conseguido nos elevar acima da nossa dor pessoal at um lugar onde ela quase

    imperceptvel.

    EXERCCIO QUANDO VOC SENTIR SOBREPUJADO PELAS

    SUAS EMOES Imagine-se em um barco, navegando por um mar tempestuoso, com ondas volumosas

    do tamanho de casas. Cada onda maior e mais assustadora do que a anterior. O seu

    barco est a ponto de ser engolido por elas, e a sua prpria vida depende da sua

    capacidade de avanar ou recuar poucos metros nesses muros de gua.

    Imagine-se, ento, observando a mesma cena de um avio, que voa a grande altitude. Desse

    ponto de vista, as ondas parecem formar um delicado mosaico azul e branco, mal se movendo

    na superfcie da gua. Dessa altura, no silncio do espao, os seus olhos vem esses padres

    quase imveis, e a sua mente mergulha em um cu claro e luminoso.

    As ondas de raiva e obsesso parecem muito reais, mas lembre-se que elas so meras

    construes da sua mente; surgem, mas logo desaparecem novamente. Por que ficar no

    barco da ansiedade? Torne a sua mente vasta como o cu, e descobrir que as ondas

    das emoes aflitivas perderam toda a fora que voc atribua a elas.

  • EVITAR JOGAR A CULPA NOS OUTROS

    tentador jogar a culpa sistematicamente no mundo e nas outras pessoas. Quando nos

    sentimos ansiosos, deprimidos, mal-humorados, invejosos ou emocionalmente

    exaustos, logo jogamos a responsabilidade no mundo externo: tenses com os colegas

    de trabalho, discusses com a esposa. Tudo, at a cor do cu, se torna motivo de

    contrariedade. Esse reflexo muito mais do que uma mera fuga psicolgica. Ele vem da

    percepo errnea que nos faz atribuir qualidades inerentes a objetos externos, quando

    na verdade essa qualidades so dependentes da nossa prpria mente. Culpar os outros

    pelos nossos tormentos e ver neles os nicos responsveis por nosso sofrimento torna

    nossa vida miservel.

    No subestimemos as repercusses dos nossos atos, das nossas palavras e dos

    nossos pensamentos. Se semearmos tanto sementes de flores quanto de plantas venenosas,

    no poderemos nos admirar que a colheita tambm seja mista. Se alternarmos

    comportamentos altrustas e nocivos, no poderemos nos surpreender de obter alegrias e

    sofrimentos. Conforme dizem Luca e Francesco Cavalli-Sforza, respectivamente pai e filho, o

    primeiro geneticista e professor da Universidade de Stanford, o segundo um filsofo: As

    consequncias de uma ao, seja ela qual for, amadurecem com o tempo e cedo ou

    tarde recaem sobre aquele que a realizou: no se trata de uma interveno da justia

    divina, mas de simples realidade

    Com efeito, considerar que o sofrimento resulta da vontade divina leva a uma

    incompreenso total das repetidas calamidades que atingem certas pessoas e certos povos.

    Por que um Todo-Poderoso teria criado condies que conduzem a tanto sofrimento? Segundo

    a perspectiva budista, ns somos o resultado de um grande nmero de atos livres pelos quais

    somos responsveis. O VII Dalai Lama escreveu:

    Um corao congelado pelas guas das tormentas

    o resultado de atos destrutivos,

    fruto da nossa prpria loucura.

    no triste culpar os outros por isso?

  • Essa abordagem est ligada noo budista de carma, muito mal compreendida no

    Ocidente. Carma significa ato, ao, mas designa igualmente a ligao dinmica que

    existe entre um ato e seu resultado. Cada ao e tambm cada inteno que a dirige

    considerada positiva ou negativa conforme seus efeitos sobre a felicidade ou o

    sofrimento. to insensato querer viver feliz sem ter renunciado aos atos nocivos,

    quanto pr a mo no fogo esperando no se queimar. Da mesma forma, no se pode

    comprar a felicidade, roub-la ou consegui-la por sorte: preciso cultiv-la. Para o

    budismo, portanto, o sofrimento no uma anomalia ou uma injustia, mas pertence

    natureza do mundo condicionado que chamamos de samsara. o produto lgico e

    inelutvel da lei da causa e efeito. O budismo qualifica o mundo de condicionado, na

    medida em que todos os elementos que o compem resultam de uma srie infinita de

    causas e circunstncias, todas sujeitas impermanncia e destruio.

    Como os budistas encaram as tragdias em que inocentes so torturados,

    massacrados ou morrem de fome? primeira vista, o sofrimento deles parece ser devido a

    causas bem trgicas e poderosas, e no a simples pensamentos negativos. No entanto,

    precisamente a insensibilidade daqueles que os deixam morrer de fome ou o dio daqueles

    que os torturam que esto na origem dos imensos sofrimentos de uma grande parte da

    humanidade. O nico antdoto contra essas aberraes consiste em levar em conta o

    sofrimento dos outros, e depois compreender no mais profundo de si mesmo que nenhum ser

    vivente no mundo deseja sofrer. Segundo o Dalai Lama: Procurar a felicidade e ficar

    indiferente ao sofrimento dos outros um erro trgico

    mais fcil trabalhar com os efeitos perturbadores de uma emoo forte quando a

    estamos vivenciando do que quando ela est adormecida na sombra do nosso

    inconsciente. No momento preciso da experincia, temos uma oportunidade inestimvel

    para investigar o processo do sofrimento mental.

    Para citar um exemplo posso, posso dizer que no sou por natureza uma pessoa

    raivosa, mas, ao longo dos ltimos vinte anos, os momentos em que perdi a calma me

    ensinaram mais sobre a natureza dessa emoo destrutiva do que vrios anos de

    tranquilidade. Como diz o ditado, um nico co latindo faz barulho do que cem ces calados.

    Na dcada de 1980, eu tinha acabado de comprar o meu primeiro laptop, que usava para

    traduzir textos tibetanos. Uma manh, enquanto trabalhava sentado no cho de madeira de um

    monastrio situado em um local remoto do Buto, um amigo, querendo fazer uma brincadeira,

    ao passar por mim derramou um punhado de tsampa(farinha de cevada) no meu teclado.

    Fiquei furioso e lancei-lhe um olhar terrvel, dizendo: Voc acha que isso engraado? Vendo

    que eu estava realmente bravo, ele parou e disse, conciso: Um momento de raiva pode

    destruir anos de pacincia. Apesar de seu gesto no ter sido nada inteligente, ele estava certo.

    Em outra ocasio, no Nepal, uma pessoa que havia feito uma grande doao em

    dinheiro para o monastrio veio dar-me uma lio de moral. Novamente, o meu sangue ferveu.

    A minha voz tremeu de raiva, e eu disse a ela para sumir dali. Mais que isso, ajudei-a a sair

    pela porta com um empurro. Naquele momento, eu estava convencido de que a minha raiva

    era completamente justificada. S horas depois percebi a extenso destrutiva que a raiva pode

    atingir, reduzindo a nossa clareza e paz interior e fazendo de ns verdadeiros fantoches.

    Respostas mais construtivas para esses eventos teriam sido, no primeiro caso,

    explicar ao meu amigo como era til olaptop para o meu trabalho e como era frgil o seu

    teclado; no segundo, lembrar quela pessoa os fatos reais com firmeza, tentar entender

    o que ocorria na sua mente perturbada e, se possvel, ajud-la com gentileza a sair da

    sua confuso.

  • CULTIVANDO A SERENIDADE

    No Tibete, por volta de 1820, um bandido muito temido por sua crueldade foi certa vez

    caverna do eremita Jigme Gyalway Nyugu, para roubar as suas magras provises. Entrando na

    caverna, viu-se na presena de um homem idoso, muito sereno, que meditava com os olhos

    fechados. Tinha o cabelo todo branco e a expresso do seu rosto irradiava paz, amor e

    compaixo. No exato momento em que o ladro viu o sbio, a sua agressividade desapareceu,

    e ele ficou vrios minutos ali, olhando-o, maravilhado. Em seguida, aps pedir a bno,

    retirou-se. A partir de ento, sempre que o ladro via a oportunidade de fazer mal a algum, a

    face serena do velho de cabelos brancos surgia em sua mente, e ele abandonava seu plano

    maldoso. Visualizar cenas assim no brincar de auto-sugesto, mas estar em ressonncia

    com a bondade bsica que subjaz em nossa prpria essncia.

    O PODER DA EXPERINCIA

    Quando emergimos daqueles momentos de cegueira em que estivemos

    totalmente tomados por uma forte emoo e a nossa mente se liberta da corrosiva carga

    emocional, difcil crer que possamos ter sido dominados a esse ponto por ela. H aqui

    uma importante lio a ser aprendida: nunca subestimar o poder da mente, que capaz

    de reificar vastos mundos de dio, desejo, exaltao e tristeza. Os problemas que

    vivemos contm um potencial precioso para a transformao. Um manancial de energia

    de onde podemos obter a fora viva que nos far capazes de construir algo positivo

    naquele lugar em que a indiferena e a apatia nos impedem. Dessa forma, cada

    dificuldade pode se transformar em vime, para tecermos o cesto interior que nos permita

    lidar com as provaes da vida.

    Trecho do livro Felicidade a Pratica do Bem Estar