quando seres humanos se tornam coisas

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Aos leitores

Parece que o dragão engoliu Salve Jorge: a trama central da novela global, o romance entre os

personagens Théo (Rodrigo Lombardi) e Morena (Nanda Costa), está sendo colocada em segundo

plano para que o tema tráfico de mulheres e crianças ganhe força. Não é à toa. Para além da falta

de carisma da mocinha do enredo, o tráfico de seres humanos é um crime que intriga, incomoda,

desafia, revolta.

Tão antigo quanto a própria humanidade, o crime só se tornou preocupação nacional a partir dos

anos 1990. Contudo, apenas em 2006, com o Decreto nº 5.948/2006, foram criados instrumentos

legais e ações públicas de combate ao tráfico, consolidando-se, então, a Política Nacional de Enfren-

tamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP).

Mas, por se tratar de um fenômeno transnacional, multidimensional e multifacetado, que englo-

ba diferentes aspectos sociais, como cultura, economia e organização política e jurídica dos países;

e humanos, como liberdade de ir e vir, de escolha e de expressão, está qualificado pelas polícias e

pelo próprio Poder Judiciário como crime de difícil enfrentamento, como os leitores desta edição da

Argumento poderão constatar na matéria principal.

A terceira edição da Argumento também traz matérias sobre o direito homoafetivo, fundamenta-

das num congresso sobre o tema que ocorreu no Tribunal Regional Federal da 5ª Região – TRF5, a Lei

de Acessibilidade, os impactos da produção de camarão no ambiente e um perfil do desembargador

federal José Maria Lucena. Apresenta, ainda, uma dica de roteiro cultural pelos museus de Pernam-

buco, um debate sobre o novo Código de Processo Penal, travado pelos magistrados Francisco Barros

Dias e Walter Nunes, e um artigo do desembargador federal Marcelo Navarro sobre as punições aos

magistrados que cometem infrações. O encontro entre o direito e a poesia fica a cargo da crônica

“Deus está vendo”, do presidente do TRF5, Paulo Roberto de Oliveira Lima, e do ensaio fotográfico

“Avisos do Prata”, de Marcos Costa.

Em tempo, a Argumento tem uma notícia a comemorar: no último dia 3 de dezembro, a presi-

dente Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 12.737, que pune crimes cibernéticos, sem vetos. Batizada

de Lei Carolina Dieckmann, a nova legislação foi tema da edição nº 2.

Boa Leitura e bom proveito!

Isabelle CâmaraEditora

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Expediente

EdiçãoIsabelle Câmara

Projeto gráficoAndré Garcia

TextosChristine Matos, Isabelle Câmara,

Josie Marja, Wolney Mororó, Camila Pires, Jéssica Xavier, Joana Medeiros

e Lara Chiappetta Lagioia

CapaJuliana Galvão

RevisãoLuciana de Medeiros Fernandes

FotografiasMarcos Costa e Juliana Galvão

IlustraçõesIvson Sampaio

EditoraçãoAndré Garcia, Rachel Hopper,

Amanda Lages Romão, Mariana Costa e Ivson Sampaio

ApoioFrancisco Macena e Taynar Santos

Jornalista ResponsávelIsabelle Câmara DRT/PE 2528

PresidenteDes Fed Paulo Roberto de Oliveira Lima

Vice-PresidenteDes Fed Rogério de Meneses Fialho Moreira

Corregedor-GeralDes Fed Vladimir Souza Carvalho

Desembargadores FederaisLázaro Guimarães

José Maria LucenaGeraldo Apoliano

Margarida CantarelliFrancisco CavalcantiLuiz Alberto Gurgel

Francisco WildoMarcelo NavarroManoel Erhardt

Francisco Barros DiasEdilson Nobre

@TRF5

Portal TRF5: www.trf5.jus.br

Twitter: http://twitter.com/trf5

Curta nossa fanpage: https://www.facebook.com/TRF5a

Fale conosco: [email protected]

Cartas à Redação

Saber e entretenimento Com um projeto gráfico caprichado, uma linha editorial que transita bem entre o jurídico e o lúdico e uma linguagem clara e acessível,

a Revista Argumento cumpre, com méritos, sua missão de integrar direito e literatura, proporcionando saber e entretenimento aos

leitores. Ao abordar com leveza e sensibilidade a rotina de trabalho, a convivência, a produção artística e os desafios na 5a Região, ela ex-põe o lado mais humano e sensível desses homens e mulheres que corporificam a Justiça Federal nordestina. Longa vida à Argumento!

Leonardo Resende Martins, diretor do Foro da SJCE

Sementes da terraParabenizo o TRF5 pela excelente edição da Argumento nº 2, desde a variedade de temas, pesquisas, fontes, pertinência, até o projeto gráfico. “Sementes da Terra” é o ponto alto da edição.

Jarbas Falcão – Jornalista - Mtb 9804/DF

Vida longa

Uma publicação que estimula o pensar jurídico, divulga o fazer literário e dialoga com uma infinidade de outros saberes. Foi uma

grata satisfação receber, aqui às margens do rio São Francisco, um exemplar da revista Argumento. De leitura agradável e uma apresen-tação gráfica bem resolvida, a revista do Tribunal Regional Federal da 5ª Região – TRF5 chega com fôlego de vida longa, contribuindo para a construção e compreensão do conhecimento, tanto no universo do

poder judiciário quanto no dia a dia de nós cidadãos comuns. Carlos Laerte, poeta, jornalista e publicitário. Petrolina-PE

Argumento na Internet Nª 2 Eu sou estudante de direito da Faculdade Joaquim Nabuco. Ganhei da minha coordenadora a 2ª edição da revista Argumento. Gostei tanto que quero saber: como faço para obtê-la regularmente?

Pattyanna S, via e-mail

Crimes virtuais Como consigo uma edição da revista Argumento sobre crimes virtu-ais? Sou de Itajaí/SC, e estou fazendo meu TCC sobre esse assunto.

Wagner Berton, por e-mail

Nota da RedaçãoAs edições da Argumento estão disponíveis no site do TRF5 (www.trf5.jus.br), na área Imprensa/Revista Argumento.

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Sumário

Ambiente Inteiro

À Luz dos Direitos

Sociedade e Direitos

Fundamentais

28

46

42

38

Marcos Costa registra a beleza e o abandono do

Açude do Prata

Criações de camarão podem provocar sérios danos ambientais

Homossexualidade: entre a intolerância e a garantia de direitos

4 Extra-autos Servidores e magistrados fazem da Olimpíada Regional o even-to mais alegre e democrático da Justiça Federal na 5ª Região

6 Diálogo Desembargador federal Francisco Barros Dias e juiz federal Walter Nunes debatem o novo CPP

10 Cultura e Direitos Museus de Pernambuco são convites ao turismo de conheci-mento

14 Perfil Bom humor típico do cearense José Maria Lucena quebra austeridade da magistratura

16 Veredicto Magistrados são punidos sim, por Marcelo Navarro

19 Capa Tráfico de seres humanos: uma das formas mais degradantes de violação de direitos

50 Em dia com a Lei Confira um panorama das decisões no TRF5

51 Sentir Deus, aquele que tudo vê, por Paulo Roberto de Oliveira Lima

Ações governamentais e de organizações da sociedade civil buscam garantir a acessibilidade às pessoas com deficiência

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O corpo em movimentoOlimpíada da Justiça Federal na 5ª Região agrega, motiva e diverte servidores, além de estimular hábitos mais saudáveis

Nem só de processos vive

o servidor da justiça. Em meio

às dificuldades da atividade ju-

dicante, servidores e magistra-

dos do Tribunal Regional Fede-

ral da 5ª Região –TRF5 param,

anualmente, e se reúnem na

Olimpíada da Justiça Federal na

5ª Região. Durante um final de

semana inteiro, delegações das

seções judiciárias de Pernam-

buco, Paraíba, Rio Grande do

Norte, Ceará, Alagoas e Sergipe

aportam no Círculo Militar do

Recife, local que tem abrigado

o evento nas últimas edições,

para disputar partidas de vôlei,

basquete, futebol, natação, tê-

nis, tênis de mesa, queimado,

dominó, xadrez, sinuca, totó,

corrida de 5km e 10km e pas-

seio ciclístico. Não só: buscam,

através do esporte, fortalecer

relações antes restritas ao tra-

balho e fazer novos amigos.

É o caso da estudante Mirella Leal, estagiária do

TRF5. Com o seu time, ela conquistou a 1ª colocação

no torneio de vôlei, mas acredita ser mais importante

participar e fortalecer laços de amizade do que vencer.

“Além de ser um hábito saudável, fazemos amizades”.

A Olimpíada da Justiça Federal na 5ª Região nas-

ceu na Seção Judiciária de Pernambuco (SJPE), em

2008, por iniciativa do juiz federal Frederico Azeve-

do, à época diretor do Foro. Inicialmente, como um

evento somente da SJPE, um ano depois, a ideia teve

continuidade, mas, desta vez, com a adesão do TRF5.

Mais de 200 atletas participaram da competição, que

reuniu magistrados e servidores em 11 modalidades

esportivas.

Em 2010, o projeto foi ampliado novamente, ga-

nhando a denominação de “I Olimpíada Regional da

Justiça Federal da 5ª Região” e sendo incluso no Pla-

nejamento Estratégico da JF5. O evento, com novo

formato, abrangendo o

TRF5 e todas as seções

judiciárias vinculadas,

buscou promover a inte-

gração regional a partir

da prática do esporte,

atuando, também, na

Ext

ra-a

utos

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melhoria do clima organizacional e desenvolvendo

a consciência sobre a importância da realização de

atividades físicas. Cerca de 430 competidores dispu-

taram os jogos, que foram realizados durante as co-

memorações ao Dia do Servidor, em outubro.

Entre a disputa e o encontro Este ano, a Olimpíada atraiu novos adeptos, pes-

soas que, de modo geral, pretendiam se divertir, en-

contrar colegas de trabalho em outras circunstâncias

ou, simplesmente, participar. Mas havia aqueles que,

preocupados com a performance durante o evento,

investiram pesado nos treinos. “Passei cinco meses

me preparando. Perdi, inclusive, 7kg para entrar nessa

disputa com chances de medalha.Treinei diariamen-

te”, revelou José Irineu (SJPE), que ganhou medalha

de bronze no torneio de tênis.

Também jogador de tênis desde a adolescência,

o presidente do TRF5, desembargador federal Paulo

Roberto de Oliveira Lima, vem disputando partidas de

dominó, tênis e tênis de mesa em todas as edições.

Já sentindo o fim da gestão, que termina em março de

2013, ele avalia que o evento cresceu bastante nesse

período, tanto em organização como em número de

participantes. “Como atleta, avalio que (o evento) foi

ótimo, pois alcançou o objetivo de promover o encon-

tro e o congraçamento dos servidores de toda a 5ª

Região. Como presidente, espero

que, a cada ano, mais servidores

adiram à competição”, refletiu.

Para o gerente do Projeto

da Olimpíada, o servidor Geral-

do Alves, do TRF5, o objetivo do

evento é mais estratégico: “criar

condições para que possamos cuidar bem de quem

cuida do cidadão, do jurisdicionado. A integração en-

tre os servidores contribui para a qualidade do serviço

prestado. A melhoria do clima está relacionada com

a satisfação em se trabalhar na organização, fazen-

do com que o servidor feliz produza mais. Por fim, a

conscientização em se realizar atividades físicas pode

contribuir para a diminuição de faltas ao serviço, por

conta de dispensas médicas para tratamentos de pro-

blemas de saúde”.

Para além das estratégias de jogo e de trabalho,

o certo é que a Olimpíada Regional tem contribuído

para a integração entre os servidores da 5ª Região e

a qualidade nas relações de trabalho. É o que atesta

Ricardo César Almeida da Silva, diretor do Núcleo de

Orçamento e Finanças, da Subsecretaria de Orçamen-

to e Finanças do TRF5. “É diferente quando você só

conhece as pessoas por telefone ou videoconferência.

Ali (durante a Olimpíada), você esquece o tratamento

frio e consegue ter uma aproximação maior, mais ami-

gável. E quando, depois, você precisa daquela pessoa

no âmbito profissional, os protocolos são deixados de

lado, os processos ficam mais ágeis. Conheci pessoas

que, sempre que eu encontrar e precisar, sei que vou

poder contar”.

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Celeridade processual

Francisco Barros Dias – Na

vida do brasileiro, o reflexo do novo

Código de Processo Penal não será

imediato. Ele virá com o tempo, em

razão de a lei ser processual, cujo

exercício prático e efetividade se

dão mais no âmbito do próprio Ju-

diciário. O reflexo imediato e mais

intenso é no âmbito interno do

Judiciário, por se tratar de uma mudança de lei pro-

cessual, instrumental. O reflexo para cidadania, para

quem acompanha a parte do andamento de uma ação

penal, se dá no campo da celeridade processual. Na

parte das medidas cautelares, o reflexo vem, exata-

mente, das possibilidades que são oferecidas, além

de uma simples prisão preventiva. Mas Dr. Walter, o

que o senhor acha?

Walter Nunes – A grande crítica da sociedade

em geral é contra a burocracia, morosidade, princi-

Novo CPP: uma resposta à sociedadeA Argumento reuniu o desembargador federal Francisco Barros Dias e o juiz federal Walter Nu-

nes da Silva Júnior para conversarem sobre o novo Código de Processo Penal. Uma conversa

descontraída, mediada pela jornalista Anna Ruth Dantas, da Seção Judiciária do Rio Grande do

Norte (SJRN), com análises apuradas e explicações contundentes. Confira os principais trechos

do diálogo entre os dois magistrados.

Desembargador federal Francisco Barros Dias (esq.) e juiz federal Walter Nunes reconhecem que as alterações realizadas no novo CPP atendem aos anseios sociais

Diá

logo

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palmente na área criminal, que gera a sensação de

impunidade. As modificações no Código de Processo

Penal, que estão sendo tomadas na reforma tópica,

vêm dar uma efetividade muito maior ao processo,

uma agilidade muito grande. O mecanismo da con-

centração dos atos processuais, de uma audiência

apenas para instrução e julgamento do processo, por

exemplo. Isso a sociedade já deve estar sentindo um

pouco do reflexo. E na questão que o Sr. (desembar-

gador federal Barros Dias) tocou também, as medidas

cautelares, anteriormente, a gente tinha tudo, que po-

deríamos chamar da prisão, ou nada, que era deixar

o réu em liberdade, sem qualquer tipo de restrição.

Hoje, não. Já temos o meio termo. Não necessaria-

mente o réu precisa ir para prisão. E isso contribui

para diminuir a criminalidade, porque a gente sabe

que o cidadão, indo para prisão, potencializa a delin-

quência e, por outro lado, ele não fica com a liberdade

de fazer qualquer coisa. A gente viu, há pouco, um

instrumento para afastar um prefeito, um governador,

ou, eventualmente, um presidente, do cargo. Antiga-

mente, você só tinha a medida de prender ou deixar

no cargo. Agora, pode tirar do cargo, até para fazer

uma apuração mais aprofundada.

Barros Dias – Isso como medida cautelar do

Processo Penal hoje, que é oferecido sem que seja

apenas por conveniência do processo. Atualmente, é

como uma forma de substituição da antiga possibili-

dade única de uma prisão preventiva (prisão fundada

na existência de evidências do fato criminoso).

Intervenção da vítima no processo

Walter Nunes – E outra coisa foi uma inovação

de 2011, a Lei nº 2.403/2010, que dá a possibilidade

de a vítima pedir a prisão preventiva ou alguma medida

cautelar dessa natureza. Anteriormente, a vítima não

tinha nada. Não poderia fazer absolutamente nada.

Pedia ao delegado, pedia ao Ministério Público e, se

nenhum desses atores tivesse a intenção de pedir a

medida cautelar, ela (a vítima) não teria participação

alguma no processo. Hoje, a mudança está trazendo

isso, a vítima passa a ter voz. Não apenas defendendo

o interesse dela, de proteção, de segurança, mas para

resolver o problema cível e ter uma indenização pelos

danos que ela tenha sofrido com o crime.

Walter Nunes – Um dos grandes problemas do

sistema criminal é não reconhecer a legitimidade à

vítima. Ele satisfaz os propósitos das agências públi-

cas, mas não o da vítima. A intenção no novo Código

de Processo Penal foi colocar uma participação mais

ativa da vítima. Ela (a vítima) é a grande esquecida do

processo criminal. Hoje, há no Código a exigência de

que às expensas do Estado, deve ser dada assistência

psicológica à vítima de agressão sexual, crianças e

tudo mais. Por outro lado, precisa tentar resolver o

problema cível da pessoa. E veja a questão da agres-

são de gênero. Às vezes, a mulher era agredida, mas

não tinha como pedir medida cautelar, porque não

tinha legitimidade para tanto, ou era o Ministério Pú-

blico ou a autoridade policial. Agora, a própria vítima,

por intermédio do advogado, pode peticionar direto

ao juiz.

Julgamento antecipado do processo

Barros Dias – Depois da reforma, há uma série

de vantagens a apontar. Mas diria que uma das boas

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providências da reforma

foi a questão relativa a um

julgamento antecipado no

Processo Penal. Isso signi-

fica que, antes da reforma,

não tínhamos a possibilida-

de, após receber a denún-

cia, de fazer um julgamento

antes de terminar toda ins-

trução, pois o juiz não tinha

liberdade legal para fazer

um julgamento já sabendo

que o processo não oferecia a menor condição de le-

var a um resultado útil, que não fosse a própria impro-

cedência da denúncia.

Defesa prévia antes da denúncia

Barros Dias – Penso que nunca é demais real-

çar a questão das medidas cautelares. É, realmente,

um leque de opções que oferece ao julgador meios

e formas de não tomar a medida drástica com rela-

ção à prisão preventiva. Agora, tudo isso em nome do

princípio da celeridade processual. Mas é bom que se

enfatize bem o princípio da celeridade processual, que

prefiro chamar consequência do princípio da eficiên-

cia. E já para fazer denotar esse aspecto, basta ver o

dispositivo que obriga a defesa prévia ao recebimento

da denúncia como forma de garantia, a fim de que a

pessoa possa oferecer elementos, antes mesmo do

recebimento da denúncia, de o juiz deixar de receber

a denúncia, já com base em uma defesa que é feita

pela própria parte. Essa defesa é chamada de prévia,

não por ser aquele estilo de defesa prévia anterior,

mas por ser antes da denúncia e, com isso, já ofere-

cendo condições de não se

alegar o que constantemen-

te vemos na imprensa: as

pessoas dizendo que foram

condenadas, medida acau-

teladora, prisão preventiva

sem terem sido ouvidas. O

Processo Penal, agora, ofe-

rece essa oportunidade.

Princípio da oralidade

no processo penal

Walter Nunes – Cito, por exemplo, a utilização

de técnicas modernas. Pela primeira vez, nós temos,

no processo brasileiro, mesmo em relação ao Pro-

cesso Civil, o princípio da oralidade. A gente tinha no

Juizado Especial, mas agora, com a previsão expres-

sa da documentação, dos depoimentos pelo sistema

audiovisual, agora temos, não só a produção da prova

testemunhal pela forma oral, mas a sua própria do-

cumentação. E essa aplicação ocorre também com

a videoconferência para inquirição das testemunhas

que residem em outras localidades. Isso traz uma

efetividade maior no processo e no princípio da iden-

tidade física do juiz (unidade entre juiz da instrução

do processo e o juiz que profere a sentença), porque

é o próprio juiz do processo que vai fazer inquirição

da testemunha na forma de videoconferência, embora

ela esteja em outra localidade; é o próprio magistrado

do processo que participa da produção da prova, sem

falar, obviamente, em celeridade. Agora, as partes é

que devem fazer as perguntas por primeiro. O juiz,

se pergunta tiver a fazer, faz no final, como comple-

mentação, em razão do impulso oficial. Quebra, com

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isso, o paradigma, seja no

Processo Penal ou no Civil,

que cabia ao juiz ser uma

espécie de inquisidor, de

condutor ou de explorador

da prova a ser produzida no

processo. Agora, com o sis-

tema audiovisual de grava-

ção, ficando documentado

o conteúdo do que a tes-

temunha disse, o membro

do Tribunal tem oportuni-

dade de interpretar conforme, efetivamente, foi dito.

Agora, sim, temos a oralidade no sistema processual

brasileiro.

Adoção do princípio acusatório, em detrimento

do inquisitorial

Barros Dias – Veja a mudança de paradigma

do princípio ideológico. Nós temos a mudança do pa-

radigma do princípio inquisitorial (é secreto, não há

contraditório e é escrito), para o acusatório (igualdade

das partes, imparcialidade do juiz, presença do contra-

ditório e da publicidade), no inquérito policial. E nele

(no princípio acusatório), nós temos uma mudança de

paradigma sistemática no próprio Código de Processo

Penal, que é o fato de as perguntas serem feitas na

sequência, primeiro as partes, a partir de quem ajui-

zou a demanda. E vem, em seguida, a defesa.

Objetividade do juízo e das partes

Barros Dias – E mostra outro aspecto muito

interessante. O sistema apresenta uma nova roupa-

gem, na qual, além das perguntas serem formuladas

dessa maneira, o juiz fica

com a ideia de saber o que

as partes estão trabalhan-

do no conflito e, quando o

juiz vai fazer pergunta, diz

respeito ao conflito e ao

interesse das partes, cirur-

gicamente sobre o que inte-

ressa às partes. Com isso,

retira-se do Processo Penal

a defesa prévia, que era só

pró-forma. Agora, toda de-

fesa apresentada tem que ser efetiva, substancial e,

acima de tudo, já saber previamente qual o sentido da

defesa, porque, na hora das perguntas em juízo, pre-

cisa ser coerente e trabalhar cada tese apresentada,

tanto no que diz respeito à tipificação e à imputação

de fatos e indícios de autoria, quanto às teses de de-

fesa, sobre o que vai apresentar.

Acesso ao conteúdo do inquérito policial

Barros Dias – Na fase da polícia e do Minis-

tério Público, a parte tem acesso a todos os ele-

mentos que já foram carreados, conjugados para o

processo. O que já foi apurado, todo material; você

tem direito de acesso à informação, seja como par-

te, como investigado, indiciado. Se a pessoa não

tem defesa prévia, peticiona para explicar situações

à autoridade que esteja investigando. É importante,

para isso, não só o peticionamento pontual de algum

esclarecimento, mas para tomada de providência,

como trancamento do inquérito policial. A defesa

pode subsidiar e dar elementos para que nem rece-

bida seja a denúncia.

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Museus de Grandes Novidades

Jéssica Ferreira e Lara Lagioia

Eternizadores da história de determinada região

ou cultura, os museus funcionam como um templo

da memória, que atrai a visita de nativos e turistas.

A imensidade de museus serve para não deixar a his-

tória ser esquecida, além de revelar que ela merece

ser revisitada sempre que possível. Em Pernambuco,

a lista é extensa. O Estado foi berço de importantes

marcos no desenvolvimento nacional e continua a car-

regar tradições bastante distintas e enriquecedoras.

A fim de explorar um pouco mais o desenvolvimento

pernambucano e o recifense, a Argumento mostra

nesta edição alguns dos museus que se destacam na

capital.

O Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico

de Pernambuco (IAHGP) é o mais antigo dos listados

e também entre os Institutos Históricos estaduais do

Brasil, 150 anos. Sua sede, hoje, está na Zona Espe-

cial de Preservação do Patrimônio Histórico - Cultural

8.1 (ZEPH-8.1) do Sítio Histórico do Bairro da Boa Vis-

ta. Uma de suas metas é atuar na “consciência da

importância da história de um povo na construção do

futuro de uma nação”, ainda não plenamente desen-

volvida. Fundado em 1862, tem uma proximidade com

o Tribunal Regional Federal da 5ª Região: atualmente,

a desembargadora federal Margarida Cantarelli co-

manda a presidência.

O Instituto, dividido em espaços temáticos, teve

relevante papel social ao longo dos anos, participan-

do, por exemplo, do processo de banimento da es-

cravidão e da adoção da atual bandeira estadual. Foi

também no cenário do IAHGP que surgiu a Academia

Pernambucana de Letras (APL), onde a desembarga-

dora Margarida Cantarelli ocupa a Cadeira nº 09.

Já o Museu Militar do Forte do Brum compõe a

Além de guardiões da memória cultural e histórica do nosso povo, alguns museus de Pernambuco preservam o legado jurídico de tribunais de justiça

Cul

tura

e D

ireito

s

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paisagem histórica da cidade: a fortificação, construí-

da no século XVI para defesa do Recife, foi inaugurada

como museu em 1987.

Seu acervo destaca como o local foi testemu-

nha de acontecimentos históricos na criação do Re-

cife como é hoje, e conta com armamentos antigos

e modernos, quadros e maquetes de batalhas, uma

biblioteca e o esqueleto de um soldado da invasão

holandesa.

O museu, administrado atualmente pelo Exérci-

to Brasileiro, é ideal para quem quer saber um pouco

mais sobre a época da Capitania de Pernambuco e do

Brasil no contexto da Segunda Guerra Mundial.

Valorizando a cultura localDizem que pernambucano tem mania de grande-

za. Há quem concorde, há quem discorde, mas uma

coisa é certa: grande mes-

mo é a história e a cultura

desse povo nordestino. E

três importantes museus

no Recife imortalizam não

só o passado, mas tam-

bém a modernidade do Es-

tado: o Museu do Estado

de Pernambuco, o Museu

do Homem do Nordeste e

o Museu de Arte Moderna

Aloisio Magalhães (MA-

MAM).

O Museu do Estado de Pernambuco - MEPE foi

criado em 1929, mas apenas em 1940 inaugurou suas

novas instalações, no casarão onde funciona até hoje.

Depois de sofrer reformas, alterações e expansões,

acolhe hoje o Espaço Cícero Dias, com capacidade

para abrigar exposições de médio e grande porte, e

uma casa onde são realizados cursos e oficinas de

arte.

A entrada principal do MEPE, que ocupa uma

área de mais de 9000m², é guardada por dois grifos

(animal fabuloso, com cabeça, bico e asas de águia,

corpo de leão e cauda de serpente). O jardim é deco-

rado com vasos de cerâmica portuguesa e esculturas

de musas mitológicas. E os mais de 14 mil itens de

exposição permanente mostram pinturas, gravuras,

fotografias, esculturas e armaria do período holandês;

mobiliário do século XVII ao século XX; itens da cul-

11

Museu do Estado de Pernambuco abriga mais

de 14 mil itens do período holandês, das culturas

afro-brasileira e indígena e mobiliário do séc. XVII ao XX

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tura afro-brasileira e indígena, e diversos objetos que

ajudam a compreender a vida social e cultural de Per-

nambuco no passado, lançando-as nos dias de hoje.

O Museu do Homem do Nordeste, fundado por

Gilberto Freyre em 1979, conta com um acervo de

quase 15 mil peças de caráter histórico, etnográfi-

co e antropológico, formado por heranças culturais

do índio, do europeu e do africano, que conduzem à

compreensão do Nordeste brasileiro.

Atualmente, é ligado à Diretoria de Documenta-

ção da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) e tem a

missão de pesquisar, documentar, preservar, difundir

e atualizar o rico patrimônio cultural do Nordeste, ma-

terial e imaterial.

O Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães

– MAMAM, criado em 1997, homenageia o artista

plástico, designer e ativista cultural pernambucano

de mesmo nome. Está instalado em um casarão do

século XIX, na Rua da Aurora, às margens do Rio Ca-

pibaribe, e possui sete salas de exposição, biblioteca

especializada em arte moderna e contemporânea,

entre outros espaços que auxiliam nas mostras e

eventos que acontecem no local.

Objetiva se tornar um centro de referência da

produção moderna e contemporânea das artes visu-

ais, e divulga a arte do presente e suas referências

históricas. Conta com um acervo de mais de 1000

trabalhos de diversas técnicas, que abrange o período

histórico de 1920 a 2012.

Fazem parte desse acervo obras de renomados

artistas pernambucanos, dentre os quais Vicente do

Rego Monteiro, Aloisio Magalhães, Gil Vicente, Lula

Cardoso Ayres, Abelardo da Hora, Joaquim do Rego

Monteiro, Francisco Brennand e Gilvan Samico.

Único museu pernambucano numa lista de 30 do

Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), o Museu da

Abolição - Centro de Referência da Cultura Afro-Bra-

sileira foi inaugurado oficialmente na década de 1980,

em homenagem ao Conselheiro João Alfredo e a Jo-

aquim Nabuco, abolicionistas. O Sobrado Grande da

Madalena, nome do local da sede, foi a antiga mora-

dia de João Alfredo, que contribuiu para a formulação

da Lei do Ventre Livre e da Lei Áurea. O museu conta

com mais de mil livros sobre a cultura afrodescenden-

te e museologia, além de exposições permanentes e

temporárias.

Justiça e MemóriaHá mais de duas décadas em atividade, o Tribu-

nal Regional Federal da 5ª Região - TRF5 reserva em

sua sede um local dedicado a contemplar sua história.

O Memorial, existente desde 1999, pretende se vin-

cular à história do País, desde o momento em que a

Constituição declarou a descentralização das justiças

Um passeio pela memóriaUm meio que os recifenses contam para explorar a cidade é o programa

“Conheça o Recife”. Oferecido pela Prefeitura do Recife, por meio da Se-cretaria de Turismo, o projeto organiza passeios semanais para os atrativos culturais da cidade. O projeto foi eleito pela população, em 2011 e 2012, a melhor iniciativa da Secretaria de Turismo do Recife. Fundado em 2011, o programa contempla não apenas os museus, mas também praças, fortes, igrejas e monumentos históricos. Toda semana é um tema novo.

As visitas, feitas geralmente de ônibus e sempre com guias relatando a história dos locais visitados, acontecem aos sábados, a partir das 14h, saindo da Praça do Arsenal da Marinha. É preciso agendar o passeio, através dos telefones (81) 3355-8847 ou 3355-8017. A excursão é gratuita.

Page 14: quando seres humanos se tornam coisas

(+) Direitos

Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP)Rua do Hospício, 130 - Boa Vista Telefone: (81) 3222-4952 Visitação: Segunda à sexta-feira, das 13h às 17h Sábados, das 8h às 12h

Museu Militar do Forte do BrumPraça da Comunidade Luso Brasileira, s/n, Bairro do RecifeTelefone: (81) 3224-4620Visitação: Terça a sexta-feira, das 9h às 16hSábados, domingos e feriados, das 14h às 16h

Museu do Estado de Pernambuco - MEPE Av. Rui Barbosa, 960 – GraçasTelefone: (81) 3184-3170Visitação: Terça a sexta-feira, das 9h às 17hSábados e domingos, das 14h às 17h

Museu do Homem do Nordeste Avenida 17 de Agosto, 2187 – Casa ForteTelefone: (81) 3073-6340Visitação: Terça a sexta-feira, das 8:30h às 17hSábados, domingos e feriados, das 13h às 17h

Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães – MAMAM Rua da Aurora, 265 – Boa VistaTelefone: (81) 3355-6870Visitação: Terça a sexta-feira, das 12h às 18hSábados e domingos, das 13h às 17h

Museu da Abolição Centro de Referência da Cultura Afro-Brasileira Rua Benfica, 1150 – MadalenaTelefone: (81) 3228-3248Visitação: Segunda a sexta-feira,das 9h às 17hSábados, das 13h às 17h

Memorial do TRF5Av. Cais do Apolo, s/nº, Edifício Ministro Djaci Falcão – Bairro do RecifeTelefone: (81) 3425-9000Visitação: Agendada com o setor de Cerimonial

Memorial da JustiçaAv. Alfredo Lisboa, s/nº – Bairro do BrumTelefone: (81) 3224-0142 Visitação: Segunda a sexta-feira, das 13h às 17h.

até a atualidade. O espaço conta com fotos que da-

tam do início do Tribunal, quando este ainda se locali-

zava no Palácio Frei Caneca, na Avenida Cruz Cabugá.

Encontram-se, ainda, discursos de posse de desem-

bargadores e presidentes, a Medalha da Ordem do

Mérito Pontes de Miranda - mais alta condecoração

do TRF5 -, medalhas que o Tribunal recebeu, convi-

tes antigos, a toga do primeiro presidente, todos os

relatórios de gestão, o primeiro processo e alguns ou-

tros elementos que compõem a trajetória da Justiça.

Muito do que foi implementado deve-se ao esforço

da servidora Nancy Moreira, cuja dissertação de mes-

trado em Gestão Pública na Universidade Federal de

Pernambuco (UFPE), “Memória, identidade e justiça

social: vinte anos do Tribunal Regional Federal da 5ª

Região”, contribuiu bastante para alimentar o Memo-

rial. Seu projeto pode ser lido na internet ou no próprio

Memorial, que está aberto a visitas de estudantes e

também a qualquer pessoa interessada, com libera-

ção antecipada do setor de Cerimonial.

Outro local em que a justiça pernambucana

encontra espaço para eternizar-se é o Memorial da

Justiça. Ligado ao Tribunal de Justiça de Pernambuco

(TJPE), nele funciona o centro de documentação do

Poder Judiciário local. Sua principal função é guardar,

preservar, organizar e divulgar a documentação his-

tórica da justiça, tornando-a acessível à pesquisa e

ao público em geral, através de um sistema digital

desenvolvido pelo próprio TJPE. A entidade ainda pu-

blica anualmente a Revista Eletrônica Documentação

e Memória.

O Memorial de Justiça ocupa um prédio tão his-

tórico quanto seu acervo, onde funcionou a antiga

Estação Ferroviária do Brum. Nas instalações, há um

local reservado para exposições de arte e eventos cul-

turais e a Biblioteca do Magistrado Escritor.

13

Page 15: quando seres humanos se tornam coisas

Lara Chiappetta Lagioia

Na época da escolha, foi lançado o filme “O Caso

dos Irmãos Naves”, que o entusiasmou na escolha.

O longa-metragem conta a história real de dois ir-

mãos injustamente acusados de um crime que, sob

a tortura de um delegado arbitrário, confessaram

cometer.

Não frequentou cursinhos preparatórios para

as provas do vestibular, mas, pela boa educação da

escola de padres na qual estudou, tirou o 4º lugar.

Ingressou no curso de Ciências Jurídicas e Sociais da

Faculdade de Direito da Universidade Federal do Cea-

rá, em 1967, no qual se formou Bacharel cinco anos

depois.

Durante o tempo da faculdade, não foi apenas

representante estudantil do Departamento de Direito,

mas também candidato a vereador do município de Li-

Natural de Limoeiro do Norte,

na região nordeste do Ceará, José

Maria de Oliveira Lucena nasceu no

primeiro dia do mês de julho do ano

de 1945. Filho de Francisco Lucena

das Chagas e Raimunda de Olivei-

ra Lucena, sempre viveu em casa

cheia: teve sete irmãos, dos quais

conviveu com seis.

Nem sempre pensou em fazer

parte do mundo jurídico: inicialmen-

te, queria ser médico. Mas alguém

lhe disse que, por escrever e falar

tão bem, deveria ser advogado. O

comentário lhe fez repensar a profis-

são, e acabou optando por Direito.

Um cearense pernambucanoJosé Maria de Oliveira Lucena

Perf

il

Page 16: quando seres humanos se tornam coisas

Da Terra das Bicicletas à Veneza Brasileira

Apesar de ter nascido em Limoeiro do Norte, conhecida como a terra das bicicletas, José Maria Lucena é bastante apegado ao Recife, cidade também conhecida como a Veneza Brasileira.

Logo que chegou à capital pernambucana, sentiu muita falta do local onde trabalhava. Pensava, inclusive, em completar o tempo da aposentadoria e voltar para o Ceará. Mas, depois de fazer amigos e conhecer melhor o Recife, sente saudade, quando volta à terra natal.

Tanto já faz parte da cidade, que foi agraciado pela Assembleia Legislativa de Pernambuco, com o de Título de Cidadão Pernambucano, e pela Câmara Municipal, como Cidadão do Recife.

giu uma vaga para Fortaleza, foi nomeado, assumindo

a 3ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Ceará.

A jornada no Tribunal Regional Federal da 5ª Re-

gião – TRF5 começou em 1992, quando foi nomea-

do para substituir o desembargador federal emérito

Orlando Rebouças. Hoje exerce as funções de presi-

dente da Primeira Turma, cujas sessões acontecem

ordinariamente nas manhãs de quinta-feira, e de co-

ordenador suplente dos Juizados Especiais Federais.

Foi presidente desta corte entre 1999 e 2001,

tempo em que, segundo ele, houve bastantes investi-

mentos em tecnologia, beneficiando não apenas o Tri-

bunal, mas as Seções Judiciárias vinculadas. Outros

destaques da gestão foram a fundação da Escola de

Magistratura Federal da 5ª Região, no Recife, e o in-

centivo à atualização e à qualificação dos servidores.

E, nestes 20 anos de TRF5, o marido de Maria

Arivan de Holanda Lucena e o pai de Andréia, Danie-

le e Juliana vem acrescentando a este colegiado seu

saber, sua vasta experiência jurídica, sua alegria e seu

carisma.

moeiro do Norte pelo antigo MDB (Movimento

Democrático Brasileiro). Na campanha, optou

por não ter patrocínios e disputou votos com

seu irmão mais velho, candidato pela ARENA

(Aliança Renovadora Nacional). Ambos foram

eleitos, e José Maria Lucena exerceu o man-

dato político de 1967 até 1971.

Depois de concluir a universidade, experi-

mentou várias nuances do Direito: foi consul-

tor jurídico da Prefeitura Municipal de Limoeiro

do Norte, professor da Universidade Estadual

do Ceará, assessor da Vice-Governadoria do

Estado do Ceará, Secretário para Assuntos da

Casa Civil e Secretário de Administração do

Governo do Estado do Ceará.

A decisão de prestar concurso para juiz federal

aconteceu quando era Procurador do Estado. Dois co-

legas de trabalho na Procuradoria, Dr. Orlando Rebou-

ças e Dr. Anchieta, foram nomeados juízes federais.

Isso o animou e, em 1981, foi aprovado no teste, que

na época era nacional. Três anos depois, quando sur-

15

Page 17: quando seres humanos se tornam coisas

Magistrados podem sofrer punições além da aposentadoria compulsóriaMarcelo Navarro Ribeiro Dantas

Tenho lido, visto e ouvido na

mídia em geral, e com cada vez

maior frequência, no atual contex-

to de ampla exposição do Poder

Judiciário, afirmações equivocadas

quanto às possibilidades de puni-

ção a infrações legais cometidas

por magistrados.

O maior engano dessas afir-

mativas é o de que os juízes so-

mente são puníveis com aposen-

tadoria compulsória integral, o que

configuraria privilégio injustificável,

agressivo ao princípio da isonomia,

e, ademais, existente unicamente

no Brasil, como uma insólita jabuti-

caba judiciária tupiniquim.

Outro é o de considerar inacei-

tável que, quando um magistrado

erra e causa dano, e o cidadão lesado ingressa com

uma ação e ganha, quem paga a indenização é o Erá-

rio, e não o magistrado responsável.

É preciso desfazer esses equívocos.

E é melhor começar pelo segundo, que é mais

simples.

Efetivamente, quando um agente público lesa um

particular e este ingressa com a ação de reparação

de dano, quem vai pagar pelo erro é o Erário. Porém

isso vale para qualquer agente público, seja juiz ou

não. Está na constituição: art. 37, § 6.º, e é muito

bom para o cidadão que seja assim, porque litigando

apenas contra o Estado, o cidadão só precisa provar

a ação ou omissão, o nexo de causalidade e o dano.

Se litigasse contra o agente público, além disso tudo,

teria de comprovar a culpa ou dolo deste, o que é

complicado.

Eu, seguindo opinião de muitos e bons juristas,

acho até que o lesado, querendo, podia litigar desde

Vere

dict

o

Page 18: quando seres humanos se tornam coisas

logo contra o Estado e o agente causador do dano.

Mas o STF – Supremo Tribunal Federal já pacificou

que tem de ser só contra o ente público, que poderá,

posteriormente, acionar o agente (é o chamado direi-

to de regresso). O único problema é que tais ações re-

gressivas, muitas vezes, não são propostas, mas isso

não é responsabilidade dos juízes, e sim dos gestores

públicos e da advocacia pública...

De todo jeito, o magistrado ocasionador de possí-

vel prejuízo ao Erário (como qualquer outro agente pú-

blico, repita-se), está sujeito a uma ação de regresso

para repor financeiramente tal lesão.

Desfeito o segundo equívoco, é o caso de anali-

sar o principal, consistente em dizer-se que, qualquer

que seja a infração ou ilegalidade cometida por ma-

gistrado, a pena máxima será, tão-somente, aposen-

tadoria compulsória. Ainda mais: com a integralidade

dos proventos!

Com todo o respeito, não é assim.

Não existe um só dispositivo na Constituição da

República que diga isso.

Não existe lei nenhuma dando respaldo a tal afir-

mação.

Ao contrário. A LOMAN – Lei Orgânica da Ma-

gistratura Nacional prevê, como sanções disciplina-

res para os magistrados (art. 42), numa escala que

vai da mais leve à mais grave: advertência; censura;

remoção compulsória; disponibilidade com vencimen-

tos proporcionais ao tempo de serviço; aposentadoria

compulsória com vencimentos proporcionais ao tem-

po de serviço; e demissão (no caso desta última, em

atenção à garantia da vitaliciedade, prevista no art.

95, I, da Constituição da República, por decisão judi-

cial transitada em julgado).

Portanto, não tem essa de aposentadoria com-

pulsória sempre integral. Vai tê-la o magistrado, mes-

mo punido com essa sanção, que já tiver tempo sufi-

ciente, não aquele que ainda não o integralizou.

Muito menos vale a ideia de que a aposentadoria

compulsória é a única pena que pode ser aplicada aos

juízes.

Não!

Isso é uma lenda urbana, altamente nociva à ma-

gistratura e ao Judiciário, que de tão repetida está

ganhando foros de verdade...

É tão absurdo esse pensamento, que, se fosse

verdade, um juiz poderia assassinar um desafeto e,

simplesmente, esperar em casa a aposentadoria,

sem nem se preocupar em responder processo ou

temer a prisão.

Claro que não é assim.

Os magistrados (juízes, desembargadores, minis-

tros dos tribunais superiores e até do Supremo), além

das punições disciplinares de suas corregedorias,

conselhos, entre os quais (exceto para os integrantes

do STF) o CNJ – Conselho Nacional de Justiça — que

só pode aplicar penalidades administrativas, registre-

-se —, estão sujeitos a todos os artigos, tanto do

Código Civil como do Código Penal e de qualquer lei

instituidora de sanções!

O juiz é um cidadão igual aos demais.

Se a infração que cometer for apenas adminis-

trativa, ele recairá numa daquelas sanções a que me

referi, entre as quais a aposentadoria compulsória

proporcional.

Se, além de administrativa, essa infração tam-

bém constituir ilícito civil, ele, cumulativamente, po-

derá sofrer as sanções civis respectivas (de impro-

17

Page 19: quando seres humanos se tornam coisas

bidade, por exemplo; de inelegibilidade; de caráter

indenizatório etc.).

E, se ademais disso tudo, dita infração configurar

ilícito penal (delito), ele, também cumulativamente,

poderá sofrer as penas criminais cabíveis (inclusive

detenção e reclusão, isto é, cadeia!), e perder até

mesmo a possível aposentadoria que tenha consegui-

do com a punição administrativa...

Pode-se até achar — e a liberdade de opinião

é sagrada — que são

poucos os magistrados

punidos com cadeia. Mas

também não são tantos os

membros de outros pode-

res nessa situação. Além

disso, é evidente que não

são muitos, em números

absolutos ou relativos, os juízes que delinquem. Há

bandidos de toga, sim (como os há de beca, de jaleco,

de macacão, de colarinho de várias cores), mas não

são a maioria. Melhor: são, felizmente, uma ínfima

minoria, em face do grande número de magistrados

que trabalha — e muito — honestamente, a bem da

Justiça em nosso país.

Portanto, não é possível, com todo respeito, afir-

mar que existe um privilégio só para o Judiciário e

só no Brasil, no que tange às punições aplicáveis aos

magistrados.

Não. As prerrogativas da magistratura (e tam-

bém do Ministério Público), que existem na maioria

dos países democráticos, são garantias mais do cida-

dão que do magistrado.

Afinal, se o juiz não tiver garantias, como pode-

rá ter independência e altivez para decidir — se for

o caso — contra os poderes constituídos (mesmo o

seu próprio poder!), ou contra os poderes informais,

como os econômicos e os de comunicação social?

Na verdade, o único privilégio do Judiciário, ulti-

mamente, tem sido apanhar na mídia. Quando mere-

ce, é o jeito; danado é apanhar mesmo quando não

está errado.

Se quem bate são pessoas sem qualificação, ou

de má-fé, nem adianta responder. Mas, quando se

veem pessoas sérias e

de bom nível repetindo

e propagando equívo-

cos, vale a pena tentar

fazer um esclarecimen-

to.

Em suma: os ma-

gistrados podem sofrer

muitas punições além da aposentadoria compulsória.

Como essa é a maior sanção que lhes pode ser im-

posta administrativamente, e, portanto, tende a ser

a primeira que é divulgada, quando há um caso que

comporta punição, gera-se a impressão de que é a

única reprimenda possível. Não é. Há muitas outras,

inclusive as privativas de liberdade.

É preciso dizer isso de forma clara, para que

a mídia e a sociedade fiquem tranquilas de que os

membros do Judiciário, nesse aspecto, não gozam

de nenhum privilégio violador da isonomia constitu-

cional.

Marcelo NavarroMestre e Doutor em Direito (PUC/SP)

Professor de Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito (UFRN/UNI-RN)

Desembargador Federal (TRF5)

Não é possível, com todo respeito, afirmar que existe um privilégio só para o Judiciário e só no Brasil, no que tange às punições aplicáveis aos magistrados.

18

Page 20: quando seres humanos se tornam coisas

Tráfico de pessoas: quando seres humanos se tornam coisas

Christine Matos

O sonho de uma vida melhor transforma o destino de muitas mulheres em histórias de dor e tristeza

Ana Santos era uma jovem que

sonhava em ser advogada. Mas,

aos 14 anos, a sua vida mudou com

a morte do pai, um policial civil. E

por um erro administrativo, que im-

pediu o pagamento da pensão à sua

família, Ana abandonou a escola e

entrou no mundo da prostituição e

das drogas. Surgia, a partir daí, Ana

Madonna.

No meio do caminho, Ana re-

cebeu uma proposta para trabalhar como garçonete

na Europa, para ganhar mil dólares por mês. “Eu não

pensei duas vezes, fui embora. Tomaram meu passa-

porte, pagava multa por tudo. Para dormir, eu tinha

que pagar uma multa. Se eu não quisesse ficar com

um homem, eu tinha que pagar multa. Fui vendida

para Holanda, depois para a Alemanha, Bélgica, Por-

tugal e Suriname”. No Suriname, lembra, foi presa e

torturada.

“Arrancaram os bicos dos meus seios. Come-

cei a me aprofundar no crack. Estava ficando muito

FOTO: JOaO PaUlO COTTa /TV GlOBO

Novela global mostra problemática que desafia governos, polícias e sociedades

Cap

a

Page 21: quando seres humanos se tornam coisas

debilitada. Foi quando um segurança disse que não

aguentava mais me ver daquele jeito e que, daquela

maneira, eu iria morrer. Ele me pediu perdão por ter

me agredido e disse que dependia daquele trabalho

para manter a família. Disse que ia me soltar, pedin-

do que eu guardasse segredo. Afirmei que sim, pois

tudo que eu queria era sair dali. Muitas meninas ali

enlouqueceram por causa do crack, outras morreram

de overdose. Outras, tentando fugir, correram para os

garimpos, sem tomar a injeção da febre amarela, e

não retornaram mais”.

Ana Santos conta que conseguiu fugir. Passou

um fax para Ana Vasconcelos, diretora da Casa de

Passagem, organização não governamental que ajuda

meninas e jovens em situação de risco. “Foi ela e,

primeiramente, Deus que me ajudaram a sair daquele

país”, desabafou. Antes de ser traficada para outros

países, Ana era atendida pela Casa de Passagem. Uma

das diretoras da ONG, Cristina Mendonça, disse que

ela tinha passado por capacitações na Casa de Pas-

sagem, mas, assim como muitas meninas, viajou em

busca do sonho de ter uma vida melhor. Ana Santos

acrescentou ainda que o seu retorno ao Brasil contou

também com o trabalho de autoridades, Polícia

Federal, Polícia Marítima, Interpol e Itamarati.

“Cheguei ao Brasil muito debilitada, pois

fazia três meses que eu não dormia. Não con-

seguia mais dormir. Hoje eu estou em uma nova

fase da minha vida, não me prostituo mais. Há

oito anos que eu saí dessa vida. Vivo uma vida

completamente diferente da que eu vivia. Não

preciso mais me prostituir para me manter. Não

dependo mais do crack, da maconha, da cocaína.

Dependo tão somente de Jesus. Faço um traba-

lho voluntário. Vou às escolas, colégios, praias e

igrejas conscientizar as meninas”, revelou.

Essa história não é ficção. É a vida real de

muitas mulheres no Brasil, traficadas para fins de

exploração sexual. Parte da história de vida des-

sa pernambucana está contada no vídeo “Rotas

de Ilusão”, produzido pela Assessoria e Planejamento

(Asseplan), empresa de consultoria em desenvolvi-

mento social.

Ana Santos é mais uma vítima do próprio sonho:

o de uma melhoria no padrão de vida. Muitas vezes

camuflada como atividade legal, o agenciamento de

modelos, babás, garçonetes e dançarinas pode ser

uma forma de os traficantes submeterem mulheres à

exploração sexual.

De acordo com o agente da Polícia Federal (PF)

em Pernambuco, Fernandes Vilanova, que trabalha há

Para Fernandes Vilanova, agente da Polícia Federal, chegar aos criminosos envolvidos no tráfico de seres humanos não é tarefa fácil

20

Page 22: quando seres humanos se tornam coisas

mais de 31 anos na PF, sendo 14 anos com investi-

gação de casos de tráfico de seres humanos, chegar

aos criminosos não é tarefa fácil. “No caso do tráfico

para exploração sexual, é muito complicado, pois ape-

sar da denúncia, temos dificuldades em provar quan-

do não pegamos o suspeito do crime em flagrante,

pois dependemos da confirmação da vítima. Elas têm

medo, pois correm risco até de morrer. Recebemos

uma denúncia de uma família de uma jovem que de-

sapareceu. Mais uma vítima do tráfico internacional

de pessoas para fins de exploração sexual e que teve

um final triste. Voltou morta para a família no Brasil”,

disse o agente, que participou da investigação de ca-

sos famosos, como o tráfico para retirada de rins por

parte de uma máfia israelense, que contou com parti-

cipação de muitas pessoas em Pernambuco.

Segundo o titular da Delegacia Institucional (De-

linst), delegado Renato Cintra, no período de 2008 a

2012, foram instaurados 17 inquéritos referentes aos

crimes previstos no art. 231 do Código Penal Brasilei-

ro. A equipe conta com cinco agentes federais. Fer-

nandes Vilanova informou que a maioria das denún-

cias de tráfico de seres humanos são provenientes

do Disque Denúncia, tanto do Governo do Estado de

Pernambuco, como da Polícia Federal.

A Justiça Federal na 5ª Região já julgou diver-

sos processos de tráfico de seres humanos, um deles

tendo como réus um alemão e um suíço. Os estran-

geiros, juntamente com uma brasileira, promoveram a

retirada de uma pernambucana do território nacional

com destino a Europa, mantendo a vítima em cárcere

privado e para fins de prostituição. L.B.N. foi acusada

de facilitar a ida de A.V.R.D. para a cidade de Bilbao,

na Espanha, supostamente para trabalhar como gar-

çonete na cafeteria do namorado da ré.

O desembargador federal Marcelo Navarro, do

Tribunal Regional Federla da 5ª Região - TRF5 e re-

lator da apelação criminal ACR 6734/PE, conta que

L.B.N, inconformada com a condenação, apelou ao

TRF5 contra a sentença do juízo da 4ª Vara Federal

de Pernambuco, que a condenou à pena de 5 anos, 1

mês e 20 vinte dias de reclusão pela prática do crime

tipificado no art. 231. A defesa da apelante susten-

tava que o fato de a mesma ter emprestado dinheiro

à vítima não se submete ao núcleo do tipo “facilitar”.

Alegou ainda que a vítima já exercia a prática da

prostituição antes de embarcar para a Europa, fato

este que afastaria a suposta exploração sexual pela

ré. “Restou comprovado ter sido a apelante quem

pagou a passagem da vítima para o exterior, como

também quem encaminhou a vítima ao local onde ela

seria explorada sexualmente, como se afere dos tre-

chos das declarações prestadas pela vítima, pela acu-

sada e pela mãe da vítima, que prestou queixa e pediu

ajuda à Polícia Federal após a filha, por telefone, ter

confirmado que estava se prostituindo na Espanha”.

Não ficou comprovado que a acusada aliciou outras

mulheres, além de A.V.R.D., como narrado na denún-

cia. Com isso, foi dado provimento ao pedido da defe-

sa para afastar o aumento da pena, resultando a pena

privativa de liberdade em 3 anos e 1 mês de reclusão.

Enfrentamento ao tráfico de seres humanos

O Brasil é signatário da Convenção das Nações

Unidas contra o Crime Organizado Transnacional - mais

conhecida como Convenção de Palermo - e seus dois

Protocolos, aprovados pelo Congresso Nacional, me-

21

Page 23: quando seres humanos se tornam coisas

diante o Decreto Legislativo 231/2003. A Convenção

foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por

meio do Decreto 5015/2004. O Decreto 5017/2004

promulgou o Protocolo Adicional à Convenção das Na-

ções Unidas contra o Crime Organizado Transnacional

Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico

de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças.

A convenção consiste em promover a coopera-

ção entre governos para prevenir e combater mais

eficazmente a criminalidade organizada transnacional,

através de um conjunto comum de ferramentas, que

incluem técnicas de legislação criminal e da coopera-

ção internacional. A partir da Convenção de Palermo,

a ONU estabeleceu o Escritório das Nações Unidas

Contra o Crime e Drogas - UNODC. Criada em 1997, a

agência, que está sediada em Viena, Áustria, possui

atualmente mais de 500 colaboradores e 21 filiais es-

palhadas no mundo, inclusive no Brasil.

No legislativo, a Comissão Parlamentar de Inqué-

rito (CPI) do Senado, presidida pela senadora Vanessa

Grazziotin (PCdoB-AM) e relatada pela senadora Lídi-

ce da Mata (PSB-BA), foi criada em 2011, com o obje-

tivo de investigar o tráfico nacional e internacional de

pessoas no Brasil, suas causas, consequências, rotas

e responsáveis, no período de 2003 e 2011, compre-

endido na vigência da Convenção de Palermo.

De acordo com dados do relatório elaborado pelo

Ministério da Justiça e pelas Secretarias de Direitos

Humanos e de Políticas para as Mulheres apresenta-

dos à CPI, o número de inquéritos instaurados pela Po-

lícia Federal especificamente sobre o art. 231 do Códi-

go Penal, que trata do tráfico internacional de pessoas

com o fim de exploração sexual, não é expressivo.

Em 2010, foram 74 inquéritos policiais; em 2009, 43.

Um total de 867 inquéritos por tráfico de pessoas nos

últimos 20 anos. Os dados podem não corresponder à

realidade, pois a CPI constatou que a maioria das res-

postas mostrou a inexistência de dados estatísticos

confiáveis relacionados ao tema.

A Câmara dos Deputados também tem uma CPI

do Tráfico de Pessoas. No dia 16 de outubro de 2012,

foram aprovados requerimentos para a realização de

um seminário sobre o tema e também diligências, oi-

tivas e audiências públicas em São Paulo, Pará, Per-

nambuco, Paraíba e Rio de Janeiro e também fora do

País, na Guiana Francesa e no Suriname, principais ro-

tas do tráfico de pessoas. De acordo com o presiden-

te da CPI, deputado federal Arnaldo Jordy (PPS-PA),

o Brasil é um dos cinco países com maior incidência

de tráfico de pessoas. A Comissão também irá ouvir

os envolvidos em um suposto esquema de adoção ile-

gal na cidade de Monte Santo, na Bahia. Uma repor-

tagem recente de um programa de TV mostrou que

cinco filhos, entre eles uma criança de dois meses,

foram retirados da casa dos pais pela polícia e entre-

gues à adoção em junho do ano passado. Há suspeita

de irregularidades no processo.

A CPI do Tráfico de Pessoas do Senado definiu

novas audiências e vai prorrogar um pouco mais

os trabalhos em função das recentes denúncias de

adoção irregular na Bahia. No dia 12 de novembro, a

pedido de Lídice da Mata (PSB-BA), relatora da CPI,

será realizada uma audiência em Salvador, para ouvir

a mãe das crianças e tentar ouvir o juiz envolvido.

Segundo a Secretaria Nacional de Justiça do

Ministério da Justiça, 475 pessoas foram vítimas de

tráfico de pessoas no Brasil, entre os anos de 2005

e 2011. Desse total, 337 sofreram exploração sexual

22

Page 24: quando seres humanos se tornam coisas

Jeane Aguiar, coordenadora do NETP/PE, defende que a informação é a maior defesa das redes de traficantes

e 135 foram usadas em trabalho escravo. Os dados

constam de estudo feito em parceria com o Escritório

da Nações Unidas sobre Drogas e Crimes, que apon-

tou que os maiores destinos, além do Suriname, são

a Suíça e a Espanha. E mais da metade do aliciamento

é feito por mulheres.

No âmbito do Executivo, o Governo Federal pos-

sui uma Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico

de Pessoas, instituída pelo Decreto Federal nº 5.948,

de 26 de outubro de 2006. São ações de prevenção,

repressão e atendimento às vítimas. Outro passo im-

portante foi a implementação do I Plano Nacional de

Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (I PNETP), do

Ministério da Justiça, que tem, entre suas metas, a

implementação de Núcleos de Enfrentamento ao Trá-

fico de Pessoas (NETPs). De acordo com dados do Mi-

nistério da Justiça, o País possui 15 NETPs. Na área

de abrangência da Justiça Federal na 5ª Região, os

Estados de Alagoas, Pernambuco e Ceará possuem

uma unidade do NETP´s. Uma das funções dos Nú-

cleos é articular, estruturar e consolidar, a partir dos

serviços existentes, uma rede estadual de referência

e atendimento às vítimas do tráfico de pessoas.

O Estado de Pernambuco possui, desde 2008,

uma Política Estadual de Enfrentamento ao Tráfico

de Pessoas. Em setembro de 2011, foram instituídos

o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas

(NETP/PE) e o Comitê Estadual de Enfrentamento ao

Tráfico de Pessoas (CETP/PE), que se reúnem, men-

salmente, com a presença de diversas secretarias e

órgãos, inclusive federais. Vinculado à Secretaria de

Defesa Social, o NETP/PE tem diversas atribuições,

entre as quais capacitar e formar atores envolvidos,

direta ou indiretamente, com o enfrentamento ao

tráfico de pessoas, na perspectiva da promoção dos

direitos humanos. Coordenado pela advogada Jeanne

Aguiar, o NETP/PE já vem colhendo resultados. Após

palestras proferidas em locais como redes pública e

privada de ensino, tem sido comum parentes e ami-

gos de possíveis vítimas do tráfico de pessoas con-

sultarem o Núcleo para relatar histórias que poderiam

não ter um final feliz.

O Núcleo pernambucano faz o atendimento e

orienta com relação aos cuidados que as pessoas de-

vem ter para não serem vítimas do tráfico. “O NETP

desenvolve um trabalho de prevenção e atendimen-

to às vítimas e seus familiares. A prevenção é feita

através de um programa de palestras, que vem sendo

realizado nas escolas da rede pública e privada, em

ONGs e nas empresas. Durante as palestras, o público

toma conhecimento das causas e consequências do

tráfico de pessoas, entendendo, principalmente, que

23

Page 25: quando seres humanos se tornam coisas

o tráfico de pessoas é um crime invisível e comple-

xo, bem como as fragilidades referentes à legislação

em vigor no Brasil. A prática tem demonstrado que a

divulgação das informações básicas, visando sobre-

tudo o público feminino, explicando as características

do tráfico de pessoas, as suas modalidades, como a

rede atua, pode colaborar para que nem meninas nem

adolescentes ou crianças caiam nessa armadilha. A

partir de 2013, o NETP terá uma unidade itinerante

que irá funcionar em ônibus especialmente preparado

para palestras e atendimento ao público, levando as

informações para todo o Estado de Pernambuco.”

Com relação à orientação a quem procura o Nú-

cleo relatando promessa de emprego, Jeanne Aguiar

disse que tem orientado as pessoas a não viajarem

sem deixar uma cópia do passaporte com a família.

“Procure-nos para que, através dos órgãos competen-

tes, possamos checar se a empresa existe, se tem

um caráter idôneo. É recomendável fazer uma pes-

quisa prévia sobre o lugar onde a pessoa irá trabalhar,

procurar se existe representação diplomática brasilei-

ra”, alerta.

Informação é a maior defesaDe acordo com o relatório “Uma Aliança Global

contra o Trabalho Forçado”, publicado pela Organiza-

ção Internacional do Trabalho (OIT), em 2005, cerca

de 2,4 milhões de pessoas no mundo foram traficadas

para serem submetidas a trabalhos forçados. A OIT

calcula que 43% dessas vítimas sejam subjugadas

para exploração sexual; 32%, para exploração eco-

nômica; e 25% são traficadas para uma combinação

dessas formas ou por razões indeterminadas. O rela-

tório aponta ainda que o lucro total anual produzido

com o tráfico de seres humanos chega a 31,6 bilhões

de dólares. A América Latina responde por 1,3 bilhões

de dólares.

Segundo dados da “Pesquisa e diagnóstico do

tráfico de pessoas para fins de exploração sexual e

de trabalho no Estado de Pernambuco”, coordenado

pela professora de Direito Penal da Universidade Ca-

tólica de Pernambuco, Karina Nogueira Vasconcelos,

o perfil das vítimas é basicamente o mesmo: pesso-

as que não têm dinheiro ou não têm oportunidade de

trabalhar ou estudar e querem melhorar suas vidas.

Os dados revelam que são, geralmente, mulheres e

crianças oriundas de países em desenvolvimento.

“Ansiosas em busca de emprego, são enganadas por

agências de trabalho e publicidades (anúncios na in-

ternet) que forjam situações com promessas de car-

reiras desejadas, tais como modelo, artista ou ainda

qualquer outro tipo de trabalho lícito, como faxineira,

diarista, au pair (babá), manicure etc.”, avisa.

A promoção de eventos para troca de informa-

ções tem sido incentivada tanto pela Justiça Fede-

ral, como pelo Ministério Público Federal. No mês de

setembro de 2012, a Justiça Federal no Ceará pro-

moveu o Seminário A Justiça Federal e o Combate

ao Crime Organizado. Um dos painéis foi dedicado ao

Tráfico de Pessoas. Também em setembro, o Minis-

tério Público Federal promoveu, no Recife, o Encontro

da Rede Ibero-Americana de Procuradores especiali-

zados contra o Tráfico de Pessoas. O evento interna-

cional reuniu, além de procuradores, representantes

de órgãos envolvidos no enfrentamento ao tráfico de

seres humanos, entre os quais o oficial encarregado

do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Cri-

me para o Brasil e Cone Sul (UNODC), José Manuel

24

Page 26: quando seres humanos se tornam coisas

Verifique a idoneidade da pessoa ou da empresa que contratou os seus serviços para viajar e também daquelas que receberão você no exterior.

Use a internet para checar a veracidade das informações que você recebeu. Desconfie dessas informações. Des-confie de informações vagas ou pouco plausíveis.

Informe-se ao máximo sobre como o país de destino da sua viagem trata a questão dos imigrantes (com documen-tos e sem documentos).

Faça uma avaliação cuidadosa; viajantes irregulares correm riscos que vão desde deportação até recolhimen-to para centros de detenção ou confisco dos bens e do dinheiro.

Se você contraiu uma dívida para financiar sua viagem, esteja atento a todas as implicações do valor que lhe será cobrado na volta, às condições de pagamento, às taxas de juros e ao tempo estabelecido no acordo para quitação da dívida. É importante que você esteja informado sobre as consequências, caso decida não cumprir o acordo até o fim. Oficialize essas condições em um documento escri-to, deixando uma cópia em seu poder e outra adicional no Brasil, com pessoas de sua confiança.

Esteja atento às condições de trabalho oferecidas e ao tempo de permanência legal no país de destino. Lá, você também terá direitos a serem assegurados, indepen-dentemente de sua nacionalidade; exija que esses direitos sejam respeitados pelas pessoas no seu país de destino. Caso você tenha dúvidas, procure as autoridades locais en-carregadas da fiscalização dos ambientes de trabalho, os sindicatos ou as ONGs que trabalham com o tema.

Faça uma pesquisa prévia sobre pessoas, lugares, pre-ços, costumes e língua. Desconfie de elogios exagerados e da tentativa de descrever a realidade de outro país como de fácil adaptação, tranquila e de sucesso garantido.

Mantenha cópias (físicas e digitais) de todos os seus do-cumentos pessoais em seu poder e deixe cópias com pes-soas de sua confiança no Brasil. Não importa que outras pessoas estejam com os seus documentos originais: todo brasileiro tem o direito de solicitar novas vias sempre que precisar e onde estiver. Assim, em caso de perda, furto, roubo ou retenção de seu passaporte, contate imediata-mente o Consulado do Brasil mais próximo.

Antes de viajar, anote o número de contato da Embai-xada ou do Consulado do Brasil no seu país de destino e informe-se sobre como fazer ligações para esses locais. Em alguns países, o Consulado do Brasil mantém um re-gistro dos cidadãos brasileiros residentes na localidade. Se for o seu caso, cadastre seus contatos no Consulado ou na Embaixada assim que chegar ao país de destino.

Na Europa, vários países exigem que visitantes ou resi-dentes providenciem, imediatamente após a chegada, o registro no órgão competente. Veja quais são os requisitos e providencie o seu registro.

Obtenha informações claras sobre o tipo de visto que você receberá e as suas possibilidades e limitações, como prazo de permanência legal e possibilidade de renovação e mudança de um tipo de visto para outro.

Faça contato constantemente com sua família e seus amigos no Brasil, fornecendo sempre detalhes de onde você pode ser facilmente localizado. Endereço, telefone e e-mail para contato podem fazer uma grande diferença na garantia da sua segurança.

Aprenda um pouco da língua local antes de viajar. Car-regue sempre com você uma pequena lista das palavras mais usadas no seu país de destino.

Converse com pessoas que tiveram experiências si-milares e faça muitas perguntas. Não fique com vergonha, pergunte o óbvio. E, mais uma vez, cheque todas as infor-mações recebidas. A internet pode ser uma grande aliada para que você permaneça em segurança fora do Brasil.

Importante: quando você estiver fora do Brasil, o Consula-do e a Embaixada do Brasil são os órgãos do Governo bra-sileiro que estarão sempre à sua disposição para auxiliá-lo em qualquer dúvida ou situação de necessidade.

Alguns telefones importantes:

Disque 100 – Disque Denúncia Nacional

Disque 180 – Central de Atendimento à Mulher

Disque Denúncia/PE .........................................................81-3421.9595

Departamento de Polícia da Mulher..................................81-3184.3568

Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas/PE .........81-3183.5297

Cuidados que você deve ter antes de viajar

Fonte: NETPPE

Page 27: quando seres humanos se tornam coisas

Martinez. O oficial falou sobre o panorama geral

do tráfico no mundo, abordou as diferenças entre

tráfico de pessoas e contrabando de migrantes. “A

diferenciação entre os delitos reside em três pontos

principais: consentimento, finalidade da exploração

e intrínseca transnacionalidade. O tráfico de pesso-

as se configura com ou sem consentimento da víti-

ma”, afirmou Martinez.

O procurador-geral da República, Roberto Gur-

gel, que esteve presente ao Encontro da Rede Ibero-

-Americana de Procuradores especializados contra

o Tráfico de Pessoas, realizado no Recife (PE), em

setembro de 2012, disse que não há como com-

bater o tráfico, adequada e efetivamente, sem que

exista a integração entre os diversos países, so-

bretudo entre aqueles que têm fronteiras comuns.

“A instituição dessa Rede vai permitir uma agiliza-

ção muito maior dos contatos entre os Ministérios

Públicos, portanto, uma repressão mais eficiente

desse delito, que é um dos mais tenebrosos que

nós temos hoje na nossa sociedade”. O procura-

dor-geral da República falou da importância de um

banco de dados para municiar a rede com dados

confiáveis. “Nós temos algumas iniciativas nesse

sentido, mas é preciso que esses dados sejam mais

confiáveis e que tenham uma base científica, mais

sólida. Nós já temos o próprio escritório das Nações

Unidas sobre Drogas, que tem bastante informação

a esse respeito. Há outras bases de dados, mas é

preciso agora consolidar essas diversas bases para

que possamos ter dados mais completos e mais

confiáveis”

Gurgel também falou da dificuldade da forma-

ção do banco de dados, em virtude do silêncio das

O tráfico de seres humanos também está nas telas dos cinemas. A coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de Pernambuco (NETP/PE), Jeanne Aguiar, que percorre diversos municípios para levar informações sobre o tráfico de seres humanos, tem uma rela-ção com títulos de filmes sobre a temática. Com a ajuda dela, selecionamos sete filmes:

1. Tráfico Humano, de Christian Duguay (USA/ Canadá, 2005). Uma agente da polícia se depara com os horrores da exploração sexual quando tenta expor uma rede mundial que escraviza mulheres. Entre elas, estão uma ucraniana de 16 anos, uma mãe solteira russa, uma órfã romena de 17 anos e uma adolescente dos EUA. Duração: 2h e 56 min. Suspense.

2. Anjos do Sol, de Rudi Lagemann (Brasil, 2006) Uma pré-adolescente nordestina, de 12 anos, é vendida pela sua família e enviada para um prostíbulo em um garimpo da flo-resta amazônica. Apesar de conseguir fugir e atravessar o país, ela novamente se depara com a prostituição no Rio de Janeiro. Duração: 1h e 32 min. Drama.

3. Desaparecidos (Trade), de Marco Kreuzpaintner (USA, Alemanha, 2007) Uma garota de 13 anos é sequestrada por traficantes na Cidade do México. Seu irmão, de 17 anos, une-se a um policial Ray(Kevin Kline), que perdeu a família para o tráfico de pessoas e, juntos, lutam para tirar a menina da gangue criminosa. Duração: 1h e 29 min. Drama.

4. Para Sempre Lilya, de Lukas Moodysson (Suécia/Di-namarca, 2002). Uma garota russa, de 16 anos, foi aban-donada pela mãe. Depois de ser obrigada a sair de casa e morar em um apartamento precário, recebe um convite do namorado para morar na Suécia, tendo a chance de mudar completamente de vida. Duração: 1h e 49 min. Drama.

5. Cinderelas, Lobos & Um Príncipe Encantado (2009), um documentário com Joel Zito Araújo. Cerca de 900 mil pessoas atravessam as fronteiras internacionais para aten-der ao mercado de exploração sexual. Apesar de todos os perigos, várias mulheres entram neste universo por acreditar que possam mudar de vida e encontrar um príncipe encanta-do. Duração: 1h e 47 min. Documentário.

6. Busca Implacável: Liam Neeson vive um ex-soldado que, em meio a uma viagem à Europa, tem a filha raptada. Ele irá utilizar todos seus conhecimentos de guerra para res-gatá-la, antes que ela seja vendida. Duração: 1h e 33 min. Ação e suspense.

7. Senhores do Crime (2007) A trama é centrada na histó-ria da parteira Ana (Naomi Watts), que trabalha em um hos-pital em Londres e acaba testemunhando a morte de uma jovem durante o parto e decide descobrir sua família para entregar a filha, mas acaba colocando-a em perigo quando se depara com o lucrativo negócio do tráfico de sexo, co-mandado por uma organização criminosa da Rússia. Dura-ção: 1h e 40 min. Ficção.

Page 28: quando seres humanos se tornam coisas

vítimas. “Dificulta muito, porque nós temos vítimas

que tendem precisamente ao silêncio. São pessoas

em condições sociais desfavoráveis e que se sentem

extremamente humilhadas e, por isso, por um lado,

procuram esconder essa situação. Por outro, há um

temor muito grande de uma retaliação ao se falar. En-

tão esse é um dos dados que efetivamente dificultam

essas informações”.

Quando a arte imita a vidaO tráfico internacional para fins de exploração se-

xual é um dos temas da novela das 21h da TV Globo,

Salve Jorge, da autora Glória Perez. “A escravidão do

século XXI!”, é assim que a autora resume o tema

abordado pela novela. Em conversa com blogueiros,

Glória Perez justificou a escolha. “Achei importante fa-

lar sobre esse tema, pois é um problema imenso e as

pessoas acham que não existe. E o tráfico ocorre de

diversas formas. Não estou dizendo que todo trabalho

no exterior seja mal intencionado, mas as pessoas

têm que desconfiar quando é tudo muito fácil. Eu es-

pero que a novela sirva como alerta para olharem com

mais critério para esse tipo de proposta para fora do

país”, revela a autora.

A prática criminosa, embora tenha surgido há sé-

culos, é um problema que ainda desafia as polícias,

o Judiciário, o Ministério Público e os organismos in-

ternacionais. O crime é previsto no art. 231 do Códi-

go Penal Brasileiro – tráfico internacional de pessoas

com fins de exploração sexual. A pena prevista é de

3 a 8 anos de reclusão. Em caso de vítima menor de

idade, a pena passa para 4 a 10 anos de reclusão. E

havendo morte resultante de violência, sobe para 12 a

25 anos de reclusão. O art. 244 do Estatuto da Criança

e do Adolescente (ECA) prevê que submeter criança

e adolescente à exploração sexual é crime.

Para o desembargador federal Marcelo Navar-

ro, quando uma novela de sucesso fala de um tema

como o tráfico de seres humanos, o assunto passa

a ter uma maior visibilidade. “A novela pode ajudar

efetivamente. Esse é um crime horroroso. Um crime

que atenta contra os direitos humanos mais funda-

mentais, atinge a liberdade sexual, a liberdade de

decidir e, muitas vezes, a liberdade física, porque as

pessoas são submetidas a maus tratos. Em alguns

casos, chega até a tortura, não apenas para submeter

a práticas sexuais que elas não fariam voluntariamen-

te, mas também, muitas vezes, porque apanham para

calarem, para terem medo”, destacou Navarro.

“A novelista Glória Perez, filha do saudoso ministro

Jerônimo Ferrante, do antigo Tribunal Federal de Re-

cursos, e também marcada pelo sofrimento do brutal

assassinato da sua filha, Daniela, tem conhecimento

e vivência bastante para despertar a opinião pública

nacional para a necessidade de uma repressão mais

eficaz a esse tipo de delito. Certamente, buscará no

enredo ficcional inserir dados de uma realidade igno-

miniosa, trágica, revoltante, para convencer a plateia

diária de muitos milhões de espectadores, de que

é preciso que todos colaborem com as autoridades

para fornecer informações sobre os descaminhos que

geralmente começam com a abordagem de famílias

carentes, de jovens desesperadas pela falta de opor-

tunidades, de emprego, ou pela vilania do subem-

prego, e seguem com o embarque para um destino

ilusório, terminando com a mais terrível subjugação

aos interesses das quadrilhas”, ressaltou o também

desembargador federal do TRF5, Lázaro Guimarães.

27

Page 29: quando seres humanos se tornam coisas

À L

uz d

os D

ireito

sE N S A I OF O T O G R Á F I C O

Page 30: quando seres humanos se tornam coisas

Avisos do PrataEnsaio fotográfico:

Marcos CostaIntervenções textuais:

Isabelle CâmaraLivre inspiração na obra

Menino do mato, de Manoel de Barros

Page 31: quando seres humanos se tornam coisas
Page 32: quando seres humanos se tornam coisas

Era uma casa muito bonitaTinha janelas, varandas e ripasMas ninguém podia entrar nela, nãoPorque a casa era só degradaçãoNinguém podia dormir na redePois, ao abrir a porta, podia derrubar a paredeNinguém podia fazer xixiPorque ninguém sabe como se chega ali

Page 33: quando seres humanos se tornam coisas

Vinha de longe o ruído daqueles galhosDe enroscar, esgueirar, emaranhar, entranharE de perto ouvi o silêncio da casaE achei silêncios e ruídosE isso não é metáfora, Manoel de Barros

Page 34: quando seres humanos se tornam coisas

Sabe aquela pedra?Um dia ela foi arremessada naquela porta

Hoje não há mais crianças para quebrar janelasNem mulheres lavando roupas no açude

Nem enchendo aqueles cômodos com vozes coloridasA pedra dormita ali

No pedestal da memória do lugar que um dia foi

Page 35: quando seres humanos se tornam coisas

Conto cada degrau como se fosse o tempoDe manhã bem cedo, queria ser sonhada pelos passarinhos.Ao meio-dia, sentir o gosto de terra molhadaNo início da noite, ser roubada como jasmim para perfumar os cabelos da morenaE naquele azul madrugada, não me embaraçar nos meus escombros verbais

Page 36: quando seres humanos se tornam coisas

Os meninos e as meninas receberam a sorte do esquecimentoAchavam que o seu esquecimento era maior que o do lugar

Mas o esquecimento do lugar era maior, continha o esquecimento de si mesmo. E dos outros.

Page 37: quando seres humanos se tornam coisas

É preciso desver o mundo para entrar naquele lugar imenso e sem lados.Desver o que não se vê?Aquele prata que estava ali... Cadê?Certas visões parecem não significar nada. Mas são memórias do que não houve

Page 38: quando seres humanos se tornam coisas

Naquele dia eu vi a tarde desaberta nas margens do rioMas não era um rio de águas que flui singela ou caudalosamente rumo ao marEra um rio de pedras vermelhas na boca da mataEu queria mesmo que daquela boca gritassem cobras, lagartos e zumbidosEu queria que essas palavras de joelho no chão pudessem ouvir as origens da terraMas a mata não falaSuas raízes sustentam o silêncio do abandono.

Page 39: quando seres humanos se tornam coisas

Recursos tecnológicos facilitam o cotidiano das pessoas com deficiência, garantindo a implementação da Lei de Acessibilidade

São Paulo, 22 de julho de 2012,

18h30, voo 3971. Todos os passa-

geiros deixaram a aeronave, menos

um, Marcelo Rubens Paiva, escritor,

jornalista e paraplégico. Após algum

tempo de espera, ele utilizou uma

rede social para pedir ajuda pois, se-

gundo ele, havia sido esquecido pelos

comissários dentro do avião. Foi auxi-

liado para deixar a aeronave somente

uma hora depois do desembarque.

Em sua defesa, a companhia aérea

relatou que a espera foi decorrente

do fato de que outros voos também

possuíam passageiros que utilizavam

cadeiras de rodas e que, portanto,

precisavam do mesmo equipamento

especial para locomoção.

O caso do escritor e jornalista paulista repercutiu

na imprensa, mas a realidade está além das divulga-

ções da mídia. De acordo com o Censo de 2012 do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),

existem cerca de 45,6 milhões de deficientes físicos no

país. Destes, 14 milhões se encontram no Nordeste, o

que representa 23,9% da população brasileira e 26,6%

dos nordestinos. Contudo, a vida das pessoas com de-

ficiências físicas está sendo melhorada, sobretudo pelo

avanço da tecnologia.

Dentre os diversos tipos de deficiência, a que atin-

ge a maior parte do Brasil é a visual. São considera-

dos deficientes visuais não somente aqueles que não

enxergam de modo algum, mas também quem possui

dificuldade para ver, mesmo usando óculos. Segundo

dados do IBGE, essas pessoas ocupam o primeiro lugar

no índice de deficientes no País, totalizando cerca de

35,7 milhões de brasileiros. Porém, com o auxílio de

A tecnologia que inclui

Joana Medeiros e Camila Wanderley

Fund

amen

tais

Page 40: quando seres humanos se tornam coisas

aplicativos, o deficiente visual pode realizar suas ativi-

dades normalmente.

Um exemplo é o de Carmem Gonçalves de Olivei-

ra, 43 anos. Mãe de dois filhos, professora pela manhã,

telefonista no Tribunal Regional Federal da 5ª Região

- TRF5 à tarde e dona de casa à noite. Com o auxílio

da tecnologia, Carmen diz que não possui dificuldades.

“Posso usar o computador normalmente com o siste-

ma de voz, já o telefone celular eu utilizo sem o auxílio

do sistema de voz”.

Nos últimos tempos, vários sistemas foram cria-

dos para dar acessibilidade ao deficiente visual, entre

eles o Dosvox, Virtual Vision, Window Bridge, Window-

-Eyes e Linuxacessivel. Todos podem ser instalados no

computador e funcionam por comando de voz, além

de servirem para descrever o que se encontra na tela,

sejam imagens ou textos, podendo também ser confi-

gurados para outros idiomas.

Em segundo lugar, estão os deficientes motores,

que somam 13,2 milhões da população brasileira. Essa

deficiência engloba as pessoas que têm dificuldade

demasiada ou permanente de caminhar ou subir esca-

das, ainda que utilizando prótese, bengala ou aparelho

auxiliar.

Dentre esses 13,2 milhões de brasileiros, encon-

tra-se Charles Heitor Barbosa Pires. Estudante do 9°

período de Direito, Charles ficou conhecido por sofrer

um ataque de tubarão em 1999. Depois de sete anos,

entrou na justiça contra o Estado e exigiu uma prótese.

Segundo Charles, “o SUS (Sistema Único de Saúde)

nos oferece próteses, após passarmos por alguns exa-

mes, mas elas não estão tão atualizadas, machucam.

Por isso, durante uma aula, tive a esperança de que,

entrando com uma ação judicial, eu poderia conseguir

uma melhor”.

Em abril de 2012, Charles recebeu uma prótese

importada da Escócia, feita sob medida. Todavia, de-

vido à tecnologia avançada, ele ainda está testando

o equipamento e precisa viajar para Porto Alegre, em

busca de médicos mais especializados nesta área.

Com sede em seis estados brasileiros, a AACD é

uma associação voltada especialmente para pessoas

como Charles. Com tecnologia avançada e novas téc-

nicas de produção, a AACD conta com profissionais da

área de saúde para realizar o tra-

balho de reabilitação e com mais

de 80 especialistas em suas fá-

bricas que, a partir de prescrições

médicas, criam próteses, coletes

e acessórios, como cadeiras de

posicionamento e adaptações

para cadeiras de rodas.

Charles Heitor Barbosa (dir.) luta há 11 anos para conseguir uma prótese adaptada ao seu corpo

Page 41: quando seres humanos se tornam coisas

Em geral, as próteses personalizadas podem ter

um alto custo, entretanto, no cotidiano, é possível vi-

sualizar equipamentos tecnológicos disponíveis gra-

tuitamente para a população, entre eles elevadores

para cadeiras de rodas nos ônibus. De acordo com o

Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros

(Urbana-PE), atualmente, 1.764 ônibus do Recife e Re-

gião Metropolitana possuem este equipamento.

Para os que possuem uma situação finaceira mais

favorável, o número de veículos adaptados para defi-

cientes físicos também vem crescendo. Recentemente,

a Associação Brasileira das Indústrias e Revendedores

de Produtos e Serviços para Pessoas com Deficiência

(ABRIDEF) conseguiu, junto ao governo, a isenção de

impostos veiculares para os carros adaptados. O preço

desses automóveis tem grande variação, dependendo

da quantidade de acessórios e modificações de que

o usuário necessite, oscilando entre R$ 40.000 e R$

80.000 para os carros populares.

Para ler, ouvir e pensar A deficiência auditiva, que atinge 9,7 milhões

dos brasileiros, está em segundo lugar. Estão inclu-

sos nesse grupo aqueles que têm problemas em

ouvir, mesmo com o uso de aparelho auditivo, e os

que têm incapacidade permanente de escutar. Mas a

tecnologia ampliou as técnicas de comunicação entre

eles e com outras pessoas que não apresentam tais

dificuldades.

Meios de conversação utilizados pela sociedade

de modo corriqueiro, como e-mail, chats e mensagem

em aparelhos móveis, modificaram o cotidiano dos

que não podiam ouvir. E para os que não são 100%

surdos, já existem aparelhos auditivos que podem ser

adquiridos até mesmo gratuitamente pelo SUS, após

uma avaliação médica.

Outro aparato que está entrando na vida dos defi-

cientes auditivos, desde 2009, é uma criação do músi-

co e educador Irton Silva. A invenção permite que por-

tadores de deficiência auditiva toquem instrumentos a

partir de um equipamento com sequenciador eletrônico

e uma combinação de lâmpadas com cores e tama-

nhos variados, que representam não só a estrutura de

um compasso musical, como também a descrição vi-

sual das frases rítmicas.

Em último lugar, estão os 2,6 milhões de deficien-

tes mentais ou intelectuais, que são pessoas portado-

res de alguma permanência ou limitação nas suas ativi-

dades habituais, como trabalhar, brincar, se comunicar,

aprender ou cuidar de si mesmas.

Sequenciador eletrônico possibilita aos portadores de deficiência auditiva o aprendizado da música

40

Page 42: quando seres humanos se tornam coisas

A deficiência, qualquer que seja o tipo, é apenas

uma característica que difere determinados indivíduos

na sociedade. Porém, a fim de estabelecer equidade

social, merecem respeito e têm garantias legais, como

afirma a Lei da Acessibilidade (Lei 10.098/2000). Esta

lei prevê, entre outras determinações, o atendimento

prioritário e condições gerais da acessibilidade, não

somente em vias e locais públicos, mas também em

ambientes fechados como bares, bibliotecas, clínicas

e, principalmente, aeroportos.

Vivendo sem limitesAlém dos trabalhos de ONGs e empresas voltadas

para serviços especiais aos deficientes físicos, essa

parte da população pode contar, também, com o Plano

Viver Sem Limite, do Governo Federal, que integra o

Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência.

Lançado em novembro de 2011, com um investimento

previsto na ordem de R$ 7,6 bilhões até 2014, o plano

engloba ações nas áreas de saúde, educação, inclusão

e acessibilidade, com ideias desenvolvidas por 15 mi-

(+) Direitos

Ações do Governo FederalSite: www.pessoacomdeficiencia.gov.brAACD Pernambuco End.: Av. Advogado José Paulo Cavalcanti, 155

Ilha Joana de Bezerra, Recife/PEFone: 81-3419.4000Site: www.aacd.org.brE-mail: [email protected].: Rua Cláudio, 310 Vila Romana, São Paulo/SPFone: 11-3876.9850 / 11-3445.2373Site: www.abridef.org.brE-mail: [email protected] Acaape - Som da PeleEnd.: Rua da Harmonia, 489 Casa Amarela, Recife/PESite: somdapele.blogspot.com/E-mail: [email protected]

APEC - Associação Pernambucana de CegosEnd.: Praça Prof. Barreto Campelo, 1238 Torre, Recife/

PEFone: 81-3227.3000Site: www.apecnet.com.br/ASSPE – Associação de Surdos de PernambucoEnd.: Pc Prof Barreto Campelo, 1238 Torre, Recife/PEFone: 81-3236.6299Site: www.asspe.com.br/E-mail: [email protected]/PE - Associação dos Deficientes Físicos Mo-

tores de PernambucoEnd.: Rua Manoel Corte Real, 686 Engenho do Meio,

Recife/PEFones: 87-3453.1473 / 87-3475.4056 E-mail: [email protected]

Conheça algumas ONGs e sites de apoio à acessibilidade:

nistérios e a participação do Conselho Nacional dos Di-

reitos da Pessoa com Deficiência (Conade), que trouxe

as contribuições da sociedade civil.

Entre as ações previstas estão o PRONATEC (Pro-

grama Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Empre-

go), com a Bolsa Formação, que conta com 800 horas

de cursos educacionais para nível médio e 160 horas

de cursos profissionalizantes para deficientes. Nesse

caso, o curso é gratuito e os estudantes têm direito à

alimentação, transporte e material didático.

Outra ação integrante do Viver Sem Limites é o

Minha Casa, Minha Vida II, onde 1,2 milhões de resi-

dências adaptadas estão previstas para famílias que

possuam deficientes físicos e renda até R$1.600. Nes-

sas casas, todos os vãos são adaptados. O Plano Viver

Sem Limites também garante uma melhor situação fi-

nanceira aos portadores de deficiência, com uma linha

de crédito registrada pelo Banco do Brasil, para facilitar

investimentos necessários, como cadeiras de rodas

motorizadas, computadores portáteis com teclas em

braile e softwares de voz.

Page 43: quando seres humanos se tornam coisas

Toda escolha será respeitadaAvanços legais garantem aos grupos LGBTT maior segurança na luta contra a intolerância, a discriminação e o preconceito

Josie Marja

Soci

edad

e e

Dire

itos

No início do mês de setembro,

a homofobia foi amplamente discu-

tida nas redes sociais: opiniões divi-

didas e fóruns acalorados. O deba-

te começou com a indignação dos

internautas pernambucanos com

a campanha “Pernambuco Não Te

Quer”, desenvolvida por um grupo

de religiosos integrantes do Fórum

Pernambucano Permanente Pró

Vida – do Movimento Javé Nossa

Justiça. A campanha apresentava

material publicitário com conotação

homofóbica, uma vez que incluía

homossexualismo (sic) no mesmo

bojo de práticas criminosas, como

a exploração sexual de menores e

a pedofilia.

O debate ficou ainda mais

acirrado com a publicação de um

anúncio da campanha em jornais

de grande circulação de Pernam-

buco. A peça publicitária, inspirada

no slogan da campanha “Recife te

quer”, desenvolvida pela Secretaria

de Turismo do Recife, ultrapassou

as fronteiras do Estado e provocou reações de diver-

sos segmentos da sociedade civil, dos movimentos

de luta voltados para o segmento LGBTTs (lésbicas,

gays, bissexuais, travestis e transexuais), políticos e

internautas de diversos estados do País.

A discussão saiu das redes sociais e foi parar em

comunicados oficiais das Secretarias de Defesa dos

Direitos Humanos das esferas federal, estadual e mu-

nicipal. Entre eles, destaca-se a nota oficial publicada

pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência

da República (SDH/PR). “Tal campanha seria de gran-

de relevância se estivesse de fato voltada a enfrentar

crimes abomináveis, como a exploração sexual de

crianças e adolescentes, o turismo sexual e a pedofi-

lia. No entanto, ao incluir o seu repúdio os homosse-

xuais, a campanha fere os Direitos Humanos e pro-

move o ódio contra a comunidade de Gays, Lésbicas,

Bissexuais, Travestis e Transexuais”, diz parte da nota.

A nota também destaca o número “preocupante”

de homicídios de LGBTT. De acordo com o relatório da

SRH/PR, em 2011, foram praticados 278 homicídios

em todo país. O estudo aponta, ainda, que o Esta-

do de Pernambuco está em 6º lugar entre os estados

brasileiros em número de homicídios com caráter ho-

mofóbico.

A opinião da SDH/PR é compartilhada pelo pro-

Page 44: quando seres humanos se tornam coisas

Para Rafael Nicéas, as pessoas só enxergam erotismo e promiscuidade nas relações homossexuais

dutor cultural Leonardo Araújo*, que atribui aos mo-

vimentos homofóbicos institucionalizados todas as

formas de violência física e moral praticadas contra

os homossexuais. “O preconceito e a discriminação

estão quase sempre presentes nas relações sociais,

quer seja de maneira explicita ou velada”, afirma. Ele

acrescenta que campanhas como as do Movimento

Pró-Pernambuco servem para estimular o comporta-

mento hostil, violento e, na maioria das vezes, vitima

as pessoas. “Atitudes como esta, acentu-

am a incapacidade de algumas pessoas

ou instituições em respeitar e aceitar as

diferenças. Principalmente os que têm pre-

ferências sexuais diferentes dos padrões

considerados ‘normais’ pela sociedade”,

ressalta.

A servidora pública Letícia Aguiar

(evangélica praticante) rechaça a tese de-

fendida pelo produtor cultural, e afirma que

a violência reside no fato de o segmento

homossexual violar os ensinamentos cris-

tãos. “Quando Deus criou os dois sexos,

ficou claro que o relacionamento sexual e

amoroso deveria acontecer apenas entre o homem e

a mulher. Caso contrário, ele teria criado apenas um

sexo”, defende.

Opiniões à parte, o caso agora está sendo inves-

tigado pelo Ministério Público de Pernambuco, uma

vez que a Organização Não Governamental Leões do

Norte formalizou uma denúncia contra o Fórum Pró

Vida. Por sua vez, o movimento publicou em sua pá-

gina na internet um comunicado informando que es-

tava reunindo provas em vídeo, e-mails, mensagens

no Facebook e no Twitter, reportagens e documentos

recebidos para uma possível ação. De acordo com o

comunicado, o Fórum e os seus parceiros estariam

sofrendo ameaças, ataques e intimidações.

Discriminação e PreconceitoA discriminação e o preconceito são os maiores

entraves enfrentados pelos homossexuais. Por não

estar de acordo com os padrões de comportamento

vigentes na sociedade, a homossexualidade é marca-

da pelo estigma social e renegada à marginalidade.

No artigo “Liberdade sexual e direitos humanos”, a

advogada e desembargadora aposentada Maria Be-

renice Dias afirma que a discriminação e o precon-

ceito de que são alvo os homossexuais dão origem a

uma categoria social digna de proteção. “A hipossu-

ficiência não deve ser identificada somente pelo viés

econômico. É pressuposto e causa de um especial

*Leonardo Araújo é um nome fictício do entrevistado

43

Page 45: quando seres humanos se tornam coisas

tratamento dispensado pelo Direito. Tanto que devem

ser reconhecidos como hipossuficientes o idoso, a

criança, o deficiente, o negro, o judeu e também a

mulher, porque ela, como as demais categorias, sem-

pre foram alvo da exclusão social”, afirma Berenice.

A exclusão provoca rejeição. “Nossa maior difi-

culdade é a aceitação da sociedade”, diz Luciana Sil-

va, assistente da Gerência de Livre Orientação Sexual,

da Prefeitura da Cidade do Recife. A aceitação à qual

ela se refere é a do respeito à livre escolha sexual e

dos relacionamentos homoafetivos.

A questão da afetividade, segundo o assessor da

Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Seguran-

ça Cidadã, Rafael Nicéas, é outro ponto que merece

ser destacado nos relacionamentos entre pessoas do

mesmo sexo. Para ele, a sociedade não enxerga o

amor, o carinho e o respeito que existem nos relacio-

namentos homoafetivos. “As pessoas acham que só

existem erotismo e promiscuidade”, desabafa.

O operador de Call Center e transformista Wiliam

Monteiro, 27, morador da Zona Norte de São Paulo,

sentiu essa exclusão quando ainda frequentava uma

Igreja Evangélica. Criado desde os cinco anos nessa

religião, Wiliam começou a sentir a discriminação

quando atingiu a adolescência. Ele não gosta muito de

lembrar o período, mas as pessoas que conviveram

com ele contam que, por causa da sua escolha, ele

era afastado das atividades promovidas pela Igreja,

como o grupo de orações e os grupos de dança - por

causa da forma como se expressava no palco.

Aos 22 anos, ele deixou de frequentar a Igreja e

resolveu assumir sua orientação sexual. “Não me sin-

to ofendido nem arrependido pelo tempo que passei

na igreja, ainda que tenha deixado a religião por falta

de acolhimento. Deus jamais vai excluir um filho dele

por conta da diferença”, acredita. “Quando eu era in-

cubado e ainda não tinha me descoberto, não sentia a

felicidade que sinto hoje”, afirma.

Avanços na Legislação MunicipalEm 2001, através da Lei 16.730, a Prefeitura do

Recife reestruturou o sistema previdenciário, garan-

tindo aos companheiros homossexuais do funciona-

lismo municipal os mesmos direitos dos casais he-

terossexuais. Em maio de 2003, o então prefeito do

Recife e hoje deputado federal, João Paulo Lima e Sil-

va, assinou portaria que concedeu a primeira pensão

a dependente homossexual do Brasil. O benefício foi

concedido com base na Lei Municipal 16.730/2001,

regulamentada pelo Decreto 19.217/2002.

O município também vem implementando po-

líticas públicas e criando leis e decretos para asse-

gurar os direitos do segmento LGBTT. Como a Lei nº

16.780/2002, que prevê a proibição de qualquer for-

ma de discriminação ao cidadão com base em sua

Amparo Araújo lembra que, no Recife (PE), foram sancionadas leis de proteção aos LGBTTs e de punição aos atos discriminatórios praticados contra eles

Page 46: quando seres humanos se tornam coisas

orientação sexual, foram instituídos a Lei 17.025/04,

que dispõe sobre a punição de atos discriminatórios

ao homossexual, bissexual ou transgênero, além de

instituir o Dia da Diversidade Sexual, celebrado em

28 de julho; e o Decreto nº 26.029/2011, que regula-

menta as referidas Leis, estabelecendo normas gerais

e aplicações de sanções administrativas por atos de

discriminação com base na prática e no comporta-

mento sexual do indivíduo.

O Estado, por sua vez, instituiu o Decreto

35.051/2010, que dispõe sobre a inclusão do nome

social de travestis e transexuais nos registros esta-

duais nos âmbitos da administração pública estadual

direta, autárquica e fundacional.

TRF5 sedia congresso sobre Direito Homoafetivo

O relacionamento entre duas pessoas do mes-mo sexo e os efeitos jurídicos patrimoniais, afetivos, previdenciários, de responsabilidade civil nas relações homoafetivas, além da divulgação do projeto do Es-tatuto da Diversidade e do seu papel na defesa dos direitos homoafetivos, estiveram na pauta do II Con-gresso Nacional de Direito Homoafetivo, realizado em agosto de 2012, no auditório do Pleno do Tribunal Re-gional Federal da 5ª Região – TRF5.

O encontro, coordenado pela advogada e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Maria Berenice Dias, teve o propó-sito de aprofundar os conhecimentos na área. Duran-te três dias, diversos palestrantes debateram sobre

o Direito Homoafetivo, entre eles a desembargadora federal Margarida Cantarelli, que levou à discussão o tema “A relação homoafetiva: direito à pensão estatu-tária”.

Para enriquecer o debate, a magistrada dis-correu sobre um processo julgado, em 2001, pela Pri-meira Turma desta Corte, do qual foi relatora, onde foi dado provimento ao pleito do companheiro de um funcionário público federal, que se habilitou a receber a pensão. “Peguei esse caso concreto para mostrar como, em 10 anos, evoluiu a compreensão dessa concessão de pensão até o julgamento do STF, em 2011, da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4277)”, ressaltou a magistrada.

Com base na Lei nº 17.025, a Secretaria de Di-

reitos Humanos e Segurança Cidadã está solicitando

a punição de um bar e restaurante, localizado em Boa

Viagem. A secretária, Amparo Araújo, conta que, pela

primeira vez, a prefeitura vai punir um estabelecimen-

to comercial pela prática de discriminação sexual. O

restaurante, segundo denúncia, teria discriminado

duas mulheres em razão de sua orientação sexual.

Além das leis municipais, segundo Amparo Araú-

jo, dentre as políticas públicas implementadas pela

Prefeitura do Recife, existem o Fórum Intersetorial, a

Plenária de Orçamento Participativo LGBTTs, a Gerên-

cia de Livre Orientação Sexual e o Disque 100 para

receber denúncias.

45

Page 47: quando seres humanos se tornam coisas

Wolney Mororó

Apesar da contribuição do setor de carcinicultura à economia nacional, os ambientalistas alertam para os danos do cultivo de camarão ao meio ambiente

Am

bien

te In

teiro

A iguaria que faz a festa dos

chefs de cozinha e do paladar de

muita gente foi parar na justiça. No

último dia 2 de agosto, o Tribunal

Regional Federal da 5ª Região –

TRF5 julgou apelação cível do Minis-

tério Público Federal (MPF) contra a

Destilaria Jacuípe S/A, empresa de

criação de camarões, incorporada

no curso do processo pela Desti-

laria Miriri S/A e Superintendência

de Administração do Meio Ambien-

te (SUDEMA), por supostos danos

ambientais causados em área de

mangue e de preservação do peixe-

-boi. A relatoria do processo foi da

desembargadora federal convocada Cíntia Menezes

Brunetta.

A sentença do juízo da 3ª Vara Federal da Paraíba

já havia declarado inválidos os Termos de Compromis-

so e o Aditivo firmados em 2002 entre a SUDEMA e a

Destilaria Jacuípe S/A, justamente pela denúncia de

danos ambientais. A decisão obrigava a ré a instalar

bacia de sedimentação e sistema de recirculação de

água. Também determinava a recuperação das áreas

da Ilha III da Fazenda Santa Emília I, situadas no muni-

cípio de Rio Tinto (PB).

A Destilaria Miriri apelou, alegando nulidade da

sentença, em função da nulidade da perícia judicial.

O MPF apelou, reafirmando o pedido de desfazimento

das instalações do empreendimento, com recupera-

ção da área ocupada e proibição da prática de atos

Carcinicultura: incremento econômico versus danos ambientais

Page 48: quando seres humanos se tornam coisas

que impeçam a regeneração da vegetação.

A relatora da apelação, constatando o dano am-

biental, reafirmou a invalidade dos Termos de Com-

promisso, confirmou a nulidade da licença emitida

pela SUDEMA e reconheceu a impossibilidade de

concedê-la para empreendimento naquela área. A

magistrada condenou a destilaria a apresentar pro-

jeto de recuperação ambiental, a pagar indenização

no valor de R$ 500 mil por danos morais coletivos e,

ainda, a publicar, em jornal regional, o conteúdo da

sua decisão.

Apesar da grande contribuição do setor de car-

cinicultura no incremento da economia nacional, com

destaque para a produção na região Nordeste, os am-

bientalistas reclamam do preço que a sociedade terá

que pagar, pois a atividade gera danos irreparáveis ao

meio ambiente.

Segundo o mestre em Recursos Pesqueiros e

Aquicultura, Marcelo Soares, para a criação de ca-

marão marinho, o modelo empregado no Brasil utiliza

grandes áreas (viveiros escavados em terra), baixa

densidade de cultivo (até 20 camarões por metro

quadrado) e elevada renovação de água. Esse mode-

lo, chamado de convencional, tem sido bastante criti-

cado por ambientalistas, uma vez que muitas dessas

empresas de produção de camarão despejam efluen-

tes com elevado teor de nitrogênio e fósforo em estu-

ários e áreas de mangue onde estão instalados.

O engenheiro de pesca Itamar de Paiva Rocha,

presidente da Associação Brasileira de Criadores de

Camarão (ABCC), nega que a atividade fira a integri-

dade dos manguezais, pois a área de mangue teria

crescido 36,56% nos estados produtores nordestinos,

entre os anos de 1976 e 2004. “A acusação de que

o uso de metabissulfito, na conservação dos cama-

rões, por ocasião das despescas, causaria sérios da-

nos à saúde dos trabalhadores e da população, não

encontra respaldo na realidade. Em quase 30 anos

de exploração, são raríssimos e duvidosos os casos

de intoxicação atribuídos aos efeitos desse produto,

cujo uso pela carcinicultura atende a uma exigência

das autoridades sanitárias dos países importadores”,

afirmou

A despeito dessa discussão, recentemente foi

criado o sistema BFT (Biofloc Tecnology), uma ino-

vação na técnica do cultivo de camarão marinho em

cativeiro. Esse sistema tem como característica a for-

mação de agregados microbianos, chamados de bio-

flocos, compostos por bactérias, algas filamentosas,

protozoários e zooplâncton.

Diversos estudos demonstram que os bioflocos

formados no sistema BFT, através da adição de uma

fonte de carbono, têm alto valor proteico e podem ser

consumidos pelo camarão cultivado, possibilitando,

assim, a diminuição do nível de proteína e da quanti-

dade de ração utilizada no cultivo, reduzindo, em de-

corrência, os custos de produção.

Outra característica do sistema BFT é a capaci-

dade de reciclar a matéria orgânica acumulada, pois

ocorre a formação de uma comunidade bacteriana

capaz de degradar os resíduos existentes, além de

A aquicultura é o processo de produção em

cativeiro de organismos com habitat predomi-

nantemente aquático. Estão incluídos nesse

gênero a carnicicultura (criação de camarão) e

a piscicultura (criação de peixes).

47

Page 49: quando seres humanos se tornam coisas

Abílio de Sá Barreto lembra que a atividade da aquicultura remonta o período holandês

converter os compostos nitrogenados tóxicos em bio-

massa microbiana.

O modelo BFT, chamado de modelo amigo do

meio ambiente, tem sido apontado como o modo

correto de promover o crescimento da carcinicultura

de forma sustentável, pois apresenta potencial para

aumentar a produtividade, diminuir a quantidade de

proteína na ração, além de gerar menor impacto am-

biental pela possível reutilização de água, e utilizar

áreas menores de cultivo.

Da ciência à mesa Em sua pesquisa, a mestre em Desenvolvimen-

to e Meio Ambiente Eloiza da Silva Bento observou

que existem, basicamente, três modos de produção

e extração na carcinicultura, quanto à natureza da ex-

tensão da produção e de seu nível de sofisticação: a

carcinicultura intensiva, a semi-intensiva e a exten-

siva. A extensiva, objeto específico da pesquisa de

Eloiza, é aquela atividade artesanal na qual a densi-

dade é de um a seis camarões por metro quadrado,

onde o alimento do crustáceo são, principalmente,

as poliquetas (vermes marinhos), que

vivem no mesmo habitat, e sem utiliza-

ção de qualquer produto químico. Essa

atividade geralmente é realizada por

pequenos aquicultores, que se autode-

nominam pescadores.

Camarão também tem história

No Brasil, a aquicultura remonta

ao tempo em que o colonizador alemão Maurício de

Nassau governou a Colônia Holandesa (Nova Holan-

da), no período de 1637 a 1644, com sede no Recife.

Naquele tempo, o administrador construiu os primei-

ros viveiros no Rio Capibaribe, para utilização na pis-

cicultura. Alguns desses viveiros ainda existem até

hoje, como os da Ilha de Deus e São Miguel, no Reci-

fe. A afirmação é do carcinicultor Abílio de Sá Barreto

Filho, presidente da Associação de Aquicultores da

Bacia do Pina.

A criação de camarões marinhos, no Brasil, tem

como marco histórico o ano de 1973. O então gover-

nador do Rio Grande do Norte, José Cortez Pereira de

Araújo, criou o “Projeto Camarão”, às margens do Rio

Potengi, em Natal. Após 30 anos de atividade, havia

sido criada uma nova cadeia produtiva, que se for-

mava a partir do carcinicultor, passando pelo fabri-

cante de equipamentos e insumos, até chegar aos

processadores e exportadores do produto. Em 2004,

a atividade passou por uma grande crise econômica e

sanitária. A desvalorização cambial, a redução de pre-

ços do camarão no mercado internacional, medidas

de antidumping (combate à oferta danosa de preço ao

mercado concorrente) do governo americano e enfer-

Page 50: quando seres humanos se tornam coisas

FOTO: reNaTa ViCTOr

Do cultivo à mesa, o camarão passa por vários caminhos, muitos dos quais afetam o meio ambiente

A mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UFPE Eloiza da Silva avisa

que o modo de produção extensivo do camarão é menos prejudicial ao ambiente

midades virais foram as causas principais da retração

vivida pelo mercado, naquele ano.

A recuperação da atividade ocorreu após adoção

de um antigo modelo produtivo. Foi retomada a cria-

ção de camarões em baixa densidade. Isso implicava

em criatório com menos camarões por metro quadra-

do e necessidade frequente da renovação diária da

água dos viveiros.

Após essa, outras tentativas de cultivo de ca-

marões no Brasil aconteceram por iniciativa do setor

privado e esforço de órgãos governamentais na Baía

de Sepetiba (RJ), na Ilha de Itamaracá (PE), em Natal

(RN) e no Estado de Santa Catarina.

O primeiro ciclo de desenvolvimen-

to no cultivo de camarões no país

ocorreu no início dos anos de 1980 e

se estendeu durante duas décadas,

tendo atingido o pico produtivo no

ano de 2003. Entre os anos de 1998

e 2003, a produtividade aumentou

em 263%, passando de 1.678 ki-

los por hectare, ao ano, para 6.084

kilos.

A atividade extrativista de ca-

marão na Região Metropolitana do

Recife teve início em meados de

1987, quando o pescador Abílio

de Sá Barreto fez as primeiras ex-

periências em viveiros no Rio Ca-

pibaribe, utilizando a larva do camarão “caboclinho”,

aproveitado pelo movimento de oscilação das marés.

Entretanto, a experiência de sucesso só veio alguns

anos depois, com a criação do camarão “cinza”, onde

as larvas são implantadas pelo criador e a produção

é bem maior.

Dentre os fatores que favoreceram a atividade

econômica, se destacam a alta demanda do produto,

a valorização do dólar e a intensificação dos cultivos.

A área de produção foi ampliada nesse espaço tem-

poral em 243%, saltando de 4.320 para 14.824 hec-

tares.

49

Page 51: quando seres humanos se tornam coisas

Impacto ambiental

A Companhia Pernambucana de Controle da Poluição e de Ad-ministração dos Recursos Hídricos (CPRH) foi afastada das atividades de concessão de licenciamentos de navegação transatlântica de turismo em Fernando de Noronha, após o TRF5 acatar, no fim de ou-tubro, recurso do Ministério Públi-co Federal (MPF). Foi levada em consideração, pelo desembargador federal convocado Rubens Canuto, a necessidade de perícia e estudos aprofundados para verificar os im-pactos ambientais na área.

Ex-secretários municipais condenados

Em novembro, a Segunda Tur-ma do TRF5 confirmou a condena-ção por fraude à licitação de dois ex-secretários de Riacho de Santo Antonio, na Paraíba. A operação “sanguessuga”, deflagrada pela Po-lícia Federal, apurou irregularidades praticadas por José Luis Carlos da Silva e Marileide Gonçalves de Lima, que firmaram convênio com o Mi-nistério da Saúde para compra de ambulância e outros equipamentos. A 6ª Vara Federal da Paraíba os con-denou à restituição da quantia de R$ 17.365 aos cofres públicos, além de uma série de restrições legais.

Matrícula para menores de seis anos

Foi confirmada pela Quarta Turma a sentença da 2ª Vara Federal de PE que autorizava a matrícula de menores de seis anos no Ensino Fundamental. Deter-minado em outubro, o acórdão, porém, restringiu a eficácia da sentença ao Estado de Pernambuco. A ida-de mínima de seis anos havia sido determinada pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) alguns dias antes. O MPF considerou inconstitucional e ajuizou ação civil pública. O juiz Cláudio Kitner sentenciou a liberação da matrícula para todas as instituições de ensino do País, decisão que foi limitada pelo TRF5, após recurso da União.

Prefeitos condenados por corrupção

O TRF5 condenou os prefeitos alagoanos Neiwton Silva (Igreja Nova), José Hermes de Lima (Canapi), Carlos Eurico Leão e Lima (Porto Calvo) e Fábio Após-tolo de Lira (Feira Grande) a 12 anos e 6 meses de reclusão, mais 1 ano de detenção e inabilitação po-lítica nos próximos 5 anos, além do pagamento de multa no valor de R$ 15 mil. A condenação ocorreu pela prática dos crimes de responsabilidade de pre-feito (inciso I, do artigo 1º do Decreto-LEI 201/67), corrupção passiva, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, que resultaram no prejuízo de R$ 3 bi para os cofres públicos, causados por mais de 30 pes-soas, todas indiciadas pelo Ministério Público Federal.

Administração de aeroporto no CE

O TRF5 julgou improcedente o pedido do Ministé-rio Público Federal (MPF), que solicitava ao Judiciário determwinar à União que assumisse diretamente a administração do Aeroporto Orlando Bezerra de Me-nezes, em Juazeiro do Norte (CE), em substituição ao Governo do Estado do Ceará. A sentença havia acatado o pedido do MPF. “Compete à Administração Pública, no exercício de sua discricionariedade, dispor sobre a forma de administração do aeroporto, dentro dos limites legais”, afirmou o relator, desembargador federal Edilson Nobre.

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Page 52: quando seres humanos se tornam coisas

Sent

ir

Na cela, havia um olho imenso,

desenhado desajeitadamente, esca-

vado no reboco. E sob o olho, mais

desajeitada ainda, a frase: Deus está

vendo! Esta, salvo engano, em car-

vão.

Eu estava em passeio ou a tra-

balho, sei lá, pois faz bastante tempo

e de muito pouco me recordo com

precisão. Mas lembro que se tratava

de uma manhã chuvosa e eu, recém

saído da faculdade, formado em Di-

reito, visitava as dependências da

Delegacia de Ordem Pública e Social

– DOPS, da minha querida Maceió.

Podia estar em missão de traba-

lho, como já ressaltado, uma vez que

no complexo do “Campus Tamanda-

ré”, nome herdado da época em que

era universidade, funcionavam, além

do DOPS, a delegacia de acidentes,

a delegacia de menores, o DETRAN

e a própria Secretaria de Segurança

Pública. Logo, é mais provável que

um advogado, máxime iniciante,

ali estivesse a serviço. Não posso

descartar, contudo, a hipótese de

Paulo Roberto de Oliveira Lima

Deus está vendo

que estivesse a passeio, visitando algum dos muitos

ex-colegas de curso, visto que vários mourejavam nas

mencionadas delegacias. De todo modo, o motivo de

minha ida ao DOPS não é relevante.

Também não me recordo, por que cargas d’ água,

já no interior da delegacia de ordem pública, estive

defronte daquela cela. Talvez, ela estivesse no trajeto

que fazia. Ou teria eu, deliberadamente, procurado a

cela para satisfazer uma curiosidade. Ou fui até ali le-

vado por alguém. Sinceramente, não me lembro. Como

igualmente não me recordo se no momento estava só

ou acompanhado.

Porém, apesar do largo tempo passado, não me

esqueci do resto.

Tratava-se de uma cela minúscula. Um quadrado

de cerca de 2,50m x 2,50m. Escura, pois que iluminada

fracamente pela rala luz que conseguia passar espre-

mida entre as grossas grades de ferro que guarneciam

única janela, de reduzido tamanho, semelhantes às que

servem de anteparo a aparelhos condicionadores de ar.

E até na altura se assemelhavam, eis que a discreta

janela se localizava lá no alto.

Se tinha banheiro, ou mera privada, não vi. Creio

que não, até pelo forte cheiro de urina que exalava do

recinto. O chão era de cimento e as paredes, já descas-

cadas e sem tinta, exibiam o reboco antigo, esburaca-

do, deixando ver aqui e ali, pedaços do tijolo.

Page 53: quando seres humanos se tornam coisas

Estava vazia. O que me permitiu parar e olhar seu

interior.

Na parede posterior, justo a oposta à porta de

acesso, vi o desenho que me chamou imediatamente

a atenção.

Tratava-se de um olho descomunal, cobrindo qua-

se toda a largura da parede. À falta de instrumento pró-

prio ao desenho, o artista deve ter escavado o reboco

com alguma pedra, com a fivela do cinturão, com o

salto do sapato, ou coisa similar.

Se o resultado agredia a estética, demonstrava a

determinação do autor. Quanto esforço para deixar gra-

vada a mensagem de seu desespero! Por outro lado,

os traços vacilantes, meio tortos, imprecisos, que o

desenhista obteve, longe de diminuir o valor da obra,

harmonizavam-se com o momento de sua produção

e compunham com rara fidelidade o clima pesado em

que surgiu.

E a obstinação do recluso fê-lo registrar cada de-

talhe do olho divino. Deu-lhe íris e pupila, dotou-o de

pestanas e sobrancelhas. E, não sei ao certo se decor-

rência apenas do desenho ou de sua comunhão com

o local e com a frase, percebia-se a expressão triste e

aborrecida do Criador, revelada pelo olho atento.

E debaixo do olho, a frase: Deus está vendo!!!

Também aqui, o desequilíbrio e desalinho das le-

tras machucavam a estética, mas reforçavam a ideia

de desespero e dor.

Quem fora o autor da façanha?

Nunca o soube. Cheguei a perguntar a servidores

da delegacia e ao próprio carcereiro, sem resultado, po-

rém. O fato não chegara a despertar a atenção daque-

les que lidavam com os presos. Quando o desenho foi

notado, de certo que já era antigo e a alta rotatividade

dos múltiplos e meteóricos habitantes do aposento, im-

pedia a reconstituição para uma segura identificação do

“desequilibrado”, no dizer do servidor que me atendeu.

Imagino, contudo, o estado de ânimo do recluso

anônimo, submetido sabe-se lá a que provocações e

castigos, quando tomou do rude instrumento de que

se serviu para invocar a presença do Altíssimo naquele

ermo. Suponho-o desamparado, visto que deslembrou-

-se de humanos. Inocente, eis que convocou o Juiz

mais sábio e mais hostil ao pecado. Desesperançado,

tanto que não contava com remédio outro que não a

certeza de que ao menos Deus conhecia-lhe o sofri-

mento e a maldade de seus algozes. Nada pediu. Não

chegou a prognosticar venturas a si, nem desventuras

aos outros. Cifrou a frase, muito mais para consolo pró-

prio do que para advertir aos carrascos, vez que cer-

tamente sabia da ineficácia do nome de Deus junto a

quem se comportava tão distante de suas mensagens.

Penso, enfim, que seu gesto, se pouco lhe concedeu,

até porque não teve o condão de libertá-lo, nem atin-

giu os olhos cegos da Justiça, serviu-lhe de bálsamo,

anestesiando o corpo maltratado. E, nos dias e meses

seguintes, há de ter alimentado esperanças e trazido

conforto a outros detentos igualmente desamparados.

Quanto a mim, guardo a segura certeza de que não

foi no interior da capela do colégio onde estudei, nem

nos altares das igrejas que tenho frequentado, nem em

qualquer outro recanto imaculado, que senti a presença

física do Senhor. Foi ali, sob o olho imenso recortado no

reboco sujo, atendendo a invocação de um desvaira-

do, que mais fundamentalmente senti-me a mercê de

Deus que me olhava e, certissimamente, via.