Quatrocentos Contra Um_ Uma His - William Da Silva Lima

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    dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

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    William da Silva LimaQuatrocentos contra um:

    Uma histria do Comando Vermelho

    http://groups.google.com.br/group/digitalsource

    Esta obra foi preparada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmentegratuita, o benefcio de sua leitura queles que no podem comprla ou queles que

    necessitam de meios eletrnicos para ler. Dessa forma, a venda deste ebook ou at mesmo asua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia.Portanto, distribua este livro livremente.

    Aps sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim vocestar incentivando o autor e a publicao de novas obras.

    "Orelhas" do livro:

    O Brasil sem dvida possui muitos casos de gente politizada, inteligente e articulada quepassou pela priso ou est nela. William da Silva Lima est preso em Bangu III. Escreveu ahistria de seu trnsito pelos presdios e tambm de suas fugas, e o fez com uma lucidez morae poltica poucas vezes vista. H vigor em suas palavras, vale a pena reeditar: convidamospara o prefcio o escritor-criminlogo Percival de Souza e nos damos o prazer de recolocar disposio dos leitores um testemunho histrico interessante e pungente. Tudo perfeito.

    Mas quase recuamos.

    Afinal sabemos como desgastante dar voz a quem o infortnio da cadeia ou do fundo do

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    mundo deixou marcas indelveis.

    O fato de William j ter tido uma experincia editorial anterior contou favoravelmente para areedio deste livro. Mais maduro, melhor para trabalhar.

    Deciso tomada, fomos ao Rio de Janeiro. Encontramos debaixo de uma carceragem mal-encarada, num lugar imundo e fechado, um homem forte e imponente, que aos 59 anos 34deles vividos no crcere pergunta: "Quantas centenas de prises tero de ser construdas

    at os poderosos compreenderem que precisam construir escolas, precisam dividirbenefcios?"

    Alm do prefcio de Percival de Souza, Quatrocentos contra um: uma histria do ComandoVermelho vem sendo acrescido do texto "A volta", que William escreveu especialmente paraesta edio.

    Contracapa:

    "Vinte e trs anos passei na cadeia, para onde no quero voltar. Como Paulo da Silva, fuziladna fuga frustrada, quase todos os meus companheiros no podem mais oferecer o seutestemunho, e o silncio a eles imposto talvez seja o que me mova com mais fora nessa difcempreitada. Morreram todos os minha volta.

    Um a um sistematicamente, regurlamente, implacavelmente eles foram morrendo. Detiro, de fome, de vcio. Em cada vez, o mesmo pensamento, tantas vezes compartilhado:algum precisa contar."

    Copyright William da Silva Lima, 2001

    edio de texto

    David Pereira Joo

    Eduardo Pedroso Oliveira

    Marina Lucy Goldmann

    diagramao e produo grfica

    Edson Francisco dos Santos

    capa

    Lucio Kume

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP,

    Brasil)

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    Lima, William da Silva

    Quatrocentos contra um: uma histria do Comando Vermelho/ William da Silva Lima

    2. ed. So Paulo: Labortexto Editorial, 2001.

    ISBN: 85-87917-07-2

    1. Comando Vermelho 2. Prisioneiros Biografia 3. Prises Brasil I. Ttulo.

    01.5330

    CDD 365.6092

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Prisioneiros: Biografia 365.6092

    1 edio: Editora Vozes, 1991.

    todos os direitos reservados

    Labortexto Editorial rua albuquerque lins, 647 cj. 72

    01230-001 so Paulo sp

    telefone: (11) 3664-7500 fax: 3825-7590

    [email protected]

    ww.labortexto.com.br

    Agradecimentos

    Gustavo de Oliveira

    Percival de SouzaSimone Barros Corra de Menezes

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    Deserto vermelho

    "Aqui o cemitrio de todas as poesias", costumava ironizar um ex-diretor da Casa deDeteno, o maior presdio da Amrica Latina, em So Paulo. Poesia, aqui, no no sentido dalma da literatura, mas como descompasso entre as teorias e as prticas cotidianas.

    De fato, as teorias no sistema prisional foram e continuam sendo sepultadas. No s pelo

    massacre de 111 presos de uma s vez, em outubro de 1992, mas pela sucesso dos fatos.

    Dito isso, passemos ao livro.

    O Comando Vermelho nasceu no Rio de Janeiro e tem em William da Silva Lima um de seusartfices. Mas ele ressalva que no se trata propriamente do nome de uma organizao e simde um comportamento, "uma forma de sobreviver na adversidade".

    Talvez seja este um grande problema na literatura engajada: quando autor e personagem se

    fundem. Tem sido assim com textos de ex-prisioneiros polticos, obcecados em fixar asdiretrizes de uma causa, enfatizar o comportamento pico de uma militncia, enaltecer ospares e execrar os inimigos. Se o texto pretende ser catarse, antes de tudo, podemos atcompreender psicologicamente as emoes de quem estava no epicentro de umdeterminado momento, histrico inclusive.

    Tais limites devem ser levados em considerao na leitura desse livro. Coloca-se a vida nosbasfond, no exatamente lmpen, de uma forma direta. O choque trmico inevitvel: incluios dramas do crcere, sua imundcie e violncia, as relaes conflitivas entre presos, muitas

    vezes com extrema crueldade, a convivncia entre prisioneiros comuns e prisioneirospolticos em meios aos anos de chumbo, quando assaltar banco era motivo de enquadramentona Lei de Segurana Nacional.

    O livro abre com uma citao da Constituio do Imprio, na qual um mnimo de dignidadeera previsto para priso e prisioneiros. Mas se poderia recuar no tempo: os regulamentos dasprises da Inquisio exigiam condies mais suaves do que as que temos nos crceres denosso tempo. A questo que, como bem observa Michel Foucault em Vigiar e Punir, asmuralhas dos estabelecimentos penais no impedem, sozinhas, ningum de fugir: sua

    verdadeira funo esconder o que se passa l dentro.Como se a sociedade no quisesse ver mesmo. Da, a propsito, aquelas idias sempre deplanto: colocar os presos numa ilha no meio do oceano ou mand-los abrir estradas naAmaznia. Traduzindo: quanto mais longe, melhor.

    Compreensvel portanto que, semelhana de Machado de Assis (Memrias pstumas de BrCubas), William da Silva Lima relute em comear seu relato pelo comeo ou pelo fim.Machado escreve a histria no estilopost mortem. Termina com a frase "no

    [pg. 8]

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    transmiti a ningum o legado de nossa misria". William preferiu transmitir o legado.

    Ainda bem: mergulha no tempo, incluindo passagens pelo antigo RPM, o RecolhimentoProvisrio de Menores, antecessor da Febem, a Fundao (apesar de tudo) para o Bem-Estardo Menor, chegando aos primeiros espancamentos, aplicados por um incrvel Bate Chorando(conforme o apelido, um inspetor que batia e chorava).

    Carcereiros e massa carcerria, escreve, nivelados numa mesma misria moral. O

    vaie-vem por variados presdios, de Bangu Ilha Grande, passando pelo DOPS e o DOI-CODI. Afinal, se roubava bancos, tinha que provar que no pertencia nenhuma organizaotida como subversiva. A tortura oferecia isonomia para os presos. Talvez William desagradealguns ex-militantes polticos ortodoxos quando conta que eles

    "lutavam para isolar-se da massa, comportamento considerado elitista por ns". Mas para qubrigar com a Histria? Para que exumar o dogma stalinista segundo o qual a verdade no revolucionria? Os presos polticos identificavam-se como tal. Os outros se chamavam de

    "presos proletrios".

    William foi prisioneiro no sistema dirigido por Augusto Frederico Thompson, do Desipe,Departamento do Sistema Penal. Curioso que uma das melhores obras sobre o sistema,Aquesto penitenciria, de autoria de Thompson. Defensor da tese segundo a qual no existpresdio sem o alicerce segurana-disciplina, no comungou da idia de nivelar presosantiditadura com os outros presos. O conflito, descrito por William, mostra o quanto o mundo

    [pg. 9]

    prisional ignorado nos gabinetes onde se tomam decises sobre ele. Ou seja: no se conhecmuito o lugar em que se manda.

    Segundo William, o Comando Vermelho recebeu esse nome da imprensa e no de um grupoque resolveu estrutur-lo. Tudo indica que tenha acontecido exatamente isso. Frustra quemimaginava uma reunio secreta, com depoimentos e apartes, ata e assinaturas. O autor sugereque tenha sido uma fico alimentada para ser vista como realidade.

    Mas o que realmente importa no Quatrocentos contra um o trnsito do autor em presdios dsegurana mxima, o cdigo de relacionamento entre prisioneiros, a difcil sobrevivncia. Emalguns pontos, lembra Charrire emPapillon; em outros, evocaA Recordaes da casa dosmortos, de Dostoievski, e atMemrias do crcere, de GracilianoRamos.

    um depoimento recheado de histrias. No literatura pura, seria exigir demais de umprisioneiro. Mas relato de quem no apenas ouviu contar, mas viveu com intensidademomentos e situaes crticas. Tudo imposto pelo Estado, exercendo o direito de punir, mastransformando a to almejada ressocializao apenas numa falcia.

    William nos ajuda, nesse livro, a conhecer e a entender um pouco melhor esse mundo peculia

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    essa rede de esgoto invisvel que alimenta as prises brasileiras. Nada consta de processos,inquritos, sanes administrativas. A burocracia prisional faz de tudo para encobrir tudoaquilo que ela sabe muito bem. Os presdios cheiram mal.

    mais cmodo observ-los de longe.

    [pg. 10]

    A voz de William isolada. Como algum clamando solitrio no deserto rido das idias edos sentimentos que empurram a humanidade cada vez mais para dentro do poo.

    Eu escrevi que ele est berrando no deserto?

    Pois bem: pelo menos o eco haver de responder.

    Percival de Souza

    Cidade de So Paulo, novembro de 2001.[pg. 11]

    [pg. 12]Pgina em branco

    Prefcio primeira edio

    A edio deste livro foi tarefa arriscada. No queramos fazer a apologia do crime, evidente, e muito menos da sua organizao. No pretendamos contribuir para o charme dosbandidos. Foi-se o tempo para esse tipo de inocncia. Mas tampouco queramos nos deixarpossuir pelo furor acusatrio que tem prevalecido nos meios de comunicao. A reao,enfurecida, com as propostas de pena de morte, os esquadres, as polcias privadas, asinvases armadas dos bairros populares, a imagem diabolizante do bandido padro, tudo issobscurece o problema. A reao enfurecida no soluo, parte do problema.

    O Instituto de Estudos da Religio (SER) decidiu h alguns anos interessar-se positivamentepor esse mundo da marginalidade. Partimos da preocupao pelos direitos humanos, herdadadas lutas contra a represso poltica nos anos de ditadura, e chegamos a uma nova percepomais prpria aos dias atuais. A democracia no ser confivel enquanto o comum dos mortaitiver medo da lei. Neste sentido, o preso comum mais fundamental do que o preso poltico.O desafio maior est nos direitos humanos para as pessoas comuns. O que se nota, no entanto a deteriorao das relaes do sistema penal com a maioria pobre

    [pg. 13]

    da populao e o crescimento das margens desviantes sobre as estruturas normativas.

    No pretendemos estar de posse das solues, mas estamos convencidos de que este o

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    problema a ser atacado. A organizao do crime, de um lado, e as reaes enfurecidas, deoutro, acirram os nimos da polarizao. Colocam-nos na lgica do apartheid. contra essatendncia, estranha cultura brasileira, que situamos o trabalho do ISER, dentro do qual estelivro se insere. Buscamos espaos de troca e de comunicao entre a norma e o desvio, naesperana nem sempre v de que do dilogo, como se diz, nasa a luz. As artes e a literaturaso dimenses privilegiadas para este tipode exerccio.

    Que personagem, ento, este que compe a autoria e o objeto deste livro? Um tipo duro, cocerteza, mas curiosamente pouco afeto a bravatas. como se no precisasse delas. Tampoucofaz o gnero messinico de um Lampio, nem passa a imagem de vtima inocente, alvo de umsorte infeliz ou de um destino maior. No nasceu to pobre assim. No se explica e, o que mais grave, no se d a julgamento.

    Por isso duro, mas no maneira de algum que pretenda estar acima de tudo e de todos. Acontrrio. Faz questo de mostrar que conhece as suas limitaes. "No sei quando nasci, nemquando morri", diz ele ao iniciar sua histria.

    O pblico acostumado ao romantismo do bandido-heri recebe uma surpresa. So vinte etantos anos de submundo penal, relatados em poucas palavras, quase sem adjetivos. Os fatosfalam por si. A narrativa se desenvolve retilnea, contida pelas rdeas curtas de umaconscincia que no se entrega. Esta vida dura

    [pg. 14]

    demais para o romance, e o autor-personagem no sepermite deslizar para o sentimentalismo

    Alm dos fatos, h os valores: o respeito prprio, a lealdade para com os companheiros, adenncia das incongruncias da ordem penal, o sentido da organizao, a ao bem pensada.Segundo o autor, a criao do Comando Vermelho representou sobretudo uma mudana deatitude e de comportamento. Deixar de ser barata tonta e afirmar-se como sujeito, senhor dedireitos e poderes, mesmo no interior das execrveis prises brasileiras. No entanto, depoisde mltiplas tentativas e de dolorosas punies, quando enfim consegue escapar a primeiracoisa que faz assaltar um banco! E volta priso.

    O nico refresco que o livro nos d vem de uma relao de amor. Em poucas pginas, com o

    mesmo pudor orgulhoso que caracteriza o livro inteiro, revela-se a esperana em brasa de umsoluo. Ela acredita nele o bastante para se dar e, sendo advogada, percebe ainda, e lhepromete, a possibilidade de uma sada legal. No entanto, ela, a estagiria de direitoshumanos, que passa a viver na clandestinidade.

    Entre fugas e processos, nem o agressor nem a defensora da lei conseguem escapar s malhasdo sistema. Que sistema este?

    Em meio fantasmagoria da violncia, Quatrocentos contra umtem algo positivo e diferent

    a nos dizer: apesar de tudo, possvel no perder a cabea e a crena no amor e no direito.

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    Sem demagogia, sem cascatas. Parece uma crena absurda, tal a desmoralizao que oconceito da Lei tem sofrido entre ns. Mas sem a crena no h lei que se sustente. Vem da,

    [pg. 15]

    meu juzo, a importncia deste livro. A transformao do bandido em autor pe em palavras difcil e contraditrio desejo de justia.

    ubem Csar Fernandes

    [pg. 16]

    As cadeias sero seguras, limpas e bem arejadas,

    havendo diversas casas para a separao dos rus,

    conforme suas circunstncias e a natureza de seus crimes.

    Inciso XXI, artigo 17, Constituio imperial do Brasil, 1824.

    [pg. 17]

    [pg. 18]Pgina em branco

    oloco o ouvido no batente da cama de concreto e consigo escutar o reco-reco da serra que, ncubculo vizinho, corta o ferro da escada que fica fixa Cno beliche. Estamos num anexo dopresdio Milton Dias Moreira, no complexo da rua Frei Caneca, especialmente construdo hpoucos anos para receber os presos polticos que aguardavam anistia. Eles j foram, deixandvagos os lugares que agora so nossos. A nova direo do sistema insiste em nos manterisolados.

    Somos 34 presos e apenas uma certeza: to cedo no sairemos daqui, pelo menos por viaslegais. H mais de dez anos a maioria de ns roda como peo pelas cadeias do Rio de janeir

    Fugir novamente, para no apodrecer o que resta. Pela frente impossvel.

    Oito portas de ferro, grandes e pequenas, devidamente guardadas, nos separam da entradaprincipal do complexo, a centenas de metros daqui. No trajeto existem vrias reasdescampadas, inclusive o campo de futebol, onde seramos alvos fceis para os guardas quepasseiam na parte de cima dos muros, protegidos por telas e armados de metralhadoras. Noadianta serrar as grades das celas: cairamos no ptio interno, tambm vigiado.

    Ouvido na cama, reco-reco, reco-reco, reco-reco. Um dia e meio j se foi nesse trabalho dearteso, feito devagarinho. D nervoso. No vejo a hora de comear

    [pg. 19]

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    a agir. Mas a serra filha nica de me solteira, no pode quebrar. Alm disso, preciso qutudo parea normal na galeria, para no chamar ateno: nem barulho, nem silncioexcessivos; nem movimentos suspeitos, nem clima de cemitrio. Tudo como sempre.

    Acabou. Nada se perde, nada se cria. Principalmente na priso, tudo se transforma. Cortamoa escada pela metade e obtivemos um arremedo de picareta: quase dois metros decomprimento, cinco centmetros de largura de puro ferro. Agora, mos obra: quebrar ocimento do piso, cavar um bom buraco, fazer mais ou menos quinze metros de tnel, passarpor baixo do muro que d para o campo de futebol do Manicmio judicirio e, finalmente,emergir. Sabemos que muito difcil. Mais difcil, porm, ficar por aqui. Se tudo correrbem, passaremos o Natal em algum lugar a que chamaremos casa. Teremos um Ano Novo emalguma praia, agradecendo a Iemanj.

    Vale a pena. Longos anos de priso suprimem, em muitos, o desejo de ser livre.

    Mas, em outros, aumenta a revolta e a vontade de reconquistar o que se perdeu.

    muito duro o piso do cubculo 14, o mais bem situado para servir de base operao.Impossvel quebr-lo sem chamar a ateno do guarda que fica no ptio de trs.

    Precisamos procurar melhor ponto de partida. Tum-tum. Tum-tum. No preciso ir muitolonge, isso Brasil. No 16 o material de segunda. Brincadeira na galeria, algum barulho derisos e cantoria, palmas e assovios e pronto: com leves batidas o cho se desfaz. Agora,no pode haver retrocesso, nem erro.

    Olhos fixos na terra remexida, ouvidos atentos para o que se passa em torno, pensamento em

    voo.

    [pg. 20]

    assim, alis, toda a existncia do preso. Para os que vivem em liberdade, a viso o sentidomais importante. Para ns, a audio: o molho de chaves que tilinta, a porta que range, oassovio do amigo, o pigarro combinado, vozes ao longe, passos num corredor ao perceb-loe interpret-los rapidamente, ainda pode haver tempo para tomar providncias. Quando oalarme vem pelos olhos sinal de que a coisa est feia: o preso s v quando foi visto

    primeiro.

    Algum achou uma base de enxada velha, devidamente recolocada em uso por meio de umcabo improvisado. De mo em mo, baldes e latas transportam terra mida at uma bacia naentrada do tnel, onde enchemos sacos de forro, arrumados depois sob as camas. Oisolamento tem essa vantagem: os guardas entram menos na galeria onde estamos.

    Embaixo da terra, contornamos os alicerces do prdio e seguimos lentamente procurandoimaginar a correta direo. O risco de desabamento pequeno: o teto do nosso precrio tne

    a prpria camada de cimento do ptio da priso.

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    Liberdade, liberdade, abre as asas sobre ns! Mas como custa! H dias estamos aqui, semprem silncio, interrompendo o trabalho nas horas do confere, das refeies e noite, de modomanter a normalidade aparente. Raramente ultrapassamos trs horas de atividade continua.Avanamos pouco, s cegas, cansados, sem ar. O esforo enorme; as ferramentas,inadequadas. Para piorar a situao, cruzamos com um olho d'gua que passou a inundar nosstnel. Desde ento, trs escavam e os outros enchem baldes, despejados no esgoto do cubcul em cima.

    [pg. 21]

    Chegamos ao alicerce do muro. O cho ficou duro demais uma argila cheia de pedra e pde pedra, parecendo cimento. No vamos conseguir. Dois minutos sem retirar a gua da minaso suficientes para tornar invivel a permanncia aqui embaixo. Lama pura, impossvelcavar. Tudo escuro. preciso ter luz, pagando alto preo: choques eltricos, cada vez que aspartes desencapadas do fio encostam na terra que nos envolve at a alma. Pacincia. Agora,alguma coisa se v.

    No vamos conseguir. Estamos h dias no mesmo lugar. Para um lado, para outro, esforointil. Tentemos para baixo. Mais. Mais ainda. A terra dura tem que acabar, caralho, nem queseja no inferno. Pronto. Estamos dois metros mais baixos, mas podemos prosseguir. Agora,mais dez metros em linha reta e estaremos no ponto previsto para iniciar a subida. Dois diasde trabalho, se nada de errado ocorrer.

    Finalmente, chegamos tampa de concreto que cobre o local onde vamos emergir. Serpreciso quebr-la sem fazer muito barulho: estamos, ainda, nas cercanias do presdio, em remantida sob permanente vigilncia. Esperamos a sirene tocar, damos uma porrada seca e

    somos felizes: j podemos ver um pedao de cu e respirar um ar fresco que revigora asesperanas. Aguardaremos a noite fechada, para retirar com calma outros pedaos de cimente sair sem confronto com a guarda. Mais uma refeio, mais um confere, mais uma espera depoucas horas, cheia de sonhos, e estaremos prontos para as despedidas.

    L fora, cada um por si. Algum dia a gente se v.

    Duas horas da madrugada, oito de novembro de 1983. Comeamos a sair do buraco, um a umrastejan-

    [pg. 22]

    do na beira do muro, aproveitando os locais de maior escurido. nossa esquerda, no p domorro de So Carlos, fica estacionada uma patrulha da Polcia Militar, em posio que lhepermite ampla viso do descampado. No podemos, portanto, simplesmente atravess-lo.Rastejamos para a direita e para a esquerda, at atingir um local onde o muro mais baixo.

    Diabos. Cachorros e gansos do Manicmio comeam a fazer barulho. Todos parados. O

    interno que cuida da horta acordou e saiu. Somos forados a domin-lo, exigindo que prenda

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    os cachorros e retorne para casa. A patrulha no nos percebeu, mas deve ter ficado alertadapelo alarido dos animais. Cautela: cinqenta minutos agachados, aguardando tudo voltar aonormal. S ento saem os demais do buraco, mas os gansos voltam a reagir. Que vontade detorcer seus lindos pescoos! Os PMs ficaram claramente inquietos, mas, novamente, nadapuderam ver: estamos todos imveis no escuro. Gemido, tombo, piso em falso qualquerdescuido ser fatal, jogando por terra um esforo tremendo. Conseguiremos?

    De repente, algum na retaguarda resolve subir em uma guarita desativada. No tem a claranoo do perigo:

    No faa isso, caralho! V mais para a esquerda, saia da viso da polcia!

    Fique quieto, desgraado!

    Os avisos saem na forma de sussurro: ningum pode gritar. So, por isso, inteis.

    Os PMs da patrulha do o alarme e comeam a atirar. Chegam reforos, deslocados a partir d

    um ponto-base nas proximidades. Salve-se quem puder. Cinco de ns conseguem correr at omorro de So Carlos, mas so recapturados.

    [pg. 23]

    Os outros inclusive eu ficam encurralados na moradia daqueles malditos animaisbarulhentos. Paulo da Silva sai, com as mos na cabea, para entregar-se, e cai, morto a tirosH feridos. Sirenes tocam, o cerco se fecha.

    OK, vocs venceram.Caminhamos em fila indiana, carregando nossos feridos, at o ptio do Manicmio, ondesomos colocados de bruos no cho. Comea o espancamento. Um baque seco minha ltimalembrana dessa triste madrugada. Deitado de costas, no vi o golpe desferido, e por issosequer esbocei reao de defesa. Depois, s vmitos de sangue, tonteiras e uma dor de cabeinfernal no hospital em que me depositaram.

    Dizem-me que quase morri e s por milagre no fiquei imprestvel. Esta falta de equilbrio

    que sinto, bem como a labirintite crnica que desde ento me acompanha, devo consider-lasmales menores. Dei sorte.

    A fuga frustrou-se, mas serviu para acabar com nosso isolamento naquele corredor. E agora?Voltarei a gua Santa, onde Nelson morreu? Bangu, onde cumpri minha primeira pena? IlhaGrande, de tantas lembranas? Lemos de Brito, Milton Dias Moreira, Hlio Gomes alis,quem tero sido esses infelizes personagens que viraram nome de priso?

    De molho no hospital, retornou a idia de escrever um livro, contando o que vi e vivi. Velhoprojeto, tantas vezes iniciado e perdido em fragmentos crnicas, poesias, documentos,pequenos registros que se dispersaram e sumiram nas situaes mais diversas. Hoje,

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    quando parece ter chegado a hora, conto apenas com minha memria e ainda vacilo: por que

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    histria de um homem haver de interessar outros homens?

    Vocs vo decidir se vale a pena. Para isso, deixem que me apresente: William meu nome.Parte de minha vida redundante tenho uma profisso, famlia, filhos pequenos, desejos

    e por isso no merece ser contada. Outra parte os sonhos que no sonhamos, talvez os maverdadeiros se passa naquelas regies de nossa alma onde nenhuma palavra nunca pisou;desconhecida de todo, ou de quase todo, no pode ser contada. Resta pouco: explicar como eporque vivi at hoje, na maior parte do tempo, sem nome, sem profisso e sem ver minhafamlia, tendo na violncia a maneira de sobreviver entre os homens.

    Vinte e trs anos passei na cadeia, para onde no quero voltar. Como Paulo da Silva, fuziladona fuga frustrada, quase todos os meus companheiros no podem mais oferecer o seutestemunho, e o silncio a eles imposto talvez seja o que me mova com mais fora nessa difc

    empreitada. Morreram todos minha volta. Um a um

    sistematicamente, regularmente, implacavelmente foram morrendo. De tiro, de fome, devcio. Em cada vez, o mesmo pensamento, tardas vezes compartilhado: algum precisa contarTalvez o Saldanha o faa com mais paixo; Nanai, com mais f. Com mais humor, o Mimoso;Nelson, com mais talento; Ach e Ca, com mais graa. Alkmin o faria com mais corao.

    Mas todos morreram. Quis o destino que me coubesse essa parte. Mesmo foragido.

    [pg. 25]

    [pg. 26]Pgina em branco

    ndo atento pelas ruas, olhando tudo. No quero, nem posso, voltar, e o risco que corro oapenas necessrio para sobreviver. Ando rpido, mas Ano estou indiferente. Vejo o meninoque dorme seu sono pesado, fraqueza, sob a marquise de um belo prdio, coberto de jornais de roupas rotas, molhado pelos pingos da chuva que cai. Que vida lhe deram, irmo!

    Que posso fazer? Acord-lo? Conversar com ele? Dar-lhe trocados? Incentiv-lo a no seentregar, resistir, descobrir seu rumo prprio? Quando dou por mim, j segui em frente: ofugitivo no pode parar, nem envolver-se em situaes de que no conhece o final. Mascontinuo vendo e, principalmente, pensando. Vejo o senhor que passeia com seu co fortebonito, bem nutrido, protegido da chuva e contorna, sem lanar um olhar, o minsculocorpo retorcido pela ao do frio. Como o operrio da msica de Chico Buarque, o meninoapenas atrapalha o trnsito...

    Sigo pensando como difcil comear a contar nossa prpria vida. Brs Cubas no sabia se

    iniciava suas memrias pela cena de seu nascimento ou a de sua morte. A mim no so dadastais opes: personagem real, no morri e tampouco me recordo de como nasci. Minha

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    primeira lembrana, ironicamente, j envolve Polcia e Justia. Fui gerado por um daqueles

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    amores fadados ao erro: paraibana do interior, filha de ndia e de campons, aindaadolescente minha me fora mandada morar em Recife, na casa da famlia de meu futuro pai.Primeiro filho, primeiro neto, primeiro sobrinho, ganhei o nome de William em homenagemaos amigos americanos, que ento combatiam na Segunda Guerra Mundial.

    Durou pouco o casamento de meus pais. Separados, passei a ver minha me em visitas, pordeciso da Justia. Num belo domingo, levou-me para tomar sorvete e fugiu comigo para acasa de seu pai, cortador de cana numa usina prxima cidade de Escada. Eis minha maisforte lembrana de infncia: meu pai, um tio, dois policiais fardados e um homem estranho creio hoje, oficial de justia apareceram por l, uns seis meses depois, e me levaram devolta para a casa dos avs paternos. No devo ser amargo. Com meu av aprendi a andar commeus prprios ps pela cidade. De minha av recebi ateno e carinho. Gostava deles, masestava com a cabea confusa e o corao saudoso.

    Meu pai foi tentar a sorte em So Paulo e se casou com uma moa que conheceu na viagem.Meu av morreu em seguida, deixando um vazio imenso e o pretexto necessrio para que meupai solicitasse, por carta, que eu fosse ter com ele. Viajamos

    eu, minha av e uma irm de criao. Ambas ficaram no Rio, em casa de outra tia, enquaneu seguia em frente.

    Foi dura essa nova separao: sentia-me protegido na companhia da av e deslumbravam-me

    as luzes do Rio, vistas pela primeira vez na noite em que desembarcamos no cais. Continuei viagem a contragosto, pressentindo o engano.

    Tinha razo em meu senti-

    [pg. 28]

    mento de criana: em So Paulo, seguiram-se confrontos com a mulher de meu pai; perda deum ano de estudos e, finalmente, um tumultuado retorno ao Rio.

    Pilares foi o bairro carioca onde primeiro morei. Avenida Suburbana, Abolio, Mier, jogode bola em Inhama enfim, vida nova, logo consolidada pelo ingresso no Instituto Lac,onde iniciei o segundo ano primrio. Durou pouco. Em fins do mesmo ano, meu pai mereclamou de volta, para nova tentativa. Minha av tinha certeza de que no daria certo, masnada pde fazer. O fracasso no demorou, e a partir dele fiquei sem um porto seguro: pai, me tias tinham, cada qual, suas vidas, seus problemas, suas limitaes. Conclu o primrio, masem vaga em escola pblica, no pude prosseguir os estudos. Com 12 anos, era precisocomear a ganhar meu prprio sustento, para no depender de ningum.

    Meu primeiro emprego foi num laboratrio de prtese, onde comecei fazendo entregas e

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    pequenos servios. Aos poucos me inteirei do ofcio e, fazendo as coisas com gosto, vireiajudante. Compreendia ento que cada um cuidava da prpria vida e j no depositavaexpectativas em grande ajuda do pai, motorista de nibus sempre s voltas com dinheiro demenos. Nunca tivemos uma amizade de fato, e prova disso so os 25 anos que no o vejo.

    Tratei de ganhar meu sustento, pagar minhas prprias despesas, embora fosse menor. O Centrde So Paulo me fascinava. Muitas vezes dormi na praa da S, assistindo ento, em cadamanh, como acorda a grande cidade, como se tensiona gradativamente, como cai esgotadadepois que o Sol se vai, como renasce na noite.

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    Aos 15 anos j desejava trabalhar por conta prpria, mas me faltava o capital inicial. Tiveento, pela primeira vez, a idia de que poderia conseguir dinheiro roubando. Empregado emum escritrio de proprietrios de imveis, observei a rotina e arquitetei um plano minuciosoque envolvia dois cmplices, para roubar recibos de pagamentos de aluguis e fazer emseguida as cobranas na rua essa era a rotina , antes que percebessem o desfalque. Sa

    do emprego e detonei o plano, que obteve pleno xito, rendendo, para cada um, a fabulosaquantia de vinte mil cruzeiros, dos velhos. Pude ento, finalmente, comer num restaurante cujvitrine de frangos sempre me fascinara. Depois, comprei uma bola de futebol e um par deoelheiras para o time em que jogava, escondi o que restou e iniciei meu prprio negcio,

    revendendo, nas feiras, bibels revestidos de pelcia. Bons tempos, cheios de iluso deindependncia.

    Independncia absoluta: forte desejo, que talvez me tenha reduzido, pela maior parte da vida condio de prisioneiro.

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    om 17 anos de idade, ainda em So Paulo, fui preso pela primeira vez, por suspeita de furto.Conduzido ao Recolhimento Provisrio de Menores, na Cavenida Celso Garcia, passei quatrdesesperados dias, at ser entregue ao meu pai, que assinou o termo de responsabilidadediante do juiz de menores. Cessou a sua ajuda. Mal a viatura arrancou, eu tambm arranqueide volta ao Centro da cidade, minha verdadeira morada. No dia seguinte, confuso e com raivbati a carteira de um transeunte.

    De volta ao Rio por conta prpria, no vi mais meu pai. Em 1961, com 19 anos, fui condenadno Rio, por roubo, a cinco anos, cumpridos na Esmeraldino Bandeira (Bangu) e na Lemos deBrito (Frei Caneca), muito diferentes uma da outra. Nessa poca, perdi minha av, o nicoponto de apoio com que poderia contar. Ela no chegou a me visitar na cadeia. Doente,mandou recado por uma prima: no aguentaria.

    Maus tratos e espancamentos faziam parte do dia-a-dia em Bangu, nivelando carcereiros emassa carcerria numa mesma misria moral. Lembro-me de muitos conflitos, duas tentativas

    de fuga e, principalmente, de um estranho e temido inspetor que nos batia e chorava. Era, por

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    isso, conhecido em todo o presdio como o Bate Chorando. Depois de uma briga com ele, tivmeu primeiro contato com as celas de castigo

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    as surdas do sistema, muito parecidas entre si, como pude constatar nos anos seguintesVocs sabem como so? Imaginam como, nelas, se vive?

    So celas individuais, hermeticamente fechadas com portas de ao, onde tudo proibido e sse sobrevive por inrcia e teimosia. Dependendo do humor do carcereiro, recebe-se ou noum calo, de todo intil para sua funo natural. Serve, porm, para tapar o buraco do boi a instalao sanitria feita no cho, sem vaso , garantindo dessa forma um sono menosimportunado pela apario das mais horrorosas de todas as criaturas noturnas que conoscodividem aqueles espaos sombrios: ratazanas.

    Em Bangu, as paredes, salpicadas de cimento at a altura da nuca, eram feitas de forma atornar incmodo o precrio ato de nelas encostar as costas cansadas. Nas partes de cima,

    desde logo um detalhe chamava a ateno: centenas de pontos e riscos de sangue, finos ecurtos. Surpreendi-me. Tinta? Chegaria a esse extremo o mau gosto dos construtores daquilo?No. Desta, eram inocentes. Cada risco correspondia a um percevejo morto por usuriosanteriores. Logo aprendi que matar esses insetos ocupa ali boa parte do tempo, pois ospequenos buracos de ventilao, quase no teto, cumprem tambm outra funo menos nobre:trazem muito mosquito, cmplices do nosso castigo.

    No incio, nada pude comer. Como a gua, s aparecia a cada 12 horas, mijo e merda seacumulavam no boi em quantidade suficiente para tirar qualquer apetite.

    Alis, no h como descrever a incomvel comida, servida sem talheres em marmitasgordurosas. Mas a necessidade se imps. Ocorreria o mesmo com qual-

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    quer pessoa, estou certo: desejos, sabores e hbitos so como uma casca fina de vernizaplicada na superfcie do animal que trazemos dentro de ns. Ver-se em espelho, fazer barbater apetite, discriminar cheiros e cores tudo isso se vai por uns tempos, substitudo por

    estratgias mais adequadas. Uma delas: manter a mo direita no alto, sempre bem lambida,para us-la apenas nas refeies, cabendo esquerda todas as outras tarefas. Questo dehigiene.

    Caminha-se muito na solitria, onde deitar expresso do mais absoluto cansao.

    Quando o corpo derrotado, o brao desempenha misso estratgica, protegendo a cabea emantendo os pulmes um pouco afastados do cho muito mido. Questo de sade. Nasprimeiras noites, no dormi, andando para l e para c, cantando para que o dia amanhecesse

    e chegasse logo o caf. Se o planto era feito por guarda sujeira, no entrava nada alm decomida e a porrada estava sempre iminente.

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    Tem mais que morrer, desgraado, ou ento ficar maluco de vez!

    No faz mal: enquanto o pau vai e vem, as costas descansam. Sinais de vida aparecem,chamando de volta a esperana: um guarda limpeza entrega alguns pes, um companheiroenvia um precioso mata-mosquitos, surge um jornal que, depois de lido e relido, ser lido denovo e servir de colcho, cobertor, leque, arma de defesa contra os bichos e supremoconforto papel higinico. No se trata, apenas, de bem-estar material: esses gestos

    solidrios e completamente despojados, o mais das vezes feitos por desconhecidos, trazem oreconhecimento de que ainda somos vistos

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    como uma pessoa. A vida pode seguir adiante. Quando surge a propcia ocasio, hbitos evalores retomam, e nos sentimos humanos de novo. No tarda o dia em que pensamosnovamente no amor, e uma ponta de cime da velha namorada mostra que, apesar de tudo,continuamos os mesmos. Que bom.

    Diferentes tipos de guarda nunca vo deixar de existir, no s porque refletem a prprianatureza humana, mas tambm porque todos so usados pela administrao, que precisa tervrias faces. Conforme a poca, predomina um ou outro estilo, j que o comando do sistemaexerce um papel inibidor sobre os que no se afinam com sua poltica em cada momento. svezes, h choque. So conhecidas dezenas de histrias em que carcereiros maus facilitaramfugas apenas para colocar na defensiva diretores liberais ou, at mesmo, derrub-los.

    Em 1963, a violncia predominava na Esmeraldino Bandeira, uma cadeia de tranca dura, na

    qual s os presos integrados em alguma funo podiam deixar as galerias, verdadeirosgalpes com cerca de cinquenta homens cada. Resolvi aprender um ofcio. Era uma maneirade, ao mesmo tempo, obter esse benefcio e combater o sentimento de que estavacompletamente deriva na vida. Tornei-me aprendiz na alfaiataria de l, bem organizada sobo comando de um preso chamado Jair Ferreira Santos, muito competente. Uns trinta homens todos presos trabalhavam com mquinas de porte industrial, fabricando principalmentefardamento sob medida para os guardas. Fui aceito. Conheci ento Jos Michel Godoy, que jtinha nvel de oficial e me ensinou a costurar, modelar, cortar, chulear,

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    guarnecer, pregar boto e todos os demais segredos da profisso. Com menos de um ms, meapresentei, confiante, ao Jair:

    J sei fazer uma cala.

    Toma este pano. Se voc estragar, voc paga.

    Levei o dobro do tempo de um profissional, mas no tive que pagar nada. Ao contrrio: passa ser responsvel por uma das mquinas e, sem muita demora, comecei a treinar aprendizes

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    mais novos que eu. Um ano depois, quando sa de Bangu, dominava o ofcio, que se tornouparte da minha vida. Tornei-me exceo, pois, de modo geral, as oportunidades de trabalhooferecidas ao preso so simplesmente aviltantes: catam-se chapinhas de cerveja com defeitoseparam-se braos de bonecas e por assim afora.

    Com a transferncia para a Lemos de Brito, fui aproveitado na alfaiataria, onde, alm defardas para funcionrios, fazamos ternos para juzes e desembargadores.

    Estava agora na vitrine do sistema penal, um presdio onde todos trabalhavam, tinhamcubculos individuais e podiam participar de uma vida cultural incipiente. De manh cedo,abriam-se as galerias e as celas, e os presos seguiam para suas atividades.

    Em 1964 comearam a chegar os primeiros presos polticos atingidos pelo golpe militar. Deincio, eram alguns militantes sindicais, mas o contingente logo engrossou com a chegada dosparticipantes da rebelio militar de Braslia, conhecida como Revolta dos Sargentos,movimento deflagrado antes do golpe para protestar contra a inelegibilidade dos sargentospara cargos eletivos. A eles, se juntaram depois os in-

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    tegrantes da Associao dos Marinheiros, liderada em 1964 pelo cabo Anselmo, hojedesmascarado como agente provocador.

    Presos comuns tm, no mundo inteiro, certa tradio de adeso a movimentos revolucionrioAqui no Brasil, por exemplo, a massa carcerria extraiu muitas lies do contato havido nadcada de 1930 com os membros da Aliana Nacional Libertadora encarcerados na Ilha

    Grande. Quando os presos polticos se beneficiaram da anistia que marcou o fim do EstadoNovo, deixaram nas cadeias presos comuns politizados, questionadores das causas dadelinquncia e conhecedores dos ideais do socialismo.

    Essas pessoas, por sua vez, de alguma forma permaneceram estudando e passando suasinformaes adiante. Sua influncia no foi desprezvel. Na dcada de 1960 ainda seencontravam presos assim, que passavam de mo em mo, entre si, artigos e livros quefalavam de revoluo. De vez em quando apareciam publicaes do Partido Comunista, entona ilegalidade. Lembro-me, por exemplo, do velho Joo Batista, que, na rua, batia carteiras e

    na priso, ficava lendo e escrevendo pelos cantos do ptio, sempre disposto a orientar eajudar os demais. Lembro-me tambm de Mardoqueu, que desde a poca do Estado Novofrequentava a cadeia, onde alternava as atividades de encadernador de livros e divulgador deidias de esquerda.

    Havia pequenas bibliotecas dos prprios presos, e os ptios serviam como locais de encontrpara a troca de idias. Meu amigo Vandinho me passou Os sertes:

    Se voc quiser conhecer a histria do Brasil, no adianta ir escola. Tem que ler Euclide

    da Cunha.

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    Euclides para ser lido em voz alta, especialmente quando se est sozinho.

    Aprendi com ele o valor das palavras e o ritmo da lngua. Fizemos um grupo de poesia edeclamao e, com alegria, recebemos mais livros, enviados por Paschoal Carlos Magno, qunos incentivou o teatro. Naquela poca os intelectuais se interessavam por coisas assim. Licadernos de bispos do Nordeste, diversas cartilhas, Jorge Amado, Osny Duarte Pereira.

    Adorei Lima Barreto.

    Desde logo, por iniciativa do grupo de poesia dirigido por Jos Brasil, decidimos no levarnossa atividade teatral para o campo dramtico:

    A situao aqui j dramtica...

    Comeamos com uma comdia, passada num manicmio, onde os loucos interpretavam ospapis que desejavam para si. Eu era um louco que escolhera viver um pistoleiro arrependid

    Fizemos muito sucesso.

    Com os desdobramentos polticos do golpe, tudo se tornou mais tenso, mas no a ponto dedesarticular o trabalho, que prosseguiu quando fui solto, em 1965, em livramento condicionaNa cabea, muito idealismo e poesia; na prtica, a necessidade de sobreviver sozinho, sendoum marginal.

    Sa decidido a no procurar a famlia. Levava uma carta de apresentao de um preso poltica uma grfica e editora onde havia gente de esquerda. Consegui trabalho com eles, mas no m

    senti bem. Fora contratado por favor, a empresa estava beira da falncia. A expectativa dedesenvolver meu lado intelectual e poltico frustrou-se.

    Morando num quarto de penso na rua Francisco Muratori, na Lapa, acumulei decepes,transformadas em desespero quando a grfica efetiva-

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    mente fechou. Para sobreviver, resolvi assaltar, voltando a trilhar o caminho que me levaria

    novo reincidente priso, com mais seis anos pela frente.Novamente, Bangu. Rebelei-me de vez. Dizia no a qualquer preo, e essa caracterstica que se denomina "periculosidade" o sistema carcerrio no perdoa. Apanhei muito: "mebate, arrebenta meu corpo, mas no mate minha vontade de ser gente".

    Na Frei Caneca, prosseguia um trabalho cultural. Os presos de l velhos conhecidos meus organizaram o I Festival de Msica e Poesia do Sistema Penitencirio do Estado daGuanabara, que recebeu nada menos do que 169 trabalhos.

    Enviei poemas, classificados entre os quarenta primeiros, que foram final diante de um jri

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    formado por 12 intelectuais. Participei do festival e, por presso dos companheiros, acabeitransferido para a Milton Dias Moreira, onde me tornaria encarregado da alfaiataria. Ovencedor foi Andr Borges, que cumpria seu dcimo ano de priso, mas teve foras paraescrever: "Enganam-se / os que me julgam vencido. /

    No desterro destas grades / forjo as armas do combate / da batalha do oprimido. /

    Crescem-me na alma/os germens dos proscritos / e irrompe do meu peito / um brado de

    revanche / em surdos gritos: / Eu no fui vencido! / Repouso no sepulcro sem nunca termorrido. / Neste desterro / de grades guarnecido / onde s vezes brilham /

    luzes estelares, / dos livros sorvo o saber / e as lies de lutas milenares. / Embora da derrot/ a lana sangre-me ainda o corao / no temerei novas batalhas / se empunho agora a armada razo. / Regressarei vida / onde me espera a luta, / no corpo / levo o execrvel estigmadas grades, /

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    no corao / uma esperana nova, / na alma / uma paixo que arde / liberdade, liberdade!"

    Entre os poemas, estava um de autoria do ex-sargento Antnio Prestes de Paula, entocondenado a 16 anos de recluso. O entrosamento j era grande e 1968 batia s portas.Repercutiam fortemente na priso os movimentos de massa contra a ditadura, e chegavamnotcias da preparao da luta armada. Agora, Che Guevara e Regis Debray eram lidos. Notardaram contatos com esses grupos guerrilheiros em vias de criao.

    Em 26 de maio de 1969, a fuga, que obteve grande repercusso. "Penitenciria assaltada,grupo armado ajudou fuga de presos" era a manchete de O Globo no dia seguinte, cujareportagem dizia:

    O ataque armado Penitenciria foi rpido e o tiroteio irrompeu ao primeiro sinal de reaocontra o grupo que saa de trs carros estacionados a pouca distncia da priso. Ao final dostiros, que colheram de surpresa a guarda da cadeia, nove prisioneiros haviam escapado,levados pelo grupo armado... Foi o mais audacioso plano de fuga j executado contra umacadeia no Brasil.

    At a, fatos. Depois, como sempre, o delrio: segundo O Globo, estava montada na Lemos dBrito a "Clula Comunista Encouraado Potemkim".

    Logo depois, os presos polticos que estavam no continente foram transferidos para umagaleria da Ilha Grande, isolados dos demais. Foi, para todos, um choque. Eu conviviadiretamente com cerca de cinquenta deles, a maioria marinheiros, muito integrados coletividade, hbeis no artesanato, nos esportes e nas ar-

    [pg. 39]

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    tes. A transferncia desses companheiros para a Ilha Grande modificou nossa rotina.

    Pouco podamos fazer, mas fizemos, pelo menos simbolicamente: reorganizamos e levamos vitria o 25 de Maro, time de futebol que lembrava a data do levante que trouxera osmarinheiros priso.

    Como desdobramento natural do nosso trabalho, surgiu a idia de fazer um jornal, o NossaVoz, a princpio apoiado pelo grupo esprita que nos visitava e depois pelas prprias

    autoridades. O ento secretrio estadual de Justia, Dr. Cotrin Neto, chegou a propor que apublicao alcanasse todos os presdios, idia que consideramos bem-vinda. Mas a lua-de-mel acabou no segundo nmero, quando comeamos a dizer tudo o que gostaramos. Caramonuma armadilha. Minha punio pela ousadia: Ilha Grande o lugar onde (conforme diz atradio) o filho chora e a me no v. Fim-de-linha do sistema, caminho sem volta. Ningumpassa impune por l.

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    ada mais revoltante do que uma punio injusta ou gratuita. Em 1971, minha liberdade eraquesto de poucos meses. Por que devia ser enviado Npara aquele fim de mundo, sem ter feitnada demais? Aprendi a nunca mais confiar no sistema. No sentia propriamente medo. Com28 anos de idade e dez de cadeia, j estava entrosado com a massa. Essa no era, no entanto,situao de muitos dos quarenta presos que, algemados entre si, lotavam o corao-de-meque partiu de Bangu. Todos procuravam no olhar alheio, na postura dos guardas, namovimentao geral um sinal do que estaria por vir. Logo percebi que o rapaz ao meu ladoiria sofrer: garoto novo dizia-se j chegava na ilha casado.

    Em camburo superlotado, pessoas e coisas se acomodam como podem, segundo as leisuniversais da fsica acelerao e inrcia, principalmente e o estado de esprito domotorista. Curvas e freadas contribuem para a arrumao possvel, sujeita por horas a fio aosacolejos naturais de qualquer viagem. Pouco ar e, pelas frestas, luzes da cidade, pedaos detranseuntes, corpos imaginados, imagens fugidias que nos recordam a vida em liberdade.Buzinas soam, e tudo parece novo. No fosse uma simples chapa de ferro, estaramos imersona vida.

    Levvamos nossos pertences em sacos, mas para mim isso no era problema.

    Provisrio no mundo,

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    sempre carreguei pouca coisa: dinheiro mido, uma cala, um calo, pasta e escova dedentes, sabonete e cigarros era tudo o que eu tinha. Leve de bagagem, pude apressar o passono transbordo, de modo a ultrapassar sem maiores problemas o corredor polons que, noporto de Itacuru, precedia ao embarque no poro fedorento de um barco. Era praxe!

    Frestas. Por elas, continuamos a nos revezar para ver um pouco do mundo, agora totalmente

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    azul e um pouco enjoativo. Foi nessa condio que, depois de navegar bastante, avistei oparaso: montanhas altas e recortadas, enseadas tranquilas e hospitaleiras. Nosso barcorecebeu o abrao de uma baa e, ao longe, apareceu um povoado; logo se pde descortinaruma pequena igreja, um velho cais para embarcaes menores, runas de um presdiodesativado e algumas casas. frente, um cais de maior porte, casinhas pequenas e umaconstruo de cor azul, que parecia um grande galpo. Logo descobri que era usadoalternadamente como clube e como local de revista para os que chegavam em direo aopresdio novo.

    H muito tempo o destino do belo lugar esteve associado ao sofrimento dos homens. Faziam-se ali, clandestinamente, desembarques de escravos, mesmo depois da abolio do trfico. E1880, temendo o contgio de uma epidemia de clera em curso na Europa, o governobrasileiro iniciou na ilha a construo de instalaes capazes de manter, em quarentena, at1.500 homens. Em 1892, no incio da Repblica, tornou-se necessrio segregar portadores doutro tipo de clera, ainda mais assustador para nossa classe dominante: para l foramenviados os sobreviventes da glorio-

    [pg. 42]

    sa Revolta da Armada, feitos prisioneiros. Em 1903, formalizou-se no lugar a existncia deuma colnia correcional, mais tarde em pleno Estado Novo

    denominada Cndido Mendes.

    O desembarque na vila do Abrao era acompanhado pelo segundo corredor polons: ningumescapava da pancadaria antes de subir na carroceria do caminho que, em duas horas de

    viagem por estradas de barro, cruzaria toda a ilha e nos despejaria no presdio, aindaalgemados. Ao, finalmente, chegar, depois de todo um dia de viagem, no pude deixar depensar no contraste entre aquele lugar escondido, de frente para o oceano aberto, e ocomplexo da Frei Caneca, excessivamente visvel, com seus muros altos bem no centro doRio.

    Um-sete-quatro-quatro-quatro-cinco.

    William.

    Estava feito o primeiro confere, que servia como senha de entrada numa comunidade fechadadividida e imersa em hostilidades havia vrias geraes. A ilha no punio apenas parapresos. Para l vo os guardas considerados problemticos pelo prprio sistema. Almdestes, h filhos e netos de guardas mais antigos, que se fixaram por l em outras pocas,criando razes. Aprenderam, desde cedo, o ofcio dos pais, e cresceram imersos na peculiarcultura local. Muitos sequer conheciam o Rio.

    Que podiam pensar da vida? Como podiam entender aquelas levas de pessoas estranhas,

    vindas de longe, j na condio de prisioneiros?

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    Passados os muros, nosso caminho manobrou em um ptio e encostou em um sobrado de doandares, anexo a um grande prdio de trs pavimentos, todo marcado por rachaduras einfiltraes. Teve incio novo

    [pg. 43]

    confere, nova revista geral e o preenchimento de fichas de entrada. Tornou-se pattico ocontraste entre o nervosismo dos recm-chegados e as atitudes perfeitamente rotineiras dos

    funcionrios administrativos. Passada a porrada, tratam os presos de forma completamenteopaca, como se por trs de cada rosto existisse apenas um nmero de matrcula e umpronturio, e no uma histria de vida. De vez em quando, um pequeno comentrio:

    Assaltante, hem?

    Somos, simplesmente, assaltantes. Ou estelionatrios. Ou homicidas. Entre os direitos queperdemos se encontra o de sermos conhecidos pela totalidade das nossas aes, boas e ms,como qualquer ser humano. O ato criminoso o nico devidamente divulgado e reproduzid

    nas fichas define tudo o que somos, resumindo, de forma mgica, passado, presente efuturo. H gente que acredita nisso.

    Desarticular a personalidade do preso o primeiro e, talvez, o mais importante

    papel do sistema. Espancados, compulsoriamente banhados, assustados e numerados,estvamos prontos. Fomos ento conhecer o refeitrio sujo, lodoso, infecto a caminhodo espera, uma cela coletiva no terceiro andar do presdio, onde cada um aguarda para serdistribudo pelas alas e galerias, quase todas coletivas. O

    ambiente era paranico, dominado por desconfiana e medo, no apenas da violncia dosguardas, mas tambm da ao das quadrilhas formadas por presos para roubar, estuprar ematar seus companheiros.

    Piores que os guardas, esses presos violentos eram ali colocados, estrategicamente, por umaadministra-

    [pg. 44]

    o que tinha todo interesse em cultivar o terror. Ningum dormia no espera, pois a qualquermomento o infortnio poderia chegar. Quem no se dispunha a brigar, no sobrevivia comintegridade. Tive meu primeiro conflito quando quiseram estuprar o rapaz que viera algemadcomigo. Os autores da faanha eram dois sujeitos que, nas andanas pelo sistema, eu j viraajoelhados e humilhados, pedindo perdo Polcia.

    Gostavam dos mais fracos, os pulhas.

    O ambiente nas galerias no era muito diferente. Os presos ainda formavam uma massaamorfa, dividida por quadrilhas rivais. Matava-se com freqncia, por rivalidades internas,

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    por diferenas trazidas da rua ou por encomenda da prpria Polcia, que explorava de formaescravagista o trabalho obrigatrio e gratuito. Dentro dos muros, havia serraria, sapataria,lavanderia, ferraria e colchoaria; fora, nas cercanias, horta, olaria, lenha, viga, estbulo,oficina de pesca e britador. Alguns presos ainda faziam trabalhos domsticos nas casas dosguardas, que estavam sempre prontos a exibir revlveres e porretes, cheios de ironia. A cadatentativa de fuga, o mesmo comentrio.

    O preso foge, mas o tubaro come...

    Jogavam, na nossa frente, uns para os outros, o tubaro um pedao de pau

    anunciando assim a morte de mais um companheiro, enterrado informalmente em alguma partdaquela imensa ilha. Os fugitivos que, por alguma razo, escapassem desse destino, tinhampela frente uma lenta morte anunciada, pois a punio pela ousadia era um longo perodo vezes, trs anos no isolamento. No se passa impunemente por experincias assim.

    [pg. 45]

    Mas o maior inimigo da massa da Ilha Grande era, na poca, ela mesma, que estava divididadominada pelo terror. Eram presos os que cortavam madeira no mato e preparavam osporretes usados pelos policiais. Fabricando caixes, aprendia-se o ofcio de marceneiro. Eravisvel um cemitrio nos fundos do prprio presdio. Os laudos cadavricos eu soube depois eram assinados por um antigo refugiado nazista que ali encontrara acolhida.

    Dessa primeira vez, fiquei l poucos meses. No suspeitava, ento, que, anos depois, daresistncia a essa situao, comearia a nascer na Ilha Grande um novo estado de esprito

    entre a massa carcerria. Tambm no suspeitava do massacre que atingiria meus melhoresamigos, nem da boa surpresa que mudaria minha vida.

    Quando retornei ao continente, pensava apenas na liberdade, que no entanto no veio.

    Sem saber, estava condenado revelia pela Justia de So Paulo. A Casa de Deteno meesperava.

    [pg. 46]

    epois de conhecer o espera da Deteno, to pavoroso quanto o da Ilha, fui colocado commais uns trinta homens numa cela D feita para cinco, em cuja largura no cabia uma pessoaesticada. Era uma coisa de louco, todo o mundo espremido. Se voc no tivesse conhecimentna massa, ficava padecendo por l. Os presos mais fortes vendiam pessoas para pederastia, eos guardas vendiam lugares em xadrezes melhores, na prpria Deteno. Na falta de dinheirovivo, cigarro era a moeda circulante. Fiquei l um ano e oito meses, trabalhando novamenteem alfaiataria. Finalmente livre, voltei para o Rio.

    Embora j tivesse conscincia da situao poltica do pas, no pensava em me ligar anenhuma organizao revolucionria. Tampouco me interessava acumular propriedades: o

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    negcio era viver melhor, enquanto fosse possvel. Bater carteiras na rua, fazer pequenosfurtos, assaltar transeuntes isso nunca mais. Sa da priso resolvido a buscar nos bancos, mo armada, os recursos que no tinha e que no obteria por meio de trabalho comum,meramente escravizante. Havia riscos, claro, mas me dispunha a enfrent-los. A priso meprofissionalizara no crime. Com quase trinta anos de vida e mais de dez na cadeia, no viacomo voltar atrs.

    [pg. 47]

    No tardei a ser preso de novo, na fuga de uma ao. Ironia: enviaram-me para o DOI-CODIorganismo do Exrcito encarregado da represso poltica, na rua Baro de Mesquita, onde futorturado choques, pau-de-arara para confessar a que organizao poltica pertencia.Quatro dias levaram para se convencer de que eu no era subversivo.

    Sou da organizao da fumaa.

    Quando isso ocorreu, fui para o DOPS, todo inchado, com duas costelas quebradas. Lei de

    Segurana Nacional. Cheguei noite no velho prdio da rua da Relao e fui colocado noconhecido Rato, um conjunto de pequenas celas individuais, revestidas de chapas de ao,situadas no fundo da carceragem e reservadas aos incomunicveis.

    Na manh seguinte, escutei passos e logo um rosto muito branco, com cabelos lisos, semostrou na portinhola, falando de forma amiga:

    Se precisar de alguma coisa, s chamar.

    Ficamos amigos e, nos trs meses seguintes em que l permaneci, tivemos longas conversas.Chamava-se Janurio Pinto de Almeida Oliveira Janu e sua histria impressionantemerece ateno.

    Janu e seu irmo Antnio Marcos haviam sido criados para ser padres, mas desistiram dessedestino em 1965, ao completarem o ginsio no Seminrio Arquidiocesano So Jos.Ingressaram na Juventude Estudantil Catlica e, em 1967, comearam a participar domovimento estudantil que ento se reorganizava. Em fins de 1969, ficou preso dois meses,acusado de pertencer Vanguarda Armada Revolucionria Palmares (Var-Palmares).

    Novamente em liberdade, sempre em companhia do irmo, passou a viver na

    [pg. 48]

    semiclandestinidade e conseguiu abrigo numa igreja em Oswaldo Cruz, subrbio do Rio, ondse integrou ao Grupo de Jovens que ali atuava. No tardou nova priso, com invaso deresidncias e da prpria igreja onde se reuniam.

    Em maro de 1972, um duro golpe: numa casa na avenida Suburbana, usada para reunies do

    grupo, Antnio Marcos foi morto por agentes do DOI-CODI. Janu ficou transtornado.

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    Um ms depois, outro golpe: sua irm foi presa e barbaramente torturada. Janu permaneceu eliberdade at fevereiro do ano seguinte, quando tambm foi preso, experimentando otratamento ento dispensado a todos. Agora estava ali, no DOPS, como sempre solidrio comos outros.

    No incio de 1975, eu fui transferido para o presdio Hlio Gomes (o conhecido PP) e Januretornou liberdade. Manteve-se em contato comigo: casou, teve duas filhas, chegou a sersubgerente de uma firma distribuidora de cosmticos, mas no perdeu o sentido da luta.Apoiou deputados progressistas do ento MDB, integrou-se Associao de Moradores deSenador Camar, tornou-se por opo trocador de nibus. Voltou a ser preso em 1981,num carro roubado. Condenado a trs anos e quatro meses, esteve em gua Santa, onderedigiu documentos de denncia sobre as condies carcerrias. Um deles se salvou e chegoat mim: As celas esto superlotadas. Em cada xadrez moram, em mdia, trinta homens. Asralas espumas com que forramos o cho, alm de estarem impregnadas de insetos daninhos,no so suficientes para todos. Na maioria dos casos, dormem dois homens em cada espuma.Para mantermos a higiene somos obrigados a comprar desinfetan- [pg. 49]

    tes e sabo com o nosso prprio dinheiro, pois nada disso a casa concede.

    Improvisamos panos para a faxina com pedaos dos cobertores. A gua s aberta trs vezeao dia, 15 minutos por vez. Permanecemos trancados 24 horas por dia.

    No permitido nenhum tipo de comunicao de um xadrez para outro, por mais necessriaque seja. A casa no d nenhum tipo de ocupao. Se procuramos fazer algum tipo de trabalhde artesanato, pagamos preos absurdos pelo material, comprado aqui na cantina. Estamos emgua Santa como se estivssemos sepultados vivos. Alis, os que se encontram na galeria A

    (a mais numerosa) esto literalmente sepultados vivos, j que essa galeria subterrnea ...Estamos cansados de assistir cenas em que um companheiro retirado sob espancamento parser levado inspetoria, onde ser submetido a mais violncia. Pelo menor motivo, ou at semmotivo, estamos sujeitos a agresses. Basta, por exemplo, uma palavra em voz baixapronunciada num momento em que eles exigem silncio. A nica preocupao deles, nomomento, parece ser no deixar marcas muito reveladoras...

    Em outubro de 1982, j em priso-albergue, resolveu no se reapresentar, ficando foragido dJustia. No conheo em detalhes a histria de Janu nessa fase.

    Mas, por testemunho de sua companheira, sei que, na madrugada de 11 de fevereiro de 1983,foi preso, degolado e deixado morto nos matagais de So Gonalo, tendo sido enterrado comindigente no cemitrio de Pacheco, em Niteri. Deixou inconcluso um pequeno romance quecomeara a escrever.

    Eu estava ento numa cela da galeria D do presdio Hlio Gomes, uma espcie de centro detriagem de grandes dimenses. Apesar de ser dentro do complexo da Frei Caneca, o prdio dPP no fora projetado para servir de priso. No sei por que, os quatro

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    andares foram adaptados para isso, criando-se celas coletivas que pareciam cofres: portasinteirias de ao com pequenas vigias que s serviam de fora para dentro, janelas pequenas ealtas. Nada se via l fora. No cho, apenas estrados de madeira.

    Onde caberiam dez, moravam quarenta, sem gua na cela: uma vez por dia, recebamos latasde vinte litros, para todos os usos.

    Por ser um local de trnsito, o PP sempre teve mais violncia: misturavam-se ali pessoas comos mais diversos passados e perspectivas mais diversas ainda, dificultando ao extremo que scriasse uma conscincia coletiva. Pistoleiros de aluguel podiam dividir a cela com um presoprimrio. Na minha poca, chegou a ter polcia mineira: preso que batia em preso a mandodos guardas, que no queriam sujar as mos ou se cansar. Isso me enojava. Eu passava meutempo roendo a raiva e fazendo, a lpis, malditas palavras cruzadas, cujo estoque no podiarenovar. Fazia e apagava, para recomear a fazer.

    Desejava, claro, fugir. Juntei-me com um rapaz chamado Heleno e preparamos uma fuga peteto (estvamos no ltimo andar). Era preciso conseguir serra, talhadeira e marreta, mas issose resolvia com o dinheiro que tnhamos. Fizemos a encomenda e, depois, chamamos o xerifeda cela. Medrou e foi destitudo do cargo.

    Era inevitvel que todos os companheiros tomassem conhecimento da nova atividade.

    Conversamos com um por um:

    Ningum se comunica. Na hora, vai quem quiser. Qualquer vacilao, morte certa.

    O plano: furar a parede, passar para o corredor, atingir a gaiola onde ficavam os guardas doandar, ar-

    [pg. 51]

    rebentar o cadeado e subir. Uma vez no telhado, procurar o caminho. Comeamos o tal buractomando o cuidado de preparar com antecedncia um quadro que o esconderia.

    Com trs horas de trabalho por dia, em cinco dias terminamos. Tudo deu certo.

    Samos. Escondidos num vo, esperamos a troca de guarda. A noite ia alta quando umcompanheiro pediu que o polcia se aproximasse da cela. Foi dominado, conforme o previstoCom rapidez, invadimos o alojamento e aprisionamos mais dois.

    Arrebentamos em seguida o cadeado e subimos em direo ao sto. A, nada certo.

    Alm de trs cadeados, a porta de cima tinha uma engrenagem especial, cuja chave

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    disseram os guardas estava na segurana.

    Vamos sair pela porta da frente.

    Heleno vestiu uma farda e, com esse estratagema, usado sucessivamente em cada andar dopresdio, conseguimos atingir a galeria A, perto da ltima porta. Merda.

    Talvez alertado por algum barulho estranho, o plantonista de baixo no confiou na simples

    aproximao de Heleno fardado:

    Quem voc?

    Alarme. Tentamos, sem sucesso, arrombar os cadeados, mas chegaram reforos logo. Erapreciso recuar. Para evitar uma invaso imediata, tocamos fogo na galeria e conduzimos novguardas, como refns, para o ltimo andar, onde passamos a negociar nossas vidas. Se nosrendssemos em plena madrugada, no sobraria ningum para contar essa histria. Trs horasde agonia, com centenas de policiais volta. Ameavamos com bombas (que no tnhamos)

    mas no pudemos resistir.

    Comeou a fulminante invaso. Ferido

    [pg. 52]

    a tiro na mo, semidesacordado de paulada, enrolado num cobertor, fiz minha primeira entradno hospital do sistema penitencirio.

    Noventa dias depois, novamente Ilha Grande.[pg. 53]

    [pg. 54]Pgina em branco

    que o hospital consertou, a escolta voltou a quebrar, apenas para manter a velha praxe.Cheguei na Ilha e, modo de pau, fui levado direto para o lado OB da segunda galeria. Era amesma que, anos antes, recebera os marinheiros e outros presos polticos da velha gerao,depois da fuga da Lemos de Brito. Gradativamente libertados, a partir de 1971 foramsubstitudos pelo grupo ao qual me integrei. Assaltramos bancos, mas sem vinculao com aorganizaes armadas, que faziam o mesmo num contexto de luta contra o regime de exceo

    Mesmo assim, para preservar o que os juristas chamam de isonomia mesmo tratamentourdico para os mesmos crimes , estvamos entregues a foros militares e submetidos a

    todos os rigores da Lei de Segurana Nacional, instrumento de clara inspirao poltica. Essambigidade tornou-se nossa marca registrada, inclusive do ponto de vista subjetivo. Hoje,vejo que ela contribura fortemente para que o grupo tivesse um trgico destino.

    Nossa marca objetiva era a situao de isolamento. Depois de permanecer algum tempo em

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    quartis militares, a maioria dos presos oriundos das organizaes armadas dos anos 70tambm tinha regressado Ilha Grande. Alegando incompatibilidade de hbitos e deideologias, eles pediram que a galeria fosse di-

    [pg. 55]

    vidida, o que foi feito, cabendo a ns a parte conhecida como Fundo. Eram vinte cubculosindividuais, ocupados porm por quatro ou cinco pessoas, em regime de tranca dura, com

    direito de circulao pela galeria apenas nos instantes que antecediam o caf da manh e oalmoo, servidos em grandes panelas. Abertos os cubculos, fazamos filas para encher nossopratos com a combinao quase invarivel: feijo-com-arroz e carne-com-batata. Alm dessparcos minutos, meia hora de banho de sol e curtas visitas quinzenais era o tempo disponvelfora das celas.

    Quase noventa homens assim permaneciam, isolados duplamente da comunidade em geraldos demais presos e com identidade social e jurdica pouco definida: apesar de submetida tribunais de exceo e combatidos pela mquina repressiva do regime, no ramos

    considerados presos polticos.

    Os companheiros com quem passei a dividir a morada me receberam muito bem, preparandome chs e infuses para aliviar minhas dores. Havia forte tenso no ar. O

    isolamento de todo o grupo era angustiante, mas, mesmo assim ou por causa disso

    , iniciava-se um processo de luta. As portas dos cubculos eram de madeira grossa, pintadde marrom e trancadas por fora. Por cima delas, muito mais altas do que uma pessoa,

    pequenas aberturas gradeadas garantiam a circulao de ar, dando para o prprio corredor.Por ali, um rosto mulato apareceu e sussurrou com pressa:

    Eu sou o Nelson. Quero falar com voc. Cabea, cabea, no se teleguie.

    Disse essa ltima frase com o dedo apontado para a prpria testa, indicando que eu deveriapensar, e sumiu. No entendi o recado, nem tive tempo de responder.

    [pg. 56]

    Logo descobri que Nelson Nogueira dos Santos era um preso singular: tinha cerca de trintaanos de idade, lia muito, falava mais, gostava de msica clssica.

    Exercia uma clara liderana intelectual sobre os outros. Era ele quem redigia os documentosincentivava os grupos de estudo, fazia um acirrado trabalho de conscientizao.

    No primeiro banho de sol, pudemos conversar longamente. Ele discorreu sobre asdificuldades do Fundo e a necessidade de organizar os companheiros, superando diferenas

    trazidas da rua, estabelecendo um modo de vida que permitisse liberar nossas energias para confronto com a represso e a luta pela liberdade. Temia que eu desse fora para os mais

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    renitentes a essa organizao, que diziam ser meus amigos.

    Precisamos de pessoas que nos ajudem.

    Concordei plenamente e assumi o compromisso de apoiar o esforo para manter a unidade eevitar qualquer manifestao de individualismo. Um grupo mais esclarecido funcionava comorganizador do coletivo e havia uma comisso encarregada de negociar, em nome de todos,com a administrao. Na diviso dos cubculos, procurava-se colocar juntos companheiros

    que tinham e que no tinham visita, de modo a garantir que todos tivessem acesso a umacobertura de fora, geralmente reforo alimentar ou material de higiene. Nas freqentesreunies discutiam-se problemas internos e problemas gerais, incluindo-se a sesses deleitura coletiva.Ahistria da riqueza do homeme Vietn: a guerrilha vista por dentroeramdois dos livros que tnhamos l. Grupos pequenos conseguiam encontrar-se da seguintemaneira: na hora de pegar o caf,

    [pg. 57]

    quando os cubculos eram abertos, os companheiros que fossem participar de uma mesmareunio manobravam na fila e entravam todos num mesmo cubculo, previamente combinado,onde permaneciam trancados at o almoo, quando as portas novamente se abriam.

    A unidade, no entanto, j no ultrapassava mais o porto de ferro que nos separava dosintegrantes das organizaes armadas: eles no se misturavam, rompendo assim, talvez semsaber, uma velha tradio das cadeias, em que revolucionrios e presos comuns, aocompartilharem o mesmo cho e o mesmo po, cresciam juntos num mesmo ideal. Tinham suarazes, mas no ramos obrigados a aceit-las.

    Para esvaziar a luta pela anistia, a ditadura negava a existncia de presos polticos no pas.Nesse contexto, interessados em garantir sua visibilidade para a opinio pblica nacional einternacional, os membros das organizaes armadas dos anos 70

    lutavam para isolar-se da massa, comportamento considerado elitista por ns. Seu discursoera coerente, mas frgil: a existncia ou no de presos polticos no Brasil no seria umaquesto decidida pelo fato de eles estarem isolados, mas pela fora do movimento deoposio ditadura. O desejo de isolamento indicava, entre eles, a hegemonia da classe

    mdia, cujos espaos de reintegrao no sistema voltavam a se abrir, no contexto da polticade distenso do regime. Ns no tnhamos essa perspectiva, nem nos seria dada essa chance.Nosso caminho s podia ser o oposto: a integrao na massa carcerria e a luta pelaliberdade, contando com nossos prprios meios.

    [pg. 58]

    Nelson, Ricardo Duram de Arajo, Apolinrio de Souza (Nanai), Paulo Nunes Filho (FlvioSrgio Tlio Ach, Carmelindo Lima Rodrigues (Baianinho) e outros companheiros pediram

    que eu fizesse nova tentativa de aproximao, mas no tive xito. Terminara o perodo de

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    cooperao entre os dois coletivos. "Existem trinta presos polticos na Ilha Grande",escreviam em seus documentos. "Somos noventa presos proletrios", respondamos, com umponta de mgoa e provocao. ramos testemunhas de que geraes anteriores de ativistaspolticos tinham feito questo de conviver com a massa, da qual sentiam-se parte e pela qualdesejavam zelar. Dessa vez, as condies eram ainda mais favorveis: tnhamos a experincde outros contatos, estvamos organizados, desejvamos ampliar nossa pequena biblioteca,queramos aprender. Mas eles no perceberam ou no quiseram perceber aoportunidade de convivncia.

    Participei do grupo de coordenao interna do Fundo e, posteriormente, da comisso decontato com a administrao, escolhidas sempre entre as pessoas mais populares de todas asquadrilhas, bem como de todas as comunidades, l representadas. Estvamos em 1974, enossas principais lutas eram contra os espancamentos, pela abertura dos cubculos ao longodos dias (com a conseqente permisso de trnsito dentro da galeria) e pelo respeito aosnossos visitantes. Estes estavam submetidos a um verdadeiro massacre: sem permisso parapernoite na prpria Ilha Grande, faziam uma estafante viagem de ida e volta num mesmo dia estavam sujeitos a todo tipo de humilhaes. Assim, nossas famlias tambm cumpriam pena.De-

    [pg. 59]

    pendamos delas, inclusive, para complementao alimentar, pois a comida no presdio eraintragvel. At hoje, forte entre os presos a desconfiana de que parte do oramentodestinado ao sistema fica nas mos de quadrilhas de carcereiros profissionais, que desviamalimentos e compram produtos de muito baixa qualidade, agindo em acordo com certosfornecedores.

    Conseguimos uma unidade praticamente total, e a disposio de luta era grande.

    A medida de nmero um que representava uma verdadeira revoluo cultural na cadeia era a proibio de qualquer ato de violncia de preso contra preso. As incompatibilidadespessoais deveriam ser deixadas de lado, para serem resolvidas na rua, pois era preciso criarentre ns um ambiente tranquilo, que nos fortalecesse diante da represso. Assalto, estupro oqualquer forma de atentado estavam banidos.

    Uso de armas, s para fugir, se surgisse ocasio. Ou melhor: se consegussemos fazer aocasio. Vivamos procurando uma sada, tentando escapar de qualquer jeito. Nem animaissuportariam passivamente aquele cativeiro cruel, em que tudo nos era dificultado. Nossasdenncias e reivindicaes, por vrias vezes encaminhadas Justia, definitivamente noeram levadas em conta.

    O sofrimento fortaleceu nosso desejo de fuga. A primeira oportunidade foi singular. Paulinhochegou do juiz com a boa notcia: fora absolvido, faltava apenas esperar o alvar. A rigor, ndeveriam t-lo trazido de volta: poderia esperar a liberdade no Hlio Comes. Mas o fizeram

    e Nanai logo pensou que poderamos tirar proveito desse erro:

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    Se um vai embora, por que no tentarmos dois? A idia era simples: alvars no trazemfotografias, e, em geral, os guardas no nos conheciam pelos nomes. Que tal?

    Conversamos com Paulinho:

    Nossa lei ajudar um ao outro. De qualquer forma voc vai sair, pois foi absolvido. Deix

    o Jlio se apresentar em seu lugar. Ele est cheio de cadeia...

    Tudo certo.

    Alm de condenado a dezenas de anos, Jlio Csar Ach foi escolhido por ser parecido comPaulo. Nosso barbeiro providenciou um corte de cabelo que aumentasse a semelhana.

    Depois, o falso absolvido estudou os dados do outro pais, aniversrio, nmero de registro e ficamos esperando. O dia seguinte nem tinha amanhecido quando um guarda chamou

    Paulinho na grade. Jlio se apresentou, disse em voz alta os dados e saiu, sob intensa, pormcontida, torcida de todos ns. O massacre a que estvamos submetidos tornava ainda maissaboroso o gosto de vingana que o estratagema trazia.

    Vinte e quatro horas depois Paulinho bateu desesperado na porta, chamando o guarda dePlanto:

    Quero ir embora! Quero ir embora!

    Est maluco, rapaz? Ir embora a troco de qu? Meu alvar j chegou!

    Como teu nome?

    Paulo de tal.

    Esse cara saiu ontem.

    No. O Jlio me deu um ch e eu dormi at agora. Ele no est mais aqui. Foi no meulugar!

    Trs dias depois, Paulinho deixava o Fundo, aclamado pela galera.

    [pg. 61]

    [pg. 62]em branco

    embro-me at hoje do jeito calmo do falecido Jorge Jordo de Arajo, o Ca, integrante danossa comisso. Mineiro, muito popular, cheio de Lconversa, nos banhos de sol batizara nos

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    time: era o Chora na Cruz.

    Como que est, meu irmo Ca?

    T chorando na cruz.

    Tinha razo. No havia perspectiva vista: num tempo em que as garantias individuais docidado nas ruas estavam suspensas, que dizer das mesmas garantias para ns, condenados?

    Mas preciso reconhecer que, em meio a tantas dificuldades, o Fundo nos deu um mnimo destabilidade, condio para que construssemos uma identidade. At ento no criramosrazes, pois estvamos sempre de passagem em alguma unidade do sistema, jogados daquipara ali, como coisas. De vez em quando saa um sambinha, em geral puxado por Z Saldanhe Nanai. Cantando e batucando sem ver os demais, nosso coro realizava em paralelo doisdesejos profundos de qualquer coletivo de presos: deixar o tempo passar e irritar oscarcereiros.

    Em 1974, comearam os choques diretos com a administrao. O primeiro decorreu de umprotesto que fizemos contra um duplo homicdio. Aproveitando-se do fato de prestaremservios extramuros, dois

    [pg. 63]

    presos comuns se embrenharam no mato, tentando fugir. Sua ausncia foi notada na hora doconfere, causando a mobilizao de um contingente que conseguiu localiz-los alguns diasdepois. Trazidos de volta a socos e pontaps, chegaram agonizantes. O

    subinspetor mxima autoridade local naquele momento no quis receb-los nesseestado. Enquanto os funcionrios procuravam a melhor maneira de contornar o impasse, osdois fugitivos ficaram deitados na frente do porto principal do presdio, onde um veio afalecer, sob protestos de um grupo de presos, que a tudo assistia. O

    segundo rapaz morreu no transporte para o continente.

    Fizemos uma denncia formal, conseguindo apoi-la em mais de duzentas assinaturas de

    presos comuns, alm dos cerca de noventa que estavam no Fundo. Ocoletivo dos presos polticos nos ajudou a enviar o documento que, divulgado no exterior,levou punio de diversos guardas penitencirios e integrantes da Polcia Militar.

    Foi um fato extraordinrio, que provocou um acirramento no dio que os agentes da repressnutriam contra ns. Aumentaram o controle e os conflitos, e, com eles, nossa disposio parafugir a qualquer preo. Com o incio dessas tentativas, comeamos a sofrer as primeirasbaixas.

    Em dezembro de 1974, trs de ns Antnio de Barros Cavalcante (Antnio Branco),

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    Francisco Rosa da Silva (Horroroso) e Rivaldo Carneiro de Moraes (Marta Rocha) foramembarcados para uma audincia judicial, sendo instalados provisoriamente no Galpo daQuinta da Boa Vista. Entenderam ento que era chegada a hora de uma tentativa de fuga, queterminou tragicamente. Impedidos de sair pela guarda,

    [pg. 64]

    tomaram como refm o diretor do presdio, coronel Darci Bittencourt da Costa, e durante oito

    horas e meia, sitiados na cela oito da galeria B, negociaram a liberdade, na forma de umsalvoconduto para o Mxico, tal como havia sido feito, anos antes, com presos polticostrocados pela vida de diplomatas estrangeiros. Desta vez, a deciso do governo foi outra. OGalpo foi invadido por forte contingente policial que atirou em todas as direes, matandouma dezena de presos a maioria dos quais sem participao alguma no episdio e oprprio coronel. Segundo os jornais do dia seguinte, a invaso da galeria ocorreu s 17h e fofulminante. s 17h 15min, porm, quando tudo j estava dominado e a imprensa era mantidado lado de fora,

    "recomearam os tiros [entre quem?], que duraram mais um minuto, de forma esparsa, at qua situao foi dada como dominada". No ficou testemunha do que se passou.

    A famlia do coronel, sintomaticamente, dispensou as honras militares de praxe, que chegarama ser anunciadas pelo comandante da Polcia Militar.

    A invaso do Galpo foi fartamente documentada pela imprensa. No posso lembrar daquelacenas sem ver tudo como espetculo, exibio de poder. Sabamos que Antnio Branco eraimpetuoso em ao e tinha sede de liberdade, mas estava isolado, dominado, querendo

    negociar. No Fundo, esse antigo funcionrio pblico

    no sei se dos Correios ou do Banco do Brasil conquistara nossa amizade com seu jeito dsonhador. Tendo sido pintor, retratara Lampio na cabeceira de seu beliche

    costumava dizer que ramos os "cangaceiros da era das mquinas" e fizera, no outro lado,um desenho impressionante, em que se

    [pg. 65]

    misturavam um cogumelo atmico, flores e crianas despedaadas: " como eu vejo estemundo", disse-me um dia.

    Sobre sua transferncia para o Galpo, houve muita especulao. A verdade que foramandado para l por existirem suspeitas de que havia um plano de fuga do presdio HlioGomes, envolvendo Lcio Flvio e o pessoal do Fundo (que normalmente ficava alojado lquando vinha ao continente para alguma audincia judicial). O tal plano era completamentefictcio, mas a direo do presdio resolveu transferir nossos companheiros para o Galpo,

    onde paradoxalmente a segurana era muito menor. Da a idia de aproveitar a ocasio parafugir. Enquanto o plano amadurecia, eu mesmo passei pelo Galpo, onde Antnio Branco j

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    preparava o esquema, tendo adiantado o pagamento do necessrio suborno a quem de direito

    Quando voltei do juiz, passamos a noite inteira aguardando para qualquer momento a entradadas armas encomendadas. Na manh seguinte, quando os presos do convvio fossem para obanho de sol, renderamos o guarda e manteramos a guarita sob fogo, para lanar uma cordasobre o muro e alcanar a Quinta da Boa Vista, onde um carro nos esperaria. Por algummotivo, as armas no chegaram na noite combinada.

    Frustrados, retornamos Ilha Grande.

    Em Mangaratiba, na baldeao, cruzamos com Marta Rocha e Horroroso, que desciam parauzo. Trs dias depois, Antnio Branco retornou ao continente e reencontrou os dois no

    Galpo, detonando o plano, com um final infeliz. A morte, mais uma vez, cruzara comigo deperto, mas no me escolhera.

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    morte dos trs companheiros nos abalou e intimidou a coletividade carcerria. No Fundo,acentuaram-se os maus tratos e, nas viagens ao Acontinente, os espancamentos se tornarammais abusivos. Depois de muitas denncias na justia Militar, conseguimos que as portas doscubculos permanecessem abertas durante os dias, de modo que todos pudessem transitar pelgaleria. Pouco depois, o Superior Tribunal Militar enviou um juiz auditor para verificar inloco o tratamento que recebamos. Aleluia, o poder, finalmente, se movia, pelo menos naaparncia. Em reunio conosco, o juiz ouviu as denncias, formalizadas por Nelson em nomede todos, e reconheceu nossa difcil situao, bem como de nossas famlias, afirmando quetomaria as providncias necessrias.

    Houve esperanas, mas o tempo passou e tudo ficou na mesma. Recebemos depois a visita dosecretrio estadual de Justia, Laudo de Almeida Camargo, e do diretor-geral doDepartamento do Sistema Penal (Desipe), Augusto Frederico Thompson. Diante de nossacomisso, este ltimo afirmou que no poderamos mais viver como um grupo "estanque eproblemtico"; ramos presos comuns e seramos distribudos no convvio de forma gradativde acordo com o nosso comportamento, de modo a evitar choques

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    com a massa. Solicitou que fizssemos requerimentos individuais, reivindicando essaintegrao. Na ocasio, para nos definir usou um termo que repudiamos imediatamente:cancro.

    A reafirmao de nossa condio de presos comuns no era casual. No reivindicvamos parns o estatuto de presos polticos, mas queramos que se mantivesse a coerncia, em nome daqual havamos sido enquadrados numa lei mais severa, feita para castigar opositores doregime. Como justificar, por exemplo, que durante o cumprimento da pena tivssemos negado

    os mesmos benefcios a eles concedidos? A isonomia s funcionaria contra ns? Que tipo de

  • 7/25/2019 Quatrocentos Contra Um_ Uma His - William Da Silva Lima

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    presos ramos, afinal?

    Explicamos ao Dr. Thompson que no haveria nenhum choque com a massa, pois nossentamos parte dela. Quase todos tnhamos passado pelas penitencirias, inclusive pelaprpria Ilha Grande. Alm disso, nossa transferncia para o convvio no seria operaocomplicada: bastava abrir um porto para nos livrar do isolamento, que configurava umasituao de castigo permanente e injustificado. Mas explicamos

    no faramos os tais requerimentos. Em primeiro lugar, porque cabia aos carcereirosassumir a responsabilidade de seus atos. Em segundo lugar, isolados ou no, continuaramos reivindicar, para ns, a extenso de quaisquer direitos que viessem a ser concedidos a pessoque, afinal, objetivamente, haviam cometido os mesmos crimes que ns principalmenteassaltos a bancos e estavam enquadradas conosco na mesma lei.

    Este era o x da questo. Estvamos nesse momento vivendo mudanas polticas no pas.Crescia a pos-

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    sibilidade de reviso da Lei de Segurana Nacional e de anistia aos presos polticos.

    Paradoxalmente, a quebra do nosso isolamento aparecia agora como uma manobrapreparatria para nos excluir dos benefcios jurdicos que viessem a alcanar outroscondenados. Era curioso. A isonomia funcionara plenamente contra ns, na forma de tribunaimilitares, penas maiores, condies carcerrias mais duras. Mas no funcionaria a nossofavor. O que se passou mais tarde veio confirmar nossas suspeitas: aos presos polticos foi

    dada anistia, enquanto ns fomos lentamente aniquilados.

    Justamente nesse delicado perodo de negociaes e impasses, tivemos um grave problemainterno: considerando ser iminente a reintegrao no convvio, um preso do nosso coletivoassaltou um companheiro, rompendo o pacto de no-violncia que havamos estabelecidoentre ns. Como agravante, assumiu uma posio desafiadora quando o assunto foi trazido luz: estava inspirado e apoiado pela quadrilha que ento dominava toda a Ilha Grande,cobrando pedgios, matando e estuprando. O produto do roubo, quando investigamos, j foraenviado para fora do Fundo. Era uma provocao.

    Que fazer? Aceitar sua impunidade seria uma confisso de fraqueza, desunio epusilanimidade. Por outro lado, a nica punio passvel de ser sustentada com xito era amais radical e definitiva de todas: a morte. Ao contrrio dos poderes constitudos, noteramos autoridade para executar qualquer outra pena ou ca