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Este livro é resultado do trabalho de conclusão de curso elaborado como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Toda a apuração do conteúdo histórico foi embasada nas referências citadas ao final desta obra

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  • .. ..QUE ACENDA A PRIMEIRA..QUE ACENDA A PRIMEIRAPEDRAPEDRA

    Ecos da Cracolndia de Belo HorizonteEcos da Cracolndia de Belo Horizonte

    Luiz Guilherme de AlmeidaLuiz Guilherme de Almeida

  • Este livro resultado do trabalho de concluso de curso elaborado comoEste livro resultado do trabalho de concluso de curso elaborado comorequisito parcial para a obteno do grau de Bacharel em Comunicao Social,requisito parcial para a obteno do grau de Bacharel em Comunicao Social,com habilitao em Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Todacom habilitao em Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Todaa apurao do contedo histrico foi embasada nas refefncias citadas ao finala apurao do contedo histrico foi embasada nas refefncias citadas ao finaldesta obra. desta obra.

    Janeiro de 2016Janeiro de 2016

  • O que a memria ama, fica eterno.O que a memria ama, fica eterno.Te amo com a memria, imperecvelTe amo com a memria, imperecvel.

    Adlia Prado

    Para Yasmin. Para Yasmin.

  • SUMRIOSUMRIOPRLOGO6O Po Nosso de cada dia 6

    CAPTULO 1 - ANTES DA CRACOLNDIA: UM BAIRRO E MUITA HISTRIA 20

    De Poeirpolis a Lagoinha 21Mudanas, mudanas, mudanas 25Tutti Buona Gente! 27Modernismo, J.K. e o bairro no embrio da metrpole 30Do crrego ao concreto: nasce o IAPI 37Enfim, Metrpole! A bomia ao estila Lagoinha 43Um complexo inimigo 48Lagoinha hoje: cracolndia, memria e futuro 50

    CAPTULO 2 ENTRANDO SEM BATER 55

    Raspa da canela do diabo 56Sorvete sabor c 59Adlson tem fome de qu? 64O pedreiro que no sabe reconstruir 67Uma razo especial 73

    CAPTULO 3 COM OS DOIS PS L DENTRO: PRAZER, CRACOLNDIA 76

    Bem-vindo ao inferno onde a pedra no para 77Um corao pulsando 79Cara a cara com a realidade82Aqui, o Buraco mais embaixo. E Quente. 85Avies sem asas 87

  • Propsitos distintos. Caminhos convergentes 90O camarote VIP 91O turno da madruga 93Todo final recomeo (?) 96

    CAPTULO 4 ECOS 99

    Uma miss sem faixa 100Avio que no sai do cho, voa? 104O velho e novo amor. 109Ser ou no ser, eis a questo 112Nome do pai: cracolndia 116No justo para quem? 120O n na garganta 123.pouco como um rei ou muito como um Z? 127 espera da primavera 131

    CAPTULO 5 CONHECENDO O INIMIGO 137

    e ento se fez o crack 138Terra vista: pedra chega ao Brasil e em Belo Horizonte 142Perfil brasileiro: quem so os usurios de crack? 145Fenmeno Cracolndia 153

    CAPTULO 6 H QUEM VENA 157

    Maratona de uma vida 158Falta a de Deus 162Enquanto o po no chega. 168H quem vena 174

    GRATIDOBIBLIOGRAFIA

  • 6PRLOGOPRLOGO

    O Po Nosso de cada diaO Po Nosso de cada dia

    I.

    Os dois tambores cinzas j esto a postos. Acostumadosa transportar leite, ali eles cumprem uma funo deresponsabilidade um pouco maior. Comportam 50 litros cada eso preenchidos at o gargalo, quase transbordando. No sepode desperdiar um espacinho que seja. Certamente far falta.As grossas tampas pretas fazem o trabalho de selar o contedoe manter a temperatura fervendo, enquanto so necessrios,pelo menos, quatro braos dispostos para arrast-los at ointerior da kombi. O peso de cada um correspondeproporcionalmente ao da funo que cumpre; algo difcil de sercarregado, fardo pesado, mas que a duras penas, chega l.Dentro deles, uma temperada saborosssima: caridade, afeto,respeito, amparo, esperana, nutrio, esforo, dignidade,amor, empatia.

    E claro: sopa da boa.

  • 7 quinta-feira, dia de sopo na cracolndia. Todos jsabem que quando cai a noite o ritual se altera um pouco.Mesmo que por alguns minutos, os cachimbos do uma pausapra que as mos se ocupem com outros objetos. No o nicodia em que alimentos so distribudos pela regio, mas semdvidas o mais intenso. Os diversos projetos sociais que atuamna empreitada de distribuir alimentos populao de rua dacapital mineira fazem das quintas-feiras uma verdadeiracongregao ecumnica. Espritas, catlicos, evanglicos,ateus, esto todos ali em prol do mesmo objetivo: alentar ocorpo e a alma daqueles que carecem. Sem fanatismosreligiosos ou demagogia. A misso estabelece que no hespao para interesses prprios de igrejas, centros e afins, massomente para o interesse coletivo. chegada a hora detrabalhar.

    Antes.O projeto - Po Nosso - abre suas portas e sua histria.

    Fundado h 14 anos, tem filiao na fora de vontade e nanecessidade. Em 2011, a cpula da Parquia Santa CatarinaLabour entendia que os limites do bairro Dona Clara, ondeest situada, no poderiam ser seu nico campo de atuao. Ocrescimento da populao de rua seguia em ritmo alarmante e aintensificao do consumo de drogas na capital preocupava oinquieto Padre Fernando. Naquela poca, a parquia trabalhavaapenas localmente, mas o proco via no trabalho social umaalternativa de auxlio ao quadro que se agravava em Belo

  • 8Horizonte. Carregava consigo um histrico de xito, j quehavia implantado um projeto parecido quando morava emGovernador Valadares. O projeto nasceu, ento, da mobilizaode toda a parquia, que propunha uma frmula j conhecida deatuao, mas que nunca esgotaria sua funo social: adistribuio de alimentos.

    O incio foi atribulado. Ao comprarem a ideia doprojeto, as pessoas vinculadas parquia comearam a seorganizar para atuar. O saldo de voluntrios foi positivo, mas asaes ainda eram incipientes. Cerca de 70 voluntriosapareceram, mas sem o comprometimento que os planos deao exigiam. Era preciso organizar os voluntrios e otimizar aproposta. Imbudo nas outras atividades da parquia, PadreFernando no seria capaz de coordenar totalmente o projeto eprecisava contar com algum para o posto. Foi quando ahistria de Afonso Ferreira cruzou definitivamente com a doPo Nosso.

    Desde ento, Afonso o coordenador de atividades doprojeto. um senhor baixinho, com cabelos crespos egrisalhos, de fala e passos mansos. Dono de sorrisos toreceptivos quanto a sua personalidade, no dispensa umacamisa polo rigorosamente para dentro dos jeans, pra passarpra passarseriedadeseriedade. Catlico fervoroso, foi funcionrio pblico a vidainteira e recusou-se a descansar depois de aposentado. Sentia anecessidade de se empenhar em outra coisa, algo como umcomo umchamadochamado. Seu trabalho ali imensurvel. responsvel por

  • 9todas as etapas do projeto, principalmente as de organizaologstica, administrao financeira e executiva. Tudo ali temum pouco do seu suor, apesar da modstia que ele mesmoatribui ao seu papel. Ele conta que ao longo dos anos o projetoteve seus altos e baixos, e que no momento vive na linha tnueentre a estabilidade e os prejuzos financeiros, mas sem quedesistir torne-se uma opo. A minha funo aqui muitoA minha funo aqui muitomais que coordenar, isso qualquer um faria. no deixar demais que coordenar, isso qualquer um faria. no deixar demaneira alguma que isso aqui morra.maneira alguma que isso aqui morra.

    A sopa quentinha que chega aos moradores de rua e aosusurios da cracolndia passa por processos longos,desconhecidos para a grande maioria. Tudo comea noscontatos de Afonso para que doaes e negociaes sejamconcludas semanalmente. So inmeros os fornecedores dealimentos: sacoles, supermercados, padarias, frigorficos epessoas comuns. Muito daquilo que sobejo paracomercializao nesses estabelecimentos chega at a parquiaem forma de doaes. So peas de carne, frutas, legumes everduras que seriam descartadas, mas que ali dentro encontramum destino melhor. O contato com revendedores de utensliosdescartveis tambm constante, em vista da quantidadenecessria para a distribuio dos alimentos. A gente contaA gente contacom muitas pessoas amigas, que doam um pouco de dinheiro,com muitas pessoas amigas, que doam um pouco de dinheiro,tempo ou os prprios alimentos. So parceiros de anos a fio,tempo ou os prprios alimentos. So parceiros de anos a fio,que ajudam a manter uma causa viva. Sem esse auxlio deles,que ajudam a manter uma causa viva. Sem esse auxlio deles,seria invivel continuar.seria invivel continuar.

  • 10

    Afonso controla toda a parte financeira com a ajuda deuma pequena equipe. De seu escritrio, nos fundos daparquia, ele faz telefonemas, autoriza pagamentos, coordena ofluxo de caixa e segue angariando outras fontes de renda para oprojeto. Tudo feito de maneira muito simples, utilizandocadernos e livros para a contabilidade, mesclados com algunsraros cliques num computador. Estima-se que, mensalmente,pelo menos R$ 4.000,00 reais sejam gastos com todo o projeto.O dispndio cobre os custos de aquisio dos alimentos,pagamento de contas e manuteno da estrutura na parquia,entre outros. A arrecadao feita atravs de doaes,comercializao do artesanato produzido pela comunidade eeventos comemorativos. Afonso faz um verdadeiromalabarismo financeiro para manter tudo funcionando. tudo sempre muito na conta. Um ms sobra cem, duzentos,tudo sempre muito na conta. Um ms sobra cem, duzentos,enquanto no outro a gente precisa arrecadar mais. Sempre noenquanto no outro a gente precisa arrecadar mais. Sempre nolimite. O que importa dar conta e continuar.limite. O que importa dar conta e continuar.

    Ao menos de um gasto ali ele est isento: mo de obra.Todo o trabalho feito por voluntrios. Atualmente so 30pessoas empenhadas no projeto, que atuam em diversas frentes.Enquanto Afonso trabalha com uma equipe reduzida nacoordenao, outra, composta apenas por mulheres, trabalha nacozinha. Elas so as responsveis por todas as etapas depreparao da sopa. So cerca de dez senhoras j aposentadas,algumas ali com mais de 55 anos, que passam suas tardes dequarta e quinta-feira trabalhando. Chegam cedo para lavar,

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    picar, descascar e refogar tudo.O comando fica por conta de Alade. Uma senhora de

    60 e poucos anos no revelados, para manter a simpatia!60 e poucos anos no revelados, para manter a simpatia!com disposio adolescente. Enquanto conta causos, elaprepara e prova a sopa constantemente. Nada sai dali de dentrosem seu aval. Ela e as companheiras debruam-se sobre doiscaldeires enormes num incessante trabalho de mistura epreparao da refeio que dura pouco mais de trs horas. Ocalor na cozinha impecavelmente limpa bruto, apesar dasjanelas e dos ventiladores por todos os lados. A qualidade dasopa mpar, indiscutvel. A broa de fub com caf da chegadaabre espao para uma tigela nada modesta, mas cativantementesaborosa.

    Nada tira dessas senhoras a alegria contagiante quecaracteriza o ambiente. Esto ali entre amigas. Proseiam sobreas famlias, suas vidas e as das mais de 400 pessoas quealimentaro em breve com seu esforo. O afeto que dedicam preparao da sopa certamente o tempero mais saboroso damistura. Insubstituvel, justamente ele que move igualmenteas outras pessoas no projeto, como faxineiras e os responsveispela triagem dos pes e frutas que sero distribudos.Fazemos muito pouco aindaFazemos muito pouco ainda a frase que mais se ouve alidentro. Nenhuma cara cansada ou reclamaes por cantoalgum. J trabalho e empatia transbordam.

    Depois de horas na preparao, a sopa colocada nosdois tambores cinzas que so arrastados para a Kombi do

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    projeto. Junto a eles, garrafas dgua, frutas e pes. Umaequipe de cinco pessoas responsvel pela distribuio nasruas. Com o veculo estocado e todos os voluntrios jpresentes, dada a hora de partir. Os destinos sero os viadutosdo Complexo da Lagoinha e a cracolndia.

    II.

    Todo o processo de distribuio segue uma rotina jestabelecida. Duas pessoas servem a sopa, enquanto outra aentrega junto com os pes para a fila indiana que se forma nolocal. Mais atrs, no porta-malas, outra pessoa tem a tarefa derepassar a gua e as frutas. A quinta pessoa atua como coringa,ajudando em todas as funes, caso necessrio. Os que soalimentados j conhecem o esquema e antes mesmo da chegadada kombi j formam um esboo de fila. No h confuso,apesar da quantidade de gente. Cada cabea tem direito areceber uma unidade de cada item oferecido. Caso ainda sintamvontade, podero repetir a sopa quantas vezes quiserem.Depois de pouco mais de uma hora embaixo do viadutoSenegal, a kombi parte para a cracolndia.

    Ali o funcionamento muda um pouco. J noite e olocal morbidamente iluminado exige cuidados. Apesar demuitos j esperarem a presena do projeto, comum queusurios e o prprio movimento do trfico se assustem com achegada de um grupo de pessoas num carro. A subida ento

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    feita com cautela, sem acelerao, deixando claro que a Kombino oferece perigo a ningum ali. Estacionada na margemdireita da rua, bem em meio aos usurios, a distribuiorecomea. Na cracolndia no se forma uma fila exatamente,mas sim pequenas aglomeraes que vo chegando aos poucose rapidamente tomam conta da cena.

    A procura pela gua enorme. Sedentos, muitosusurios chegam a preterir a sopa e procuram logo asgarrafinhas que ainda restaram. As pupilas arregaladas do otom daquela noite: movimento intenso. Os que tm fomerecebem seus potes e se sentam por ali mesmo na calada ou aoredor da Kombi. Enquanto alguns falam bastante, outros estovisivelmente experienciando o auge da noia. Mal conseguemfalar, muito menos estabelecer qualquer contato. So homens emulheres que mais parecem zumbis, tamanha a suadesconexo com a realidade. Alguns deles precisam ter as mosamparadas ao receber os alimentos para que no os deixem cairlogo em seguida. Outros no conseguem nem agradecer ouformular algo. Combalidos, recebem a refeio e seguem nadireo oposta, sumindo de vista outra vez.

    As mulheres tm preferncia de chegada, enquanto oshomens costumeiramente pegam um nmero maior de pes efrutas. A distribuio dura at o ltimo farelo ou gota findarem,sem exceo. Durante o processo, o tempo parece congelar.So tantos fatos simultneos a serem captados pelos sentidosque quem est ali presente raramente se preocupa em

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    acompanhar o relgio. A cmera lenta e muita coisa paradoxal ao extremo. Cenas surreais da degradao humanaacontecem ao mesmo tempo em que episdios decompanheirismo chamam a ateno. Enquanto alguns usuriosesto to fracos para se levantarem e buscarem o alimento,outros se preocupam em pegar um pouco e cuidadosamentedepositar ao lado deles, que uma hora ou outra recuperaro ossentidos e tero fome. Tudo isso se desenrola em meio ao lixo eao intenso consumo de crack. Algumas pessoas tomam a sopaenquanto fumam pedra.

    Algumas das pessoas que trabalham para o trficotambm se aproximam e tomam a sopa. So discretssimos.Costumam acenar com a cabea em agradecimento e nadamais. Por imposio do trabalho ou no, recebem os alimentose voltam ao posto no alto da rua Jos Bonifcio, ondeobservam e coordenam o movimento noturno. Algunsmoradores de rua que ficam pela outra banda do Complexo daLagoinha tambm passam pelo local. Nem todo mundo est alipra fumar crack, mas a presena dele sentida por todos.

    comum que outros projetos sociais faam o mesmotrajeto. Enquanto a sopa do Po Nosso vai sendo distribuda,um grupo evanglico sobe a rua de carro, cumprimentando ospresentes. Vejo que aqui t bem servido!Vejo que aqui t bem servido!, grita algum dedentro da van, que parte em direo a outro ponto. Essacomunho de apoio vindo das diferentes crenas algobastante peculiar na cracolndia. Enquanto alguns grupos

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    optam por uma aproximao religiosa, com atendimentoindividualizado, outros preferem nica e exclusivamente adistribuio de alimentos, sem que haja algum tipo depregao. Contudo, o fato em comum que os conectam sempre o mais importante. Esto todos ali trabalhando. Semdistino, sem lavagem cerebral religiosa ou algo parecido.No esto ali para arrebanhar fiis e gostam que isso fiquebastante claro.

    Quando os alimentos chegam ao fim, todos os quequiseram comer j esto fartos e se dispersaram. Puderamcomer e repetir, tamanho o reforo que a refeio proporciona.Alguns usurios guardam as doaes para outro momento, jque o crack muitas vezes lhes rouba a fome imediata. A equipedo projeto faz uma ltima checagem entre eles, perguntandoquem comeu ou no. S fica de estmago vazio quem quiser.

    O saldo da noite comemorado. Mais de 100 litros desopa foram ofertados, somados aos 400 pes, quilos de frutas egarrafas dgua. Tudo isso em pouco mais de trs horas. Asensao da equipe do projeto de mais uma noite de sucesso,mais um trabalho bem-feito, sem sobressaltos. Sentem-sevisivelmente gratificados por estarem ali. Abraam-se, fazemuma orao simples em agradecimento pela noite de trabalho epartem de volta parquia. De l, voltaro para suas casas,onde aguardaro pelas prximas semanas de trabalho.

    Para aqueles que ficam na cracolndia, a noite continua.

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    A pedra no para.

    III.

    J so 14 anos de trabalho e empenho constantes para apopulao de rua de Belo Horizonte. Ininterruptas quartas equintas-feiras se passaram e muitas outras ainda esto por vir.Equipes e pessoas entraram e saram ao longo do tempo, masdeixaram um pouco dos seus legados a cada noite. Em retorno,receberam muito como seres humanos. O impacto que esseprojeto causa jamais conseguir ser quantificado ouqualificado. Mereceria um livro por si s, ao menos.

    O Catolicismo acredita que, dentre outros tantospredicados, Catarina Labour tenha se santificado graas suadedicao caridade e ao altrusmo para com os pobres nasruas francesas do sculo XIX. Se observarmos bem aspequenas coisas, faremos bem as grandes era o seu grandelema.

    O que une o projeto Po Nosso aos tantos outros queatuam nas ruas e na cracolndia de Belo Horizonte justamente esse olhar. O da empatia e da caridade ao prximo.Buscam trabalhar num propsito linear, que tenha por ondecomear e chegar, com extrema seriedade e dedicao. Dapequena ao grande. Das primeiras 10 sopas s 400 pornoite. Desde seu incio, diagnosticou-se a carncia por

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    programas que pudessem atender populao de rua belo-horizontina de forma digna, caridosa, emptica, livre dequalquer interesse ou pr-julgamento que a sociedade viesseimpor. Fossem usurios de crack, mendigos ou prostitutas, ainteno sempre foi a de acolher e desenvolver um trabalho queoferecesse momentos de dignidade a um segmento oculto dapopulao, constantemente marginalizado e visto como pragassociais.

    Dos pequenos aos grandes detalhes, os caminhos dessesprojetos que se cruzam so longos e tortuosos. As dificuldadesat aqui foram e ainda so imensas, de todos os tipos. Umadelas a falta de reconhecimento pelo trabalho executado.Outra, a baixa adeso daqueles que poderiam fazer muito mais,mesmo que partindo de pequenas aes. Grande parte dapopulao no faz ideia do que acontece embaixo dos viadutos,nas vielas escuras do baixo Centro ou na Cracolndia. Quemso esses loucos que usam drogas ou moram nas ruas? Por qualrazo no param? Quem so essas outras que perdem seutempo alimentando desconhecidos pelas noites?

    As respostas para essas perguntas nunca faro totalsentido ou talvez nem existam de fato. Entretanto, caso elastivessem que partir de algum lugar, este certamente exigiriaimerso como principal combustvel compreenso da coisacomo um todo. Assim como foi o projeto Po Nosso para arealizao deste trabalho que agora voc l. O projeto abriucaminhos, como um trampolim para o mergulho profundo que

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    a temtica exige do jornalista disposto a abord-la. Oacompanhamento prximo, in loco, permitiu que toda uma redede contatos fosse construda e que os mais diversospersonagens alguns deles contidos aqui, neste trabalho desabrochassem ao alcance dos olhos, permitindo que suashistrias fossem contadas. Eles so a verdadeira histria, essaescrita em pginas da vida real.

    S possvel chegar a algum lugar tendo passado poroutros ao longo do percurso. As observaes e conversas queculminaram na histria acima cumprem esta lgica. Toda aproduo a seguir s foi possvel devido s possibilidadesabertas pelo acompanhamento do projeto. Foi dessa forma quea imerso se tornou possvel.

    Convido voc a (re)fazer esse percurso comigo. Assimcomo foi para mim, espero que essa realidade seja umainstigante e desafiadora porta de entrada a partir da qualembarcar e conhecer um pouco do submundo do crack em BeloHorizonte. Quando surgiu, de onde veio, como se deu aconstruo dos cenrios histricos, como a Cracolndia equem so algumas das pessoas afetadas direta e indiretamentepor pequenas lascas de pedra to devastadoras.

    Enquanto tivermos receio de mergulhar nodesconhecido, nunca veremos nada de novo. Continuaremos aver s aquilo que todos j viram

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    CAPTULO 1CAPTULO 1

    ANTES DA CRACOLNDIA: UMANTES DA CRACOLNDIA: UMBAIRRO E MUITA HISTRIABAIRRO E MUITA HISTRIA

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    De Poeirpolis a LagoinhaDe Poeirpolis a Lagoinha

    O bairra Lagoinha carrega consigo um peso histricodos mais relevantes na construo identitria de BeloHorizonte. Como um intrigante personagem em uma trama,abriga em seu passado a constante dualidade entre o bem e omal, o bom e o ruim, o gozo ou a tristeza, dificuldades ouvantagens. Guarda pra si e aflora, ao mesmo tempo, histriaspotentes dos diversos personagens que deixaram sua marca nolocal, em tempos longnquos do atual, quando a vida seguia umritmo menos acelerado, mais romantizado at. A Lagoinhaoferece quele que o adentra a caracterstica peculiar de se autoexplicar; sua histria ajuda a compreender a da capital mineirae se confunde com ela, desde os ureos tempos de umasociedade j sepultada, guardando pra si alguns segredosadormecidos. Para conhecer boa parte de sua essncia precisoadentr-lo de cabea, partir do marco zero, sem meiashistrias.

    O ano 1897 e a ento -Poeirpolis - apelido jocosodado capital solenemente inaugurada a 12 de dezembro,com o nome de Cidade de Minas. A mesma poeira quecaracterizava a ento recm-nascida Belo Horizonte trouxeconsigo da distante Europa a ideia de construir uma cidadeplanejada. Naquela poca, a prtica de construes ereformulaes urbanas pelo poder pblico era o carro-chefe do

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    desenvolvimento urbano, e visava adequar as cidades a ummodelo pr-elaborado. Queriam uma capital diferente dasdemais do pas at ento: planejada, pensada, estruturada. Taisgrandes transformaes no stio de Belo Horizonte eramjustificadas pela ideia de modernizao, melhoramento dainfraestrutura e da prpria esttica da cidade, que tinha OuroPreto ento capital como modelo mais prximo domoderno. Munidos do discurso e conceito desenvolvimentista,o poder pblico confere nova Belo Horizonte seu marco zero.

    O provinciano Curral Del Rei cede espao para aconstruo da capital do estado. O lugar foi escolhido em partepelo seu potencial de expanso territorial, clima e cursos dgua nascidos ao p da Serra do Curral que abasteceriam apopulao. Atravs da Comisso Construtora da Nova Capital,instalada em 1894, o antigo arraial recebe o planejamento deuma cidade moderna, com largas avenidas, boa infraestrutura,mas que nascia com um problema de bero, algo entoignorado: carecia de uma identidade em completude. bemverdade que existia vida anterior aos esboos de mapas,avenidas e traados de rea urbana da nova capital. E comohavia. Na rea suburbana - fora dos limites da Avenida doContorno, que demarcava o cinturo urbano - as guas de umpequeno crrego promovido a lagoa, fora dos limites daAvenida 17 de Dezembro no traado original da cidade, nodeixavam mentir. Oportunamente batizado de Lagoinha einaugurado em conjunto com Belo Horizonte, o bairro j

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    respirava.Cravado entre as colnias agrcolas Carlos Prates,

    Amrico Werneck e uma pedreira, o agora oficialmentebatizado bairro da Lagoinha compunha a 6 Seo Suburbanade Belo Horizonte, assim delimitado pela primeira Planta Geralda Cidade de Minas. No traado original da cidade, estavalocalizado na rea suburbana e correspondia a uma pequenavila que se formara e ganhara corpo nas proximidades docrrego de leito raso, uma vez que em determinado ponto suasguas empoavam, formando uma pequena lagoa. A regiorecebia ocupaes antes mesmo da inaugurao oficial,contribuindo para o primeiro e ainda incipiente recenseamentodemogrfico da nova capital, que estimava cerca de 13.500habitantes at ento.

    Belo Horizonte tinha a misso de aproximar asdispersas vilas existentes que se desenvolveram pelos arredoresda cidade, com o intuito de urbanizar de maneira eficiente eigualitria cada seo e seus novos bairros. As ocupaes pelobairro da Lagoinha eram irregulares e desorganizadas. Como area original do bairro correspondia a uma considervel porode territrio, as famlias que migravam para o local iam seassentando de maneira desordenada. Com um espao togrande, as famlias iam ocupando pores de terra distantesentre si, sem levarem em conta a noo de bairro que passara aexistir com o seccionamento feito pelo planejamento da capital.Dentro do prprio bairro existiam distncias importantes entre

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    as casas construdas e as vilas assentadas, aspecto tambmvisto em outros bairros que se formavam por toda a capital.Para a populao de um antigo arraial, desprender-se do seucarter buclico e se acostumar com as denominaes, oslimites e o tal progresso no seria algo de assimilao imediata.

    Durante a primeira dcada do novo sculo, as notciasda nova capital percorriam o estado inteiro. No fazia tantotempo assim que o Brasil deixara de ser um Imprio para setornar Repblica e os ventos de mudanas ganhavam as MinasGerais com a mesma fora das elites regionais que j seformavam, naqueles que seriam passos importantes para aconsolidao das oligarquias do estado e de sua fora polticarepublicana, concomitante fora paulista, que tambm sedestacava. Sendo o estado mais populoso at ento e commaior nmero de representantes na Cmara dos Deputados,Minas Gerais despontava com fora e importncia nessesprimeiros anos de Repblica tanto no aspecto poltico quantono econmico, sendo o grande produtor de leite do pas e osegundo principal polo cafeeiro, atrs apenas de So Paulo.Naquela poca, ambas as produes e tudo aquilo relacionado aelas ditavam os rumos econmicos e polticos da recenteRepblica.

    Mudanas, mudanas, mudanasMudanas, mudanas, mudanas

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    Belo Horizonte agora nome oficial, desde 1901 pegava carona no momento importante do estado e tambmdava passos por si prpria. Passado o primeiro momento dainaugurao e adequao vida na nova capital, era precisoseguir em frente e encarar um processo de urbanizao que, pormais que fosse planejado previamente, necessitaria de muitotrabalho por parte de todos aqueles que agora optavam pelacidade como destino passageiro ou permanente. A prefeituraseguia investindo em infraestrutura urbana, como o calamentode ruas, construo de redes integradas de esgoto,abastecimento de gua nos bairros, bem como em outraspreocupaes estruturais que eram naturais de uma cidaderecm-inaugurada.

    Por trs da obrigao em atender as necessidadesbsicas de uma crescente populao, os governos municipal eestadual acreditavam que tais investimentos estimulariam aimigrao e povoamento da capital, alm de incentivarcomrcios e indstrias a apostarem no local como um polo deexpanso em potencial. A apurao histrica trouxe tona quea importncia dada a essa fase de estruturao urbana era tantaque a Prefeitura se viu obrigada a contrair um emprstimoconsidervel, com intuito de dar sequncia s obras tidas comoinadiveis naquele momento.

    A Lagoinha testemunhou de perto algumas dessasmudanas. No muito diferente de outros bairros suburbanos,encarava seus primeiros anos com dificuldades estruturais que

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    aos poucos foram sendo direcionadas. Em uma capitalplanejada por setores, viu serem priorizadas as melhorias portoda a faixa central urbana em detrimento dos bairros que maisapresentavam problemas. Viu chegar iluminao e transporteapenas em 1909. Em posio estratgica para o acesso regioperifrica, por estar entre a zona rural e a urbana, a Lagoinharecebeu a estao ferroviria que servia como plataforma dedesembarque para os produtos que chegavam e abasteciam acapital. Ainda em 1910, com a inaugurao do ramal frreo queligava Belo Horizonte a Divinpolis, surgem os primeirosestabelecimentos comerciais no bairro, oferecendo produtosalimentcios, vesturio e artigos de primeira necessidade.Rapidamente, a gleba agrcola que existia na capital da pr-inaugurao tornou-se a regio suburbana mais populosa deBelo Horizonte. A Lagoinha pintava como expoente de umacidade que crescia de fora para dentro, da periferia para ocentro, e no o contrrio, como previa o planejamento originalda capital.

    Tutti Buona Gente!Tutti Buona Gente!

    Em meio a toda essa efervescncia, a Lagoinha ganhavacorpo e identidade. Belo Horizonte no se ergueu sozinha.Imigrantes de diversas cidades de Minas Gerais e os italianosvindos de outros estados formaram parte do operariado

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    envolvido na construo da capital e enxergaram na Lagoinha apossibilidade de assentamento e incio de vida numa novacidade. Portugueses, turcos e espanhis tambm chegaram aobairro sob as mesmas circunstncias, estabelecendo-se como osprimeiros habitantes permanentes do lugar.

    O bairro comeava ento a incorporar alguns aspectosque o caracterizariam ao longo da histria de Belo Horizonte. Aproximidade da Lagoinha com o Centro e com a linha de tremfez com que um expressivo nmero de pessoas fosse seacomodando nas penses das redondezas e, ao passo que acidade e sua mixrdia cultural se expandiam, o bairro tornava-se uma rea bomia, dotada de bares, cabars, restaurantes e deuma vida noturna agitada. Ainda sim, era o bairro doproletariado, que passou a abrigar, aos poucos, os imigrantesque chegavam capital em busca de oportunidades nasindstrias, bem como os remanescentes da construo dacidade e suas famlias. Naquela primeira dcada, era possvelcontabilizar mais de 25 famlias de imigrantes na Lagoinha,como os Marchetti, Gramiscelli, Abramo, Abuid, Vaz de Melo,Bonome, Scotelaro, Vanucci, Brando, Barreto, Scarpelli,Rocco, Pirolli, Campolina, Varela, Andrade, Lapertosa, Trotta,Nappo, Silveira, Carabetti, Scalabrini, Diniz, Thibau e muitosoutros que fixaram residncia no bairro.

    As famlias italianas tinham uma relao especial com aLagoinha naquele incio de sculo. Muito do carter talo-brasileiro de parte da populao belo-horizontina deve-se

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    chegada e fixao dessas primeiras famlias na regio. Eramcalabreses, bolonheses, napolitanos, sicilianos, corsos,genoveses, veroneses, venezianos, que, como mesmo dizem,eram tutti buona gente - todos boa gente - ajudando aconstruir o esprito alegre e, mais tarde, bomio, que aLagoinha viria a ostentar. A Rua Itapecerica era ponto certo deencontro dos italianos no bairro, que se reuniam ali para ler osjornais vindos da ptria. Ainda na mesma rua ficava o bazar dovelho Ugo, que comercializava tudo quanto era objeto usado.Na porta de sua loja ficava de resguardo uma cadela to velhaquanto ele, nomeada ironicamente de -Suame- e que passavaas tardes catando pulgas e espanando moscas das feridas. Acada cuspida do velho italiano, Suame latia alto, assustando oscorajosos frequentadores da loja de bugigangas.

    J o bar de Afonso Trota, na mesma Itapecerica, semprefoi propriedade italiana: comeou com a famlia Vanucci epassou para os Pazzini at ser adquirido pelos Trota. Serviacomo ponto de reunio dos velhos italianos viciados no jogodos Trs Sete o Passatella que colocava em disputagenerosas quantidades de cerveja. O ganhador era realmenteobrigado a beber sozinho o que ganhasse, sendo inmeras asocasies em que o felizardo levantava-se e ia vomitar toda acerveja para depois continuar a jogar e a beber. Logo naentrada da Pedreira Prado Lopes as vrias famlias italianaseram comandadas pelos Colatti, famosos por reunirem osamigos todos os domingos para uma farta macarronada que

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    tinha at lista de espera. Em volta da mesa estavam sempre osNardi, os Colatti, os Franco, os Ferroni, os Ricchi e osSchiaretti. Tudo regado a muita cerveja pendurada no Bar doLeza, um gigantesco comerciante com aparncia de Buda e queviria a ser torcedor renomado do antigo Palestra Itlia, hojeCruzeiro.

    Ao longo dessa primeira fase, a Lagoinha promoveu,mesmo que involuntariamente, o fortalecimento de uma redede sociabilidade e satisfao de seus moradores at entompares em relao aos que outros bairros da capitaldemonstravam. Pertencer ao bairro era motivo de afeto, deligao com suas razes, de estar em comunho com o que anova capital propunha. Ao mesmo tempo em que o espaourbano de Belo Horizonte se consolidava, a Lagoinha jrepresentava algo maior que um simples bairro. O carterpopular do bairro ajudou a reforar a imagem de uma cidadehbrida, que contava com culturas e valores distintos.

    Tanto Belo Horizonte quanta a Lagoinha se apoiavamnesse trao identitrio para se distinguirem de outras capitais,de outros bairros. Ao final da 1 Guerra Mundial, a capitalmineira j contava com cerca de 54.000 habitantes, sendo aregio noroeste, onde se situa a Lagoinha, a mais populosa.Novos desafios e significativas mudanas urbanas e sociaisviriam tona com o progresso emergente da poca, afetando avida na capital bruscamente. O bairro ainda tinha muito o queviver, ver e caminhar

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    Modernismo, J.K. e o bairro no embrio daModernismo, J.K. e o bairro no embrio dametrpolemetrpole

    Em 1920, Belo Horizonte estimava ter 55.000habitantes em suas zonas urbanas e rurais. Os reflexos da criseque assolou boa parte do mundo devido Primeira Guerraeram sentidos na economia do municpio, que enfrentava umverdadeiro arrocho dos cofres pblicos. O dinheirointernacional que permitiu ao poder pblico darprosseguimento aos investimentos em infraestrutura urbanavirou polpudas promissrias dos emprstimos contrados nosprimeiros anos de capital. A populao crescia em ritmoexponencial, algo inesperado pelo planejamento original, quecalculara uma populao mxima de 200.000 habitantes atmetade do sculo. Pouco mais de vinte anos de capital sepassaram e mais de um quarto dessa estimativa j havia sidosuperada.

    Diante desse cenrio, a contnua necessidade deinvestimentos em infraestrutura urbana a longo prazofuncionava tambm como chamariz para que cada vez mais asindstrias escolhessem a nova capital como local deestabelecimento. O dinheiro trazido e movimentado por essasindstrias seria de suma importncia nesses primeiros anos de

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    cidade, pois, como descrito, o cenrio econmico do municpiono era dos mais calmos. Era comum, desde ento, indstriasforasteiras optarem por se estabelecerem em Belo Horizontemediante vantagens recebidas, como a diminuio na carga deimpostos a que eram submetidas, tudo para que pudessemchegar e ficar de vez, investindo no local. Essas alternativaspermitiram que a prefeitura continuasse a arrecadar de algumaforma e, a partir da, muitas escolas e os primeiros hospitaissaram do papel, atendendo assim uma populao cada dia maisdiversificada.

    Outra opo encontrada pela prefeitura era bastantenatural. Com uma vasta poro territorial em mos, o governoenxergou na comercializao de lotes e sees de terra umaatividade lucrativa e que atendia mais de uma necessidade aomesmo tempo. Ao comercializar pores de terras em reassuburbanas, a prefeitura conseguia engordar seu caixaarrecadando sobre um produto natural, ao passo que expandia epopulava novas regies. Para se ter uma ideia, ao final dadcada de 1920, quase 50 novas subdivises haviam sidoaprovadas, contabilizando mais de 1.100 quarteires e novos eexpressivos 14.900 lotes.

    Os espaos recm-populados teoricamente sairiamganhando, j que passavam agora a serem atendidos por umaprefeitura, que deveria oferecer servios bsicos comoiluminao pblica, transporte e calamento das vias. A lgicaera simples: mais terra, mais gente, mais mo de obra

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    disponvel, mais indstrias e comrcio buscando serematendidos A prefeitura s no contava com um fenmenoinesperado: as subdivises dos grandes terrenos no seguiamuma legislao coesa naquela poca, permitindo aosproprietrios dessas terras a criao de vilas distantes das reasj urbanizadas. A cidade ento se dispersava, ao contrrio de seaproximar do Centro da capital. Era o preo a ser pago para oaumento do permetro urbano.

    A Lagoinha seguia inserida na mesma lgica. Agora umdos primeiros bairros residenciais a receber numerao nascasas e nomenclatura das ruas, cada vez mais se consolidavacomo o principal bairro suburbano de Belo Horizonte e viaseus limites serem expandidos tanto territorialmente quantofinanceiramente. Muitas das famlias operrias que l j seencontravam fixas puderam comprar seus lotes e investir emoutros ali mesmo, As antigas colnias agrcolas eramcomercializadas por valores inferiores aos lotes situados nasregies mais centrais, o que facilitou a vida de inmerosimigrantes que haviam chegado sem nada ao bairro. O carterde bairro popular se fortalecia a cada dia. A populao de baixarenda via com naturalidade essa desmitificao das reasurbanas centrais, entendendo que, nas zonas suburbanas comoa Lagoinha, seria muito mais exequvel o sonho de ter umcanto prprio e que fosse compatvel com suas possibilidades.

    Entretanto, nem tudo caminhava reto. Muitas pessoasque chegavam capital em busca de trabalho buscavam pouso

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    nas imediaes do bairro, devido sua proximidade com oCentro e as pequenas fbricas. Com sua populao crescendoconsideravelmente, a Lagoinha passou a abrigar alm dostrabalhadores da construo civil, muitas pessoasdesempregadas. Esse aumento populacional no seguia emritmo proporcional ao dos investimentos feitos no bairro, o quepassou a gerar novos problemas estruturais. A Lagoinha, bemcomo outros bairros mais antigos, teria que esperar. Um casocurioso foi quando a capital, em outubro de 1920, recebeu oento rei da Blgica, Alberto I. Com o intuito de passar amelhor das impresses em um canteiro de obras a cu aberto, acidade passou por um processo de maquiagem acelerado. ALagoinha assistiu apenas algumas de suas ruas principaisconsertadas, assim como os imveis de sua fachada fronteiriacom o Centro pintados em tempo recorde. Melhorias que noatendiam a comunidade do bairro como um todo.

    A populao se via, ento, obrigada a adentrar novosrumos e arregaar as prprias mangas. Muitos desses novosmoradores que chegavam ao bairro, desempregados e semresidncia fixa, apostaram na ocupao dos lotes na PedreiraPrado Lopes, regio vizinha Lagoinha. Iniciava-se a umprocesso de favelizao que perduraria anos e data at os diasde hoje, transformando a Pedreira num dos maiores complexosde favelas no contexto sociocultural de Belo Horizonte.

    Entre 1930 e 1940 a populao da capital atingiu amarca de 214.000 habitantes. O Modernismo chegara de vez

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    cidade, podendo ser visto nos traos culturais e arquitetnicosespalhados pelas ruas e novas construes. A era do concretoarmado, da cidade industrial e do verticalismo chegava paramudar de vez a cara de Belo Horizonte, que deixava aospoucos de ser estigmatizada apenas pelas funesadministrativas do estado para dar os primeiros passos em suaconsolidao como o principal polo poltico, econmico ecultural de Minas Gerais.

    A cidade passava por um vigoroso e natural processode modernizao. As construes de novas avenidasproporcionaram uma maior convergncia do centro com aperiferia urbanizada. Comrcio e indstria tambmcaminhavam adiante em expanso e as primeiras casasbancrias mineiras tornaram-se realidade. Um jovem eambicioso Juscelino Kubitschek fazia da sua administraoprogressista a grande responsvel pelo salto dedesenvolvimento e transformao da cidade naqueles anos. Sobseu comando, diversos estudos e propostas foram elaboradospara atender aos problemas causados pelo crescimento pelosquais a capital passara desde a sua inaugurao. Era notrioque Belo Horizonte comeava a viver um clima diferente, asentir seu primeiro gostinho de cidade importante, de cidadegrande.

    A evoluo urbana e social da Lagoinha seguia seucurso. Cravada estrategicamente no caminho da expanso dasregies leste e noroeste, em especial da Gameleira e da

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    Pampulha, era o grande corredor de passagem para bairrosafastados como Santo Andr, Bonfim, So Joo Batista,Cachoeirinha e Caiara. Em 1933 inaugurado o Aeroporto daPampulha, com toda a pompa, por ser o primeiro da capital.Estando no caminho da nova rota urbana, a Lagoinha recebeumelhorias nas vias de transporte, como o calamento da antiga- Estrada Velha da Pampulha - que cortava o bairro e seguia emdireo nova atrao da cidade. Emergia a, aliado aofrentico crescimento da cidade, a pedra fundamental para oincio do declnio do bairro nos anos que viriam.

    A questo da mobilidade urbana em Belo Horizonte jera problemtica desde seus primrdios e, devido sualocalizao, a Lagoinha sofreria bastante com as consequnciasdisso. Pagaria um preo alto por estar to prxima zonacentral da cidade. A regio que hoje conhecemos por Pampulhaera at ento bastante atrasada com relao a outras pores dacidade no quesito urbanizao e era vista pela prefeitura comgrande potencial turstico e de lazer para a populao, carentede tais espaos naquela poca. Atravs da construo doAeroporto, da barragem e do represamento do Rio Pampulha,na gesto de Otaclio Negro de Lima, a hoje valorizada regioentrou definitivamente no mapa da capital em importnciaurbana.

    Com todo esse progresso em pauta, a Lagoinhatestemunhou de perto a abertura de novas avenidas como aPresidente Antnio Carlos e Pedro II, importantes vias de

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    acesso que passaram a integrar o Centro da cidade a vriosncleos populacionais da zona suburbana. Recebeu tambm oHospital Pblico de Pronto Socorro Odilon Behrens em 1941,quando JK seguia realizando sua srie de empreendimentos namodernizao da capital. Esses novos elementos inseridos nocotidiano do bairro trariam um fluxo maior de pessoas, trnsitoe importncia geogrfica Lagoinha.

    Do crrego ao concreto: nasce o IAPIDo crrego ao concreto: nasce o IAPI

    a Lagoinha daria ento sua guinada definitiva nahistria da capital. Considerado um bairro velho, com muitoscasares das primeiras dcadas do sculo ainda de p efuncionando como imveis e comrcio, o bairro convivia comum pouco de dois mundos. Era prezado pela proximidade como Centro da cidade, mas passara a ser visto com outros olhospela sociedade belo-horizontina quanto quilo que mais ocaracterizava: ser um bairro do povo, popular. A regio centralrecebia uma gama de melhorias e investimentos pblicos emseu aspecto urbano, embasados na concepo de uma cidademoderna, limpa e organizada, palatvel aos olhos da burguesia.J o bairro operrio no teria a mesma sorte no quesitoinfraestrutura e benfeitorias.

    Com 40 anos de existncia, a Lagoinha encontrava-seatrasada estruturalmente, afastada dos investimentos e de fatos

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    novos. Seu osis continuaria sendo o carter multicultural, comas famlias de imigrantes cada vez mais assentadas por l, almdos migrantes que haviam construdo patrimnio e nopretendiam sair dali. Prova disso era o carinhoso apelido deCantinho da Itlia que recebia de alguns saudosistas daquelapoca. Contudo, o buraco era um pouco mais embaixo.

    O aspecto popular que agradava outrora a sociedadebelo-horizontina era agora visto com doses de repdio. Acapital vivia dias pulsantes com JK no governo. O PrefeitoFuraco no media esforos para colocar em prtica toda a suaveia modernista e ambiciosa que culminaria anos depois naconstruo de Braslia. Sua administrao era marcada pelaspolticas urbanas expansionistas, traduzindo na arquiteturamoderna o tal apreo pelo futuro, algo que romperia com ospadres do passado ainda presentes na capital, pra que essafosse vista como exemplo do amanh. Eram os primeirosacenos de metrpole que Belo Horizonte daria.

    A sociedade da capital vibrava como nunca com osventos do modernismo, com os cinemas do Centro e as novasuniversidades que traziam intelectuais de todo canto do pas,como Olavo Bilac, Antnio Vilas Boas e Carlos Drummond deAndrade. Definitivamente respirava-se uma nova poca,pautada no desenvolvimento urbano e cultural. Tudo aquilovisto como antigo, popularesco, passara ento a ser tratado comindiferena, perdera seu valor. A Lagoinha j carregava o fardoda fama e a realidade de ser vista como um bairro degradado,

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    da boemia, do proletariado, da marginalidade e prostituio.Passou a ser isolado, destratado, sinnimo de povo. Aproximidade com o Cemitrio do Bonfim tambm dava umafora no j instaurado preconceito ao bairro.

    Entretanto, o fator que reforaria todo esse perfil dolocal estava por vir.

    A questo habitacional em Belo Horizonte comeava apreocupar. Ao final da dcada de 1930 a populao da capitalbatia a expressiva marca de 214.000 habitantes, bem ou malalocados dentro do espao urbano. Em suma, a grande maioriadessa populao j se caracterizava por ser de trabalhadores eoperrios que migravam de outros lugares em busca deemprego nas novas indstrias que se instalavam na capital.Pegando carona num momento de industrializao a nvelnacional e municipal sem precedentes, Belo Horizontepassaria, em apenas uma dcada, de 480 estabelecimentosindustriais em 1936 para 1.228 em 1946, caracterizando umcrescimento real de 154% dos estabelecimentos e 710% dovalor da produo, como informava o Instituto deAposentadoria e Penso dos Industririos (IAPI).

    Tal crescimento vertiginoso j era motivo depreocupao nos gabinetes da prefeitura, agora com umproblema ardiloso em mos: como acomodar e provercondies bsicas de moradia para essa poro do operariado?A concesso de lotes j se provara um mtodo arriscado, umavez que, como visto anteriormente, acabava por criar bolses

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    perifricos muito afastados da cidade, dificultando todo uminvestimento de infraestrutura e afins, sem falar nas brechas delegislao que acabavam sempre por favorecer algum emdetrimento de outros.

    Edies do jornal O Estado de Minas poca relatavamum Juscelino que se questionava. Segundo a cobertura feitanaquele perodo, ele entendia como poucos que eraimpraticvel investir tanto dinheiro na construo de um poloturstico como a Pampulha, destinado burguesia da capital,sem prover iniciativa alguma de carter social para umproblema emergente. Era preciso agir e pensar em alternativasque fossem viveis aos cofres pblicos.

    Em uma visita do ento presidente Getlio Vargas capital no final de 1938, nasce um plano que j vinha sendocolocado em prtica em outros pontos do pas. Ambos ospolticos acreditavam que garimpar novas solues para aquesto habitacional a nvel municipal e nacional seria umasada para o quadro, alm de continuar com a toada dos passosmodernistas que tanto a nao e quanto a cidade viviam. Osconceitos de racionalizao dos mtodos de construo eotimizao do espao urbano foram abraados como pilares doindito projeto de grandes unidades habitacionais.

    A tacada seria inovadora, ambiciosa. Apostar emmoradias populares parecia algo natural, mas no seria tosimples. Investimentos precisariam ser feitos e acordosfirmados. Pretendia-se gastar pouco para resolver uma questo

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    aguda. Em 29 de novembro de 1940, o contrato assinado porPrefeitura Municipal, Instituto de Aposentadoria e Penso dosIndustririos (IAPI) e Companhia Auxiliar de Servios deAdministrao (CASA) oficializava no papel o nascimento do -Conjunto de Habitaes Populares IapiConjunto de Habitaes Populares Iapi - . - .

    Projetado pelos engenheiros Plnio Catanhede, WhiteLrio da Silva, Jos Barreto de Andrade e Antnio Neves, oempreendimento seguiria uma diviso de responsabilidades. prefeitura cabia a cesso de um terreno com aproximados70.000m, capaz de abrigar o nmero mnimo de 3.000 pessoasentre operrios, imigrantes e populao de baixa renda, alm daurbanizao da rea, com o provimento de redes e servios deesgoto, gua, transporte, telefonia e eletricidade. Ao IAPIcoube o financiamento e fiscalizao de toda a obra, enquantoa CASA herdou o anteprojeto e, o projeto executivo, bem comosua execuo e fiscalizao. O local escolhido foi a Lagoinha,aos ps da Pedreira Prado Lopes que j manifestava seuprocesso de favelizao e delimitado pelas avenidas Pedro I,Jos Bonifcio, Antnio Carlos e as ruas Ararib e JosBonifcio. Arrojado, o projeto contava com algumas reasverdes, uma praa de lazer dentro do conjunto e at uma igreja,oferecendo futura populao algo at ali incomum para suascondies.

    Os nove prdios formavam 11 blocos verticais emformato de U, que totalizavam 928 apartamentos, sendo algunsj mobiliados, e cerca de dez lojas que atenderiam a populao

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    do conjunto e do bairro com produtos bsicos e alimentos. Aidealizao e construo do IAPI, enfim, tornava-se umcaptulo relevante na soluo dos problemas de habitaosocial na cidade.

    O concreto comeou a subir na Lagoinha em 1944, e,mesmo incompleto, o conjunto foi inaugurado oficialmente porduas vezes, em 1 de maio nos anos de 1947 e 1948. Inmerosatrasos no andamento das obras postergaram a entrega final doconjunto, fazendo com que os primeiros moradores sentrassem em suas casas em 1951. Sua inaugurao repercutiuno pas como o modelo concreto de soluo dos problemashabitacionais nos grandes centros urbanos, alm de somar aocurrculo de JK mais uma interveno urbana modernista, traoque o acompanharia at sua a morte, em 1976.

    Por fim, o IAPI abria suas portas para receber toda umagama estratificada da populao proletria de Belo Horizonte,mantendo viva, assim, as razes de bairro popular que jcaracterizavam a Lagoinha. Despercebido propositalmente ouno aos olhos da poca, curioso notar como toda aideologia progressista, de cunho social, moderno e urbanoque embasava a construo do Conjunto IAPI serviria tambmcomo subterfgio para as desigualdades sociais j notrias dajovem capital mineira.

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    Enfim, Metrpole! A bomia ao estilaEnfim, Metrpole! A bomia ao estilaLagoinhaLagoinha

    A partir da dcada de 1950, Belo Horizonte entrava devez em sua fase de metropolizao. Os mais de 350.000habitantes da cidade viviam um processo de adensamento dazona urbana central, fenmeno incentivado pela verticalizaoferoz que marcaria poca na infraestrutura da capital. Asprimeiras edificaes passariam a ser demolidas para aconstruo de edifcios residenciais, algo visto cominsatisfao por partes da sociedade belo-horizontina, jacostumada com o centro urbano servindo exclusivamente paracomrcio e servios. Contudo, essa mescla assentava-selegalmente no Regulamento de Construes elaborado pelopoder municipal anos antes, que permitia a verticalizaoapenas na rea central da cidade. Estava inaugurada, ento, aespeculao imobiliria na capital, especialmente nessadeterminada rea. A construo de edifcios residenciais, comoa do Conjunto Archangelo Maletta, em 1957, e a do ConjuntoJK, tornou-se o investimento do momento. Toda essaverticalizao alteraria de vez a paisagem da regio central dacapital, trao notado at os dias atuais.

    Na Lagoinha, a vida tambm seguia vibrante. Com oIAPI entregue e sua ocupao acontecendo ao longo dos anos,o bairro vivia novamente dias de ebulio. O hibridismo dos

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    seus traos de ocupao permanecia vivo e cada vez maisacentuado com a chegada dos novos moradores, tanto ao novoconjunto quanto Pedreira Prado Lopes, que tambm j semanifestava como importante bolso urbano da cidade. Gentediferente, que trazia culturas e valores igualmente distintos,mantinha intacta a caracterstica do bairro de aglutinar todotipo de manifestao social quela poca.

    A vida da Lagoinha experimentava anos fecundos emtodos os aspectos, consolidando o bairro como o centro dabomia na capital. A multiplicao dos bares, restaurantes epenses contribua para que a vida noturna da Lagoinha sedestacasse, o que lhe rendia a alcunha de Lapa Mineira, emaluso ao famoso bairro da boemia carioca. A Praa Vaz deMelo era parada obrigatria para todos que desciam at aLagoinha em busca da intensa vida noturna que o bairrooferecia. Hoje situada logo abaixo do Viaduto Leste daLagoinha, a praa consistia em um quarteiro inteiro entre aferrovia e a Avenida Antnio Carlos e funcionava como pontode partida e chegada ao bairro, uma vez que era a nica paradade nibus para todos os bairros e vilas que separavam aPampulha do Centro da cidade. Para muitos, era simplesmentePraa da Lagoinha, j que o nome oficial soava muito formalpara os ares ali respirados.

    Os cabars e redutos do samba atraam todo tipo degente ao bairro. Artistas decadentes e novatos dividiam ali osmesmos espaos em busca do pblico, fiel bomia que pedia

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    passagem. A sede do Fluminense um dos primeiros clubessociais de Belo Horizonte - dominava a sociedade da Lagoinha.Ao redor do clube, direita da Praa, a Lagoinha oferecia malandragem as ruas Mau, Paquequer e Bonfim, o reduto daprostituio no bairro. Havia o Automar, com suas mulherescaras; ao lado estava o 245, mais adiante o 433, depois o 590 eo 600: as casas de pasto, como a malandragem chamava osprostbulos naquela poca. Os malandros, trajando garbosospalets de linho branco, calas de casimira, sapatos brilhosos ecamisas abertas no peito, carregavam suntuosas correntes deouro e afiavam suas navalhas para qualquer eventualidade. Nopara roubar ou agredir gratuitamente, mas sim para defenderterritrio ou as prostitutas que exploravam.

    Eram tempos de paz, mas com casos de violncia. Presaentre a Pedreira, o Buraco Quente, o Concrdia e o Bonfim,entre outros bairros, a Lagoinha tinha seus momentos de locallitigioso. Turmas da regio e bairros adjacentes queriam deteralgum comando no pedao, sendo corriqueiras as brigas einvases. Representando a Lagoinha nas pginas policiaisdaquela poca, Paulo Alemo, Cabecinha e Nga Duducacompunham a turma que comeava a se formar no IAPI a partirde 1961 almejando o controle do bairro. Eram nomesconhecidos do folclore belo-horizontino.

    Os botecos eram incontveis. Ainda na Praa Vaz deMelo ficava o do Fausto, com sua freguesia quase todacomposta de italianos que no arredavam p. Curiosamente,

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    naquele tempo cada boteco tinha a sua freguesia fixa. O bar doCoelho ficava do lado direito de quem vai para a Pampulha,bem no corao da praa. Quando de passagem pela capital,cantores famosos como Nelson Gonalves eram devidamenteservidos no Coelho que, por 500 ris, oferecia um PF j famosona cidade. Quem ousasse no comer tudo era xingadopessoalmente pelo proprietrio.

    Pela madrugada as opes seguiam atendendo a todosos gostos: o Angu do Jesuno, a sobremesa do Seu Joo doCreme, os salgados do Bar do Didi e o cardpio rpido doMarito, uma espcie local de fast-food, formavam a infinidadede lugares na Lagoinha a serem desbravados para encher apana e se embebedar. Cena cotidiana era ver algum cado nacalada ou vomitando no meio-fio, misturado ao cheiro ardidode amonaco que recendia do cho.

    Ao topo da Padaria Nossa ficava a sede do Terrestre, oLeo da Lagoinha. Sempre fardando sua camisa vermelhosangue, o clube de futebol do bairro contava com uma torcidavibrante quando jogava no campo do Pitangui. Cebola, Blag,Ireno; Pedrinho, Jonas e Sinval; Nenm, Nelson, Lima,Timteo e Tonho; saber de cor essa escalao era motivo deorgulho no bairro. Os cinemas So Geraldo e Paissandu ondehoje erguido o Restaurante Popular de BH tambmmarcaram poca na Lagoinha, trazendo ao bairro os filmes domomento, alm de proporcionar um ponto de encontro para osenamorados passarem as tardes e noites em clima de romance.

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    Toda essa tradio de bairro bomio permaneceu comomarca de representao no imaginrio coletivo da capital. ALagoinha viveu intensamente seus anos de cidade dentro deuma outra cidade, tamanho foi seu auge na vida social belo-horizontina. A derrocada comearia de forma um tanto cruel.Movida pelas necessidades urbanas de uma metrpole emexpanso, a demolio da Praa Vaz de Melo, em 1981,enterraria na memria da cidade uma Lagoinha pulsante, querespirava por si mesma, para promover a implantao do metrde superfcie o complexo virio que ligaria os extremos dacapital e a expanso da Av. Antnio Carlos. Todo o bairro seriamodificado diante das diversas demolies planejadas.Golpeado bem em seu corao, o bairro entraria em processode franca decadncia e deterioramento que perdura at hoje. ALagoinha nunca mais seria a mesmo.

    Um complexo inimigoUm complexo inimigo

    As intervenes urbanas de grande porte comearam naLagoinha com a construo do Terminal Rodovirio e o tnelPresidente Tancredo Neves, na dcada de 1970. Anos depois,as demolies de outros espaos do bairro para a construo do Complexo Virio da Lagoinha marcaram de vez a sorte dobairro. O conjunto de vias, elevados, viadutos e tnel foiconstrudo na faixa sul da regio da Lagoinha no espao

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    anteriormente ocupado pela Praa Vaz de Melo. Foi idealizadoem quatro viadutos que interligariam o Centro e as regiesLeste e Oeste s Avenidas Cristiano Machado, Antnio Carlose Pedro II.

    Ao longo dos anos, o rpido crescimento da cidade fezcom que o sistema virio no Complexo necessitasse cada vezmais de intervenes. Em busca de solues que pudessemotimizar o trnsito na regio, outras inmeras intervenesforam implementadas, como a construo de uma trincheira naaltura da Praa do Peixe, outro viaduto de ligao entre asAvenidas Pedro II, Cristiano Machado e Antnio Carlos, almdo alargamento das vias da ltima. Foi e ainda assim, sobconstantes ameaas das intervenes virias e dodistanciamento implicado por elas, que a Lagoinha passou asltimas dcadas. Diante de tanto impacto, o bairro sofreu umprocesso lento e gradativo de esvaziamento, sendo suadeteriorao visvel e impactante. Para quem o conheceu emoutras pocas, hoje o bairro vive de um passado no qual no seorgulha tanto, assim como do seu presente. A Lagoinha daboemia ainda se faz presente na memria de quem a viveu,mas, para tantos outros, ela foi sepultado l atrs.

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    Lagoinha hoje: cracolndia, memria eLagoinha hoje: cracolndia, memria efuturofuturo

    Atualmente, a Lagoinha padece. Os anos de intensastransformaes em seus tecidos urbano e social desencadearamo processo de degradao que o bairro evidencia hoje. Suasconstrues, muitas tombadas como patrimnio da cidade,sofrem com a ao do tempo e o abandono. Outraspermanecem fechadas, sem qualquer funo social aparente. Omau estado de preservao de inmeras construes e ruasevidencia a descaracterizao que o bairro vem sofrendo desdea segunda metade do sculo passado. O IAPI permanece ali,mas entre as revitalizaes e o intenso trfego sua portatambm sofre com o desgaste. Todo esse cenrio deempobrecimento remete ideia de marginalidade e abandonocom a qual o bairro passou a ser estigmatizado. Entre aquiloque ainda pulsa, nota-se um grande nmero de ferros-velhosnas redondezas, o que em tese contribui ainda mais jempobrecida imagem que o local adquiriu.

    Muitos moradores se queixam da violncia que assola aregio. Historicamente prxima s favelas Pedreira PradoLopes e Vila Senhor dos Passos antiga Buraco Quente aLagoinha se v s voltas com repetidos casos de criminalidade,corroborados pelo discurso arraigado na mdia que refora ocenrio de abandono em que o bairro se encontra. Tais favelas

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    compem uma importante rota do trfico de drogas na capital,expondo o bairro a conflitos entre gangues e at mesmo a casosde violncia e confrontamento policial. O local convivetambm com um elevado nmero de pessoas em situao derua, aspecto citado por muitos moradores como o granderesponsvel pela chancela de bairro tido como marginalizadopelo restante da cidade. E justamente nesse cenrio, entre aproximidade com o trfico de drogas oriundo das favelas a seuredor e o aumento vertiginoso de moradores de rua em suasvias, que a Lagoinha enfrenta hoje as maiores pedras em seucaminho: as de crack.

    A pecha de Cracolndia de Belo HorizonteCracolndia de Belo Horizonte infelizmente no foi atribuda gratuitamente ao bairro. Hoje,muito do cotidiano ditado pelo intenso movimento de pessoasque fazem de todo o seu espao o principal ponto de trfico econsumo de crack em toda a capital. Ali o movimento frentico a qualquer hora do dia, faa sol ou chuva; aCracolndia na Lagoinha funciona nas 24 horas dirias.Concentrados principalmente nas ruas Itapecerica, JosBonifcio, Ararib, Popular e ao redor e at mesmo dentro do IAPI, os usurios de crack tomam conta das caladas,reviram o lixo e constroem barracos precrios nas imediaes,dispondo de qualquer material encontrado ali mesmo. Outrosespaos como os casares abandonados, os lotes de casasdemolidas, praas, construes e reas debaixo dos viadutostambm servem como cenrio para que as prticas do trfico e

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    consumo da droga ocorram a cu aberto, livremente, semqualquer interveno do poder pblico.

    diante desse quadro que a Lagoinha sobrevive hoje.Caracterizado no imaginrio da cidade como o bairro daboemia, dos operrios, do IAPI, das obras para o complexovirio, ele assiste de perto ao enfoque dado pela opiniopblica sociedade belo-horizontina: o da criminalidade, dotrfico de drogas, da Cracolndia.

    pertinente e ao mesmo tempo incmodo refletir sobrea situao do bairro atualmente. Ele detm o poder de transitarna contraposio de um passado clebre ligado ao aspectopopular e mesmo m fama ao quadro atual: um bairromarcado pela degradao urbana e social de seu espao ememria, seja pela ao do tempo ou pelos reflexos dosproblemas que a sociedade brasileira vive como um todo, comoo fenmeno social das cracolndias. Quem perde com issoquase que exclusivamente a Lagoinha.

    Assim como foi pensada, poca de sua ocupao, paraabranger toda uma populao empobrecida, a mcula seperpetua, agora com retoques contemporneos. Saram de cenaa boemia e a prostituio, dando lugar criminalidade e outraschagas sociais. importante pontuar que os prpriosmoradores da Lagoinha compartilham dessa noo de que oestigma permanece e ganha ares de no ter mais reparo. Porm,eles alimentam o louvvel sentimento de pertencimento e deafetividade com o bairro em que cresceram ou com o qual

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    detm laos de alguma forma, tornando-se testemunhasoculares de tudo que ele se tornou.

    Hoje os problemas da Lagoinha so outros. Seusquestionamentos tambm. Eles desafiam a sociedade belo-horizontina a responder a questes aflitivas. Quais so assolues? O que fazer para a Lagoinha? Como agir? Qual ofuturo do bairro, de seus moradores e sua memria? E asituao atual? To velha quanto a prpria cidade qualpertence, a impresso que fica de que a Lagoinha foi sendoengolida, remetida a um canto cada vez menor, sendo ceifadalentamente daquilo que sempre teve e ainda tem, mesmo queocultada: vida prpria.

    Em meio a um passado histrico e a um presente decaos instaurado pelo surgimento de uma cracolndia, tais vidasmerecem alguma forma de luz, de espao, de se fazeremouvidas. Esta produo tentar, humildemente, oferecer umpouco disso.

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    CAPTULO 2CAPTULO 2

    ENTRANDO SEM BATERENTRANDO SEM BATER

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    Raspa da canela do diaboRaspa da canela do diabo

    novato de Cracolndia aquele que no conhecePreto.

    No topo dos seus quase dois metros de altura, umrosto to peculiar pra aqueles que frequentam o lugar quanto oprprio vai e vem de viciados entre as vielas. Seu inseparvelcarrinho de supermercado onde leva tudo que possuitudo que possui metfora mbil de uma vida marcada pelas constantes trocas decenrios que seu dono j viveu. Minas, Bahia, Gois. Preto transeunte da prpria existncia, sempre com os psdescalos, j que sapatos nmero 47 so mais difceis de acharde graa que pedra no chopedra no cho. Sua presena fsica marcante.Se morasse na Savassi ou em outro local menos catico,certamente diriam que no sai de uma dessas academias paramanter a forma. Como mora nas ruas da capital, s mais umnego alto, forte, pobre, sujo, que poderia ser segurana emqualquer porta de boate devido ao tamanho, mas ganha mesmoa vida catando reciclados e revendendo-os.

    Preto Valdecir no R.G., soteropolitano de nascena ecom um sotaque inconfundvel. A voz grave de radialista damadrugada exige certa adaptao aos ouvidos desacostumadospara captar e no perder nada de sua fala. S de Cracolndiaso sete anos, mas de crack j inteiram dez. Apesar de no ter

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    pouso fixo, ali se sente em casa. ntimo da maioria, em especialdas mulheres, apontado como um vigilante delas e por elas.No que despenda seu tempo exclusivamente vigilncia dosexo oposto, mas claramente parece gostar de manter a ordem ecultivar o respeito pelas meninas por ali, seja numa prosa maislonga ou na breve checagem do t tudo bem a, fia?t tudo bem a, fia?. Develhe agradar a alcunha de sentinela. Pequenos mimos fazemparte do pacto implcito estabelecido entre ele e elas, sendocorriqueiro ver algumas pegando quantidade maior de po ousopa e deixando num canto separado, espera do dono que notem hora para aparecer na madrugada.

    Quando aparece, alm do vidro de pimenta que carregapara incrementar as refeies que consegue, traz tambm umahistria nova. Curioso a reticncia em contar a prpriahistria. Pra qu? Sou como qualquer um desses morto-vivoPra qu? Sou como qualquer um desses morto-vivoque c t vendo largado a. Tenho nada demais pra contar no,que c t vendo largado a. Tenho nada demais pra contar no,sou ningum de importante..sou ningum de importante.. J nas alheias no v problema.Relata com tristeza aos colegas de vcio ainda desinformadosque a Doidinha tinha sido assassinada mais cedo na RuaItapecerica, uns 100 metros do local onde estavam. Algumaspessoas em volta lamentam a notcia, enquanto outras jemendam categoricamente que o destino da garota conhecidadeles seria esse mesmo. O trfico costuma cobrar caro pelasdvidas. Preto traz detalhes do fato com apurao invejvel,mas no teve coragem de ver a cena. Sou macho, mas temSou macho, mas temumas covardias que num aguento nem verumas covardias que num aguento nem ver. Esfaqueada,

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    Doidinha ainda fora decapitada e teve a cabea colocada aolado do corpo, dentro do prprio carrinho de reciclveis.

    Nesse dia de viglia ele chegou tarde. Perdeu uma dassuas, mais uma. Antes de seguir caminho e ver as outras gurias,d o motivo pelo qual no larga o crack.Fala pra todo mundo a no tal do seu livro que isso aqui Fala pra todo mundo a no tal do seu livro que isso aqui apontando uma pedra de crack a raspa da canela do diabo. a raspa da canela do diabo.O dmo no deixa.O dmo no deixa.

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    Sorvete sabor cSorvete sabor c

    A sorveteria de Dona Adlia quase um osis num diade sol escaldante. A temperatura beira a casa dos 31 e a quintasubida da Rua Jos Bonifcio tornou-se uma atividade fsica etanto. um puxadinho modesto, no primeiro andar da casa,feito dentro da antiga garagem do marido que hoje j no temnem mais carro. Um tapume cuidadosamente pintado de brancofoi colocado na lateral direita e pronto, estava feita a divisria.Tudo bastante simples. Trs mesinhas de plstico, poucascadeiras, balco de madeira, geladeira, pia e um pequenofreezer. No cardpio, oito sabores de picols e sorvetes, sendoo de leite condensado o mais sofisticado. Serve aa tambm,para deleite de um certo narrador. Nada alcolico, apenas guae refrigerantes comuns. dali que ela tira um extra pracompletar a renda da casa, estudar a filha e ajudar o marido.Tudo isso bem no meio de uma cracolndia.

    Adlia uma senhora dos olhos verdes, pele branca ecabelos ainda escuros. Sua baixa estatura d a impresso de seruma daquelas doninhas interioranas, mas faz questo deressaltar que no to velhano to velha. Perguntada sobre a idade, saipela tangente com um riso fcil e da maneira mais clssica: eev l se homem pergunta a idade de uma dama?!v l se homem pergunta a idade de uma dama?!. Vive hmuitos anos ali, desde que se casou com o primeiro e niconamorado. Dentro da pequena sorveteria, entretanto, ningum

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    alm dela. Com o sol que fazia, era de se esperar ao menos ummovimento maior. Afinal, quem no curte sorvete num diatrrido, boa gente no .

    que aquilo ali j foi melhor. Hoje, o pouco que entraj vira muito. Cravado no meio da Cracolndia, oestabelecimento de Dona Adlia padece do mesmo mal quetodos os outros comrcios e casas ali. A localizao epopulao indesejadas fazem com que muito do movimentocomercial migre para outras reas prximas. Os clientes seOs clientes seincomodam de ter que passar no meio dos craqueiros pra virincomodam de ter que passar no meio dos craqueiros pra viraqui. E quem no iria? Infelizmente eu no tenho como levar aaqui. E quem no iria? Infelizmente eu no tenho como levar asorveteria pra outro canto, do contrrio eu faria. Minhasorveteria pra outro canto, do contrrio eu faria. Minhaclientela um ou outro amigo, moradores que j toclientela um ou outro amigo, moradores que j toacostumados a esse inferno a na porta que voc t vendo.acostumados a esse inferno a na porta que voc t vendo.Ela d de frente para o muro traseiro do IAPI, local de fluxointenso de usurios 24 horas por dia. Do balco assistimos aum incio de confuso entre duas mulheres, que por algummotivo, certamente envolvendo pedra, comeavam a puxar oscabelos uma da outra. todo dia isso a. Tem dia que pior, todo dia isso a. Tem dia que pior,que eles rolam rua abaixo. Em outros ficam mais calmos,que eles rolam rua abaixo. Em outros ficam mais calmos,fumam e escornam por a mesmo, sem incomodar osfumam e escornam por a mesmo, sem incomodar osmoradores.moradores.

    Com sabor de nostalgia, Dona Adlia recorda temposem que aquilo ali era diferente. A rua era mais tranquila, osusurios no haviam tomado conta ainda. Criou o primeirofilho entre aquelas caladas, enquanto ela e o marido

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    construam a casa aos poucos. No eram tempos mais fceis.No eram tempos mais fceis.Mas certamente, menos loucos. Antigamente a gente saa eMas certamente, menos loucos. Antigamente a gente saa evoltava pra casa a noite tranquilamente, mesmo morando nosvoltava pra casa a noite tranquilamente, mesmo morando nosps da Pedreira. Hoje no. Eu no tenho coragem de botar ops da Pedreira. Hoje no. Eu no tenho coragem de botar op pra fora de casa sozinha quando cai a noite. Meu maridop pra fora de casa sozinha quando cai a noite. Meu maridoarrisca, diz que com ele no mexem. Me preocupo mesmo arrisca, diz que com ele no mexem. Me preocupo mesmo com a menina, que ainda estuda e volta tarde.com a menina, que ainda estuda e volta tarde.

    medida que o crack foi se espalhando pela capital e adistribuio da Pedreira retomando territrio, tudo mudou. ACracolndia tomou conta, expandiu-se, fincou razes s portasda casa de Dona Adlia. Contudo, nunca fora incomodada maisgravemente. A todo momento algum usurio entra e pede praque ela faa o favor de encher garrafas dgua. Alguns j sovelhos de casa, ela nem se importa. Alis, seu estabelecimento um dos poucos, pra no dizer o nico, que ainda oferece guapara eles. No que ela no saiba dizer no. Veja, eu tenho umVeja, eu tenho umtrabalho danado que ficarem me chamando pra enchertrabalho danado que ficarem me chamando pra enchergarrafinha. Os botecos a botam eles pra correr. Eu nem tanto.garrafinha. Os botecos a botam eles pra correr. Eu nem tanto.Se vem algum muito louco, causando, eu boto pra fora. MasSe vem algum muito louco, causando, eu boto pra fora. Masnormalmente eu cedo. Apesar de no concordar com a vidanormalmente eu cedo. Apesar de no concordar com a vidaque eles levam, eu tenho pena. Pena de pensar na me, naque eles levam, eu tenho pena. Pena de pensar na me, nafamlia deles. Pena deles mesmos, que no enxergam o infernofamlia deles. Pena deles mesmos, que no enxergam o infernoque entraram sem volta. E como se nega gua pra algumque entraram sem volta. E como se nega gua pra algumnessa vida?!.nessa vida?!.

    Testemunha ocular do organismo vivo que aCracolndia, Adlia j no se surpreende com mais nada. So

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    tantos os casos que fica difcil para ela escolher o maisimpactante. Mas sabe que no gosta dos que envolvem roubo.Na Cracolndia assim: no se rouba l dentro. Para isso,existe o mundo l fora. As regras so implcitas e essa umadas principais para se sobreviver e conviver normalmente.Roubar ou incomodar morador ento, nem pensar. Essa vem lde cima do morro, do trfico. Quem a viola geralmente novolta pra contar qual foi a punio. Mesmo assim, Adlia j viuos prprios usurios se roubando, fossem cachimbos, pertencesou tretas de pedra mesmo. Eles resolvem entre si. MasEles resolvem entre si. Masquando fica mais problemtico os meninos que trabalham aquando fica mais problemtico os meninos que trabalham abotam uma moral. que eles ficam to alheios a tudo quebotam uma moral. que eles ficam to alheios a tudo queperdem a noo. triste, no gosto de ver gente apanhando.perdem a noo. triste, no gosto de ver gente apanhando.

    Mesmo com os vizinhos indesejados sua porta, DonaAdlia diz que feliz ali. Sente-se sob uma redoma de vidroque a isola de tudo que rola l fora, mas que no a impede dever e vivenciar uma cracolndia. uma ilha serena no meio deum mar em constante tormenta. No pretende se mudar dali.Daqui s pro caixo. Levantei minha casinha com muitoDaqui s pro caixo. Levantei minha casinha com muitosacrifcio, no abriria mo dela s porque o inferno se mudousacrifcio, no abriria mo dela s porque o inferno se mudoupra c. Dizer que gosto dessa realidade seria mentira, maspra c. Dizer que gosto dessa realidade seria mentira, maseles escolheram o caminho das pedras deles, ento to pioreseles escolheram o caminho das pedras deles, ento to pioresque eu. Eu escolhi o meu que ficar. No mundo tem espao praque eu. Eu escolhi o meu que ficar. No mundo tem espao pratodos.todos.

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    Adlson tem fome de qu?Adlson tem fome de qu?

    Graas a Deus, essas pedras de hoje pelo menosGraas a Deus, essas pedras de hoje pelo menosdeixa bater a fome. Antigamente, era os dias de estmago nodeixa bater a fome. Antigamente, era os dias de estmago nolisoliso.

    Se existe alguma vantagem que o vcio traz hoje, paraum Adlson com 14 anos de pedra, que, pelo menos, elevoltou a sentir fome. Aos 31 anos de idade, ele tem certeza queessa uma daquelas pequenas vitrias que alguns usurios decrack obtm em meio a tanta coisa negativa que os cercam ali.Sentir fome algo incomum pras pessoas que abusam do vcio.Na Cracolndia, no auge da noia, toma contornos de dom,sendo pouqussimos ali os corpos agraciados com o tal. Oefeito do crack no organismo do usurio inibe o apetite aolongo do tempo, o que faz com que adquira o conhecidoaspecto fsico esqueltico devido falta de nutrientes ealimentao, mesmo que mnima.

    Adlson se sente privilegiado. Afinal, mesmo com os 14anos de vcio, hoje capaz de fumar o dia todo e mesmo assimsentir fome. Motivo de orgulho, sabe que nem sempre foiassim. Costumava passar uma semana inteira vivendo de gua,pedra e isqueiro, sem saber descrever como se aguentava tododia diante da fraqueza fsica. Na noite fria de abril, o copinho

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    de sopa dividindo espao nas mos com um cachimbo aindaquente sinnimo literal de sobrevivncia naquele lugar.

    Conversar com Adlson uma experincia interessante.Articulado, fala a lngua da rua e tem uma objetividade em seudiscurso que impressiona. Perguntou, respondeu. No temvergonha do vcio, das coisas que faz pra mant-lo, muitomenos de fingir o que no . Sou viciado mesmo. Gosto deSou viciado mesmo. Gosto defumar pedra, sei o mal que essa merda faz. Mas minha sina efumar pedra, sei o mal que essa merda faz. Mas minha sina eaceito de bom grado. No dou trabalho pra ningum aqui,aceito de bom grado. No dou trabalho pra ningum aqui,fao minha atividade sozinho e assim que vai ser semprefao minha atividade sozinho e assim que vai ser sempre.Funciona como um mantra para ele essa coisa de serindependente. Tanto que se orgulha de fabricar os prprioscachimbos que utiliza, raramente compra de outros usurios.Pelo contrrio, diz que tira um troco vendendo os que produzali na Cracolndia ou troca por mais pedra. Pacientementeexplica como a produo, que, segundo ele, precisa acontecerquando no est fumando. Dessa forma acredita ser maisprodutivo e criativo, alm de no tremer tanto. Exibe umcurioso modelo feito com peas internas de um computadorencontrado no lixo. Tem as iniciais A.S incrustadas na lateraldireita indicando posse. seu cachimbo favorito. No vendo,No vendo,nem troco. Esse aqui foi meu primeiro na Cracolndia. comonem troco. Esse aqui foi meu primeiro na Cracolndia. comose fosse da famliase fosse da famlia..

    Uma quinta-feira intensa para ele. Arredonda que j vaipara sua lasca de pedra nmero 20 no dia. Nas suas contas, issod de 15 a 20 gramas de crack por dia, nmero bastante alto,

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    cartel digno dos usurios mais pesados. Parar? Sem chance.Que nada. Ainda tem corre ali no Centro pra fazer, sempreQue nada. Ainda tem corre ali no Centro pra fazer, sempretem uns estudantes voltando pra casa naquelas ruas do baixotem uns estudantes voltando pra casa naquelas ruas do baixoCentro. No curto roubar no, mas fazer o qu? Tem queCentro. No curto roubar no, mas fazer o qu? Tem quecontinuar na atividade, parceiro...continuar na atividade, parceiro....Logo que termina a sopa interpelado por Neguinho, parceirode Cracolndia. O rapaz chega apressado, j tomou sua sopafaz uns minutos e parece irritado com Adlson perdendo tempocom a prosa. Cs vo casar ou essa resenha no terminaCs vo casar ou essa resenha no terminano? Agiliza a, Adlson. Porra!. no? Agiliza a, Adlson. Porra!. Juntos se ajudam,compartilham pedras, funcionam como sentinela um do outronaquilo ali. As histrias vivenciadas juntos devem serinumerveis, mas tero de esperar um prximo encontro.Adlson d uma gargalhada animada, se despede com umaperto de mo firme e pede que ore por ele.

    Posso incluir os estudantes do baixo Centro na precetambm?

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    O pedreiro que no sabe reconstruirO pedreiro que no sabe reconstruir

    Cercada por ironias. assim a lida diria nacracolndia.

    Como algum acostumado a criar, reconstruir e levantarcoisas do absoluto nada se veria to incapaz de fazer o mesmocom a prpria vida?

    Laudinei tem a resposta na palma da mo esquerda. Nada direita, o cachimbo.

    Aos 29 anos recm-completados, o mestre de obras deCoronel Fabriciano perambula pela Cracolndia com seu corpomagrelo quase como um fantasma. Ningum o v ali em seucanto debaixo das escadas que levam Estaa Lagoinha, emmeio ao emaranhado do lixo e das vidas desconexas umas dasoutras, ao mesmo tempo em que ligadas pela pedra em comum.Laudinei s mais um. Loiro, rosto afinado, chinelo de dedo,bermuda e camisa j pudas. Naquela quinta-feira de maro eleentrou na fila da sopa pedindo um agasalho para cortar o frioda noite chuvosa e recebeu a negativa. Saiu como se nuncativesse existido.

    Mas existe.

    Fuma crack desde os 14 anos de idade, quando ainda

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    morava no interior do estado. Foi apresentado droga pelasms companhias e mente fracams companhias e mente fraca, mesmo vindo de umafamlia dita como unida e religiosa. o caula entre duas irmsda casa. Ao passo que a vinda para a capital trouxe algumasvitrias pessoais, expandiu o leque para o vcio que se iniciaraainda adolescente, intensificando-o nos dez anos que tem deBelo Horizonte.

    Ao contrrio de muitos ali, Laudinei no estacostumado a morar nas ruas. peixe novo. Saiu de casa emabril de 2015, nove dias aps o nascimento de Bernardo, seusegundo filho, do qual j no tem notcias. A tambm pequenaMaria j completara um ano longe do pai, em Campinas, paraonde fora levada pela famlia da me. Mesmo com a alegria dachegada do beb, viu-se mais uma vez incapaz de largar ocrack e optou por sair de casa, para evitar dar mais trabalhopara evitar dar mais trabalho esposa do que o prprio beb esposa do que o prprio beb.

    Testemunhar o sentimento de vergonha das pessoas aodesabafarem inquietante. Instantaneamente, os ento vaziosolhos verdes se inundam de lgrimas de uma saudade e doarrependimento que ele diz ter sentido na primeira tragada,ainda em Fabriciano. Saudade de uma vida simples, saudvelSaudade de uma vida simples, saudvele dignae digna, longe das tormentas que o crack o trouxe. Vive deesmolas e favores, de alpendre em alpendre, semforo asemforo. Come quando d, mas garante que no passa fome,pois sabe dar uma boa ideia e descolar um trocosabe dar uma boa ideia e descolar um troco. Garantetambm que nunca roubou, mesmo com a Cracolndia me

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    ensinando que acreditar nesse discurso piamente ser tolo.Para muitas pessoas ali, roubar mais degradante que o prpriovcio, apesar da necessidade de sustent-lo. Alguns tentamnegar esse hbito, numa tentativa de amenizar a decepo quesentem por estarem como esto.

    Mas no foi sempre assim. Profissionalmente, Laudinei mestre de obras e pedreiro de acabamento. Brada comorgulho que dos bons e que seu servio de qualidade. Citauma lanchonete na Savassi que reformou quase sozinho e hoje ponto movimentado no bairro. Naquela poca, ganhava R$250,00 por dia e mantinha uma vida funcional; Maria haviachegado, estava h dois anos longe do crack e com ocasamento caminhando bem. Juntava dinheiro para o maiorsonho da vida: um veculo Citron. Em mais uma dessasironias da Cracolndia, o objetivo que deveria ser o ponto demudana positiva em sua vida tornou-se o da atual derrocada.Com menos de um ano, acidentou-se, perdeu o carro, ganhouenormes dvidas com as prestaes. Estourou cartes decrdito, pediu socorro s irms, resistiu como pode.Desesperado, acabou fraquejando como tantos outros. Desdeento, abraou o vcio hibernado e no largou mais.

    J so trs anos fumando uma mdia de 12 pedras pordia. O roteiro simples: descola R$ 10,00 logo cedo, sobe aPedreira e compra o que d. Por esse valor, adquire uma pedraequivalente ao tamanho de uma unha do polegar. Dessa pedra,vai lascando pequenas outras que sero consumidas ao longo

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    do dia. Tem dia que fumo trs duma vez, p pum! AlgumaTem dia que fumo trs duma vez, p pum! Algumacoisa pra ocupar a mente. Tem outros que fumo mais devagarcoisa pra ocupar a mente. Tem outros que fumo mais devagarpois fico muito depressivo, da a noia bate errado.pois fico muito depressivo, da a noia bate errado. O quesente ao fumar? J no importa. Nem sei descrever mais,Nem sei descrever mais,apenas vontade de acender a prxima pedra.apenas vontade de acender a prxima pedra.

    Nesse ritmo, deve 120 reais aos traficantes da favela,dvidas essas geralmente pagas com sangue ou vida. Garanteque sobe l quando quer e no tem medo, mas seus olhosclaramente dizem o contrrio. O cachimbo volta a estalar semqualquer discrio. Depois de alimentado, a minscula lascaque sobrou a ltima da noite, pra fechar o dia de copra fechar o dia de co. Aresina que raspar do bojo do cachimbo ficar pra manh queviria.Preciso comear o dia!Preciso comear o dia!. tudo muito rpido. Pedra nocachimbo, brasa de cigarro por cima, duas ou trs tragadas epronto. O cheiro de borracha queimada caracterstico do cracksobe rapidamente, assim como seus efeitos. Laudinei d umagolada violenta na garrafa d'gua, permanece imvel poralguns segundos e volta a conversar, sem se importar com umrato que insistia em rondar seus poucos pertences.

    Viagem de mais uma tragada ou da vida? Talvez deambas. Laudinei faz de tudo pra conseguir sustentar o vcio. Sepoucos minutos atrs no roubava, agora j o faz, at emcondies cinematogrficas. Estive numa casa esprita ontem.Estive numa casa esprita ontem.Vi uma chave de carro largada numa mesa e no resisti, jVi uma chave de carro largada numa mesa e no resisti, jbolei um plano. Achei o maldito pelo alarme, dirigi uns 20bolei um plano. Achei o maldito pelo alarme, dirigi uns 20minutos e o trouxe at a Pedreira. Vendi por 10 g de pedra, ominutos e o trouxe at a Pedreira. Vendi por 10 g de pedra, o

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    que num d mais que 200 reais. Eu no tava noiado na hora.que num d mais que 200 reais. Eu no tava noiado na hora.Os 10g de crack correspondem a uma pedra de tamanhoequivalente ao do dedo indicador. Numa cracolndia, aspropores zombam da realidade. Um carro equivale a 10g ou200 reais. Mseros seis ou sete centmetros de pedra.

    Entretanto, nem tudo noia. genuna a saudade queLaudinei sente da esposa e dos filhos. As lgrimas e a falaentristecida podem parecer apenas mais um momento em que aonda do crack fala mais alto para alguns, mas no o caso.Parece sentir vergonha de contar a prpria histria, pois ela omachuca profundamente.

    Laudinei pede ajuda e se diz preparado para largar ocrack, mas que no conseguir sozinho. Sabe lidar com asdificuldades que a dependncia impe, mas tem a mentetem a mentefracafraca e uma terrvel paixo por recairterrvel paixo por recair. Mas no adiantaapenas ser internado; trabalhar e mandar dinheiro para a esposae os filhos vital. O problema que comunidades derecuperao nesses moldes tm suas vagas disputadas, sendoque muitas optam pela insero no trabalho remuneradosomente aps um longo tratamento de desintoxicao eevoluo considervel do quadro de dependncia. Laudineisabe que seu tempo est se esgotando. Reconstruir a prpriavida no parece to fcil quanto levantar uma bela fachada dafamosa lanchonete da Savassi.

    Pede um abrao, bem como desculpas pelo choro edesabafo. Agradece. Sobe em direo Pedreira mais uma vez.

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    Uma razo especialUma razo especial

    Marcelo chega no local de distribuio da sopacausando. uma dessas pessoas extrovertidas, que falam detudo e nada ao mesmo tempo com qualquer um que puxe papo.Era maio e naquele entardecer de tera-feira chegou aos