Que Estamos Ajudando a fazer de nós

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Filosofia

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    Que estamos ajudando a fazer de ns mesmos? Obs.

    Por Luiz B. L. Orlandi

    Nota alpha: acolhendo a pergunta.

    Os trabalhos aqui apresentados anteriormente, assim como as discusses havidas,

    comportam sem dvida, tenho certeza disso, encaminhamentos consistentes e interessantes

    pergunta foucauldiana que Margareth Rago escolheu como legenda deste Colquio

    Foucault-Deleuze: que estamos ajudando a fazer de ns mesmos?. Ao retomar

    explicitamente essa pergunta, nesta ltima hora de falao, no pretendo sintetizar tantas e

    variadas contribuies, pois, se o fizesse, correria o risco de empobrece-las, como

    geralmente acontece com prefcios publicados em livros contendo escritos de vrios

    autores. Eu a retomo, mas simplesmente para acrescentar algumas notas de trabalho. Em

    virtude da sucesso discursiva, essas notas aparecero umas aps as outras, mas o liame

    entre elas no pretende imitar uma necessidade demonstrativa ou se assemelhar a um

    encadeamento teoremtico. Pretendo que entre elas pulse to-somente a atrao pela

    dimenso problemtica dessa pergunta. Por isso, e longe de serem inspiradas por um desejo

    de originalidade, minhas notas procuraro reiterar, de um ponto de vista tico-poltico, a

    importncia de se manter vista essa pergunta, mesmo que cada um de ns esteja

    provisoriamente satisfeito com os resultados aqui conseguidos, e, portanto, mesmo que

    esteja momentaneamente de acordo com esta ou aquela resposta porventura dada a ela e at

    com sua substituio por outras perguntas.

    Nota 1: confisso de ignorncia.

    Levando em conta esse cuidado, minha primeira nota pretende, justamente,

    confessar uma atroz ignorncia: no sei o que estou ajudando a fazer de mim mesmo e sei

    menos ainda o que estamos ajudando a fazer de ns mesmos. Ao dizer isso, no pretendo

    fixar-me na oposio ou na complementaridade macroscpica entre um eu e um ns, mas

    evitar, de antemo, que esse eu fale como representante de um ns todos. Embora

    representar seja algo assimilvel em certos nveis e em certas circunstncias da atividade

    terica e prtica, no pretendo, aqui, colocar esse verbo como comandante da minha fala.

    Obs. Com o mesmo ttulo, uma verso carente do Anexo que aqui aparece no final, foi publicada em Margareth Ragp, Luiz B. L. Orlandi, Alfrerdo Veiga-Neto (Orgs.), Imagens de Foucault e Deleuze ressonncias nietzscheanas, RJ, DP&A Ed., 2002, pp. 217-238.

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    Minha ignorncia a respeito do que estou ajudando a fazer de mim mesmo ainda mais

    grave: com efeito, se verdade, como querem os pensadores homenageados neste colquio,

    que cada eu j multido, multiplicidade interna e externamente exposta a uma complexa

    heterognese, qual dos eus habitantes deste velho territrio chamado mim mesmo poderia

    ascender o suficiente para, do alto de sua transcendncia, dar uma resposta categrica a essa

    pergunta? Duvido muito da possibilidade de um mim mesmo estar dotado de um eu capaz

    disso. Como extraordinria criao conceitual, o transcendental corresponde a um plano

    que excede as veleidades monopolistas deste ou daquele eu e mesmo uma hipottica

    convergncia oligoplica de muitos eus.

    Nota 2: dobras do fazer.

    A todo instante, e esta uma segunda nota, cada um desses eus faz outras coisas ao

    fazer determinada coisa. como se em cada gesto estivesse j presente a famosa

    equivocidade das palavras usadas na linguagem comum, (escorpio remetendo a bicho, a

    signo zodiacal, a um conjunto de estrelas, a coisas at mais conflitantes etc.). Ao fazer isto

    ou aquilo, cada euzinho est sempre fazendo algo mais ou at algo menos. Assim como

    acontece com outros verbos, o fazer est sempre em desdobramentos, em dobras e redobras

    e mesmo em sobredobras. H nisso tudo um jogo de capturas mltiplas: um perptuo

    rodzio entre capturar e ser capturado, entre preender e ser preendido no jogo das mltiplas

    preenses, como diria Whitehead em sua teoria do acontecimento. Ao fazer de mim mesmo

    um fumante prazeroso ou no, meus eus sugadores, inaladores ou sucantes, esto fazendo

    dos meus eus pulmonares atletas cada vez mais combalidos, esto fazendo do meu eu

    financeiro, da minha insero na distribuio universal da renda, uma aliana com

    multinacionais propensas ao genocdio, esto fazendo dos meus eus videntes e ouvintes

    janelas por demais escancaradas a propagandas que imbecilizam a metamorfose pica,

    lrica ou trgica das paisagens e atmosferas. E assim por diante. Por minsculo que seja

    cada um desses eus, e por mais irrisria que seja sua atividade principal, ao fazer isto ou

    aquilo seu fazer est sempre sobre-fazendo ou sub-fazendo outras coisas, seja num plano de

    composio molar, onde uma tarefa em cada lugar implica ou remete a outra, estando todas

    como que enredadas numa composio plural, seja num plano molecular de imanncia,

    onde o fazer est imerso em trans-lugares, em complexas zonas intensivas de

    indeterminao. Acontece, porm, que esse jogo no simplesmente amistoso, mesmo

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    porque at jogos amistosos de selees de futebol entram na engrenagem de complexas

    estratgias empresariais. Em suma o jogo das dobras do fazer no neutro, pois oferece

    muita seiva a um imenso labirinto de questes. Como pensar esse labirinto que acaba por

    capturar at mesmo a mais fugaz respirao de um eu dormente ou estagnado numa

    atmosfera de ar condicionado?

    Nota 3: um dos paradoxos do labirinto.

    Dizer, como faz esta nota de nmero trs, que vivemos mergulhados em labirintos

    de questes como insistir numa idia ao mesmo tempo banal e excessiva. Banal, porque a

    humanidade esteve sempre enrolada nos problemas, desde os mais leves, como o de saber

    se o momento de darmos uma paulada, se a ocasio de ofertarmos uma ddiva ou se o

    mgico instante de afugentarmos o inimigo enquanto nos transformamos numa flor, como

    Anah, at aqueles que distribuem terror, ameaando vidas inocentes. Banal, porque essa

    impresso de viver no mago do problemtico talvez seja a mesma sentida pelos viventes

    em qualquer lugar e em qualquer poca histrica. A humanidade j sofreu catstrofes

    inimaginveis e foi inmeras vezes vitimada por sofrimentos atrozes. Como isso no se

    estancou, como isso foi se tornando cada vez mais banal, essa prpria banalidade

    intensificou o carter excessivo do nosso labirinto. A est pelo menos um aviso de que

    alguma coisa o distingue daqueles do passado.

    Com efeito, quase impossvel no ver que nossa poca particularmente marcada

    por um excesso de sinais que apontam para a dramaticidade de um vasto e onipresente

    paradoxo. Com o auxlio dos autores homenageados neste colquio, assim como de

    lembranas de algum marxismo, possvel esboar esse paradoxo nos seguintes termos:

    nunca se presenciou entre os humanos uma to acentuada potncia capaz de articular e de

    levar a cabo conjunes praticamente ilimitadas entre foras presentes ou atuantes no

    homem e os mais variados mini conjuntos do seu universo ambiente; ao mesmo tempo,

    nunca se viveu to sistemtico, cotidiano e envolvente sucateamento da humanidade.

    Esse paradoxo uma das feridas do nosso plano de imanncia. Ele vem sangrando a

    cada dia aquilo que Marx, formulando o sentido sempre fugidio de nossa questo

    permanente, chamava de produo social da existncia. Como dizer em poucas palavras

    cada uma das vertentes desse paradoxo?

    Nota 4: a vertente da ilimitao.

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    Esta quarta nota poderia reservar a uma das vertentes desse paradoxo o nome de

    potncia de ilimitao. Esta a vertente assim expressa pela nota 3: nunca se presenciou

    entre os humanos uma to acentuada potncia capaz de articular e de levar a cabo

    conjunes praticamente ilimitadas entre foras presentes ou atuantes no homem e os mais

    variados mini conjuntos do seu universo ambiente.

    Foucault e Deleuze ajudam-nos a apreender o que est em pauta nessa vertente:

    trata-se da combinao entre foras presentes ou atuantes no homem (como pensar, dizer,

    sentir etc.) e foras do fora, expresso esta que eles, a partir de Blanchot, mas tambm de

    Simondon, empregam para dizer, cada um a seu modo, as dimenses de imerso do

    humano, dimenses em que o prprio humano encontra as condies de sua varivel

    constituio. As combinaes de foras no homem e de foras do fora exibem uma forma

    dominante em cada configurao histrica. Essa forma tecida num cruzamento de

    processos, sendo estes os nervos dessas combinaes. Assim, para redize-lo em poucas

    palavras, cada configurao histrica teria sua forma dominante marcada por imbricaes

    especiais de certos processos: processos de saber, com suas formas1, ou melhor, com suas

    curvas ou linhas2 de visibilidade e de dizibilidade, esto imbricados com processos de

    poder, isto , com jogos entre linhas de foras afetantes e de foras afetadas; esses

    processos de saber e poder configuram um fora articulado a um terceiro processo, dito de

    subjetivao ou individuao. De uma maneira neutra, este ltimo pode ser entendido como

    dobramentos do fora; mas, de uma maneira contundente, ele pode ser pensado como

    possvel toda vez que linhas de fuga e de resistncia irrompem atravs dos dispositivos de

    saber e poder. A pergunta pela forma dominante nas configuraes histricas europias a

    partir do sculo XVII, pergunta de inspirao nietzscheana, encontra duas respostas (pouco

    importa agora se abusivas ou no) e uma interrogao que se mantm em nossos dias: nos

    sculos XVII e XVIII, sculos da dobra, tem-se a forma-Deus como forma dominante

    encravada em combinaes de foras no homem e de foras de elevao ao infinito. No

    sculo XIX, sculo da redobra e desdobra, tem-se a forma-homem como forma dominante

    nas combinaes de foras no homem com foras do finito, isto , com foras que grifam a

    finitude do homem no plano da vida (como atestava a biologia), no plano do trabalho

    1 No seu livro Foucault, de 1986, Deleuze emprega o termo formas. 2 No texto Quest-ce quum dispositif?, de 1988, Deleuze emprega tambm os termos curvas e linhas.

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    (como atestava a economia poltica) e no plano da linguagem (como atestava a filologia).

    Quanto ao sculo XX, sculo de passagem sobredobra, acentua-se cada vez mais em seu

    final a necessidade de uma interrogao: que forma os processos de saber e poder, nos

    quais vivemos imersos, esto ajudando a constituir? E agora, do ponto de vista dos

    processos de subjetivao, reencontramos a pergunta-legenda deste colquio: que estamos

    ajudando a fazer de ns mesmos em nossa imerso nos dispositivos de saber e poder?

    Que nome ganhar a forma que nos conter em seu resumo, abusivo ou no? Super-

    homem, acima ou alm-do-homem? Seja qual for o nome da forma dominante, o que

    importa levarmos em conta o tipo de combinao de foras que parece ter tudo para

    caracterizar a potncia mxima atingida pelos processos de saber, de poder e de

    subjetivao em nossa contemporaneidade. Para sabermos isso, devemos perguntar o

    seguinte: com que foras do fora as foras atuantes no homem esto hoje se combinando no

    sentido dessa mxima potncia? Segundo a leitura que Deleuze faz de Foucault, tem-se

    uma noo das novas foras do fora quando se pensa o finito-ilimitado; que essas novas

    foras so aquelas prprias de conjuntos compostos por um nmero finito de componentes,

    mas passveis de enveredarem por uma diversidade praticamente ilimitada de combinaes,

    o que abre s foras atuantes no homem uma ilimitao de interferncias neste ou naquele

    domnio, como o do cdigo gentico, que um dos exemplos eticamente mais fortes para

    nos convencermos da inutilidade tanto de atitudes cegamente otimistas ou pessimistas

    quanto da iluso de retorno s formas anteriores. Em outras palavras: o que est em pauta

    no exerccio da mxima potncia dos processos de saber, poder e subjetivao no o

    retorno forma-Deus ou forma-homem, mas combates e guerras no interior da ilimitao

    tornada possvel, sem que se saiba de antemo se a potncia de ilimitar se dar para o bem

    ou para o mal do ponto de vista da vida em sua alterabilidade.

    Nota 5: a vertente do sucateamento.

    Nesta quinta nota, gostaria de, rapidamente, chamar a ateno para a segunda

    vertente do paradoxo, na qual se explicita sua dramaticidade: ao mesmo tempo em que

    ocorre no gnero humano a possibilidade de ilimitaes nos mais variados domnios, nunca

    se viveu to sistemtico, cotidiano e envolvente sucateamento da humanidade. Falo em

    sucateamento, no singular, mas ele uma multiplicidade, onde velhos e novos

    sucateamentos so intensificados. Com o auxlio da tradio que se apia em textos de

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    Marx, gostaria de salientar aqui to apenas o aspecto do sucateamento da humanidade que

    se apresenta como subproduto da estratgia de produo (ou de sobre-produo, como diria

    Deleuze), cada vez mais dominante em nosso planeta. Essa estratgia modula a produo

    social da existncia (na qual os homens esto necessariamente imersos, pois no produzem

    diretamente sua prpria existncia) , transformando-a em problemas e respostas que se

    impem distintamente aos envolvidos direta ou indiretamente nessa produo social. Isso

    quer dizer que a estratgia de produo ou sobre-produo dominante circunscreve o

    quanto pode um vasto processo de vida real (essa complexa imbricao de relaes

    homem-homem/homem-natureza) ao que decisivo nos cruzamentos das relaes de

    produo e das foras produtivas. a partir desse quadro que se pode notar uma espcie de

    dupla articulao socio-econmica do sucateamento da humanidade. Ao levar em conta

    pelo menos uma dupla articulao desse sucateamento, estou de certo modo contrariando o

    falso impasse que poderia cristalizar-se quando se nota, como apontam Eric Alliez e

    outros, a centralidade da vida e no do trabalho nos movimentos que se ocupam de

    questes de biologia e de meio ambiente no debate poltico 3. Eis um esboo dessa dupla

    articulao.

    De um lado, do ponto de vista das foras produtivas, quando se diz que os chamados

    processos de trabalho so constitudos pela fora humana de trabalho (T), pelos meios de

    trabalho (M), pelos objetos submetidos s transformaes pelo trabalho (O) e, finalmente,

    pelo produto resultante da combinao desses elementos no processo (P), temos o direito de

    perguntar, observando o ocorrido ao longo deste sculo XX, se essa caracterizao dos

    processos de trabalho no estaria sendo demasiado curta. Que estaria faltando nessa

    caracterizao? De um lado, evidente que esses processos no repem todos os seus

    pressupostos em sua complexidade. Admitamos que eles ponham e reponham pressupostos

    particulares, mas cada vez mais difcil notar que eles reponham satisfatoriamente os

    pressupostos universalmente concretos sem os quais a prpria existncia no se singulariza,

    como o ar, a gua, a noite, a luz solar etc., pressupostos que lhes so, todavia,

    imprescindveis, que eles particularizam, claro, podendo at mesmo contabiliz-los, mas

    que lhes chegam de uma plenitude natural que eles assaltam sem a certeza de poder

    3 (. Alliez, M. Lazzarato, B. Karsenty e A. Querrien, Le pouvoir et la rsistance, in Multitudes, n 1, maro de 2000, Paris, Exils, p 13.

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    recomp-la. Basta abrir os jornais para se ter periodicamente uma confirmao disso. A

    organizao no-governamental WWF (Fundo Mundial para a Natureza) denuncia, por

    exemplo, que o uso de recursos pelo homem excedeu em 42,5% a capacidade de

    renovao da biosfera, o que equivale a dizer que a humanidade precisa de mais meia

    Terra 4, denncia que abre novas possibilidades no s para o conhecido MST, mas

    tambm para um possvel MSP (Movimento dos Sem Planeta). Por outro lado, aquilo que

    nos lembra que esses pressupostos constantes da existncia terrena esto ausentes da

    caracterizao curta dos processos de trabalho outro ausente dela, qual seja, o imenso lixo

    pluridimensional, que subproduto desses processos e que, no corpo do existente, concorre

    com a capacidade de absoro vital dos pressupostos constantes. O que se salienta nesse

    aspecto, parece-me, um sucateamento da humanidade em sua qualidade fsico-qumica de

    vida na terra, sem falarmos da decomposio de paisagens que embelezam variadamente a

    coexistncia e compem aprazveis e saudveis distanciamentos e aproximaes entre os

    entes. claro que a prpria vida e os viventes resistem e ao mesmo tempo criam novas

    formas de vida, como salienta Maurizio Lazzarato, o que o leva, com Foucault, a pensar a

    prpria vida como matria tica 5. Mas, justamente, procuram resistir ao sucateamento

    e criar filetes de sadas.

    Por outro lado, uma segunda articulao socio-econmica permite ver o

    sucateamento da humanidade como um poderoso efeito da complexidade crescente que a

    estratgia de produo vai impondo s relaes de produo e, em particular, s relaes de

    apropriao real da natureza. At certa fase do desenvolvimento da sua estratgia de

    concentrao, o modo capitalista de produo, do ponto de vista das relaes de produo

    nele imperantes, podia ser resumido como bipolarizao simples entre o no-trabalhador

    proprietrio (~T P) sobrepondo-se (na relao de propriedade) ao conjunto formado pelo

    trabalhador no-proprietrio (T ~P) sobreposto (na relao de posse ou de apropriao real)

    4 Cludio ngelo, FSP, 21/10/2000. 5 (Maurizio Lazzarato, Du biopouvoir la biopolitique, in Multitudes, n 1, maro de 2000, Paris, Exils, p. 56; a respeito da presena, na obra de Foucault, da idia de resistncia como negao, mas tambm como criao, ver Dits et crits, IV, 741, Paris, Gallimard, 1994. Ver tambm Franoise Proust, La ligne de resistence, in Rue Descartes/ 20 Gilles Deleuze Immanence et vie,Paris, PUF, 1998, pp. 35-48. Essa questo tornou-se aguda a partir do texto de Judith Ravel, Foucault lecteur de Deleuze : de lcart la diffrence (1970), republicado em Critique n 591-592, Paris, 1996, pp. 727-735.).

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    articulao entre meios de trabalho e objetos de trabalho (M-O), como ilustra a figura

    abaixo:

    ~T P

    T ~P

    (M-O)

    Pode-se dizer que, nessa fase, as funes de concepo e de execuo, na relao de

    apropriao real da natureza, estavam concentradas na competncia acumulada pelo

    trabalhador no-proprietrio. Numa palavra, o operrio aparece, ento, como dotado de

    uma competncia que lembra a do velho arteso, capaz de comandar e de sobrepor-se ao

    processo inteiro de articulao entre meios e objetos de trabalho. Enquanto pde, ele

    ocupou uma espcie de sobreposio tecnolgica, situao que foi se complicando at o

    ponto de se ter hoje uma decrescente classe operria cada vez mais reduzida a uma

    apendicularidade tecnolgica, a uma subposio operatria de auxiliar do maquinismo. Isso

    que, para Marx, era promissor, visto que o coletivo dos trabalhadores perderia menos tempo

    no trabalho, podendo dedicar-se mais aos lazeres livres ou s discusses polticas e

    culturais etc., vem sendo estudado h dcadas como degradao histrica desse tipo de

    trabalho. Essa mudana parece estar afetando acentuadamente a potencialidade crtico-

    poltica desse lugar social, mesmo porque, ancorado em inovaes no campo da

    ciberntica, as inovaes tecnolgicas, operando globalmente ao ritmo de fluxos

    financeiros, vem reduzindo quantitativa e qualitativamente a necessidade de fora humana

    de trabalho apendicular, sem que isso seja compensado por um aumento equivalente do

    nmero dos funcionrios da concepo. Do ponto de vista da antiga idia de revoluo

    proletria, esse quadro emoldura um gigantesco espelho onde se reflete a impotncia

    contempornea do anteriormente denominado trabalhador coletivo. Esse quadro fica ainda

    mais complicado com a generalizao do desemprego, mal compensado pela propagao de

    trabalho clandestino, pela nomadizao da fora humana de trabalho, pela multiplicao de

    pequenas e mdias firmas prestadoras dos mais variados servios etc., tudo isso

    proliferando os mais disparatados rebentos de atritos localizados, o que dificulta ainda mais

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    o encaminhamento de respostas velha pergunta de Marx relativa ao como reunir as lutas

    locais.

    Em suma, o sucateamento de pressupostos constantes da existncia e o

    sucateamento de crescentes contingentes da fora humana de trabalho so dois aspectos

    que, conquanto no esgotem, justificam a presena da idia de sucateamento da

    humanidade como uma das vertentes de um dos paradoxos em que vivemos no nosso

    contemporneo labirinto de questes. Recordemos a formulao das duas vertentes desse

    paradoxo: nunca se presenciou entre os humanos uma to acentuada potncia capaz de

    articular e de levar a cabo conjunes praticamente ilimitadas entre foras presentes no

    homem e os mais variados mini conjuntos do seu universo ambiente; ao mesmo tempo,

    nunca se viveu to sistemtico, cotidiano e envolvente sucateamento da humanidade. A

    irnica dramaticidade desse paradoxo fica evidente quando nos damos conta de que a

    estratgia de produo dominante que pode estar articulando uma indita potncia de

    ilimitao a um sucateamento que se espalha em vrios domnios e nveis pela humanidade

    inteira. Mas preciso tomar cuidado para no confundir essa estratgia de produo com

    um universal abstrato, pois se ela articula essas vertentes por ser imanente aos processos

    nos quais essas vertentes se efetuam; essa estratgia o modo, ou melhor, a prpria

    modulao operatria que serpenteia variadamente nesses processos. Poderamos perguntar

    pelos outros nomes dessa serpente e por aquilo que corre em suas veias. Num primeiro

    momento, essa pergunta pede uma espcie de resumo do prprio labirinto de questes

    Nota 6: resumo do labirinto.

    Uma sexta nota poderia impor uma espcie de resumo ao labirinto antevisto quando

    encontramos o carter desdobrvel e multifacetado do fazer e quando nos darmos conta de

    um dos seus paradoxos. Um simples resumo seria mais ou menos este: ao fazer isto ou

    aquilo, seja produzindo, seja consumindo, seja trocando, seja pedindo dinheiro emprestado

    ou simplesmente vivendo, estou ajudando a fazer de mim mesmo, em ltima instncia, um

    dos pontos de aplicao dos mecanismos de reiterao dos pressupostos do capitalismo.

    Esse apanhado sinttico tem sua razo de ser, pois o labirinto captura at mesmo o meu no

    fazer, ou melhor, a impotncia da totalidade dos meus afazeres. Um exemplo drstico a

    esse respeito a dependncia em que se encontram, no apenas os meus eus, mas tambm

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    Estados e conjuntos inteiros de Estados em relao liberdade com que o capital financeiro

    se movimenta pelo planeta. Seria ele a serpente ou o prprio sangue dela?

    Vocs sabem que pensadores do sculo XVIII consideravam a moeda como

    instrumento destinado a facilitar a troca das mercadorias produzidas, o comrcio entre

    pessoas e povos. Hoje, numa era ps-nacionalista, alm do comrcio, at mesmo o

    movimento internacional de investimentos em capital constante, ditos realmente

    produtivos, , em geral, bem visto ou pelo menos tolerado. Em contrapartida, a

    libertinagem dos fluxos improdutivos do capital financeiro vem recebendo hoje o repdio

    de economistas das mais variadas tendncias, excetuando-se aqueles que, por equvoco ou

    perfdia, aceitam azeitar esse dinamismo da volatilidade manetria. Em uma de suas

    colunas jornalsticas, o professor Antonio Delfim Netto, indignado, medita sobre a seguinte

    informao: entre o ano de 1973 (momento da desvalorizao do dlar, da crise do petrleo

    e da dinamizao do mercado de eurodlar) e o ano de 1999, o comrcio mundial, diz

    ele, cresceu 13 vezes, enquanto as transaes financeiras de todas as naturezas cresceram

    74 vezes. Hoje, elas atingem 1,1 trilho de dlares por dia (o dobro do PIB brasileiro

    anual), 40 vezes maior do que o comrcio dirio. E mais: contrariando a destinao

    instrumental da moeda, essa libertinagem financeira deixa o comrcio de mercadorias

    girando to apenas em torno de 2,5% de si prpria. A pergunta que um pensador do

    sculo XVIII faria a seguinte: que vantagem traz essa gigantesca fluncia financeira a um

    pas que pretenda desenvolver-se do ponto de vista da produo e do comrcio de

    mercadorias? Posso extrair do texto do prof. Delfim, neste final do sculo XX, uma

    resposta desconcertante para um leitor que o admire como pensador da economia. Diz ele:

    no h, at hoje, teoria com hipteses crveis ou comprovao emprica slida de que essa

    desabrida movimentao de capitais especulativos seja muito til para os pases em via de

    desenvolvimento econmico. H, entretanto, srias suspeitas de que sua volatilidade e seu

    comportamento de manada sejam coadjuvantes importantes das suas crises, e preciso

    confessar que no sabemos como control-los 6. como se, reaprendendo com Marx, mas

    simplificando abusivamente a coisa, pudssemos dizer o seguinte: ao maturar sua frmula

    dinheiro-mercadoria-mais dinheiro (D M - D), o capital investido em produo e no

    6 FSP, 15/11/2000.

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    comrcio tivesse encontrado seu incontrolvel no capital financeiro. Ou seja, embora a

    frase do prof. Delfim no esteja inovando, ela pe o dedo numa inquietao. Qual?

    Nota 7: a propsito do incontrolvel.

    Cada gesto, cada euzinho, cada fiapo das prticas cotidianas, e esta minha stima

    nota, est imerso em algo ainda (?) incontrolvel, est ajudando a proliferar os fluxos ainda

    incontrolveis, e isso do ponto de vista de quem vive numa sociedade disciplinar e/ou numa

    sociedade de controle, como diriam Foucault e Deleuze. Falei em inquietao diante dessa

    revelao do nosso incontrolvel contemporneo. No me inquieta essa aparncia de

    contradio entre a idia de sociedade de controle e esse carter ainda incontrolvel do

    capital financeiro. O que me inquieta outra coisa. Inquieta-me pensar que a trama dos

    dispositivos de controle dominantes no dia-a-dia dos afazeres, e nos quais imbricam-se os

    processos de saber, de poder e de subjetivao, esteja encontrando nos fluxos financeiros

    ainda incontrolveis a desmedida que passa por esses dispositivos, ao mesmo tempo em

    que os ativa, prolifera e mesmo transforma. Em outras palavras, inquieta-me essa idia de

    que o incontrolvel talvez seja a desmedida potncia que passa pelos controles.

    Pois bem, essa inquietao que reencontro numa passagem do conhecido texto de

    1990, no qual Deleuze estabelece alguns parmetros que distinguem a lgica de

    funcionamento das chamadas sociedades de controle daquela das sociedades

    disciplinares. o dinheiro, diz ele, que talvez melhor exprima a distino entre as duas

    sociedades, visto que a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro que

    servia de medida padro , ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulaes

    que fazem intervir como cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. E

    quando procuramos um sinal bem emprico de que essa mudana considervel,

    encontramos nesse mesmo texto a vulgar constatao de que a corrupo ganha a uma

    nova potncia. E Deleuze prossegue, indicando um animal para cada uma dessas

    sociedades: A velha toupeira monetria o animal dos meios de confinamento, mas a

    serpente o das sociedades de controle. E a passagem conclui com um misto de humor e

    inquietao: passamos de um animal a outro, da toupeira serpente, no regime em que

    vivemos, mas tambm na nossa maneira de viver e nas nossas relaes com outrem. O

    homem da disciplina era um produtor descontnuo de energia, mas o homem do controle

    antes ondulatrio, funcionando em rbita, num feixe contnuo. Por toda parte o surf j

  • 12

    substituiu os antigos esportes. Vivemos ondulando no curto prazo e na rotao rpida

    dos controles, mas o controle contnuo e ilimitado 7. A est: encontramos nos prprios

    dispositivos de controle uma ilimitao cuja potncia enrosca-se no incontrolvel da

    serpente financeira.

    Nota 8: que fazer?

    Assim como Espinosa perguntava pelo que pode um corpo, sinto-me obrigado a

    perguntar nesta oitava nota: que posso fazer com essa serpente? Uma resposta canalha seria

    a seguinte: introjet-la por cima, por baixo, por todos os poros, ou bailar com ela, bem

    vestido ou desnudo, pele colada pele, como Luz Del Fuego do sistema. Uma resposta

    cmica poderia ser esta outra: devo levar a serpente ao magnfico Instituto Butant e

    solicitar aos especialistas a fabricao dos antdotos mais eficazes, de modo que eu possa

    vir a controlar os efeitos de suas picadas em mim mesmo.

    Ao ocorrerem, essas respostas podem estar simplesmente despistando a

    dramaticidade da situao. Mas, vistas de outro ponto de vista, elas tambm salientam o

    drama, pois escancaram a dificuldade de serem, hoje, substitudas por uma resposta dada

    anteriormente por revolucionrios clssicos. Que posso fazer com a serpente? Muito

    simples: unir-me ao sujeito coletivo capaz de uma prxis revolucionria tal que seus atos

    mudaro a qualidade de todas as demais prticas. Ento, saberei de maneira peremptria o

    que estarei ajudando a fazer de mim mesmo. Sabe-se o quanto Deleuze valoriza o devir

    revolucionrio das gentes, o quanto ele valoriza, portanto, o meio onde brilha a potncia

    dos acontecimentos. Do mesmo modo, no se trata de argumentar em detrimento desses

    devires, o que aconteceria se eu procurasse to-somente dimensionalizar ou valorizar a

    coagulao de revolues em estados de coisas marcados pelo fracasso nisto ou naquilo;

    trata-se, isto sim, de grifar a precariedade da ereo de um sujeito coletivo, de um

    transcendente em funo do qual eu teria a medida da minha participao terica e prtica.

    Mas talvez seja conveniente dedicar, mesmo que brevemente, um pouco mais de ateno a

    esse tema numa nota parte, a de nmero 9, assim denominada:

    Nota 9: do ato universalmente decisivo s aes particularmente incisivas.

    7 LAutre Journal, maio de 1990, republicado com o ttulo Post-scriptum sobre as sociedades de controle em Pourparlers, Paris, Minuit, 1990, pp, 240-247; Conversaes, tr. br. de Peter Pl Pelbart, RJ, Ed. 34, 1992, pp. 219-226.

  • 13

    Foi dito que as dobras de toda essa complexa dramaticidade implicam processos de

    saber, de poder e de subjetivao, ao longo dos quais elas ressoam multiplamente, como se

    coexistissem em estado de contaminaes recprocas. Em certo momento da histria dessa

    complexidade, tornou-se evidente que j no se podia confluir a pluralidade das lutas, de

    modo a subordin-las ao que seria o projeto ou o ato de um sujeito coletivo postulado como

    capaz de subverter o prprio modo capitalista de produo. Por vrias razes, dentre as

    quais no irrisria a perda de sua fundamentalidade operatria nos processos de produo,

    a chamada classe operria, qual se atribua de fora o papel de possvel redentor da

    humanidade na luta pelo fim da explorao do homem pelo homem, foi exibindo sua cada

    vez mais dilacerante realidade emprica, a realidade de um diverso incapaz de imantar-se

    como vanguarda de um hipottico sujeito coletivo de emancipao. Abalou-se o modelo em

    funo do qual se podia identificar a maior ou menor qualidade revolucionria de algum.

    O ato revolucionrio por excelncia, o ato universalmente decisivo na subverso do modo

    de produo, foi se transformando, de um lado, em lutas sindicais as mais variadas, e, de

    outro, em generosidades, em artes ditas engajadas, em discursos crticos ou em fraseologias

    ideolgicas e burocrticas, at restar como nebulosa expectativa, finalmente esfriada em

    prateleiras de arquivos de histria social, arquivos em meio aos quais pesquisadores e

    pesquisadoras procuram expressar os rastros de emoes libertrias.

    A gradativa corroso do projeto de confluncia das lutas locais para o domnio dos

    que postulavam um sujeito coletivo, do qual a classe operria seria o ponto de aplicao

    principal, foi cedendo lugar viabilizao das chamadas lutas particulares, tambm elas

    caudatrias de um modelo onde cada categoria estivesse fundada na virtude de uma

    identidade: luta das mulheres, dos negros, dos homossexuais etc. Da expectativa do ato

    universalmente decisivo passou-se efetuao de aes particularmente incisivas, com seu

    acumulado de vitrias, derrotas, rivalidades entre grupelhos de mulheres deste ou daquele

    naipe, de negros assim ou assado, de homossexuais de tal ou qual tipo etc. Tanto os

    participantes desses embates particulares quanto seus pesquisadores sabem perfeitamente

    que a importncia deles neste ou naquele momento independe da intil e teoricamente

    inconsistente identificao do agente em luta. Conhecem as limitaes da insistncia em

    agrupar-se como semelhantes em funo deste ou daquele atributo identificador. Conhecem

    at mesmo o absurdo de se tentar aprisionar as diferenas em categorias, tornando uma

  • 14

    diferena desptica em relao s demais. O aspecto positivo, porm, que acabaram ou

    acabaro descobrindo que o mais importante, alm da necessria agitao em cada

    territorialidade, em cada agenciamento de esforos, o estabelecimento de alianas

    transversais, como diria Guattari, em acontecimentos capazes de febricitar devires

    democrticos ali onde o rano identitrio teima em cavar a toca das toupeiras. Mas

    preciso estar sempre atento, pois certas unanimidades transversais, como alerta Giuseppe

    Cocco, podem reunir agentes de distintas posies polticas e intelectuais sob a gide um

    transcendente chamado Estado, Nao etc. 8. Algum poderia dizer-me: se no tenho co,

    preciso caar com gato, isto , se no posso enfrentar a serpente incontrolvel, s me resta

    cavar a toca e lutar como toupeira, construir meu prprio ncleo, por exemplo, mesmo

    correndo o risco de praticar anacrnicos atos disciplinares e at de selecionar convidados

    para um colquio com base em troca de favores ou em obscuros ressentimentos, e tudo isso

    contaminado por um exclusivismo que mal esconde o hlito identificatrio.

    A est, reencontramos a dificuldade. Como nem todos podem ou querem girar em

    torno de sua prpria toca, resta-lhes serpentear, retomando a pergunta: que posso fazer com

    a serpente, que posso fazer com o incontrolvel que potencializa, desmesurando-os, os

    dispositivos de controle que me capturam? No mago dessa pergunta, reitera-se a legenda

    deste colquio: que estou ajudando a fazer de mim mesmo?

    Nota 10: combater na imanncia.

    A inquietao no se estanca com as respostas de tipo canalha, de tipo cmico e

    nem mesmo com apelos a um sujeito coletivo, com identificaes sob comando de um

    atributo ou com auto-internamento em tocas de toupeira. Em face dessa inquietao resta

    apenas aquilo que a suscita: o incontrolvel que perpassa os dispositivos de controle. Ento

    no se tem sada? preciso curvar-se aos imperativos da libertinagem dos fluxos

    financeiros, e fazer seja l o que for contanto que se leve alguma vantagem? Para sondar

    sadas, preciso perguntar se o dinheiro, se os fluxos financeiros detm com exclusividade

    a potncia do incontrolvel que atravessa os dispositivos de controle; preciso perguntar se

    a serpente tem apenas uma cabea, se ela rebola apenas de um jeito, se ela se liga apenas a

    canalhices e comicidades ou se capaz de revirar-se para o humor e a ironia.

    8 Giuseppe Cocco, LEmpire et la traite des esclaves Le printenps de Seatle vu du Brsil , in

    Multitudes, n 1, maro de 2000, Paris, Exils, p. 134, n. 4.

  • 15

    Quando se faz essa pergunta obra dos autores aqui homenageados, sabe-se qual a

    resposta: os fluxos financeiros no detm a exclusividade do incontrolvel; a serpente tem

    pelo menos uma dupla face; h modulaes serpentrias distintas por natureza, isto , h

    regimes distintos de passagem do incontrolvel pelos dispositivos de controle. como se,

    neles, as linhas de subjetivao, de constituio de si, tivessem de se virar a cada instante, a

    cada problema em pauta, entre fluxos de dois incontrolveis, entre passagens de duas

    potncias dspares, ambas capazes de espalhar uma febre de desmedida pelas linhas dos

    dispositivos de controle: o incontrolvel dos fluxos financeiros e o incontrolvel dos fluxos

    desejosos com suas linhas de fuga e de resistncia. Deleuze diria que o capital financeiro

    veio a ser o corpo sem rgos da composio orgnica do capital, assim como o desejo o

    corpo sem rgos do corpo orgnico. Considerando, mesmo de maneira simplificadora, a

    passagem da frmula M D M (mercadoria dinheiro mercadoria) para a frmula D

    M D (dinheiro mercadoria mais dinheiro), pode-se dizer, num aparente paradoxo,

    que, capturada e rebatida como prazer sempre carente de algo, a serpente desejosa

    domada como um dos suportes mveis da serpente financeira 9 . E a sada?

    Esse complexo envolvimento de uma serpente na outra, o encontro dessa dupla face

    do incontrolvel indica que no encontramos precisamente dois opostos a partir dos quais

    veramos o bom caminho de um lado e o mau caminho do outro, garantindo-nos a

    possibilidade de escolher a sada mais condizente com nosso modo de ser. O labirinto onde

    estamos imersos mais complicado do que esse dotado de contnuos fios condutores.

    como se a serpente fosse cobra cega: dinheiro e desejo gozam de intrnseca cegueira quanto

    aos fins, sendo, como so, potncias do meio, justamente o meio em que sempre nos

    encontramos. Assim, nossos embates no plano de imanncia no encontram uma entrada

    boa para uma boa sada; encontram, isto sim, tabelas superpostas de mltiplos

    deslocamentos, com mltiplas entradas e mltiplas sadas pontuais, pois h combinaes as

    mais variadas entre esses incontrolveis. Como dosar tais combinaes e tendo em vista

    precisamente o qu?

    Nota 11: ateno a cada tentativa.

    9 O Anti-dipo, alis, de 1972, j nos dava preciosas indicaes a esse respeito.

  • 16

    As discusses a esse respeito so tico-polticas, entendendo-se a idia de poltica

    como elevado momento da tica, momento que, para Deleuze, como diz Toni Negri, a

    capacidade de afirmar a singularidade enquanto absoluta 10 . Essas discusses parecem

    mobilizar justamente idias capazes de suscitar uma apreciao crtica das combinaes

    entre eles. Porm, tais combinaes entre esses incontrolveis no decorrem

    necessariamente das idias. Assim, a variao de intensidade e os variados graus de ateno

    crtica, de cautela, prudncia, arrojos, criatividade etc., so, eles prprios, partcipes dos

    agenciamentos em que tudo isso ocorre. A est a razo pela qual, no podendo apelar para

    um critrio transcendente, a avaliao das aes tericas e prticas desencadeadas em face

    de problemas criados ou vindos pauta h de ser sempre retomada, como diz Deleuze, no

    nvel de cada tentativa. Ao dizer que se trata de avaliar cada tentativa em sua capacidade

    de resistncia ou, ao contrrio, sua submisso a um controle, o que Deleuze est

    valorizando, precisamente, um novo tipo de relao com o mundo, mundo do qual nos

    desapossaram, diz ele. Em que consiste esse novo tipo de relao com o mundo? No me

    parece que Deleuze propenda a uma crena mstica ao retomar o problema do liame com o

    mundo 11 . Penso, ao contrrio, que ele incisivo a esse respeito: Acreditar no mundo

    significa, principalmente, suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao

    controle, ou engendrar novos espaos-tempos, mesmo de superfcie ou volume reduzidos.

    isso que ele diz ao responder a uma pergunta de Toni Negri sobre a possibilidade de uma

    poltica que ressoe o esplendor do acontecimento e da subjetividade. O que talvez no

    se deva fazer fixar abstratamente a idia de controle. certo que Deleuze insiste na

    caracterizao do novo, dos devires, das linhas de fuga como aquilo que escapa ao controle.

    Mas preciso levar tambm em conta que os dispositivos de controle, dos quais esses

    fluxos esto escapando, so muitas vezes aqueles pensveis do ponto de vista de sua

    imediata funcionalidade em relao ao que decisivo na estratgia de produo dominante,

    ao que decisivo, portanto, nas engrenagens que nos subtraem o mundo. Ainda

    respondendo a Toni Negri, a propsito do problema da retomada da palavra pelas minorias,

    eis uma passagem que pode ser pensada nesse sentido: Talvez a fala, a comunicao,

    10 Deleuze y la poltica Entrevista a Toni Negri, por Santiago Lpez Petit, in Revista Encuentros n 4, Universidad del Valle, Cali Colmbia, 1996, p. 13. 11 Alberto Gualandi, Deleuze, Paris, Les Belles Lettres, 1998, parece ir nessa direo nas pginas finais do seu livro.

  • 17

    estejam apodrecidas. Esto inteiramente penetradas pelo dinheiro: no por acidente, mas

    por natureza. preciso um desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta de comunicar. O

    importante talvez venha a ser criar vacolos de no-comunicao, interruptores, para

    escapar ao controle 12. Por outro lado, possvel conceber e encontrar por a atos de

    controle mobilizados em lutas destinadas a liberar foras de expanso ecolgica da

    existncia e a controlar foras reativas. Em suma, h os mais imprevisveis jogos entre o

    liberar e o controlar.

    que a cada tentativa correspondem problemas vindos pauta da existncia. Eles

    impem aos agentes e pacientes inesperadas redistribuies de mpetos e cautelas, de

    atenes e devaneios, de vida e morte, de alegrias e tristezas, de ao ou inrcia. E cada

    problema envolve-se com outro em interseces que multiplicam as surpresas no campo

    problemtico inteiro. a essa realidade que certos movimentos parecem estar hoje atentos:

    eles compem interferncias que pendulam entre liberaes e controles em correspondncia

    com os problemas que eles precisam gritar e fazer valer nas tores do plano de imanncia.

    Os combates que se do nesse plano substituem as perguntas caudatrias de um modelo por

    aquelas, nietzscheanas, que vasculham o circunstancial, o acontecimental, o ocasional:

    quem?, o que?, onde?, por quais meios?, por que?, como?, quando? O que essas perguntas

    pedem no o idntico. Elas acabam por identificar, sim, mas identificam os diferenciais

    de alianas e dissenses no combate. Elas imanentizam o essencial. em face delas, a cada

    instante e a cada tentativa que retorna a pergunta de difcil resposta: que estou ajudando a

    fazer de mim mesmo?

    Nota 12: mim mesmo como espao-tempo de guerra.

    Nesta penltima nota, a de nmero 12, sou obrigado a redizer, embora muito

    rapidamente, o quanto esse mim mesmo um verdadeiro espao-tempo de guerra. Essa

    guerra est presente em todos os verbos freqentados por esse mim mesmo, como tatear,

    olhar, ouvir, comer, beber, trabalhar, escrever, dizer, amar, lutar etc. E em cada um deles,

    com seus problemas prprios e com as questes que os atravessam, h o risco dos

    desdobramentos do fazer no vasto pndulo cadenciado pelo liberar e controlar, cadncia

    perturbada a cada emergncia das circunstncias.

    12 Cf. Contrle et devenir , in Pourparlers, op. Cit., 238-239 ; Conversaes, op. cit., 217-218.

  • 18

    Muitas coisas passam por esses verbos. Algumas delas, porm, so muito fortes,

    capazes de for-los a endurecer meu percurso por eles. A essas coisas muito fortes

    Deleuze d o nome de Potncias, com P maisculo. Para ele, o capitalismo uma

    dessas Potncias maisculas, assim como as religies, os Estados, a cincia, o direito, a

    opinio, a televiso etc. So Potncias capazes de impor determinados modos de se estar

    nos verbos da vida. O mim mesmo no dispe do poder de se ausentar delas, talvez nem na

    loucura. que cada uma dessas Potncias, diz Deleuze, no se contentando em ser

    exterior a mim, a ns, tambm passa atravs de cada um de ns. justamente essa

    passagem que, em determinadas circunstncias, entreabre a ocasio de um combate na

    imanncia, de uma guerra de guerrilha, diz Deleuze que se intensifica nos

    questionamentos pontuais, nas erupes de estranhas alianas entre a serenidade e a

    clera, isto , entre, de um lado, as micro-potncias inovadoras do pensar, essas que se

    agitam em certos entretempos da filosofia, das artes, das cincias e, de outro lado, linhas de

    fuga e de resistncia que modulam agenciamentos do desejo como larvas de uma clera

    contra a poca, contra o intolervel e a favor da inveno de modos mais suaves de

    coexistncia entre os entes 13.

    Tomar a mim mesmo como espao-tempo ocupado por multides intensivas

    capazes de fluir com prudncia por linhas de fuga, de resistir ao controle das Potncias e de

    estabelecer relaes ardilosas com o duplo incontrolvel que me atravessa. No vejo nisso

    uma constatao psicolgica e nem um programa moral, mas sinalizadores tico-polticos

    que me ajudam a avaliar, a propsito da minha participao em cada ocorrncia, o que

    estou ajudando a fazer de mim mesmo a cada instante em face da inovao que brilha num

    acontecimento, seja ele pequeno ou grande. No se trata, portanto, do trajeto curto que se

    acomoda entre uma tica da intimidade e uma moral da objetividade. O que pulsa nesses

    sinalizadores uma tico-poltica da singularizao, na qual incontveis fios diagonais

    tramam o contnuo das metamorfoses.

    Nota mega: homenagem a Anah.

    Nesta nota, provisoriamente ltima, gostaria de convidar a todos ns para ouvirmos

    duas vozes, vozes que considero intempestivas em nosso panorama musical do presente,

    mesmo quando cantam velhas coisas, as vozes de duas irms, Tet e Alzira Espndola.

    13 Deleuze, Pourparlers, op. cit.,, 7; Conversaes, op. cit., 7.

  • 19

    Convido a todos ns para que, juntos, homenageemos Anah, a ndia que, no meio das

    chamas, se metamorfoseia em flor, amedrontando os inimigos de sua tribo:

    Anah / as harpas sentidas soluam arpejos / que so para ti / Anah / teus acordes

    lembram a imensa bravura / da raa tupi / Anah / ndia flor agreste da voz to suave / como

    agua / Anah, Anah / teu vulto no campo difere entre as flores / pela cor rubi // defendendo

    a vida / tua valente tribo foste prisioneira / condenada a morte / j estava teu corpo envolto

    a fogueira / e enquanto as chamas estavam queimando / numa flor to linda se foi

    transformando / os teus inimigos fugiram dali / as aves ficaram cantando o milagre / da flor

    de Anah 14.

    Fim provisrio das notas.

    Luiz B. L. Orlandi

    novembro de 2000

    ANEXOS:

    I.

    Do ponto de vista da idia deleuzeana de plano de imanncia (idia que postula um

    intenso envolvimento recproco entre o modo de pensar e a vibrao do ser, entre

    Pensamento e Natureza, entre Nos e Physis 15), como entender, de um lado, a

    improdutividade atribuda incontrolvel serpente financeira do capital e, de outro lado, o

    improdutivo que, na incontrolvel serpente desejosa, recebe o nome de corpo sem rgos?

    Ambas as serpentes so coextensivas ao socius, coextensividade que implica nossos corpos

    como anis de si prprias; passam por ns e nos enredam, atraem e combinam ao infinito

    seja l o que for. Se ao capital produtivo acoplam-se movimentos improdutivos do capital

    financeiro, produtividade desejosa acoplam-se tambm certas condensaes intensivas,

    esses corpos sem rgos improdutivos de que falam Deleuze e Guattari. Ento, como

    distinguir os funcionamentos desses dois improdutivos? Podemos dizer que eles invadem o

    plano de imanncia, mas com regimes diferentes. Como serpente financeira, o improdutivo

    14 Anah (Anah), original Leyenda de La Flor Del Ceibo: J. Sosa Cordero; verso de Jos Fortuna. Addaf/Fermata. Faixa 10 do CD Anah de Tet e Alzira Espndola, Eldorado, 1998. 15 Deleuze e Guattari, Quest-ce que la philosophie? Paris, Minuit, 1991, p. 41. O que a filosofia?, tr. br. de Bento Prado e Alberto A. Muoz, SP, Ed. 34, 1992, p. 54.

  • 20

    do capital traz para si o tremor da vida, funcionalizando-o. Sua dinmica imanente de

    descodificao, desterritorializao e de reterritorializao dos fluxos se d em funo das

    regras do seu prprio funcionamento e, ao faze-lo, acaba por referir o processo a um

    transcendente, o prprio capital. Os corpos sem rgos, esses improdutivos acoplados como

    cortes aos fluxos desejosos, operam entre a funcionalidade do corpo orgnico e a

    intempestiva conectividade desejosa, mas sem se confundirem com a intencionalidade do

    corpo prprio ou com o corpo investido de saberes e poderes; os corpos sem rgos

    aparecem como coeses momentneas de linhas de fuga, operando ali como variveis

    consistncias dessas linhas. A rigor, a consistncia do prprio corpo sem rgos est nas

    imantaes passageiras de umas linhas pelas outras por ocasio de encontros; passageiras

    imantaes, repito, mas o suficiente para que se possa determinar qual a singularidade do

    corpo sem rgos que est me pegando aqui e agora. Por isso que, interferindo nos

    encontros, eu posso at certo ponto participar na criao de corpos sem rgos para mim.

    Pois bem, a disfuncional produtividade das mquinas desejantes ocorre em imanncia com

    corpos sem rgos, esses improdutivos, mas sem que um remeta ao outro como a um

    transcendente. Tanto assim que o corpo sem rgos dito campo de imanncia do desejo.

    A diferena de regime entre os dois improdutivos se acentua quando se nota que a

    improdutividade financeira inclina-se para uma abstrao da vida, ao passo que a

    improdutividade dos corpos sem rgos tende para uma atrao de vida, o que no impede

    a criao de corpos sem rgos em plena agitao de uma bolsa de valores. E tambm

    verdade que ambos podem oscilar da mais cuidadosa prudncia mais intempestiva

    imprudncia. Assim como o CsO de um drogado ou de um suicida acaba sufocando a

    produtividade desejosa, assim tambm, deixada a si mesma, a serpente financeira, entregue

    ao seu prprio descontrole, acaba emperrando a produtividade social. Como pensarmos as

    interferncias que exprimam a criao de corpos sem rgos capazes de ativar uma

    produtividade desejosa que, reafirmando as diferenas propulsoras de uma estratgia de

    produo favorvel vida digna de ser vivida, iniba as exorbitncias da serpente financeira

    tanto no social quanto nos processos de subjetivao?

    xxxxxxxxxxxxxx fim provisrio / textos em reviso permanente xxxxxxxxxxxxxx

    Nota alpha: acolhendo a pergunta. Luiz B. L. Orlandi