Quem Aguenta Tanto Exibicionismo Nas Redes Sociais

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Quem aguenta tanto exibicionismo nas redes sociais? A ostentação – material e de felicidade – virou uma praga virtual MARCELA BUSCATO, COM ISABELLA CARRERA 09/02/2014 10h00 - Atualizado em 09/02/2014 10h29 Quem nunca postou no Instagram , a rede social de imagens, uma foto da praia ou da piscina para cutucar os colegas confinados sob a luz fluorescente do escritório? Quem nunca atualizou sua localização no Facebook para mostrar o endereço do restaurante badalado? Um exame de consciência, que nem precisa ser minucioso, revelará que, sim, muitos de nós já incorremos em um (ou dois, ou três...) ataque de exibicionismo virtual. Mesmo quem passa incólume pela tentação conhece (um ou vários) amigos que não resistem em exibir a última viagem, a noite divertidíssima ao lado dos amigos, o filho mais encantador do mundo, as flores enviadas pelo melhor dos maridos. A ostentação – material e de felicidade – virou uma praga virtual. O comportamento já ganhou até apelido. Quem se autopromove é chamado de bragger, uma palavra de origem inglesa que significa algo como “fanfarrão”. E não adianta se gabar e tascar a hashtag #bragger. A admissão da

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Quem aguenta tanto exibicionismo nas redes sociais?

A ostentao material e de felicidade virou uma praga virtual

MARCELA BUSCATO, COM ISABELLA CARRERA09/02/2014 10h00- Atualizado em09/02/2014 10h29Quem nunca postou noInstagram, arede socialde imagens, uma foto da praia ou da piscina para cutucar os colegas confinados sob a luz fluorescente do escritrio? Quem nunca atualizou sua localizao noFacebookpara mostrar o endereo do restaurante badalado? Um exame de conscincia, que nem precisa ser minucioso, revelar que, sim, muitos de ns j incorremos em um (ou dois, ou trs...) ataque de exibicionismo virtual. Mesmo quem passa inclume pela tentao conhece (um ou vrios) amigos que no resistem em exibir a ltima viagem, a noite divertidssima ao lado dos amigos, o filho mais encantador do mundo, as flores enviadas pelo melhor dos maridos. A ostentao material e de felicidade virou uma praga virtual.

O comportamento j ganhou at apelido. Quem se autopromove chamado de bragger, uma palavra de origem inglesa que significa algo como fanfarro. E no adianta se gabar e tascar a hashtag #bragger. A admisso da culpa no desculpa, nem protege contra o ressentimento: uma pesquisa feita por um site de compras doReino Unidosugere que a principal razo para usurios de redes sociais exclurem algum de sua lista de amigos o exibicionismo. Quase 70% dos 820 entrevistados disseram ter encerrado uma amizade virtual por dor de cotovelo.

A mania de se gabar virtualmente to ostensiva que j despertou a ateno da cincia. Comeam a aparecer os resultados de uma srie de estudos destinados a entender por que as redes sociais podem despertar nossos piores sentimentos de soberba a inveja e os efeitos de remo-los em velocidade 4G.

INSTANTNEOSImagens de viagens, diverso e alegria em famlia. Esse tipo de ostentao s causa inveja(Fotos: ThinkStock e reproduo)

Pesquisadores da Universidade Humboldt, em Berlim, entrevistaram 357 universitrios e descobriram que o principal sentimento despertado pela vida virtual a inveja. Quase 30% relataram nutrir esse sentimento ao ver, no Facebook, posts sobre atividades de lazer dos amigos e indcios de sucesso de qualquer espcie (acadmico, profissional, sexual). Mesmo os exibidos sentem inveja. Cerca de 20% afirmaram chatear-se por sentir que sua prpria ostentao no notada suficientemente pelos amigos.

A percepo de ser ignorado cria um crculo vicioso: confrontados com a soberba alheia, os usurios das redes sociais podem adotar atitudes de autopromoo ainda mais intensas, suscitando inveja e, consequentemente, mais exibicionismo. H muitas semelhanas entre os usurios de uma rede social: amigos em comum, mesma formao e origem cultural, diz Hanna Krasnova, uma das autoras da pesquisa. Os estudos sugerem que as pessoas tendem a invejar gente parecida com elas.

O psiclogo americano Ethan Kross, da Universidade de Michigan, conseguiu medir as consequncias desse crculo de cime virtual. Ele acompanhou por duas semanas usurios do Facebook e percebeu que, quanto mais tempo passavam conectados, mais insatisfeitos com a prpria vida diziam se sentir. O efeito era mais pronunciado entre os voluntrios que encontravam pessoalmente os amigos com frequncia. Ainda no temos uma boa explicao para essa associao e exploraremos alternativas em outros estudos, diz Kross. Uma das possibilidades: quem mantm uma relao prxima com os amigos na vida real talvez seja mais atento s pessoas e, por isso, perceba com clareza quando algum est se gabando. O resultado que sofrem mais: de inveja e de vergonha alheia.

O advogado Cssio Mosse, de 28 anos, diz cruzar frequentemente com amigos com vocao para bragger. H aqueles que fazem questo de contar para todo mundo onde esto naquele momento (#partiuacademia, #bomdiapraia). Outros chegam a cruzar o limite entre realidade e fico na tentativa de impressionar. Mosse diz que um conhecido tirava fotos com roupas que no comprara, dentro do provador das lojas, para posar de bem vestido. Ele diz que avisa os amigos cujo exibicionismo passa dos limites do que ele considera tolervel. Mas precisa ser um comentrio sutil, para o amigo no se ofender. Um deles publicava muitas fotos de comida, e eu disse, brincando, que pararia de ver porque no queria ficar com fome, diz Mosse. Ele excluiu de sua lista conhecidos que abusam das postagens para causar inveja. No fundo, a pessoa quer mostrar para o mundo quem ela gostaria de ser, diz Mosse.

Por trs desse impulso, aparentemente mesquinho, h uma necessidade muito humana. Buscamos ser aceitos, diz a psicloga Luciana Ruffo, do Ncleo de Pesquisas da Psicologia em Informtica da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Mas a verso editada de nossos melhores momentos pode ter o efeitocontrrio e nos afastar do grupo. As pessoas acham que uma frase ou uma foto resumem a vida de algum. Isso no verdade, diz Luciana.

Em meio a tantas manifestaes de exibicionismo e inveja, pesquisadores se perguntam se as redes sociais so apenas um reflexo concentrado de nossos piores instintos e se amplificam caractersticas desabonadoras de nosso carter. Em defesa das redes sociais, preciso enfatizar que a tendncia para se gabar no apareceu com a tecnologia. Com ou sem internet, estima-se que o objetivo de 40% de nossas falas dirias fornecer informaes para os outros sobre ns mesmos e expressar nossas opinies sobre o mundo. Pesquisadores da Universidade Harvard, nosEstados Unidos, descobriram uma das razes neurolgicas desse falatrio autocentrado. Eles fizeram imagens do crebro de voluntrios enquanto respondiam a perguntas sobre eles mesmos e sobre outras personalidades, como o presidenteBarack Obama. Quando as respostas eram pessoais, uma das reas cerebrais associadas sensao de recompensa era ativada. Isso no acontecia quando as questes versavam sobre outras pessoas. Em etapas posteriores do estudo, os voluntrios chegaram a recusar dinheiro para falar sobre celebridades. Preferiam falar sobre eles mesmos. De graa. Falar sobre ns mesmos desperta um tipo de recompensa primitiva, semelhante sensao de comer e fazer sexo, escreveram os autores da pesquisa, liderada pelo neurocientista Jason Mitchell.

O psiquiatra americano Elias Aboujaoude diz que a internet ampliou predisposies humanas como o gosto por se gabar. Como diretor da Clnica de Transtorno Obsessivo Compulsivo da Escola de Medicina da Universidade Stanford, Aboujaoude acompanhou inmeros pacientes viciados em internet. Diz ter concludo que o mundo virtual libera uma parte de nossa personalidade guiada apenas pelos desejos. Nele, os limites que aprendemos e as censuras que nos impomos perdem sua eficcia. A internet pode, inconscientemente, mudar a personalidade das pessoas, diz Aboujaoude, autor do livroVirtually you: the dangerous powers of the e-personality(algo comoQuase voc: os perigos da e-personalidade, sem edio no Brasil). Essa mudana de personalidade, diz Aboujaoude, no fica confinada apenas ao mundo virtual. Pode afetar nosso comportamento na vida real. O estilo de interao que usamos no ciberespao est passando para a vida off-line. Ficamos parecidos na vida real com a imagem de nossos avatares.

Ainda no existem dados que possam confirmar se algum se torna mais vaidoso por se expor excessivamente na internet. Talvez tenhamos a sensao de que as pessoas esto mais exibicionistas somente porque as redes sociais tornaram a ostentao mais visvel. Dois pesquisadores da Universidade da Georgia, nos Estados Unidos, chegaram a essa concluso. Eles pediram a 130 usurios do Facebook que respondessem a um questionrio para avaliar tendncias narcisistas, caracterizadas pela necessidade de suscitar admirao alheia e exagerar na percepo de sua prpria importncia. Depois, avaliaram o contedo publicado pelos voluntrios na rede social. Descobriram que as pessoas com maior tendncia ao narcisismo eram as que mais publicavam contedo para se promover, como fotos em que aparecem atraentes ou sensuais e frases fazendo propaganda delas mesmas. Isso no quer dizer que todo mundo que est nas redes sociais narcisista, afirma o psiclogo Keith Campbell, um dos autores da pesquisa. Apenas que os narcisistas usam esses sites em seu benefcio. Nada muito diferente do que fariam ao vivo. Na internet, o alcance da autopromoo maior. E da irritao que ela causa tambm.

>> Isabel Clemente: Meu filho me bloqueou no Facebook

As redes sociais so mais que uma plataforma de autopromoo e uma fonte de inveja. Amizades nascem, se renovam e se aprofundam ali. Conhecimento disseminado de uma forma sem precedentes. Indignaes sociais e polticas, assim como manifestaes culturais, ganham corpo e se materializam. Assim como a alegria, o amor, a solidariedade. Da mesma forma que a vaidade, a inveja e a irritao. No h como fugir disso numa plataforma baseada nas relaes humanas. A sada manter o humor. Rir da falta de desconfimetro alheio. Da nossa dor de cotovelo. E vice-versa.