QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

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CÍNTIA ERTEL SILVA QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO? Criminalização, reeducação e vivências no sistema penitenciário de Florianópolis nas últimas décadas do século XX Universidade do Estado de Santa Catarina Florianópolis, julho de 2006.

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CÍNTIA ERTEL SILVA

QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

Criminalização, reeducação e vivências no sistema penitenciário de Florianópolis nas

últimas décadas do século XX

Universidade do Estado de Santa Catarina

Florianópolis, julho de 2006.

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO – FAED

COORDENAÇÃO DE HISTÓRIA CURSO DE HISTÓRIA

QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

Criminalização, reeducação e vivências no sistema penitenciário de Florianópolis nas

últimas décadas do século XX

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em História, no Curso de História do Centro de Ciências da Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina, sob a orientação do professor Doutor Luiz Felipe Falcão.

CÍNTIA ERTEL SILVA

Florianópolis, julho de 2006.

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CÍNTIA ERTEL SILVA

QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

Criminalização, reeducação e vivências no sistema penitenciário de Florianópolis nas

últimas décadas do século XX

Este Trabalho de Conclusão de Curso, em forma de Monografia, foi julgada adequada pela Banca Examinadora para obtenção do título de Bacharel em História, no Curso de História do Centro de Ciências da Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina.

Florianópolis, 7, de julho de 2006.

.................................................................................. Professor Doutor Luiz Felipe Falcão – UDESC

Orientador

................................................................................. Professor Mestre Edgar Garcia Júnior – UDESC

Membro da Banca Examinadora

.................................................................................. Professor Doutor Kleber Prado – UFSC

Membro da Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

Na quinta fase do meu curso de História, meu professor de Teoria da História, Luiz

Felipe Falcão anotou no quadro alguns autores, dos quais deveríamos escolher um, ler o seu

texto e apresentar para a turma em forma de seminário. Eu olhei para essas letras bem

selecionadas: Michel Foucault, Vigiar e Punir; e por alguma razão que só minha psicóloga

poderia explicar, as escolhi.

Nesse caso, a primeira pessoa a que tenho que agradecer é meu professor Falcão. O

Mister Falcom! Nos bastidores, o chamamos assim, pois o consideramos fera! Porque ele me

deu a oportunidade de conhecer e poder interpretar um autor que me abriu novos modos de

pensar e fez-me olhar de forma muito mais complexa para as situações à minha volta. E foi

com Vigiar e Punir que tive uma idéia que mudou, para o resto de meus anos na universidade,

a minha rotina: fui ao presídio masculino, localizado na Agronômica, e o Diretor dele me

autorizou, para fins acadêmicos, entrevistar um presidiário.

Agradeço a este presidiário, que hoje é um ex-presidiário, que participa de

campeonatos de skate e que conseguiu não voltar mais para o mundo do tráfico. Várias vezes

encontro com ele aqui pela Trindade e sempre acabamos conversando sobre o tempo que ele

viveu na prisão. E ele me diz que hoje “tô meio sem grana, mas estou muito mais feliz”.

Agradeço pelas suas palavras que muito me fizeram crescer.

No ano seguinte o Falcão me convidou para fazer um projeto de bolsa de pesquisa

relacionado a essas curiosidades sobre a prisão que foi autorizado pelo Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do qual venho até hoje participando deste.

Neste mesmo ano, conheci a Lia, trabalhávamos como garçonete e ela acabou me

contando também sobre sua paixão a respeito do tema: sistema prisional. A Lia fez seu

estágio na Penitenciária de Florianópolis, é formada em Serviços Sociais, e além do mais era

namorada de um agente prisional e hoje, mulher e futura mamãe.

Então, agradeço a esta moça adorável por ter me levado lá e facilitado meu

relacionamento com os funcionários da Penitenciária. Foi por causa dela que conheci o Seu

Juca, o Cris e o Everton. Os três, na “primeira fase” de minha pesquisa, tiveram uma

importância fundamental, ajudavam-me muito, levaram-me para conhecer a Colônia Penal, a

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Penitenciária de São Pedro de Alcântara. O Seu Juca, todo dia que eu estava lá, auxiliava-me,

participou de muitas entrevistas e também me deu muitos presentes que guardo até hoje.

Ao agente Eric, agradeço pelos livros maravilhosos sobre sistema penal que me

emprestou e que utilizei aqui no meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).

Ao Diretor da Penitenciária, o Heliomar, pelo apoio e permissão para filmar e gravar

os depoimentos e cotidiano do sistema.

A todos funcionários e presos da Penitenciária que me deram depoimentos ou que

simplesmente me aprovaram. Um especial agradecimento ao preso, Cléber e sua filha linda,

que foi atencioso durante as filmagens e gravações. E ao almoço delicioso no alojamento

especial, onde fiquei horas conversando e filmando junto com os presos.

Ao psicólogo Marcos, da Penitenciária, e à psicóloga Deise, do presídio, que tiraram

muitas de minhas dúvidas e deram-me ótimas sugestões de livros e filmes.

Ao meu amigo Chico e sua mãe Ana, ela por me apresentar à Deise, por ligar-me para

avisar sobre as oficinas no Conselho Regional de Psicologia a respeito de Sistema Prisional e

por apreciar minha pesquisa, fazendo com que ficássemos horas debatendo sobre o assunto.

Ao Chico, por ter filmado junto comigo durante dez dias sem parar os depoimentos e fatos

cotidianos da Penitenciária.

Ao agente Brum, que foi o protagonista das filmagens, até sábado estava lá para nos

levar pelos mistérios da Penitenciária e que sempre me ligava para contar os episódios e

revelações da prisão.

À Diretora do Presídio Feminino, Maria, que nos deu licença para ficar com as presas

sem a interferência de nenhum agente. À presa Vanusa, com quem me correspondia por cartas

desde que a conheci, quando eu fui presa.

Agora, neste momento, fica grifadas a alegria de meu TCC, minha amiga Graziele, ou

melhor Grazi. Foi ela que me fez manter essa empreitada. Pois várias vezes decidi desistir,

achando que eu ainda não era capaz de fazer um trabalho como esse. Foi ela que ficava

conectada comigo na Internet, ora me dando conselhos para melhorar meu TCC, ora me

elogiando e dando um apoio inexplicável em palavras, ora me humilhando no jogo da velha.

Minha amiga, minha grande amiga, que não sabe o potencial que tem e que espera a vida lhe

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mostrar. Que não sabe a atração que provoca, que não sente a maciez de seus carinhos.

Agradeço à Grazi, por todos esses anos de faculdade, estar ao meu lado, criticar-me e amar-

me em todas minhas decisões. Agradeço todas as palhaçadas que fez, todos micos que

pagamos juntas, como a festa errada em que entramos, ou o churrasco de celebridades que nos

fez sentir plebéias, os seus suaves roncos que me deixaram noites sem dormir, as histórias de

bruxa, as histórias de psicólogas, o grande dia histórico quando ela conheceu o meu “sujeito”.

Agradeço-lhe por aturar minha “pão-durice”, minhas crises, minhas rebeldias, por ter-me

visitado na delegacia. Agradeço a sua humildade, pois não consegue nem notar como sua

companhia torna-me uma excelente pessoa.

Agradeço ao Rafael pela bolada que me deu no jogo de futebol em Laguna, que me

deixou sem respirar por alguns minutos, achando que iria morrer, mas fez-me dar mais valor à

vida. O Rafa também é um grande amigo, de conversas surpreendentes, que me ajudou nas

dúvidas sobre “o que diabos o Bourdieu está querendo dizer com isso?”.

Ao Ademir, que mais eu o escutava do que ele me ouvia, mas que sabe o quanto ele é

precioso para mim. Sempre me dando atenção e conversando das mais variadas situações.

Ao Professor Edgar, que mal sabe que o chamamos de “fofo”, por suas excelentes e

sensíveis contribuições à minha formação pessoal e acadêmica. Por ser um professor tele-

entrega, que sempre está disposto a ajudar, a oferecer sugestões e a ouvir.

Ao Professor Kleber, por ter aceitado estar em minha banca.

A todas as admiráveis pessoas que se dispuseram a ficar horas em frente à delegacia,

torcendo para me libertarem, cantando o Hino Nacional, pintando-se, segurando flores,

berrando, fazendo dos gestos mais queridos aos mais estranhos.

Ao meu louco e amado namorado, que me aturou vários dias em que eu voltava da

Penitenciária chorando e contando fatos que me marcavam muito. Agradeço a você, Gustavo,

por proporcionar-me conversas e acontecimentos que nunca imaginaria que fossem ocorrer

comigo. Por seus gestos humildes, seu carinho, por fazer-me aprender a ver a vida de uma

forma menos dura.

À minha maravilhosa família, que me agüentou fazendo drama e dizendo que eu não

conseguiria terminar o TCC, que me deu essa vida boa, cheia de comilanças, viagens,

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abraços, festas, choros, arrependimentos, mas muita felicidade. À minha mãe, pois sempre me

trazia lanchinhos quando eu estava aqui no computador, ao meu pai que sempre lê meus

trabalhos e diz que eu escrevo bem (pais são sempre corujas) e também conseguiu uma pessoa

surpreendente para fazer a revisão gramatical deste trabalho, o Cláudio Caldas, e à minha

“ruiva-irmã-linda” que me fez virar vedete na sua turma da faculdade, e junto de seu

namorado, o André, conseguiram resgatar meu TCC do limbo tecnológico de meu

computador.

Obrigado a todos por não terem se assustado com meu tema!

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Por que eles não dão uma oportunidade para a gente seguir nosso caminho na rua? Na sociedade... Por que para eles nós somos o lixo da humanidade?

Hades

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SUMÁRIO

RESUMO.................................................................................................................................10

LISTA DE ILUSTRAÇÕES..................................................................................................11

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................12

1 A PENITENCIÁRIA COMO TERRITÓRIO NA CIDADE..........................................19

2 OS SUJEITOS DO SISTEMA PRISIONAL E SUAS FALAS .......................................47

3 HABITANTES DA CIDADE, MORADORES DA PRISÃO...........................................79

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................109

FONTES.................................................................................................................................112

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................................114

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RESUMO

Este trabalho tem a pretensão de, primeiramente, conhecer algumas pessoas

envolvidas no universo penitenciário de Florianópolis, destacando os entraves de

relacionamentos entre os diferentes personagens (presos, ex-detentos, agentes e demais

funcionários) e as regras de funcionamento da instituição Atentando ao fato de que a mídia e

alguns grupos urbanos vêm discutindo sobre o suposto crescente aumento da criminalidade,

decidiu-se entrevistar os funcionários, que ao final do dia convivem extra-muros, e os alvos

deste discurso, que são os presos, identificando suas considerações sobre esta questão e se ela

tem a ver com o aumento populacional da cidade de Florianópolis. A pesquisa, além disso,

percorreu distintos rumos no decorrer das entrevistas, tais como o paradoxo social que é o

sistema prisional, as relações entre os apenados e os agentes penitenciários, a presença

constante de falas sobre as drogas e a reintegração ao convívio social extra-prisional.

PALAVRAS-CHAVE: Cidade – Criminalidade – Penitenciária – Presidiários

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LISTAS DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Sino do Regime Fechado.....................................................................................81

Figura 2 – Agente Prisional que trabalha dentro do Regime Fechado .................................81

Figura 3 – Ala Norte do Regime Fechado.............................................................................82

Figura 4 – Dentro de um cubículo da Casa Velha.................................................................82

Figura 5 – Presos trabalhando na Colônia Penal...................................................................98

Figura 6 – Porcos da Colônia Penal......................................................................................99

Figura 7 – Prisão da Colônia Penal...................................................... ..............................100

Figura 8 – Casa de funcionários em frente à Penitenciária de São Pedro..........................101

Figura 9 – Complexo Penitenciário São Pedro de Alcântara..............................................103

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INTRODUÇÃO

Ônibus e carros passam diariamente em frente ao alto muro branco de pedras.

Algumas pessoas passam a pé e olham mais para o chão do que para o céu. Os que estão de

bicicleta provavelmente estão mais preocupados com os ônibus e carros. Todos esses

indivíduos pouco se dão conta do que se encontra atrás do muro, como já aconteceu comigo

muitas vezes, pois não é um condomínio o que ele esconde. Este muro está dentro da cidade

de Florianópolis, localizado no Bairro Agronômica e nas cartas postais se assinala:

Penitenciária Estadual de Florianópolis.

O muro começou a ser construído em 1926, no mesmo ano em que foi construída a

Ponte Hercílio Luz. Em 1930 a Penitenciária da Pedra Grande, como foi chamada, teve sua

obra concluída, podendo abrigar aqueles que viessem a infringir alguma determinada lei.

Junto dos primeiros homens também vieram às primeiras famílias que desejavam morar perto

de seus “entes queridos”. Assim surgiu a comunidade do Morro da Penitenciária.

Na primeira vez que quis conhecer esta Penitenciária o diretor não me deixou entrar.

Fiquei um tempo lá na frente, conversando com algumas mulheres que iam visitar seus

maridos, namorados, filhos ou outros parentes quaisquer. Uma senhora me contou que eles

revistavam tudo, cigarro por cigarro, as comidas que traziam, as crianças, tudo. E uma outra

relatou que seu marido tinha sido preso injustamente, que ele estava num bar e a polícia o

prendeu alegando que ele tinha roubado algo. Assim, ele foi levado para a Penitenciária e

estava na “toca” (é um lugar para castigo). Esta mesma mulher disse que, quando viu seu

marido, encontrou-o totalmente assustado, estranho e sem falar mais1.

Depois, fui tentar entrevistar alguém do Presídio, nem sabia que ali tinha um presídio

e uma penitenciária, além do mais, nem sabia qual era a diferença entre os dois. No Presídio

ficam as pessoas em julgamento, na Penitenciária as que já foram julgadas. Claro que, na

prática, as pessoas presas circulam nesses ambientes independentemente de suas condições

jurídicas. O preso entrevistado era um “regalia”, o sentenciado encarregado da faxina, como

ele disse, ganhou a confiança da polícia por isso conseguiu esse posto, o que faz com que os

detentos que estão encarcerados o dia inteiro desconfiem um pouco do “regalia”. Ou então ele

1 Conversa informal, não foi gravada.

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é pressionado pelos internos para entrar com alguns objetos de anseio desse sistema, como as

drogas.

Comecei a entrevista afirmando que faria algumas perguntas, mas que ele não

precisava necessariamente responder. Comecei a perguntar, e ele foi falando, falando,

falando... Chegou um momento em que só perguntei dúvidas e curiosidades, pois ele ia

contando sua história sem eu precisar indagar nada. O “regalia” falou por quase três horas, ou

até mais. E eu fiquei encantada. Tudo aquilo me era tão alheio, tão impossível de acontecer

comigo. Obviamente o encantamento também foi um estranhamento e muitas dores me

invadiram durante a entrevista, afinal as prisões são ambientes árduos, com muitas histórias e

marcas lúgubres.

Odete Maria de Oliveira, em Prisão: Um paradoxo social2, faz um trabalho intenso

sobre a Penitenciária de Florianópolis e as questões acerca da mesma, e relata que “mesmo

em Santa Catarina, como observou o eminente Desembargador Marcílio Medeiros, em

palestra proferida no curso de Direito da UFSC, em 07/06/1977, sobre a Lei n°6416, de 24 de

maio de 1977, o problema carcerário representa chocante desafio. A Penitenciária do Estado

tem capacidade para 300 detentos e encontra-se completamente lotada”. Nesse momento nos

deparamos, sob um grande desalento, com a Penitenciária abrigando hoje mais de 800

presidiários, embora suas dimensões continuem as mesmas de 1930. Para o estudo histórico é

relevante entender-se sobre este processo que vem se dando ao longo dos anos, com o

aumento do número de sentenciados, assim como sobre a ampliação de construções de

Penitenciárias. No livro de Odete de Oliveira, encontra-se uma citação de Edmundo José de

Bastos Júnior em que ele afirma:

Incapazes de controlar a criminalidade através de ação suficiente sobre suas causas estruturais, o Governo lança mão do instrumento mais barato, cômodo e, sobretudo, inútil para combater seus efeitos: o aumento das penas e do rigor na sua execução.

Numa oficina a que assisti sobre a atuação do psicólogo no sistema prisional, no

Conselho Regional de Psicologia - 12ª Região, aqui de Florianópolis, a Presidente Deise

Maria do Nascimento, que trabalha há mais de quinze anos no sistema, discorreu sobre a

necessidade de um trabalho conjunto para aprofundar os debates sobre as prisões e seus

2 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social. 2. ed. rev. e ampl. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1996.

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problemas. Para ela, a prisão não trás sofrimento somente para aqueles que estão presos e sim

para aqueles que trabalham nela. A prisão produz sujeitos brutos, mesmo porque muitas vezes

a fala não é nem permitida. Deise do Nascimento preocupa-se muito com o fato do aumento

do número de presos e prisões, mostrando gráficos e estatísticas que revelam que em 2004 o

Brasil tinha 350.000 pessoas presas e 60% eram reincidentes (com uma política parecida os

EUA estão com mais de um milhão de encarcerados). Só em Santa Catarina há 8.246

presidiários e 602 presidiárias, 34 estabelecimentos prisionais, sendo quatro penitenciárias e,

os demais, presídios regionais ou unidades prisionais.

Nos últimos anos, a criminalidade tem alcançado grande visibilidade nos discursos

produzidos no Brasil em torno de temas como o crescimento demográfico, o inchaço das

cidades e, sobretudo, a falta de oportunidades em termos de educação, saúde, emprego etc.

Esta situação não tem sido diferente em Florianópolis.

Para alguns antropólogos, é certo que a criminalidade, assim como a violência,

aumentaram. Em Cidadania e Violência3, organizado por Gilberto Velho, este autor vê que

“este processo não ocorreu apenas entre as classes, mas, de um modo dramático, assumiu

formas assustadoras dentro das camadas populares. Isto ocorreu, em grande parte, devido ao

desenvolvimento de novas formas de criminalidade, como o tráfico de drogas”. Declarações

das entrevistas que realizei, em alguns momentos, foram parecidas com as de Gilberto Velho.

Neste mesmo livro há um excelente artigo de Alba Zaluar, em que ela aponta e expõe

as pequenas e grandes dificuldades de estudar-se a criminalidade, os discursos em volta dela,

as práticas etc. Para ela, “continuar a afirmar que a pobreza explica o crime significa também

reforçar a opção preferencial pelos pobres que a polícia e a Justiça brasileiras já fizeram há

séculos”.

Em realidade, não existem números confiáveis acerca de um eventual aumento da

criminalidade, ou seja, da prática de crimes, mas é inegável que houve um grande crescimento

dos discursos a respeito do problema, ou seja, que aconteceu uma expressiva ampliação dos

discursos sobre crime, criminalização de determinadas práticas e sua punição. Para Hulsman4,

os dados sobre o aumento da criminalidade não são de todos confiáveis. Este autor é

3 VELHO, Gilberto; ALVITO, Marcos. Cidadania e violência. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ: Fundação Getúlio Vargas, 2000. 4 HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas: O sistema penal em questão. Niterói - Rj: Luam, 1993.

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holandês, seu país tem diferenças sócio-econômicas bem diversas das brasileiras, mas vale a

pena perceber que “visto que a organização social e cultural do sistema de referência de

órgãos como a polícia, os tribunais, a legislação, etc., não é mudada, o iô-iô do crescimento e

decréscimo da criminalização continuará na ausência de qualquer justificativa racional”. Isso

faz com que Hulsman acrescente que “um aspecto relevante do atual desenvolvimento da

criminalização em muitos países do mundo central, é que mais e mais recursos do tribunal e

da polícia são dirigidos para o que é chamado “crime organizado” e afastado dos problemas

das pessoas simples”.

A questão da reincidência, isto é, uma pessoa é presa, cumpre pena, é libertada, mas

volta a ser presa outra vez, é muito explicitada. Augusto Thompson, advogado, em seu livro A

Questão Penitenciária5, faz algumas considerações a respeito da reincidência.

Observe-se, a repetição freqüente da recidiva, por parte daqueles que cumpriram pena, representada, às vezes, pelo retorno ao cárcere de pessoas que mal saíram dele. Trata-se de prova manifesta de que a instituição falhou nos objetivos, sobretudo no que atende a intimidação e à recuperação (...) a reentrada de ex-convictos na prisão, de que se tem notícia a todo o momento, é fenômeno assimilado de maneira bastante tranqüila, não chegando sequer, a arranhar a sensibilidade social.

Afigura-se tão absurdo como alguém preparar-se para uma corrida ficando na cama

por semanas.

Um belíssimo filme, que trás alguns discursos a respeito da criminalidade dentro do

sistema carcerário, é O Prisioneiro da Grade de Ferro6, no qual um sentenciado canta a

seguinte composição:

Silêncio total no Pavilhão 8, quem sou eu? O filho do sofrimento. Menino de rua, delinqüente, marginal. É só um menino igual tu fostes. Só com uma diferença, nasceste em família forte. Não tão forte quanto à morte, que não queres evitar. Tirando o guri da rua. E dando para ele um lar. Antes que alguém o arme, e ele venha te matar. A manchete vai ser boa, no noticiário popular: Mataram o doutor à toa ao tentarem lhe roubar.

5 THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. 4.ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1993. 6 O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, produção de Olhos de Cão Produções Cinematográficas, 2004.

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O doutor foi sepultado, o menino algemado, foi parar lá na FEBEM, onde dizem passar bem. Fica ligeiro morô polícia. O crime ta voltando. Original, paz, justiça, liberdade.

Os homens que por algum motivo são condenados à pena privativa de liberdade, de

poucos meses ou de alguns anos, passa a entender-se como “preso, detento, encarcerado etc.”

e auto intitula-se “preso”, isto é, chama-se de “preso”. Esses tais “presos” anteriormente eram

homens que circulavam em nossa sociedade, neste caso, Florianópolis. Alguns circulavam em

locais que talvez a classe média e classe alta nunca pisaram (ou, de acordo com algumas

entrevistas, “pisam” para comprar drogas ou envolverem-se amorosamente com homens

ligados ao tráfico, Gilberto Velho analisa esse sucesso dos traficantes junto às mulheres,

assim como o temor entre os homens). Alguns circulavam por essa classe em que, muitas

vezes, é mais possível esconder os crimes, outros circulavam por entre as várias outras facetas

da sociedade florianopolitana.

Estudar os presos é estudar aqueles sobre quem os discursos estão sendo feitos,

transcritos e repetidos. O benefício muitas vezes não é recíproco, pois os presos fizeram por

mim muito mais do que poderei fazer por eles. Os presos são um grupo popular de extrema

proeminência para o estudo histórico do Brasil e de Florianópolis, pois são um grupo que vem

se destacando nos livros, filmes, discursos, imagens, falas, dia-a-dia. Pois é por causa do

homem que antes não se intitulava preso que nossa sociedade aumenta a altura dos muros,

aumenta o número de trancas, compra mais alarmes, pagam “guardinhas”. É por causa da

“criminalidade” que andamos no escuro da noite com um olhar na frente e o outro atrás.

Márcia Fantin, em uma de suas entrevistas, observa que os “nativos” vêem em alguns

“estrangeiros” o motivo de a criminalidade e violência terem aumentado, como se os

“estrangeiros” a tivessem trazido7.

Observar essas contradições de Florianópolis faz parte do trabalho de analisar os

discursos sobre criminalidade no universo penitenciário. Maria Bernadete Ramos Flores faz

um trabalho belíssimo em A farra do boi: palavras, sentidos, ficções8, quando mostra alguns

conflitos dos grupos populares em relação a um evento da cultura popular de Florianópolis e

até de outras cidades do estado de Santa Catarina, a farra do boi, e como esta foi proibida.

7 FANTIN, Márcia. Cidade dividida. Florianópolis: Futura, 2000.

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Alguns desses farristas podem tornar-se presidiários e, neste momento, seus discursos sobre

criminalidade e o que está acontecendo podem mudar, sua identidade pode mudar. Este é um

fator, entre outros, que será importante para esta pesquisa histórica. O interesse desta pesquisa

tem sido conhecer alguns dados sobre as pessoas envolvidas no mundo penitenciário e tentar

perceber se essas pessoas relacionam a criminalidade com as mudanças que a cidade vem

sofrendo nas últimas décadas. Assim como conhecer melhor os discursos em torno da

criminalidade. Muitas delas acreditam que o crime tem relação com o aumento do turismo,

isto é, com a vinda de turistas as oportunidades para roubar aumentam; ou com o aumento do

uso de drogas, muitas drogas pesadas como o crack são hoje oferecidas e compradas;

relacionam também a problemas familiares e amizades que “não levaram para um bom

caminho”.

Eventualmente, com o desejo de informar-se, o esclarecimento de algumas

obscuridades, raridades, inclinações e paixões foi acontecendo. A Penitenciária envolve muito

mais sociabilidades e culturas do que se imagina olhando simplesmente para o muro. Muitos

presos saem durante o dia e trabalham no Centro Integrado de Cultura (CIC) como faxineiros

ou jardineiros. Neste ambiente, entram em contato com outras pessoas, mesmo que seja só por

olhares e aspirações. Outros presos jogam futebol com agentes prisionais e na arquibancada

não há separação, sentam todos juntos e interagem de maneira eufórica. Outros presos

conquistaram mulheres que compravam seus móveis na loja da Penitenciária, e assim se

formaram ligações humanas que a mídia muitas vezes esquece, quando simplifica a

personalidade de pessoas presas com o termo “bandidos”.

Pensar sobre criminalidade, questão prisional e seu envolvimento com a cidade é

pensar a História do tempo presente, de um tempo que tem amedrontado muitos e em muitos

despertado o desejo de mudança. Este ano, MV Bill (rapper carioca, da Cidade de Deus)

recebeu um prêmio da UNICEF por ser o rapper mais politizado dos últimos dez anos, e

Celso Athayde (empresário de rap e hip-hop, um dos fundadores da Central Única das

Favelas) despertou-nos uma grande sensibilidade. Para eles, o processo histórico sobre este

tema é importante para se criarem novas perspectivas.

Podíamos permitir que o Brasil soubesse que, por trás de uma arma, tem um coração batendo; que é preciso uma grande intervenção

8 FLORES, Maria Bernadete Ramos. A farra do boi: palavras, sentidos, ficções. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1997.

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política no país para que não estejamos fadados à escravidão de seres humanos; e que essa intervenção não seja policial, mas em todas as áreas. Não é possível continuar matando esses jovens como se eles fossem os nossos algozes. Não é possível ficar martelando esses jovens e os enjaulando como animais em celas frias9.

Essas pessoas têm que ser pensadas como ligadas aos nossos modos de viver, estamos

criando muros mais altos, sejam esses muros físicos ou psicológicos, que só contribuem para

uma maior segregação sócio-econômica e cultural. O caminho não deve ser o da compra de

aparelhos de segurança e sim a troca de experiências para um crescimento individual e

coletivo, que indicará movimentos mais consistentes. Da mesma forma, aprender e

experimentar estas vivências contribuirá para a escrita da História do tempo presente,

principalmente do tempo brasileiro.

9 SOARES, Luiz Eduardo; BILL, Mv; ATHAYDE, Celso. Cabeça de Porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

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1. A PENITENCIÁRIA COMO TERRITÓRIO NA CIDADE

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É difícil passar pela Agronômica e não notar a Penitenciária pelo menos uma vez.

Imaginar por que estariam aqueles presos ali dentro, quem seriam eles e o que estariam

fazendo neste exato momento.

Muitas vezes passei por lá, pensava sobre esses aspectos, mas foi só depois que li

Michel Foucault que a importância dessa instituição bateu em meu peito. Tive uma

necessidade, uma curiosidade grande de passar para trás daquele muro. E agora não consigo

mais dissociar de minha vida a influência histórica que possuem aquelas pessoas que estão lá

dentro e a própria instituição em si.

A Penitenciária não é só feita de pessoas presas. Há homens e mulheres que circulam

por ela diariamente e alguns voltam para casa no final do dia. Os agentes penitenciários, que

fazem o esquema de vinte quatro horas de trabalho e folgam três dias, já possuem uma

temporalidade diferenciada daqueles que saem todos os dias. O agente Apolo é o que mais

gosta de me ajudar e diz apreciar muito o meu desejo de entender as relações que acontecem

na prisão. Ele apontou uma característica muito curiosa de seu trabalho: “Vivemos quase dez

anos em Regime Fechado e os outros vinte no Semi-Aberto”10.

Apolo demonstrou que os agentes às vezes se sentem presos também e, se fôssemos

reunir essas vinte e quatro horas que eles passam lá dentro e tirar os intervalos de três dias,

poder-se-ia dizer que eles também ficaram presos. É uma brincadeira deles, pois obviamente

eles não “sentem” as dores que teria uma pessoa que passou por todo o processo de prisão e

que se encontra face a face ao agente do outro lado da cela, ou melhor, no caso da

Penitenciária, do outro lado do cubículo. Mas é um relato de alguém que também se percebe

aprisionado com o passar do tempo.

Para entender-se melhor, é necessário esclarecer as características dessas divisões que

há numa prisão. Vou ressaltar, principalmente, o que acontece na Penitenciária de

Florianópolis. O Regime Fechado é teoricamente o primeiro local em que a pessoa entra

depois de ter saído da delegacia, ingressando na prisão, depois de julgada e dada a sentença. É

um local em que, se a pessoa não tem trabalho, fica presa vinte e duas horas e tem duas de

pátio, um dia de manhã, o outro à tarde. Se um preso “apronta”, isto é, joga lixo do cubículo

para o pátio, briga com outro preso etc., todos os outros podem ficar sem o pátio. Na

Penitenciária há cubículos, e não celas, onde ficam de duas a três pessoas. O principal

Page 21: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

21

trabalho deste regime é a Malharia, que é de um projeto do governo federal chamado

Pintando a Liberdade, em que o preso aprende como lidar com todo o processo de fazer

camisetas e uniformes com o emblema “Brasil um país de todos”. Depois que sua sentença

termina, ele sai e vira mestre (tutor) desta oficina. Há ainda a oficina de bolas, onde eles

fazem principalmente bolas de futebol, e a oficina de hidrômetros da Casan. No Regime

Semi-Aberto (ao qual nem todos os presos têm acesso, pois em alguns crimes, como os

hediondos, a sentença tem que ser cumprida inteiramente no Fechado) a pessoa deveria por

lei ter acesso a trabalho; nem todos têm, mas os que possuem passam o dia principalmente em

oficinas, como a Marcenaria. Os outros ficam no quarto. É realmente um quarto, onde ficam

quarenta presos e mais de vinte beliches. O albergue é o último estágio pelo qual o preso

passa na Penitenciária, ele trabalha fora o dia inteiro fora e só vai lá para dormir.

Todas essas divisões não foram suficientes, visto que existem homens sentenciados

por crimes sexuais, como estupro, pedofilia, atentado ao pudor etc. E aqueles que têm brigas

(rixas) com outro preso da instituição, ou que já eram de gangues ou facções diferentes na

rua. Por último, há os sentenciados que trabalham para a “polícia”, para agentes

penitenciários ou funcionários administrativos, como o Centimanos, que trabalha como

faxineiro no primeiro andar da administração desta penitenciária, ou o Brontes, que trabalha

como cozinheiro e foi preso acusado de pedofilia. Todas essas pessoas ficam no alojamento

especial, que é na parte da cozinha da penitenciária. Ficam separadas, porque dentro do

sistema elas seriam mortas.

A Penitenciária começou a ser construída em 1926 no bairro da Agronômica (situada

ao norte do Morro da Cruz, entre os bairros da Trindade e o Centro, na época era praticamente

um local rural), no mesmo ano em que foi concluída a Ponte Hercílio Luz. Em 1930 a

Penitenciária Pedra Grande, como foi chamada, teve sua obra concluída e, junto dos primeiros

presos, também vieram às primeiras famílias que desejavam morar perto de seus “entes

queridos”. Assim surgiu a comunidade do Morro da Penitenciária, pois o preso não é, apesar

de tudo, um homem sozinho, ele possui suas relações com o mundo extra-muros. Essas

relações são tão indispensáveis que criaram comunidades como esta e também novas formas

de viver, como a dos parentes que todo domingo, em vez outra atividade, vêm visitar um

familiar. O trajeto que as visitas fazem muda a rotina da cidade, tanto que hoje se tem um

ônibus para o Morro da Penitenciária.

10 Entrevista filmada em fevereiro de 2006.

Page 22: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

22

Mais tarde surgiu também o Palácio da Agronômica, residência oficial do governador

do estado e o Centro Integrado de Cultura, o CIC. O nome deste bairro é originário do fato de

ter-se instalado ali uma Estação Agronômica, entre 1904 e 1906, para experimentação

agrícola. Foi no governo de Vidal Ramos. O local era conhecido antes como Pedra Grande

(por isso a Penitenciária ganhou esse nome na época), denominação que durou muitos anos e,

hoje, acabou se restringindo a uma parte daquela região, nos morros que a cercam. Por esses

dados nota-se que é um local nobre da cidade de Florianópolis, apesar de terem surgido

favelas, é um local de circulação de pessoas da elite florianopolitana, assim como da classe

média e muitos estudantes que vão ao CIC ver filmes diferentes dos que passam, por

exemplo, no Shopping Beira-Mar.

Sobre o CIC, centro de circulação de várias “tribos” de pessoas, é interessante relatar

que lá também é o local de trabalho de presos do Regime Semi-Aberto. Como assim? Se são

presos eles não deveriam ficar presos? Não. São muitos os presos que circulam fora da

Penitenciária, o Oceano11 por exemplo, trabalha no Show Room, que é a loja onde vendem os

móveis, chás, ervas e artesanato que os presos e pacientes do Hospital de Custódia (as pessoas

que cometem crimes, mas são consideradas deficientes mentais vão para esta instuição)

fazem. O Oceano fica “debaixo dos olhos” do Seu Odisseu, que é um agente com mais de

trinta anos de casa, expressão que eles usam. Os dois ficam a maior parte do dia sozinhos na

loja, de vez em quando entra uma madame (vão muitas madames comprar móveis) para

quebrar a rotina. No CIC, os homens que têm o substantivo “preso” inscrito nas costas passam

a carregar também as denominações de “faxineiros” e “jardineiros”, mas a maioria das

pessoas não nota que suas camisas têm a marca da cadeia – a matrícula. E ali eles se

relacionam com pessoas “livres”, que ora perguntam onde é o MASC (Museu de Arte de

Santa Catarina), ora perguntam se hoje vai passar aquele filme iraniano.

Da mesma forma, há os presos que saem da Penitenciária e do Presídio para levar o

lixo, para varrer algo. Em um dos relatos, um deles me contou que saiu para levar lixo e duas

senhoras passaram assustadas e falaram, em um tom que ele pode ouvir: “Olha! Um

presidiário! Anda! Anda!”12.

11 Em todos os nomes vou usar pseudônimos, os presos me pediram para trocar seus nomes, vou trocar de agentes e funcionários para em um instante todos terem uma certa igualdade. 12 Entrevista gravada em dezembro de 2004.

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Falei sobre algumas formas de sociabilidades que podem ocorrer dentro e fora da

Penitenciária, mas para eu entrar nesse mundo, alguns conhecimentos foram necessários.

São muitas as pesquisas feitas em torno do tema Penitenciária, isso denota sua grande

importância, afinal, estamos falando de seres humanos enclausurados, por variados crimes, e

de uma construção histórica em torno do corpo e do direito de punir.

Em Manicômios, Prisões e Conventos13, Erving Goffman enuncia que toda instituição

tem tendências de fechamento. A Penitenciária talvez seja o exemplo mais rígido dessa

concepção, pois o ato de fechar nos segue a cada porta. Para entrar na cozinha do Regime

Fechado, por exemplo, tenho que estar acompanhada de um agente que abre um portão de

grades para mim; eu entro, ele tranca novamente, e seguimos até chegar ao destino. E isso vai

ficando cada vez mais restrito quando você é presidíario ou parente de alguém que está preso.

Quando você se torna um presidiário, o seu espaço se torna também bem definido.

Não há muitas opções de locomoção e “em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são

realizados no mesmo local e sob uma única autoridade” (GOFFMAN, 1987, p. 17). Essa

mesma autoridade, que muitas vezes está do lado do preso, tem uma vida social com práticas

muito diversas da do encarcerado, pois lá estão “desenvolvendo-se dois mundos sociais e

culturais diferentes, que caminham juntos com pontos de contato oficial, mas com pouca

interpenetração” (GOFFMAN, 1987, p.17). Para mim era estranho ver um agente tão perto de

alguém, mas tão longe ao mesmo tempo. O agente de preto e sapato, o preso sem camisa, sem

sapato. Na maioria das entrevistas, os agentes passam a idéia de que têm que se manter

distante deles, mas ao mesmo tempo, devido a cursos de capacitação que receberam, têm o

projeto de “ser exemplo para o preso”. Como um exemplo poderia estar do outro lado do

atingido? Porque em princípio “(...) as instituições totais realmente não procuram uma vitória

cultural. Criam e mantém um tipo específico de tensão persistente como uma força estratégica

no controle de homens” (GOFFMAN, 1987, p.24). São nessas ocasiões, de se sentir tão

distante daqueles que trancam os presos, que acontece a mutilação do eu, uma constante

sensação de deixar de sentir, de desejar, de poder, de querer.

Um aspecto legal dessa perda permanente pode ser encontrado no conceito de “morte civil”: os presos podem enfrentar, não apenas uma perda temporária dos direitos de dispor do dinheiro e assinar cheques, opor-se a processos de divórcio ou adoção, e votar, mas ainda podem

13 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1987.

Page 24: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

24

ter alguns desses direitos permanentemente negados (GOFFMAN, 1987, p.25).

O que eles têm que manter, então, é uma boa visão de si mesmos, para assim

entenderem-se com seus companheiros, que estão presos como eles, e os funcionários, que

sempre estão desconfiados deles. Pois,

Nas instituições totais, geralmente há necessidade de esforço persistente e consciente para não enfrentar problemas. A fim de evitar possíveis incidentes, o internado pode renunciar a certos níveis de sociabilidade com seus companheiros (GOFFMAN, 1987, p.45).

O Hermes14, que tem trinta e sete anos, contou-me que nasceu em Joinville num dia de

março de sessenta e oito. Nunca chegou a morar em Florianópolis, mas pegou o “bonde” para

a Penitenciária de Florianópolis, deixando duas filhas: “uma ta fazendo dezessete, fez agora

dia nove de março e a outra fez dia quatro de fevereiro doze anos” na sua cidade. Segundo

ele,

Se tu faz alguma coisa de errado aqui no sistema, tu briga, tu machuca alguém, fere alguém, né, não tem espaço para ti aqui dentro, eles te mandam para São Pedro de Alcântara, Curitibanos, Chapecó, enfim, tu vai rodando cadeia né, eu to aqui dentro da casa vai fazer sete anos que eu to, na casa né.

E para não acontecerem essas situações de troca de cadeia, principalmente para os

presos que têm trabalho e sustentam a família com esse dinheiro, o internado renuncia a

certos níveis de sociabilidade, muitos deles falam que é “bom conversar com alguém”, mas

acabam evitando fazer isso com os companheiros de quarto ou cubículo para não ocorrer de

alguém “não estar num dia bom” e tudo acabar em briga, fazendo com que um ou outro

peguem o “bonde”.

Na época em que eu estava filmando as entrevistas, combinei com o Oceano de filmar

ele trabalhando no Show Room, mas durante três dias ele não apareceu. Seu Odisseu me

contou que tinha acontecido uma “treta” no alojamento. Foi roubado o tênis de alguém. No

alojamento do Oceano, moram dezessete presos. Os agentes os trancaram no quarto e falaram

que eles só sairiam de lá depois de resolverem à situação. Três dias depois ela foi resolvida.

Cinco presos pegaram o “bonde” e foram para Palhoça, na Colônia Penal Os outros não

quiseram contar-me o que aconteceu e quem foi afinal que sumiu com o tênis.

14 Entrevista gravada em março de 2005.

Page 25: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

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O Hermes, que também vive nesse alojamento, depois desta situação só quis saber de

ir embora de uma vez por todas:

Eu vim pra cá por causa do meu crime né, eu fui condenado há vinte e um anos, desses vinte e um eu tenho que puxar quatorze anos, nesses quatorze anos eu ganho três anos e pouco de remissão, então pelo que dá as datas em tempo de cadeia, final de 2006, começo de 2007 eu to indo embora. se tudo der certo né15.

Se tudo der certo, isto é, se não ocorrer de o juiz o esquecer, de a parte administrativa

da penitenciária demorar para liberá-lo, essas situações que os presos tanto comentam, “tem

muito cara esquecido aqui dentro”, eles falam. Assim os presos vão construindo momentos e

práticas que respondem a algumas necessidades diárias, que seriam privilégios secundários,

pois um dos mais importantes, que é a visita da família ocorre uma vez por semana somente.

A visita íntima para os que têm companheiras fixas é uma vez por mês.

A construção de um mundo em torno desses privilégios secundários é talvez o aspecto mais importante da cultura dos internados, embora seja algo que dificilmente um estranho pode apreciar, mesmo que antes tenha vivido essa experiência (GOFFMAN, 1987, p.51).

Outro exemplo que adquire extrema importância é o sol. Um dia sem pátio é um dia

trancado vinte e quatros horas, sem muito espaço para locomoção, sem outros rostos para se

olhar, sem bola para jogar futebol.

Saindo do cubículo, e voltando novamente ao ingresso de um homem nesta instituição,

Goffman observa que quando o condenado acaba de chegar à prisão ele geralmente se

distancia daquela idéia de auto denominar-se preso. Ele não se vê parte daquelas pessoas, elas

são misteriosas e provavelmente violentas, porque ele chega com as convicções da maioria

das pessoas extra-muros e extra-cubículos, isto é, os agentes.

O recém-admitido freqüentemente parte de algo semelhante às concepções erradas e populares da equipe dirigente quanto ao caráter dos internados: acaba por descobrir que quase todos os seus companheiros têm todas as qualidades de seres humanos comuns, ocasionalmente decentes, e que merecem simpatia e apoio (GOFFMAN, 1987, p.55).

15 Entrevista gravada em fevereiro de 2006.

Page 26: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

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Mas alguns presos têm a necessidade de durante toda sua sentença manter as suas

convicções, como é o caso de Poseidon16.

A gente conversa pouco né, trabalha das seis da manhã até as nove horas da noite, chega no barraco faz um barquinho umas coisinhas, conheço praticamente ninguém, conversa pouco sobre... Não sou muito de conversar com esses maloqueiros ai...

São processos de defesa que são usados. Assim como quando os presos “Tendem a

desenvolver-se um sentido de injustiça comum e um sentido de amargura contra o mundo

externo, o que assinala um movimento importante na carreira moral do internado”

(GOFFMAN, 1987, p.56). Eles acreditam que a sociedade os vê como “monstros”. Quando

eu conto para eles sobre minha pesquisa eles dizem que isso vai ser bom para tirar um pouco

a má impressão que as pessoas têm deles. Goffman revolta-se, pois “(...) a indignação que

sinto contra as práticas da prisão não é a indignação do inocente perseguido ou a do mártir,

mas a do culpado que sente que seu castigo ultrapassa o que merece e que é impossível por

aqueles que não estão livres de culpa” (GOFFMAN, 1987, p.56).

No mundo carcerário existem algumas atitudes para as quais não precisaríamos pedir

permissão, mas que nestas circunstâncias somos obrigados a pedir. Nosso “eu” vai se

tornando de baixa estatura, de baixa competência, de baixa auto-estima,

A baixa posição dos internados, quando comparada à que tinham no mundo externo, e estabelecida inicialmente através do processo de despojamento, cria um meio de fracasso pessoal em que a desgraça pessoal se faz sentir constantemente (GOFFMAN, 1987, p.63).

Esse sentimento de fracasso pessoal aparecia em muitas entrevistas que fiz, porém

alguns presos, por trabalharem em locais onde os funcionários ou agentes conversam com

eles, criam maiores aberturas, que eliminam parcialmente essa percepção de desgraça. Como

no exemplo do Oceano, que criou laços com alguns agentes penitenciários, as quais eu não

poderia imaginar caso nunca tivesse ultrapassado o muro desta prisão. O Oceano, ao final do

dia, tem que voltar a pé para a Penitenciária cruzando uma parte da avenida principal da

Agronômica. Mas geralmente ele pega carona com o Seu Dionísio, um agente que trabalha há

dezessete anos na casa e tem uma relação diferente com os presos. Os presos chegam a contar

para ele os crimes que cometeram, crimes de que nem a polícia nem o juiz podem saber.

Esses acontecimentos seriam, de acordo com Goffman, “maneiras incidentais de cruzar a

16 Entrevista gravada em setembro de 2005.

Page 27: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

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fronteira” (GOFFMAN, 1987, p.85). E acaba acontecendo um fato que eu percebo que Seu

Dionísio não gostaria que acontecesse: “(...) os internados e a equipe dirigente chegam a ficar

suficientemente perto para ter uma imagem um pouco mais favorável do outro, e a identificar-

se com a situação do outro” (GOFFMAN, 1987, p.85).

Em cada detalhe desses acontecimentos que narrei pode se perceber uma cultura

diferente que é gerada dentro de uma prisão principalmente para os homens que foram

privados de sua liberdade, mas também para aqueles que escolheram trabalhar negando o

acesso às ruas a outros.

Portanto, toda organização incluiu uma disciplina de atividade, mas nosso interesse, aqui, é que em algum nível, toda organização inclui também uma disciplina de ser – uma obrigação de ser um determinado caráter e morar em determinado mundo (GOFFMAN, 1987, p.159).

A prisão ainda não deixou de ser um paradoxo social. Odete Maria de Oliveira17 fez

um estudo, alguns anos atrás, nesta mesma Penitenciária que freqüento e observou que muitos

presos procuravam a enfermaria alegando estarem doentes, mas no momento da consulta

desabafavam ou conversam com as enfermeiras, denotando o caráter perturbador de

enclausurar nossos anseios e não passá-los para fora de nossos corpos. A autora constatou, em

entrevistas concedidas por presos, algo que Foucault demonstrou em Vigiar e Punir, a

necessidade que os presos têm de ter um contato pessoal com seus juízes (OLIVEIRA, 1996,

p.165). Ela também se interessou por essa quebra da intimidade que ocorre com os presos,

como a correspondência que é lida, seja ela do preso para alguém e de alguém para o preso,

assim como a falta de lazer e da escolha do lazer; as duas, por vezes, causam um

desenvolvido constrangimento. Mesmo porque “O lazer fornece ao apenado uma atmosfera de

alegria, desibinição e participação, fazendo-o retornar à condição de ser humano que a pena

privativa de liberdade lhe furtou ao confiná-lo no claustro prisional” (OLIVEIRA, 1996,

p.237).

Outra questão relativa às prisões em geral é que a superlotação das cadeias públicas e

penitenciárias também se deve ao fato de que a lei dos crimes hediondos foi instituída

(aumentando a pena de vários crimes), mas o número de penitenciárias continua o mesmo. A

lei faz com que as pessoas fiquem mais tempo presas e isso, ao longo dos anos, faz com que

17 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social. 2. ed. rev. e ampl. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1996.

Page 28: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

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aumente o número de encarcerados, como mostram os relatórios do Departamento

Penitenciário Nacional18.

Augusto Thompson, em A Questão Penitenciária desenvolve os debates acerca deste

tema. Comoveu-me neste autor algo que procurei obter nesta minha pesquisa: o conhecimento

da Penitenciária e de quem estaria atrás do muro, porque “Pouca ou nenhuma atenção se dava

ao clima social da prisão – às relações interpessoais desenvolvidas pelos indivíduos ali

encerrados e às dinâmicas de interação que nela se processam” (THOMPSON, 1998, p.4).

Procura-se então, há muitos anos, resolver o problema do encarceramento, das prisões

em geral, mas estaria o problema somente nas prisões? Para Thompson, “(...) nenhuma

melhoria real seria obtida, se o planejamento se dirigir a uma reforma exclusivamente

penitenciária” (THOMPSON, 1998, p.5). O planejamento estaria em várias esferas, que

envolveriam desde onde o preso morava até todo o trajeto que fez um agente fechar o seu

cubículo, sem prejuízo de outras questões relevantes.

A reincidência criminal é considerada por Thompson outro importante problema do

sistema prisional. Ela denotaria que a questão não está somente no sistema prisional e sim na

forma de viver de nossa sociedade. E a reincidência talvez seja o fator que mais demonstra

que o sistema prisional não está funcionando,

Observe-se, a repetição freqüente da recidiva, por parte daqueles que cumpriram pena, representada, às vezes, pelo retorno ao cárcere de pessoas que mal saíram dele. Trata-se de prova manifesta de que a instituição falhou nos objetivos, sobretudo no que atende à intimidação e à recuperação (...) a reentrada de ex-convictos na prisão, de que se tem notícia a todo momento, é fenômeno assimilado de maneira bastante tranqüila, não chegando sequer, a arranhar a sensibilidade social (THOMPSON, 1998, p.8).

Foucault da mesma forma diz que “a detenção provoca a reincidência, depois de sair

da prisão, se têm mais chance que antes de voltar para ela (...)” (FOUCAULT, 1994, p.221). E

por mais óbvio que seja, os presos também participam da idéia que “a quebra de banimento, a

impossibilidade de encontrar trabalho, a vadiagem são os fatores mais freqüentes da

reincidência” (FOUCAULT, 1994, p.223).

18 http://www.mj.gov.br/depen/

Page 29: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

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Agora, “Uma fuga de presos, uma tentativa de motim, (...), porém, desperta vigorosos

protestos” (THOMPSON, 1998, p.8). Porque esses fatos podem nos afetar. Esses fatos podem

afetar os moradores da Agronômica, por exemplo. Ou os próprios funcionários, moradores da

cidade de Florianópolis e que pertencem ao extra-muros. Conversando com o Seu Dionísio,

pude notar o medo que se tem das rebeliões.

C. - E você pode falar das rebeliões? Das grandes rebeliões? D. - A grande rebelião que houve aqui foi em 1997. C. - E como é que foi? Como é que começou? (eu) D. - A rebelião... Ela começou... Porque naquele ano pelo nosso país todo Brasil as penitenciárias começaram as rebeliões... Foi desencadeando em cada Estado, não tem? E chegou aqui na nossa. Foi mais assim, influência das outras penitenciárias que se rebelaram. (Dionísio) C. - Carandiru foi em 97? D. - Também. Na época também foi. E... Não aquele massacre não. O massacre foi antes. Mas na Penitenciária de Carandiru também teve uma grande rebelião. E foi terrível. Dez agentes de refém, quebraram a penitenciária inteira, destruíram as oficinas, não deixaram uma telha em pé, não tem? Graças a Deus não matou ninguém. Deu tudo certo. C. - E muitos fugiram? D. - Não. Não porque a segurança externa funcionou. A segurança externa é feita pela PM, a interna pelos agentes prisionais. C. - E durou quanto tempo? D. - Dez dias. C. - Dez dias? D. - Dez dias e dez colegas nossos de refém. Foi terrível. C. - E a de 99? D. - A de 99 quebraram tudo, durou quatorze dias, mas não houve refém. C. - Ah! Não houve? E vocês não conseguiram entrar lá? D. - Não... Não entraram porque o diretor da época... A PM quis entrar para acabar com isso logo de uma vez. Mas o diretor quis negociar, mesmo sem refém. Mas porque daí ia morrer preso, porque eles iam querer enfrentar a PM, e ai eles iam matar. C. - E não morreu ninguém? D. - Também não. Não! Nessa rebelião morreu um. C. - Um...? D. - Um preso em cima do telhado.

A morte de um preso é esperada, ela não é reproduzida de maneira que possa doer,

possa nos infligir um descontentamento. A rebelião é a quebra total do cotidiano, e será mais

bem retratada no capítulo posteriormente.

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O agente Apolo acredita que não é um reeducador e nem um preso, um reeducando.

Não há uma segunda educação, e ele compreende que seu papel é somente o de garantir a

segurança. Thompson, sobre essa demanda, pergunta: “(...) alguém já conseguiu fazer prisão

punitiva ser reformativa” (THOMPSON, 1998, p.10)? Apolo não considera que utilizando

palavrório irá mudar a imagem deles ou a atitude deles frente ao trabalho. Mesmo porque

julgar que o “criminoso”, por ser submisso às regras intramuros, isto é, fazendo o papel de

reeducando, comportar-se-á como não criminoso no mundo livre não é garantido. E quando

eu estava entrevistando o Oceano, Seu Dionísio estava conosco e ele não pôde deixar de

expressar sua opinião ao Oceano quando este estava colocando em palavras a representação

que tem do sistema prisional:

C. - E o que você poderia falar da prisão? É um sistema que recupera, que o trabalho ajuda, escola? Você chegou a estudar?

O. - No meu modo de pensar, o sistema nunca vai mudar, pode piorar, quem tem que mudar é quem ta lá dentro, cai na realidade que isso daqui não é um ambiente adequado para o cara sobreviver, o cara não vive, o cara vegeta, agora o sistema mudar? Nunca vai mudar. A... (Oceano)

D. - Pera ai! Hoje a nossa Penitenciária dá chance.

O. - Não, com certeza, tem as oportunidades, mas que eu digo assim, a Penitenciária não recupera ninguém, deixa ela mais revoltada quem ta aqui dentro. Imagina, condena a pessoa há vinte anos, joga ela dentro de uma cela, do pátio para a cela, da cela para a oficina e fica naquela monotonia ali, dez quinze anos, a pessoa sai, de um crime hediondo, sai direto para a sociedade depois de treze quatorze anos, igual o Créos (não sei quem é), o Créos trabalhou no meio dos funcionários, e quem nunca trabalhou? Que foi sempre comportamento ruim e sai direto para a rua? Sai perdido e depois de treze anos perdeu a mulher, os filhos tão crescidos, tão na marginalidade, a família não apóia mais, vê a mulher com outro, vê a mulher tendo filho com outro, vê aquela, dá um reboliço na cabeça da pessoa, então ninguém abre as portas, acha que viveu aqueles treze anos, acha que num prazo de seis meses tem que acontecer tudo de bom para ele porque ele sofreu aqueles treze anos, quatorze anos, ai o que acontece? Volta para aqui. A maioria volta.

Seu Dionísio mais tarde, volta ao assunto, intrigado:

D. - O Oceano, tu disse que o sistema não recupera. O. - Quem recupera... D. - Calma, deixa eu te contar uma história, eu até acredito em partes, vou pegar tu como exemplo, tu fosse um assaltante condenado a quase sessenta anos de cadeia, fizesse, participasse de rebeliões em Florianópolis, Curitibanos, Chapecó, ta, ta, ta, ta, ta, ta, e hoje ta ai ó,

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já fosse em casa, já voltasse, ta, ta, ta, trabalhas praticamente no regime aberto, és educado, tens boa índole, tu achas que esses oito anos aqui não mexeu na tua cabeça? O. - Com certeza. D. - Eu acredito que tu não vais voltar para o crime. O. - Com certeza. D. - Eu acredito assim que tu vai até fumar um baseado, cheirar uma cocaína... O. - Só que ai tipo assim né eu tive uma criação até os dez, onze anos, até os treze anos, antes de conhecer as drogas, claro, morava com meu pai, meu pai tudo certinho, meu pai honesto, essas coisas, morava com minha mãe, tudo certinho, mas aqueles que se criaram sem pais, nem mãe, mas e aqueles que se criaram sem pais nem mães, se criaram na rua, dormindo em caixa de papelão, trocando o dia pela noite, ai dentro da cadeia não tem ninguém por ele, fica mais revoltado ainda...

Oceano não quer deixar escapar que o sistema não funciona. Seu Dionísio, que quase

não acredita na recuperação dos presos, cede créditos a Oceano. Entretanto, Thompson não se

esquece da contradição, afirmando que “parece, pois, que treinar homens para a vida livre,

submetendo-os a condição de cativeiro, afigura-se tão absurdo como alguém se preparar para

uma corrida ficando na cama por semanas” (THOMPSON, 1998, p.12 e 13) e conclui

depreciativamente que “(...) se adaptação à prisão não significa adaptação à vida livre, há

fortes indícios de que adaptação à prisão implica desadaptação à vida livre” (THOMPSON,

1998, p.13).

E quais utilidades teriam os presos submissos que dentro da cadeia cumprem as

regras? “Na verdade, não é muito difícil ser um bom preso, para aquele que chega a dominar

os nervos. O que é mais difícil é saber para que pode servir um bom preso, uma vez que sua

pena tenha terminado” (BUFFARD apud THOMPSON, 1998, p.15). O preso entende

antecipadamente, quando entra na “casa”, alguns papéis que devem ser interpretados dentro

dela. Não que ele aceite passivamente, por vezes são quebradas regras, pois, afinal, ficar

enclausurado vai-se tornando perturbador e ao mesmo tempo há uma espécie de acomodação

para se conseguir sobreviver a esse período. Mas este enfrentamento é cheio de dificuldades,

sendo que algumas “obediências” e métodos de sobrevivência se estabelecem pelo desejo de

lograr a aceitação entre os funcionários, como por exemplo:

- aceitação de um papel inferior. - acumulação de fatos concernentes à organização da prisão. - o desenvolvimento de novos hábitos, no comer, vestir, trabalhar, dormir. - a adoção do linguajar local.

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- o reconhecimento de que nada é devido ao meio ambiente, quanto à satisfação de necessidades. - eventual desejo de arranjar uma “boa ocupação” (“ou no jargão prisional carioca, uma “faxina”“.) (THOMPSON, 1998, p.24).

Os funcionários julgam compatível esse papel que o preso exerce pois assim torna o

trabalho deles compensatório, como reconhece o agente Apolo: “nós fazemos a segurança e

não há reeducação”. Assistir ao preso sendo obediente é saber que o trabalho dos agentes está

funcionando. Para alguns agentes é muito claro que não há a reeducação, pelo menos não por

parte deles. As metas sérias na prisão são evitar fugas e motins.

Porém, não podemos apontar como causa da não existência da reeducação no sistema

prisional, pelo menos na Penitenciária de Florianópolis, o nível cultural baixo dos agentes

penitenciários, pois nesta pesquisa constatei o grande número de agentes que estão se

formando em universidades, a maioria em Direito, e até alguns que fazem pós-graduação,

como o agente Urano, que está fazendo mestrado em História pela Universidade Federal de

Santa Catarina. Da mesma forma, parece-me que não há uma relação entre o nível cultural e o

tratamento que o funcionário vai dar a um preso, não depende desta variante. Pois alguns

agentes que têm formação superior tratam os presos de maneira mais “educada” e outros,

também com formação superior, não o fazem, como constatei num diálogo com um agente

que me questionou (e a um amigo que me acompanhava) por que eu fazia filmagens na

Penitenciária, retrucando, sem me dar chance de resposta: “Tem que matar toda essa raça,

porque eles não têm jeito, no Carandiru mataram poucos, se eu tivesse lá teriam sido mil”19.

Este agente afirmou que estava fazendo Direito justamente para prender esses

indivíduos. Em todo caso, há autores que acreditam que os agentes são muito mal pagos para

exercer um bom trabalho, como Bernard Shaw (SHAW apud THOMPSON, 1998, p.40):

“Don´t expect a prison officer to have a heart. His pay will not allow it”20. Mas não podemos

acreditar que a sensibilidade se eleva quando o salário aumenta (apesar de ser uma questão

muito importante), isto é, que tudo se resumiria à causa salarial, pois existem outros aspectos

envolvidos (o salário de agente prisional vem aumentando, antes era muito mais baixo, e este

fato cooperou para mudanças sócio-econômicas e até culturais nos funcionários das prisões).

19 Conversa informal em fevereiro de 2006. 20 Não espere que um oficial de prisão tenha um coração. O pagamento dele não permitirá isto.

Page 33: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

33

São muitas as contradições que subsistem na relação entre os agentes e presos.

“Espera-se do guarda, (…): fazer os presos sofrerem, e procurar ser amigo do interno, lidando

com ele como se fosse um paciente ou um aluno” (THOMPSON, 1998, p.41), e essas

contradições se revelam quando há a ultrapassagem de fronteiras que explicitei anteriormente

e quando há momentos em que cada uma das partes coloca-se no lugar da outra.

Experimentam os funcionários, em algumas ocasiões, que “(...) o sistema social de um

estabelecimento de segurança média ou máxima funciona, basicamente, de acordo com os

critérios fornecidos pelos próprios condenados” (THOMPSON, 1998, p.52). Mesmo porque

acredita-se que o preso faz pedidos proporcionais ao que se pode fazer por eles. O diretor da

Penitenciária, por exemplo, exprime esse fato com essas idéias:

Normalmente os presos, quando participam de uma rebelião, fazem uma relação de vários de pedidos, pedidos que podem ser difíceis de serem atendidos; porém, no mais das vezes, eles fazem pedidos dignos e justos até, na maioria das vezes, porque eles não são doidos de pedir um absurdo, sabe? Pedir para matar alguém, pedir pra seqüestrar alguém, pedir pra rasgar uma lei, isso eles nunca fazem, eles pedem aqueles pedidos prontos, aquelas coisas dignas, morais, sabe assim, em que muitas vezes é um reclame absolutamente condizente com a realidade deles, que deveria estar funcionando naqueles termos (...)21.

Supõe-se que as sociabilidades e práticas culturais que acontecem dentro da

Penitenciária são marcadas por desconfiança e medo. Afirma-se que “(...) é um mundo de

“Eu”, “mim” e “meu” antes que de “nosso”, “seus” e “seu”” (CLEMMER apud

THOMPSON, 1998, p.69). Mas esse mundo às vezes é surpreendido pelo solidariedade,

como, por exemplo, quando os estudantes da Revolta da Catraca (como foram chamadas as

manifestações que ocorreram contra o aumento do passe de ônibus) chegaram à Casa Velha (a

construção mais antiga) da Penitenciária e os presos passaram para eles, com a “teresa” (fio

que eles usam para amarrar objetos que são passados pelas janelas dos cubículos para outros

cubículos, como café, comida e cigarro), comida e cigarros, numa demonstração estranha de

boas-vindas, ilustrando que ali um teria que ajudar o outro, apesar da desconfiança que se

conserva.

Esse sinal demonstra o talento que os presos têm de relacionar o envolvimento da

Penitenciária com o restante da cidade. Os homens que chegam serão praticamente

esquecidos pela sociedade, pela cidade. Tornar-se “preso” é tornar-se aquele que grande parte

21 Entrevista gravada em outubro de 2005.

Page 34: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

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da cidade teme. E quando a pessoa que chegou é bem recebida, a imagem distorcida que ela

tinha desses presos vai se modificando:

Os criminosos não são “os outros”, relativamente ao restante da humanidade. Não formam, destarte, um grupo homogêneo, perfeitamente identificável e separável da sociedade civil, através da apresentação de características certas e definidas (THOMPSON, 1998, p.81).

Mas dada à vivência dura que é o fato de estar encarcerado, “(...) o interno mais

desenvolverá a tendência criminosa que trouxe de fora do que a anulará ou suavizará”

(THOMPSON, 1998, p.96). Todavia, isso não quer dizer que deixou de ser um habitante de

Florianópolis para ser um “monstro” que só desenvolverá mais a tendência criminosa.

Não poderia esquecer neste capítulo o historiador e filósofo, Michel Foucault22, que

me despertou o interesse sobre quem estaria atrás do muro. Foucault constata que “(...) a idéia

de uma reclusão penal é explicitamente criticada por muitos reformadores. (...) Porque é

desprovida de efeito sobre o público. Porque é inútil à sociedade, até nociva: é cara, mantém

os condenados na ociosidade, multiplica-lhes os vícios” (FOUCAULT, 1994, p.95). Mais uma

vez o sistema se mostra contraditório e as pessoas que convivem e vivem nele partilham esse

ponto de vista. O diretor da Penitenciária de Florianópolis coloca que:

Dir. - Nós preparamos o preso para ele ficar perto da criminalidade, ta entendendo? O sistema prisional ele faz isso, infelizmente. Por quê? A gente dá para ele moradia, vestuário, alimentação, educação, assistência médica, assistência educacional, psicológica, religiosa, assistência à família, atividade recreativa, banho de sol diário, enfim... D. - Trabalho. Dir. - Trabalho! Sabe? Qualificação, tudo de uma maneira precária, é verdade, mas nós damos tudo isso para o preso. Quando a gente vai lá e diz para ele “parabéns você se comportou bem, você cumpriu o que a lei disse, você tem um benefício, uma progressão para o regime aberto, você foi indultado, você está solto, o meio social agora te pertence, a liberdade é tua, vai para lá”. Ele vai trabalhar um mês para ganhar quanto? Quanto tu acha que um ex-preso vai ganhar na rua?

A prisão seria então a “detestável solução, de que não se pode abrir mão”

(FOUCAULT, 1994, p.196)? Da maneira que ela foi concebida, tem que fornecer comida,

vestuário etc., para quem não pode ir atrás disso. O objetivo não é matá-lo, pelo menos

fisicamente não. É acreditar que grades farão com ele o que a condição de homem livre não

22 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão (11ª ed.). Petrópolis: Vozes, 1994.

Page 35: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

35

fez. Mesmo que o preso tenha acesso a psicólogo, a assistente social, ele não estará livre para

exercer o que estaria desenvolvendo e aprendendo numa terapia, por exemplo. Por isso, entre

outros motivos, a liberdade pós-prisão pode ser tão difícil ou ainda mais penosa do que era

antes.

A não interação com a sociedade é talvez o que mais amedronta na figura de um

presidiário, “(...) aliás a escuridão das prisões torna-se assunto de desconfiança para os

cidadãos; supõe facilmente que lá se cometem grandes injustiças (...)” (FOUCAULT, 1994,

p.95). O descaso com as prisões pode ter esse ponto como principal pois, como observado

antes, a prisão só é vista quando há rebeliões e fugas. Praticamente não é vista como parte da

cidade. Com habitantes que interagem com o dentro e fora, com pessoas que não têm a

mesma trajetória de vida. “De maneira que se eu traí meu país, sou preso; se matei meu pai,

sou preso; todos os delitos imagináveis são punidos da maneira mais uniforme. Tenho a

impressão de ver um médico que, para todas as doenças, têm o mesmo remédio”

(FOUCAULT, 1994, p.97). Presidiário não é designação que gere igualdade.

Foucault percebeu que as prisões, no século XIX, começaram a não ser bem vistas,

pedia-se a supressão delas. Presentemente, algumas parcelas da população continuam com

este anseio da discussão pelo fim das prisões, como lembra a psicóloga do presídio

masculino, localizado ao lado da Penitenciária:

Agora, no Fórum Social Mundial, esse que vai ser na Venezuela, vai haver uma oficina discutindo o mundo sem encarceramento. Existem formas de pensar um mundo sem encarceramentos, um mundo sem manicômios, sem prisões. Talvez esse seja um mundo a construir, é uma discussão que está ganhando corpo. É aquela história, você deu uma solução que não está resolvendo o problema, não é? Então você tem que mexer com a solução, porque o problema está posto, não é? As práticas delituosas, a violência, as desigualdades, tudo está posto, agora você tem que pensar nas soluções e a solução magna, digamos assim, não dá conta de maneira alguma, não é? Como o manicômio, o hospital psiquiátrico não dão conta do problema que lhes é proposto. A idéia da prisão é mais ou menos a mesma, é uma solução que na verdade está produzindo mais problema. Porque a gente acompanha. Às vezes, eu vejo pessoas aqui que em 93 tinham dezoito anos e entraram aqui assim completamente sem chão, sem saber onde é que estavam entrando, com muito medo, com muitas preocupações, e que hoje estão assim, escoladíssimas, entrando de novo. Reproduzindo aquela mesma relação de opressão com o preso novo, que isso também é uma demonstração de poder, entende? Então, quer dizer, a pessoa que entrou com dezoito anos com uma perspectiva de vida, vê

Page 36: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

36

que a vida lhe foi impossibilitada, foi atravessada pela prisão. Essa experiência trás muitas marcas, teve muito isso, eu fiquei um ano na Penitenciária de São Pedro, era muito chocante. Pessoas lá que estavam com uma sentença de vinte, trinta anos, entraram jovens aqui, quando eu estava aqui, e que depois foram se enfronhando tanto dentro da criminalidade que estavam com sentenças super grandes. Vão passar o resto da vida dentro de uma penitenciária, quer dizer, toda juventude, momentos bons, passear, namorar, ir a praia, praticar esporte, estudar, tudo isso é abortado por conta da prisão, então é uma solução muito cruel, tirar toda essa possibilidade da vida. Está certo que, às vezes, as pessoas cometem crimes, elas também produzem sofrimento nos outros, mas não adianta você estar em processo de vingança o tempo todo, você não vai chegar numa saída. Acho que tem que pensar em como é que vai-se fazer para não estar o tempo todo se vingando, porque é isso que a gente faz, é uma vingança extremamente cruel não dar outras oportunidades. Enfim, a gente tem que pensar tanto na prática, na persistência da prática do crime, quanto na solução que se tem que dar para isso23.

A psicóloga Geia traz à entrevista um dos aspectos mais significativos das obras de

Foucault, a “opressão com o preso novo, que isso também é uma demonstração de poder”,

isto é, a questão do poder está entre as várias formas de relacionar-se. E não somente de cima

para baixo, ela está tanto nas relações mais simples quanto nas mais complexas e estruturadas.

A pena, uma forma de poder entre os sujeitos, só teria sentido se realmente servisse para uma

correção ou se o investimento que é feito nas prisões levasse a uma utilização econômica dos

“criminosos corrigidos”. Como a psicóloga observa, o método vingativo só está servindo para

a continuidade de uma situação imposta, não está auxiliando nem aos presos nem à sociedade.

A disciplina imposta nas prisões é proveitosa enquanto o indivíduo está preso, é uma

disciplina que causa grande inquietação e repressão inimaginável. Seu Dionísio uma vez me

contou que havia um preso que já tinha feito muitas fugas, participado de muitas rebeliões, até

que um dia, faltando pouco tempo para acabar sua pena, concederam-lhe o Semi-Aberto para

trabalhar fora da Penitenciária, ali no Show-Room. Quando ele saiu da Penitenciária e foi

andando pela Avenida da Agronômica, tinha a certeza de que tinha um policial apontando

uma arma para ele e qualquer passo em falso que ele pudesse dar, levaria um tiro. Foi

andando até o Show-Room quase sem respirar para não levantar suspeita. Chegou branco na

loja e relatou todos esses sentimentos para o Seu Dionísio e o Seu Odisseu. A disciplina que

ele recebeu foi a do medo e ela se aplica a alguns setores da Penitenciária. Esse preso acabou

23 Entrevista gravada.em dezembro de 2005.

Page 37: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

37

conhecendo uma madame no Show-Room e a, partir desse momento, houve sua maior

interação com a sociedade que antes o repudiava, pois de preso passou a ser amante.

Novamente remeto à Geia que tem algumas considerações que podem nos facilitar o

entendimento sobre as prisões e o que fazer com as prisões.

Na verdade a dificuldade maior é o próprio modelo prisional, que é um modelo que não procura melhor a vida das pessoas, mas só oprimi-la mais. Então, o próprio modelo já é uma dificuldade, porque não há nenhuma possibilidade de melhoria para as pessoas, não oferece nada, ou só oferece a contenção, o afastamento, o convívio compulsório, relações muito autoritárias. Então, isso tudo vai dificultando o trabalho do psicólogo. Acredito que, para qualquer profissional, as condições são muito difíceis. Se não bastasse isso, ainda não há muitos investimentos, não existe uma política clara, definida, de atenção à pessoa presa, objetivando que ela a cumpra sua pena e saia, retomando sua vida. Não existe uma política clara em relação a isso, então as pessoas acabam não tendo nenhuma outra possibilidade a não ser, depois que ingressam pela primeira vez, persistir na criminalidade, porque é, na verdade. a única forma de ser.

A penalidade seria então uma maneira de riscar limites de tolerância em relação as

classes oprimidas, “de dar terrenos a alguns, de fazer pressão sobre os outros, de excluir uma

parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles” (FOUCAULT, 199,

p.226).

Ainda em relação à disciplina, Foucault observa que esta, na prisão, seria mais

exarcerbadas, porque que as prisões são também uma continuação de nossa sociedade. “A

prisão continua, sobre aqueles que lhe são confiados, um trabalho começado fora dela e

exercido pela sociedade sobre cada um atráves de inúmeros mecanismos de disciplinas”

(FOUCAULT, 199, p.250). É este o aspecto que quero enfatizar, que temos algum vestígio de

um contato íntimo com a prisão. Ela revela modos de se viver próprios de nossa sociedade

ocidental e revela como não sabemos lidar com aqueles que diferem de nossas práticas

consolidadas e que por vezes consideramos naturais. O delinqüente não é um fora da lei, a lei

foi produzida justamente porque ele está dentro da lei.

Page 38: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

38

Para alcançar algumas intenções desta pesquisa, tive que entender e utilizar-me do

conceito de representação de Roger Chartier e Pierre Bourdieu24. Pois representar é tornar

presente algo que está ausente nas entrevistas, as pessoas retomam a referências, “objetos” e

“ações” que não estão no momento, como o crime, a família e até o modo como encaram a

prisão. Representar designa o modo pelo qual, em diferentes lugares e momentos, uma

determinada realidade é construída e pensada por diferentes grupos sociais. E para sobreviver

a essas designações, criam-se identidades sociais que resultaram de uma relação de força

entre as representações impostas por aqueles que têm o poder de classificar e de nomear, e,

dado isto, procedem acontecimentos e comportamentos que cada comunidade produz de si

mesma.

As representações de cada entrevistado também são utilizadas para aspirarem alguma

universalidade, o motivo que as pessoas cometem crimes, por exemplo, a fala é usada para

interesses individuais e de grupos, não são neutras. Mesmo porque, nos momentos da

entrevistas, os presos utilizavam de táticas e práticas para legitimar um projeto justificador de

algo que ele acredita que quero ouvir, ou que acredita que precisa ser passado para outros.

Quando um agente estava do lado, mesmo sem ser convidado, as táticas eram mais

detectáveis. Por exemplo, os presos pedem muitos favores e sem eu perguntar o que era

melhor para eles, o preso Noto, no meio da entrevista, aproveitou para fazer um pedido

indiscreto para o Gerente de Atividades Laboriais que estava ao lado:

Aqui poderia ser um celeiro né se o pessoal apostasse, se tivesse espaço físico, se tivesse condições financeiras e até pessoas pra cuidar, pessoas que pudessem se dispor a organizar, mas é difícil né, tudo é difícil, talvez não pra você, mas, né, é bem difícil o sistema.

Seu Dionísio talvez sentiu que seu trabalho não estava sendo muito apreciado e disse:

D. - Oh Noto, qual que é tua idéia então? O que mais precisa aqui? N. - Olha... D. - Porque ela tem várias oficinas de trabalho, eu também acho que devem ter cursos profissionalizantes, é óbvio não tem. N. - A gente precisa. D. - Apesar de não ser minha área, é mais a área social, da Atena. Eu acho que já deveria ter. N. - Eu acho que pra introduzir, pra iniciar esses cursos, precisa de espaço físico, precisava de gente capacitada, e mais agentes, precisa

24 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa [Portugal]: Difel, 1990 e BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Edusp, 1996.

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de uma, reestruturar a Penitenciária né, que ta, falta, falta muita coisa, eu entendo, eu compreendo, eu vejo também o que falta, não quero só exigir (Seu Dionísio ri), sei que precisa, é difícil, é bastante difícil pra vocês, eu acho que, mas se todos...

Os agentes também se utilizam de táticas e estratégias no dia a dia, algumas

instituídas, mas que podem ser uma opção pessoal. Como por exemplo, o uso de coletes e

roupa preta. Para Chartier, se o médicos possuíssem a verdadeira arte de curar, não teriam

necessidade de barretes quadrados (conheci somente uma agente no Presídio Feminino que

não usava “roupa” de agente, e para as presas ela era a mais afável e acessível). A roupa, por

mais simples que pareça ser, denota toda uma postura pessoal.

Assim deturpada, a representação transforma-se em máquina de fabrico de respeito e submissão, num instrumento que produz constrangimento interiorizado, que é necessário onde quer que falte o possível recurso a uma violência imediata (CHARTIER, 1990, p.22).

Os grupos existentes dentro da prisão praticam ações diárias na busca de uma

identidade, que significará uma posição. As representações querem marcar visivelmente sua

presença de grupo. Como o jeito de falar, os presos usam muitas gírias, falam de trás para

frente, ou inventam nomes. Pão, por exemplo, eles chamam de “marrocos” porque alguns

anos atrás, numa guerra entre morros, uma das gangues comprou armas do Marrocos, que

eram, de acordo com o preso Japeto, “horríveis, não atiravam nada”, e como o pão da prisão,

para eles, é ruim também, começaram a chamar de “marrocos” e “pegou”. Não é à toa que se

expressam de forma diferenciada, não querem que os agentes descubram o que estão falando.

Esse talvez seja o motivo pelo qual quase nenhum preso me recusou entrevista. Nas

entrevistas, eles também podem estar reconstruindo suas individualidades.

Pensar assim a individualidade nas variações históricas equivale não só a romper com o conceito de sujeito universal, mas também a inscrever num processo a longo prazo – caracterizado pela transformação do Estado e das relações entre os homens – as mutações das estruturas de personalidade (CHARTIER, 1990, p.25).

Sou bandido, traficante, preso, ex-preso ou simplesmente um homem? Instituições

passam pela vida deles incorporando-os numa rede complicada e móvel de fatos sociais, que

produzem e sofrem ações e reações diversas, mas que questionam seu vínculo à

criminalidade.

Page 40: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

40

Para Bourdieu, a linguagem e as representações são eficácias simbólicas de construção

da realidade. Segundo ele, a desorganização de um universo de representações, acompanha a

destruição de todo um mundo de relações sociais, do qual era um dos elementos

indispensáveis. Por isso, o diretor da Penitenciária, que é uma das linguagens autorizadas para

se falar sobre prisão, acredita que,

O preso não faz rebelião, somos nós, que atuamos no sistema, que as provocamos, às vezes por um tratamento injusto, às vezes por uma pancadaria desmedida, exagerada e descontrolada, às vezes por uma questão de tratamentos absolutamente injustos. Por exemplo, umas coisas simples: “Ô seu agente, eu queria ver se conseguia um médico pra mim” - o agente olha para o preso e diz: “ah, você não tem nada seu vagabundo, vai se esconder na cela”. Coisa dessa natureza, que às vezes acontece, e que pode ferver toda uma massa carcerária e iniciar um protesto paralisatório, um quebra-quebra, um motim, quando eles conseguem, às vezes, até uma rebelião com refém, entende?

Quando uma pessoa é presa, ao longo dos anos de cadeia, ela passa a se indetificar-se

com seu número, isto é, sua matrícula. Para muitos, no relacionamento que se faz por trás e

fora das grades, a pessoa é o 4568. Fora das grades, principalmente se o preso trabalha com a

parte da faxina, perto daqueles que são “livres”, muitas vezes não se pergunta seu nome,

chamam-no pela matrícula.

O preso percebe-se com novos interesses, ou com antigos, aos quais, lá fora, “ele não

dava valor”, como Proteu25 me relatou. A família, por exemplo, a visita desta, é a mais

comentada entre eles. Ela adquire um valor excepcional e não é possível avaliar se antes de

ser preso ela teria esse valor. A sensibilidade perante pessoas que lhes dão atenção pode

acarretar laços fortes de companheirismo ou até de paixão. O Eolo26, um presidiário, disse que

os presos apaixonam-se facilmente por suas professoras. Por isso elas saem todos os dias

carregando tantos presentes, artesanato e cartas que eles fazem para elas. Eolo também

adquiriu um hábito que não tinha antes de viver numa prisão, o da leitura. Ele lê pelo menos

dois livros numa semana. O psicólogo da Penitenciária, que está fazendo seu doutorado, têm

muito interesse pelo Eolo, e sempre está entrevistando ele. Realmente, Eolo tem muito a

contar. Passou pelo Carandiru um pouco antes do massacre de 1992, mas voltou para Santa

Catarina. “Já rodei muita cadeia nesse Brasil”. Ficou preso vinte e sete anos e quando saiu,

disse que usou suas calças pantalonas e tentou entrar no ônibus pela porta de trás. Como

25 Entrevista filmada em fevereiro de 2006. 26 Entrevista filmada em fevereiro de 2006.

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41

quebrou a condicional, estava na rua depois das nove horas da noite, o que é proibido, voltou

à prisão. Este ano ele entrou na “Lei dos Trinta” (no Brasil, uma pessoa só pode ficar presa

durante trinta anos), então vai sair de qualquer maneira.

Em Cabeça de Porco27, Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde, apresentam

um Brasil ao outro. O Brasil que eles apresentam também é um pouco do Brasil que eu

conheci, pois como a maioria dos presos cumpre pena por tráfico e assalto (dados do diretor

da Penitenciária de Florianópolis) e o foco da pesquisa desses três autores são o tráfico, a

favela e os jovens envolvidos nisso tudo, passei horas conversando com aqueles que

escaparam da morte e da cadeira de rodas28. A mesma idéia, de juntar esses Brasis, para a

construção de locais com menos crimes, teve o projeto Viva Rio, na década de 9029, para o

qual a solução não era afastar-se mais da favela, e sim reconhecê-la como um local da cidade.

A Penitenciária igualmente tem que ser percebida como um terreno de sociabilidades

importantes, para se entender nosso contexto atual e histórico e os indivíduos que ela abriga:

As instituições os condenam à morte simbólica e moral, na medida em que matam seu futuro, eliminando as chances de acolhimento, revalorização, mudança e recomeço. Foi dada a partida no círculo vicioso da violência e da intolerência. O desfecho é previsível; a profecia se cumprirá: reincidência. A carreira do crime é uma parceria entre a disposição de alguém para transgredir as normas da sociedade e a disposição da sociedade para não permitir que essa pessoa desista. As instituições públicas são cúmplices da criminalização ao encetarem esta dinâmica mórbida, lançando ao fogo do inferno carcerário-punitivo os grupos e indivíduos mais vulneráveis dos pontos de vista social, econômico, cultural e psicológico (SOARES, 2005, p.218 e 219).

Alguns homens ligados ao tráfico que esses três autores entrevistaram acreditam que a

sociedade também contribui quando está comprando a droga deles. Praticam um “crime”, mas

quem vai preso são os que não queremos reconhecer. Neste momento entramos em grandes

polêmicas, como quem é mais criminoso? O que mata durante um roubo ou o que despeja lixo

tóxico em um rio poluindo a água das pessoas e causando câncer nas mesmas? Mas os

estigmatizados, que Luiz Eduardo Soares acredita serem principalmente os “restos” da

27 SOARES, Luiz Eduardo; BILL, Mv; ATHAYDE, Celso. Cabeça de Porco. Rio de Janeiro - Rj: Objetiva, 2005. 28 No livro, MV Bill entrevista um jovem que diz que o destino deles são três caminhos: a prisão, a cadeira de rodas ou a morte. 29 VENTURA, Zuenir. Cidade partida. 3. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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sociedade, “sobras indigestas”, pobres, negros, do sexo masculino e jovens (SOARES, 2005,

p.188), pegarão uma pena por latrocínio e viverão pelo menos vinte e um anos encarcerados.

São muitos anos encarcerados, mas muitos deles já viviam em situações complicadas

na rua, ou na cidade mesmo, pois muitos estão ligados ao tráfico. Existem as excessões,

alguns presos por tráfico que entrevistei participavam de festas que aconteciam no antigo

Café Cancun, por exemplo. Já de acordo com os relatos que MV Bill e Celso Athayde

recolheram, muitos daqueles ligados ao crime só podiam ir em bailes localizados onde

moravam.

Para uma pessoa de classe média, se o filho estivesse traficando drogas seria

considerado que algo errado na educação dele ocorreu, ou que ele está viciado, doente, algo

do genêro, como a autora Teresa Pires do Rio Caldeira relata que acontece com os moradores

de Alphaville em Cidade de Muros30. Para o primeiro preso que entrevistei, que foi preso por

tráfico, era o trabalho dele. E ele não conseguia ver algo de errado nisso, pois ele disse que

“não obrigava ninguém a comprar”. Mas a pena serve somente para este último.

A pena não é a vingança porque o Estado não é um indivíduo envolvido, moral e emocionalmente, nos casos objeto de sua intervenção institucionalizada. Não é pedagógica, porque ninguém aprende sendo humilhado. E não é psicoterapêutica, porque o limite que a pena representa não corresponde a dinâmicas psicológicas voltadas para a valorização dos sujeitos individuais. A pena responde a necessidade que a sociedade tem de inibir comportamentos refratários ao pacto de convivência, cristalizado nas leis (segundo o modelo ideal). Ou seja, ela não tem nenhum valor para o sujeito sobre o qual se aplica, mas para os demais, comunicando o seguinte: às possíveis vítimas que não temam, pois a violência será freada pelo Estado (pela própria existência da punição); aos possíveis agressores, que não ousem violar as leis porque pagarão caro por isso (SOARES, 2005, p.220).

Ao longo de todo este capítulo, algumas considerações acerca de como eram as

prisões e como as pessoas se manifestavam no século XVIII e XIX a respeito dela foram

colocadas, baseandas em autores que muito pesquisaram sobre o assunto. As prisões foram

criadas nas sociedades disciplinares, onde os indíviduos passam, a cada época de sua vida, de

um espaço fechado a outro e cada um com suas leis. Primeiro a família, depois a escola,

30 CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2. ed. São Paulo: Edusp e Editora 34, 2003.

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depois a caserna, depois a fábrica, de vez em quando o hospital, e, se desobedecesse às leis,

iria para a instituição maior de confinamento – a prisão.

Foucault, em a História da Sexualidade I – A vontade de Saber31, vai apontando de

como a história passou das sociedades de soberania, cujos objetivos e funções eram

monopolizar, mais do que organizar, a produção, uma sociedade onde a maior preocupação

era decidir sobre a morte mais do que gerir a vida, para as disciplinares, que querem um poder

de causar a vida ou devolver à morte.

Um dos pólos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo humano como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidoes, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos - tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e contrôles reguladores: uma bio-política da população (FOUCAULT, 2005, p.131).

Sem dúvida, esse investimento, este bio-poder, como Foucault chama, foi necessário

ao capitalismo, que precisou de corpos controlados nos aparelhos de produção. Mas toda essa

nova moral não demarcou somente o desenvolvimento do capitalismo, teve algo de maior

amplitude: a entrada da vida na história. “Já não se trata de pôr a morte em ação no campo da

soberania, mas de distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade” (FOUCAULT,

2005, p.135). E por isso a lei estaria sendo mais usada como norma, com uma função

principalmente reguladora, e uma sociedade normalizadora é o resultado do efeito histórico de

uma tecnologia de poder centrada na vida, que cria formas de se aceitar um poder

essencialmente normalizador.

A pena de morte para Foucault, por exemplo, tem sido cada vez mais inconcebível e

contraditória, mesmo que ela ainda exista, ela é posta em debate. Isso, antes, não acontecia;

mas, por outro lado, há muitas pessoas morrendo em guerras. O investimento na vida fez com

que a pena de morte tenha se tornado mais rara e as guerras mais numerosas.

31 FOUCAULT, Michel, História da sexualidade I: a vontade de saber. 16. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2005.

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44

Daí o fato de que não se pôde mantê-la (a pena de morte) a não ser invocando, nem tanto a enormidade do crime quanto a mosntruosidade do criminoso, sua incorrigibilidade e a salvaguarda da sociedade. São mortos legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros (FOUCAULT, 2005, p. 130).

A pena de morte foi mencionada somente na entrevista com o Diretor da Penitenciária

e essas são suas reflexões:

Às vezes as pessoas me perguntam se eu sou a favor ou contra a pena de morte. Eu digo que eu sou absolutamente contra! Por quê? Porque só vão morrer as pessoas que não conseguem fazer uso da máquina administrativa para se defender, aquelas que não tem acesso à defesa. Eu costumo responder com a seguinte indagação: a pessoa que pica a mãe em trezentos e quarenta e dois pedaços e bota ela no freezer ou o político que desvia verba da merenda escolar, que é a única alimentação que trezentas crianças vão ter na escolinha lá do morro, o que é mais bárbaro? Tem gente que diz rapidamente que é o cara que pica a mãe. Será que é mesmo? Um político que não precisa de grana, que rouba por um motivo fútil, por uma questão de luxúria. Um cara que matou a mãe e picou deve ter no mínimo um desequilíbrio mental, ele não deve ser muito bom da cabeça. Fazer uma coisa dessa... Não deve haver uma razão, mas deve haver uma justificativa, ou uma loucura, ou sei lá, alguma coisa tem de grave aí. Mas normalmente um político que desvia uma verba de uma merenda escolar, ou coisa parecida, que usurpa, que detém aquilo indevidamente, em prejuízo da alimentação, do desenvolvimento físico, mental e social de uma escola inteira, também é grave, no meu ponto de vista, eu acho que os dois são gravíssimos. Mas quem vai morrer? O cara que matou a mãe. A autoridade que deixou trezentas pessoas morrendo a fome não vai morrer. Por isso que eu sou contra.

Todas essas falas de Foucault marcam o porquê do nascimento da prisão e sua

continuidade. Podemos pensar, a partir destas, questões que as prisões podem estar

caminhando neste momento para outro tipo de sociedade, as chamadas sociedades de

controle, como foi proposto por Deleuze, mas há de se fazer um estudo muito mais

aprofundado. Por enquanto, eu só teria algumas observações.

Para Deleuze, a fábrica vem sendo substituída pelas empresas, sendo que essas

introduzem o tempo todo uma rivalidade intolerante, uma ótima motivação que contrapõe os

indivíduos entre si. A formação permanente tende a substituir a escola e o controle contínuo,

os exames, “(...) nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o

serviço, sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação (...)”

31 DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

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(DELEUZE, 1992, p.221 e 222). Nas sociedades de controle o essencial não é mais a

assinatura, é uma senha e é o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre essas duas

sociedades.

O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente de nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado (DELEUZE, 1992, p.224).

Deleuze acredita que o controle não só terá que enfrentar a diluição das fronteiras, mas

também a explosão dos guetos e favelas.

Ponto importante para este trabalho, lê-se em Deleuze, que, “No regime das prisões: a

busca de penas “substitutivas”, ao menos, para a pequena delinqüência, e a utilização de

coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa certas horas” faz com que

percebamos que as penitenciárias estão ficando mais abertas, mas isso não quer dizer que a

situação se tornou mais amena.

Entretanto, isso deve ser mais aprofundado. Temos de estudar casos como o do agente

da Penitenciária de Florianópolis que em um só dia pegou quatro advogados com celulares

escondidos, para entregar a seus clientes. Ou como o caso de alguns presos saírem à noite do

Regime Semi-aberto para comprar drogas na rua e voltarem depois para a prisão (o Semi-

Aberto fica bem em frente à principal avenida da Agronômica). Outros presos contratam

prostitutas para trazer drogas e cartas que não passariam pela inspeção. Por último, o caso de

um preso que entrevistei, que tinha notebook e celular e, confirmando pelo menos o celular,

ele realmente chegou a me ligar um dia para contar que só faltava um mês para ele sair.

Essas histórias tem que ser mais bem investigadas, para saber se as sociedades

disciplinares ainda as comportam e ver se elas estão caminhando para uma sociedade de

controle, onde eles tem contato com o mundo por via principalmente tecnológica, e que

conseqüências isso estará trazendo.

Este capítulo, então, serviu para estabelecer um contato mais próximo com a

Penitenciária. Não porque temos esse dever. Mas para mostrar que ela não está sozinha na

cidade. Ela é parte dela, sendo que ela vem acompanhando mudanças que a cidade também

Page 46: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

46

absorve. A Penitenciária envolve muitas atitudes e pessoas que constroem histórias,

experiências, práticas e representações em torno dela e primordialmente dentro dela.

Page 47: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

47

2. OS SUJEITOS DO SISTEMA PRISIONAL E SUAS FALAS

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Antes de essas linhas mostrarem Vigiar e Punir de Foucault, queria relembrar o o

artigo deste autor intitulado O Sujeito e o Poder32, pois é nele que Foucault diz que seu

objetivo “foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres

humanos tornaram-se sujeitos” (FOUCAULT, 1995, p.231). Querendo mostrar que o alvo de

sua pesquisa não é o poder, mas sim o sujeito, e que o poder muitas vezes é parte de nossa

experiência. Foucault não tem a intenção de encontrar culpados ou inocentes, mas sim

mostrar que uma sociedade sem relações de poder só pode ser uma abstração.

Assim, para descobrir o que significa, na nossa sociedade, legalidade, devemos entrar

no campo da ilegalidade e investigar essas relações. No caso da Penitenciária então, que é o

meu alvo principal, observo que a “luta” nesta instituição é do preso contra o agente prisional

(e vice-versa) e não do preso contra o sistema, por mais que ele o culpe. Foucault chama isto

de “lutas imediatas” contra a instância de poder mais próxima, pois são elas que exercem a

ação sobre o indivíduo.

A proposta de Michel Foucault seria nesse caso,

A conclusão seria que o problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não consiste em tentar liberar o indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga. Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há vários séculos (FOUCAULT, 1995, p.239).

Com esta proposta, ele está demonstrando que o exercício do poder não é de maneira

simples uma relação entre companheiros individuais ou coletivos; “é um modo de ação de

alguns sobre outros” (FOUCAULT, 1995, p.242) e essas relações não são de maneira alguma

manifestações de um consenso.

Quando definimos o exercício do poder como um modo de ação sobre as ações dos outros, quando as caracterizamos pelo “governo” dos homens, uns pelos outros – no sentido mais extenso da palavra, incluimos um elemento importante: a liberdade. O poder só se exerce sobre “sujeitos livres”, enquanto “livres” – entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer. Não há relação de poder

32 FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L., RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

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onde as determinações estão saturadas – a escravidão não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado (trata-se então de uma relação física de coação) – mas apenas quando ele pode se deslocar e, no limite, escapar. Não há portanto, um confronto entre poder e liberdade, numa relação de exclusão (onde o poder se exerce, a liberdade desaparece); mas um jogo muito mais complexo: neste jogo, a liberdade aparecerá como condição de existência do poder (...) (FOUCAULT, 1995, p.244).

Analisar essas formas de poder dentro da Penitenciária de Florianópolis foi

extremamente complicado e sempre inconcluso, pois numa instituição como essa a

observação dos mecanismos operados tendem a assegurar sua própria conservação. Corro o

risco de decifrar, nas relações de poder intra-muros somente as funções reprodutoras.

Somente aquelas que podem ser apresentadas para o extra-muros.

Na análise de relações de poder, Foucault reconhece a presença de sujeitos de tipos

objetivos, que reproduzem a manutenção de privilégios, acúmulo de lucros etc., que são tão

citadas pelos outros autores que usarei neste capítulo. Porém, para ele não é só isso. Mas é

essencial diferenciar a maneira pela qual Foucault observa o poder e o próprio discurso desses

outros que utilizarei. Esses observam o poder, simplificando, de cima para baixo, mas são

autores excelentes para se obter maiores informações sobre prisão, cotidiano e discursos de

criminalidade. Contudo, a distinção tem que ser feita.

Em Vigiar e Punir, recolhe-se o conhecimento de que houve decerto um afrouxamento

da severidade penal, mas isso não denota uma maior humanização das prisões. Uma redução

de intensidade da ação punitiva porventura pode ter ocorrido. Mas certamente houve uma

mudança de objetivo, não é mais o corpo nos julgamentos, e sim, a alma, porque “(...) julgam-

se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos

de meio ambiente ou de hereditariedade” (FOUCAULT, 2000, p.19). Neste instante, punir é

descrever em que a pessoa consiste, no que ela fez, e alertar sobre o que ela será ou possa ser.

Uma das principais experiências vivenciadas na prisão é a da disciplina. A disciplina

teria como meta “fazer crescer ao mesmo tempo a docilidade e a utilidade de todos os

elementos do sistema”, “fixar é um dos primeiros objetivos da disciplina (...)” (FOUCAULT,

1994, p.180). Ela serve para que não ocorra nenhuma manifestação contra o poder que há na

prisão. Mas ela é discreta. E percebe-se nas falas dos presos. Como a do Hermes, citado

anteriormente:

Page 50: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

50

Sempre fui um preso que andei certinho né, com a malandragem lá dentro, com os agentes prisionais, nunca levei um tapa de ninguém, sempre tratei com respeito, então a gente sabe como é que é o sistema, então a gente não pode andar pro lado torto, ai quando não ta certo, procede o que? O sistema é um sistema fechado, rua muro, muro baixo, ta ai, posso ir embora, mas não quero.

Alguns presos que entrevistei falam que entraram no crime por causa de amizades,

“vagabundagem”, “pirraça”, mas mesmo que eles tenham entrado por isso, utilizam também,

quando falam dos outros presos, o discurso do problema de classe social oprimida e do vício

em drogas. Como o Aquiles33,

A. - O meu crime foi mais pirraça né, tinha minha família, tava tudo certo, não tinha necessidade né, foi por pirraça mesmo, roubei o carro do governador do Estado, eu trabalhava no Fórum. C. - Quem que era o governador? D. - Paulo Afonso, ele roubou o carro do governador Paulo Afonso. C. - Ele não sabia? D. - Sabia. C. - Mas sem ser o seu, dos outros colegas ai dentro? A. - É que na real, acho que não tem humildade, daí não sei quem não ta bem, emprego não dá, ai já entra na pilha do crime, fica viciado em droga, ai vai se perdendo.

Aquiles tinha vinte e seis anos quando o entrevistei. Nasceu aqui em Florianópolis,

começaria na Universidade Federal de Santa Catarina o curso de Letras Francês, mas foi

preso e nunca chegou a freqüentar as aulas. É solteiro e não tem filhos. Foi preso muito

jovem, pegou uma sentença de onze anos por ter roubado o carro do Governador Paulo

Afonso. Aquiles estabelece que o crime têm uma relação social. Contudo, em Cidade Partida,

de Zuenir Ventura34, o autor demonstra que na favela de Vigário Geral, no começo da década

de 90, haveria trinta mil habitantes e nem trezentos eram traficantes, o número destes não

atingia nem 1% da população. Para Alba Zaluar, em Cidadania e Violência, “continuar a

afirmar que a pobreza explica o crime significa também reforçar a opção preferencial pelos

pobres que a polícia e a Justiça brasileiras já fizeram há séculos”. Nesse caso, não é

apropriado afirmar que o crime é essencialmente social. É o nosso conceito de crime que faz

realmente com que somente as classes populares encham as cadeias. E ainda existe outra

questão: para ela não se tem conhecimento de que, com a grande quantidade de crimes

(seqüestros, roubos, tráfico de drogas) a pobreza diminua. Porque o tráfico movimenta

milhões, mas mesmo assim as estatísticas revelam que a “taxa de famílias abaixo da linha de

33 Entrevista gravada em maio de 2005 com a participação de Dionísio.

Page 51: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

51

pobreza no Estado do Rio de Janeiro aumentou consideravelmente no final da década de 80,

subindo de 22% em 1980 para cerca de 50% em 1991”.

Além disso, ela compara com pesquisas feitas em outros países,

Os níveis salariais no Sudeste da Ásia são incrivelmente baixos, os operários não têm direitos trabalhistas como os operários brasileiros e, no entanto, os níveis de crimes violentos não aumentaram como aqui (ZALUAR, 2000, p.56).

O Professor Moisés Nussenzveig (Copea/UFRJ), no mesmo livro, discorda da opinião

de Zaluar, propondo que a questão salarial é fundamental para se entender o que vem

acontecendo em relação a criminalidade no país.

Quando a gente olha a evolução do salário mínimo – a Folha de São Paulo de ontem tinha um gráfico demonstrando o poder aquisitivo, o valor aquisitivo do salário mínimo, mostrando que na década de 50, mais ou menos na época do governo Juscelino, ele tinha um poder aquisitivo cinco a seis vezes maior do que o atual e suficiente para uma família viver, (...) antes da ditadura militar, a massa salarial tinha uma proporção em relação ao PIB semelhante à da maioria dos países e que essa relação foi reduzida à metade, ao final da ditadura militar (NUSSENZVEIG, 2000, p.287).

Então, acontece aquela proveitosa discussão acadêmica,

“A.Z. - Mas a criminalidade não aumentou no período da ditadura, ela aumentou justamente no período da redemocratização. Como é que você explica isso? M.N. - Não, mas ai você tem a repressão policial, que é um fator... A.Z. - Ah! Bom. Então não é só o salário mínimo. M.N. - A questão é exatamente essa, quer dizer, tudo isso acumulado. E o que há de estudado de correlação entre criminalidade, digamos, na época do governo Juscelino e todos esses fatores salariais, por exemplo, comparando com a situação pós-ditadura?

A.Z. - Moisés, eu acho que eu não consegui convencê-lo. Eu falei o tempo todo dando exemplos, não apenas no Brasil, mas fora do Brasil também, que fazem com que a gente tenha que olhar com cautela essa visão puramente salarial. Em primeiro lugar, a justiça não se reduz a uma questão salarial”. (NUSSENZVEIG; ZALUAR, 2000, p.288)

O preso, Hipérion35, percebe outras formas de criminalidade. Está preso no Regime-

Fechado e percebi uma grande diferença do discurso deles em relação aos que estão no

34 VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 35 Entrevista gravada em setembro de 2005.

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alojamento especial, que trabalham e convivem muito mais com os funcionários. Vou colocar

uma grande parte da entrevista porque a considero muito boa.

C. - Por que você acha que entrou no crime, quais foram os motivos? H. - Condições financeiras e também uma infância muito ruim né, meus pais também se juntaram jovens, tiveram muitos filhos e então tiveram dificuldades de criar, tiveram dificuldade assim pá, e também falta de oportunidade também, falta de oportunidade lá fora né, e agora que a gente pô somos presidiário também, temos a ficha agora suja para conseguir emprego lá fora é também ruim, e também a minha infância foi muito sofrida eu tinha que vender amendoim, ai às vezes eu não conseguia o dinheiro, tinha que ficar na rua, então isso também afetou a minha vida, a minha infância, eu, isso também me prejudicou também né. C. - Você ta preso há quanto tempo? H. - Ah eu já to preso desde 99, mas já fui pra rua, sai, fui, fui, voltei.

Ele começa contando dificuldades financeiras e mesmo familiares para eu entender

porque ele teria entrado na criminalidade. Discursos que na maioria das vezes conhecemos,

mas que ele vai, ao longo da entrevista, mostrando que é muito mais complicado do que

somente a questão social. Porém, a reincidência, que é muito falada entre a maioria dos

autores que li, está marcada em sua fala, simbolizando a dificuldade e precariedade em que

esse sistema está consolidado.

C. - Por que você acha que... Você acha que aumentou a criminalidade em Florianópolis? H. - Olha, pelo que a gente ta vendo ai... Não era assim né, não era assim né, pô hoje tão tudo se matando por causa de qualquer coisa, antes não tinha isso ai, pô a criminalidade aumentou, meu Deus, não tem nem que comentar né. C. - Quais você acha que são os motivos? H. - Ah... Os motivos acho que é, também vem desses governos ai né, eles roubam, fazem um monte ai né com o dinheiro do povo, hoje em dia a senhora vai na, a senhora vai numa favela ai, a senhora vê a precariedade é coisa, como é que eu posso dizer para a senhora, estudo, cultura... C. - Lazer... (eu) H. - Saúde, isso ai eu não sei o que é isso daí! Em favela não se vê. Então eu acredita que isso também é oportunidade também para as pessoas que querem mudar, não tem? Hoje em dia isso é difícil isso aí, hoje em dia eles querem, não o pobre fica lá, jogado lá e não tão nem ai com a gente, então hoje em dia eles dão mais apoio por causa da sociedade né, pros grandes do que para os pequenos, os pequenos só vão sofrendo. (Hipérion)

Page 53: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

53

Primeiramente, Hipérion observa, sobre a criminalidade, uma relação de poder que

vem sendo mostrada pela mídia e que se disseminou rapidamente depois do documentário

Falcão – Meninos do Tráfico, “hoje tão tudo se matando por causa de qualquer coisa”, que

são os assassinatos em grande escala de pessoas ligadas principalmente ao tráfico. Depois, ele

analisa o poder que o governantes têm sobre as relações da população, que eles mesmos

“mandam” prender, enquanto praticam também atos considerados crimes perante a lei. Por

último, ele vai para a questão da favela, também muito debatida hoje, e descreve situações

que presenciou nela, como o fato de querermos tornar invisível um problema que tem

marcado a vida de muitos brasileiros.

C. - O que você acha que... H. - Obras, mais colégios, é, mais... Com certeza! Hoje em dia a gente vê na televisão saindo uns projetos ai, pô as vezes eu vejo na televisão saindo umas coisas boas ai, fico até feliz, né? Fico feliz porque já é uma inclinação que o Brasil já ta mais, ah mas falta muita coisa ainda, falta muita coisa. O que eu já perdi de amigo por causa de droga, por causa dessas coisas ai, porque hoje em dia é o seguinte, eu sou um cara, que é o seguinte... se eu... eu tenho um sonho de construir uma família, né? Ter um estudo, ter o que dar para os meus filhos, eu tenho um sonho assim, todos nós que estamos aqui, né? O parceiro mora aqui comigo, nós temos um sonho, aí a gente sai pra rua aí, a gente quer arrumar um emprego aí, né? Quer ter uma mulher, quer uns dois, três filhos, o que a gente pode dar com um salário mínimo de trezentos reais? O que a gente vai fazer com isso daí? Então, é o que eu tenho a dizer. É o que induz a gente a fazer criminalidade, que vai ver os filhos ali... Não eu, que não tenho filhos, graças a Deus, eu já não construo uma família já por causa da minha situação, não tem? Porque eu não tenho condições, então o que eu sofri, eu não quero dar isso para os meus filhos, entendeu? Ainda bem, graças a Deus eu tenho uma cabeça assim, né?, eu penso assim, né?

Hipérion já até sabia o que eu ia perguntar, isso mostra um pouco que ele está

acompanhando os discursos sobre criminalidade e o que fazer para que ela diminua. Por um

momento, ele acredita que as coisas estão melhores, mas então faz uso de sua memória e

perde as esperanças novamente.

Seria, neste caso, o discurso de malandro, o que entrou no crime por “pirraça”, uma

maneira de novamente se colocar como inferior e submisso, quando a disciplina, os discursos

e as práticas já foram concretizados? Pois quando pergunto da escolaridade, eles usam

expressões como se não tivessem capacidade para os estudos. Aqui estão alguns exemplos:

- Minha escolaridade é até a sétima.

Page 54: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

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- Você não quis mais estudar? - Ah, eu estudei aí, estudei, só que eu não passei, né? - Qual que é tua escolaridade? - Oitava. - Oitava série. E você chegou a estudar aqui na Penitenciária? - Não. Eu não quis estudar, tô com quarenta e oito anos, né? Não adianta... - Tua escolaridade? - Oitava série. - Por que parou? - Por quê? - Porque teve que trabalhar... ou... - Não, por vadiagem mesmo. - Tua escolaridade? - Até a oitava série incompleto. Foi incompleto, eu não completei, né? - E por quê? - Pela idade que eu tinha no tempo, ou foi pela vagabundagem mesmo, muita amizade, muita festa... Mas hoje me arrependo muito, muito mesmo, então, até os professores aqui já cansaram de cuidar para mim voltar a estudar, mas eu não tenho mais cabeça pra estudo hoje.

Não podemos encarar a criminalidade somente como um problema de “vadiagem”,

pois há uma idéia de que o estudo funciona para aqueles que já nasceram com “cabeça”, e que

por acaso não seriam eles. Para Alba Zaluar, em Cidadania e Violência, o problema da escola

é mais um entre muitos.

Então, nós temos ai os problemas relativos aos baixos salários, temos os problemas relativos à escola deteriorada, ao sistema de saúde falido, enfim, temos uma série de coisas, que são os problemas do país redemocratizado, cuja redemocratização não conseguiu ainda resolvê-los (ZALUAR, 2000, p.289). E temos principalmente, eu acho, o problema de uma polícia e de uma justiça que permaneceram intocadas. Pelo menos, algo tentou-se fazer nas escolas, algo tentou-se fazer na saúde, com a criação do SUS (...). Agora, eu gostaria ainda de frisar, para finalizar, que a Justiça e a polícia, no Brasil, continuaram intocadas,e leis continuam a funcionar exatamente como funcionavam durante o período militar (ZALUAR, 2000, p.290).

Existe uma maneira de abrir as portas para a desordem. A nossa sociedade cria suas

relações a partir de contratos. A lei é um deles. E se cada cidadão tem obrigações para

cumprir para com a sociedade, tem igualmente obrigações a cumprir para com cada cidadão.

Isso se dá porque a natureza de um contrato consiste em obrigar igualmente as duas partes

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55

contratantes, de acordo com o Direito, (BECCARIA, 1997, p.19), Se for violada uma dessas

determinações, o que estará atrás da porta não será generoso para quase ninguém.

Cesare Beccaria, do século XVIII, é considerado um clássico do Direito Penal, porque

foi uma das primeiras vozes a levantar-se contra a tradição jurídica e a legislação penal de seu

tempo, denunciando os julgamentos secretos, as torturas empregadas como meio de se obter a

prova do crime, a prática de confiscar bens do condenado. Uma de suas teses é a igualdade

perante a lei dos criminosos que cometem o mesmo delito. Suas idéias foram aplaudidas por

Voltaire, Diderot e Hume, entre outros, e sua obra exerceu influência decisiva na

reformulação da legislação vigente da época, estabelecendo os conceitos que se sucederam.

O secúlo em que Beccaria viveu foi marcado por importantes fatos, como a Revolução

Industrial, a Revolução Francesa, e que estão ligados ao Iluminismo, assim como ao

Colonialismo. Por isso, para a época, suas idéias foram extremamente revolucionárias. Época,

como observou Foucault, marcada pela passagem às sociedades disciplinares. Para o período

suas descobertas foram reveladoras, que contribuíram para a adoção de uma prática “mais

humana”, mas não menos violenta das prisões.

Para nós, algumas de suas contribuições não são mais estranhas. Beccaria acreditava

que, se houvesse uma educação mais apropriada à adaptação das pessoas à sociedade, por

exemplo, estudar as leis nas escolas, isso seria um meio de evitar o crime, pois a pessoa, antes

de cometê-lo, saberia qual seria a pena. E complementava:

Sejam públicos os julgamentos; sejam-no também as provas do crime; e a opinião, que é talvez a única amarra da sociedade, porá freio a violência e às paixões (BECCARIA, 1997, p.27).

Dostoievski, escritor russo do século XIX que, em 1849, foi preso e passou nove anos

na Sibéria, considerando-se que a Rússia deste momento vivia ainda em moldes feudalistas,

da mesma forma, olhava o crime como uma paixão em seu livro Crime e Castigo. E não

somente como paixão, mas acima de tudo como um ato de pessoas extremamente inteligentes

e até superiores às demais. Seu personagem principal de Crime e Castigo36 comete dois

homicídios, para experimentar esse ato, que ele considera supremo.

36 DOSTOIÉVSKI, Fiodor Mikhailovitc. Crime e Castigo. Editora Martin Claret. São Paulo – SP, 2004.

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56

Cada época tem suas influências, Dostoievski também se baseou numa visão sobre

religião e existencialismo, com um foco predominante no tema de atingir salvação por

sofrimento, sem deixar de comentar algumas questões do socialismo e niilismo.

Num certo ponto da história de Rodion Românovitch Raskólnikov, numa reunião,

abre-se um debate sobre o que seria o crime. O personagem que cometeu o homicídio

introduz para os outros o que os socialistas concebiam como crime: “(...) o crime é um

protesto contra a anormalidade do sistema social, nada mais” (DOSTOIEVSKI, 2004, p.261).

Ele então conta que não crê nesta idéia simplista, ele julga que os socialistas estão se

esquecendo da natureza humana e acreditam ingenuamente que a história é um monstro que

precisa evoluir para chegar a um sistema em que todos os problemas sociais estarão

resolvidos. Nesse ponto não haveria crimes, porque todos estariam satisfeitos. Mas o

personagem Raskólnikov olha para os outros e diz que os socialistas esquecem que “A alma

viva têm exigências, não obedece à mecânica, é desconfiada e retrógrada” (DOSTOIEVSKI,

2004, p.261).

Para Raskónikov haveria algumas pessoas que poderiam cometer crimes, pois para

eles não existiriam as leis. Ele dividia os homens em ordinários e extraordinários,

O homem extraordinário tem o direito, não oficialmente, mas por seu próprio alvedrio, de autorizar a sua consciência a passar por cima de certos obstáculos, no caso especial em que assim o exija a realização de seu propósito, o qual, às vezes, pode ser até útil ao gênero humano. (...) Por conseqüência, concluo que não somente todos os grandes homens, mas todos os que se elevam um pouco acima do nível comum, que são capazes de dizer alguma coisa de novo, devem, em razão de sua própria natureza, ser forçosamente criminosos – em maior ou menor grau evidentemente. (...) Simplesmente julgo que, no que tange à idéia central, o meu pensamento é justo, qual seja, a natureza divide os homens em duas categorias: uma inferior, a dos ordinários; espécie de matéria que tem por única missão reproduzir-se; e a outra, superior, compreendendo os homens que têm o dever de ouvir no seu meio uma palavra nova. (...) À primeira pertencem, na generalidade, os conservadores, os homens da ordem, que vivem na obediência e têm por esta grande apreço. Na minha opinião, são mesmo obrigados a obedecer, porque é essa a missão que o destino lhes impõe, e isso nada tem de humilhante para eles. O segundo grupo compõe-se exclusivamente de homens que transgridem a lei, os destruidores ou inclinados a sê-lo, a julgar por suas faculdades (DOSTOIEVSKI, 2004, p.264 e 265).

E conclui,

Page 57: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

57

De resto, não há motivos para nos inquietarmos a esse respeito: quase nunca a massa lhes reconhece esse direito, corta-lhes a cabeça ou os enforca (mais ou menos), e dessa maneira exerce a sua missão conservadora, até que, na geração seguinte, essa mesma massa erige estátuas a esses mesmos supliciados e os venera (mais ou menos) (DOSTOIEVSKI, 2004, p.266).

Mas os homens da sala observam que mesmo assim as pessoas que cometem os crimes

sofrem com a sua consciência. Ao longo do livro, Raskólnikov, que cometeu os crimes,

demonstra essa angústia, que veio a minar sua própria saúde. Todavia diz que “O sofrimento

acompanha sempre uma inteligência elevada e um coração profundo. Os homens

verdadeiramente grandes devem, parece-me, experimentar uma grande tristeza”

(DOSTOIEVSKI, 2004, p.270).

No mesmo período escrevia sobre esse sentimento de estranheza com sua própria

sociedade e as críticas enérgicas feitas a ela, Nietzsche, que era decididamente um crítico das

"idéias modernas", da vida e da cultura moderna. Para ele, os ideais modernos como

“democracia”, "socialismo", “igualitarismo”, entre outros, não eram senão expressões da

decadência do “tipo homem”. Talvez algumas questões colocadas por esses autores foram

simplesmente esquecidas ou usadas de maneiras desfavoráveis, mas hoje, quando alguns

escritores acreditam que estamos entrando na pós-modernidade, Dostoievski e Nietzsche

estão sendo estudados novamente.

Seja como for, a noção de crime implica, em nossa sociedade, a criação de um sistema

penal, o qual muitas vezes se mostra inadequado. Para o presidiário, Títio 37, por exemplo, a

justiça não julgou eficientemente o seu caso:

C. - Qual o crime de que te acusaram? T. - É... latrocínio, assassinato no caso. C. - Mas por furto né? T. - Isso... Isso é o que ta no papel né, mas a justiça entendeu que foi latrocínio, mas não foi, foi um homicídio, foi legítima defesa. Mas o problema foi que eu fugi com o carro da vítima. Né, primário, não sabia o que estava fazendo, então me enquadraram no latrocínio. C. - Mas porque... T. - Foi uma briga né? Daí antes que ele me desse um tiro eu me aligerei e infelizmente foi ele né. C. - Mas você tinha porte de arma? T. - Não, não, não, foi arma branca né, madeira. C. - E quantos anos você ta preso?

37 Entrevista gravada em agosto de 2005.

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58

T. - Dez anos e dois meses.

Uma observação instigante formulada por Hulsman e Celis, autores holandeses merece

aqui ser citada:

Quando, por exemplo, um grande supermercado é “vítima” de um furto, teremos uma questão penal. Mas, quando um assalariado é vítima de uma rescisão abusiva do contrato de trabalho, isto não passará de uma questão civil. Por acaso, não é este último ato o que tem conseqüências mais graves para a vida das pessoas? (HULSMAN; CELIS,1997,p.118).

Obviamente temos que ressaltar as diferenças sócio-econômicas e culturas brasileiras.

No entanto, estudar e conhecer outras formas de se viver pode ser, futuramente, uma grande

contribuição para nós. Estes autores contam que, numa pesquisa organizada pelo Instituto

Vera de New York, constatou-se o pouco interesse pessoal das vítimas em sustentar uma

acusação. E, quando são chamadas para depor, geralmente deixam de testemunhar

(HULSMAN; CELIS, 1997, p.118). Por isso, estabelecem que “O crescimento e a queda da

criminalidade são principalmente influenciadas pelo clima-político ideológico predominante

em um dado país e o resultado dos esforços em grupos de pressão” (HULSMAN; CELIS,

1997, p.144).

Acerca do “crime organizado” há uma passagem no livro Cidade Partida38,

interessantíssima, numa entrevista que o Zuenir Ventura fez com alguns traficantes de Vigário

Geral:

Quando se refere ao crime organizado, ele é taxativo: - Isso é uma besteira. É invenção da mídia e da polícia – garante, dizendo um pouco do que eu já ouvira inclusive do secretário de Polícia Civil Nilo Batista. - O que há é amizade, enturmação. Cada um ajuda o outro. Por exemplo: o Negão é capaz de reunir 300 homens armados. Mas quem consegue isso é ele, não é nenhuma organização (VENTURA, 1996, p.78).

O importante é retirar-se o foco do crime organizado e de aproximar-se das pessoas

simples, principalmente as das favelas e bairros pobres; não querendo caracterizar que é

somente nestes locais que acontecem crimes. Porque estas pessoas sofrem com algo que não

foi por elas desejado, o crime, sendo que os criminosos estão em minoria (em Vigário Geral,

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por exemplo, que era considerado um local perigoso, o número deles não atingia nem 1% da

população).

Visto que a organização social e cultural do sistema de referência dos órgãos como a polícia, os tribunais, a legislação, etc., não é mudada, o iô-iô do crescimento e decréscimo da criminalização continuará na ausência de qualquer justificativa racional (HULSMAN;CELIS, 1996, p.145).

Logo, esperar que o sistema penal acabe com a “criminalidade” é esperar

frustradamente. Perguntei para o Títio a opinião dele sobre os motivos pelos quais alguém

entraria na vida do crime; ele então disse:

T. - Eu chego em casa, a mulher e os filhos chorando com luz e água atrasada, corta tudo, vai à loucura, vai cometer o que? Assalto, vai assaltar aonde? A padaria, ai que ta o problema. O mais também é a falta de emprego. C. - Você conhece muita gente dos reeducandos que tenha sido presa por isso assim? Por roubar pra comer ou... T. - Tem uns amigos meus dentro ai. Mas eu to sem contato com eles um bom tempo, porque a gente ta aqui fora né? Então a gente procura não se envolver muito com lá pra dentro né. A gente já tava lá dentro a gente sofreu muito lá, então, quero seguir andar certinho aqui na frente, pra daqui pra frente só liberdade.

Como dito anteriormente, alguns presos que entrevistei utilizam o discurso sobre a

pobreza para falar sobre outros presos, mas não justificam o seu crime por ela. Porém, não

podemos crer que esse discurso seja totalmente espontâneo: na maioria das vezes em que são

humilhados por agentes e funcionários, são usadas palavras como “vagabundo”, “drogado”

etc. Esse discurso, depois, é contraditoriamente reproduzido pelos próprios detentos. Eu,

particularmente, nunca presenciei isto, pelo simples fato de que acredito que não fariam isso

na minha frente, mas retirei essas informações de entrevistas com os presos, principalmente,

as filmadas, pois os agentes quase nunca estavam do meu lado.

Seu Dionísio nasceu em Florianópolis, tem cinqüenta anos e sua entrevista teve

algumas falas importantes sobre o discurso acerca da criminalidade. Foi minha primeira

entrevista e minhas perguntas estavam muito mal formuladas, mas fui aprendendo ao longo

do tempo.

C. - E você acha que o crescimento da cidade de Florianópolis fez com que a criminalidade aumentasse? Ou você acha que sempre...

38 VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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D. - Sem dúvida nenhuma, isso eu posso dizer de certeza, porque eu me criei aqui. E antes não existia crime em Florianópolis. Era raro alguém que roubava, matava, inclusive eu me lembro o crime mais famoso, ficou mais de um mês em jornal, revista, televisão não tinha ainda... rádio. O crime houve assim que surgiu a Universidade em 1960. C. - O que aconteceu? D. - (riu) Foi encontrado um corpo sem a cabeça né. O cara era polícia militar, namorou a menina, ele era casado, ela engravidou e ele matou ela. Ai para não identificar ele cortou a cabeça dela e tirou as pontas dos dedos. C. - Nossa! E não foi encontrado... Só foi encontrado... D. - Foi.... Um mês depois o delegado Heloi, por uma sorte, depois eu explico, ele conseguiu achar o dedo dela. Por acaso, por acaso39.

A nostalgia do passado é bastante falada nas entrevistas. No questionário que apliquei

a dez funcionários, a maioria respondeu à pergunta: “Você preferia Florianópolis antes ou

agora?”, com a afirmativa: “Antes”.

C. - Mas você acha que aumentou a falta de oportunidades, emprego? D. - Não... Não... A droga. A droga aumentou a criminalidade. C. - O maior número de reeducandos é do tráfico né? D. - É tudo drogado. O crime, o crime, noventa e cinco por cento dos crimes, até mais um pouco, veio através da droga. C. - Mas você acha então que a maioria das pessoas presas poderia estar arrumando um emprego ou não sei... D. - Poderia. Porque a cidade ela cresceu também. Cresceu muito. Muito mesmo. Florianópolis cresceu. Eu nasci aqui. O centro de Florianópolis onde eu morei, não tem? Era mato, hoje se tu atravessar a rua e não olhar para o lado, passam por cima de ti. Então, cresceu, cresceu, cresceu. Ao meu ver, tem mais oportunidade de emprego hoje, do que naquela época. De certeza.

Nesse caso, a criminalidade não poderia estar associada somente a oportunidades de

emprego, ou à questão salarial, porque, para Seu Dionísio, a cidade cresceu e, junto,

cresceram as ofertas de trabalho. Mas ele trata de um assunto indispensável, o das drogas.

Muitos entrevistados se reportam a elas como o maior motivo do aumento da criminalidade.

Sobre isto, o preso Píton40 tem uma idéia bem pessimista, pois avalia que um dos maiores

problemas é a comercialização e uso do crack, a pedra.

C. - Porque a minha pesquisa é assim. Eu queria saber, eu e meu professor, meu orientador, por que aumentou a criminalidade em Florianópolis, em termos gerais. P. - É que em geral, ao meu ver, é por causa da pedra né.

39 Entrevista gravada em fevereiro de 2005. 40 Entrevista gravada em agosto de 2005.

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C. - Então, eu queria saber se é por causa do tráfico, ou alguma coisa assim, o que você acha? P. - Eu acho mesmo que é a pedra. Porque a cocaína é praticamente, um uso pessoal, os grandes usam, a sociedade toda usa, já a pedra não, a pedra já é mais noiada, o pessoal da periferia e é um vício que você não consegue largar, quer cada vez mais, mais, mais. Hoje em dia por qualquer pedrinha se mandar matar eles matam mesmo, o noiado só quer saber da pedra.

Para outros presidiários, o crescimento da cidade só pode resultar em aumento da

criminalidade, Aquiles, que é de Joinville, narrou que:

A. - Eu vou dizer a verdade para você, o acidente que aconteceu comigo foi em 92 sabe? Então vai fazer quase quinze anos que eu não boto o pé em Joinville, não sei como está minha cidade. Deve estar muito grande, e deve estar muito grande creio eu, para lá, é a violência. Agora há um tempo atrás até estourou uma rebelião lá na cadeia lá que eu fiquei sabendo ai né. Veio um monte pra cá também. Mas Joinville deve estar uma cidade grande, que é a maior cidade do Estado. Cidade industrial. E creio eu, que como todas as cidades grandes, a criminalidade ta grande né. C. - Mas você acha que é pela falta de emprego? A. - Olha, emprego, educação, a escol... como é que se diz? C. - A escolaridade? A. - Isso. Então isso tudo ai influi né.

Aquiles há mais de quinze anos não pisa em Joinville, mas possui uma televisão em

seu alojamento e assiste todos os dias ao programa do Hélio Costa41, entre outras notícias

televisivas. Aliás, de acordo com os presos, contraditoriamente, o maior ibope de Hélio Costa

está nas prisões: eles querem saber quem são os companheiros que estão chegando para se

juntar a eles.

O preso Hefesto, que tem 48 anos, três filhos que moram tão longe dele, em Belém do

Pará, nasceu em Porto Alegre, mas mora em Florianópolis desde 1983, sendo que é

aposentado pelo INSS. Trabalhava no SBT, quando aconteceu um acidente em seu braço que

o fez conseguir a aposentadoria por invalidez. Hefesto prestou vestibular para Educação

Física antes de ser preso, passou, mas não pode fazer, uma vez que a sentença de estelionato o

impediu. Ele também tem suas considerações sobre o aumento das cidades e criminalidade,

É, eu acho que o crescimento da cidade não acompanha o crescimento do povo, né? Eu digo assim, em questão de trabalho, de oportunidades, eu acho que não ta acompanhando, trabalho mesmo ta

41 Programa televisivo que mostra os crimes que aconteceram no dia, vai às delegacias, filma os presos e sempre dá conotações pejorativas, como “menos um vagabundo nas ruas”.

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ruim, né? Claro que quando a pessoa quer trabalhar ela trabalha, né? Eu digo assim, trabalho mesmo, com vínculos trabalhistas mesmo, eu acho que eles não tão acompanhando, né? É onde que ta vindo mais e mais criminalidade, a gente vê casos aí, né? De pessoas que não tiveram oportunidade, pessoas que se apavoram e se atiram no crime. Então, eu acho assim, quanto mais cresce, mais difícil fica42.

O homem que se tornou presidiário, chamado Hades43, e que atende por pai quando

quem está chamando são suas duas filhas, abre uma discussão mais genérica,

H. - A tendência é só aumentar, né? A tendência é só aumentar, o consumo capitalista, né? O Brasil não está conseguindo absorver as novas pessoas que estão surgindo pro trabalho, né? A tendência realmente é cada vez mais aumentar. C. - Mas por que você acha que aumenta? H. - É falta talvez de serviço, o Brasil ta crescendo, tem as pessoas surgindo ai para o mercado de trabalho e não tem serviço pra tantas pessoas. Nesse sentido, outros não têm oportunidade pra trabalhar, estudar ou sei lá. Ou moram em locais que realmente são convidativos pro crime como os morros, as favelas, isso tudo contribui. O local onde a pessoa trabalha, as amizades, isso é o que incentiva, o que contribui pra que as pessoas possam entrar por esse caminho, né? Conhecer, a curiosidade também, né? Porque todos têm de certa maneira ambição, outros têm ganância, que nem eu tinha, né? Isso, né, nós todos seres humanos, somos assim, uns tentam de uma forma errada como eu já tentei, que é pelo crime. Mas, o crime não compensa. C. - Então é a primeira vez que você foi preso? H. - É uma vez eu tive que, acho que cinco dias por porte ilegal de arma. Depois eu vim com esse crime de latrocínio. E conto com esses longos oito anos, dolorosos.

O crime, para Hades, é algo que abrange muitos fatores e que envolveu anos de

reflexão sobre si mesmo. Na prisão, tornou-se evangélico e hoje canta músicas religiosas na

hora do pátio. Num momento da entrevista, ele toca num assunto mais subjetivo:

C. - Antes de entrar na Penitenciária, você se considerava, e a sua família, classe média ou classe baixa? Ou você não pensava sobre isso? H. - Eu nunca olhei por esse lado, acredito que classe baixa. C. - Pelas condições de moradia? H. - Sim. É, a gente nunca morou em favela, a gente nunca teve, nunca morou em mansão, nem favela, mas, digamos numa casa razoável. D. - Oh Odair, teus pais deram condições de estudo para ti? H. - Sim, sim, até...

42 Entrevista gravada em setembro de 2005. 43 Entrevista gravada em setembro de 2005.

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D. - E você estudou até quando? H. - Não, olha só, aí entra um detalhe que talvez conforme eu falar, talvez eu até teje é jogando a responsabilidade pra eles, porque meus pais foram criado de uma maneira, né, em que o filho teria que ir para a escola, não se importava com o que ele tava aprendendo. A maneira que eles aprenderam foi essa e foi assim que eles me passaram. O meu pai era assim, comprava o livro e dizia: “Olha, estuda!”, ele não queria saber se eu estudava ou não estudava. E eu estudei, né?, até a oitava série, aí pulei na escola, o segundo grau eu conclui aqui. Né? Aprendi a estudar, a gostar de ler. C. - Ah! Aqui na Penitenciária? H. - Aqui na Penitenciária mesmo. D. - Então a Penitenciária já serviu para alguma coisa né? H. - Com certeza, com certeza né? D. - Segundo grau né? Prestasse vestibular já? H. - Já, já, já fiz vestibular, to tocando violão. C. - Ah! Você aprende violão? H. - É.

Para pensar sobre os discursos sobre criminalidade reportei-me a livros de pessoas que

nasceram e moraram na favela, como os do MV Bill, que me ajudaram a reformular melhor

meus pensamentos.

Hades coloca a influência dos pais em suas atitudes, questiona algo que também se

observa em Cabeça de Porco e Falcão – Meninos do Tráfico44. Isto abarca conflitos difíceis

de serem entendidos na maioria dos campos disciplinares. Mais tarde, depois de muitas horas

de conversa, Hades está mais solto e se prolonga no assunto:

C. - Você acha que você entrou no crime por quê? Por falta de serviço, como você disse? H. - Não, não, eu tinha, eu tava, pra mim, na minha situação, pela minha escolaridade eu tinha um emprego bom. Trabalhava na Docoll Metais, uma empresa bem, uma empresa que paga super bem em Joinville. C. - Ah é? H. - Super bem. E eu, foi amizades se você quer saber. Como eu entrei e porque eu entrei na vida do crime? C. - O que você pode falar sobre isso? H. - Tenho muita coisa pra falar, se é o que interessa você. D. - Não, pode, pode. C. - Qualquer coisa. D. - Tudo que puder.

Uma situação estranha para se fazer entrevistas é esta. Chega um momento dela em

que a pessoa começa a ter um pouco mais de intimidade. E, dependendo de como você lida

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com as pessoas, seus gestos e palavras, ela olha para você e sente a vontade de se abrir,

principalmente se estamos falando de presidiários, que pouco fazem uso da palavra no dia-a-

dia. Outro fato surpreendente, que vocês podem notar, é a presença de Seu Dionísio, e isso

não impede Hades de falar sobre seus vários crimes, inclusive os que não foram julgados.

Tenho que admitir que ele é uma exceção entre os agentes. Os presidiários se abrem muito

fácil com ele, pois cheguei a conversar com o Hades pessoalmente sem ninguém do meu lado

e o que me contou foi muito parecido com a entrevista que deu ao lado de Dionísio.

Obviamente, não esqueço a relação de poder, principalmente porque Hades chama o Dionísio

de “senhor” e a mim de “senhora”.

H. - Posso estender um pouco mais? C. - Pode, pode. D. - O microfone é todo teu! H. - Ah! Obrigado! Mas eu gostaria que tivesse uma banda já, mas, tudo bem. (rimos) H. - Não é a oportunidade, mas um dia eu vou chegar. O que me fez entrar foi amizades. Curiosidade, eu era novo, né? Eu era imaturo quando iniciei, até por certa ganância, não foi ambição, foi uma ganância da minha parte. Eu comecei a andar com pessoas que ganhavam dinheiro com uma certa facilidade que me chamava atenção. Poxa, o cara sempre legal, de carro legal, carro bom, carro novo. O cara fica enrolando, enrola isso, enrola aquilo, fui entrando em bar, fui indo, fui indo, e com isso eu fui entrando, fui esquecendo a família, a esposa, eu tinha na época uma filha, esqueci deles, dos meus pais, isso me afastou deles, eles não se afastaram de mim, mas eu me afastei deles, né? É isso, né? A vida do crime, conhecendo pessoas. Primeiro eu comecei comprando objetos do crime, 180, receptação, comecei comprando. Aí, depois, eu comecei a levar o pessoal. Aí, depois, eu comecei a furtar, depois eu comecei a levar o pessoal pra assaltar, mas eu não conseguia ficar no carro, aí comecei a assaltar. No outro, comecei a estourar cofre, aí depois com o outro comecei a estourar caixa eletrônico, aí por fim um assalto que me chamou bastante atenção quando iniciei, quando comecei a trabalhar sozinho. O pessoal me chamava, eu não entendia por que, o pessoal sempre me buscava: ô baixinho pra cá, ô baixinho pra lá... Eu não entendi por que eu era tão requisitado, fui ver, era a coragem, aquela adrenalina e eu sabia estourar cofre, assaltar. D. - Odair, você fazia esses assaltos, esses delitos, ficava limpo ou tu usava drogas?

Neste momento parecia que nos esquecemos. Deixamos de ser pesquisadora, agente e

preso. E a conversa estendeu-se, parece-me, para um rumo psicológico, sobre por que

44 BILL, MV; ATHAYDE, Celso. Falcão: meninos do tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

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estaríamos fazendo certas coisas, sobre a falta de conhecimento sobre nós mesmos. Quando

Seu Dionísio pergunta para Hades se ele “fazia limpo”, ele coloca na sentença uma falta de

crença sobre aquilo que Hades tinha coragem de fazer. Como se, na minha maneira e na dele

de viver, não fosse possível entender um crime dentro da sanidade. Neste ponto, entra a

história pouco mencionada pelos historiadores. A história que move impulsos humanos.

Pouco requisitada pelos historiadores, mas muito abraçada por outras áreas.

H. - Não, não, eu iniciei uma época a usar cocaína mas logo em seguida eu parei, fazia de cara limpa, às vezes eu tomava aqueles dois dedinhos de conhaque, aquele só pra acalmar o pulso, pra não atirar, graças a Deus nunca atirei em ninguém. E aí iniciei a assaltar, assaltar cofre, caixa eletrônico, até que um dia eu descobri da minha capacidade, até então eu não tinha me dado conta mesmo. Uma vez foram me buscar pra assaltar, até to sendo processado e acredito que eu vou ser condenado, porque eu assumi o assalto que fiz, não tinham provas nenhuma mas eu assumi, em São Francisco no mercado Barão. Fui eu e mais cinco pessoas, que eu não vou citar nomes porque se não vai gravar, eu assumi o delito, se vou pagar eu não sei, Deus é quem sabe. Esse assalto, acho que foram quatro ou cinco pessoas que estavam junto comigo, desses fui eu lá meter o guarda, peguei minha trinta e dois e fui lá. Depois entrei pra dentro, estourei uma porta, estourei um cofre de tampa lisa, aí tinha, a gente chama de, quando a tampa do cofre é mais pra dentro, a gente conhece como (toca o telefone, Seu Juca atende e com a conversa dele não dá para entender o Odair), é, ai eu fui lá, ai eu fui lá e fui lá no caminhão, estourei o (não entendi uma palavra) do caminhão, peguei uma caixa de (não entendi uma palavra), fui lá e estourei outro cofre, estourei os dois cofres, que me chamou atenção foi isso, eu meti o guarda, fui lá estourei um cofre, fui lá estourei outro cofre, estourei dois cofres, (novamente foi difícil entender somente uma palavra) o guarda, e os outros quatro não precisaram, eu fui lá, acho que levei bastante dinheiro, o a cara era agiota, levei documento dele pro cara, até hoje ta querendo me matar, escapei. Mas enfim, então foi aonde comecei a me descobrir, foi aonde comecei a estourar, assaltar, cofre, assalto, fiz vários bancos, não entra pra dentro pra assustar a população, mas agüentava mais era o malote, dinheiro em si, só dinheiro. D. - O dinheiro entrava fácil, saía fácil. H. - Pois é, tive carrete, caminhão, carros, motos novas enfim, bastante (a gravação está muito baixa, difícil entender umas duas ou três palavras), só que mesmo tendo essa certa facilidade pra aprender no crime, eu digo que não compensa.

Novamente me reporto à pergunta que Seu Dionísio fez a Hades, se ele se drogava

antes de cometer um crime. Foi muito comum, em alguns discursos que ouvi de presos e

funcionários, a referência à idéia de que o número de latrocínio tem aumentado porque as

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pessoas se drogam antes de ir cometer crimes, perdem “os sentidos” e acabam matando. O

Diretor apresenta da mesma forma sua opinião acrescentando outros fatores:

Você já deve ter recolhido esses dados , a pessoa não admite que foi a droga que a levou a fazer esta ou aquela ação. Então a gente vai por presunção, vai levantando dados, vai vendo que 75% da massa carcerária são compostos de pessoas que usaram drogas, perderam o controle do uso das drogas e passaram a cometer delitos para se manter no uso das drogas. Por quê? Porque o que ganham trabalhando não dá para comprar drogas, não é assim tão simples. Porque, se não trabalhar, o pai, a mãe, o irmão, não dão dinheiro para a droga. Então a pessoa, para se manter no uso das drogas, e como também já tem, de repente, combinado alguma coisa com um amigo que já estava intencionado a cometer um delito, que já tinha uma experiência anterior; também baseado nessa questão da adrenalina que é você ir lá e se envolver em um delito, seja em um furto, sabe isso, principalmente antes da maturidade mental, isso é muito comum, as pessoas se envolverem nesse tipo de desafio; aquele consumo de álcool na sexta-feira à noite ou no sábado, ou o uso do baseadinho uma vez na vida para ver qual é que é, fazer um crime; dirigir sem carteira, superar o limite de velocidade, são desafios que são estimulados ao cidadão comum... e a pessoa que está presa, ela é um cidadão comum até ser preso, entende? Ele era como eu e como você, pode ter tido um pouquinho a mais de descumprimento de regras, mas ele era muito parecido com a gente, garanto isso. Não muda muito. E o que acontece? Aí a pessoa se perdeu no controle do uso das drogas e acabou sendo presa durante um furto, durante um roubo; às vezes comprou um volume de drogas do tamanho de um celular, dividiu em dez pedaços e, para ter “grana” no fim-de-semana, resolveu vender nove partes aos amigos e segurar uma para ele. Das nove partes ele consegue reaver o que pagou pela droga, sobrou uma parte para ele e ainda sobrou mais um dinheirinho para ele passar o fim-de-semana. Quer dizer, está implantado o traficante, ele encontrou uma maneira de viver sem trabalhar e se divertir no fim-de-semana, entende? Então, dizer o crime não compensa é um chavão muito antigo que não é verdadeiro, que não é condizente com a realidade.

Diferentemente de Hades, um preso que acredita que o crime não compensa, o Diretor

acredita que compensa, por todas as razões que estão abaixo. Chega-se aqui a um paradoxo

que eu não sou capaz de analisar. O preso acha que o crime não compensa. Mas um

funcionário da Penitenciária acredita que as pessoas continuam cometendo crimes porque o

crime compensa. Em que medida isso pode ser analisado?

O crime é estimulante, é atraente e ele compensa sim. Ele é arriscadíssimo. Porque, não sei se tu conheces, a gente tem no Direito uma cadeira que se chama Criminologia. Temos dados de que, a cada

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cem delitos praticados, a cada cem, não te assustes, isso são dados científicos, a cada cem delitos praticados de apenas um é conhecido o autor e tem atribuída a responsabilidade penal. Ou seja, de cada cem delitos só de um o autor vai parar na cadeia e cumpre a pena, entende? Começa por cima, pelos delitos de colarinho branco, que a gente sabe que eles existem, mas ninguém nunca vai preso, o máximo que acontece são notícias como a do “mensalão”, que a gente tem vivido no momento. Eu ainda faço um desafio para ver se alguém vai preso. Depois vêm aqueles crimes dentro do próprio seio da família, existem aquelas violências, só para dizer os mais graves, que o pai ou o padrasto molestam o filho, a filha: o tio que molesta as sobrinhas, que ninguém leva ao conhecimento de ninguém, porque é vergonhoso. Depois nós começamos a cair nas valas dos comuns, os furtos a que a gente é submetido e que a gente nem sabe quem foi, a gente nem sequer vai à delegacia fazer ocorrência. Dos que vão, muitos a delegacia não consegue dar continuidade. Dos que a delegacia consegue dar continuidade, muitos não vão para o Ministério Público, eles resolvem arquivar por insuficiência de prova. Dos que eles mandam para o Ministério Público, muitos o Ministério Público pede o arquivamento, porque eles acham que o conjunto probatório é pouco consistente, é insuficiente. Dos que vão para o juiz, muitos acabam sendo absolvidos e muitos o juiz acaba absolvendo ele mesmo, entende? Por uma coisa daqui, dali, por uma questão de não preenchimento de uma formalidade legal, então o que acontece? Isso é um dado real, que muita gente comete crimes e pouca gente vai presa. Principalmente os que não conseguem fazer uso da máquina pública para se defender, sabe? Porque os que conseguem utilizar defensoria pública, os que conseguem ter um advogado, os que conseguem ter pessoas influentes no meio da administração pública, dificilmente eles acabam presos. É difícil, porque normalmente acabam tendo uma chance. Não que eu esteja dizendo que seja todo mundo, não. É que sempre se acaba encontrando uma maneira, se é a primeira vez que a pessoa cometeu um delito, sabe? Acaba-se encontrando um brecha legal, para que essa pessoa não cumpra a pena, aplica-se uma pena alternativa, sei lá, tem mil coisas, isso nos casos que chegam a uma decisão final mesmo, um decreto condenatório. A maioria não chega a isso, então, quer dizer...

A questão da falta de eficiência de todo sistema jurídico é muito ressaltada, entre

presos, funcionários e escritores como visto durante todas essas palavras. Mas em relação ao

uso de drogas no momento do crime, Julita Lemgruber, socióloga, que também tem um artigo

publicado em Cidadania e Violência, não raciocina desta maneira,

Bom, nós não temos nenhuma estatística que possa nos indicar o número de pessoas que cometem crimes porque estavam drogadas ou cometem crimes porque precisavam de recursos para comprar a droga. Infelizmente, não temos esse tipo de estatística (LEMGRUBER, 2000, p.298).

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Esta autora parte da concepção de que existe a “indústria do controle do crime”. E esta

representação é apontada muito convenientemente em Cidade de Muros – Crime, Segregação

e Cidadania em São Paulo, da antropóloga Teresa Pires do Rio Caldeira. No início do livro,

ela enfatiza que está escrevendo como intelectual, mas também como cidadã, querendo

intervir, criticar, construir e reformar as cidades. A autora narra que nas duas últimas décadas,

em cidades como São Paulo, Los Angeles, Johannesburgo, Buenos Aires, Budapeste, Cidade

do México e Miami, diferentes grupos sociais, especialmente das classes mais altas, têm

usado o medo da violência e do crime para justificar novas tecnologias de exclusão social

(CALDEIRA, 2003, p.9).

Esses processos incluem, por um lado, a democratização política e, por outro, a inflação a recessão econômica e a exaustão de um modelo de desenvolvimento baseado em nacionalismo, substituição de importações, protecionismo e na acentuada intervenção do Estado na economia. O universo do crime oferece imagens que permitem tanto expressar os sentimentos de perda e decadência social gerados por esses outros processos, quanto legitimar o tipo de reação que se vem adotando: segurança privada para garantir o isolamento, encerramento e distanciamento daqueles que são considerados perigosos (CALDEIRA, 2003, p.10).

Este processo de criminalização simbólica é tão marcante que até as próprias vítimas

dos estereótipos, os pobres, acabam por reproduzi-lo. Os discursos vão sendo moldados e se

transformando em um meio urbano que reforça a desigualdade, tornando-se um espaço não-

democrático e não-moderno. Evidente que em Florianópolis as proporções são menores, mas

não quer dizer que não ocorra. Alguns locais como Jurerê Internacional e a Praia Brava são

demarcantes da contradição social existente, se os compararmos a outros bairros ou morros

que são extremamente pobres.

À medida que o crime violento ganha grande divulgação, os abusos continuam e as

pessoas vão procurar outras formas de proteção, freqüentemente privadas ou até ilegais. Mas

o princípio que rege tanto a ação privada quanto a pública ainda é o vingativo. Para Caldeira,

os ricos espacialmente estão cada vez mais perto dos pobres, sendo que há somente um muro

altíssimo e eletrificado entre eles. Por isso alguns ricos estão se afastando dos centros e indo

para lugares construídos como residências/condomínios americanos.

Teresa Caldeira conta algumas histórias que aconteceram no condomínio Alphaville

de São Paulo, demonstrando a quantidade de crimes que acontece lá dentro cometidos pelos

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próprios moradores, e principalmente os filhos adolescentes dos moradores, como por

exemplo, tráfico e uso de drogas, assaltos ou invasões, e que são tratados lá mesmo, não como

caso de polícia, e sim, falta de disciplina, de amor e de carinho.

Em todo caso, o criminoso dito comum não é visto dessa mesma maneira. Antes de

cometer um crime, ele pôde ter um “bom histórico”, mas depois ele é somente um bandido.

Diferentemente da pessoa de classe média, que, como a autora mostra, é vista como rebelde,

que precisa de uma ajuda, geralmente psicológica. A pessoa comum foi algo antes de

cometer o crime, depois é outra. Essa divisão acaba reduzindo tudo à oposição entre o bem e

o mal para aqueles que são o alvo das prisões. O Diretor da Penitenciária contou sobre um

homem que, aos trinta e sete anos, cometeu seu primeiro delito, “por necessidade”.

Latrocínio. Tentou fugir, mas a polícia conseguiu prendê-lo. Então ele se pergunta: “Agora

ele é um preso, e toda sua vida antes dos trinta e sete? Não conta? Só contam quinze minutos

de sua vida?”.

Os quinze minutos de um ato completando agora quinze anos de prisão. Mas esse

cidadão não está sozinho. Pertence a uma rede de relações. E essas relações participam de

comunidades que muitas vezes são estigmatizadas, como as favelas. Temos que perceber que

essa estigmatização não é somente deste final de século XX e começo do XXI. Numa

conversa gravada com a psicóloga do Presídio Masculino, encontramos essas características,

C. – Numa palestra, o professor afirmou que na época do Império o inimigo do Estado era o escravo. Eles tinham medo das rebeliões e não sei que mais. Na ditadura foram pessoas da mesma classe social, só que pensavam diferente, havia os presos políticos Agora os inimigos eles estão acusando são as pessoas da favela, não é? (eu) G. - Isso, a gente retorna para o Império, ainda o modelo colonial né. C. - É. Isso que ele falou, ainda a pessoa negra que é pobre, que é... G. - Existe um estudo, As produções das classes perigosas, contando, do início do século do no Brasil até hoje, como é que se foi construindo quem são as classes perigosas. Nesse ponto a mídia tem um papel fundamental, porque as pessoas apropriam o mundo através da mídia. Porque não tem como se apropriar dele no fato real. A pessoa recebe uma idéia, uma visão de mundo, ela vai construindo uma visão de mundo, reconstrói uma visão de mundo a partir do setor das informações. Ele vai registrando justamente como é que se vai construindo a produção das classes perigosas e criando os antagonismos, é bem interessante. Ele faz um resgate histórico. E depois fala da subjetividade, como é que se produz um tipo de subjetividade também, mas é bem interessante para você que está lidando com tudo isso, é da Cecília Coimbra.

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Eu não consegui encontrar esse livro. Mas de novo vem à tona a participação da mídia,

que vai formar em alguns setores da população opiniões sobre criminalidade e sobre as

pessoas que cometem crimes. As quais podem acabar em situações dramáticas de preconceito

e dar continuidade a relações que não são satisfatórias e não respondem às necessidades de

nosso país.

C. - É uma antropóloga? G. - Psicóloga, ela já é uma senhora, está há muito tempo em tudo isso. Ela faz um recorte do tempo da Rio-92, em relação à mídia. Porque nesse período eles criaram um Fórum de afastamento das populações pobres, daí as noticias mudaram. Ela aponta algumas coisas bem interessantes ao registrar essa produção do crime, essa produção de quem é o perigoso. Mostra justamente como fizeram toda a urbanização do Rio de Janeiro no início do século 20, quando os sambistas, os negros, foram sendo retirados para as periferias, e como isso vem se repetindo a cada época.

O afastamento dessas populações pelo advento da modernização ocorreu aqui em

Florianópolis, também nos anos 20, levando-as para os morros.

Além disso, em Florianópolis, há falas muito importantes a respeito do crime, que

consideram que um dos motivos do aumento da criminalidade foi a vinda de “forasteiros”, no

caso paulistas e gaúchos, que trazem o “mal”, pois eles já “se criaram no mal”, considerando

suas cidades previamente como violentas.

O agente prisional Sófocles, no questionário que apliquei, mencionado antes, na

questão 3 – Você acha que a criminalidade aumentou em Florianópolis? Se sim, quais seriam

os motivos? – de um questionário que fiz, respondeu: “Muito. Tráfico de drogas e

forasteiros”. Também respondeu que nasceu aqui em Florianópolis e que sente que o

crescimento da cidade está desordenado e por essa razão preferia a cidade “antes”. O preso

Aristeu45, que nasceu em Santos, mas foi preso por tráfico de drogas aqui em Florianópolis

(na época, ele era surfista e estava aqui para competir em campeonatos de surfe), considera o

seguinte:

A. - Bom, eu acho que a maioria dos crimes que estão acontecendo aqui em Florianópolis é devida ao pessoal que vem de fora. Porque o pessoal daqui são hospitaleiros, né? Porque quando eu vim para cá eles me receberam super bem. Isso não faz muito tempo também. E de lá para cá, o pessoal ficou sabendo que a cidade é muito turística, né? E eles vieram a princípio, assim, roubar os turistas, o meu crime não

45 Entrevista gravada em abril de 2005.

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tem nada a ver com assalto. Então, o pessoal que veio, também tem muita gente de Porto Alegre, São Paulo, Rio, vieram para cá para meter assalto porque aqui, né? Agora que o policiamento ta intensivo, antes não tinha, foi onde eles abraçaram essa oportunidade. C. - Você acha então que o turismo ajudou para... A. - Não o turismo. Não, sim, o turismo claro. O turismo e o não policiamento, né?

Teresa Pires do Rio Caldeira entrevistou pessoas que julgam que o crime é uma

questão de autoridade fraca, seja por parte da família, mãe e pai, seja por parte de instituições

como o governo, a igreja, a escola, a polícia, o sistema judiciário. O mestre da marcenaria46

que entrevistei tem uma visão parecida,

C. - A cidade de Florianópolis cresceu muito. O Seu Dionísio, por exemplo, deve ter visto muito desse crescimento. Você acha que por isso aumentou a criminalidade? M. - Não. Eu não culpo o aumento da população. Eu não culpo o aumento da população, eu culpo o seguinte: a irresponsabilidade. Existe irresponsabilidade de alguém, não sei de onde. Se a pena fosse mais severa não teria tanto sentenciado como tem na cadeia. C. - É porque hoje tem muito mais... M. - É que a educação moderna, eu que fui educado de uma forma totalmente diferente dessa educação de hoje, que eu não aceito, filho meu eu educo naquela que eu fui educado, meu pai colocou cinco filhos homens nesse mundo, cinco homens, com H. (mestre) C. - Mas a que tipo de educação você está se referindo? M. - Rigidez. Tem que ser rígido pro guri, tem que ser rígido com a guria, o pai não tem moral, a mãe não tem moral, o negócio bagunça. Aí o doutor lá também não tem moral, liga televisão sai é aquela barbaridade de palhaçada que existe, é o que mais tem, é o juiz que dá um tiro na cabeça do vigilante, que moral que eles têm? C. - Então você acha que não houve nenhuma mudança no comportamento das pessoas, no cotidiano das pessoas de Florianópolis? M. - Lógico, quer dizer, a irresponsabilidade, ela ta em tudo, né, é por isso que aumentou o número de marginal, porque se a justiça fosse dura, dura, não teria esse negócio. Porque quando eu era guri, a gente fazia arte, tinha o famoso Coronel Trojilo Melo, ele pegava o guri, levava para o abrigo de menores, dormia uma noite no abrigo de menores, e o pai do guri ia dormi três noites no hospital, porque era uma farda de pau que o pai do guri tomava. C. - Ah ta. O pai do... M. - É. Pai, porque, apanhava o pai porque não soube educar. Teseu Muniz era mesma coisa, Coronel Belfort, uma camaçada de pau é o que está precisando é pau. Pau nas costas. Pode acreditar. D. - Está precisando é de educação.

46 Entrevista gravada em fevereiro de 2005.

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M. - A educação moderna não funciona. Para mim não funciona.

A fala do mestre da marcenaria remeteu-me à idéia dos direitos humanos dos presos,

que por vezes alguns setores da população consideram ser “privilégios de bandidos”

(CALDEIRA, 2003, p.159). Se esses setores consideram que estão “pegando leve” com os

presos, então para eles os direitos humanos seriam favorecimento para “quem não merece”.

Este discurso contra os direitos humanos tem várias matrizes, uma delas tenta colocar que a

pessoa que comete crimes não é humana, pois feriu a humanidade de outras. Porque, na

maioria das vezes, refere-se àqueles que cometeram homicídio, estupro, que são a minoria.

Caldeira acredita que a fala do crime faz o mesmo proliferar e, além disso, produz a

segregação social e espacial, abusos por parte de instituições como as da ordem, contestação

da cidadania e a própria violência. Reforça o autoritarismo, o preconceito, o racismo,

tornando as desigualdades sociais naturais. Para ela, tudo isso contrapõe-se às idéias

democráticas e ajuda a sustentar uma das sociedades mais desiguais do mundo. A psicóloga

Geia:

G. - Aqui em Santa Catarina há em torno de 8000 pessoas presas, no Brasil em torno de trezentos, quatrocentos mil pessoas presas, o que fazer com isso? Se continuar no mesmo modelo, só vai aumentar. Quando em vim para cá, em 93, Santa Catarina não tinha 3000 presos, em 2005 tem mais de 8000. Eu não sei se isso é índice de aumento de criminalidade, se é uma rigidez maior do controle das populações mais pobres. Porque são elas que vem para cá, por pequenos furtos, pequenas porções de droga, mas enfim, é o que tem acontecido. Parece-me que esta é uma realidade nacional, um aumento muito grande da população presa. C. - Quando a mídia diz que está aumentando a violência, eles estão se baseando na quantidade de pessoas que estão sendo presas, então isso não é uma realidade. G. - Eu não sei se eles estão se baseando no número das pessoas que estão sendo presas ou se as pessoas continuam sendo mais presas porque está sendo dito. Na verdade, não se sabe o que constrói a realidade. Que aumentou muito o número de pessoas presas, aumentou, um salto enorme no Estado de Santa Catarina. Se você vir o tamanho populacional, vai ver a migração, vai ver a precariedade das políticas públicas, as mais básicas. Acho que tudo isso tem a ver com esse aumento de pessoas presas e não só a violência. É claro que isso tudo vai acarretando violência nas relações. Enfim, eu acho que há uma série de coisas aí que tem a ver com o aumento do número de pessoas presas. Eu não sei exatamente se é o aumento da violência, acho que há outros fatores em questão. Agora, você pode fazer a leitura pela perspectiva que achar mais adequada. A mídia faz a leitura dela pelo aumento da violência, um acirramento da crueldade nas

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relações entre as pessoas, coisas desse tipo. E às vezes não presta muita atenção em outros fatores que têm acontecido, na questão política, houve até uma certa acomodação depois de tanto tempo de Ditadura, uma acomodação política, uma situação social mais intensa na população. Há uma série de fatores ...

De acordo com Caldeira, não há significações precisas sobre o aumento da violência,

mas ela enfatiza que, em relação às populações de origem africana, a experiência cultural e

histórica, explicaria melhor do que simplesmente reduzir a problemática à questão da pobreza

ou da renda. Igualmente, explicar somente pelas variáveis econômicas e de urbanização pode

servir, então, para colocar a culpa e o remédio para o governo.

Sugiro que o crescimento da violência não pode ser explicado nem pelas variáveis sócioeconômicas e de urbanização nem pelos gastos estatais em segurança pública apenas, mas está relacionado também a uma combinação de fatores socioculturais que culminam na deslegitimização do sistema judiciário como mediador de conflitos e na privatização de processos de vingança, tendências que só podem fazer a violência proliferar. Para explicar o aumento da violência, temos que entender o contexto sociocultural em que se dá apoio da população ao uso da violência como forma de punição e repressão ao crime, concepções do corpo que legitimam intervenções violentas, o status dos direitos individuais, a descrença no judiciário e sua capacidade de mediar conflitos, o padrão violento do desempenho da polícia e reações à consolidação do regime democrático (CALDEIRA, 2003, p.134).

Associar crime e pobreza é comum na nossa sociedade brasileira, marcada por

profundas desigualdades sociais. Mas só isto não explica tudo. Na verdade, se a desigualdade

é um fator importante, não é porque a pobreza está correlacionada com a criminalidade, mas

sim porque os pobres são usados na vitimização e criminalização. Na verdade, a autora se

aproxima muito de Hulsman quando diz que o sistema judiciário está posto em debate por não

estar sendo mais útil como era antes.

- Ta dizendo quando sai daqui, quem não tem QI, quem indica, quem não tem família, né? Chega lá fora e bate com um cara que já puxou cadeia, né? A pessoa já não vai bem vista, que as pessoas não vê, aqui a pessoa pode ter cometido um erro, mas quem que não comete um erro? Por exemplo, todo mundo comete crime todo dia, né? Só de você passar aqui na frente e atirar uma pedrinha para aqui dentro é um crime, ta no código penal. Mas para a sociedade, né? E tem gente que faz um monte47.

47 Entrevista com o preso que roubou o carro do Governador Paulo Afonso, citado anteriormente.

Page 74: QUEM ESTÁ ATRÁS DO MURO?

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Há ainda o discurso de que é muito caro manter os presos nas prisões, até porque eles

seriam irrecuperáveis. A população questiona o fato de que esse dinheiro poderia ser

distribuído em políticas sociais que visassem aos pobres, aos trabalhadores, a àqueles que não

cometeram nada de “mal”. O primeiro preso que filmei, quando obtivemos os aparelhos de

filmagem, falou para as câmeras: “Dizem que o governo gasta 1500 reais com cada preso,

mas nós não gastamos 400 disso daí”48.

Falar em criminalidade, crime e criminalização, em História, é percorrer discursos e

períodos muito diferentes, marcar as modificações, e se espantar que, de alguma maneira,

algumas de suas peças ainda ocorram em nosso século XXI.

Por isso fui em Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão49,

de Michel Foucault, para compreender um pouco do que as pessoas do século XVII relataram

sobre o crime que Pierre cometeu.

Pierre, como o próprio título do livro traz, matou sua mãe, irmã e irmão, e, logo

depois, fugiu e passou muito tempo vagando por uma floresta e algumas vilas em volta. Na

prisão, ele escreve uma carta para mostrar por que cometeu o crime, alegando que sua mãe era

muito má com seu pai e fazia com que ele ficasse extremamente triste e aborrecido. Matou

seus irmãos porque eles ficaram do lado de sua mãe.

Sem demora, um jornalista desta fase escreveu:

Não iremos tão longe, sem dúvida; contentamo-nos somente em lançar nossos escrúpulos na balança do juiz, deixando a cada um o sentimento de seu dever e a satisfação de sua consciência. Mas deploramos do fundo de nossa alma que seja preciso ainda recorrer ao braço do carrasco para curar as doenças, às vezes hereditárias, de indivíduos e de sociedades (FOUCAULT, 1991, p.151).

O jornalista discute o fato de que colocamos na mão de outra pessoa, teoricamente

especializada no assunto, o julgamento de outras pessoas e nos sentimos aliviados com isto.

Mas isso não suaviza o trabalho do carrasco, e nem ele, nem o juiz, conseguem fazer com

que estes crimes não se repitam.

48 Entrevista filmada em fevereiro de 2006. 49 Foucault, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: um caso de parricídio do século XIX. 5.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1991.

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Foucault, no começo do livro, mostra que quando se aplica essa relação de força no

caso de Pierre Rivière, tenta-se mostrar um efeito redutor, segundo o qual julgá-lo teria feito

com que as pessoas que não cometeram crimes, as que estavam ao redor, se tornassem as

vítimas. Outra declaração da época foi:

Aos humildes o silêncio. E nada mais justo se, sufocando por estar ai confinado, brota em um dentre eles este riso insensato, que diz o sentido à medida que zela e dilacera, esse riso perpétuo de Pierre Rivière nos anos que precedem o assassinato, esse riso que fala do intolerável. Do mesmo modo, a palavra trazida por este gesto e este texto é a da infelicidade (FOUCAULT, 1991, p.187).

Nesta declaração, a satisfação é tirada dos sentidos e é trazida a do desgosto de esse

acontecimento perdurar nos momentos que virão das pessoas. O desprazer de alguém que não

soube resistir.

Para outros depoimentos do período, Pierre sempre estava condenado a ser essa pessoa

que se revelou no crime, “O horizonte fechado do cerrado foi sempre o celeiro destas vidas

privadas de qualquer futuro, privadas de qualquer oportunidade. Diariamente agüentar o

impossível” (FOUCAULT, 1991, p.187). E privadas de conseguir viver e compartilhar as

experiências com os outros porque “(...) há muito tempo sabia que a vida deles todos era uma

longa coabitação com o inabitável” (FOUCAULT, 1991, p.188).

Naquele tempo, estavam sendo praticados muitos crimes parecidos com o de Rivière.

No livro, o autor observa que os discursos sobre esse fato eram acorrentados à causa da

opressão e à ordem do poder, como por exemplo:

Só a estes que são excluídos do jogo social ocorre a idéia de perguntar sobre os limites da natureza humana. (...) “Então só lhes resta a possibilidade de inverter os valores” pois “(...) como homem ele não é mais nada” (FOUCAULT, 1991, p.199).

E como esses excluídos não conseguem seu espaço no jogo social, eles usam de outros

caminhos, como relata um jornalista que acompanhou o caso de Pierre Riviére citado por

Michel Foucault: “Mesmo vociferante, esta voz é ouvida como os murmúrios de um

moribundo. Se tem qualquer coisa a dizer, o nativo é o único em que não se acredita sob

palavra. Para ser ouvido é preciso que ele mate.” (FOUCAULT, 1991, p.199).

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Para o período, então, o crime não era só movido por paixões e desinteresses pessoais,

era uma manifestação de poder daqueles que não conseguiam atingi-lo de outra maneira. E

outro fato, citado por último no livro, é que:

Na verdade, todas essas operações de discursos pelas quais desvirtuam a verdade dos fatos serviram mais ainda para que magistrados e médicos pudessem olhar-se num espelho sem sentir medo (FOUCAULT, 1991, p.201).

O medo de que também poderiam (poderíamos) ser capazes de fazer aquilo que

repudiamos, porque, para Foucault, o louco é aquele que não mais se possui (FOUCAULT,

1991, p.249). E seremos nós capazes de sempre nos possuir?

Partindo, depois disto, para ao século XX, saliento o questionamento sobre se aquelas

pessoas envolvidas no sistema prisional acreditam que a criminalidade aumentou ou não, e

quais seriam os motivos. Se eles respondem que ela aumentou, é normal que façam uma

retrospectiva de como era o “antes” e o “depois” da criminalidade. Zuenir Ventura, em

Cidade Partida, pesquisa em jornais do Rio de Janeiro das décadas de 50 e 60 do século XX,

e percebe que a violência que se acredita existir hoje, que escutamos em várias formas de

discursos, que seria a implantada nos morros, e que vem descendo para o asfalto, não era vista

assim naquela época. Ele mostra que os jornais publicavam muitos artigos sobre jovens de

classe média e alta que praticavam atos ditos cruéis, como, por exemplo, atear fogo em

mendigos e jogar pessoas pelas janelas de prédios altos. E depois, na década de 1990,

demonstra que a mídia vai transformando os atos que vem da favela em “horror”, “caos”,

“pânico”, “terror”, deixando de lado que menos de 1% dos moradores da favela fazem parte

de alguma ligação criminosa, criando uma situação que causa perturbação e distorce nosso

modo de viver e presenciar a cidade, como evidenciou Caldeira:

Nesse começo dos anos 90, a violência tinha propagado sua nocividade pelo organismo social como se fosse um contágio biológico, contaminando atitudes e mentalidades. Não se sabia mais o que era causa, efeito ou sintoma (VENTURA, 1997, p.138).

O “bandido” então vai adquirindo uma condição mais suspeita do que já tinha, e sua

imagem chega até nós desde cedo moldada pela polícia e pela mídia.

Por isso, na mesma década de 90, um movimento chamado Viva Rio surgiu para ver

esse bandido com nossos próprios olhos a fim de cada um formar sua opinião. Para este

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projeto, a solução passava pela aproximação e não pelo afastamento, das “duas cidades”.

Assim, Ventura decidiu que era preciso descobrir e entender as cidades contidas na “outra

cidade”,

Principalmente os dramas e tragédias: a exclusão, a violência cotidiana, as drogas, o tráfico, a miséria. A cidade só poderia ser uma quando conhecesse o “outro lado” – aquele que antes era percebido pelo carnaval e o samba e que agora o era pela violência. Temia-se que o morro deixasse de descer para divertir e prestar serviço e passasse a descer armado (VENTURA, 1997, p.140).

O preso Oceano também crê que é a partir da troca de experiência que podemos deixar

de lado alguns discursos que tem prejudicado o diálogo entre as duas cidades, para a

promoção de igualdade e liberdade. E, quanto a isto, a Penitenciária, que não deixa de ser

parte deste “outro lado”, pode ser bem proveitosa:

Queria dizer que tudo o que a mídia divulga sobre o sistema prisional, oitenta por cento é mentira, setenta por cento. Não é aquela bola de fogo que eles falam, ali de cem por cento que ta ali dentro, oito por cento entendesse errou, mas tem família, tem um objetivo, tem um sonho, uma vez entrou no crime e achou que seria mais fácil, que ia facilitar mais a estadia dele na terra, “pô, meu vizinho tem uma casa boa, os filhos todos nas melhores escolas, pô meu filho querendo aqui uma barra de chocolate um danoninho e não tem como eu dar”, procurou aquilo ali, então vai se perder, ai junta todo mundo igual, mas o sistema lá é bem diferente, só conhecendo mesmo as pessoas, porque o pessoal quando chega para conhecer o sistema, conhece a segurança, a direção, o por fora da cadeia, mas ele não vê o dia-a-dia da cadeia, senta e conversa com uma meia dúzia de sentenciado e faz uma pesquisa, senta numa mesa chama seis, sete presos entendesse? Pega lá um gabinete, uma sala, a do Seu Dionísio50, e conversa, vai lá com mais umas duas pessoas, vocês vão adquirir bastante conhecimento, você vai ver o que passa na cabeça de cada um, qual é o objetivo de cada um, o que ele pensa futuramente, se ele tem esperança.

De Pierre Rivière a Oceano, percebem-se muitas diferenças, analisadas ao longo do

texto, na concepção de crime. Diferenças essas que envolvem relações de poder em variados

ângulos e graus, durante os longos séculos. E somando todas essas informações, juntando com

o que Foucault apuradamente escreve em O Sujeito e o Poder, podemos concluir que:

As relações de poder se enraízam no conjunto da rede social. Isto não significa, contudo, que haja um princípio de poder, primeiro e

50 Modificação minha deste nome.

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fundamental, que domina até o menor elemento da sociedade; mas que há, a partir dessa possibilidade de ação sobre a ação dos outros (que é co-extensiva a toda relação social), múltiplas formas de disparidade individual, de objetivos, de determinada aplicação do poder sobre nós mesmos e sobre os outros, de institucionalização mais ou menos setorial ou global, organização mais ou menos refletida, que definem formas diferentes de poder. As formas e os lugares de “governo” dos homens uns pelos outros são múltiplos numa sociedade: superpõem-se, entrecruzam-se, limitam-se e anulam-se, em certos casos, e reforçam-se em outros (FOUCAULT, 1995, p.247).

Então, a prisão não está sozinha na sociedade e ela existe porque todos nós, de alguma

forma particular, permitimos sua permanência.

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3. HABITANTES DA CIDADE, MORADORES DA PRISÃO

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15/03/2005.

Uma e quinze na Penitenciária e o sol fazendo manchas nas mangas. Nada do

Dionísio. A indolência tocava os presidiários que trabalham na cozinha que estavam sentados

desviando dos raios ultravioletas. Ontem saiu uma notícia no jornal Diário Catarinense

dizendo que encontraram pés de maconha na Penitenciária51. Não há ainda culpados. O Seu

Dionísio chegou às duas horas, fez algumas ligações e me convidou para entrar no Regime

Fechado.

A primeira impressão deste Regime é a de que se pisa no Carandiru. Obviamente em

proporções menores. Um chão de mil histórias. Grades e mais grades e muitos portões. Na

entrada, de um lado, as mulheres esperando para ver seus filhos, maridos ou namorados. Não

havia naquele momento nenhum visitante homem na sala de visitas. Do outro lado, uma cela

para o preso que acabou de chegar na “casa” e do outro, a sala onde ficam os presos

esperando para ver suas visitas depois que passaram por uma revista em um quartinho com

uma pia minúscula. Depois desses cômodos, passa-se pelo meio do pátio da “Casa Velha”,

mas onde se passa não se toca nos presos, só nas grades. A Casa Velha é onde ficam alguns

presos em situações diferenciadas, presos que estão sob julgamento (na verdade a

penitenciária é para pessoas que já foram julgadas), ou que praticaram alguma infração dentro

do sistema penitenciário, tipo brigas, ou até que são “duques”, isto é, sentenciados por crimes

sexuais e por último, alguns que estão de castigo.

Mais além, passando por mais portões e grades, ainda escutando o particular barulho

que eles proporcionavam, chega-se a mais dois pátios, um de cada lado, frente a frente, cheios

de homens. Um sino no teto, que indica de tempo em tempo que é hora de voltar às vinte e

duas horas de cubículo.

51 GONÇALVES, Michel. Maconha cultivada em penitenciária da Capital. Diário Catarinense. Florianópolis, 15 mar. 2005, p. 5.

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Foto 1: Sino do Regime Fechado por Cristian52

Era a hora do pátio. Conversavam, jogavam futebol, alguns se colavam às grades,

observavam, chamavam a atenção, tiravam as camisas e caminhavam em ziguezague pelo

pequeno pátio.

Eram muitos homens. Muito papo. Algumas risadas. E mais um número de portões e

agentes penitenciários. No meio da galeria um “escritório” gradeado com um agente

penitenciário dentro. Parecia ele mesmo um preso.

Foto 2: Agente Prisional que trabalha dentro do Regime Fechado por Cristian

Entramos nas galerias, o Seu Dionísio disse que esta penitenciária era estilo americano

e realmente foi o que me lembrou. São cubículos fechados. Não dá para ver os presos lá

dentro. Subia-se por uma escada bem larga e grande no final da galeria.

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Foto 3: Ala Norte do Regime Fechado por Cristian

Seu Dionísio abre uma janelinha que dá para dentro do cubículo, onde cabem no

máximo os olhos e o nariz, invadindo toda a privacidade daqueles homens. Estava bagunçado

o cubículo e o preso parecia que tinha acabado de acordar. Ele arregalou os olhos.

Extremamente pequeno o cubículo. Na parede à frente da porta há uma janela gradeada. Ao

lado um beliche feito de pedra. Atrás deste, o “boi”, o vaso sanitário, em cima do boi, uma

mangueira, que é por onde sai a água exclusivamente fria.

Foto 4: Dentro de um cubículo da Casa Velha por Cristian

52 O Cristian é um agente penitenciário.

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83

Na cozinha do Fechado, havia dois presos fazendo a comida (porque na cozinha ligada

ao Alojamento Especial é que se faz à comida de todos os presos) e dois trabalhando numa

reforma. Seu Dionísio disse que são eles que podem colocar veneno ou calmante na comida,

porque a comida que eles fazem é só para os agentes, para assim todos fugirem ou para

estourar uma rebelião. E deu risada.

Na volta, passando novamente pelas grades, portões, sino, barulhos. Perto da saída do

Fechado, tinha um preso contorcendo-se todo e olhando para cima, como se seu nariz

estivesse sangrando. Estava com marca-passo nos tornozelos e algemas nas mãos, com os

braços nas costas. Saiu junto comigo e com o Dionísio. Era bem jovem, com grandes cílios e

sardas. Ficava mexendo as pernas. Lá fora o agente segurava-o pela cabeça, levando-o em

direção aos fundos da Penitenciária.

Essa pequena narração do primeiro dia que conheci o Regime Fechado conta um

pouco do que seria o cotidiano da Penitenciária de Florianópolis. O cotidiano para Michel de

Certeau “(...) se inventa com mil maneiras de caça não autorizada” (CERTEAU, 2003, P.38),

isto é, os dominados não são passivos ou dóceis. Em Certeau, temos a informação de que

através do viés do cotidiano é possível dar visibilidade aos excluídos, que silenciados por uma

estrutura social opressiva, elaboram e recriam formas próprias de sobrevivência, apropriando-

se de elementos da nossa sociedade.

Assim, há “maneiras de fazer” que corromperiam as disciplinas, como, por exemplo, o

falar, o ler, o fazer compras, maneiras complexas e por vezes indescritíveis que fariam com

que o “fraco” obtivesse pequenas vitórias sobre o mais forte. No caso da Penitenciária de

Florianópolis, presenciei um momento em que os presos poderiam insultar os agentes, sem

com isso desobedecer uma das regras da prisão e serem punidos: o jogo de futebol, onde

presos jogaram contra agentes. Na platéia, estava do meu lado um agente e, sentado do outro

lado, o Oceano, de quem contei a história antes. O Oceano depreciava as manobras

excêntricas do Diretor, por exemplo, assim como de outros agentes, e isso era permitido.

Nesse momento, eu podia também ficar conversando com os detentos e até rindo e

encostando neles sem que ninguém considerasse que eu estava sendo indisciplinada ou

desvirtuando a chance que eles me deram de fazer esse trabalho na Penitenciária. Só o fato do

meu trabalho ser dentro da prisão já era uma pequena forma de alterar o cotidiano,

principalmente se eu entrevistava um preso sozinha. Por vezes, quando acabava a entrevista,

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eu ficava perambulando no ambiente do preso. Na cozinha, por exemplo, eu ficava

procurando coisas para comer e beber, e deste modo encontrava coisas interessantes como

suco de beterraba, fazendo com que o preso procurasse me ensinar como era feito e por que

faziam esse suco. Entrevistar presos artistas sempre era fascinante também, era a chance de

eles mostrarem sua arte e de ela ser apreciada.

A proposta de Certeau envolvia,

(...) analisar as práticas microbianas, singulares e plurais, que um sistema urbanístico deveria administrar ou suprimir e que sobrevivem a seu perecimento; seguir o pulular desses procedimentos que, muito longe de ser controlados ou eliminados pela administração panóptica, se reforçaram em uma proliferação ilegitimada, desenvolvidos e insinuados nas redes de vigilância, combinados segundo táticas ilegíveis mas estáveis a tal ponto que constituem regulações cotidianas e criatividades sub-reptícias que ocultam somente graças aos dispositivos e aos discursos, hoje atravancados, da organização observadora (CERTEAU, 2003, p.175).

As criatividades envolvidas na Penitenciária de Florianópolis para afastar o

panoptismo implicam um contato com o mundo extra-muros. No depoimento do agente

Ictino53, retirei a informação de que em um só dia pegaram quatro advogados com celulares

que entregariam aos presos. Os agentes também descobriram que no Regime Semi-Aberto

alguns presos saem a noite, pulam o muro da Penitenciária, compram drogas e trazem para os

outros companheiros. Diz um dos agentes “que é para sustentar o vício”. Um dos presos,

como o agente em plantão me relatou, é filho de um agente penitenciário. O parentesco faz

com que os dois troquem informações sobre o que está acontecendo lá fora, o contato com o

mundo, desse preso, é muito maior que o dos outros, por exemplo. Esse homem foi preso por

que vendia drogas para sustentar o vício, tentou se matar na cadeia, na entrevista filmada ele

me mostra seu punho. Mas agora diz que está melhor.

Dois agentes que trabalham na parte administrativa descobriram que alguns presos

contratavam prostitutas para trazer drogas e cartas que provavelmente não passariam pela

censura. E por último, o primeiro preso que entrevistei (no presídio, não na Penitenciária)

mencionou que tinha um notebook no seu “quarto”, assim como um celular. E realmente,

chegou a me ligar, quando ainda estava preso, contando como estava sendo o seu dia-a-dia na

53 Conversa informal, Ictino me ligou para contar o ocorrido – março de 2006.

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prisão. O número do DDD que apareceu em meu celular no momento da ligação foi 54 e não

48, que é o de Florianópolis.

Houve uma vez em que tentei fazer um favor para um preso. Ele queria mandar um

projeto para o Programa do Gugu sobre a construção de oficinas de bolas voltadas para os

turistas e disse-me que esse projeto estaria com a mãe de um antigo companheiro de cubículo.

Liguei para a mulher, que me disse que estava com o filho dela. Liguei para o filho dela, que

falava bem baixinho, e que me explicou que não estava mais com ele, pois ele tinha sido

preso de novo; estava provavelmente em algum presídio, conversando comigo pelo celular.

Mas, para observar o cotidiano pelas palavras das pessoas que vivem e trabalham na

Penitenciária de Florianópolis, busquei em Paul Thompson, determinadas motivações para se

escrever história oral. Em A Voz do Passado, este autor afirma:

A história oral não é necessariamente um instrumento de mudança; isso depende do espírito com que seja utilizada. Não obstante, a história oral pode certamente ser um meio de transformar tanto o conteúdo como a finalidade da história. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria história e revelar novos campos de investigação; pode derrubar barreiras que existam entre professores e alunos, entre gerações, entre instituições educacionais e o mundo exterior (...)54

A história, para Paul Thompson, tem que ter uma finalidade social. Apaixonado pela

história oral, ele assevera que a fonte oral traria para a história uma amplitude muito maior

dos fatos, pois se recria a partir da realidade de uma multiplicidade de pontos de vista. Os

historiadores, além disso, sempre estariam fazendo julgamentos implícitos ou explícitos,

fazendo com que a finalidade social se efetivasse, porque o julgamento relaciona-se com o

presente.

Com as entrevistas, os historiadores passariam a entender de modo mais completo os

entrevistados, assim como estes entenderiam melhor o entrevistador. Indivíduos de diferentes

classes sociais partilhariam idéias, o que em outras ocasiões poderia nunca ocorrer. As

pessoas revelar-se-iam muito diferentes do que as leituras preliminares e não se ajustariam

facilmente aos tipos sociais que acreditamos existir. Nas entrevistas, no meu caso, adquiri

uma compreensão maior de valores pessoais que são totalmente diferentes dos meus, mas por

vezes, muito parecidos. Decididamente adquiri respeito pela coragem demonstrada por

54 THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

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homens que tiveram quando livres, e ainda têm agora na prisão, vidas muito menos

privilegiadas do que a minha.

Nesse sentido, “a história não deve apenas confortar; deve apresentar um desafio, e

uma compreensão que ajude no sentido da mudança” (THOMPSON, 1992, p.43). Além da

mudança na história em si, Thompson observa uma mudança na escrita histórica, cita alguns

autores que usaram de acontecimentos e lembranças pessoais para escrever e dar

autenticidade a seus trabalhos. Outro fato que merece consideração para os historiadores é

esta reflexão de Thompson:

(...) as comunicações mais importantes entre as pessoas não se fazem mais por meio de documentos (se é que algum dia se fizeram) mas sim oralmente, em contato direto ou por telefone. Em segundo lugar os registros perderam sua inocência (se é que algum dia tiveram), (...) (THOMPSON, 1992, p.82).

Thompson questiona o fato de os juízes e muitos pesquisadores atribuírem maior

credibilidade às evidências escritas, se na verdade elas não passam de manifestações orais

transpostas para o papel. Mas as fontes orais não devem ser tratadas da mesma forma que as

fontes escritas. Elas não podem perder o valor subjetivo que têm, nem o de testemunho. São

sempre testemunhos inacabados. Mesmo porque, o que chega a nós não é tanto a percepção

social, especificamente falando, das pessoas que estão presas, mas sim, o significado social,

porque sobre os encarcerados existem pressões, mesmo sem agentes prisionais do lado.

Por outro lado, para se trabalhar com história oral, também é necessário refletir um

pouco sobre o que se entende por memória. Em O tempo vivo da memória55 de Ecléa Bosi,

extraímos:

A memória oral, longe da uniteralidade para a qual tendem certas instituições, faz intervir pontos de vista contraditórios, pelo menos distintos entre eles, e aí se encontra a sua maior riqueza. Ela não pode atingir uma teoria da história nem pretender tal fato: ela ilustra o que chamamos hoje a História das Mentalidades, a História das Sensibilidades (BOSI, 2003, p.15).

A memória parte do presente e procura no passado apropriações com a função de

delimitar os pensamentos e ações, levando o sujeito a reproduzir comportamentos que já

deram certo. Mas há também, durante uma entrevista, os lapsos e incertezas das testemunhas,

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que não são considerações inadequadas. São autênticas. Uma entrevista sem erros, nem

pausas, nem esquecimentos, cai no risco de estar usando estereótipos.

Observei também que Ecléa Bosi estabelece que neste começo do século XXI a

exageração cultural do sucesso como um fim em si e sua exaltação obsessiva têm levado os

indivíduos a prezar menos as regras, “o que pode engendrar uma desmoralização das próprias

instituições” (BOSI, 2003, p.132). Para Bosi, o sistema que leva à exclusão de milhares de

trabalhadores faz visível uma correlação entre crime e pobreza, fazendo com que a

discrepância social torne-se um solo fértil para a superstição. E que “dessa deserção, que é o

egoísmo, nascem as dimensões da hierarquia, do prestígio e da humilhação” (BOSI, 2003,

p.142).

Na prisão, há um processo que se dá pelas exigências de socialização e que faz parte

de nosso adestramento cultural. Este processo é chamado pela autora de “memória-hábito”, a

memória que já se incorporou ao dia-a-dia.

O passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente, mas não de forma homogênea. De um lado, o corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se da memória-hábito, memória dos mecanismos motores. De outro lado, ocorrem lembranças independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituiriam autênticas ressurreições do passado (BOSI, 2004, p.48).

O preso, por exemplo, faz as tarefas diárias na Penitenciária, principalmente aqueles

que têm trabalho. Porém, como transcrito nas entrevistas, relatam que estão varrendo e

imaginando a liberdade, aquela que tinham antes ou aquela que está por vir. No entanto, não

pude deixar de perceber que existem alguns relatos muito parecidos entre os presos ou até

mesmo entre as pessoas do sistema carcerário.

Confesso que minhas primeiras entrevistas foram muito mal formuladas, fazendo com

que o entrevistando de vez em quando somente acenasse a cabeça ou concordasse, porque eu

não o estava deixando falar. Ou explicava demais o que eu pretendia com suas palavras.

Assim, a história que parece ser tão nossa, ou no caso, deles, não conseguia ser reinventada ao

55 BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.

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longo da entrevista. Mas com o tempo fui-me aperfeiçoando, e hoje estou quase chegando a

um nível mediano.

Quando falamos em cotidiano do sistema prisional não podemos esquecer dos

aspectos mais importantes, como o trabalho. O que os presos faziam antes de serem presos e

modificaram durante os anos na prisão, como, por exemplo, tornarem-se religiosos ou terem

mais apego pela família. Este último torna-se um dos elementos do cotidiano mais apreciado:

o dia da visita.

O trabalho é sempre citado pelos presos nas entrevistas, sendo algo que distrai para

eles não pensarem em “besteiras”, como fuga, fazer uma rebelião, ou como continuar a vida

do crime depois que terminar a condenação. Como um passatempo, ou como um trabalho a

que darão continuidade fora da prisão, como no caso do preso Zéfiro, que passou seis anos

bolando um projeto de oficinas de bolas voltado para o turismo, como citado anteriormente.

Mas é principalmente uma renda extra voltada para a família, que dependia do preso lá fora e

depende dele ainda hoje.

Na malharia, que é o trabalho dentro da Penitenciária onde o preso tem maiores

chances de ganhar um salário maior, já houve presos que ganharam até novecentos reais,

como no caso do ex-preso Calícrates, que trabalhou lá durante três anos dos onze que ficou

preso. Hoje ele trabalha para a Penitenciária consertando as máquinas que estragam. Mas

como ele tem a marca da prisão, toda vez que chega para trabalhar tem que passar pela

revista, diferentemente de todos os outros funcionários. Ou até visitantes, como o meu caso.

O trabalho dos presos também é citado pelos agentes, assim como seus próprios

trabalhos, como no caso de Dionísio,

C. - Qual é o seu dia-a-dia na penitenciária? O que você faz? Fale um pouco do seu trabalho. D. - Bom, a Gerência de Atividades Laborais ela foi criada para dar trabalho aos reeducandos. Então, a gente chega ao setor de trabalho, a primeira coisa é ver se as oficinas estão funcionando, se os mestres de serviço não faltaram. Se eles faltaram as oficinas não abrem. Ver o que precisa nas oficinas, ver o que os reeducandos estão precisando. Depois, vamos para a sala, eu e meus secretários. Aí, se precisar alguma coisa de material e não tem, a gente sai para comprar, para comprar para as oficinas. Por exemplo, a marcenaria trabalha com madeira, então a gente compra cola, prego, traz a lixa; a malharia trabalha com costura, tem de ver se tem que dar manutenção numa máquina.

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Na sala da Industrial, como é chamada a Gerência de Atividades Laboriais, tem um

cartaz escrito “Onde você vê objetos, a gente vê uma nova vida”. Para as pessoas que

trabalham nessa área o trabalho é essencial para o detento, por toda a discussão citada

anteriormente. Os presos têm uma relação diferenciada com o Seu Dionísio. Alguns pedem

favores como “Oh Seu Dionísio, traz uma bolinha para a gente aí”; outros fazem os pedidos

dos materiais, como ele mencionou na entrevista.

Toda vez que era o agente Dionísio quem me levava para fazer as entrevistas,

parávamos e conversávamos com um presidiário ou agente, e o Dionísio prometia tudo.

Trazendo muitos sorrisos para todos. Sempre queria me dar presentes e fazia alguns agrados,

como quando estávamos entrando na malharia, um preso gritou e pediu para ele dar um

presente para a Dona Afrodite, mestre da Malharia. Ele foi até o cubículo, pegou o porta-

retrato e entregou para Afrodite, que ficou muito contente.

Quando fomos à Colchoaria, ele reconheceu um preso, arregalou os olhos e perguntou

“O que você está fazendo aqui de novo?” Olhou para mim e comentou: “Acho que é a quinta

vez que ele volta”, com um ar de preocupação.

Perguntei então para ele:

C. - Você abriu alguma das oficinas? D. - Ah, sim. Eu abri a oficina de lanterna de ostras. Abri a oficina de conserto dos hidrômetros da Casan. Abri a oficina de rede esportiva que hoje, infelizmente, por questão política, está em São Pedro de Alcântara, mas ela começou aqui. Abri a oficina de colchoaria, alfaiataria e agora... Tem mais, Cristian? Agora estamos abrindo a oficina de confecção de medalhas, troféus, com estás vendo. E estou abrindo a oficina de costura de bola. Uma oficina só para costurar bolas. Nós vamos costurar bola de vôlei e fazer bola de basquetebol.

A questão do trabalho associado à ressocialização é muito presente na fala de Seu

Dionísio. Mas ele afirma que,

D. - O que eu gosto é do meu trabalho é que a gente dá oportunidade aos reeducandos. Dá uma esperança de vida lá fora. Na ressocialização deles, entendeu? Isso é gratificante. É raro, mas acontece. Vamos botar assim, de cada cem, um encontra o caminho certo. C. - É, como você falou há bastante reincidência. D. - É, tem muita reincidência. Mas para a gente é muito importante pelo menos uma pessoa de cada cem tomar o caminho certo, já é uma vitória. Porque não é fácil. Na verdade o crime já vem de berço,

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educação, ta, ta, ta, então a coisa é muito densa. E o que eu não gosto é que a gente quer dar mais trabalho para o preso e a segurança atrapalha um pouco, entendesse?

Em todo caso, o preso Oceano, que tem uma relação de conversa e até algumas

caronas do Show Room à Penitenciária, ou que pega a chave do carro do agente para apanhar

algo que lhe é pedido, discorda um pouco de Dionísio. Ele acha que não é só o trabalho que

vai fazer uma pessoa sair da criminalidade, que há complexidades muito maiores nessa

relação. E começa dizendo:

C. - E o que você poderia falar da prisão? É um sistema que recupera? O trabalho e a escola ajudam? Você chegou a estudar? O. - No meu modo de pensar, o sistema nunca vai mudar, pode piorar, quem tem que mudar é quem ta lá dentro, cai na realidade que isso daqui não é um ambiente adequado para o cara sobreviver. O cara não vive, o cara vegeta, agora o sistema mudar? Nunca vai mudar.

Depois, ele continua mostrando quais seriam algumas das dificuldades. Essas fazem o

trabalho, muitas vezes, não ser o principal motivo que faria com que um preso suportasse o

sistema prisional. Contudo, Oceano, fora da gravação, fala para mim, sem ninguém do lado,

que o trabalho dele ali no Show Room, fazer faxina, cortar grama, vender os móveis, ajudou-o

muito a ter um maior contato com a direção da Penitenciária e a parar de pensar em

“besteira”. Mas acrescenta:

O. - Passa dificuldade nas datas, como é que se diz, comemorativas, ai se lembra como, eu não tenho mãe, mãe, que tem aqueles presos com visita, vem com uma visita, vem contente, vem comendo um bolo, e eu to aqui, a vida não ta legal. D. - Ah mas esses são poucos. O. - Não é não, é cinqüenta por cento do sistema. D. - Não é cinqüenta por cento. O. - Olha! D. - Cinqüenta por cento que não tem visita? Vamos dizer assim, três por cento que não tem família. O. - Dentro da Penitenciária tem mais de trinta por cento que não tem mais família ou vamos dizer aqueles que têm família mas foram abandonados. D. - Ah! Abandonados, agora sim.

A família, novamente, como questão central das relações entre os presidiários. Mas

também é alvo de muitas controvérsias, porque não se têm dados relevantes de quantos presos

recebem visitas e quantos “perdem” ao longo dos anos a família, dada sua condição de

encarcerado. E nas entrevistas é possível notar que os presos consideram que sem a família

eles fica sem um apoio mais seguro.

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O. - Daí, o que o sistema vai ajudar ele? Na hora que ele sair? Porque ele, dentro do sistema, pode ter uma boa proteção física, ter alimentação, saúde à hora que ele precisar, atendimento psicológico à hora que ele precisar. Aqui é aquela rotina do dia-a-dia, aí vai pra rua... D. - Na verdade, é o Estado que tem que dar um amparo lá fora. O. - Vai pra rua não tem oportunidade, não tem espaço, a decepção é grande, bem grande. C. - É, há um programa no Rio de Janeiro em que as pessoas saem e já têm onde trabalhar, mas o problema é que não é só o trabalho, não é? São essas coisas doloridas. – eu me arriscando com meus palpites fora de hora. O. - É! Eles acham que é só do trabalho que vive a pessoa!

Nas entrevistas, é quase impossível fugir do assunto: o que fazer para melhorar o

sistema. O preso, na maioria das vezes, chega, sem ter noção do que deva ser resolvido ou

não, Mas faz parte das palavras dessas pessoas, que convivem diariamente com algo que

sentem ter grandes problemas, imaginar um lugar diferente, é parte do cotidiano também. A

discussão, da mesma forma, abrange o amparo que os presos têm na cadeia (debatido no

capítulo 2): comida nunca falta, sempre chega na hora certa, pode ver a família, tem trabalho

(mas pelos dados da gerência, somente 30% tem trabalho), atendimento psicólogo, médico,

mesmo que insuficiente, e aparece aqui novamente. E que as pessoas deveriam ter esses

“cuidados” depois que saem da prisão, porque sozinhas elas não conseguem sobreviver. O

Diretor da Penitenciária:

O que você acha que um preso vai conseguir lá fora? Você acha que ele vai conseguir uma vaga de gari por lá? Não vai. De gari, uma posição de que muitas vezes as pessoas caçoam, é um lixo das funções, entende? Imagine um emprego digno, bem remunerado. Imagine o preso: “Olha, eu sou um ex-apenado e agora eu tô montando o meu negócio aqui, então eu vim aqui vender o meu negócio”. Resposta: “Olha, você não me leve a mal, mas dá licença, eu tô ocupado, volta semana que vem” - e assim vai. Ou seja, o que ele vai fazer? Não adianta, as portas para ele estão fechadas. Só vai encontrar uma maneira de abrir as portas, eu acho, com um revólver na mão. Aí a porta abre mesmo, consegue dar um remedinho para o filho, consegue dar uma assistência à família. Aí fica fácil, é só colocar um revólver na cabeça que gente ajuda logo, logo, ai é moleza. Quer dizer, a gente educa, eu acredito que eles queiram aprender, mas o meio social não deixa. Eles, os presos, não querem muito e nós também contribuímos para que eles não se afastem da criminalidade. Então há três fatores: o preso não querer, o sistema prisional não está muito preparado para ele e, terceiro, a sociedade não permite que ele se afaste do crime. É melhor para ela dizer não, é melhor ter um criminoso delinqüindo do que liberto trabalhando. Não

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permitir a ele uma facilidade para ele concorrer com a gente. Nossa realidade hoje... Pode ser bem equivocada, mas é esta visão que eu tenho da criminalidade e do sistema prisional.

Para Celso Athayde, em Cabeça de Porco, é impossível continuar jogando esses

jovens de volta à criminalidade, lembrando que o ato de “jogá-los” não é provido de uma

única relação de poder, e sim de relações que se entrecruzam. Se pensarmos nos grupos com

que este livro trabalha, vamos nos deparar com uma situação diária de mortes, nem sempre

lógica, mas constantemente sangrenta. Porque pensando só no fator social, o Brasil, seus

cidadãos, sendo pesquisadores, políticos ou de qualquer outra profissão, até hoje vêm falando

sem pudores das desigualdades sócio-econômicas, por vezes não mencionando a cor, pois ela

é o não-dito, assim como o gênero foi durante muito tempo. E quando, por exemplo, morre

um traficante, que é alguém do meio não-dito, a mídia faz escárnio da situação, pois não

compreende como tantas pessoas podem ir a um funeral de um “homem cruel” (SOARES,

2005, p.89). Assim, enganamos nosso cotidiano ao pensar que os homens cruéis estão presos,

e quando ele sai já deixamos traçada sua história, munimos eles de culpa por “gastarem

dinheiro público”, mas as alternativas constantemente são colocadas embaixo da pilha de

deveres. O Diretor:

Agora, vamos pensar: assistência médica, psicológica, odontológica, educacional, cursos de qualificação, segurança, sei lá, assistência à família, tudo isso vai estar faltando, ou seja, o preso não foi educado para voltar a esse meio social, ele foi educado e preparado para ficar no crime, para ganhar tudo de mão beijada. Não é uma crítica, é assim aqui em Florianópolis, é assim em Santa Catarina, é assim no Brasil, é assim no mundo. Tudo bem, ele precisa de uma atenção especial, porque se a gente não der uma atenção especial a gente vai forçá-lo a permanecer na mata, mas o que acontece? Essa questão de a gente estar passando a mão na cabeça dele não é o remédio. A solução é fazer ele se sentir responsável, como está nos preceitos legais; ele deve ressarcir a vítima e deva manter-se. Que ele deveria, quer queira, quer não, dedicar-se ao trabalho, e ser remunerado com dignidade. Ele deve pagar pela sua alimentação, pagar pelo vestuário que ele recebe, pouquinho, mas pagar, pela assistência jurídica que ele recebe, pagar assistência médica, odontológica, psicológica, psiquiátrica. Porque dar tudo assim de mão beijada me parece dizer: “Olha, queridinho, cometas um crime que eu vou te tratar, se não cometeres não terás essa chance”. Quer dizer, em síntese é isso que a gente faz.

E o tempo de uma vida não vai servir como requisito de um currículo. Agora não há

mais chances para eles. Seu cotidiano de ameaça na prisão volta, pela memória e experiência

para a rua. Principalmente na hora de ele competir, por exemplo, comigo. O Diretor continua:

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Quando a gente devolve o preso para o meio social, a pergunta é: “Tu acreditas que ele sai daqui recuperado?” Olha, vontade eles têm, mas nós não deixamos. Se ele for procurar emprego, tem uma fila lá. Veja o seu caso, Cíntia, você está se formando, está nas últimas fases, você já tem um emprego garantido? Você vai ganhar uma boa remuneração? Mesmo depois de passar esses dezesseis anos estudando, oito no ensino fundamental, três no médio, mais cinco na faculdade, você já tem essa estrutura, a sua disposição, que o preso tem aqui, com emprego, segurança, moradia, tudo isso garantido? Você não tem isso. Você está lá no mercado de trabalho competindo com ele, você vai chegar lá na minha empresa eu como diretor vou dar a preferência para você, infelizmente, mesmo sendo diretor, fatalmente, mas por uma questão lógica. A Cíntia toda preparada, como é que vou passar por cima da Cíntia e vou dar vaga para esse cidadão aqui que não fez nada com nada, que agora está pensando em começar a vida? Vamos deixar ele fazer o que a Cíntia fez, respeitar as regras um tempo, se qualificar e depois vamos dar uma chance para ele, esse seria o meu raciocínio. Apesar de saber que ele necessita uma atenção especial, eu acharia uma injustiça dar uma chance para ele antes de uma pessoa que não cometeu nenhum desvio nem nada. Apesar da necessidade que ele tem de uma atenção mais acentuada, me parece um despropósito botar ele na frente das pessoas. Ou seja, mesmo que ele queira trabalhar ele não vai conseguir, é isso que eu estou querendo lhe dizer. O desemprego não está ai gritante, não está todo mundo na fila num concurso para gari no Rio de Janeiro, três quilômetros de fila para as inscrições?...

Por mais chavão que seja, a competição desigual do capitalismo é sempre colocada,

não somente pelo Diretor, mas por outros funcionários e também presos, assim como por

pesquisadores. E ela, dentro da prisão se torna bastante explícita,

Porque cada dia é um desafio, não se tem um programa de administração de seis meses, de um ano. “Ah, mas então você não é estrategista?” - não, não é isso, às vezes você se dá por feliz se você conseguir vencer um dia. No outro dia começa tudo de novo, seis horas da manhã, quando acorda, se é que as vezes você já não acordou antes, ou foi acordado antes com uma ligação no meio da madrugada. Já levanta ou assim, é despertado já com uma preocupação, já com um grande desafio a ser vencido, sabe? Ter uma definição do que se deve fazer já é uma incumbência séria. Se você dissesse assim: “Ah, eu tenho que vencer tantos desafios”. Mas eu tenho que botar na minha cabeça que para eu fazer um programa de um ano eu tenho que enfrentar trezentos e sessenta e cinco desafios, um desafio a cada dia. Às vezes, no mesmo dia a gente se vê em situações de solenidade, de receber homenagens e se vê numa situação de resolver um grande conflito, como uma rebelião, um princípio de rebelião, uma tentativa de fuga ou uma fuga. Às vezes, por exemplo, uma situação como a gente vivenciou outro dia lá na Máxima, em que dois funcionários

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foram feitos reféns e ocorreu uma fuga de três apenados de alta periculosidade. A explicação mais próxima da realidade é que uma familiar do apenado teria inserido a arma dentro de sua genitália, como se fosse um preservativo (...)

Mas não é só de competição e desafios que é feito o cotidiano deste homem. São

valorizadas outras questões, como suas “maneiras de fazer”, que orientam grande parte de sua

vida:

Então, esse tipo de desafio faz a gente se sentir atraído pela função. E, com certeza, não é querer puxar brasa para a minha sardinha, mas é que a gente vê que o que a gente faz, faz bem feito. É aquela questão da auto-estima, você mesmo de sentir-se valorizado, de sentir-se útil. Isso acaba me mantendo mais ligado, cada vez mais no sistema, mesmo porque a gente tem toda uma história de vida com o sistema. Os amigos são do sistema prisional, os conhecidos são do sistema prisional, os relacionamentos, profissionais e pessoais, de futebol, de lazer, de fim-de-semana são com pessoas do sistema, entende? Quer dizer, mesmo que tentasse mudar, teria que me organizar mentalmente para viver uma mudança muito brusca, porque a gente vive, literalmente vive, a penitenciária. Às vezes a família se queixa, porque a gente cuida mais da Penitenciária do que da própria casa. E é verdade, tem que ouvir, ficar quieto e tentar encontrar uma maneira de administrar melhor em casa também, não é?

Sua casa, sua família, assim como para os presos, é parte de sua rotina fundamental

que ao longo da entrevista vai se mostrando cada vez mais importante. O cotidiano

profissional deste diretor influencia claramente seu cotidiano pessoal, e ele não consegue

esconder isso nas entrevistas,

Com certeza, agora nos últimos tempos, eu tenho pressionado a Têmis56 a dizer assim: “Então fala com seu pai mais querido, mais lindo, mais fofo, mais adorado” - e ela fala! (rimos) Ela precisa de um pouco de atenção, eles exigem muito. Que nem chegar em casa brincar de pega-pega e esconde-esconde com ela, pescar com o Héracles. Faço academia com o Héracles, porque assim eu o vejo. Assim, um dos segredos de eu estar bem profissionalmente é que eu estou bem familiarmente. Porque a família “é dez”, não só mulher e filhos, também as pessoas da família da minha mulher, pessoas da minha família, sempre incentivando, sempre dizendo que a gente tem um potencial, sempre dizendo que a gente tem algo para fazer. Que é assim mesmo que está certo, que deve ser dada continuidade. E eles exigindo bastante de mim, eles fazem tudo para que eu seja uma pessoa bastante presente, sabe? E mesmo com muita carga horária, muita atribuição fora de casa e apesar dos reclames, sempre procuro

56 Como ele cita o nome de seus filhos, eu modifiquei usando de pseudônimos.

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ser um pai bastante presente, um marido bastante presente. Quando acordo, um pouco antes de eu ir trabalhar, eu me faço presente mesmo sendo chamado de chato, eu vou acordá-los. Para eles me verem, para que eu posso vê-los; quando chego à noite, mesmo que eles estejam dormindo, às vezes eu os acordo, para que a gente posso ter pelo menos quinze, vinte minutos de papo, não é?

Como um agente mencionou que seu trabalho é de garantir a segurança, o contrário, a

insegurança, pode causar muitos desconfortos para quem vive num sistema que é considerado

perigoso por muitos. Não só porque existe essa consideração a respeito da prisão, mas porque

alguns fatos marcaram intensamente a vida de muitos agentes. Um deles, que entrevistei

informalmente, não quis que gravasse, falou com lágrimas nos olhos sobre a rebelião que

ocorreu em 1997, onde um de seus melhores amigos, companheiro de trabalho, foi mantido

refém e ameaçado de morte. O Diretor é a quem a mídia recorre para perguntar “o que houve”

no caso de uma rebelião.

C. - Eu perguntei hoje de manhã para o Dionísio se, caso houvesse uma rebelião agora em São Pedro de Alcântara, ele achava que isso poderia influenciar aqui? Você já passou por outras rebeliões aqui, não é?

Dir. - Várias, nós passamos por várias rebeliões aqui. Uma das realidades que temos que apontar sobre São Pedro é que todos os presos-problemas do Estado estão sendo encaminhados para lá. Ponto final. Por aí, temos que presumir que algum dia vai haver uma rebelião. Se o nosso desafio aqui é grande, cada dia é um desafio, lá então é a cada minuto, vamos assim dizer, comparado com a nossa situação. Claro que podemos ter problemas aqui a qualquer momento, mas é pouco provável, dada a estabilidade disciplinar implantada aqui. Uma das garantias que nós tivemos para conseguir manter essa estabilidade disciplinar foi São Pedro, uma unidade mais rígida, de maior segurança e que impõe uma certa restrição da massa carcerária em aprontar aquilo que se aprontava antes de ir pra lá. Quanto à influência a outros presos eu acredito que influenciaria. Porém, na sexta-feira à noite, quando a gente tomou conhecimento de que lá haveria problema, a primeira indagação que a segurança me fez foi: “Vamos reforçar, vamos chamar alguém para reforçar aqui porque nós podemos ter problemas também?” E eu tomei a decisão seguinte: “Não, vamos ajudar São Pedro, nós aqui, na minha firme convicção, estamos bem, não vai acontecer nada, porque se eles fizerem qualquer palhaçada aqui eles sabem que vão acabar indo para lá. Mesmo porque nós já até temos um controle sobre a segurança e se eles fizerem alguma coisa nós vamos vencê-los facilmente e eles não vão querer destruir todo um programa inteligente, humanizador que nós estamos botando em prática aqui para arriscar o bonde da São Pedro”. Aqui eles não têm do que protestar, lá eles já utilizaram como fundamento a morosidade na concessão de benefícios e a falta de uma

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estrutura médica pra assisti-los. Isso nós temos, os dois funcionando a todo vapor. Normalmente, quando o preso faz uma rebelião e quando ele faz uma relação de pedidos, aqueles pedidos até podem ser difíceis de serem atendidos, porém no mais das vezes são pedidos dignos e justos até, porque eles não são doidos de pedir um absurdo, sabe? Pedir para matar alguém, pedir pra seqüestrar alguém, pedir pra rasgar uma lei, isso eles nunca fazem, eles pedem aqueles pedidos prontos, aquelas coisas dignas, morais, muitas vezes é um reclame absolutamente condizente com a realidade deles, que deveria estar funcionando naqueles termos, porém não funciona. Por exemplo, no caso de São Pedro, a gente sabe que eles não têm uma estrutura médica e sabe-se que lá realmente há uma morosidade judicial. Isso é efetivamente efervescente para a massa carcerária, entende? Como a gente não tem essa realidade aqui no momento, a probabilidade de um problema dessa natureza aqui é muito improvável.

O debate sobre como melhorar o sistema penitenciário caiu fortemente em cima dos

agentes, e, queiram ou não, as pessoas que trabalham ali no sistema estão acostumadas a

responder perguntas sobre os direitos dos presos. Escuto muitas vezes eles comentando que

têm que mandar alguns relatórios “para o pessoal dos Direitos Humanos”. O Diretor, sabendo

dessa situação, acredita na qualificação dos agentes:

No momento, o sistema prisional padece e necessita de uma única alternativa. Para começar, o primeiro ponta pé é qualificar os servidores, para que eles possam executar atividades que efetivamente resultem em reintegração social. Porque há uma dificuldade muito grande em reintegrar o preso, pois ele vai ser reintegrado a quê? Ao meio criminoso, de que ele fazia parte desde os três, quatro anos de vida? Esse é o nosso grande desafio. Nós vamos reintegrar ele a que? E aonde? A que sociedade? Aquela sociedade que o jogou para cá? Aquele meio social que furta, que usa drogas, comercializa drogas, troca pancadaria, usa arma de fogo para fins ilícitos, é para esse meio que nós o preparamos para ele voltar?

E acredita na integração e participação de toda sua equipe:

Quem faz tudo na Penitenciária é minha equipe, sabe? Eu só incomodo, mas eles acham que eu que faço tudo, eu que dou a solução para as coisas, . Porque eles tem essa pseudo interpretação de que é o líder que faz tudo. Assim como nós, no meio social, achamos que é o presidente, o governador, o prefeito que fazem tudo. “Ah, o governador não presta, não faz isso, não investe em educação, não investe em tecnologia, não investe em segurança, não sei mais quê”. Ele tem uma equipe para isso, não é ele. Claro que ele é o comandante da equipe, mas depende da desenvoltura da equipe que ele seja caracterizado nesses termos. E o preso não é diferente, como eu falei agora há pouco, até ele ser preso ele era um pessoa como nós, mudava

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pouca coisa, algumas regras que ele descumpria, mas no mais ele é bem parecido com a gente.

Mas Geia, acredita que somente a qualificação do servidor não basta, que o problema

não está somente na prisão, e o que acaba acontecendo é:

Isso é uma falta de uma política prisional consistente, ela é personalista. Se um diretor tem um pouco mais de humanidade, um pouco mais de tolerância, as coisas mudam, as coisas melhoram, diminui a violência interna. A comida, que deveria ser uma coisa que tivesse sempre um mínimo de qualidade; as visitas, que deveriam ter um tratamento mais humanizado. Agora, se vem um diretor que diz que todo mundo tem que ser tratado a ferro e a facão, aí as coisas pioram. Então não existe uma política de atenção, ela é personalista, você faz do jeito que acha que é certo fazer. Às vezes, esse sujeito que é muito duro, que acha quer as pessoas têm que passar a pão e água, na verdade acredita que é dessa maneira que uma pessoa que comete um delito, às vezes muito grave, extremamente cruel, deve ser tratada, entende? É, talvez nas outras relações ele seja uma pessoa boa, mas ali ele acha que a punição deve ser uma coisa extremamente dura, para que o punido possa sentir até o último fio de cabelo o peso do que ele fez. Isso acaba dando em pessoas muito mais revoltadas, agressivas, suicidas, o resultado desse ser humano é o pior possível.

12/07/2005.

Visitei hoje a Colônia Penal, que se localiza na Palhoça e é para onde alguns presos do

Regime Semi-aberto vão, para trabalhar na terra, com os animais ou até com o conserto de

máquinas e carros. Assim como também há os faxineiros e o pessoal da cozinha. Seu Dionísio

e o Hesíodo me pegaram em casa às nove horas da manhã. A Colônia Agrícola, como o

Dionísio chama, era longe e, pouco antes de chegar lá, atravessamos uma estrada de terra, em

cujo final encontrava-se nosso destino. Seu Dionísio já foi explicando desde o começo qual

era a extensão da área. Por sinal, enorme, tanto que, se for aprovado que a Penitenciária da

Agronômica seja transferida, vai ser para essa área da Colônia. Muitas vacas e bois no

caminho. Paramos o carro na frente de uma pequena construção, uma estufa, dedicada a uma

extensão do trabalho que é feito junto do Hospital de Custódia, a plantação até todo o tipo de

ervas medicinais. Só que neste local, a plantação é muito maior, assim como a estufa, e quem

trabalha lá são os próprios detentos, diferentemente do Hospital, em que são os pacientes.

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Foto 5: Presos trabalhando na Colônia Penal por Cristian

O Hesíodo já começou a bater algumas fotos e ficou ali conversando com os policiais

militares, enquanto eu e o Seu Dionísio fomos andando para ele ir me mostrando e explicando

como é a Colônia Penal. Eu peguei meu caderno para anotar algumas falas e observações,

mas acabei anotando só: 130 presos. É o número de presos da Colônia (já foram construídos

mais alguns alojamentos para duzentos presos, mas não há agentes suficientes para trabalhar

lá, por isso não transferiram ainda ninguém).

Íamos passando por vários tipos de plantações, de alfaces até maracujá, era uma

grande fazenda. De longe vi um toldo escrito Mini Mercado Karol e achei tão estranho, um

mercado no meio de uma Colônia Penal. Comentei com o Dionísio e ele riu, dizendo que

aquilo era somente um toldo que eles arranjaram. Era neste local do toldo que ficam os

porcos. Do lado há um lago, que durante muito tempo nem existia, mas ele “alagou” de novo.

Até possuía alguns patos, que Seu Dionísio disse que serem patos do mato, ninguém os tinha

colocado ali. Entramos no local onde havia o toldo. Na primeira sala, um homem lavava

alguns objetos, era um detento. E havia vários gatos, inclusive filhotes. Um outro presidiário

estava limpando o lugar onde ficavam os porcos, entramos com o chão todo molhado mesmo.

Primeiramente levei um susto, nunca achei que porcos fossem tão grandes. Não me lembro de

tê-los visto antes de hoje. E os porcos eram das mais variadas cores e manchas. Tinham

muitos filhotes, inclusive eram fofíssimos. Vi-os mamando numa grande luta, o preso estava

até ajudando aqueles porquinhos que não alcançavam as mamas da porca. O Seu Dionísio

perguntou para ele: “Qual foi sua bronca?” No que ele respondeu: “Assalto.”

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Foto 6: Porcos da Colônia Penal por Cristian

Saímos da casa dos porcos e fomos ver as galinhas, patinhos e os coelhos.

Comentamos que somos tão hipócritas, ao mesmo tempo em que achamos os animais umas

gracinhas, matamos eles para comer, como eu fiz agora. O Seu Dionísio lembrou de uma

história da sua infância, em que ele e sua família ganharam um filhote de porco para criar,

para no final do ano matá-lo e comer na ceia de Ano-novo. Mas eles se apegaram tanto a

porquinha, a quem, por sinal, deram o nome de Berenice, que no final do ano ninguém teve

coragem de matá-la. Berenice morreu de velha.

Nós encontramos o administrador da Colônia Penal. Ele se integrou ao meu passeio e

do Seu Dionísio; todos começamos a conversar. Era até esquisito, eu me sentia num passeio,

enquanto os homens trabalhavam e podiam até se indagar sobre o que eu estaria fazendo ali.

O administrador, vou chamá-lo de Zeus, abriu uma porteira para o gado passar para o outro

lado, onde havia água para beber, o gado passou rapidamente na esperança de chegar ao

pasto. Mas a porteira do pasto não foi aberta. E as rezes ficaram com aqueles olhinhos de

expectativa até irmos embora. Ali do lado havia um preso consertando um mini trator.

Fomos ao refeitório e o Seu Dionísio, para variar, quis me enfiar comida. É um gesto

muito carinhoso de sua parte. E por mais que eu não queira, acabo gostando da comida e

comendo bastante. Tomamos café e comi um frango à milanesa delicioso que os presos

estavam fazendo para o almoço. Entramos um pouco adiante do portão que dá acesso aos

alojamentos e refeitórios, mas ficamos só dando uma espiada. Os presos ficavam olhando

curiosos.

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Foto 7: Prisão da Colônia Penal por Cristian

Conversei um pouco com o Zeus, que me disse que é a favor do desarmamento, e acha

que deveria haver uma lei severa, para funcionar. Alguém surpreendido com arma deveria

pegar prisão perpétua, a seu ver.

Pegamos a estrada para ir para o Complexo Penitenciário de São Pedro de Alcântara, o

que na verdade nem estava programado. Mas o Dionísio teria uma reunião com o diretor e a

Gerência Laboral de lá e resolveu me levar também. O local é extremamente longe. As

mulheres que vão visitar os seus parentes e cônjuges de ônibus têm que andar mais três

quilômetros para chegar ao Complexo.

O Complexo Penitenciário de São Pedro de Alcântara tem um modo muito mais

pesado e, como disse o Dionísio, “agora você vai conhecer uma penitenciária mesmo, aqui

tem mais de mil presos”. Eu não sou uma escritora de grande talento para tentar transmitir

com a escrita o mínimo do que seja aquele local. Os muros são gigantescos, há muito

concreto, muita grade, muito arame, e guaritas ao redor de todo o Complexo. Os cães de lá

parecem ser até mais amigáveis que os da Penitenciária da Agronômica. Eu não me arriscaria,

obviamente, só pelo tamanho deles e até porque o fato de eles não latirem não quer dizer

muita coisa.

Na entrada há casas de funcionários do Complexo, que moram lá devido à distância do

local. O Homero, que tem o mesmo trabalho do Seu Dionísio, mora lá, com seus filhos e

esposa. A filha mais velha dele, de seis anos, estava lá com a gente. Foi o Homero quem nos

mostrou o interior do complexo. Passa uma portaria, passa outra, antes de entrar no complexo.

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Os agentes passaram o detector de metais em mim, no Seu Dionísio, no Hesíodo e no

Homero. Ordens da Casa. O agente me reconheceu, perguntou-me se eu já tinha morado no

prédio Alameda dos Almirantes, eu disse que sim, e ele disse que me reconheceu, e até sabia

meu nome. Falou que muitas pessoas estavam saindo daquele prédio. Entramos no Regime

Fechado. Aliás, lá é somente Regime Fechado. Abre e fecha grades e portões. É muito alto,

escuro e frio lá dentro. Não tinha o cheiro estranho que tem o da Agronômica. Talvez por ser

bem mais novo. Tem dois anos. Até a parte administrativa é mais bonita, bem pintada, cheia

de placas explicando o que é em cada sala. Entramos no Pavilhão 1 e fomos ver os detentos

no pátio, nas suas duas horas de sol. São dois andares, nós os vimos do andar de cima, e

quando eles nos enxergaram, foram bem perto pedir ao Homero um nova bola para eles

jogarem futebol, porque a deles tinha furado. Igualzinho fazem com o Dionísio. O pátio,

diferentemente da Agronômica, tinha como “teto” muito arame farpado, daqueles redondos, e

daquelas grades simples de arame também. Eu acho que é arame, não sei ao certo qual é o

material. Não havia acesso a nada, tudo tinha grades, até na frente dos cubículos.

Foto 8: Casa de funcionários em frente à Penitenciária de São Pedro por Cristian

No corredor, o que mais se ouvia era o barulho das grades fechando e abrindo, do

mesmo modo o ruído dos cadeados se fechando. Passamos pelas oficinas, todos olhavam para

nós. Só ficamos na janela. No corredor havia um detento comendo algo, era bem forte, com

uma tatuagem no braço, estava de regata e não ficou olhando muito para a gente como a

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maioria faz. O Homero não quis mostrar o Pavilhão 3 e 4, de acordo com ele, são os que dão

mais trabalho.

Enquanto o Dionísio foi para a reunião, o Hesíodo levou-me para o alojamento da PM,

que se liga ao complexo em cima e em baixo. Em cima há quatro guaritas e dá para andar

sobre os muros, com seus corrimões, de concreto. O irmão do Hesíodo é da PM. Tem o

mesmo jeito do Hesíodo. Como o Hesíodo diz “somos muito parecidos, mas eu não tenho

bigode e sou mais magro” e davam risada os dois. Subimos no prédio da PM e o irmão do

Hesíodo logo foi mostrando o quarto onde ele dorme, que, a propósito, parecia uma cela, onde

ficava todo o armamento da polícia, munição, armas. Ele me mostrou a bala de borracha e

disse “essa que foi usada contra os estudantes”, aí o Hesíodo riu e contou que eu estava lá e

até fui presa. Pareceu-me que seu irmão não se importou e continuou explicando. Ele me deu

uma arma na mão e disse “olha como é leve”, eu achei pesada e eles riram. Peguei uma bala

nove milímetros na mão e fiquei impressionada com o tamanho, isto é, eu achei enorme. Ele

estava bem empolgado e atencioso, explicando-me tudo. Assim como faz o Hesíodo. Ficamos

depois conversando com os outros PMs e eles faziam piadas e riam, brincando um com o

outro.

Ganhamos água do irmão do Hesíodo e então subimos para os muros e guaritas e uma

garotinha bem linda chamada Hera, filha de um PM, nos acompanhou. O PM que estava na

guarita disse que ela se saía melhor que muito PM. Brincaram que, se houvesse uma rebelião,

ela pegaria a arma (que é armada com balas de borracha) e atiraria nos homens. Chamavam-

na de Xuxinha. Como os policiais trabalham vinte e quatro horas, depois folgam quarenta e

oito, muitos familiares os visitam, pois eles também têm seus quartinhos no prédio.

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Foto 9: Complexo Penitenciário São Pedro de Alcântara por Cristian

Fomos embora e, no caminho, eu, o Hesíodo e o Seu Dionísio conversamos sobre

crimes, amores e emprego. O Hesíodo contou que quando trabalhava no São Lucas, que é

para onde os menores são levados quando cometem crimes. Havia um jovem que cortava seu

cabelo em forma de teia de aranha, já tinha cometido uns onze homicídios. Ele era muito

temido, era muito grande e o Hesíodo nunca o enfrentaria. Este jovem, um dia, descobriu que

sua namorada, que tinha um filho seu, pegou sua droga sem avisá-lo. Ele colocou a arma em

sua boca e disse que ia atirar. Seus companheiros pediram que não fizesse isso, pois quem iria

cuidar da criança. Ele, deste modo, só atirou na perna da mulher.

Esse foi mais um dia na prisão. Não com os olhares dos presos e talvez nem com o de

uma historiadora, todavia com a sensibilidade necessária para se entender situações e

momentos que nos parecem ser tão alheios. Mas compartilhar frases e usá-las com respeito é

um anseio de Oceano também:

C. - Você acha importante haver contato entre os presos e os agentes penitenciários, importante eles conversarem? O. - Com certeza, principalmente com o diretor, o gerente, tem mais espaço, tem mais recurso, se tem mais trabalho, tem como facilitar a vida do dia-a-dia de cada um lá dentro. Tem que ter uma parceria entre diretor e os presos. C. - O que eu achei interessante no presídio feminino é que o contato entre algumas presas é muito diferente do que existe na penitenciária

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masculina. Elas se abraçam, uma faz a unha da outra, corta o cabelo da outra, conversam. O. - O sexo feminino é mais frágil com certeza. Ainda dentro do sistema, tem aquela irmandade né, uma ajuda a outra. C. - Seria necessário mudar essa concepção machista, porque, por exemplo, eu considero o toque muito importante. (eu) O. - É o toque de mão que a gente tem né. “Ah guerreiro”, aquela gíria de cadeia, para abraçar o outro tem que ter uma ligação muito forte porque pega até mal algumas brincadeiras. Mas o respeito entre todos tem, né?, com a família do próximo. Respeito cem por cento, porque se tiver vacilo a cobrança é pesada. Por exemplo, se você é casada com um preso e eu mexo contigo eu to assinando a minha sentença de morte, porque todo mundo vai ficar revoltado comigo “pô tanta mulher lá fora e o bicho vai logo mexer com a minha mulher”, aí eles não aceitam, não tem perdão. C. - Porque a família, numa hora dessas, é a coisa mais importante, não é? O. - É. O dia da visita é o dia mais feliz do preso.

Os familiares passam a ter um valor enorme para quem está preso, eles trazem notícias

de fora, afeto, conversas diferentes das quem têm na prisão, comidas diversas, como bolachas

e chocolates. Para Hades, o olhar sobre sua família tornou-se outro depois da cadeia:

Porque olha só, sobre o que eu entendo de felicidade? Eu preso, posso dizer que eu me sinto feliz. Tenho minha família, tenho minha esposa que vem me visitar. Eu aprendi a ser grato, né?, com essa oportunidade que eles tão me dando, eles estão me ajudando, eles estão se sacrificando para mim, então eu sou grato, eu sou feliz por eles estarem aqui. Eu estou feliz por estar aqui hoje dando essa entrevista. Eu aprendi a ser grato às pessoas. Ser feliz para mim é estar de bem com a vida. Problema tem, a gente sempre tem, mas a gente tem que aprender a viver com eles. Problema todos vão ter, você vai ter, não sei se você é casada mas quando casar vai ter filhos, que vai sugar o teu tempo, tem o maridão, tem o serviço, você ta estudando, vai trabalhar, problemas sempre vai ter, só que se você não souber administrar eles, sua vida vai ser um caos. Eu aprendi depois de um certo tempo, a administrar, a viver, né? Viver, viver, ser feliz. Se tudo que fizessem por mim e eu não reconhecesse, “poxa, eles poderiam fazer mais”, mas eles estão fazendo, eu agradeço quando eles vem, quando eles podem vim, com o que eles trazem. Eu aprendi a ser assim, a não ter aquela ambição. Porque às vezes a gente não tem aquela família de que a gente gosta, mas ta bom, a que tem ta bom. Aquela ganância, arrogância, eu consegui deixar de lado, graças a Deus. Eu aprendi a ter um controle maior de mim. É difícil. Eu acho que felicidade é isso. É respeitar. É tentar entender as pessoas.

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Mas a visita pode ficar pouco tempo com o seu familiar que está preso. E a companhia

do preso acaba sendo, como ironicamente Jean Genet57 descreveu, as paredes frias. “Na

minha cela, devagar, é necessário doar meus calafrios ao granito. Ficarei tanto tempo com ele

e o farei viver com meu hálito e o cheiro dos meus peidos, solenes e muito suaves” (GENET,

1983, p.87). Para Genet, “Todos os presos são crianças e somente as crianças são tortuosas,

curvas, claras e confusas”, e como toda criança, eles também fazem algumas reclamações,

mas muito maduras para serem confusas, é Geia que nos conta:

C. - Quais são as maiores reclamações que dos presos? G. - Os presos reclamam da assistência a saúde, apesar de aqui no presídio eles reclamarem muito pouco, porque as condições para os presos não são tão difíceis, não é um lugar tão violento. Aqui a gente tem um índice de violência muito baixo, mesmo entre eles. Eles têm visita semanalmente, eles recebem suprimento alimentar, procura-se estar atendendo às necessidades tanto do ponto de vista social, psicológico, quanto médico. O difícil é a demora para atender, porque são trezentos e pouco. Às vezes a escolta é meio dura, meio pesada, mas não há queixas. Assim, queixam-se da falta de liberdade, das injustiças, da violência policial quando são presos, da indiferença da justiça, do extravio de documentos, do abandono da família, da companheira, coisas assim. Mas o tempo que se passa aqui não é comparável ao tempo numa Penitenciária. É um tempo de sempre poder ir embora. Como é um prisão provisória, existe sempre a possibilidade de o juiz soltar. É ruim porque é uma prisão, por uma série de coisas, mas na Penitenciária você já está com o tempo determinado. Aqui é muito mais aberto, eles saem às nove horas da manhã e são fechados às seis da tarde. Então eles estão o tempo todo soltos, têm oficinas para trabalhar, alguns vão para a escola, eles ficam ali ouvindo música, têm um tipo de vida ali. Na Penitenciária há um exagero de tempo na cela, 22 horas de cela, falta o que fazer. Existe a dureza do regime, eles são muito revistados.

Por se tratar de uma Penitenciária, o cotidiano por vezes é marcado por interferências

externas, como no dia 31/08/2005, em que foi passado um filme para os presos do Regime

Semi-Aberto. O filme fazia parte do projeto Cinema na Favela, da Organização Nação Hip

Hop, até a diretora do filme estava lá. Ela quis mostrar nas prisões, para as próprias pessoas

que foram protagonistas de seu documentário, a denúncia da superlotação das prisões, dos

julgamentos inadequados e da precariedade de todo sistema penal.

O filme chama-se Justiça. Sentei no meio dos presos e anotei alguns comentários que

fizeram durante o filme:

57 GENET, Jean. Nossa Senhora das Flores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira S/A, 1983.

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“Que sofrimento”

“Já ia para o... dentro da cadeia” – fez um gesto com a mão mostrando que o preso iria apanhar porque esbarrou em uma visita.

“Facinho assim?” – sobre a revista que fazem nas mulheres no filme, pois diferente da Penitenciária elas não tinham que ficar nuas.

“Teresa!” – quando vêem no filme a teresa, que é uma corda onde os presos vão amarrando coisas e passando pelos cubículos para todos terem acesso, como por exemplo, café!

“Jararaca” – para a mulher sentada do lado do juiz (no filme claro)

“Olha a carrasca!” – para a juíza do filme.

“Vai andar de Pálio para o resto da vida” – comentário sobre a advogada do preso do filme.

“O menino joga a bolinha o outro saca o revólver” – brincando sobre como poderia ser um assalto no momento do filme em que aparecerem dois meninos de rua pedindo dinheiro para a advogada que estava no seu Pálio.

“Levou foi um bife no olho!” – o preso do filme fala para sua mãe e sua mulher na hora da visita que estava com conjuntivite.

“São tudo farinha do mesmo saco!” – sobre os juízes, advogados, etc.

O filme mostra bem a interação da Penitenciária e de todo sistema penal com a

sociedade, com a mulher do protagonista freqüentando a cadeia por causa do marido, e

voltando a trabalhar como faxineira, pois está grávida de oito meses e precisa de dinheiro, que

o marido não mais pode prover, para sustentar o futuro filho.

Alguns presos, como o Hades citado anteriormente, mudaram seus hábitos, porque o

cotidiano da prisão fez com que ele procurasse alternativas de resistência ao regime

carcerário, como se tornar evangélico. Passou a cantar músicas religiosas no pátio e a

converter outros presos. Demorou muito para querer mudar-se para o alojamento especial

para trabalhar como “faxina”, mas depois sucumbiu,

Alguns anos já, desde de 2001 que queriam me trazer pra cá, eu nunca quis, é que eu sou crente né? Eu já tinha falado, e eu tenho uma prática de fazer n reuniões evangélicas, cantava, falava de Deus no pátio, meu pátio todo que era pra andar, jogar bola, eu ficava lá, sentava com o violão, louvando a Deus, ajudando as pessoas. Alguns anos já, eu gosto disso, ouvir, querer dar atenção, acho legal isso. Porque as pessoas necessitam, principalmente os presos, somos muito

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carentes. Precisamos conversar, desabafar, e as pessoas se sentem bem com isso.

A carência é um substantivo bastante proferido. Assim como a solidão. Nas imagens

filmadas, um preso disse que estava “sofrendo da solidão” e “a solidão é ruim”. Hades

aproveita a oportunidade de dar a entrevista para fazer um pedido a Seu Dionísio e falar como

a religião mudou sua vida e pode mudar de outros,

Só queria frisar uma coisa sobre a religião, é, eu acho que se houvesse mais oportunidades pras igrejas, mas espaços pra eles, acho que as pessoas iriam sentir as mudanças do preso, porque somente Deus pode mudar a personalidade das pessoas. Foi o que aconteceu comigo, antes eu assaltava, não tinha medo, até hoje eu não tenho, né?, eu respeito né?, houve até mudanças em minha vida, no meu linguajar, no meu jeito de andar, de conversar com as pessoas, ter calma. Nunca fui de ter essa calma, às vezes o pessoal me critica “pô, pra que tanta calma?” Eu mudei muito, às vezes até minha família não me reconhece, eu mudei, isso que eu queria frisar. Somente Deus pode mudar as pessoas. Mas quero mudar mais, falta muito, ainda to preso. Mas ainda vou reerguer, quero ter sucesso, não quero fortuna, mas quero poder contribuir, mostrar para as pessoas que esse Deus que eu sinto, estão anunciando pra eles que Ele muda a vida das pessoas, que ele transforma um monte. O filme, enfim, retrata bem nossa realidade, a morosidade dos processos, a dificuldade de nossos familiares, a nossa dificuldade, de certa maneira bem resumida a dificuldade que os familiares tem, né? O drama deles, que eles vivem, terem filho, esposo, enfim, marido preso. Ali o rapaz ia ficar um ano no máximo, eu já tô oito e tenho mais alguns pela frente, é difícil (...)

Dois presos que entrevistei, comentaram um fato muito curioso a respeito do

casamento,

É difícil poder manter um casamento durante tantos anos. Que segredo, né? Tantos casais se separando aí, marido e esposa direto, todos os dias conversando, e às vezes a gente preso tantos anos, é difícil. Mas eu chego lá. O filme retrata nossa realidade, eu acho que aqueles que virem, que prestarem atenção, vão pensar um pouco mais sobre o que que é, e do que nós precisamos. Nós precisamos de ajuda. Não só nós, não adianta só ressocializar o preso, os que querem né, não são todos que querem. Chega lá fora e se depara com um mundo, um mercado de trabalho fechado, sem portas. Olha só tanta gente com curso superior, qualificada, trabalhando em empregos que eles não gostariam, mas a situação obriga eles. Imagine nós. Claro eu não quero usar isso como uma desculpa para a gente continuar na criminalidade. Eu só quero que todos entendam, principalmente nós presos, pretendo sempre entender, e não fugir dessa realidade, que a gente vai ter uma dificuldade enorme, mas que isso dependente do

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tamanho do problema, não vai mais me assustar não. Eu não quero mais a vida do crime, não vou mais roubar, assaltar, mesmo tendo uma certa facilidade, para o crime, é difícil, tenho mais alguns anos pela frente.

Novamente o debate sobre a dificuldade de continuar uma vida pós-prisão. Hades,

depois que acaba a entrevista, fala em valores da sociedade, que as pessoas deveriam rever o

que é crime, deveriam pensar no que mais está matando além dos assassinatos por armas de

fogo. Para ele há “muita coisa errada acontecendo, mas só estão olhando para nós”. Muito

parecido seu pensamento com o de um personagem do livro de Patrícia Melo, Inferno, quando

diz:

Leitor vivia dizendo que era preciso acabar com aquela-palhaçada-de-criminalização-das-drogas, não cansava de repetir para os amigos trechos de um livro que acabara de ler sobre o assunto: maconha faz mal? E boxe? E alpinismo? E correr de carro pela Lagoa? Por que não proíbem? Por que não proíbem a obesidade, que mata milhões no mundo? Queremos que o cidadão não se foda e liberamos o cigarro e o álcool. Isso faz tanto sentido quanto dar um 38 carregado para um suicida. Fumamos até morrer de câncer. Bebemos até morrer de cirrose. Tabaco e álcool é que matam. (...) Nossas filhas aprendem na televisão, logo cedo, que o que vale neste mundo é cabelo loiro e bunda dura (MELO, 2001, p.43).

Termino esse trabalho sem mais palavras e gestos que possam ajudar a aprofundar

tudo aquilo que já foi falado. Não que as palavras e gestos não existam. Elas estão

transbordando nos presídios. E nas mais diversas formas, como em rebeliões, em fugas, em

conversas, nas “maneiras de fazer” e até no silêncio. Parte de um registro e interpretações

históricas sobre o sistema carcerário foi feita, mas, obviamente, registro inacabado e por

vezes mutilado, pelo tempo e pela falta de preparação de uma iniciante na pesquisa histórica.

Alguns discursos sobre criminalidade foram expostos e o mínimo do cotidiano da

Penitenciária de Florianópolis foi apresentando. A reflexão agora não mais me pertence. Pois

não se trata dar voz aos presos, essa é ainda a minha voz de classe média, por isso eles

continuam mudos.

E por mais que eu me esforce na escrita histórica, para enchê-la de beleza, informação

e novas idéias seria inexeqüível revelar e compreender as experiências humanas por

completo, as pessoas e as histórias que contam são volúveis. Assim como nossos próprios

historiadores mudam e aperfeiçoam seus conceitos e suas teses, todos nós reinventamos

cotidianamente nossas percepções. E com isso transformamos nossas experiências também.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No final de maio e começo de junho de 2005 começaram as manifestações contra o

aumento da tarifa dos passes de ônibus em Florianópolis, na gestão municipal do prefeito

Dário Berger. Eu, além de ser uma estudante de História na Universidade do Estado de Santa

Catarina, ajudo em programas voluntários que me parecem requererem algum tipo de auxílio.

Não sou de nenhum movimento, partido, união ou liderança, e isso não é um tipo de diário

pessoal, mas uma situação ocorrida durante as manifestações me causou e tem me causado

muito impacto em minha vida acadêmica, de maneira a ter sempre em mente o que aconteceu

na quinta-feira, dia dois de junho de 2005.

Nesta data, lá pelas dez horas da noite, estava a multidão a andar pela rua Conselheiro

Mafra gritando “Vem, vem, vem para a luta, vem contra o aumento!”, quando a tropa de

choque da polícia fechou os dois lados da rua e começou a atirar bombas de efeito moral,

balas de borracha e spray de pimenta. A correria foi intensa, e você se assusta, olha para baixo

e só consegue ver pés desesperados à sua frente, ouvir atrás barulhos e gritos de mais pés

espantados e os ruídos da polícia e de seus objetos.

Naquela noite, eu fiquei parada, só fui atrás de uma mureta me proteger das balas,

atrás de mim tinha mais algumas pessoas, provavelmente fazendo o mesmo que eu, quando a

polícia parou com os barulhos, e começou a andar para cá e para lá, e então um deles parou e

olhou para nós e proferiu em voz alta “Olha! Tem gente aqui, vamos levar eles porque a gente

precisa levar alguém!”. A partir desse momento foi só choro. Fomos presos, eu não conhecia

ninguém ali, no camburão a polícia militar jogou spray de pimenta e riu “E agora? Cadê papai

para ajudar vocês?”.

Foram vinte horas presos na delegacia e quatro horas presos no Presídio Feminino ou

na Penitenciária Masculina, os dois localizados na Agronômica, tendo que passar pela revista,

que é um pouco humilhante, mas tendo a oportunidade de conversar com pessoas fora de

nossa esfera social. Fora, talvez porque não prestamos muita atenção ao nosso redor. Assim

como na delegacia, onde a primeira pessoa que nos deu comida foi um traficante de drogas

que estava preso lá há vinte e cinco dias, sem tomar banho, sem cortar as unhas, sendo que o

único contato que ele tinha era com suas lágrimas, que ele nos mostrou a noite inteira. O que

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acontecia com ele, ou o que aconteceu com nós não era algo estranho, pois acontece

diariamente em nosso país.

Esse fato me abriu novos caminhos e olhares para esta pesquisa na Penitenciária

Masculina de Florianópolis, que eu já estava fazendo antes de ter sido presa. A maneira como

fui presa e o pouco tempo que fiquei presa revelam que minha experiência foi muito mais

suave e branda do que todas as histórias que ouvi. Ela me deu forças para continuar meu

trabalho e me deu uma vivência maior que me auxiliou nos momentos das entrevistas.

Agora, como talvez os leitores desse meu trabalho puderam notar, não usei todas

minhas fontes, nem todas as bibliografias que li. Não existe A história desta Penitenciária, ela

está repleta de versões. Mas todas elas têm relevância para a pesquisa histórica. Podemos

notar o tamanho dessa importância nos acontecimentos deste ano no Estado de São Paulo, que

levaram muitos presídios a fazerem rebeliões que se estenderam durante alguns dias e para

outros estados também.

Os discursos do e sobre o ambiente prisional mudam com o passar dos anos. Por isso a

pesquisa é sempre inacabada e interrompida. E ela deve se estender aos presídios e

penitenciárias femininas, da mesma forma.

Os resultados preliminares obtidos da pesquisa na Penitenciária Masculina motivaram

a que, no último mês de fevereiro, a pesquisa fosse estendida ao Presídio Feminino

(localizado na mesma área da Penitenciária), no qual foram efetuadas filmagens e gravações

de depoimentos com o apoio de dois cinegrafistas (com toda a aparelhagem de filmagem

adequada, como câmera, microfone e outros artefatos) visando conhecer um pouco das

experiências vivenciadas pelas detentas e as comparando com as dos presos homens e

produzir um documentário. Um belo trabalho sobre as problemáticas das mulheres

encarceradas fez: Raquel Alvarenga Sena em Cortina de ferro: quando o estereótipo é a lei e

a transgressão feminina (processos crime de mulheres, em Itajaí - década de 1960 a 1999).

O grande número de mulheres presas por tráfico surpreendeu bastante. Não só

mulheres que eram traficantes de drogas, mas mulheres que foram presas porque seus maridos

traficavam e as drogas eram escondidas na casa em que moravam, mulheres que tentaram

entrar com drogas dentro dos presídios quando iam visitar seus filhos ou companheiros,

mulheres que eram viciadas em drogas e foram presas por ter uma grande quantidade (ainda

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que tivessem alegado que era para consumo próprio). Porém, o mais relevante das entrevistas

gravadas no Presídio Feminino, o que as tornou extremamente valiosas, foi o fato de que as

presas, entrevistadas por uma mulher, conversaram muito abertamente sobre suas vidas,

inclusive prisional, contando mais detalhes e se expondo bem mais que os homens presos,

revelado que tal componente desinibido pode ser um viés importante para uma pesquisa

consistente e bem elaborada.

Em razão do exposto, e reconhecendo que as histórias provenientes da Penitenciária

Masculina têm grande relevância para o estudo histórico das transformações porque vem

passando Florianópolis. Estudar e tentar compreender um pouco mais a respeito de crime,

criminalidade, criminalização e aprisionamento, dos discursos e representações formulados

acerca deles, inclusive por parte de apenados e apenadas, é indispensável para conhecer

melhor uma sociedade que tem abordado estas questões de maneira tão recorrente nas mídias

e no cotidiano.

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FONTES

Fontes orais

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fevereiro de 2006.

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maio de 2005.

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abril. 2005.

BRONTES. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva na Penitenciária. Florianópolis, 18 de

fevereiro de 2005.

CENTIMANOS. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva na Penitenciária. Florianópolis, 26

de abril. 2005.

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de dezembro de 2004.

DIONÍSIO. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva na Penitenciária. Florianópolis, 11 de

fevereiro de 2005.

DIRETOR DA PENITENCIÁRIA. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva na Penitenciária.

Florianópolis, 27 de outubro de 2005.

EOLO. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva na Penitenciária. Florianópolis, 21 de

fevereiro de 2006.

GEIA. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva no Presídio Masculino da Agronômica.

Florianópolis, 5 de dezembro de 2005.

HADES. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva na Penitenciária. Florianópolis, 27 de

setembro. 2005.

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HEFESTO. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva na Penitenciária. Florianópolis, 10 de

março de 2005.

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HIPÉRION. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva na Penitenciária. Florianópolis, 29 de

setembro de 2005.

JAPETO. Primeiro preso que filmei. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva na

Penitenciária. Florianópolis, 14 de fevereiro de 2006.

MESTRE DA MARCENARIA. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva na Penitenciária.

Florianópolis, 18 de fevereiro de 2005.

OCEANO. Entrevista concedida na Penitenciária. Florianópolis, 8 de dezembro de 2005.

PÍTON. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva na Penitenciária. Florianópolis, 30 de

agosto de 2005.

POISEDON. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva na Penitenciária. Florianópolis, 12 de

setembro de 2005.

PROTEU. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva na Penitenciária. Florianópolis, 18 de

fevereiro de 2006.

TITIO. Entrevista concedida a Cíntia Ertel Silva na Penitenciária. Florianópolis, 2 de agosto

de 2005.

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Catarinense. Florianópolis, 15 mar. 2005, p. 5.

SÓFOCLES. Respondeu questionário na Penitenciária. Florianópolis, 15 de abril de 2005.

Fotografias

Acervo pessoal da autora.

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REFERÊNCIAS

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Filmes

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O Prisioneiro da Grade de Ferro de Paulo Sacramento, 2004.

Oficina

Atuação do Psicólogo no Sistema Prisional na sede do Conselho Regional de Psicologia 12ª

Região.