Quem está escrevendo o futuro
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Quem está escrevendo o futuro?
Reflexões sobre o Século XX foi elaborado pela Comunidade Internacional Bahá'í.
Maiores informações: [email protected]
I
O cerne da mensagem de Bahá’u’lláh é uma exposição da natureza fundamentalmente
espiritual da realidade e das leis que governam sua operação. Ela não apenas vê cada
pessoa como um ser espiritual, uma “alma racional”, mas também insiste que todo o
empreendimento que chamamos de civilização é, em si próprio, um processo espiritual
no qual a mente e o coração humanos desenvolveram meios cada vez mais complexos e
eficientes para expressar as capacidades morais e intelectuais que lhes são inerentes.
Ao rejeitar os dogmas reinantes do materialismo, Bahá’u’lláh defende uma
interpretação diferente do processo histórico. A humanidade, ponta de lança da
evolução da consciência, passa por estágios análogos aos períodos de infância e
adolescência na vida de cada um de seus membros. Esta jornada nos conduziu ao limiar
de nossa tão esperada maioridade como uma espécie humana unificada. As guerras, a
exploração e os preconceitos que têm caracterizado os estágios imaturos deste processo
não deveriam ser causa de desesperança, mas sim servir de estímulo para assumirmos as
responsabilidades da maturidade coletiva.
Ao escrever aos líderes políticos e religiosos de sua época, Bahá’u’lláh dizia que novas
capacidades de poder incalculável " mais além da capacidade de entendimento daquela
geração " estavam desabrochando nos povos do mundo, capacidades estas que em breve
transformariam a vida material do planeta. Segundo afirmava, era essencial transformar
esses avanços materiais vindouros em veículos para o desenvolvimento moral e social.
Caso os conflitos nacionalistas e sectários impedissem tal desenvolvimento, então o
progresso material produziria não apenas benefícios, mas também males inimagináveis.
Algumas das advertências de Bahá’u’lláh despertam ecos sombrios ainda em nossos
dias: “Coisas estranhas, espantosas, existem na terra”, advertiu ele. “Tais coisas são
capazes de mudar toda a atmosfera da terra, e sua contaminação provaria ser letal” .
II
Segundo Bahá’u’lláh, a questão espiritual fundamental que desafia todos os povos, de
qualquer nação, religião ou origem étnica, é o estabelecimento dos alicerces de uma
sociedade global que reflita a unidade da natureza humana. A unificação dos habitantes
da terra não é nem uma remota visão utópica, nem, tampouco, no final das contas, uma
questão de escolha. Ela representa o próximo estágio inevitável no processo de evolução
social, um estágio em direção ao qual todas as experiências do passado e do presente
nos estão conduzindo. A menos que essa questão seja reconhecida e tratada, nenhum
dos males que afetam nosso planeta será solucionado, porque todos os desafios
fundamentais da era na qual ingressamos são de natureza global e universal, e não
particulares ou regionais.
Os muitos textos das escrituras de Bahá’u’lláh referentes à chegada da maioridade da
raça humana estão permeados pelo uso que faz da luz como uma metáfora para
expressar o poder transformador da unidade: “Tão poderosa é a luz da unidade”,
afirmam, “que pode iluminar a terra inteira.” Essa afirmação coloca a história
contemporânea numa perspectiva totalmente diferente da que prevalece neste final do
século vinte. Ela nos insta a descobrir " em meio ao sofrimento e caos de nossos dias "
a operação de forças que estão liberando a consciência humana para um novo estágio de
sua evolução. Chama-nos a reexaminar os acontecimentos dos últimos cem anos e seus
efeitos sobre o conjunto heterogêneo de povos, raças, nações e comunidades sobre os
quais tais mudanças atuaram.
Se, como Bahá’u’lláh afirma, “o bem-estar da humanidade, sua paz e segurança, são
inatingíveis, a não ser que, primeiro, se estabeleça firmemente sua unidade” , é
compreensível porque os bahá’ís consideram o século vinte " com todos os seus
desastres " como o “século de luz” . Pois estes cem anos testemunharam uma
transformação tanto na forma como nós, os habitantes do planeta, começamos a planejar
nosso futuro coletivo, quanto na maneira em que nos vemos uns aos outros. A marca
distintiva de ambos os processos tem sido a unificação. Problemas além da capacidade
de controle das instituições existentes fizeram com que os líderes mundiais começassem
a implementar novos sistemas de organização global que seriam impensáveis no início
do século. Ao mesmo tempo, ocorria a rápida erosão de hábitos e atitudes que dividiram
povos e nações ao longo de incontáveis séculos, e que pareciam destinados a perdurar
pelas eras vindouras.
No período mediano deste século, estes dois processos produziram um avanço cuja
significação histórica somente será devidamente apreciada por gerações futuras. Em
meio às conseqüências funestas da Segunda Guerra Mundial, líderes com grande visão
de futuro perceberam ser finalmente possível começar, através da Organização das
Nações Unidas, a consolidação das bases da ordem mundial. O novo sistema de
convenções internacionais e organismos correspondentes, que havia sido há muito
sonhado por pensadores progressistas, fora agora dotado com poderes vitais que haviam
sido negados à abortiva Liga das Nações. À medida que o século avançava, as forças
primitivas do sistema de manutenção da paz internacional foram progressivamente
exercitadas, e puderam demonstrar de forma persuasiva o que pode ser conquistado. Ao
mesmo tempo, ocorreu a expansão contínua de instituições democráticas de governo em
todo o mundo. Conquanto os efeitos práticos ainda sejam desapontadores, isto de modo
algum diminui o significado da histórica e irreversível mudança de rumo ocorrida na
organização dos assuntos humanos.
E assim como ocorreu com a ordem mundial, também se deu com os direitos dos povos
do mundo. A divulgação dos sofrimentos estarrecedores que afligiram as vítimas da
perversidade humana durante a guerra causou consternação mundial e um sentimento
que só pode ser descrito como profunda vergonha. Desta experiência traumática nasceu
um novo tipo de comprometimento moral que foi formalmente institucionalizado nos
trabalhos da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas e seus organismos
associados, avanço este que seria inconcebível para os governantes do século dezenove
aos quais Bahá’u’lláh se havia manifestado sobre o assunto. Reforçado com esta
legitimidade, um conjunto crescente de organizações não-governamentais dedicou-se a
garantir que a Declaração Universal de Direitos Humanos fosse estabelecida como a
base dos critérios normativos internacionais e que fosse devidamente obedecida.
Um processo paralelo ocorreu em relação à vida econômica. Durante a primeira metade
do século, como conseqüência dos estragos causados pela grande depressão, muitos
governos adotaram medidas legislativas para a criação de programas de bem-estar social
e sistemas de controle financeiro, fundos de reserva e normas de comércio que
protegessem a sociedade de seus países da repetição de experiências tão devastadoras. O
período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial trouxe consigo o estabelecimento de
instituições com um campo de operação global: o Fundo Monetário Internacional, o
Banco Mundial, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio e uma rede de agências de
desenvolvimento dedicadas a racionalizar e promover a prosperidade material do
planeta. Ao encerrar-se o século " não importa quais sejam as intenções nem quão
inadequados os instrumentos atuais " as massas da humanidade puderam comprovar que
o uso das riquezas do planeta pode ser reorganizado em resposta a concepções
inteiramente novas sobre quais são as necessidades existentes.
O efeito dessas mudanças se viu grandemente ampliado pela expansão acelerada da
educação das massas. Além da disposição dos governos nacionais e locais de alocar
recursos muito maiores a este campo e da habilidade da sociedade em mobilizar e
capacitar um exército de professores com qualificação profissional, dois outros avanços
ocorridos a nível internacional durante o século vinte tiveram uma influência particular.
O primeiro foi uma série de planos de desenvolvimento centrados nas necessidades
educacionais, os quais dispunham de enormes recursos financeiros provenientes de
instituições como o Banco Mundial, organismos governamentais, grandes fundações e
diversos ramos do sistema das Nações Unidas. O segundo foi a explosão da tecnologia
de informação, a qual tornou todos os habitantes do planeta potenciais beneficiários de
todo o saber acumulado pela raça humana.
Este processo de reorganização em escala planetária foi animado e reforçado por uma
profunda mudança de consciência. Populações inteiras viram-se repentinamente
forçadas a pagar o preço por hábitos de pensamento arraigados e causadores de conflito
e de fazê-lo ante a censura mundial que condenava o que antes se reputava como
práticas e atitudes aceitáveis. Isso estimulou uma mudança revolucionária no modo
como as pessoas vêem umas às outras.
Ao longo da história, por exemplo, a experiência parecia demonstrar e os ensinamentos
religiosos pareciam confirmar que as mulheres eram por natureza essencialmente
inferiores aos homens. Então, da noite para o dia, numa perspectiva histórica, essa
noção dominante subitamente começou a se desintegrar em todas as terras. Por mais
longo e penoso que seja o processo de trazer plenamente à realidade a afirmação de
Bahá’u’lláh de que as mulheres e os homens são iguais em todos os sentidos, o fato é
que a cada dia se torna mais fraco o apoio moral e intelectual a qualquer visão que
contradiga esta realidade.
Outra característica da maneira como a humanidade via a si mesma ao longo dos
milênios passados era a exaltação das diferenças étnicas, coisa que, nos séculos
recentes, cristalizou-se em várias fantasias racistas. Com uma rapidez impressionante,
se considerada a perspectiva histórica, o século vinte viu a unidade da espécie humana
estabelecer-se como princípio norteador da ordem internacional. Hoje em dia, os
conflitos étnicos que continuam assolando várias partes do mundo não mais são vistos
como um aspecto natural das relações entre povos distintos, mas sim como aberrações
arbitrárias que precisam ser submetidas a um controle internacional efetivo.
Durante a longa infância da humanidade, também, pensava-se - outra vez com a total
concordância da religião institucionalizada - que a pobreza era uma característica
permanente e inevitável da ordem social. Agora, porém, essa mentalidade, cujas
premissas moldaram as prioridades de todos os sistemas econômicos que o mundo
conheceu, já foi universalmente rejeitada. Pelo menos em teoria, em todas as partes os
governos são vistos essencialmente como fiduciários responsáveis por garantir o bem-
estar de todos os membros da sociedade.
Especialmente significativa - por sua relação íntima com as raízes da motivação humana
- foi o afrouxamento das amarras do preconceito religioso. Antecipado pelo
“Parlamento das Religiões”, que atraiu intenso interesse no final do século dezenove, o
processo de diálogo e colaboração entre as religiões reforçou os efeitos da secularização
no sentido de abalar as muralhas antes inexpugnáveis da autoridade clerical. Em vista da
transformação experimentada pelas concepções religiosas nos últimos cem anos, até
mesmo as explosões contemporâneas de reação fundamentalista podem ser vistas, em
retrospectiva, como nada mais que desesperadas ações de retaguarda contra a
dissolução inevitável do controle sectário. Nas palavras de Bahá’u’lláh, “Não pode
haver dúvida alguma de que os povos do mundo, de qualquer raça ou religião que
sejam, derivam sua inspiração de uma só Fonte Celestial e são súditos de um só Deus.”
Durante estes críticos decênios, a consciência humana também experimentou mudanças
fundamentais em seu modo de compreender o universo físico. A primeira metade do
século testemunhou como as novas teorias da Relatividade e da Mecânica Quântica -
ambas intimamente relacionadas com a natureza e o comportamento da luz -
revolucionaram o campo da Física e alteraram por completo o rumo do
desenvolvimento científico. Tornou-se evidente que a Física clássica somente podia
explicar os fenômenos dentro de um campo limitado. Subitamente abrira-se uma nova
porta para o estudo tanto dos mais diminutos componentes do universo quanto de seus
imensos sistemas cosmológicos, mudança esta cujos efeitos foram muito além das
fronteiras da Física e abalaram as próprias bases da cosmovisão que durante séculos
dominara o pensamento científico. Perderam-se para sempre as imagens de um universo
mecânico que funcionava como um relógio e a suposta independência entre o
observador e o observado, entre a mente e a matéria. Com base nos fecundos estudos
que assim se tornaram possíveis, a ciência teórica agora começa a investigar a
possibilidade de que a intenção e a inteligência sejam de fato inerentes à natureza e à
operação do universo.
No rastro dessas mudanças conceituais, a humanidade ingressou numa era na qual a
interação entre as ciências da natureza - Física, Química e Biologia, juntamente com a
nascente ciência da Ecologia - inaugurou possibilidades espantosas para o
aprimoramento da vida. Impressionantes são os benefícios colhidos em áreas de tão
vital interesse como a agricultura e a medicina, bem como os decorrentes do
aproveitamento eficaz de novas fontes de energia. Ao mesmo tempo, o novo campo da
ciência dos materiais começou a oferecer uma rica gama de recursos especializados
desconhecidos no início do século, como o plástico, as fibras óticas e as fibras de
carbono.
Tais progressos na ciência e na tecnologia tiveram efeitos recíprocos. Grãos de areia - o
elemento material mais humilde e de menor valor aparente - metamorfoseados em
lâminas de silício e cristal ótico depurado viabilizaram a criação de redes de
comunicação mundial. Isto, juntamente com o emprego de sistemas de satélite cada vez
mais sofisticados, começou a permitir que pessoas de todas as partes, sem distinção,
tivessem acesso ao conhecimento acumulado de toda a espécie humana. É evidente que
as décadas de um futuro próximo verão a integração das tecnologias da informática,
telefonia e televisão num único sistema unificado de comunicação e informação, cujos
aparelhos estarão disponíveis em larga escala e a baixo custo. Seria difícil exagerar o
impacto psicológico e social resultante da esperada substituição da atual mistura
confusa de sistemas monetários - para muitos o último baluarte do orgulho nacional -
por uma única moeda mundial transacionada principalmente através de impulsos
eletrônicos.
Efetivamente, o efeito unificador da revolução do século vinte se mostra especialmente
claro nas repercussões resultantes das mudanças ocorridas na vida científica e
tecnológica. O nível mais óbvio é que a espécie humana agora domina os meios
necessários para implementar as metas visionárias evocadas por uma consciência em
constante amadurecimento. Numa visão mais profunda, esta capacitação está agora
virtualmente ao alcance de todos os habitantes da terra, sem distinção de raça, cultura ou
nação. “Uma vida nova”, foi a visão profética de Bahá’u’lláh, “nesta era, está vibrando
em todos os povos da terra; contudo, ninguém lhe descobriu a causa nem percebeu o
motivo” . Hoje, passado mais de um século desde que tais palavras foram escritas, as
implicações de tudo o que ocorreu desde então começam a ser evidentes para todos
aqueles que refletem.
III
Apreciar as transformações experimentadas durante o período histórico que agora finda
não significa negar a escuridão concomitante que marca, com forte contraste, estas
conquistas: o extermínio deliberado de milhões de seres humanos, a invenção e o uso de
novas armas de destruição capazes de aniquilar toda uma população, o surgimento de
ideologias que sufocaram a vida intelectual e espiritual de nações inteiras, o dano
causado ao meio ambiente numa escala tão maciça que pode exigir séculos para ser
revertido, e o dano incalculavelmente maior sofrido por gerações de crianças ensinadas
a crer que a violência, a indecência e o egoísmo são vitórias da liberdade individual.
Estes são apenas os mais óbvios de um rol de males sem igual na história, cujas lições
nossa era deixará de legado para a educação das gerações purificadas que nos
sucederão.
A escuridão, entretanto, não é um fenômeno dotado de existência própria, muito menos
de autonomia. Ela não pode apagar a luz, nem enfraquecê-la; tão somente demarca
aquelas áreas não atingidas pela luz, ou que são pouco iluminadas. É dessa forma que,
certamente, o século vinte será julgado pelos historiadores de uma era mais madura e
desapaixonada. A ferocidade da natureza animal - irrefreada ao longo destes anos
críticos e que, em certas ocasiões, pareceu ameaçar a própria sobrevivência da
sociedade -, de fato, não impediu a manifestação progressiva das potencialidades
criativas que a mente humana possui. Pelo contrário. À medida em que avançava o
século, um número crescente de pessoas despertou para a vacuidade das lealdades e a
irrealidade dos temores que as haviam aprisionado apenas poucos anos antes.
“Incomparável é este Dia”, insiste Bahá’u’lláh, “pois é como olhos para séculos e eras
passados, como uma luz para a escuridão dos tempos” . Vista desta perspectiva, a
questão não é a escuridão que freiou e obscureceu o progresso alcançado nos cem anos
extraordinários que agora terminam. Trata-se, isto sim, de considerar quanto sofrimento
e desgraça nossa espécie terá ainda de sofrer até que aceitemos de coração a natureza
espiritual que faz de nós um só povo e tenhamos coragem para planejar nosso futuro à
luz das lições aprendidas através de tanta dor.
IV
A concepção dos rumos futuros da civilização exposta nos escritos de Bahá’u’lláh
desafia boa parte daquilo que hoje se impõe em nosso mundo como normativo e
imutável. Os avanços alcançados durante o século de luz abriram o caminho para um
novo tipo de mundo. Se a evolução social e intelectual realmente se dá em resposta a
uma inteligência moral inerente à existência, grande parte da teoria que orienta os
enfoques contemporâneos em relação à tomada de decisões é fatalmente defeituosa. Se
a consciência humana é de natureza essencialmente espiritual - conforme sempre foi a
intuição da grande maioria das pessoas simples - então suas necessidades de
desenvolvimento não podem ser nem compreendidas nem supridas por uma
interpretação da realidade que insiste dogmaticamente no sentido contrário.
Nenhum aspecto da civilização contemporânea é mais frontalmente questionado pela
concepção de Bahá’u’lláh a respeito do futuro, do que o culto reinante ao
individualismo, o qual se difundiu na maior parte do mundo. Alimentado por forças
culturais como as ideologias políticas, o elitismo acadêmico e a sociedade de consumo,
a “busca da felicidade” fez brotar um sentimento agressivo e quase ilimitado de direito
pessoal. As conseqüências morais foram corrosivas tanto para o indivíduo quanto para a
sociedade e devastadoras em termos de enfermidades, dependência de drogas e outras
pragas tão lamentavelmente familiares a este final de século. A tarefa de livrar a
humanidade de um erro tão fundamental e tão difundido exigirá o questionamento de
algumas das suposições mais arraigadas desenvolvidas pelo século vinte a respeito do
que é certo e do que é errado.
Quais são algumas destas suposições não questionadas? A mais óbvia é a convicção de
que a unidade é um ideal longínquo, quase inatingível, a ser buscado apenas depois que
se tenha resolvido, não se sabe bem como, uma miríade de conflitos políticos,
necessidades materiais e injustiças. Bahá’u’lláh afirma que é justamente o contrário que
deve ocorrer. A enfermidade fundamental que aflige a sociedade e gera os males que a
mutilam, Ele assegura, é a desunião de uma espécie que se distingue por sua capacidade
de colaboração e cujo progresso, até hoje, dependeu da medida em que, em diferentes
épocas e em diversas sociedades, uma ação unificada pôde ser lograda. Aferrar-se à
noção de que o conflito é um traço intrínseco à natureza humana, em vez de um
complexo de hábitos e atitudes aprendidos, significa impor ao novo século um erro que,
mais do que qualquer outro fator isolado, prejudicou tragicamente o passado da
humanidade. “Vede o mundo”, aconselhou Bahá’u’lláh aos líderes eleitos da
humanidade, “como o corpo humano, o qual, embora inteiro e perfeito no tempo de sua
criação, tem sido afligido, por várias causas, com graves males e doenças.”
Há ainda um segundo desafio moral, intimamente relacionado com a questão da
unidade, que o século que agora termina levantou com urgência cada vez maior. Aos
olhos de Deus, Bahá’u’lláh insiste, a justiça é “a mais amada de todas as coisas” .
Através dela cada pessoa pode enxergar a realidade com seus próprios olhos, e não com
os alheios, e ela dota a tomada coletiva de decisões com aquela autoridade que é a única
garantia da unidade de pensamentos e ação. Por mais gratificante que seja o sistema de
ordem internacional nascido das experiências dilacerantes do século vinte, sua
influência duradoura dependerá da aceitação do princípio moral nele implícito. Se o
corpo da humanidade é realmente uno e indivisível, então a autoridade exercida por suas
instituições governantes representa, essencialmente, um fideicomisso. Cada indivíduo
vem ao mundo como uma responsabilidade do todo, e é esse aspecto da existência
humana que constitui o verdadeiro alicerce dos direitos sociais, econômicos e culturais
articulados na Carta das Nações Unidas e em seus documentos subsidiários. A justiça e
a unidade têm efeitos recíprocos. “O objetivo da justiça”, Bahá’u’lláh escreveu, “é fazer
aparecer entre os homens a unidade. O oceano da sabedoria divina surge dentro desta
palavra elevada, enquanto os livros do mundo não podem conter seu significado mais
íntimo.”
A medida que a humanidade se compromete - ainda que de forma hesitante e temerosa -
com esses e outros princípios morais correlacionados, o papel mais significativo
oferecido ao indivíduo será o de servir aos demais. Um dos paradoxos da vida humana é
que o desenvolvimento do próprio eu se dá primariamente através da consagração a um
empreendimento maior no qual o eu - mesmo que apenas temporariamente - é
esquecido. Numa era que oferece às pessoas de qualquer condição uma oportunidade
para participar efetivamente na construção da própria ordem social, o ideal do serviço
aos demais assume um significado inteiramente novo. Exaltar metas tais como o
consumo e a autopromoção como sendo o propósito da vida significa promover acima
de tudo o lado animal da natureza humana. Tampouco podem as mensagens simplistas
de salvação pessoal atender aos anseios de gerações que puderam comprovar, com
absoluta certeza, que a verdadeira plenitude é tanto um assunto deste mundo quanto do
vindouro. “Cuidai zelosamente das necessidades da era em que viveis”, é o conselho de
Bahá’u’lláh, “e concentrai vossas deliberações em suas exigências e seus requisitos”.
Essas perspectivas têm implicações profundas no que se refere à condução dos assuntos
humanos. É óbvio, por exemplo, que, independente de suas contribuições no passado,
quanto mais o Estado-Nação perdurar como influência dominante na determinação do
destino da humanidade, tanto mais tardará a conquista da paz mundial e tanto maior será
o sofrimento infligido à população do mundo. Na vida econômica da humanidade, não
importa quão grandes tenham sido as bênçãos trazidas pela globalização, é evidente que
este processo também gerou uma concentração de poder autocrático sem paralelo, que
precisa ser colocada sob o controle democrático internacional a fim de não ser causa da
pobreza e do desespero de incontáveis milhões. De igual modo, os avanços históricos na
tecnologia da comunicação e da informação, que representam um meio tão poderoso
para a promoção do desenvolvimento social e para o aprofundamento da consciência
dos povos em relação à sua natureza comum, pode, com força idêntica, desviar ou
embrutecer impulsos que são vitais para a promoção deste processo.
V
O tema que Bahá’u’lláh apresenta é uma nova relação entre Deus e os homens, que
esteja de acordo com a nascente maturidade da raça humana. A Realidade última que
criou e sustenta o universo permanecerá para sempre além do alcance da mente humana.
A relação consciente da humanidade com ela, na medida em que foi estabelecida, deu-
se como resultado da influência dos Fundadores das grandes religiões: Moisés,
Zoroastro, Buda, Jesus, Maomé e outros personagens anteriores cujos nomes, em sua
maior parte, caíram no esquecimento. Ao responder a estes impulsos do divino, os
povos da terra desenvolveram progressivamente as capacidades espirituais, intelectuais
e morais que atuaram em conjunto para civilizar o caráter humano. Este processo
milenar e cumulativo alcançou agora aquele estágio característico de todos os
momentos decisivos dos processos evolutivos, quando, subitamente, possibilidades
nunca antes imaginadas se manifestam: “Este é o Dia”, assevera Bahá’u’lláh, “em que
os mais excelentes favores de Deus manaram sobre os homens, o Dia em que Sua graça
suprema se infundiu em todas as coisas criadas.”
Vista através dos olhos de Bahá’u’lláh, a história das tribos, povos e nações chegou,
efetivamente, ao seu fim. O que presenciamos agora é o início da história da
humanidade, a história de uma espécie humana consciente de sua própria unicidade.
Para esta hora decisiva no curso da civilização, seus escritos oferecem uma redefinição
da natureza e do processo da civilização e uma reorientação de suas prioridades. Seu
objetivo é chamar-nos de volta à consciência e à responsabilidade espirituais.
Nada existe nos escritos de Bahá’u’lláh que abone a ilusão de que as mudanças
previstas serão alcançadas facilmente. Muito pelo contrário. Como os acontecimentos
do século vinte já demonstraram, padrões de hábito e atitude arraigados durante
milênios não são abandonados espontaneamente, nem simplesmente em resposta à
educação e à ação legislativa. Seja na vida dos indivíduos como na da sociedade,
mudanças profundas em geral ocorrem como resposta ao sofrimento intenso e a
dificuldades insuportáveis que não deixam outra saída. É precisamente uma experiência
de tamanho sofrimento, advertiu Bahá’u’lláh, que se faz necessária para fundir os
diversos povos da terra em um só povo.
A concepção espiritual e a materialista quanto à natureza da realidade são
irreconciliáveis entre si e conduzem a direções opostas. Ao abrir-se um novo século, a
rota determinada pela segunda destas visões antagônicas já fez com que a humanidade,
desafortunada, vagasse muito além dos limites até onde se podia, em certa época,
alimentar uma ilusão da racionalidade, ou, ainda menos, de bem-estar humano. A cada
dia que passa, multiplicam-se os sinais de que as pessoas, em todas as partes, estão
despertando para este entendimento.
A despeito da opinião prevalecente em sentido contrário, a espécie humana não é uma
tábua rasa sobre a qual alguns árbitros privilegiados dos assuntos humanos podem
inscrever livremente seus próprios desejos. As fontes do espírito manam onde e como
queiram. E elas não serão indefinidamente refreadas pelos detritos da sociedade
contemporânea. Não se faz mais necessária uma visão profética para perceber que os
anos iniciais do novo século testemunharão a liberação de energias e aspirações
infinitamente mais poderosas do que as rotinas, falsidades e vícios acumulados que por
tanto tempo impediram sua expressão.
Por maior que seja o tumulto, o período no qual a humanidade está ingressando abrirá a
cada indivíduo, cada instituição e cada comunidade da terra oportunidades sem
precedentes para participar na tarefa de escrever o futuro do planeta. “Breve”, é a
promessa segura de Bahá’u’lláh, “será a presente ordem posta de lado, e uma nova
ordem se estenderá em seu lugar.” -