Quilombos, Favelas e Os Modelos de Ocupação Dos Subúrbios, Algumas Reflexões Sobre a Expansão...

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Quilombos, favelas e os modelos de ocupação dos subúrbios: algumas reflexões sobre a expansão urbanas sob a ótica dos grupos segregados Publicado em 11 de novembro de 2013 | 0 comentários Por Andrelino Campos[1] Introdução[2] O tema segregação sócio-espacial sempre esteve presente na literatura acadêmica. Algumas vezes aparece mais, em outros momentos, apresenta-se de forma latente. A análise, de forma geral, é sempre para dar conta de alguma situação de apartação, seja no formato voluntário, a auto-segregação, ou seja da forma involuntária, a segregação induzida (ambas muito presente nos dias atuais) tem lógica explicativa distinta. Aqui, focaremos a segunda como forma de análise como dos elos para entender a expansão do tecido urbano carioca. Em larga medida, discutir favelas é falar também de preconceitos e discriminação que parte dos moradores de grandes centros urbanos tem com relação ao lugar e aos seus habitantes. Em se tratando de Rio de Janeiro, ficam evidentes tais procedimentos, pois desde sua origem, se se pensar em um processo, os lugares ocupados pelos mais pobres recebem pouca atenção do poder público no que se refere ao tamanho dos problemas sociais. Entretanto, como no passado, em sua versão anterior a República: o quilombo, a favela recebe uma atenção especial do aparelho policial, tendo em vista que favelas e favelados são considerados como um caso de polícia, mas não como um problema da sociedade. O artigo será dividido em duas partes. Na primeira parte, estaremos analisando os moldes de expansão urbana da cidade do Rio de Janeiro. Está analise será emoldurada pela questão étnico-racial, sobretudo como as relações quilombo/Império e favela/República aconteceram e seu desdobramento espacial na cidade do Rio de Janeiro. Na segunda parte pretendemos desenvolver modelagem que sirvam

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Quilombos, Favelas e Os Modelos de Ocupação Dos Subúrbios, Algumas Reflexões Sobre a Expansão Urbanas Sob a Ótica Dos Grupos Segregado

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Quilombos, favelas e os modelos de ocupao dos subrbios: algumas reflexes sobre a expanso urbanas sob a tica dos grupos segregados

Publicado em 11 de novembro de 2013 |0 comentriosPor Andrelino Campos[1]Introduo[2]O tema segregao scio-espacial sempre esteve presente na literatura acadmica. Algumas vezes aparece mais, em outros momentos, apresenta-se de forma latente. A anlise, de forma geral, sempre para dar conta de alguma situao de apartao, seja no formato voluntrio, a auto-segregao, ou seja da forma involuntria, a segregao induzida (ambas muito presente nos dias atuais) tem lgica explicativa distinta. Aqui, focaremos a segunda como forma de anlise como dos elos para entender a expanso do tecido urbano carioca.

Em larga medida, discutir favelas falar tambm de preconceitos e discriminao que parte dos moradores de grandes centros urbanos tem com relao ao lugar e aos seus habitantes. Em se tratando de Rio de Janeiro, ficam evidentes tais procedimentos, pois desde sua origem, se se pensar em um processo, os lugares ocupados pelos mais pobres recebem pouca ateno do poder pblico no que se refere ao tamanho dos problemas sociais. Entretanto, como no passado, em sua verso anterior a Repblica: o quilombo, a favela recebe uma ateno especial do aparelho policial, tendo em vista que favelas e favelados so considerados como um caso de polcia, mas no como um problema da sociedade.

O artigo ser dividido em duas partes. Na primeira parte, estaremos analisando os moldes de expanso urbana da cidade do Rio de Janeiro. Est analise ser emoldurada pela questo tnico-racial, sobretudo como as relaes quilombo/Imprio e favela/Repblica aconteceram e seu desdobramento espacial na cidade do Rio de Janeiro. Na segunda parte pretendemos desenvolver modelagem que sirvam como ferramenta explicativa para que possamos compreender como foram efetivadas as ocupaes espaciais dos subrbios cariocas. Essa modelagem um esforo pretende comear a mostrar que algumas reas da cidade, historicamente, foram palcos de polticas pblicas improvisadas, e foram acompanhadas pela populao com construo de moradias improvisadas, constituindo, assim uma cidade que aparenta eteno fazer, resultado, em geral, da precariedade.

1) As origens do espao favelado no Rio de Janeiro: algumas discusses a expanso urbanaFalar em favela sem rediscutir a sua origem encarar o problema da segregao scio-espacial como um fato isolado, naturalizado, em nossa sociedade. A explicao, em geral, se faz pela conjuntura, ligada a algum conflito, seja interno, seja de carter externo, ou busca-se explicao na estrutura, ligando-se explicao econmica. Em se tratando do aspecto conjuntural, os fenmenos interno e externo contriburam para ampliao da favelizao, mas no podem ser considerados como nicos responsveis pelo surgimento das favelas. Por outro lado, se no podemos contar a histria de um fato produzido pela sociedade sem explicar em que processos so derivados, no lgico pensar as favelas a partir da sua prpria existncia. Portanto, em que processo pede-se enquadrar o surgimento das favelas? Para responder tal questo, pensa-se ento em uma nica possibilidade: o quilombo.

O quilombo, como um dos catalisadores das questes sociais emergidas no sistema escravista, surge como uma das opes de anlise, possibilitando em um nico processo de formao scio-espacial entender cultura, poltica, discriminao, segregao espacial e, fundamentalmente, a criminalizao dos mais pobres.

A partir da, tendo a afirmar que algumas dessas apropriaes espaciais, sobretudo aquelas localizadas prximas s freguesias urbanas, ao perderem a funo de espao de luta resistncia[3] e tendo em vista a Abolio, continuaram a ser ocupadas, transmutando-se posteriormente em favelas, como apenas espao de moradias no espao urbano.

Espacialmente, a excluso[4]econmica transforma-se em segregao a partir da separao dos usos do solo urbano. Esta diferenciao foi produzida no sentido de dotar algumas dessas reas da cidade com infra-estrutura que, naturalmente, j teriam amenidades, fazendo-as ainda mais distintas de outras. Como a propriedade de cada parcela do solo urbano depende da renda do indivduo, ento as melhores reas foram apropriadas (destinadas) aos indivduos de maior renda[5]. Entretanto, como os significados espaciais so instveis, as reas consideradas inadequadas para receber investimentos, sobretudo dos promotores imobilirios, transformaram-se com o decorrer do tempo, adquirindo valor de mercado para o capital. Exemplos clssicos foram os casares da rea central da cidade que habitados at o meado do sculo XIX pelas classes de alta e mdia renda so posteriormente transformados em casas de cmodos (cortios) e ocupados pelas classes pobres, pagando altos aluguis, como demonstrou Muniz SODR (1988).

A favela, segundo a concepo clssica de ocupao dos espaos urbanos pelos mais pobres, principalmente pelos afro-descendentes, enquadra-se em trs verses. Todas tm em comum a autorizao a permisso das autoridades , para que um grupo de retornados de batalhas ou os desalojados da demolio do Cabea de Porco, em sua maioria negros, pudessem se alojar nas encostas do antigo Morro da Favela[6]ou em suas proximidades. A primeira e a segunda verso tm em comum os retornados de batalhas. A primeira refere-se Guerra do Paraguai (1869) e a segunda Guerra de Canudos (1897).Enquanto a Guerra do Paraguai, o Pas ainda vivia sob o sistema escravagista e na segunda verso, em plena Repblica. Contudo a percepo dos autores tem a mesma perspectiva. Se por um lado, em 1870, segundo CUNHA (1985:44-5), o governo [imperial] havia prometido alforria aos escravos que fossem combater. Tudo leva a crer que o oferecimento foi tomado de sucesso, apesar da grita dos senhores de escravos (id.,ibid). No obstante a ausncia na literatura, a arregimentao ocorreu em todas as provncias. Tanto o fim da Guerra do Paraguai como a Guerra de Canudos resultaram em na ruptura da identidade espacial (formado sobretudo pelo sujeitos em ao e sistema de objeto)[7]de parte dos retornados das batalhas. Para os autores da coletnea NOSSO SCULO, BRASIL: 1900-1910 (1985:40), os habitantes que acorreram as habitaes toscas das encostas somalandros(bomios, ladres, valentes) ou aqueles cuja idade avanada ou as doenas (como a tuberculose) incapacitaram para o trabalho. As mulheres lavam e costuram para fora, e as crianas vendem pela cidade doces, balas e jornais. Predominaram os negros, que j se reuniam em favelas antes mesmo da Abolio, pois o governo Imperial havia alforriado multides de escravos para envi-los Guerra do Paraguai (1865-1870). Os que retornaram, muitos mutilados, alojaram-se nestas habitaes (Brasil 1900-1910, 1985:40).

A segunda tese sobre o surgimento de favelas no Rio de Janeiro, aceita e difundida por M. de A. ABREU (1988; 1990), no a enquadramos na ordem cronolgica, mas de acordo com a motivao: retornados de batalhas. O autor escreve: j presente embrionariamente na cidade desde 1897, quando foi dada a autorizao para que os praas retornados da campanha de Canudos ocupassem provisoriamente os morros da Providncia e de Santo Antnio, esta forma de ocupao dos morros logo se revelou a soluo ideal para o problema da habitao popular do Rio de Janeiro. De local de moradia provisrio, esses morros da rea Central logo foram transformados em opo de residncia permanente[8]..

A destruio do Cabea de Porco e de outros cortios a terceira verso provocou um deslocamento em direo s encostas. Observa-se que as encostas da Tijuca, por exemplo, j estavam ocupadas desde os anos 1870, com a modernizao dos transportes. A movimentao da populao mais pobre, em sua grande maioria negra, recm libertada da escravido, foi em direo s encostas localizadas na rea central, pois aa ofertas de ocupao estavam nesta rea mais dinmica da cidade. a partir deste dado que Lilian Fessler Vaz elabora sua tese de surgimento das favelas, com a qual trabalha CHALHOUB (1996a) . Segundo este estudo, a destruio do Cabea de Porco deixou cerca de quatro mil pessoas sem abrigo e o prefeito Barata Ribeiro autorizou o deslocamento dos moradores (id., ibid.:17)

Nos trs relatos, a ocupao desses espaos era feita, em grande parte, pela populao negra, que j residiam antes da Abolio, pressupe-se ento que tanto a criminalizao quanto a discriminao[9]j preexistiam. Portanto, os estigmas vividos hoje pela populao favelada so anteriores existncia da prpria favela. Em sendo assim, temos a necessidade de buscar explicaes na formao scio-espacial do sistema escravista, ou seja, nos quilombos, espao de resistncia criado pelos negros fugidos do cativeiro.

A favela surge no cenrio urbano do Rio de Janeiro sem estar contextualizada em um processo social, mas como resultante de fatos espaciais e temporalmente delimitados. Uma das possibilidades entender a favela como uma transmutao do espao quilombola, pois, no sculo XX, a favela representa para a sociedade o mesmo que o quilombo representou para a sociedade escravocrata. Um e outro, guardando as devidas propores histricas, vm integrando as classes perigosas. Os quilombolas por terem representado, no passado, ameaa ao Imprio; enquanto os favelados se constituram elementos socialmente indesejveis, aps a instalao da Repblica.

Aps 1888, o quilombo j no poderia ser visto como um espao de resistncia de luta, pois o sistema escravista, em tese, havia acabado. Legalmente no fazia sentido considerar tal sistema de ocupao territorial como uma ameaa hegemonia das classes dominantes: antigos latifundirios, transmutados em republicanos. Esses espaos, apropriados primeiro pelos quilombos, posteriormente ocupados por negros (ex-escravos), brancos pobres e imigrantes foram incorporados cidade. Considerando apenas a expanso orientada pela classe dominante e os interesses do Estado. Os modelos de expanso urbana atendem perfeitamente a esta dinmica, ou seja, os modelos clssicos do conta de um movimento de expanso do centro para a periferia de acordo com o modelo tradicional de expanso urbana de economias exportadoras (CORRA, 1989: 46-92).

Entretanto, se levarmos em considerao que os quilombos periurbanos so, em certa medida, artfices da dinmica de expanso urbana, a direo do fluxo tende a ter duplo sentido: o sentido clssico, centro periferia e o sentido inverso, no formal, o ilegal, j que no estava previsto nos planos de reestruturao urbana.

Alm destes fatos, h necessidade de analisar outro ponto relevante no quadro da expanso urbana. Pela apropriao espacial empreendidas at a data da Abolio, os negros livres s poderiam ser criminalizados se a propriedade do terreno fosse reivindicada por terceiro com registro na igreja local. Se as terras fossem pblicas, a apropriao deveria ser considerada como um direito para aquele que chegasse primeiro. Entretanto, existe evidncia de que as terras apropriadas por negros tanto nas freguesias urbanas quanto nas periurbanas foram postas na ilegalidade, no se admitindo a propriedade das pessoas no-brancas. Portanto, falar em expanso urbana sem levar em considerao os grupos de menor renda que movimenta o espao das metrpoles em aes que no se inscrevem nos planos dos gestores das metrpoles tornou-se, ao longo da histria das mesmas, um contra-senso.

2) Os modelos de ocupao dos subrbios cariocas: polticas pblicas provisrias geram produo de espao improvisadoNo processo de expanso urbana, os mais pobres movimentaram primeiro para ocupar as favelas nas proximidades das reas centrais, somente com advento da implantao malha ferroviria chega distncias maiores: os subrbios. O processo de ocupao dos subrbios tomou, a princpio, uma forma linear, localizando-se as casas e alguma atividade comercial ao longo da ferrovia e com maior concentrao em torno das estaes. Aos poucos, entretanto, ruas secundrias, perpendiculares via frrea, foram sendo abertas porproprietrios de terras ou por pequenas companhias loteadoras, dando incio assim a um processo de crescimento radial, que se intensificaria cada vez mais com o passar dos anos (ABREU, 1988, p. 50; o destaque nosso). O esquema abaixo nos mostrar como ocorreu a ocupao das reas suburbanas, levando em considerao o assentamento dos trilhos e das estaes de trens. Essa proposta segue exemplo de dois modelos de segregao: 1) a elite junto ao centro; 2) no processo de expanso urbana e modernizao dos transportes, h uma descentralizao dos grupos de maior renda. O primeiro foi estabelecido pelo gegrafo alemo J. G. Kohl (1841), situando a classe de maior poder junto rea central, seguida por anis perifricos, onde estariam localizados os grupos de classe mdia e renda baixa. A mobilidade intra-urbana era muito limitada, e construir moradia junto ao Centro era uma necessidade para as elites e para as atividades mais dinmicas da economia (CORRA, 1989, pp. 67-8). O segundo modelo de segregao apresentado pelo autor aquele em que h uma inverso, seguindo o padro espacial das grandes cidades americanas, cujas elites estabelecem como reas preferenciais para construo de moradia as perifricas ao Centro da cidade, ficando a rea central com as pessoas de menor renda. Observa o autor que, inicialmente, as classes dominantes localizam-se de acordo com o modelo apresentado por Kohl, descentralizando-se mais tarde, possivelmente, pelos mesmos motivos que ABREU (1988) nos informa: a modernizao dos transportes urbanos possibilita maior mobilidade espacial dos grupos de maior renda, impedindo, de certa maneira, pelo custo, que os grupos de menor renda faam o mesmo.

Tendo em vista os dois modelos de segregao, percebeu-se que a ocupao do espao suburbano no se deu de maneira linear, ou seja, medida que os trilhos eram assentados e as estaes construdas, a populao e as atividades econmicas, logo depois, passavam a desenvolver a rea. Ao contrrio, nem todas as estaes foram palco de ocupao intensiva, e algumas tiveram o entorno parcialmente habitado, constituindo modelagens diferentes. Dessa maneira, aps a construo das estaes, sobretudo no ramal da antiga Central do Brasil, a ocupao seguiu lgica diferente e espacializao tambm diferente. Algumas estaes receberam populao que ocupou as duas margens da linha frrea, tendo como ponto de partida sempre essas construes, ponto de referncia para o desenvolvimento de atividade econmica e moradia. Inicialmente, o comrcio era incipiente, mas medida que a densidade populacional aumenta, amplia-se tambm o nmero de pequeno comrcio, como acontece na formao dos vilarejos em cidades do interior. Com o tempo, mais ruas so abertas e abrigam mais e mais moradias e outras atividades, at cobrir uma grande rea dos dois lados da linha frrea. Esse modelo de ocupao espacial, iniciado a partir da segunda metade do sculo XIX e consolidado ao longo do sculo XX, recebeu a denominaorea de ocupao completa.Os bairros que melhor representam essa espacializao, no Rio de Janeiro, so: Mier, Madureira, Cascadura, Marechal Hermes, Bangu, Campo Grande, Santa Cruz, Bonsucesso, Ramos, Caxias etc.

Se levarmos em considerao a importncia de alguns desses bairros para a questo urbana do Rio de Janeiro, estaremos diante da formao de subcentros que drenam recursos e renda dos bairros vizinhos, como o caso de Mier, Madureira, Bangu, Campo Grande etc. Alguns desses lugarejos atraem consumidores, mas no conseguem exercer o mesmo papel, como caso Cascadura, Ramos, Bonsucesso, entre outros bairros. Outras localidades acabam desempenhando papis tambm administrativos, visto que abrigam crescente demanda pela presena do poder pblico. Esse fato acaba criando possibilidades polticas e valorizao progressiva do solo urbano, concomitantemente da propriedade privada, beneficiando, assim, os moradores que residem nessa rea.

Porm, nem todos os bairros suburbanos se constituram de acordo com essa dinmica. A maior parte desses bairros dotada de pouca capacidade de agregar funes diversas, como centralizar fluxo de mercadoria e transporte, moradia e pessoas. Na malha ferroviria mais comum o fato de os bairros desempenharem funes mais modestas em relao estrutura urbana de uma cidade. Nesse sentido, uma parte dos subrbios se estrutura comorea de ocupao semicompletae outra parte (um grande trecho) comorea de ocupao incompleta.A primeira, a deocupaosemicompleta, tem como lgica o desenvolvimento de atividade em um dos lados da estao, como ocorreu no modelo de ocupao completa, e no havia como prever qual das duas margens da estao seria escolhida para receber investimento e ateno dos consumidores de lotes para habitao e/ou desenvolvimento de atividades ligadas, sobretudo ao setor tercirio, mais especificamente do pequeno comrcio: lojas de material de construo, alimentos e outras atividades cuja instalao no demanda sofisticao tcnica. Com o desenrolar do tempo, porm, algumas atividades comearam a se concentrar em um dos dois lados, elas foram atradas pela maior presena de consumidores ou porque a ligao entre essa margem e algum ponto da cidade de maior importncia se faz com mais rapidez, ou por ser mais valorizada do ponto de vista comercial do que a outra margem.

A propriedade dos lotes em torno da estao, como relata a literatura, tambm no resultado apenas do parcelamento das antigas propriedades, levado a efeito por pequenos empreendedores ou por empresrios ligados ao setor de transporte que acabaram se responsabilizando igualmente pela ao imobiliria, mas decorre em grande parte da ocupao mediante o uso da posse (tornando-se o ocupante da gleba posseiro). A ocupao dessas reas no era regularizada, e sua legalizao dependia do interesse que ela despertava no mercado de terra urbana, possibilitando, assim, no decorrer do tempo, a violncia urbana conduzida pela ao de grileiros ou especuladores que buscavam concentrar propriedade para fins comerciais.

Dessa maneira, uma das margens ganha maior densidade, oferecendo alguns servios que no so encontrados nem na outra margem nem nos bairros prximos. Servios esses que no so interessantes, do ponto de vista do custo, de ser buscados na rea central ou em outrasreas de ocupao completa.Obviamente, a importncia dasreas de ocupao semicompleta limitada, visto que o crescimento dasreas de ocupao completaacaba impedindo ao mais efetiva nesses espaos, que se constituem, em muitos casos, em complemento do primeiro modelo.

No Rio de Janeiro, demonstram melhor essa realidade os bairros de So Cristvo (que funciona como entroncamento entre a rea central e outros pontos da cidade, mas, tambm, a parte mais dinmica que se localiza entre trecho da linha frrea e a avenida Brasil), Olaria, Magalhes Bastos, Engenho de Dentro, Engenho Novo, entre outros tantos.

Por seu turno, area de ocupao incompletarefere-se quela que ao longo dos anos recebeu menor fluxo de pessoas e de atividades econmica, mantendo um dinamismo muito baixo. A ocupao dos dois lados da estao no se diferencia, e um bairro-tampo, isto , um ponto no espao de mero apoio na ligao entre bairros de maior importncia. Nesse caso podemos enquadrar os bairros de Lauro Muller, Mangueira, So Francisco Xavier, Riachuelo, Sampaio, Quintino Bocaiva e Oswaldo Cruz etc.

De acordo com os modelos apresentados, podemos entender de que maneira se deu a ocupao das reas ao longo das vias frreas no Rio de Janeiro. No na totalidade do sistema suburbano, mas em alguns casos o modelo pode comear a explicar, como nos dias atuais, podemos encontrar em determinados bairros uma concentrao de pobres urbanos, principalmente de afrodescendentes. Asreas de ocupao completacomo Mier, Madureira e Campo Grande tm como tendncia a concentrao menor de afrodescendentes, segundo o padro de valorizao do solo combinado com o fator da renda.

Se pensarmos, por exemplo, na questo da educabilidade, verificaremos que a concentrao demestres e doutoresnas reas como Pavuna, Bangu, Marechal Hermes (apesar de pertencerem ao Modelo 1), a tendncia ser igual a zero, no se repetindo os indicadores que ocorrem no Mier, Campo Grande ou Madureira. Esses, por algum mecanismo, se destacam, servindo como ponto de referncia para quase toda a malha suburbana, inclusive pela autodeclarao de cor ou raa, em que grande parte se considera da cor branca. Esse o ponto comum das trs reas acima citadas.

Consideraes FinaisA ocupao da malha urbana pela populao aconteceu de maneira muito diferente nos diversos pontos da cidade do Rio de Janeiro. Como vimos, na Zona Sul ocorreu de maneira previsvel, ou seja, de acordo com os interesses do setor imobilirio, sem improvisaes. Por certo, nesse momento da histria, no quarto quartel do sculo XIX, no poderamos falar de polticas de planejamento, mas podemos pensar que a estruturao desse espao, alm de seguir as recomendaes internacionais presentes no pr-urbanismo, atendeu os asseios das classes de maior poder econmico.

Tambm verificamos que a expanso norte/oeste da cidade seguiu padres muito distintos. Enquanto os trilhos urbanos foram assentados para atender a populao que ainda no havia ocupada a Zona Sul, no outro lado da malha urbana, esse equipamento atendeu as necessidades setor produtivo, buscava-se a modernizao do setor fundamental da economia, o escoamento da produo agrcola e outros produtos. A populao, nesse caso, tornou-se secundria. Nesse sentido, podemos pensar que essa parte da cidade foi palco, em termos de organizao interna da cidade, de improvisaes em termos de polticas e precariedade no que se refere habitao.

Quanto permanncia dos grupos de menor renda residindo na Zona Sul, como vimos, explicado, em geral, pela dimenso econmica, ou seja, pela proximidade do mercado de trabalho. Entretanto, consideramos essa hiptese insuficiente. A dimenso econmica do fenmeno importante, contudo no deve ser considerada como determinante, apenas como dos fatores que ajudam a contar a histria desses grupos. Os termos que estabelecem que determinados grupos sofrem os estigmas, os preconceitos e a discriminaes oriundos da segregao, deve ser relativizados, pois o fenmeno no absoluto, mas relacional entre a parte (segregada) e o todo (a cidade de forma geral). As desqualificaes pelas quais so submetidos os indivduos, no decorrer da histria, colocam-nos em situao de desvantagem ou risco social, passveis das iniqidades do processo histrico. As desvantagens so traduzidas pelo grau de acessibilidade as diferentes instituies, enquanto o risco posto pelo sistema simblico que, se traduz em ltima instncia, as injustias sociais.

Reconhecer que o instituto da segregao no esta pronto, no sentido de terminalidade, reconhecer que precisamos avanar, em passos largos, para desvendar a sua compreenso. Nesse ponto, temos que ressaltar a importncia de VASCONCELOS (2003) que apresentou severas crticas a apropriao do conceito e a sua pronta aplicao ao espao urbano das grandes cidades brasileiras. Por outro lado, no devemos caminhar no sentido oposto da negao de sua existncia. A rea de segregao induzida contnua uma possibilidade analtica que, por razes obvias, no excluem do escopo da anlise os espaos tradicionais segregados, apenas aponta que existem outras formas de compreender que a estrutura urbana mais complexa que possamos imaginar.

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[1]Professor do Programa de Ps-Graduao em Geografia da FFP/UERJ;

Coordenador do Ncleo de Estudos Sociedade Espao e Raa; e autor do livro Do quilombo favela: a produo do espao criminalizado no Rio de Janeiro.

Contato: [email protected]

[2]Este trabalho foi apresentado no mbito do XV Encontro de Gegrafos, So Paulo, 2008; e publicado na coletnea: Dez anos da Lei no10.639/03: Memrias e Perspectivas. Fortaleza: Editora Universidade Federal do Cear (UFC)/ Coleo Dilogois Intempestivos, 2013, pp. 243-265; ISBN: 978-85-7282-577-1

[3]O termo resistncia entendido aqui, de acordo com a literatura,como fenmeno espontneo, de um ato voluntrio ou conscientizado de indivduos e pequenos grupos disposto a rebelar-se e no aceitar a ocupao. Apesar de bastante amplo, essa conceituao serve para o processo de organizao espacial dos mais pobres.

[4]A palavra excluso ser usada por ora sem nenhuma discusso. Contudo, preferimos empregar o termo acessibilidade reduzida ou ampliada que reflete melhor a situao dos que esto as margens dos processos hegemnicos de controle do espao urbano (ver CAMPOS (2006; 2008)

[5]Cf. CORRA, R. L. (1987:11-35). O autor analisa neste livro sntese, em seu terceiro captulo, quem produz o espao urbano.

[6]O Morro da Favela conhecido nos dias atuais pelos complexos dos morros do Pinto e da Providncia, localizados nas imediaes da rea central da cidade do Rio de Janeiro.

[7]A partir deste ensaio, estamos descartando a possibilidade de enquadrar toda e qualquer relao espacial (apriori) como territrio e suas derivaes, preferindo focar a anlise no recorte espacial do lugar, que discutiremos em outras oportunidades

[8]Ver tambm BARBOSA, J. L. (1992). O autor explora em seu trabalho as condies de moradia e trabalho que eram oferecidas aos operrios do perodo na capital da Repblica.

[9]Cabe aqui uma distino entre os termos preconceito e discriminao, para tal consultar SILVA Jr., H. (2000:372)