Racionalidade e Macropolitica

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Instituições e poder: racionalidade macropolítica e genealogia Lilia Ferreira Lobo Universidade Federal Fluminense Resumo Partindo da crítica de Guilhon de Albuquerque, em seu livro Instituições e Poder, a Irving Goffman, em Manicômios, Prisões e Conventos, sobre as instituições totalitárias, este trabalho pretende: (1) questionar os pressupostos teóricos e os esquemas de análise de Guilhon de Albuquerque para a concepção de instituição e de instituição totalitária a partir de uma racionalidade macropolítica; e (2) contrapor a esta perspectiva uma outra ordem de pensar as instituições, um pensar genealógico que privilegia, dentre outros pontos, as produ- ções (no lugar das representações); os processos de constituição (no lugar das formas constituídas); as irrupções (no lugar das interrupções); as positividades (no lugar das interdições e das faltas). Palavras-chave: instituição; poder; genealogia Abstract Institutions and power: macropolitical rationale and genealogy. Based upon the criticism presented by Guilhon de Albuquerque in his book Instituições e Poder to Irving Goffmann’s Asylums - Essays on the social patients and other inmates regarding totalitarian institutions, this work intends: (1) to question Guilhon de Albuquerque’s theoretical premises and analysis schemes for the conception of institution and totalitarian institution based on macro political rationale; and (2) to contrast this perspective against a different thinking process on the institutions, a genealogical thinking which privileges, among other aspects: the productions (instead of the representations); the constitution process (instead of constituted forms); the irruption (instead of the interruption); and the positivity (instead of the interdiction and need). Keywords: institution; power; genealogy A intenção inicial deste trabalho foi a de analisar o livro Manicômios, Prisões e Conventos de Irving Goffman (1974), para cuja tarefa me foi sugerida como pista o livro de J. A. Guilhon de Albuquerque, Instituição e Poder (1980), já que este último servia ao meu propósito. No decorrer da leitura dos dois livros gradativamente minha aten- ção foi desviada para o segundo, pelas questões que coloca a respeito dos problemas teóricos e metodológicos do objeto do conhecimento que o autor pretende resolver, como ele próprio anuncia na introdução do seu livro, em especial, as questões da análise concreta das instituições totais (ou tota- litárias) 1 , objeto do citado livro de Irving Goffman. Não só por isso. E as razões desse interesse são de duas ordens: É que Guilhon de Albuquerque (G. A.) 2 , ao tornar explíci- tos seus pressupostos de pensamento (o que, de resto, não aparecem no livro de Goffman), apresenta os critérios de racionalidade de uma perspectiva que entendo ser macropolítica das instituições. Talvez aí esteja o mérito maior do seu trabalho: ao desnudar as regras com as quais trabalha, acaba por instigar o leitor a analisar sua análise, a avaliar sua utilidade prática, segundo estas mesmas regras. A segunda ordem de interesse, a que me importa mais diretamente, é a possibilidade que o livro de G. A. abre para o confronto com outra ordem de pensar, que se pretende tam- bém um rigor, um outro rigor, não propriamente para a resolu- ção dos problemas teóricos e metodológicos e a “demonstra- ção de sua utilidade prática nas análises concretas” (Albuquerque, 1980, p. V), objetivo de Instituição e Poder, mas um dispositivo de pensar que pode produzir outros pro- blemas através do que se pode chamar de pressupostos micropolíticos ou genealógicos de análise. Sem ter qualquer pretensão de esgotar as questões colo- cadas em cada uma dessas perspectivas, a divisão deste tra- balho segue as duas ordens de interesse que o livro de G. A. me suscitou. Trata-se, portanto, em uma primeira aproxima- ção, de um levantamento de alguns pontos para reflexão e que talvez mereçam aprofundamento posterior. 1. Alguns pontos para análise “de dentro” de uma racionalidade macropolítica das instituições Como se constitui uma análise teórica? Quando se pode dizer que uma análise está bem constituída? Quaisquer que sejam as respostas formuladas a estas questões, elas terão Estudos de Psicologia 2004, 9(2), 309-316

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De Lília Lobo

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  • Instituies e poder: racionalidade macropoltica e genealogia

    Lilia Ferreira LoboUniversidade Federal Fluminense

    ResumoPartindo da crtica de Guilhon de Albuquerque, em seu livro Instituies e Poder, a Irving Goffman, emManicmios, Prises e Conventos, sobre as instituies totalitrias, este trabalho pretende: (1) questionar ospressupostos tericos e os esquemas de anlise de Guilhon de Albuquerque para a concepo de instituioe de instituio totalitria a partir de uma racionalidade macropoltica; e (2) contrapor a esta perspectiva umaoutra ordem de pensar as instituies, um pensar genealgico que privilegia, dentre outros pontos, as produ-es (no lugar das representaes); os processos de constituio (no lugar das formas constitudas); asirrupes (no lugar das interrupes); as positividades (no lugar das interdies e das faltas).Palavras-chave: instituio; poder; genealogia

    AbstractInstitutions and power: macropolitical rationale and genealogy. Based upon the criticism presented byGuilhon de Albuquerque in his book Instituies e Poder to Irving Goffmanns Asylums - Essays on the socialpatients and other inmates regarding totalitarian institutions, this work intends: (1) to question Guilhon deAlbuquerques theoretical premises and analysis schemes for the conception of institution and totalitarianinstitution based on macro political rationale; and (2) to contrast this perspective against a different thinkingprocess on the institutions, a genealogical thinking which privileges, among other aspects: the productions(instead of the representations); the constitution process (instead of constituted forms); the irruption (insteadof the interruption); and the positivity (instead of the interdiction and need).Keywords: institution; power; genealogy

    A inteno inicial deste trabalho foi a de analisar olivro Manicmios, Prises e Conventos de IrvingGoffman (1974), para cuja tarefa me foi sugerida comopista o livro de J. A. Guilhon de Albuquerque, Instituio ePoder (1980), j que este ltimo servia ao meu propsito. Nodecorrer da leitura dos dois livros gradativamente minha aten-o foi desviada para o segundo, pelas questes que colocaa respeito dos problemas tericos e metodolgicos do objetodo conhecimento que o autor pretende resolver, como eleprprio anuncia na introduo do seu livro, em especial, asquestes da anlise concreta das instituies totais (ou tota-litrias)1, objeto do citado livro de Irving Goffman.

    No s por isso. E as razes desse interesse so de duasordens:

    que Guilhon de Albuquerque (G. A.)2, ao tornar explci-tos seus pressupostos de pensamento (o que, de resto, noaparecem no livro de Goffman), apresenta os critrios deracionalidade de uma perspectiva que entendo sermacropoltica das instituies. Talvez a esteja o mrito maiordo seu trabalho: ao desnudar as regras com as quais trabalha,acaba por instigar o leitor a analisar sua anlise, a avaliar suautilidade prtica, segundo estas mesmas regras.

    A segunda ordem de interesse, a que me importa maisdiretamente, a possibilidade que o livro de G. A. abre para oconfronto com outra ordem de pensar, que se pretende tam-bm um rigor, um outro rigor, no propriamente para a resolu-o dos problemas tericos e metodolgicos e a demonstra-o de sua utilidade prtica nas anlises concretas(Albuquerque, 1980, p. V), objetivo de Instituio e Poder,mas um dispositivo de pensar que pode produzir outros pro-blemas atravs do que se pode chamar de pressupostosmicropolticos ou genealgicos de anlise.

    Sem ter qualquer pretenso de esgotar as questes colo-cadas em cada uma dessas perspectivas, a diviso deste tra-balho segue as duas ordens de interesse que o livro de G. A.me suscitou. Trata-se, portanto, em uma primeira aproxima-o, de um levantamento de alguns pontos para reflexo eque talvez meream aprofundamento posterior.

    1. Alguns pontos para anlise de dentro de umaracionalidade macropoltica das instituies

    Como se constitui uma anlise terica? Quando se podedizer que uma anlise est bem constituda? Quaisquer quesejam as respostas formuladas a estas questes, elas tero

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    necessariamente em seu bojo concepes diferentes sobre anatureza do conhecimento natureza esta historicamentemutante, atravessada por foras histricas bem diferentes:

    Da suposio de que h uma verdade invariante mais oumenos evidente nas coisas e que se pode simplesmente cons-tatar ou trabalhosamente desvelar, busca de um absolutooculto a conhecer, de tal forma distante que no se teria qual-quer garantia de se estar cada vez mais prximo dele;

    De uma desconfiana no uso das palavras e sua maior oumenor capacidade de dizer algo verdadeiro sobre as coisas,ao reconhecimento de que elas nomeiam imagens desde jsubmetidas s perspectivas de quem olha e que, ainda assime por isso mesmo, seria necessrio estabelecer regras de cor-respondncia e de adequao das representaes para nose cair no puro ceticismo;

    De uma concepo de que o conhecimento como apre-enso da realidade supe uma harmonia com esta, sua ca-racterizao como processo de desmontagem, como fazem osprticos com os seus objetos de trabalho, no s para vercomo funcionam por dentro a fim de remont-lo, mas paraproduzir novos objetos - ... sempre existe transformao,produo de um novo objeto, doravante dominado, tanto naordem das coisas como na ordem do pensamento(Albuquerque, 1980, p. 2).

    Como Guilhon de Albuquerque (1980) explicita desde oprefcio que partir desta ltima concepo3, ou seja, do co-nhecimento como processo de produo, ir discutir na pri-meira parte do livro os procedimentos e esquemas de anlise(montagem e desmontagem) chamando de incio a atenopara a premissa segundo a qual preciso que os princpiosde anlise sejam os princpios do modo de produo do obje-to produzido/dominado (p. 2). Ser, portanto, desta pers-pectiva que, ao mesmo tempo em que tender a reinterpretaro estudo de Goffman sobre as instituies totais, procurartestar na anlise concreta a validade do esquema que prope.

    Partirei, ento, de trs pontos selecionados na leitura deseu livro em que se assenta, a meu ver, o que se pode chamarde racionalidade macropoltica das instituies.

    1.1. Sobre a tripartio da anlise e a distinoentre plano de anlise e plano de racionalidade

    Para o autor, a questo de saber quantos e quais elemen-tos constitutivos em que se pode ou deve analisar umarealidade social um problema terico da mais estreita relevn-cia em termos de investigao (p. 3), o que significa procedercomo a qumica: ao fracionar um objeto em partes constitutivas preciso levar em conta que qualquer resultado da anlisedepende dos procedimentos analticos (p. 3), ou seja, depen-de de como se opera a anlise. Trata-se, portanto, de um des-locamento da questo epistemolgica da essncia do conhe-cimento para o de sua produo, realizado por Althusser. Sertambm da perspectiva de Althusser que o autor ir proporseu esquema de anlise, atravs do qual ir, por sua vez, for-mular uma crtica a Althusser sobre certas dificuldades teri-cas, principalmente no que tange ao papel da ideologia(Althusser, 1985) enquanto reproduo da fora de trabalho eda escola como um dos aparelhos ideolgicos de Estado.

    Assim, coloca a questo da tripartio da anlise no pla-no central das discusses, nos seguintes termos: (a) a ques-to da produo de conhecimentos; (b) a relao entre asinstncias na estrutura social e (c) a articulao entre estasduas questes na resoluo do problema da natureza e dofuncionamento das instituies (p. 3).

    A soluo de conjunto para o problema das relaesentre o ideolgico, o econmico e o poltico, proposto porAlthusser, merece do autor algumas crticas:

    Sobre o papel da ideologia como reproduo da fora detrabalho, no caso a escola contribuindo para a sua qualifica-o: que faz a ideologia? Reproduz a fora de trabalho e olugar do trabalhador lugar que ocupa nas relaes de pro-duo, daquele que no proprietrio dos meios de produ-o e, portanto, vende o nico bem que lhe pertence: a forade trabalho. Para o autor, a ideologia no reproduz a fora detrabalho, ela tem um efeito de reconhecimento, ela reproduzuma imagem que o trabalhador faz de si prprio e do seulugar. No reproduz tampouco uma ordem social, apenas oreconhecimento desta.

    A crtica do papel da ideologia em Althusser revela apreocupao extrema de G. A. em distinguir entre o que cha-ma de plano de realidade e plano de anlise, em no con-fundir o pensamento com o real. As instituies concretasno so nem aparelhos, nem prticas, muito menos possuemum lugar designado numa instncia. No mais do que indiv-duos, no constituem suporte de coisa alguma, so apenasreferentes da anlise (p. 9). E mais adiante indaga:

    O que uma instituio concreta? um conjunto discreto decoisas (entre as quais indivduos) que nada distingue (na suaprpria essncia, assim como na sua natureza de conjunto) deoutras coisas. Chamar esse conjunto de instituio umaoperao de duplo alcance (uma operao, portanto, um tra-balho): nomeando-o constitumo-lo enquanto conjunto. Tan-to verdade que posso considerar os prdios como parte doconjunto -nomeado- instituio e posso no faz-lo segundo oconjunto que defino ao nome-la. (p. 9, grifo do autor)

    A totalidade concreta instituio j , portanto, fruto deum trabalho de abstrao (ou, se se prefere, fruto de um tra-balho de produo de um objeto de pensamento). Mas a cons-tituio de uma totalidade concreta muito pouco para umtrabalho terico (p. 21), segundo determinantes da prpriateoria. Isto significa que, se se quiser fugir de uma terminolo-gia essencialista, ser necessrio entender que uma proposi-o do tipo a escola um sistema de reproduo da ideolo-gia dominante refere-se totalidade emprica escola (nomais a este ou aquele estabelecimento), totalidade esta cujapertinncia interpretativa se sua anlise em termos de apa-relho ideolgico de Estado uma entidade terica designasempre uma propriedade que, se observvel, pode ser in-terpretada em termos de propriedades empricas de uma tota-lidade, jamais em termos de totalidades enquanto tais (p.16). O engano de nome-las, multiplicando suas proprieda-des exaustivamente, levaria no mximo elaborao de umextenso catlogo de nomes, uma confuso entre o plano dateoria e o plano da realidade, jamais produo de conheci-

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    mento. Por onde surge a categoria da totalidade, desapareceo rigor cientfico (p. 26).

    Melhor que a crtica (a meu, ver injusta) do autor manei-ra como a anlise institucional opera este tipo de confuso4

    (que discutirei mais adiante), temos o exemplo do estudo deGoffman. Embora no chegue quele extremo to simplista,Goffman (1974) tenta extrair um perfil geral da lista de estabe-lecimentos que chama de instituies totais, descrevendoatributos nem sempre comuns a todas elas:

    o que distingue as instituies totais o fato de cada umadelas apresentar em grau intenso muitos itens dessa famliade atributos5. Ao falar de caractersticas comuns usarei a frasede forma limitada, mas que me parece logicamente defens-vel. Ao mesmo tempo, isso permite usar o mtodo de tiposideais, atravs do estabelecimento de certos aspectos comuns,com a esperana de posteriormente esclarecer diferenas sig-nificativas. (p. 13)

    Afirma, mais adiante (p. 108), que sua pretenso fazeruma definio denotativa das instituies totais, ou seja, in-dicar (denotar) caractersticas gerais e chega a descrev-lasto minuciosamente que deixam de ser gerais (talvez seja porisso que seu livro se torne to interessante...). Mas, ao res-tringir-se ao interior desses estabelecimentos,descontextualizando-os do meio em que se inserem, dos efei-tos que provocam e dos servios que prestam sociedademais ampla, promove uma espcie de coisificao que Guilhonde Albuquerque denuncia como um certo tipo apriorstico deinstituio em si, um dado da realidade, as totalidades en-quanto tais um exemplo de confuso entre plano da teoriae plano da realidade.

    O que G. A. chama de instituies totalitrias refere-se aocarter poltico, tomado como repressivo, predominante nes-tas instituies. Utiliza a terminologia de Althusser que iden-tifica o repressivo ao poltico (assim como a funo de sobe-rania, numa viso centralizada e centralizadora de poder). Con-tudo, para o autor, instituio totalitria no sinnimo deaparelho repressivo, uma vez que este pode ser encontradoem outras formas sociais. Ao introduzir a categoria dos apa-relhos na anlise das instituies totalitrias, G. A. procuraafastar as dificuldades da conceituao destas por Goffmanque, por oscilar entre dois modos de institucionalizao dife-rentes6, fracassa na proposta de conceitualizao ideal-tpi-ca. Por isso, G. A. pretende esclarecer critrios precisos paracaracterizar o que ou quando se pode chamar uma institui-o de totalitria: o critrio da existncia de dois tipos empricosde formas sociais (com dominante e com dominncia de umdos aparelhos) (Albuquerque, 1980, p. 104) e o critrio deextraterritorialidade do aparelho econmico (p. 26 e seguin-tes). Mais adiante voltarei a esta questo.

    Neste ponto, vou me limitar a algumas consideraessobre seus pressupostos a respeito da separao e os modosde articulao entre o ideolgico e o repressivo:

    No somente em G. A. que os termos ideologia e repres-so so confusos. Mesmo este autor, to obcecado pela or-dem e pela preciso, no consegue fugir ambigidade eprincipalmente s antinomias que estes dois termos sugerem.

    E isto porque a anlise marxista de onde extrai, mesmo criti-cando, seus principais pressupostos (Althusser), fica no meiodo caminho no que se refere ao conhecimento como proces-so de produo mantm a verdade como fim (finalidadetrans-histrica e transcendental a atingir no bojo das teorias,com suas regras paradigmas e mtodos) e no como meio(estratgia histrica de produo de verdades). Assim quemantm, em conseqncia, duas antinomias: as separaesentre ideologia e cincia (o subjetivo e o intersubjetivo, res-pectivamente) e entre corpo e alma (o comportamento e asrepresentaes). Na primeira, a ideologia apresentada oracomo um imaginrio subjetivo que perturba e obscurece osaber cientfico, ora como um imaginrio de classe que repro-duz o reconhecimento da ordem social vigente em ambosos casos uma falsa conscincia. Um efeito de ocultamento. Acincia, como tal, teria de se livrar dos efeitos ideolgicos(subjetivos) para produzir uma verdadeira teoria, dentro doscnones de intersubjetividade de verdade e falsidade quevalidam os mtodos e a estrutura formal das teorias. Na se-gunda antinomia, o que aparece a separao do corpo, coma materialidade concreta de seus comportamentos sobre osquais incide a represso (e seus efeitos de interdio e dedominao) e a alma, o subjetivo ao nvel das imagens repre-sentaes7, das atitudes, e sobre o qual incidem a inculcaoe a persuaso, tomadas aqui como ideolgicas.

    Para no ficar apenas no meio do caminho e tomar parasempre as verdades como meio, como produes estratgi-cas, abandonando de vez qualquer fundo trans-histrico re-moto ou de um lugar ainda que vazio de sujeito de conheci-mento (e de objeto a conhecer), preciso apelar para Foucault,que nos mostra em seus estudos genealgicos:

    - como os agenciamentos de certas prticas (dispositi-vos) produzem objetivaes no mundo (os objetos e as for-mas dos saberes, objetivaes estas que no so nem maisnem menos verdadeiras), sendo o prprio sujeito umaobjetivao da histria;

    - como os agenciamentos de certas prticas que sosempre prticas de corpos (e no so nem ideolgicas,nem repressivas) so polticas, (as relaes de poder)produzem efeitos de sujeito (uma alma, uma psiqu), his-toricamente datados.

    Sobre a questo da extraterritorialidade do aparelho eco-nmico, G. A. inicia por descrever as formaes medievais,como unidades sociais soberanas (como esferas separadas eautnomas da ordem social medieval) que, alm de terem umaadministrao formal (estrutura burocrtica com aparelhosrepressivos especializados), eram ao mesmo tempo unidadeseconmicas e de vida social. Isto quer dizer que no possu-am um aparelho econmico especfico, o que somente pas-sou a existir a partir de formas sociais com predomnio espe-cfico do econmico que so as empresas capitalistas. Emcontrapartida, passaram a existir tambm certas formaesno econmicas, cujo aparelho econmico no especficonem predominante. Este o caso das instituies totalitrias,nas quais a reproduo de sua existncia material lhes dadado exterior o que o autor chama de extraterritorialidade doaparelho econmico. Sua tese principal de que

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    a inexistncia de um aparelho econmico especfico tem comoconseqncia que todo ato que ocorre em uma instituio tota-litria tem um efeito dominante repressivo ou, pelo menos, repressivo em sua prpria base. Tudo nessas instituies temuma dimenso repressiva. Abandonada a si mesma a repressoenlouquece, pois nenhuma lgica produtiva com suaracionalidade econmica e seu clculo, ao menos implcito,dos custos sociais est presente para servir de camisa-de-fora. Tudo o que a ideologia pode fazer, nesses casos, pro-vocar, atravs do que reconhece ou desconhece, uma intensaritualizao. (p. 127)

    E acrescenta, mais adiante, que:

    necessrio admitir que as instituies totalitrias podem serclassificadas em dois tipos distintos: aquelas cuja interpretaomais pertinente exige uma anlise em termos de formaoideolgica; e as instituies cuja anlise mais pertinente se fazem termos de formao repressiva. preciso, ainda, levar emconsiderao a situao concreta de certas instituies. O pon-to sensvel , neste caso, a possibilidade, mais ou menosprxima, da constituio de um aparelho econmico (p.140 - grifos do autor).

    Portanto, o critrio da extraterritorialidade do aparelhoeconmico pretende dar conta daquilo que a conceitualizaoideal tpica de Goffman falhou: o conceito de instituio tota-litria. Contudo, alguns pontos no ficam claros ou merecemalgumas objees:- O primeiro, no que se refere ao conceito de aparelho econ-mico: seria um sistema de produo de riquezas (produomaterial), de recursos financeiros, de administrao destesrecursos? O que lhe seria mais prprio?- Adotando o critrio to rgido da ausncia do aparelho eco-nmico para caracterizar uma instituio como totalitria, cer-tas prises americanas que reproduzem internamente as con-dies de sua subsistncia material, prises-empresa que vi-sam o lucro, deixariam de ser instituies totalitrias? Seriacorreto excluir, por conta deste mesmo critrio, as clnicas eos hospitais psiquitricos particulares no Brasil?- Embora o autor afirme que no trabalha com determinanteem ltima instncia, mas determinao em cada instncia, se-gundo a qual anlise deve sempre ser refeita do ponto devista de cada efeito (p. 152), o critrio para a distino dasinstituies totalitrias coloca-se pela ausncia do aparelhoeconmico (ou pela proximidade). Por isso, seu papel sem-pre determinante do maior ou menor (ou talvez nenhum) tota-litarismo das instituies um fator to importante que, con-traditoriamente, passa a funcionar como uma determinaoem ltima instncia.

    1.2. Sobre os efeitos da formalizao e da anliseperpendicular: cortes verticais e horizontais e aeficcia do esquema proposto

    A que levaria um pensamento to obsessivamente liga-do ordem? Qual seria sua eficcia? Um efeito de apropria-o atravs da resoluo de problemas e sua utilidade con-creta, ou a produo problematizante dos espaos abertosdas linhas de fuga para novas prticas, novos objetos?

    A esse respeito, afirma o autor:

    Apesar das imprecises, necessrio admitir, com osracionalistas, que o pensamento que ordena o concreto, maso ordena no pensamento, o real no , em si mesmo, nemdinamismo nem ordem, dinamismo e ordem so idias. O tra-balho do pensamento consiste justamente na produo de umaordem no caos aparente atravs da qual o pensamento se apro-pria inicialmente do real. A essncia da teoria consiste naanlise desse trabalho de ordenao. J que por meio de umtrabalho que o pensamento produz ordem (quer se chame com-preenso, explicao ou interpretao), ou melhor, um efeitode ordem. A teoria cientfica se interroga sobre o modo deproduo desse efeito de ordem, resultado do trabalho do pen-samento apropriando-se do real. (p. 27)

    Eis o que me parece ser um certo resqucio kantiano daordem da razo, como um transcendental, como uma ordemverdadeira a justificar os cortes epistemolgicos nos esque-mas euclidianos (espaos fechados) de anlise. Por isso, G.A. no hesita em apelar para Parsons, a despeito do dioterico, mas muito sadio, que devemos votar-lhe (p. 21) pelomuito que a sociologia deve aos interesses de Parsons pelaordem (p. 36). Apesar das restries, ser tambm a Parsons,alm de Althusser, que ir apelar para a justificativa de seuesquema de anlise8 expresso em termos de verticalidades(hierarquia das instncias que se comandam de cima parabaixo e os problemas que se colocam de baixo para cima) (p.37), em cortes perpendiculares.

    Este efeito de formalizao, este pensamento ordenadorque impe a si mesmo e a seus objetos as prescries daspalavras-de-ordem, centra-se nas suas prprias interdies,nas limitaes de sua criao, de sua inveno. A meu ver,ser esta funo (ou eficcia) dos chamados cortes em seuesquema de anlise: as interdies dos limites, das interrup-es e das faltas. Nunca a ruptura das irrupes, das emer-gncias, dos novos arranjos, das linhas de fuga de uma or-dem estabelecida.

    1.3. Das interdies do pensamentoe sua utilidade prtica

    Trata-se de pelo menos duas interdies principais:- No multiplicar as essncias na iluso de que se est apre-endendo a totalidade em sua complexidade, mas renunciar devez sua apreenso. Ao contrrio, a totalidade deve serfracionada segundo certo modus operandi, buscando suaespecificidade de maneira que o resultado da anlise depen-der do procedimento analtico.- Para pensar a realidade, transformando-a, e vice-versa, necessrio renunciar transformar a realidade pelo pensamen-to. preciso, portanto, reconhecer que o pensamento se apro-pria da realidade, mas numa ordem de apropriao que sepassa completamente no pensamento. Como conseqncia preciso renunciar a introduzir a realidade no pensamento e opensamento na realidade. a interdio constitutiva do pen-samento terico, para o qual o objeto de pensamento sem-pre j uma imagem, na qual se reconhece a realidade, perma-necendo, no entanto, imagem (p. 41).

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    Uma tal construo terica, embora se proponha a es-capar de essencialismo das totalidades concretas (as insti-tuies enquanto formas so totalidades) para o conheci-mento como processo de produo (e o faz atravs doscortes e recortes construdos para a anlise), acaba por im-por outras formas (outras totalidades formais, os modelos)ao pensamento e prpria realidade. Uma garantia de quese est a salvo de toda a ideologia que obscurece com suaturbulncia a serenidade verdadeira do pensar cientfico?Por outro lado, como toda construo terica, mesmo noexclusivamente lgica, deve ter referncia numa realidade(realidade como um estado de coisa e no como um referen-te), ser preciso ento estabelecer o tipo de referncia entreesta realidade e o objeto produzido pelo esquema formal deanlise. Interditando a realidade no pensamento sobra ape-nas a garantia de correspondncia do objeto que se d poruma imagem de reconhecimento desta realidade, limitada auma representao um duplo sublimado por abstrao.Neste ponto, a questo que se coloca ser ento: em quemedida a representao que reconhece esta realidade ade-quada ou no? Seria esta adequao, portanto, o critrio deeficcia do conhecimento e da sua veracidade.

    Ora, em que medida um pensamento que assim se interdi-ta, que se prope como garantia o reconhecimento, pode pen-sar o mundo em transformao? Limita-se aquilo que chamade produo operao do prprio pensamento, constru-o terica esquadrinhada por cortes verticais e horizontais(planos, nveis e instncias), ao efeito de apropriao da rea-lidade por representao metafrica, como pode dar conta deum modus operandi de transformao da realidade, aindaque seja no prprio pensamento? Toda proposta de apropri-ao, de domnio uma proposta de poder sobre a realidade.Apropriar-se para que e para quem? A suposio de umaverdade como fim a ser atingido move a construo dos mo-delos fechados de anlise um certo efeito de poderordenador das formas institudas da realidade social e, emconseqncia, um reforamento aperfeioado das separaesentre teoria e prtica, entre trabalho terico (intelectual) etrabalho prtico (manual) que, em ltima instncia, fundam adiviso do trabalho instituda na sociedade de classes.

    Ora, se a proposta de Marx era sair do campo das repre-sentaes para pensar as produes, ele tambm no preci-sou expulsar o mundo de suas anlises para depois recupera-lo nos artifcios formais das estruturas (como se v emAlthusser e em Lacan). Sob este ponto de vista, nosso autorfica no meio do caminho: quer pensar o conhecimento comoproduo (Marx), mas no consegue sair das representaes(imagens-reconhecimento).

    2. Algumas linhas de fora para uma anlisemicropoltica ou uma genealogia das instituies

    Jacques Donzelot (1979), num texto intitulado Thepoverty of political culture, apresenta argumentos interes-santes para o contraste entre as anlises macro emicropolticas que vm bem a propsito da inteno destetrabalho. Embora no chame a primeira de macropoltica, ele

    descreve muitas de suas caractersticas, em contraposioao que denomina como abordagem genealgica:

    um tipo de anlise que tem muita afinidade com o teatro. Istoocorre por causa do status que ela atribua realidade. Naquiloque globalmente dado como real, ela separa a realidade daaparncia. Realidade, por exemplo, classe social ou o Estado.Assim isolada a realidade pode ser posta num palco e passar adesempenhar o papel representativo do real; a realidade atua oreal na forma de um nmero fixo de personagens puros, dota-dos de contedos claros e precisos, com garantia do status deauto-evidncia. Na cena da realidade purificada a causalidadepode agora ser introduzida resultando do confronto entre aquelescaracteres ou da introduo de um deus-ex-machina como noteatro arcaico. Haver luta de classes ou desenvolvimento dasforas produtivas, ou ainda o desejo de poder. O aspecto maisparadoxal deste procedimento est no fato de que estes discur-sos se apresentam como audaciosos expedientes de extraodo real do aperto das representaes, para livr-lo do vu dasaparncias, mas permitem-se atribuir a esta realidade, desde oponto de partida, uma natureza auto-evidente. (p. 78)

    De outro lado, descreve a anlise genealgica como radi-calmente diferente:

    em vez do teatro, pode-se compar-la com os gneros literri-os menores, particularmente aquele das histrias de detetive.Nestas histrias a realidade tem um carter enigmtico. Ela apriori incompreensvel, a surpresa que perturba o conforto, asrepresentaes tranqilas, o crime de desaparecimento queprojeta uma nova luz (mas qual?) numa pessoa, numa casa,numa cidade. O procedimento perseguido no a busca de umacausalidade geral, mas a identificao de indcios. Indcios noso causas, nem mesmo a menor delas. Eles so traos de umapassagem e seguindo o fio que os liga torna-se possvel estabe-lecer a linha ou linhas da transformao que leva realidade doponto de partida da investigao. (p. 78)

    A realidade para a genealogia9 um invisvel-no-escon-dido, um modo de apresentao, uma referncia a ser ilumi-nada ou tornada visvel pela constituio de uma superfciede inscries, atravs da ligao dos indcios de passagens(como as pegadas) e no relaes simblicas a serem inter-pretadas em suas causas profundas, escondidas ourecalcadas. Seguir suas trilhas, as linhas de transformao nunca estacionar nas formas dos estratos sociais (as institui-es, por exemplo), jamais toma-las em si, mesmo quando seconsidera o contexto de relaes com outras formas, masentender os agenciamentos, as relaes de fora, os disposi-tivos de poder que as instituram como tal. E mais, precisodeixar claro que micro e macro nada tm a ver com tamanho: ogrande a Sociedade, o Estado, e o pequeno os indivduose suas relaes intra e interindividuais, tais como as relaeshomem-mulher, htero-homo, professor-aluno, patro-empre-gado, enfim, o pequeno cotidiano da vida em famlia, naescola, no hospital, na empresa, a pequena parte ou a unida-de. No se trata de uma diferena de grau, mas de natureza.No se trata de uma diferena de tamanho, escala ou dimen-so, mas de duas espcies radicalmente diferentes de lgica(Rolnik, 1989, p. 59).

    Instituies e poder: racionalidade macropoltica e genealogia

    Gabriel VilellaRealce

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    Micro refere-se dimenso do processo de constituio dasformas da realidade: a realidade em vias de se instituir, sedefinir e se desmanchar (se desterritorializar) ao mesmo tem-po. Enquanto macro refere-se realidade em suas formasconstitudas aqui tambm, tanto no nvel individual, quantogrupal ou coletivo10. na lgica das formas constitudas quese pensa em termos de um todo, de plos em conflito e/oucontradio em suma, em relao de dominao entre Esta-do e Sociedade quanto para as relaes de dominao no seiode um casal. (p. 6-7)

    Este relevo de uma macropoltica aparece claro no livroInstituio e Poder. G. A. pensa o poder do ponto de vista dematriz nica de dois (dominante e dominado), identificado oupredominantemente localizado num aparelho repressivo, quese irradiaria por todas as ramificaes das formaes sociais.Identificado o poder como forma e no como fora (ou me-lhor, relao de foras) no sobra referncia para um contra-poder, ou quando raramente aparece ele exterior ao poder, olugar da grande recusa, uma espcie de lei revolucionria.Ora, se o poder no forma e no se localiza num ponto e,como relao de foras atravessa todos os pontos (Foucault,1980), a resistncia (ou contra-poder) no lhe exterior, apossibilidade imanente s prprias relaes de poder. Pensaro poder enquanto produtor de tcnicas de subjetivao atra-vs dos dispositivos que engendra em seus agenciamentos, pens-lo segundo uma outra lgica11, que permite, porexemplo, lutar contra a reificao da conscincia e apreendera dimenso da criatividade social (Rolnik, 1990, p. 6-7). Para-fraseando Foucault (1974, p. 101), no h sobre-lucro se nohouver subpoder, o que significa dizer que um certo tipo deproduo de subjetividade to importante quanto as pro-dues econmicas para o funcionamento do que F. Guattari(1981, p. 211) chama de Capitalismo Mundial Integrado (CMI).Esta micropoltica de processos de subjetivao refere-se,segundo Deleuze e Guattari, questo de uma anlise dasformaes do desejo no campo social, desejo que se efetuano agenciamento desejo-agncia, desejo-mquina que nadatem a ver com alguma ordem natural ou espontnea, com afalta ou a lei, com o desejo do desejo hegeliano, com prazerou com a festa (Deleuze & Guattari, 1972).

    Conceitos aparentados, poder e desejo merecem nesteponto algumas consideraes, j que permeiam todos os ope-radores da anlise (micro-anlise). Ambos mantm o mesmocarter de imanncia, o mesmo sentido afirmativo, pr-indivi-dual, pr-pessoal. Sob estes aspectos, podem ser considera-dos conceitos vicariantes. Sobre esta coincidncia, afirmaBaudrillard (1984) que o mrito de Vigiar e punir e Vontadede saber, de Michel Foucault, o de

    substituir a concepo negativa, reacional transcendente do po-der, fundado sobre a proibio e a lei, por uma concepo posi-tiva, ativa, imanente, o que efetivamente capital. Fica eviden-te a coincidncia entre esta nova verso do desejo proposta porDeleuze ou Lyotard: no mais a ausncia ou a proibio, mas odispositivo, a disseminao positiva dos fluxos e das intensida-des. Esta coincidncia no acidental: significa simplesmenteque em Foucault o poder ocupa o lugar do desejo.12 (p. 25-26)

    Ao contrrio das concepes reichianas oufreudomarxistas para as quais desejo e poder tinham sinaiscontrrios; hoje micro-desejo (do poder) e micropoltica (dodesejo) se confundem literalmente nos confins da libido: bas-ta miniatuarizar (p. 27).

    Discordando do sentido que se pode apreender do ter-mo miniatuarizar, preciso deixar claro novamente que asnoes de micro e macro, segundo a perspectiva aqui apre-sentada, nada tm a ver com tamanho, assim tambm todo oprocesso de desmontagem no se faz a partir das formas cons-titudas, mesmo parciais, fracionadas pelos operadores daanlise. Tampouco resulta na proposio de outras formas jpurificadas, melhores para a resoluo de problemas tericose a demonstrao (ou prova) de sua utilidade prtica nasanlises concretas, como nos adverte G. A. antes mesmo doprefcio de seu livro. A genealogia no se preocupa comresultados ou solues. Assim tambm que ela promove diagonal, o que significa o abandono de todo tipo deesquadrinhamento horizontal e/ou vertical da anlise, por-que este prioriza as formas institudas como um dado13, umpressuposto de anlise, num espao fechado das fixaes edas identidades tomadas como especificidades. Adesmontagem transversal oblqua, pensa os processos, asprodues no a partir das formas e do fracionamento delas,como prope G. A., mas de uma topologia do espao aberto,a cartografia dos mltiplos agenciamentos, das relaes co-letivas de prticas de corpos, das enunciaes tambm cole-tivas e dos devires reais de suas diferenas.

    Cioso em resguardar os critrios de cientificidade, outalvez por desconhecer o significado do termotransversalidade em sua dimenso micropoltica, que G. A.acusa a anlise institucional de tomar as instituies emtodas as suas determinaes ao mesmo tempo (p. 13), comopara dar conta da totalidade. A transversalidade um concei-to operador que se expressa por ndices de abertura ou fecha-mento dos grupos e das situaes institucionais concretas,em termos de expresso coletiva da produo desejante (adimenso instituinte), esta sim considerada ao mesmo tempopoltica-sexual-econmica-ideolgica (Guattari & Rolnik,1986). No se trata, pois, de conceituar a instituio, muitomenos de consider-la em sua totalidade concreta ou multi-plicando propriedades (Goffman), mas de trabalhar os pro-cessos genealgicos que a atravessam enquanto forasinstituintes das singularidades pr-individuais, nos momen-tos muito especiais da anlise (momentos analisadores)14.

    Todo o esforo at agora despendido com a finalidadede discernir entre as anlises micro e macropolticas podedeixar escapar uma idia de demarcao restrita e abstrata deplanos, nveis ou campos de anlise, o que de alguma formacontraria o modus operandi do pensamento transversal eseu carter intrnseco de transdisciplinaridade. Guattari nosapresenta o argumento contrrio ao jogo dessas oposies,atravs do cruzamento de duas noes: Nunca usar um smodo de referncia (Guattari & Rolnik, 1986, p. 132). E mais:

    Essa oposio entre molar e molecular pode ser uma armadi-lha. Eu e Gilles Deleuze sempre tentamos cruzar essa oposio

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    com uma outra, a que existe entre micro e macro. As duas sodiferentes. O molecular, como processo, pode nascer no macro.O molar pode instaurar o micro. (p. 128).

    E isto vale para qualquer trabalho seja terico, seja mili-tante:

    Eu posso, por exemplo, ficar nesta tribuna pronunciando gran-des discursos emancipadores e liberadores e, ao mesmo tempo,ter um investimento de poder paranico para me apoderar doauditrio, estabelecer uma relao de seduo falocrtica, ra-cista e sei l o que mais (...). Nesse caso, o que acontecer,infalivelmente, que as melhores intenes, as relaes defora mais favorveis, vo ter, mais cedo ou mais tarde, umencontro marcado com uma experincia de poder. E, inversa-mente, se os processos de revoluo molecular no foremretomados ao nvel das relaes de fora reais (relaes deforas sociais, econmicas, materiais) pode acontecer de elescomearem a girar em torno de si mesmos, como processos desubjetivao em imploso, provocando um desespero que podelevar ao suicdio, loucura ou a algo no gnero. (p. 132)

    Portanto, se os problemas se constituem ao mesmo tem-po nos dois processos, o molar e o molecular, e a anlisemicropoltica se situa no cruzamento dos dois, haver sempreque se considerar a multiplicidade. Nada justificaria colocar,de um lado, o molecular todo o bem (ou toda a verdade) e, deoutro, o molar todo o mal (ou toda a falsidade), ou vice-versa,como s vezes acontece nas simplificaes de certas anli-ses tericas e/ou militantes.

    Pensar as transformaes, as desmontagens transver-sais das formas institudas tambm pensar os agenciamentosinstituintes, no apenas para reconstituir indcios (como nashistrias de detetive, mencionadas por Donzelot) e iluminar oinvisvel-no-escondido das linhas de transformao. queesta provocao de visibilidade tambm uma tica, umaoutra tica, uma tico-esttico-poltica de novos modos de

    existncia (Guattari, 1990), num mundo para sempre inacabado.No lugar de uma utopia regulada por um modelo teleolgicode perfeio definitiva e acabada, ou da nostalgia das ori-gens (uma terra prometida ou um paraso perdido), uma ticaontolgica do real, sem modelos, a fazer pulular as diferen-as, onde as alianas solidrias multipliquem o heterogneo,o ilimitado, e se comprometam definitivamente com a finitude.

    RefernciasAlbuquerque, J. A. G. de (1980). Instituio e poder: a anlise concreta das

    relaes de poder nas instituies (2a ed.). Rio de Janeiro: Graal.Althusser, L. (1985). Aparelhos ideolgicos: nota sobre os aparelhos ideolgi-

    cos de Estado (2a ed.). Rio de Janeiro: Graal.Baudrillard, J. (1984). Esquecer Foucault. Rio de Janeiro: Rocco.Deleuze, G., & Guattari, F. (1972). L anti-Oedipe: capitalisme et schizophrnie.

    Paris: Editions de Minuit.Donzelot, J. (1979). The poverty of political culture. Ideology & Consciousness,

    5, 73-86.Foucault, M. (1974). A verdade e as formas jurdicas. Cadernos da PUC/RJ, 16,

    5-45.Foucault, M. (1977). Vigiar e punir. Petrpolis: Vozes.Foucault, M. (1980). Histria da sexualidade: a vontade de saber. Rio de

    Janeiro: Graal.Foucault, M. (1992). Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal.Goffman, I. (1974). Manicmios, prises e conventos. So Paulo: Perspectiva.Guattari, F. (1981). Revoluo molecular: pulsaes polticas do desejo. So

    Paulo: Brasiliense.Guattari, F. (1990). As trs ecologias. Campinas: Papirus.Guattari, F., & Rolnik, S. (1986). Micropoltica: cartografias do desejo.

    Petrpolis: Vozes.Rolnik, S. (1989). Cartografia sentimental: transformaes contemporneas

    do desejo. So Paulo: Estao Liberdade.Rolnik, S. (1990, 8 de setembro). Para uma tica de real. Jornal do Brasil

    (Caderno Idias/Livros), p. 6-7.Veyne, P. M. (1982). Foucault revoluciona a histria (apndice). Como se escreve

    a histria. Braslia: Universidade de Braslia.

    Instituies e poder: racionalidade macropoltica e genealogia

    Notas1 Termo usado por Guilhon de Albuquerque para as instituies totais de Goffman.2 Em face da citao repetida do autor de Instituio e Poder, Guilhon de Albuquerque, usarei doravante as

    iniciais G. A.3 Embora parea oscilar entre esta concepo de conhecimento como produo e a de conhecimento por

    representao, conforme ser discutido mais adiante.4 Ver as pginas 13, 14, 25 e 26 de Instituio e poder (Albuquerque, 1980).5 Dentre esses atributos: ruptura das barreiras que separam as trs etapas da vida -dormir, brincar, trabalhar-

    realizadas num mesmo local; controle das necessidades e vigilncia; controle das comunicaes e informaes;separao e hostilidade entre o grupo controlado e a equipe dirigente; uso do trabalho como recompensa oucastigo; incompatibilidade com a vida familiar etc., ver Goffman (1974).

    6 Trata-se, em primeiro lugar, de falar de instituio como lugar destacado da sociedade englobante, como umlugar de soberania. E, em segundo lugar, do modo de administrar necessidades coletivas, o que significa falar derelaes sociais. Ver Albuquerque (1980, p. 92).

    7 neste ponto que Guilhon de Albuquerque critica Althusser, quanto ao papel da ideologia na reproduo dafora de trabalho que, embora lembre que a ideologia no existe fora de seu suporte material, confundeatitudes, comportamentos, condutas e rituais etc.; tudo compreendido na categoria de prticas ideolgicas(Albuquerque, 1980, p. 5).

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    Lilia Ferreira Lobo, doutora em Psicologia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, profes-sora no departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Endereo para correspondncia:Rua Senador Vergueiro, 157, apto. 905. Rio de Janeiro/RJ - CEP 22.230-000. E-mail: [email protected]

    Recebido em 01.abr.02Revisado em 02.jun.04

    Aceito em 12.jul.04

    8 A forma espacial do esquema de anlise encontra-se nas pginas 43, 44 e 47 a 49 do referido livro Instituiese Poder (Albuquerque, 1980).

    9 Ver, a respeito da genealogia, principalmente, Foucault em Vigiar e punir (1977) e Nietzsche: genealogia ehistria (1972), alm de Veyne (1982) em Foucault revoluciona a histria.

    1 0 Os fenmenos de massa, como os que varreram o mundo (ou boa parte dele) em 1968, so fenmenos que spodem ser bem compreendidos se considerados fluxos instituintes em sua lgica micro. Gabriel Tarde, autorto desprezado pelos estudos sociolgicos, talvez tenha sido o primeiro a descrever, pelo contgio da imitao,este fluxo (micro) dos fenmenos de massa.

    1 1 Uma lgica da no-contradio (porque no dialtica), das positividades e dos paradoxos do terceiro incluso,no qual A pode ser A e B, ao mesmo tempo.

    1 2 Esta correspondncia to estrita entre poder e desejo que, para Baudrillard parece to evidente, discutvel.Contudo, no intuito deste trabalho discutir esta questo.

    1 3 A auto-evidncia mencionada no texto de Donzelot (1979).1 4 possvel que Guilhon de Albuquerque tenha razo em suas crticas a certas prticas de alguns que se auto-

    denominam analistas institucionais que, ao fracionarem as anlises, crem estar provocando as diferenas epromovendo transformaes.