Rafael Damasceno Ferreira e Silva O Direito Na Perspectiva Dos Carecimentos Radicais

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O DIREITO NA PERSPECTIVA DOS CARECIMENTOS RADICAIS RAFAEL DAMASCENO FERREIRA E SILVA 1. Introdução – A necessidade de buscar novos referenciais teóricos a fim de enriquecer o debate relacionado ao Direito Alternativo e ao pensamento jurídico crítico em geral, levou-nos ao estudo de alguns autores ainda considerados heterodoxos, ou “marginais”, no âmbito do pensamento crítico, ainda desconhecidos no meio acadêmico, e mesmo entre aqueles que têm desenvolvido um esforço para pensar o Direito numa perspectiva dialética. Nesse sentido, insere-se este pequeno esforço de leitura crítica da obra "Teoría de las Necesidades en Marx", da filósofa húngara Agnes Heller. Na primeira parte, faremos uma pequena apresentação descritiva da referida obra para, logo em seguida, tentar destacar algumas questões puntuadas pela autora no que se refere às nossas preocupações relativas à compreensão do direito na sociedade contemporânea.

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O DIREITO NA PERSPECTIVA DOS CARECIMENTOS RADICAISRAFAEL DAMASCENO FERREIRA E SILVA

1. Introduo

A necessidade de buscar novos referenciais tericos a fim de enriquecer o debate relacionado ao Direito Alternativo e ao pensamento jurdico crtico em geral, levou-nos ao estudo de alguns autores ainda considerados heterodoxos, ou marginais, no mbito do pensamento crtico, ainda desconhecidos no meio acadmico, e mesmo entre aqueles que tm desenvolvido um esforo para pensar o Direito numa perspectiva dialtica. Nesse sentido, insere-se este pequeno esforo de leitura crtica da obra "Teora de las Necesidades en Marx", da filsofa hngara Agnes Heller.

Na primeira parte, faremos uma pequena apresentao descritiva da referida obra para, logo em seguida, tentar destacar algumas questes puntuadas pela autora no que se refere s nossas preocupaes relativas compreenso do direito na sociedade contempornea. Este artigo inscreve-se nesta busca de novos referenciais para o enriquecimento do debate acerca das relaes entre o Direito, a Democracia e a superao das injustias inerentes ao sistema capitalista, debate este ainda em formao. Por isso, no pretendemos estabelecer marcos definitivos com este estudo, mas abrir horizontes e novos questionamentos, alguns de valor meramente heurstico, a fim de contribuir para a criao de uma teoria crtica aberta, num esforo coletivo de compreenso de uma realidade igualmente aberta e sempre em construo.2 Notas sobre a Teoria das Necessidades em Marx

A filsofa hngara Agnes Heller nasceu em Budapeste, em 1929. Foi aluna de Gyrgy Lukcs at 1958. Perseguida na Hungria pelo regime stalinista, sua obra foi acusada pelo Comit Central do Partido Comunista ao mesmo tempo de ser "expresso do tradicional revisionismo de direita" e "do novo-esquerdismo de cunho ocidental". O que j denota que sua obra merece, ao menos, uma passada de olhos.

Aps deixar a Hungria, Agnes Heller lecionou na La Trobe University, na Austrlia, e nos Estados Unidos, onde vive atualmente. Seus maiores interesses esto na teorizao da natureza humana sob um ponto de vista crtico, das potencialidades transformadoras da vida cotidiana e da democracia, e se inserem, fundamentalmente, no resgate de um marxismo aberto, no dogmtico, capaz de apresentar respostas e gerar novos questionamentos. Mais recentemente, a autora tem voltado seus interesses ao estudo da ps-modernidade e suas manifestaes polticas e culturais, bem como da teoria da justia.

As principais obras de Heller so, "Sociologia da Vida Cotidiana", "O Homem do Renascimento", "A Revoluo da Vida Cotidiana", "Crtica da Ilustrao", "Mais Alm da Justia" e, em parceria com Fernc Feher, "Anatomia da Esquerda Ocidental" e "Polticas da Ps-Modernidade". Lanadas no mercado brasileiro, temos, ainda, "Mudar a Vida" (entrevista com Ferdinando Adornato), "A Filosofia Radical" e "Cotidiano e Histria".

A obra Teoria das Necessidades em Marx, ou, no original, "Bedeutung und Funktion des Begriffs Bedrfnis im Denken von Karl Marx", foi publicada pela primeira vez em 1974 e consiste em um projeto de compreenso do papel que o conceito de necessidade opera no sistema de Marx. No h verso em lngua portuguesa, mas a traduo espanhola - "Teora de las Necesidades en Marx" - , embasa o presente trabalho.

Quanto traduo de "necessidades", prefirimos seguir a orientao de Carlos Nelson Coutinho, que traduziu a obra "Mudar a Vida para o portugus, criando o neologismo "carecimentos". Em alemo tanto "Notwendingen" quanto "Bedrfnis" significam "necessidade", o mesmo ocorrendo na verso italiana que baseou a traduo de Coutinho (bisogno). Ocorre que o alemo possui nuances dificilmente tradutveis para o portugus. "Notwendingen" possui o sentido de "necessidade objetiva", no sentido famlico do termo, enquanto "Bedrfnis" possui uma conotao mais subjetiva, no sentido de querer, ou ter vontade de. Compreender a necessidade sob o primeiro prisma colocaria o pensamento de Marx numa perspectiva determinista, exatamente o oposto do que pretende Agnes Heller.

Heller demonstra nesta obra que conceitos fundamentais em Marx como mais-valia, mercadoria e toda a teoria do valor esto fundados na noo de carecimento. Para Marx, a mercadoria uma coisa apta a satisfazer os carecimentos humanos de qualquer tipo. Toda a mercadoria possuiria um valor de uso, dado de acordo com a necessidade de quem o utiliza, e um valor de troca, dado no mercado. Inexiste, em Marx, valor de troca sem valor de uso (satisfao de carecimentos), embora o oposto seja perfeitamente possvel.

Embora Marx no defina "carecimento" em toda a sua obra, Heller arrisca uma definio. Para ela carecimento aparece enquanto um desejo consciente, aspirao, inteno dirigida a todo momento a um certo objeto e que motiva a ao enquanto tal.

Outro dado importante sobre o conceito que os carecimentos so sempre pessoais (no sentido de que s as pessoas desejam algo de forma consciente) e sociais (o objeto do carecimento vem dado pela objetivao social). Inexistem carecimentos naturais. O ar, por exemplo, no carecimento, mas condio de existncia.

Diferencia ainda os carecimentos "existenciais" (notwendingen - no sentido mais prprio de "necessidades"), que so baseados no instinto de autoconservao, tais como os carecimentos de alimento, sexo, contato social e atividade. Note-se que estes carecimentos s podem ser considerados naturais em um sentido figurado. Eles no so naturais pois que contextualizados socialmente. Ao lado destes, existiriam os carecimentos "propriamente humanos": atividades como o lazer, o jogo, a amizade, a atividade cultural, a arte, etc.

Os carecimentos podem ainda ser alienados ou no-alienados. Alienados, para Agnes Heller, so os carecimentos chamados quantitativos: dinheiro, poder e posse; no-alienados seriam os carecimentos denominados qualitativos.

Marx, salienta a autora, nunca se referiu "necessidade social" como um sistema de necessidades em geral, por cima dos indivduos e de suas necessidades pessoais. Sempre que isto colocado, adverte Heller, h uma separao artificial entre os carecimentos ditos "verdadeiros" e os "falsos", separao esta feita de forma imposta pelas classes ou estamentos dominantes, segundo seus interesses. Marx refere-se s vezes a carecimentos reais ou imaginrios, mas nunca a carecimentos inconscientes (tanto os reais quanto os imaginrios so conscientes). Segundo Heller, Marx estaria se referindo, em sua obra, apenas aos carecimentos concretos de pessoas de carne e osso. Quando Marx fala em carecimentos sociais, para a autora, estaria se referindo aos carecimentos que necessitam de uma instituio para serem atendidos (carecimento de educao, por exemplo) ou, ainda, ao fato de que os carecimentos humanos so produzidos socialmente em dadas condies concretas. Jamais, porm, a perspectiva marxiana pretendeu objetivar a noo de necessidade social como uma "necessidade geral" (do todo em detrimento da parte).

Marx estabelece, no sentido dos carecimentos sociais enquanto produo social concreta, uma dialtica entre estes e os objetos materiais. O sistema de carecimentos em uma dada sociedade condicionado e condicionante, fruto e motor da realidade objetiva. Na Ideologia Alem, coloca que tanto a criao quanto a satisfao destas necessidades so, por si, um processo histrico .

Um dos maiores mritos de Heller nesta obra demonstrar que Marx no se inscreve, de modo algum, na perspectiva economicista. A prpria afirmao de que a riqueza material deve servir s necessidades do operrio uma valorizao extra-econmica. Sem premissas de valor, salienta Heller, Marx seria um crtico imanente do capitalismo, e sem uma investigao imanente do capitalismo seria um anticapitalista romntico.

A reduo do conceito de carecimento a uma necessidade econmica expresso da alienao de uma sociedade cujo fim da produo no a satisfao dos carecimentos, mas a valorizao do capital. esta, justamente, a especificidade do capitalismo, a primeira sociedade que forou, pela sua estrutura social, classes inteiras a lutar cotidianamente pela satisfao de necessidades meramente existenciais.

a sociedade burguesa que reduz os carecimentos humanos a meras necessidades de supervenincia. O socialismo seria mais do que a busca da satisfao das "necessidades bsicas da populao", a busca da riqueza humana, riqueza entendida como a livre efuso de todas as capacidades e sentimentos humanos, quer dizer (...) a manifestao da livre e mltipla atividade de todo indivduo.

Em resumo, a subordinao da economia ao sistema de carecimentos humanos (ou seja, o contrrio do que ocorre na sociedade capitalista) consiste numa "categoria antropolgica de valor" que permeia todo o pensamento de Marx.

Quanto questo do sistema de carecimentos no capitalismo, que outro ponto alto da obra, a autora faz ver que, para Marx, apesar da quantidade de riqueza material que se produz (desenvolvimento das foras produtivas, socializao do trabalho), o capitalismo incapaz de dar vazo aos carecimentos no-alienados, qualitativos, que so a essncia da riqueza humana.

No capitalismo, o homem converte-se em meio para a satisfao dos interesses do outro. Com a extrao da mais-valia, o produto do trabalho aparece como uma fora estranha, alheia ao trabalhador (fenmeno da alienao), e no serve para a satisfao de seus carecimentos (valor de uso). O que satisfaz suas necessidades (existenciais, ou, s vezes nem isto, caso dos pases de capitalismo perifrico), o trabalho abstrato.

Ao mesmo tempo, h um empobrecimento das necessidades, uma reduo e homogeneizao que caracterizam os sistemas de necessidades tanto das classes dominantes quanto das dominadas (ainda que no da mesma maneira). Tudo reduzido ao seu aspecto quantitativo. Todos os carecimentos gerados pelo sistema convergem para o local onde mais rentvel ao capital.

A contradio fundamental do capitalismo justamente a de criar, por um lado, necessidades mltiplas e ricas e, por outro, provocar o empobrecimento dos carecimentos, transformando os trabalhadores em seres incompletos, reduzidos sua condio de mercadoria, dotados apenas da busca da satisfao dos carecimentos meramente existenciais. A mxima do Sistema pode ser resumida da seguinte forma: o operrio deve ter somente o suficiente para viver, e deve viver somente para ter.

Mas se um sistema de carecimentos especfico de cada formao social, e se no sistema capitalista os carecimentos esto reduzidos a meros carecimentos qualitativos de poder, posse e dinheiro, ou busca da satisfao de carecimentos existenciais, como surgem as foras subjetivas capazes de transformar a sociedade existente?

A sociedade futura, em Marx, reestruturaria completamente o sistema de carecimentos. Porm, ela o faz sob determinadas condies no interior da sociedade capitalista dada. esta prpria sociedade capitalista que gera o carecimento de transformao, os desejos que esta prpria sociedade capitalista, pela alienao, pelo sistema de classes, pela dominao poltica, no pode realizar. nas bordas do sistema capitalista que se situa a pulso que move o desejo de mudana.

O prprio capitalismo gera promessas que ele no pode cumprir. Gera carecimentos quantitativos que no podem ser reproduzidos indefinidamente (posse, poder, ambio), e que implicam, para a sua satisfao que um homem se torne meio para outro homem. Gera, igualmente, carecimentos qualitativos de uso de bens (o uso , diferentemente da posse, carecimento qualitativo) que, no atual modelo de distribuio desigual, no podem ser utilizados por todos. No Planeta, por exemplo, falta alimento para bilhes de seres humanos. Alm disso, h sempre a questo do tempo livre, verdadeira medida da riqueza, da busca do lazer, da atividade livre em oposio atividade alienada, propriamente "produtiva".

O capitalismo vive, para Agnes Heller, uma dicotomia estrutural central. O Sistema, que precisa produzir sempre cada vez mais, gera novos carecimentos, ao mesmo tempo em que no pode satisfazer todos eles. Sempre necessrio haver uma demanda crescente de produtos de consumo, e esta demanda estabiliza-se quando satisfeitos os carecimentos a que determinada mercadoria se destina..

Estes carecimentos que no podem ser satisfeitos no mbito da sociedade capitalista, Agnes Heller os chama de carecimentos radicais. Para Heller:

As classes exploradas no pretendem, em geral, mais do que uma melhor satisfao das necessidades que lhes so colocadas. Mas as prprias massas exploradas tornam-se conscientes (em diversas condies histricas) da oposio existente entre seu sistema de necessidades e o das classes dominantes. Querem eliminar ento tudo o que obstaculiza a satisfao de suas necessidades, e generalizar seu sistema de necessidades, quer dizer, tornar realizveis em seu proveito, para si, determinados momentos do sistema das classes dominantes.

Marx busca os portadores destes carecimentos radicais e os acha na classe operria. Esta classe possuiria um carter universal pelo universal de seus sofrimentos e no reclamaria, para si, nenhum direito especial, pois contra ela no se cometeu nenhum desaforo em particular, mas o desaforo em si, absoluto.

Posteriormente Agnes Heller ampliaria mais claramente o conceito de carecimentos radicais a fim de englobar outros sujeitos sociais que no a classe operria. Em entrevista a Ferdinando Adornato declara, sobre sua teoria, que ela "recusa a construo filosfica do sujeito revolucionrio (...) todos os estratos sociais que expressam carecimentos radicais podem tornar-se sujeitos da transformao revolucionria".

Acusada de pluralismo, de excessiva abertura terica, de esquerdismo e de direitismo, ou ainda de fundamentar uma atitude "hippie" ou "autonomista", Heller conseguiu, em sua obra, uma proeza pouco conquistada entre os tericos legatrios de Marx: a de casar no pensamento marxista a "corrente fria" (busca da concretude, da anlise das condies reais) e da "corrente quente" (utpica, de afirmao do sujeito humano como construtor do real sem, no entanto, transformar a teoria marxista numa teoria "morna". Sua obra nos coloca frente ao desafio construo desde j de uma nova sociedade, frente ao desafio de uma revoluo que no pode ser apenas poltica ou econmica, mas uma revoluo no modo de vida, uma transformao social global, que somente pode ser levada a cabo por uma coletividade de sujeitos desejantes. 3. A Teoria dos Carecimentos Radicais e o Direito Alternativo

Neste momento, dividiremos alguns questionamentos que a obra acima descrita capaz de despertar, no que se refere compreenso do fenmeno jurdico, mais especificamente dos movimentos que, a contar da experincia do ento denominado "Direito Alternativo", na dcada de 1980, entendido aqui numa pespectiva "latu sensu", e do posterior debate acerca da efetivao dos direitos fundamentais no mbito da Constituio de 1988, ao longo das dcadas de 1990 e 2000.

Agnes Heller chega a afirmar em dado momento da entrevista, reunida na obra Mudar a Vida, que apesar de tudo, uma teoria socialista (...) deve partir da considerao de que necessrio satisfazer todos os carecimentos, e no s os radicais

Como j vimos, a autora recusa a noo de "necessidades sociais" como necessidades coletivas em contradio com as necessidades individuais. Logo, algumas questes parecem complicar-se. Quem regular os conflitos possveis entre carecimentos individuais? Se todos os desejos so vlidos, qual a importncia da regulao social? a teoria de Heller uma teoria anarquista?

Heller no nega a necessidade de uma regulao social, desde que seja feita democraticamente. No nega, tambm, a importncia do aspecto normativo. Salienta que a contestao pela contestao burra, que, muitas vezes, a simples negao do aspecto normativo contraproducente. "Na Idade Mdia, a norma da fidelidade significava fidelidade em face do senhor; num perodo histrico mais avanado, pde-se dar a esta norma uma nova interpretao: a fidelidade em face dos concidados mais importante do que a fidelidade para com o senhor. Essa nova interpretao da norma produziu efetivamente uma libertao. Mas, se digo que a fidelidade em geral uma estupidez, to-somente por ser uma prescrio social, no produzo de modo algum efeitos liberadores. Se recuso todo o aspecto normativo, no posso mais falar de libertao".

O fato de afirmar que todos os carecimentos so vlidos a princpio no significa aceitar eticamente os carecimentos puramente quantitativos que impliquem na subordinao do outro (posse, poder e ambio), e nem excluir a possibilidade de uma administrao dos carecimentos, pois h a circunstncia de que certos carecimentos no possam ser socialmente satisfeitos, por circunstncias diversas. Assim:

"no caso de uma crise social - a maioria da sociedade, voluntariamente, atravs do exerccio de seus Direitos democrticos, pode limitar temporariamente a satisfao de alguns carecimentos (....) preciso convencer as pessoas [racionalmente] do fato de que, em determinado momento histrico, no podem ser satisfeitos alguns dos seus carecimentos, sem com isso, porm, pr em dvida a importncia dos mesmos".

Para ela, a satisfao dos carecimentos radicais tem como premissa a realizao de uma sociedade sem hierarquias, sem opresso e sem explorao.

Qual o papel do Direito na construo de uma sociedade sem hierarquias?

Inicialmente, pensamos que a teoria de Heller lana luz sobre a questo de como o Direito capitalista produz e reproduz a alienao dos homens.

O sistema capitalista, conforme vimos, reduz e homogeniza os carecimentos individuais, colocando-os enquanto carecimentos existenciais ou meramente quantitativos. Porm, o modo de produo no se reproduz seno atravs de mecanismos superestruturais que, basicamente, segundo Gramsci, so a coero (fora - Sociedade Poltica) e o consenso (ideologia - Sociedade Civil), destinados a manter a hegemonia burguesa sobre a sociedade e, igualmente, manter o "sistema de carecimentos" do capitalismo.

Neste mbito, o Direito ocupa um papel privilegiado. A instncia jurdica se localiza em ambas as funes, ideolgica e repressiva. atravs do Direito estatal que parte da coero e da ideologia produzida e disseminada, o que, por conseguinte, reproduz o sistema de alienao. O Direito opera no nvel repressivo no sentido de normalizao da conduta e no nvel ideolgico no que diz respeito coeso social, difuso de valores hegemnicos.

Nesta instncia jurdica estatal, os conflitos sociais so reduzidos, individualizados e devidamente amortecidos. Alm disso, o Direito possui, igualmente, o papel de normalizar e trivializar os carecimentos. O Direito capitalista ajuda no processo de reduo dos carecimentos no sentido quantitativo, em suma, reduz os carecimentos ao carecimento fundamental para a sociedade capitalista: o carecimento de ter.

A maioria dos Direitos assegurados legalmente no nosso sistema jurdico ou no possui plena efetividade ou , na sua maioria, reducionista no mbito quantitativo, ou, para ser mais claro, a satisfao de sua pretenso feita de forma quantitativa, atravs, principalmente, da indenizao.

Evidentemente que o sistema jurdico no se reduz a somente isto. Por exemplo, no Direito Penal, as penas privativas de liberdade so ainda dominantes, em larga escala, sobre as penas pecunirias ou de prestao de servios. Mas aqui temos o Estado, atravs do Poder Judicirio, retirando um Direito: o da liberdade. Pode-se contra-argumentar dizendo que se est beneficiando a sociedade com o Direito segurana, que no quantitativo, mas, mesmo assim, no que respeita normalizao, a pena dirigida mais ao criminoso do que satisfao de um carecimento da sociedade, haja vista toda a recente discusso sobre o papel da vtima no sistema penal e da justia restaurativa, ainda embrionria.

Com a aplicao de uma pena privativa de liberdade, retira-se dos indivduos ao qual o Direito penal dirigido (e todos ns sabemos qual o setor social a que eles pertencem) o bem "tempo livre", condio para o desenvolvimento das verdadeiras riquezas sociais, para Marx.

Assim, quando o sistema jurdico atende a um carecimento individual, o faz de forma notadamente quantitativa. A moeda da justia capitalista a moeda capitalista, o Dinheiro, valor de troca, apenas. E h at casos em que bens coletivos, irredutveis ao aspecto econmico, como ar puro e gua limpa, so convertidos, no caso de empresas poluidoras, em "pesadas" multas. O princpio do poluidor-pagador e a idia dos crditos de carbono nada mais so do que manifestaes dessa lgica de mercado quantitativista.

Desta forma, o Direito capitalista instaura uma espcie de ditadura sobre os carecimentos. Num primeiro momento, selecionando quais carecimentos so exigveis, quais so vlidos perante o Sistema. Normalmente so os carecimentos quantitativos, claro, mas no s. Podem ser carecimentos qualitativos, desde que o sistema esteja preparado para satisfaz-los. Neste primeiro momento, ocupa um papel crucial o advogado que filtra, em seu escritrio, o carecimento "bruto" do cliente, dizendo se este tem ou no direito satisfao deste carecimento pelo sistema jurdico ou dispensando-o.

Num segundo momento, o sistema transforma estes carecimentos exigveis, tornando-os meramente quantitativos. Este mecanismo tem um papel ideolgico evidente de manipulao dos carecimentos, de disciplina dos desejos, fazendo os sujeitos que buscam suas pretenses acreditarem que somente as pretenses dadas daquela maneira so legtimas.

Porm deve ficar bem claro que o problema no com o Direito em si. O Direito capitalista est em relao dialtica com o Sistema capitalista. condicionado ao mesmo tempo em que o condiciona, ou melhor, parte integrante do modelo, da totalidade do Bloco Histrico, para usar um termo gramsciano.

Pensamos que este elemento de reduo dos carecimentos a um mbito quantitativo estrutural no Direito capitalista. No um problema de "leis". Pensar num sistema alternativo e eficaz para que a empresa poluidora deixe de poluir e no "pague para poluir" possvel, mas difcil porque contra todas as tendncias do Direito capitalista.

O Direito capitalista reproduz alienao em seu mago. O que deveria ser meio de realizao dos fins sociais, do "bem comum", ou do "bem estar geral", que a lei, torna-se fim e estes fins, meios, pura retrica de justificao ideolgica.

Outro aspecto se manifesta na afirmao de que o Direito no apenas represso ou ideologia, mas tambm conflito. O Direito tambm est inserido no mbito da dialtica de "integralidade parcial e desintegrao essencial".

Ao lado do Direito estatal, enquanto lugar de produo da hegemonia de classe, existe um Direito insurgente, Direito que emerge dos sujeitos desejantes que se organizam em movimentos de base. Esses sujeitos possuem carecimentos que so, notadamente, formulados sob forma jurdica, conforme destaca Eunice Durham, entre outros.

Este "Direito insurgente" cataliza toda uma gama de carecimentos radicais e se constitui na base para a nova juridicidade que se quer construir. De acordo com Wolkmer:

"A Justia em sua dimenso social e poltica define-se pela satisfao das necessidades mnimas e justas que garantam as condies (materiais e culturais) de uma vida boa e digna. Assim, o critrio bsico para a fixao de uma Justia de cunho social no so os padres normativos a priori , mas a historicidade concreta que parte de situaes cotidianas, assegurando condies justas e iguais de existncia".

A construo de um Novo Direito, porm, no se faz de um momento para outro. um processo de avanos e recuos no plano dos movimentos sociais e Sociedade Civil - mas que provoca reflexos notveis igualmente no mbito da Sociedade Poltica, dos aparelhos de Estado, entre os quais o Judicirio. Como salienta Heller, esta contruo lenta, mas d-se desde j; um processo permanente de conquista e construo de um novo sistema de carecimentos. Assim:

A vitria dos movimentos para a revoluo social total no pode ser fixada em um ponto determinado do tempo. No constitui um ato, mas um conjunto de atos, seno invariavelmente um processo. um processo cujo sujeito so as massas, em medida cada vez maior.

Assim, os carecimentos formulados pelos novos sujeitos coletivos, no reconhecidos pelo Estado (seja no mbito legislativo, seja no plano da efetividade de direitos j assegurados no papel) vm a tona e pressionam os aparelhos de Estado, entre eles o Judicirio. E se o Estado , como quer Poulantzas, o resultado de uma condensao de foras, o Judicirio no deixa de ser, com todos os seus limites, uma instncia de luta, uma "casamata" a mais a ser conquistada.

Esta mesma concluso dividida com o autor espanhol Saavedra Lpez, para quem:

As instituies pblicas, os aparelhos de Estado, so incapazes de dar satisfao s demandas sociais, e os servidores dessas instituies, os funcionrios do Estado, os intelectuais, so alcanados, comprometidos pelas tenses e conflitos, no sentido de se verem radicalmente questionados no exerccio de suas funes. A crise no os afeta to-somente como reflexo, ao modo de uma onda expansiva de uma exploso em outro lugar, mas eles mesmo formam parte desse conflito. A luta de classes os engloba.

4. Concluso

Concluindo, na atualidade, o jurista comprometido com os movimentos sociais no precisa ficar preocupado com que a busca pela legalidade sirva para coopt-los. A integrao, numa sociedade que opta e tem optado historicamente pela excluso, igual transformao de seus pressupostos.

Acreditamos que os juristas radicais, juristas que tm carecimentos radicais, por justia, melhores condies de trabalho, relaes humanas significativas, etc., e, exatamente por isto, se inserem no quadro de uma teoria radical, desempenham um papel importante na construo do Direito desta "sociedade sem hierarquias". No como meros "tcnicos", o que reproduziria uma diviso elitista do trabalho, mas como produtores co-artfices desta nova sociedade, ao lado de todos que se constroem como sujeitos desejantes de justia.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

CALERA, Nicols, LPEZ, Modesto Saavedra e IBAEZ, Perfecto. Sobre el Uso Alternativo del Derecho. Valencia: Fernando Torres, 1978.CODO, Vanderlei. O que Alienao. 6 ed. So Paulo, Brasiliense, 1985 (coleo Primeiros Passos, 141)

DUHRAM, Eunice. Movimentos Sociais: a Construo da Cidadania. In: Novos Estudos Cebrap. So Paulo, n. 10, out. 1984. p. 24-30.

GORZ, Andr. Adeus ao Proletariado. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1987.

HELLER, Agnes. Teora de Las Necesidades en Marx. 2 ed. Barcelona: Pennsula, 1986. 182p. (trad. J.F. Yvars).

_______. Para Mudar a Vida: felicidade, liberdade e democracia. So Paulo: Brasiliense, 1982. 204 p. (trad. Carlos Nelson Coutinho)

MESZROS, Istvn. Filosofia, Ideologia e Cincia Social. So Paulo: Ensaio, 1993. p. 80.

POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo. 3 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990.

WOLKMER, Antnio Carlos. Pluralismo Jurdico: o Espao de Prticas Sociais Participativas. Tese de Doutorado. Florianpolis, CPGD/UFSC, 1992. p. 456

Envio para o Scribd muitas dessas obras existem em lngua espanhola. Optamos, aqui, por apresentar seus ttulos em portugus, mesmo que estes no tenham sido editados em pases de lngua portuguesa.

HELLER, Agnes. Teora de Las Necesidades en Marx. 2 ed. Barcelona: Pennsula, 1986. 182p. (trad. J.F. Yvars).

HELLER, Agnes. Para Mudar a Vida: felicidade, liberdade e democracia. So Paulo: Brasiliense, 1982. 204 p. (trad. Carlos Nelson Coutinho)

"deseo consciente, aspiracin, intencin dirigida en todo momento hacia un certo objeto y que motiva la accin como tal". HELLER, Agnes. Teora de Las Necesidades en Marx. op. cit p. 170.

"sistema de necesidades general, por encima de los indivduos y de sus necesidades personales" Op. Cit. P. 77.

Tanto la creacin como la satisfacin de estas necesidades es de suyo un proceso histrico". Op. Cit. P. 43.

"Marx sera un crtico inmanente del ca "la libre efusin de todas las capacidades y sentimientos humanos, es decir,(...) la manifestacin de la libre e mltiple actividad de todo indivduo" (8). pitalismo y sin una investigacin inmanente del capitalismo sera un anticapitalista romntico". Op. Cit. P. 42.

"el obrero slo deve tener lo suficiente para querer vivir y slo deve querer vivir para tener". Op. Cit. P. 40.

ver, por exemplo, GORZ, Andr. Adeus ao Proletariado. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1987.

ver CODO, Vanderlei. O que Alienao. 6 ed. So Paulo, Brasiliense, 1985 (coleo Primeiros Passos, 141)

"Las clases explotadas no pretenden en general ms que una mejor satisfaccin de las necesidades que les han asignado. Pero las propias masas explotadas se hacen conscientes (en diversas condiciones histricas) de la oposicin existente entre su sistema de necesidades y el de las clases dominantes. Quieren eliminar entonces todo lo que obstaculiza la satisfacin de sus necesidades, y generalizar su sistema de necesidades, es decir hacer realizables en su provecho, para s, determinados momentos del sistema de las clases dominantes". HELLER. Op. Cit. P. 116

"una esfera que posee un carter universal por lo universal de los sufrimientos, y que no reclama para s ningun derecho especial, puesto que contra ello no se ha cometdo ningn desafuero en particular, sino que el desafuero 'en s, absoluto'". MARX, Karl. Apud. HELLER, op. Cit. P. 105.

Op. Cit. P. 133. HELLER, Agnes. Para Mudar a Vida: felicidade, liberdade e democracia. op. cit p.133. Ou ainda, "a teoria dos carecimentos radicais (...) uma teoria aberta porque, do ponto de vista da prxis, faz depender apenas dos carecimentos, dos contedos expressos, do grau de conscincia adquirido, o carter revolucionrio de uma classe, de um estrato social e dos programas polticos dos partidos e dos movimentos". P. 134.

HELLER, Agnes. Para Mudar a Vida: felicidade, liberdade e democracia. op. cit p.135.

Op. Cit. P. 31-2.

Op. Cit. P. 136

conforme MESZROS, Istvn. Filosofia, Ideologia e Cincia Social. So Paulo: Ensaio, 1993. p. 80. Nenhum sistema completamente integrador. Nele sempre h elementos de conflito social em que este termina por modificar sua essncia e seus pressupostos.

DUHRAM, Eunice. Movimentos Sociais: a Construo da Cidadania. In: Novos Estudos Cebrap. So Paulo, n. 10, out. 1984. p. 24-30.

WOLKMER, Antnio Carlos. Pluralismo Jurdico: o Espao de Prticas Sociais Participativas. Tese de Doutorado. Florianpolis, CPGD/UFSC, 1992. p. 456

"la victoria de los movimientos para la revolucin social total no puede ser fijada en un punto determinado del tiempo. No constituye un acto o un conjunto de actos, sino invariablemente un proceso. Es un proceso cuyo sujeto son las masas, en medida cada vez mayor. En los movimientos revolucionarios para la revolucin total de la sociedad los propios hombres transforman su estructura de necesidades y de valores en el proceso permanente de objetivacin" HELLER, Teoria de Las Necesidades... op. Cit. p. 178.

- POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo. 3 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990.

CALERA, Nicols, LPEZ, Modesto Saavedra e IBAEZ, Perfecto. Sobre el Uso Alternativo del Derecho. Valencia: Fernando Torres, 1978.