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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Rafael Rocha Paiva Cruz

    Educao em direitos humanos: caminhos para a efetivao da democracia

    e dos direitos humanos e o papel da Defensoria Pblica

    MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

    SO PAULO

    2014

  • Rafael Rocha Paiva Cruz

    Educao em direitos humanos: caminhos para a efetivao da democracia e dos direitos

    humanos e o papel da Defensoria Pblica

    MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

    Dissertao apresentada Banca Examinadora

    da Pontifcia Universidade Catlica de So

    Paulo, como exigncia parcial para obteno

    do ttulo de Mestre em Direito Constitucional,

    sob a orientao do Prof. Dr. Roberto Baptista

    Dias da Silva.

    SO PAULO

    2014

  • Banca Examinadora

    ____________________________________

    ____________________________________

    ____________________________________

  • Aos meus pais, minha av Yolanda e minha irm,

    pelo carinho e por sempre estarem ao meu lado.

    minha esposa Jackeline,

    pelo amor que me faz viver.

    Aos Defensores Populares,

    pela inspirao e motivao.

  • Agradecimentos

    Aos meus pais, pelo imenso e incondicional apoio aos estudos desde a infncia.

    minha av Yolanda, pelo carinho constante.

    minha irm, pela ajuda sempre disponvel e pelo companheirismo.

    minha esposa Jackeline, pela grande compreenso ao longo desta difcil empreitada e pelo

    amor que me d energia.

    Ao Professor Roberto Dias, pelo aprendizado e oportunidade que me proporcionou e pela

    confiana.

    s Professoras Silvia Pimentel e Flvia Piovesan, pelas gentis contribuies que forneceram a

    este trabalho por ocasio da qualificao.

    Aos amigos Gustavo Reis, Renata Anto, Sabrina Durigon, Delana Corazza, Ana Arantes,

    Jnio Marinho, Erik Arnesen e demais participantes do Curso de Defensores Populares, pela

    amizade e pelas contribuies que forneceram s pesquisas.

    Aos amigos e colegas de Defensoria Marcos Nascimento, Andrew Toshio, Wagner Giron,

    Patrcia Biagini, Bruno Miragaia, Diego Vale e Luciana Zaffalon, pelas contribuies

    fornecidas.

  • Escola da Defensoria Pblica do Estado de So Paulo e seus funcionrios, pelo estmulo e

    viabilizao deste estudo.

    Professora, amiga e colega de Defensoria Mnica de Melo, pelo auxlio sempre disponvel.

    Amelinha Telles, pela inspirao decorrente da luta pela educao em direitos humanos

    relacionada aos direitos das mulheres e pelas contribuies fornecidas.

    Aos amigos e colegas de Defensoria Ricardo Zago, Flvio Frias e Renata Klimke, pelo apoio

    incondicional.

    Aos amigos e colegas de mestrado, especialmente a Luiz Panelli, Aline Freitas e Lcio Telles,

    pelo estmulo e colaborao.

    s vrias outras pessoas que colaboraram para este projeto.

  • RESUMO

    CRUZ, Rafael Rocha Paiva. Educao em direitos humanos: caminhos para efetivao da

    democracia e dos direitos humanos e o papel da Defensoria Pblica. 2014. p. Dissertao

    (Mestrado) Faculdade de Direito, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2014.

    Esta dissertao objetiva estudar a educao em direitos humanos e suas relaes com a

    efetivao dos direitos humanos e da democracia, com ateno especial aos processos de

    discriminao e excluso, bem como analisar o papel da Defensoria Pblica nessa seara.

    Justifica-se o estudo pela atualidade e importncia do tema nos cenrios nacional e

    internacional e pela relao com os fundamentos e objetivos constitucionais. A hiptese de

    que a educao em direitos humanos pode fornecer relevantes contribuies para a efetivao

    da democracia e dos direitos humanos, inclusive nas questes que envolvem discriminao e

    excluso, e que a Defensoria Pblica tem importante atuao nesse sentido. Para tanto,

    inicialmente, a partir de um estudo histrico-crtico, analisam-se os sentidos e as principais

    questes da educao, dos direitos humanos e da democracia que se relacionam com o tema.

    Aps, verificam-se os diversos aspectos da educao em direitos humanos e a normativa

    aplicvel existente no mbito internacional e nacional. Ao final, mostram-se as importantes

    capacidades da educao em direitos humanos contribuir para a efetivao dos direitos

    humanos e da democracia, especialmente em favor das pessoas e grupos discriminados e

    excludos, bem como o relevante papel da Defensoria Pblica nessa seara, confirmando-se a

    tese.

    PALAVRAS-CHAVE

    Educao em direitos humanos; efetivao da democracia e dos direitos humanos; papel da

    Defensoria Pblica.

  • ABSTRACT

    CRUZ, Rafael Rocha Paiva. Educao em direitos humanos: caminhos para efetivao da

    democracia e dos direitos humanos e o papel da Defensoria Pblica. 2014. p. Dissertao

    (Mestrado) Faculdade de Direito, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2014.

    The purpose of this thesis is to analyze human rights education and its relationships with the

    realization of human rights and democracy, with emphasis on processes of discrimination and

    exclusion, as well as the role of Legal Services in the aforementioned field. This analysis is

    justified by the currency and importance of the subject in both national and international

    settings, and its relationship with constitutional principles and objectives. The hypothesis is

    that human rights education can contribute significantly to the realization of democracy and

    human rights, including in cases involving discrimination and exclusion, and that Legal

    Services have an important role therein. First, the meanings and main issues pertaining to

    education, human rights and democracy are analyzed in association with the subject are

    analyzed in a historical-critical study. Then, the several aspects of human rights education and

    applicable national and international regulations are examined. Finally, this work

    demonstrates the significant capabilities of human rights education to contribute to human

    rights and democracy realization, particularly in favor of discriminated and excluded

    individuals and groups, as well as the relevant role of Legal Services in this field, thus

    confirming the thesis.

    KEYWORDS

    Human rights education; democracy and human rights realization; role of Legal Services.

  • SUMRIO

    INTRODUO 1

    1. EDUCAO, DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA 3

    1.1. Educao 3

    1.1.1. Evoluo histrica 3

    1.1.2. Sentidos da educao para a educao em direitos humanos 27

    1.2. Direitos humanos 40

    1.2.1. Evoluo histrica 40

    1.2.2. Sentidos dos direitos humanos para a educao em direitos humanos 48

    1.3. Democracia 55

    1.3.1. Evoluo histrica 55

    1.3.2. Sentidos da democracia para a educao em direitos humanos 64

    2. EDUCAO, DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA NO ESTADO

    DEMOCRTICO DE DIREITO BRASILEIRO 71

    2.1. Estado Democrtico de Direito e a Constituio de 1988 71

    2.2. Relao entre democracia e direitos humanos 75

    2.3. Educao como direito fundamental 83

    2.4. Educao na Constituio Brasileira de 1988 90

    3. ASPECTOS GERAIS DA EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS 96

    3.1. Histrico 96

    3.2. Natureza jurdica 99

    3.3. Conceitos 101

  • 3.4. Contedos 104

    3.5. Finalidades 108

    3.6. Pedagogias 111

    3.7. Sujeitos 118

    4. NORMATIVAS DA EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS 120

    4.1. Normativa na Organizao das Naes Unidas 120

    4.1.1. A normativa antecedente ao Programa Mundial para educao em direitos

    humanos 120

    4.1.2. O Programa Mundial para educao em direitos humanos 121

    4.1.2.1. A primeira etapa do plano de ao 122

    4.1.2.2. A segunda etapa do plano de ao 126

    4.1.2.3. A terceira etapa do plano de ao 127

    4.1.3. A Declarao das Naes Unidas sobre a educao e formao em direitos

    humanos 130

    4.2. Normativa na Organizao dos Estados Americanos 133

    4.2.1. A normativa geral sobre educao em direitos humanos 133

    4.2.2. Os programas especficos de educao em direitos humanos 141

    4.2.2.1. O Programa Interamericano sobre Educao em Valores e Prticas

    Democrticas 141

    4.2.2.2. A proposta curricular e metodolgica para incorporao da educao em

    direitos humanos na educao formal de meninos e meninas entre 10 e 14 anos 143

    4.2.2.3. O Pacto Interamericano pela Educao em Direitos Humanos 144

    4.2.2.4. O Marco estratgico 2011-2014: a educao como chave do futuro

    democrtico 146

    4.3. Normativa no Brasil 150

    4.3.1. O Programa Nacional de Educao em Direitos Humanos e o Plano Nacional de

    Educao em Direitos Humanos 150

  • 4.3.2. As demais medidas de implementao da educao em direitos humanos e do

    Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos 155

    5. EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS, DEMOCRACIA, DIREITOS HUMANOS

    E DEFENSORIA PBLICA 161

    5.1. Educao em direitos humanos e democracia 161

    5.2. Educao em direitos humanos e direitos humanos 172

    5.3. Educao em direitos humanos e o papel da Defensoria Pblica 181

    6. CONCLUSES 200

    BIBLIOGRAFIA 203

  • 1

    INTRODUO

    A Constituio Federal de 1988 inaugurou um Estado Democrtico de Direito,

    fundado na dignidade da pessoa humana e na cidadania, que garantiu os direitos humanos

    como clusulas ptreas, abriu espao para a absoro dos tratados internacionais de proteo

    aos direitos humanos e se comprometeu com a transformao social para a construo de uma

    sociedade livre, justa e solidria, para a erradicao da pobreza e marginalizao, para a

    reduo das desigualdades sociais e regionais e para a promoo do bem de todos, sem

    preconceitos ou discriminaes.

    No obstante a nova Constituio, a efetiva ratificao de diversos tratados de

    proteo aos direitos humanos, o reconhecimento da jurisdio da Corte Interamericana de

    Direitos Humanos e do Estatuto do Tribunal Penal Internacional e os novos mecanismos de

    participao e controle social das polticas pblicas de defesa e promoo dos direitos

    humanos, a realidade nacional continua repleta de violaes aos direitos humanos e de

    desigualdades e excluses de diversas naturezas.

    Nesse ambiente conflitivo, a educao em direitos humanos cada vez mais vem

    ganhando espao nos cenrios nacional e internacional, sobretudo com a progressiva

    ampliao das prticas e a incorporao por instrumentos normativos, o que tem aumentado a

    conscincia social da injustia, sobretudo pelos grupos sociais mais vulnerveis e excludos, e

    formado uma conjuntura desafiadora, como observa Santos:

    Noutra dimenso, este tambm um mundo em que progressivamente os cidados,

    especialmente as classes populares tm conscincia de que as desigualdades no so

    um dado adquirido, traduzem-se em injustias e, consequentemente, na violao dos

    seus direitos. Longe de se limitarem a chorar na inrcia, as vtimas deste crescente

    processo de diferenciao e excluso cada vez mais reclamam, individual e

    coletivamente, serem ouvidas e organizarem-se para resistir. Esta conscincia de

    direitos, por sua vez, uma conscincia complexa, por um lado compreende tanto o

    direito igualdade quanto o direito diferena (tnica, cultural, de gnero, de

    orientao sexual, entre outras); por outro lado, reivindica o reconhecimento no s de

    direitos individuais, mas tambm de direitos coletivos (dos camponeses sem terra, dos

    povos indgenas, dos afrodescendentes, das comunidades quilombolas etc.). essa

    nova conscincia de direitos e a sua complexidade que torna o atual momento

    sociojurdico to estimulante quanto exigente.1

    Por sua importncia, a educao em direitos humanos tem interessado pesquisadores e

    profissionais de diversas reas e representa verdadeiro exemplo de interdisciplinaridade,

    1 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revoluo democrtica da justia. 3 ed. So Paulo: Cortez, 2011, p.

    17-18.

  • 2

    justamente por combinar duas questes que so consideradas fundamentais para o futuro

    pacfico da humanidade: educao e direitos humanos.

    Maia bem observa a relevncia do estudo da educao em direitos humanos:

    Pensar as prticas pedaggicas, principalmente aquelas voltadas para o

    desenvolvimento de uma cultura dos direitos humanos, impem-se como tarefa

    cardeal aos trabalhadores intelectuais engajados com as angustiantes questes relativas

    ao desrespeito integridade fsica, desigualdade social, e intolerncia em nosso pas.

    Importante contribuir sensibilizao dos cidados, movimentos sociais, partidos, das

    organizaes no governamentais etc. a se sentirem mais concernidos com as questes

    relativas aos direitos humanos, em especial, se projetarmos sua influncia no mundo

    jurdico. Os direitos humanos, por um lado, funcionam como elemento explicativo da

    complexa questo acerca da dimenso e natureza da esfera de dignidade da pessoa

    humana e, por outro, desempenha o papel incontornvel na justificao dos direitos

    fundamentais.2

    Nessa esteira, esta dissertao procura realizar um amplo estudo sobre a educao em

    direitos humanos e suas potencialidades para efetivar a democracia e os direitos humanos,

    sobretudo de grupos vulnerveis, discriminados e excludos, verificando-se o papel da

    Defensoria Pblica nessa seara.

    A dissertao desenvolve-se a partir de uma anlise histrico-crtica da educao, dos

    direitos humanos e da democracia que permite verificar as discriminaes e excluses que

    marcaram esses institutos e os sentidos emancipatrios que adquiriram na contemporaneidade

    e que interessam para a educao em direitos humanos.

    Verifica-se a conformao do Estado Democrtico de Direito na Constituio Federal

    de 1988 e as relaes que nele se estabelecem entre direitos humanos e democracia, bem

    como a posio destacada do direito fundamental educao nesse contexto.

    Os diversos aspectos da educao em direitos humanos so analisados na sequncia,

    juntamente com a extensa normativa existente no mbito da Organizao das Naes Unidas

    (ONU), da Organizao dos Estados Americanos (OEA) e do Brasil.

    Ao final, verificam-se as potencialidades da educao em direitos humanos funcionar

    na efetivao da democracia e dos direitos humanos e a atuao da Defensoria Pblica nesse

    contexto.

    2 MAIA, Antonio Cavalcanti. Acerca dos direitos humanos e o dilogo intercultural. In: BITTAR, C.B. (coord.).

    Educao e metodologia para os direitos humanos. So Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 103.

  • 3

    1. EDUCAO, DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA

    1.1. Educao

    1.1.1. Evoluo histrica3

    A anlise do histrico da educao est sujeita a diversas dificuldades. Alm das

    naturais questes metodolgicas do estudo da histria em geral, a histria da educao possui

    dificuldades adicionais decorrentes da escassez de trabalhos por conta do recente interesse

    (sculo XIX) pela sistematizao especfica do tema, o que tardou ainda mais para acontecer

    no Brasil. 4

    As comunidades tribais, embora no possussem escolas (tambm no possuam

    Estado, classes, escrita, histria ou comrcio), valiam-se da educao difusa para transmitir

    seus mitos, ritos, tradies e atividades dirias, o que costumava ser feito sem castigos, ainda

    que houvessem ritos de passagem que envolvessem tortura e sofrimento. A educao era

    transmitida oralmente, por meio da imitao dos adultos, no havendo pessoa especfica

    responsvel pela educao. Mesmo sem escolas, a educao era integral, abrangendo todo o

    conhecimento, e universal, pois se destinava a todos da comunidade.5

    Com o tempo, as sociedades se tornam mais complexas. Surgem as cidades, a escrita,

    os excedentes de produo e alteraes sociais modificam a homogeneidade (ausncia de

    relaes de dominao) das comunidades tribais. Nascem o Estado, as classes sociais (que

    hierarquizam pela riqueza e poder) e as formas de servido e escravido. Inicia-se a excluso

    social das mulheres da vida pblica e elas passam a ser confinadas ao lar e dependentes dos

    homens.

    nesse contexto, mais situado nas civilizaes da antiguidade oriental, que aparecem

    as escolas, como ambiente destinado educao de alguns privilegiados.6 A educao, que

    3 Neste item, a partir de um esforo interdisciplinar, procura-se realizar uma ampla anlise histrica da educao

    que permita auxiliar na compreenso de todas as questes que envolvem a presente dissertao. 4 Cf. ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Histria da Educao e da Pedagogia: Geral e Brasil. 3 ed. rev. ampl.

    So Paulo: Moderna, p.19-26. 5 Ibid., 34-36. 6 Com o tempo, enquanto nas tribos a organizao social era homognea, indivisa, foram criadas hierarquias

    devido a privilgios de classes, e no trabalho apareceram formas de servido e escravismo; as terras de uso

  • 4

    antes era igualitria e difusa para toda tribo, sofre uma revoluo e passa a ter parte dela

    restrita classe dominante, que frequenta as escolas.7

    A Antiguidade Grega (perodo micnico at o helenstico) trouxe inmeras novidades

    polticas, sociais e culturais que influenciaram decisivamente o desenvolvimento da

    humanidade, inclusive no campo do conhecimento e da educao, que viu o surgimento das

    primeiras teorias educacionais.

    Aranha explica que, no perodo arcaico, com o ressurgimento da escrita, a inveno da

    moeda e da filosofia, a utilizao das leis escritas pelos legisladores e a formao das cidades-

    estados, inicia-se a lenta passagem da predominncia do mundo mtico para a reflexo mais

    racionalizada e a discusso8, com o nascimento de uma nova viso de mundo e do indivduo,

    o cidado da plis, que desenvolve sua autonomia com o uso da palavra na gora (praa

    pblica)9.

    Os gregos revolucionam o pensamento com a criao do conhecimento organizado,

    sistemtico, racional e filosfico10. As repercusses dessa nova cultura e sociedade

    comum passaram a ser administradas pelo Estado, instituio criada para legitimar o novo regime de

    propriedade; a mulher, que na tribo desempenhava destacado papel social, ficou restrita ao lar, submetida a

    rigoroso controle de fidelidade, a fim de garantir a herana apenas para os filhos legtimos.

    Finalmente o saber, antes aberto a todos, tornou-se patrimnio e privilgio da classe dominante. Nesse momento

    surgiu a necessidade da escola, para que apenas alguns iniciados tivessem acesso ao conhecimento. Se

    analisarmos atentamente a histria da educao, veremos como a escola, ao elitizar o saber, tem desempenhado

    um papel de excluso da maioria. (Ibid., p. 36). 7 Ibid., p. 45. 8 Ibid., p. 58-59. 9 A plis se constituiu com a autonomia da palavra. No mais a palavra mgica dos mitos, concedida pelos

    deuses, mas a palavra humana do conflito, da argumentao. A expresso da individualidade engendrou a

    poltica, libertando o indivduo dos desgnios divinos, para que ele prprio pudesse tecer seu destino na praa

    pblica. A instaurao dessa ordem humana deu origem ao cidado da plis. (Ibid., p. 60). 10 Para DOREN, a descoberta revolucionria de como aprender de forma sistemtica, o que equivale a dizer a

    inveno do conhecimento organizado. Antes de Tales, o conhecimento, cuja posse garantia o sucesso e

    concedia a felicidade, por oposio misria, fora monopolizado pela classe dominante, isto , pelos reis e

    sacerdotes. Tales e seus seguidores transformaram o conhecimento, que deixou de ser um mistrio e passou a

    ser algo pblico. Quem soubesse ler poderia partilhar os seus benefcios. Quem entendesse os seus princpios

    poderia contribuir para benefcio de todos, no apenas do seu.

    (...)

    Em resumo, de repente surgiu algo novo no mundo, uma coisa que os gregos chamaram episteme, e que

    chamamos cincia. Conhecimento organizado. Conhecimento pblico, baseado em princpios que poderiam ser

    revistos e testados, e questionados, periodicamente, por todos.

    Houve consequncias enormes. Primeiro, espalhou-se a noo de que havia apenas uma verdade, e no muitas

    verdades, sobre todas as coisas.

    (...)

    Em segundo lugar, surgiu a noo de uma relao fundamental entre aquele que conhecia e a coisa conhecida, o

    elo, como poderia ser chamado, entre o mundo exterior e a mente interior.

    (...)

    Em terceiro lugar, implementou-se um novo conceito de educao. Os pais sempre tinham ensinado aos filhos as

    regras de sua arte, e as mes ensinavam sua arte s filhas. O Estado exigia que todos os sditos jovens

    aprendessem regras para a vida em sociedade. O castigo para quem no aprendia as regras era o exlio ou a

  • 5

    influenciaram a educao para a criao de uma concepo de educao integral, que

    envolvesse corpo e esprito, baseada em um ideal de formao (paideia)11.

    As escolas aparecem no final do perodo arcaico e se estabelecem no perodo clssico,

    mas, como observa Aranha, mesmo que essa ampliao da oferta escolar representasse uma

    democratizao da cultura, a educao ainda permanecia elitizada, atendendo

    principalmente os jovens de famlias tradicionais da antiga nobreza ou pertencentes a famlias

    de comerciantes enriquecidos12, sendo certo que a educao ateniense confinava as mulheres

    ao gineceu, onde aprendiam afazeres domsticos.

    No perodo helenstico, a despeito da decadncia das cidades-estados, a cultura

    helnica prevaleceu. A paideia tornou-se enciclopdia (educao geral para formao da

    pessoa culta, houve maior desenvolvimento do ensino secundrio com a retrica (alm das

    demais disciplinas gramtica, retrica, aritmtica, msica, geometria e astronomia

    formando as sete artes liberais) e as escolas filosficas se espalharam, perdurando at o

    perodo de dominao romana.13

    A filosofia de Scrates (469-399 a.C.) trouxe importantes consequncias para a

    educao que se sentem at os dias atuais e que se relacionam com a educao em direitos

    humanos, tanto que as ideias de Scrates foram consideradas subversivas e seus inimigos

    conseguiram conden-lo morte.

    Segundo Aranha, as principais consequncias da filosofia socrtica so: o

    conhecimento tem por fim tornar possvel a vida moral; o processo para adquirir o saber

    dialgico; nenhum conhecimento pode ser dado dogmaticamente, mas como condio para

    desenvolver a capacidade de pensar; toda educao essencialmente ativa e, por ser

    autoeducao, leva ao conhecimento de si mesmo; a anlise radical do contedo das

    discusses, retirado do cotidiano, provoca o questionamento do modo de vida de cada um e,

    em ltima instncia, da prpria cidade14.

    morte. Mas no havia um tronco de conhecimento organizado que todos pudessem aprender, ou que todos os

    jovens devessem aprender. De repente, surgiu outra coisa novam a que os gregos chamaram de paideia: um

    currculo que todos (com as excees habituais: mulheres, escravos, estrangeiros etc.) deviam estudar para que

    se tornassem bons homens, bem como bons cidados.

    Finalmente, havia a noo da prpria cincia e de sua jovem rainha, a Matemtica. (DOREN, Charles Van.

    Uma breve histria do conhecimento. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012, p. 80-81). 11 Op. cit., p. 61-62. 12 Ibid., p. 62 13 Ibid., P. 67. 14 ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Histria da Educao e da Pedagogia: Geral e Brasil. 3 ed. rev. ampl. So

    Paulo: Moderna, p. 70.

  • 6

    Outras consequncias importantes podem ser extradas da filosofia de Plato (248-347

    a.C.). Para ele, o Estado deve ser responsvel pela educao e todos, tanto homens quanto

    mulheres, devem estudar at os vinte anos de idade. Somente devem prosseguir nos estudos

    os que tiverem maior aptido, conforme o mrito e no a riqueza, at formar uma aristocracia

    de intelectuais responsvel pelo governo (sofocracia ao invs de democracia). 15 Trata-se de

    ideia que se faz ainda muito presente, de que o cidado comum no tem condies de

    conhecer sobre cincia poltica.16

    Plato ainda valoriza a educao intelectual (estudo das cincias, com destaque para

    matemtica e dialtica) como forma de elevao do mundo sensvel ao mundo das ideias.

    Desenvolve a ideia de que aprender lembrar, o que significa que educar no levar o

    conhecimento de fora para dentro, mas despertar no indivduo o que ele j sabe,

    proporcionando ao corpo e alma a realizao do bem e da beleza que eles possuem e no

    tiveram ocasio de manifestar17.

    Grandes legados para a educao tambm foram deixados por Aristteles (384-332

    a.C.). A partir da teoria do movimento e das causas, toda educao deve levar em conta o

    fato de que o ser humano se encontra em constante devir. A educao tem como finalidade

    ajud-lo a alcanar a plenitude e a realizao do seu ser, a atualizar as foras que tem em

    potncia18. A nfase na ao da vontade, exercitada pela repetio, traz para a educao a

    ideia de que a criana se educa repetindo os atos dos adultos19.

    Ranieri explica que ...antes de meados do sculo V a.C., a educao dos cidados

    gregos foi dominada pela vida social e poltica; e mesmo aps a introduo, pelos sofistas, de

    prticas educacionais mais voltadas para o indivduo, a partir da segunda metade do sculo V

    a.C., manteve-se o preparo para a vida coletiva. o que se nota em A repblica de Plato

    (427-347 a.C.) e na Poltica de Aristteles (469-399 a.C.)20.

    15 Ibid., p. 72. 16 Iscrates (436-338 a.C.), adepto da retrica, instrumento importante para a democracia grega, critica Plato,

    considerando-o muito intelectualista e seus ensinamentos restritos demais a um pblico elitista. (Ibid., p. 73). 17 Ibid., p. 72. 18 Ibid., p. 75. 19 Ibid., p. 75. 20 RANIERI, Nina Beatriz Stocco. O Estado Democrtico de Direito e o sentido da exigncia de preparo da

    pessoa para o exerccio da cidadania, pela via da educao, 2009. Tese (Live-Docncia em Direito) Universidade

    de So Paulo, p. 211-212.

    Apoiada nas lies de Monroe, Ranieri explica: A idia em torno da qual se desenvolveram as consideraes

    educacionais de Plato em A repblica simples: cada indivduo, ao realizar o seu prprio bem, realiza o maior

    bem possvel para a sociedade. Para realizar o seu prprio bem, cada um deve se dedicar a fazer aquilo que esteja

    mais de acordo com suas aptides; nessa linha de postulao, a virtude cvica deriva do conhecimento. No por

  • 7

    As teorias da educao desenvolvidas pelos filsofos clssicos, baseadas na concepo

    de natureza humana racional, formaram uma tendncia essencialista da pedagogia que

    provocou grandes influncias na cultura ocidental, especialmente a partir da Idade Moderna.21

    No perodo helenstico, influenciados pela insegurana das guerras, pela conquista

    macednica, pela perda da autonomia das cidades-estados, pela expanso do Imprio

    Alexandrino e pelo contato com o pensamento oriental, nascem novas filosofias, como o

    estoicismo22 e o epicurismo23, que trazem uma nova concepo de educao, menos focada na

    educao fsica, na metafsica e na poltica e mais interessada nas questes ticas e subjetivas

    de controle dos sentidos e paixes.24

    Ranieri explica que, em meados do sculo III a.C., as estreitas relaes entre a

    educao e a sociedade grega, assim como as obrigaes do cidado educado para com seus

    concidados, incentivadas pelo Estado e realizadas pelas famlias, foram abandonadas25,

    considerando que na medida em que o individualismo se exacerbou, o cidado se isolou e se

    outras razes Plato preconiza idntica educao para homens e mulheres, independentemente de qualquer outro

    fator. Em Aristteles, diversamente, a virtude cvica deriva do uso da razo. (Ibid., p. 212).

    Ranieri complementa que: A paidia visou moldar, por via da aquisio do conhecimento ou da prtica do bem,

    o cidado que melhor servisse plis, Mas bem poucos podiam desenvolver, intelectualmente, o conhecimento

    ou o bem, razo pela qual as propostas de Plato e Aristteles apresentam um marcante vis aristocrtico, o que

    no lhes retira o mrito da concepo dual da educao, como meio de favorecer o desenvolvimento integral da

    personalidade humana e de habilitar o homem livre a fazer uso de sua liberdade, finalidades que se tornaram

    universais e atemporais. Essa concepo ser retomada parcialmente na Renascena, e de forma mais completa

    nos sculos XIX e XX, como faz, por exemplo, em outro contexto e outras circunstncias, o art. 205 da

    Constituio Brasileira de 1988, ao proclamar as finalidades da educao. (Ibid., p.212). 21 ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Op. cit., p.77. 22 Segundo DOREN, Zeno (335-263 a.C.), o Estoico, fundou uma escola em Atenas na primeira metade do

    sculo III a.C., conhecida por Stoa Poikile ou Colunata Pintada, e ensinava que a felicidade consistia na

    conformao da vontade razo divina, que governava o universo. Um homem ser feliz se aceitar totalmente o

    que , e se no desejar o que no pode ser. (DOREN, Charles Van. Op. cit., p. 95).

    ARANHA explica que, para o filsofo, ao buscar a felicidade o ser humano deve fugir do prazer, que em ltima

    anlise apenas proporciona dor e sofrimento. O exerccio da virtude consiste na autossuficincia, alcanada

    quando o indivduo conseguir afastar-se dos bens materiais e dominar as paixes que trazem intranquilidade

    alma. O domnio racional leva aceitao do destino e resignao, por isso o ideal do sbio a ataraxia

    (impertutbabilidade), a apatia (ausncia de paixo) e a aponia (ausncia de dor). (Op. cit.., p. 76) 23 DOREN explica que Epicuro, grego, que viveu de 341 a 270 a.C., fundou num jardim em Atenas uma escola

    informal de nome O Jardim, que aceitou mulheres e pelo menos um escravo. Nesta escola, ensinava que

    felicidade era uma vida sem dor, preocupaes e ansiedade, uma ausncia de vida poltica, pois era difcil ser

    feliz na vida pblica. Defendia uma vida simples no jardim. (Op. cit., p. 94-95)

    ARANHA esclarece que, para Epicuro, o ideal do sbio atingir igualmente a ataraxia, embora diferentemente

    dos esticos. Epicuro um hedonista (hedon, prazer) e, por isso, ao considerar a felicidade como busca do

    prazer, no nega as afeces humanas, nem prope a insensibilidade. O indivduo deve evitar tudo o que se ope

    felicidade (temor, dor, sofrimento) e aproximar-se de tudo o que a proporciona, como a satisfao das

    necessidades fsicas e espirituais, entre as quais distingue especialmente a amizade. (Ibid., p. 76) 24 ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Op. cit., p. 75-76. 25RANIERI, Nina Beatriz Stocco. Op. cit., p. 212.

  • 8

    distanciou da comunidade. Foi com esse novo carter que a paidia grega se espalhou pelo

    Ocidente, aps a conquista romana26.

    No perodo da realeza e incio da Repblica Romana, a educao heroico-patrcia era

    destinada aos jovens aristocrticos patrcios (proprietrios rurais e guerreiros) com a

    finalidade de perpetuar os valores da nobreza, sendo certo que a educao se dividia para as

    meninas e meninos: as primeiras, aprendiam os servios domsticos; os segundos, eram

    educados pelo pai, visitavam festas, acontecimentos importantes, ouviam histrias dos heris,

    decoravam a Lei das Doze Tbuas, aprendiam a cultivar a terra, a ler, escrever, contar,

    manejar armas, cavalgar e, a partir dos quinze anos, acompanhavam o pai no foro, praa onde

    se fazia comrcio e se tratava de assuntos pblicos e privados, para aprender sobre civismo e,

    com dezesseis anos, eram encaminhados para a funo militar ou poltica.27

    As modificaes sociais decorrentes do enriquecimento de plebeus e do processo

    expansionista trazem modificaes para a educao, que se torna mais cosmopolita. Os

    romanos passam a incorporar os povos vencidos conferindo-lhes cidadania em troca de

    impostos e tambm incorporam o grego como idioma, assim como vrios padres culturais

    gregos, fundindo a cultura romana e a helenstica. A ideia de cultura universalizada

    humanitas passa a ser desenvolvida, buscando aquilo que caracteriza o ser humano, em

    todos os tempos e lugares28 e ultrapassa a formao do sbio, estendendo-se formao do

    homem virtuoso, como ser moral, poltico e literrio29.

    As escolas particulares do sculo IV a.C., que ensinavam crianas de 7 a 12 anos a ler,

    escrever e contar, de cor e sob ameaas de castigo, so substitudas, no sculo III e II a. C.,

    por influncia dos povos helnicos, por escolas dos gramticos, que seguiam a ideia de

    enciclopdia (educao geral), trazendo o estudo da lngua grega, da literatura clssica grega e

    de geografia, aritmtica, geometria e astronomia.30

    Com o aprofundamento da retrica, surge um terceiro grau de educao escola do

    retor (professor de retrica) no sculo I a.C., na qual os jovens da elite se preparavam para a

    26 Ibid., p. 212. 27 ARANHA explica que a educao pouco se voltava para o preparo intelectual e mais para a formao moral,

    baseada na vivncia cotidiana e na imitao de modelos representados no s pelo pai, mas tambm pelos

    antepassados. (Op. cit., p. 89-90). 28 Ibid., p. 89. 29 Ibid., 89. 30 Ibid., p. 90.

  • 9

    vida pblica, assembleias e tribunais.31 Ccero (106 a.C. a 43 a.C.), importante pensador

    romano, contemporneo a este perodo32, assim como Lucrcio (95 a.C. a 52 ou 51 a.C.)33.

    A partir da implantao do Imprio por Otvio (27 a.C. a 476 d.C.), a interveno do

    Estado na educao foi se ampliando paulatinamente, desde a fiscalizao at a subveno,

    controle e total responsabilidade. Medidas relativas aos professores foram adotadas, como

    direito de cidadania, liberao dos impostos, pagamentos e nomeaes. O ensino superior foi

    desenvolvido, com cursos de filosofia, retrica, medicina, matemtica, mecnica e direito e

    diversas bibliotecas, escolas e museus foram criados.34

    O ideal de humanitas se degenerou ao longo do tempo, restringindo-se ao estudo das

    letras e descuidando-se das cincias35. Como ensina Aranha, os romanos adotaram uma

    postura mais pragmtica, voltada para o cotidiano, para a ao poltica e no para a

    contemplao e teorizao do mundo. Da o prevalecer da retrica sobre a filosofia.36 Para

    DOREN, essa orientao mais prtica da educao romana foi importante para o sucesso

    imperialista, transformando a educao de liberal para vocacional37.

    31 Segundo ARANHA, Como se v, predominava a educao aristocrtica, no s por ser privilgio da elite,

    mas por estar interessada nas atividades intelectuais, que excluam o trabalho manual e por isso eram

    consideradas mais dignas. (Ibid., p. 90). 32 ARANHA explica que Ccero foi um dos maiores representantes da humanitas romana, pois defendia que a

    educao integral do orador requer cultura geral, formao jurdica, aprendizagem da argumentao filosfica,

    bem como o desenvolvimento de habilidades literrias e at teatrais, igualmente importantes para o exerccio da

    persuaso. (Ibid., p. 93). 33 DOREN explica que Lucrcio combinava o estoicismo e o epicurismo, e desejava trazer a filosofia ao nvel

    humano. Tinha noo de que muitas vezes a filosofia grega parecia muito espiritual e inacessvel aos romanos.

    Ele queria que as pessoas comuns, tal como ele, segundo afirmava, compreendessem e apreciassem o

    pensamento filosfico.

    Nem mesmo este conceito era original. Scrates tambm fora aclamado como o pensador que trouxera a filosofia

    para o mercado, onde as pessoas comuns poderiam discutir ideias. Mesmo assim, Scrates manteve-se sempre

    uma figura relativamente austera, que exigia dos seguidores mais do que estes conseguiam lhe dar. Por mais que

    gostemos de Scrates enquanto homem, nunca conseguiremos deixar de sentir que no somos capazes de viver

    tal como ele disse que o deveramos fazer.

    Mesmo tendo herdado a simplicidade divina de Scrates em sua interpretao do epicurismo e do estoicismo,

    Lucrcio no cometeu o erro de humilhar seus seguidores e leitores. Em vez disso, tentou apresentar uma

    imagem agradvel do universo, tal como Epicuro o concebera, cujas atraes convenceriam mais pessoas do que

    qualquer argumento. (Op. cit., p. 95-96).

    Nota-se que a preocupao de Lucrcio com a traduo da filosofia ao povo, s pessoas comuns, o que, segundo

    DOREN, tambm j havia sido iniciado por Scrates, mas Lucrcio a desenvolve com mais humanidade. 34 Cf. ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Op. cit., p. 90-92. 35 Ibid., p. 89. 36 Ibid., p. 92. 37 DOREN explica que os romanos sabiam o que os gregos sabiam e mais algumas coisas que os fizeram

    vencedores nas guerras contra eles. Sustenta que os gregos no eram muito prticos, e que, pelo contrrio, os

    romanos eram sempre prticos. Essa caracterstica manifestava-se de muitas formas. Diluram as grandes

    filosofias gregas, tornando-as muito mais agradveis para as massas. Reduziram a paideia, o nobre e complexo

    sistema grego de educao, desenvolvido por Aristteles e outros, a um curso de Retrica e Oratria, pois saber

    fazer discursos convincentes era a chave do sucesso nos negcios e na poltica. Em termos modernos, esta viso

    teve como resultado a transformao da educao de liberal para vocacional. Os romanos tambm converteram o

    conceito de fama imortal a honra mortal, sendo habitual venerar os imperadores como deuses vivos,

  • 10

    Percebe-se, em sntese, que a educao romana solidificou a cultura helenstica no

    mediterrneo, desvalorizou o trabalho manual (realizado pelos escravos) e continuou a

    privilegiar a formao intelectual, destinada elite dominante, com tendncia essencialista

    (educao tem a funo de realizar o que o homem deve ser).38

    A Idade Mdia envolve um perodo muito longo (476 a 1453) que, embora tenha sido

    em grande parte obscuro, tambm contou com momentos de produo cultural variada, de

    difcil generalizao, por envolver elementos greco-romanos, germnicos, cristos, bizantinos,

    islmicos e orientais.39

    O Imprio Bizantino manteve intensa atividade cultural durante o perodo medieval e,

    embora houvesse nfase na vida religiosa, a meta da educao continuava a mesma da

    Antiguidade, ou seja, a formao humanista e a preparao de funcionrios capacitados para a

    administrao do Estado.40

    A civilizao islmica, produto da unificao de diversas tribos da Pennsula Arbica,

    com base na religio fundada por Maom no sculo VII, avanou pelo Oriente Mdio, norte

    da frica e Pennsula Ibrica e assimilou a cultura clssica e dos povos vencidos, tornando-se

    muito rica. Diferentemente dos cristos, os islmicos no tinham restries quanto pesquisa

    e experimentao, o que os fez ter destaque em reas da matemtica, medicina, geografia e

    cartografia.41

    J o Ocidente ingressou em perodo de obscuridade. Inicialmente, surgiram as escolas

    monacais (nos mosteiros), onde se aprendia latim e humanidades, alm de filosofia e teologia.

    Os mosteiros passaram a monopolizar a cincia, concentrar as obras, traduzi-las para o latim,

    adapt-las e reinterpret-las de acordo com o cristianismo e multiplicar os textos clssicos por

    meio dos monges copistas,42 controlando as leituras proibidas e as permitidas, colocando a

    razo como instrumento da f (a filosofia era serva da teologia), por meio das filosofias crists

    aprofundando ainda mais a distino entre a honra e a fama. Por fim, o triunfo de Augusto transformou a

    gloriosa, mas em ltima anlise impraticvel, Repblica num Imprio totalitrio infeliz e perigoso, mas eficiente.

    Subjacente a todas estas mudanas estava uma crena muito importante adotada pelos romanos, mas no pelos

    gregos: uma ideia grandiosa que no funciona menos vlida do que uma mais modesta que funcione. Os

    romanos edificaram sobre este princpio uma cidade-imprio que resistiu mil anos. (DOREN, Charles Van. Op.

    cit., p. 90). 38 Cf. ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Op. cit., p. 94-95. 39 Ibid., p. 101. 40 Ibid., p. 104. Destaca-se a Universidade de Constantinopla, que, de 425 a 1453, desenvolveu importantes

    estudos de filosofia e cincia e preservou a sistematizao do Direito Romano realizada pelo Imperador

    Justiniano no sculo VI por meio do Corpus Juris Civilis. 41 Ibid., p. 105. Diversas escolas foram criadas no sculo X para ensinar leitura e escrita, alm do

    desenvolvimento da educao moral pelo aprendizado do Alcoro de cor. 42 Ibid., p. 105-106.

  • 11

    Patrstica (sculo II ao V, baseada principalmente nas ideias de Santo Agostinho) e

    Escolstica (sculo IX ao XIV, fundada, principalmente, nas teorias de Toms de Aquino)43.

    No final do sculo VIII e incio do sculo IX, inicia-se o renascimento carolngio.

    Carlos Magno trouxe para a corte diversos intelectuais e surgiu a escola palatina, que

    reestruturou e fundou escolas monacais, escolas catedrais e escolas paroquiais, as quais

    tinham como contedo as sete artes liberais e que, na Idade Mdia, passaram a constituir o

    trivium, que abarcava gramtica (inclua letras e literatura), retrica (inclua histria) e

    dialtica, e o quadrivium, que abarcava geometria (podia incluir geografia), aritmtica,

    astronomia e msica.44

    Com as Cruzadas e a liberao das navegaes, reinicia-se o comrcio e as cidades

    renascem, surgindo a nova classe da burguesia. A sociedade se divide nos polos da nobreza

    (muitos tinham a educao voltada para a formao militar e cavalaria), do clero, e da

    burguesia e esta ltima classe passa a fundar, no sculo XII, as escolas seculares, no-

    religiosas, para atender s suas necessidades prticas, substituindo o trivium e o quadrivium

    por histria, geografia e cincias naturais. Contudo, a partir do sculo XIII, uma diviso na

    burguesia modifica a educao: os burgueses mais ricos, bancrios, aproximam-se da nobreza

    e passam a se dedicar cultura desinteressada, enquanto os pequenos comerciantes e

    artesos continuam a se dedicar educao profissional.45

    As universidades, novo modelo de educao superior, surgem e crescem a partir do

    sculo X, XI e XII, para ampliar os estudos de filosofia, teologia, leis e medicina, a fim de

    atender s solicitaes de uma sociedade cada vez mais complexa46, e passam a se basear na

    Escolstica, sobretudo nas ideias de Toms de Aquino, mas entram em decadncia no sculo

    XIV, diante da resistncia da Inquisio e asfixiadas pelo dogmatismo decorrente da

    ausncia de debate crtico47.

    A diviso esttica de classes da Idade Mdia exclua os servos da gleba da educao

    intelectual, destinando a eles apenas a formao crist, com exceo dos os servos libertos,

    que, na cidade, podiam se dedicar educao profissional nas corporaes de ofcios.48

    43 Ibid., p. 112-117. 44 Ibid., p. 106-107. 45 Ibid., p. 107-108. 46 Ibid., p. 110. 47 Ibid., p. 111. 48 Ibid., p. 108-112.

  • 12

    Ademais, durante a Idade Mdia, as mulheres no tinham acesso educao formal49 e os

    tericos que estimulavam a educao o faziam considerando a necessidade de formao para

    os fins do casamento, maternidade e vida domstica.

    Em sntese, a educao ocidental durante a Idade Mdia foi desenvolvida com o

    objetivo de formao crist, baseada em ideais ascticos (distanciamento dos prazeres) e

    tcnicas rigorosas e formais, as quais influenciaram durante sculos o trabalho escolar.50

    Com o desenvolvimento da burguesia, nascimento das monarquias absolutistas

    (associao entre a burguesia e os reis), ampliao das navegaes e novas descobertas

    cientficas, surge o Renascimento (sculos XV e XVI), que retoma a cultura greco-romana e

    prope o humanismo (antropocentrismo) em oposio teologia medieval, separando o saber

    da religio, buscando os prazeres mundanos, a individualidade, a confiana na razo e o

    esprito de liberdade e crtica.51

    O interesse pela educao ganha destaque e os colgios se proliferam, especialmente

    para receber os filhos da pequena nobreza e da burguesia, mantendo-se os segmentos

    populares restritos aprendizagem de ofcios. Inicia-se a preocupao com a separao das

    crianas segundo graus de aprendizagem e uma disciplina severa, com castigos corporais,

    aplicada, tendo por meta a formao intelectual (trivium e quadrivium e latim) e tambm

    moral.52

    Aos poucos, escolas leigas passaram a surgir, mas, em contrapartida, tambm surgiram

    escolas protestantes53 e catlicas que, em reao Reforma, se expandiram pelo mundo por

    49 Ibid., p 111. As mulheres pobres tinham que trabalhar com o marido; as nobres aprendiam msica, religio,

    rudimentos das artes liberais e trabalhos manuais femininos nos castelos; as burguesas apenas passaram a ter

    acesso com as escolas seculares. Apenas as que estudavam nos mosteiros tinham maior acesso educao

    intelectual (leitura, escrita, arte, latim, grego, filosofia e teologia). 50 Ibid., p. 117-118. 51 Ibid., p. 123-125. ARANHA ensina que, durante o Renascimento, no houve o desenvolvimento coerente e

    organizado de uma filosofia da educao, com exceo Juan Luis Vives (1492-1540), humanista espanhol que

    lecionou na Universidade de Oxford, que escreveu sobre a educao da mulher (embora reconhecesse sua

    fundamental presena no lar), teve como principal obra Tratado de ensino e apresentou preocupaes com o

    corpo e com a psicologia no ensino, com a valorizao dos mtodos indutivos e experimentais, com a observao

    dos fatos e ao como forma de aprendizagem e com o estudo da lngua materna.

    Tambm aponta que Erasmo de Rotterdam (1467-1536) criticava a educao excessivamente severa, os castigos

    corporais e defendia o aprendizado com diverso, defesa que tambm era feita por Franois Rabelais (1494-

    1553), o qual ainda criticava o ensino livresco, assim como Michel de Montaigne (1533-1592) (Ibid., p. 132-

    134) 52 Ibid., p. 125-126. 53 Lutero (1483-1546) defendia a escola primria para todos (universal), como responsabilidade do Estado

    (pblica), e criticava os castigos. Ibid., p. 126-127.

  • 13

    meio de diversas ordens religiosas, entre elas a Companhia de Jesus, com o objetivo de

    propagar a f e conquistar os jovens.54

    Nos colgios jesutas, a educao era baseada na formao clssica e humanista, mas

    adequada aos ideais cristos, com vis essencialista, disciplina rgida e didtica baseada em

    repetio e memorizao, alm de estmulo e competio entre classes e alunos. Havia menor

    nfase matemtica, histria e geografia, ao desenvolvimento do esprito crtico e as novas

    descobertas cientficas (Descartes, Galileu, Kepler, Newton) eram desconsideradas, sendo

    certo que o foco da catequese era transformar o no-cristo em cristo.55

    Assim, o Renascimento foi marcado por contradies tpicas de um perodo de

    transio, em que a burguesia buscava a formao para os negcios, para o conhecimento

    clssico e para os luxos e prazeres, enquanto a escolas religiosas se expandiam pela Europa e

    mundo colonizado. Essa sociedade, embora rejeitasse a autoridade dogmtica da cultura

    eclesistica medieval, manteve-se ainda fortemente hierarquizada; exclua os propsitos

    educacionais da grande massa popular, com exceo dos reformadores protestantes, que

    agiam motivados tambm pela divulgao religiosa56.

    No incio da colonizao brasileira (a partir do sculo XVI), que no pode ser

    compreendida sem considerar o contexto europeu e de Portugal, a educao teve como

    finalidade difundir a religio e manter a unidade da colnia, que servia para extrao de cana-

    de-acar para exportao, com destaque para a atuao dos jesutas.57

    Referindo-se atuao da catequese dos jesutas sobre os ndios, Aranha explica que

    convictos de que o cristianismo representa uma vocao humana universal que implica

    integrao e unidade, lanaram-se com empenho na incorporao territorial e espiritual dessas

    etnias, na esperana de acentuar as semelhanas todos eram seres humanos e apagar as

    diferenas58.

    A educao no territrio nacional surge com a tentativa dos jesutas de europeizar e

    cristianizar os nativos59, modificando os seus costumes e modo de vida, a partir do

    54 Ibid., p. 126. 55 Ibid., 128-131. 56 Ibid., p. 135. 57 Ibid., p. 139. 58Ibid., p. 141 Nota-se que a educao partia de uma concepo de homogeinizao, de superioridade da cultura

    europeia em relao indgena. Como alerta ARANHA, s na contemporaneidade os estudos de etnologia nos

    alertaram para o respeito s diferenas que existem entre os povos e culturas. A partir desse conhecimento,

    mudou a disposio para aceit-los sem consider-los inferiores: hoje em dia a educao deve atender s

    demandas pluritnicas e manter-se multicultural. (Ibid., p. 131). 59 Ibid., p. 142.

  • 14

    pressuposto de que os ndios viviam a infncia da humanidade60 e deveriam ser corrigidos

    pelos europeus, inclusive com sanes pblicas violentas.

    Embora as primeiras escolas reunissem filhos de ndios e colonos, logo houve uma

    separao, pois a educao dos primeiros visava cristianizar e pacificar para o trabalho,

    enquanto a dos segundos podia se ampliar para letras humanas, filosofia e cincia e teologia e

    cincias sagradas61.

    No sculo XVII, fortalecem-se os Estados Absolutistas, que controlam a economia

    mercantilista, e fundamentados em teorias como a do contrato social de Thomas Hobbes

    (1588-1679). O fortalecimento da burguesia gera a insurgncia contra o excessivo controle

    estatal e a Revoluo Gloriosa (1688) instaura a Monarquia Constitucional na Inglaterra,

    prevalecendo as ideias do liberalismo econmico e poltico de John Locke (1632-1704).62

    Aranha observa que embora a teoria liberal se apresentasse como democrtica,

    inevitvel encontrar na sua raiz o elitismo que a distingue como expresso dos interesses da

    burguesia. Na vida em sociedade, somente aqueles que tm propriedades, no sentido restrito

    de fortuna, podem participar de fato da poltica, por serem os que teriam reais condies de

    exercer a cidadania. Essa mesma perspectiva elitista define a reflexo sobre a educao.63

    No plano filosfico, Descartes, Bacon, Locke, Hume e Espinosa passam a se dedicar

    ao estudo do mtodo e, no mbito cientfico, surge um novo paradigma com a valorizao da

    tcnica e do mtodo experimental (Galileu 1594-1642), a partir do qual o homem no mais

    busca o saber apenas pelo saber, mas para transformar e controlar a natureza.64

    Iniciativas de educao elementar pblica para todos foram realizadas no sculo XVII

    na Alemanha e na Frana, como forma de propagar a f religiosa. O progresso cientfico e a

    decadncia das universidades (com exceo da Alemanha) tambm fez aumentar a procurar

    pelas academias.65

    A filosofia moderna racionalista (Descartes) e empirista (Bacon e Locke) fornece

    bases para o nascimento da pedagogia realista, que busca novos mtodos para tornar a

    educao mais agradvel e ao mesmo tempo mais eficaz na vida prtica66, privilegiando a

    60 Ibid., p. 142. 61 Ibid., p. 142-143. 62 Ibid., p. 150-151. 63 Ibid., p..151. 64 Ibid., p. 151-152. 65 Ibid., p. 153-154. 66 Ibid., p. 155.

  • 15

    experincia e os problemas da poca, a lngua materna ao invs do latim e as cincias da

    natureza.67

    Locke tambm apresenta uma teoria pedaggica (Pensamentos sobre educao) em

    que prope o desenvolvimento fsico, moral e intelectual, para a formao do homem-gentil,

    com nfase na formao do carter. Contudo, defende que a educao da elite que ir

    governar deve ser realizada em casa, para que a criana seja bem acompanhada e vigiada, e

    no na escola, onde estuda o povo em geral68, tendncia de educao dualista que se destaca

    no sculo seguinte.69

    Joo Ams Comnio (1592-1670), educador de importncia destacada no sculo XVII,

    desenvolve sua teoria no sentido de obter uma forma rpida e segura de aprender. Defende a

    importncia da ao no aprendizado e o ensino de conhecimentos universais (pansofia), que

    propicie o desenvolvimento crtico, intelectual, moral e espiritual. Prope, ainda, a

    democratizao do ensino, garantindo acesso a todos (homens e mulheres, ricos e pobres).70

    Fnelon (1651-1715), bispo francs, preocupa-se com a educao feminina, embora

    no visse como prioritria e no reconhecesse a mulher como ser autnomo. Recomenda uma

    educao mais alegre para as mulheres, com instruo geral sobre gramtica, poesia, histria e

    leitura de obras clssicas e religiosas, restringindo a continuidade dos estudos apenas para

    uma minoria com destaque e reservando a educao religiosa e moral para a maioria, como

    forma de enriquecer a vida domstica de mes e esposas. 71

    De outro lado, no sculo XVII, enquanto na Europa se estabelecia a contradio entre

    o ideal da pedagogia realista e a educao conservadora, no Brasil a atuao da Igreja

    permaneceu muito mais forte e duradoura72, uniformizando o pensamento brasileiro, com o

    desenvolvimento das misses entre os ndios, a educao conservadora para a elite, a excluso

    das mulheres, negros e da cultura popular e a desqualificao dos trabalhos manuais.73

    No sculo XVIII (Sculo das Luzes), a hegemonia da burguesia, confirmada nas

    Independncia dos Estados Unidos (1776) e na Revoluo Francesa (1789), e as ideias

    67 Ibid., p.155. 68 Ibid., p. 156-157. 69 Ibid., p.156. 70 Ibid., p.157. 71 Em 1686, a esposa de Lus XIV, Madame de Maintenon, funda o Colgio Saint-Cyr, opo secularizada para

    meninas de 7 a 12 anos, que poderiam permanecer at os vinte, com rigorosa educao moral e negligente

    educao intelectual. (Ibid., p. 158). Nota-se que, mesmo quando h preocupao com a educao das mulheres,

    ela voltada para reforar a sua posio social como 72 Ibid., 166. 73 Ibid., 162-166.

  • 16

    iluministas impactaram fortemente a educao, que passou a sofrer tendncias liberais e

    laicas, com a busca de novos formas de aprendizagem e autonomia do educando, que,

    segundo Aranha, sugerem algumas ideias: educao ao encargo do Estado; obrigatoriedade e

    gratuidade do ensino elementar; nacionalismo, isto , recusa do universalismo jesustico;

    nfase nas lnguas vernculas, em detrimento do latim; orientao prtica, voltada para as

    cincias, tcnicas e ofcios, no mais privilegiando o estudo exclusivamente humanstico. 74

    A despeito das novas ideias, a situao da educao na Europa era crtica, o que

    dificultava a efetivao na prtica75. Ademais, o dualismo escolar, que acabava por gerar uma

    escola para o povo e outra para a burguesia, continuava em vigor e era aceito com base na

    ideia liberal de que o talento e a capacidade no eram igualmente repartidos entre todos.76

    Nessa poca, merecem destaques as contribuies dos enciclopedistas, embora alguns

    tivessem tendncias aristocrticas, do naturalismo de Rousseau (1712-1778) e da pedagogia

    idealista de Kant (1724-1804).

    Rousseau provocou uma revoluo na pedagogia ao centralizar os interesses

    pedaggicos no aluno e no mais no professor, buscar a educao do indivduo para si e o

    distanciamento das convenes e vcios sociais para alcanar os interesses naturais do

    indivduo (educao negativa). Critica o intelectualismo, o ensino formal e livresco, o

    autoritarismo e o adestramento (que se baseia na concepo de natureza humana m),

    valorizando a razo sensitiva, o desenvolvimento livre e espontneo, com respeito existncia

    concreta da criana (transio da pedagogia da essncia para a pedagogia da existncia) e o

    ensino de dentro para fora, que ensina a criana a aprender a pensar, a lidar com os seus

    prprios desejos e a conhecer os seus limites.77

    Por seu turno, Kant relaciona sua filosofia com sua pedagogia, dando primordial

    importncia educao, qual compete desenvolver a faculdade da razo e formar o carter

    moral, garantindo que o sujeito tenha autonomia e autodeterminao. Une educao e

    liberdade e, criticando a educao dogmtica, refora a atividade do aluno de aprender a

    74 Ibid., 174. 75 A situao na Alemanha era um pouco diversa e o Estado passou a investir na educao, tornando obrigatrio

    o ensino primrio, bem como criou escolas tcnicas e cientficas, em oposio ao ensino tradicional e exclusivo

    das humanidades. (Ibid., p. 175). 76 Ibid., 174. 77 Ibid., p. 177-183. Rousseau recebe crticas que o acusam de propor uma educao elitista, por referir a

    existncia de um preceptor para Emlio, no livro Emlio ou da educao (1762), e de defender uma educao

    individualista, por separar o aluno da sociedade. Ademais, criticado por sustentar que a mulher deve ser

    educada para servir o homem. (Ibid., p. 179-180).

  • 17

    pensar por si mesmo, de modo que nenhum conhecimento vem de fora, transmitido ou

    imposto, mas construdo pelo sujeito.78

    Aranha observa que a Revoluo Francesa substituiu a viso aristocrtica para

    desenvolver lentamente as conquistas da cidadania na construo das democracias atuais...e

    que, embora inicialmente o liberalismo fosse muito elitista, por privilegiar os proprietrios e

    excluir a grande massa, aos poucos foram introduzidos mecanismo de maior participao

    popular, ainda que, devamos reconhecer, muitas vezes de maneira formal e nem sempre

    efetiva79. Complementa destacando que a ambio dos pensadores do Iluminismo do sculo

    XVIII foi a da emancipao humana, do sujeito com autonomia de pensar e agir, sustentada

    pela garantia dos direitos conquistados.80

    Ranieri explica que a importncia social e poltica da educao pblica gratuita como

    preparo para a cidadania foi reconhecida por diversos lderes no sculo XVIII, entre eles

    Frederico da Prssia, Maria Tereza da ustria, Kant, Nicolas de Condorcet81, Benjamin

    Franklin, George Washington, Thomas Jefferson e destaca a doutrina de John Stuart Mill,

    considerando a necessidade de educao pblica como necessria para o exerccio do voto.82

    No Brasil, aps a expulso dos jesutas em 1759 e com o despotismo esclarecido

    portugus, o Marqus de Pombal reformou o ensino, criando a educao leiga de

    responsabilidade do Estado em 1772, que, de incio, no conseguiu substituir prontamente o

    ensino dos jesutas, mantendo-se o panorama de analfabetismo, com ensino universal e

    abstrato destinado a uma elite de homens filhos de colonos, em uma sociedade agrria em que

    os escravos realizavam o trabalho manual.83

    78 Ibid., 180-183. 79 Ibid., p. 240. 80 Ibid., p. 240. 81 Ranieri explica que Condorcet considerava, por um lado, que a instruo pblica faria do bem pblico a

    preocupao de cada cidado e, de outro, que garantiria o saber contra a tirania. A excelncia seria, portanto, a

    forma mais alta de igualdade. Alm disso, como cada criana era vista como um sujeito racional de direito, a

    instruo pblica no deveria se sujeitar a vontades particulares ou utilidade imediata que pudesse propiciar,

    mas assegurar a educao nacional. Como podemos notar, Condorcet estabelece o liame entre a instruo, a

    adeso dos cidados aos direitos do homem e formao da vontade geral. (RANIERI, Nina Beatriz Stocco. O

    Estado Democrtico de Direito e o sentido da exigncia de preparo da pessoa para o exerccio da cidadania, pela

    via da educao, 2009. Tese (Live-Docncia em Direito) Universidade de So Paulo, p. 219-220). 82 Ibid., p. 218-219. 83. Segundo ARANHA, resultou da um ensino predominantemente clssico, por valorizar a literatura e a

    retrica e desprezar as cincias e a atividade manual. (Ibid., p. 190-193).

  • 18

    No sculo XIX84, com a urbanizao, o capitalismo industrial, os pensamentos

    positivistas85, idealista86 e socialista87 e as modificaes sociais, os ideais de educao estatal,

    laica, gratuita e obrigatria comeam a se concretizar na Europa e nos Estados Unidos. D-se

    maior valorizao para a educao elementar e para o cuidado com o mtodo de ensino para

    as crianas (psicologia infantil), bem como para a educao cvica e nacionalista. Alm disso,

    nascem preocupaes em preparar a criana para a vida em sociedade e para a cidadania, com

    destaque para a educao integral e politcnica.88

    Embora tenha havido acesso educao aos pobres pelo Estado, de forma geral, ainda

    havia dicotomia, com os ricos procurando escolas tradicionais religiosas e, no ensino

    secundrio, com os ricos mantendo a formao clssica e os pobres a formao tcnica.89

    Ranieri, apoiada nas lies de Monroe, assevera que, fazendo do preparo dos

    indivduo para um ambiente de mudanas a maior sntese de seus desgnios, pode-se afirmar

    que a educao pblica, desde os primrdios do sc. XIX, pelo menos, se voltou aos

    princpios bsicos da vida comunitria, com exaltao do altrusmo e do patriotismo90, com a

    finalidade de ...assegurar a estabilidade e o melhoramento da sociedade, especialmente em

    face do progresso industrial, expressando uma forma de controle social e de elaborao da

    mentalidade social que a equiparou teoria darwiniana da evoluo das espcies.91

    ARANHA destaca como principais pedagogos do sculo XIX o suo-alemo

    Pestalozzi (1746-1827), que defendia a escola popular extensiva a todos, reconhecia a funo

    social do ensino e que a educao deveria contribuir para a formao completa do ser; e os

    84 ARANHA observa que, no sculo XIX vivemos o tempo das rupturas, das luras revolucionrias para a

    construo de uma sociedade mais justa e democrtica, incluindo-se a no s o anseio de liberdade, mas tambm

    de igualdade. (Ibid., p. 240). 85 Destacam-se as Augusto Comte (1798-1857), Herbert Spencer (1820-1903) que privilegia o ensino das

    cincias e de questes utilitrias, em oposio ao humanismo e John Stuart Mill (1806-1873). (Ibid., p. 206). 86 ARANHA destaca as ideias de Hegel (1770-1831), que concebe a educao como meio de espiritualizao

    humana e valoriza o papel do Estado nessa seara; de Fichte (1762-1814), que considera que a educao forma o

    prprio homem, que se humaniza quando se afirma como sujeito, com conscincia e liberdade, e tambm

    salienta o papel do Estado; e de Schleiermacher, Von Humboldt, Goethe e Schiller, que representam a pedagogia

    do neo-humanismo, sustentando que a educao deve desenvolver a formao humana do homem integral

    (Bildung). (Ibid., p. 206-207). 87 ARANHA aponta que as ideias socialistas, especialmente de Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895),

    defendem a educao universal e politcnica e, duvidando da capacidade da educao, por si s, transformar o

    mundo, estabelecem algumas tarefas para os educadores enquanto no se realiza a ao revolucionria: a luta

    pela democratizao do ensino (universal) e pela escola nica (no dualista), isto , sem distino entre formar e

    profissionalizar; a valorizao do pensar e do fazer, em que o saber esteja voltado para a transformao do

    mundo; a desmistificao da alienao e da ideologia, ou seja, a conscientizao da classe oprimida. (Ibid., p.

    207-209). 88 Ibid., p. 199-215. 89 Ibid., p. 200-201. 90 RANIERI, Nina Beatriz Stocco. Op. cit., p. 222. 91 ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Op. cit., p. 222.

  • 19

    alemes Froebel (1782-1852), que se dedicou ao ensino elementar, valorizava a atividade

    ldica e fundou os jardins da infncia (Kindergarten); Herbart (1776-1844), que trouxe maior

    rigor metodolgico para o desenvolvimento da pedagogia como cincia, aplicou a psicologia

    experimental educao e defendia que a educao moral no se separa da instruo; e

    Nietzche (1844-1900), que critica a erudio vazia, a educao intelectualizada e separada da

    vida, o excesso de disciplina, a escola utilitria e profissionalizante, excessivamente

    pragmtica, os riscos de uma educao submetida ideologia do Estado e a transformao da

    cultura em mercadoria.92

    No Brasil, a chegada da Corte portuguesa em 1808, em poca que ainda predominava

    o modelo agrrio-comercial, provocou diversas modificaes, inclusive no campo cultural,

    com a instalao da imprensa, museu, biblioteca e academias. Na rea da educao, houve a

    criao de escolas superiores para atender s necessidades existentes e manter o privilgio das

    classes superiores, sem valorizao do ensino elementar, o que mantinha a maioria da

    populao, que era rural, no analfabetismo.93

    Mesmo aps a independncia em 1822 e a referncia da Constituio de 1824 a um

    sistema nacional de educao, o Decreto Imperial de 1827 no atendeu adequadamente ao

    comando constitucional e o ideal do ensino para todos logo foi considerado inexequvel94,

    de modo que a elite mantinha o sistema de educao primria privada, com a contratao de

    preceptores, e tinha o privilgio da educao superior.95

    O pas ainda seguia tendncia de criao de escolas religiosas, desvalorizava a

    formao de professores, a educao popular e a formao tcnica, que era associada

    mentalidade escravocrata e considerada inferior, privilegiando as profisses liberais

    destinadas elite, sem preocupao com a realidade e com os problemas prticos e

    econmicos.96

    A educao da mulher tambm era extremamente restrita no Imprio, pois viviam em

    condio de inferioridade e dependncia. Mesmo com o Decreto Imperial de 1827, que

    92 Ibid., 209-215. 93 Ibid., 219-221. 94 Ibid., p. 222. 95 221-227. ARANHA observa, ainda, que o Ato Adicional de 1834 emendou a Constituio e deixou para a

    Coroa a responsabilidade do ensino superior e para as provncias a competncia pelo ensino elementar e

    secundrio, mas logo ocorreu uma certa centralizao do ensino secundrio com a criao, em 1837, do Colgio

    D. Pedro II, que era destinado elite intelectual, servia de padro para os demais colgios e era o nico que

    podia realizar exames para conferir o grau de bacharel, necessrio para o acesso aos cursos superiores. (Ibid., p.

    223-225). 96 Ibid., p. 227-229.

  • 20

    determinou a realizao de aulas regulares para as meninas, a educao era simplria e

    destinada ao melhor exerccio das funes maternais. Merece destaque a criao da seo

    feminina, em 1875, na Escola Normal da Provncia, que se destinava a formar mulheres na

    carreira de magistrio e que, no final do sculo, passou a ter pblico predominantemente

    feminino, j que a atividade poderia ser conciliada com as obrigaes domsticas, tinha baixa

    remunerao, o que era mais aceito pelas mulheres, e era socialmente admitida, por ser

    relacionada com a experincia maternal das mulheres. Mas a excluso ao ensino superior era

    vigente, pois os exames do Colgio D. Pedro II eram apenas para homens.97

    No final do sculo XIX, o crescimento industrial e da burguesia-industrial, o aumento

    imigratrio, a abolio da escravatura, a queda da monarquia e a proclamao da Repblica

    trouxeram mudanas que impactaram a educao. As ideias positivistas favoreceram a luta

    pela escola pblica, leiga e gratuita e as discusses realizadas nas conferncias pedaggicas,

    no Congresso de Instruo e no Parlamento, com o projeto de reforma da educao relatado

    por Rui Barbosa, alimentaram durante muito tempo as esperanas de transformao da

    sociedade por meio da educao universal, no esprito que mais tarde iria caracterizar o

    otimismo da Escola Nova, confiante no carter de democratizao da educao98.

    Aranha observa que o sculo XX trouxe a implementao de alguns ideais de

    liberdade e igualdade nascidos nos sculos anteriores pelo sufrgio universal, ao estender s

    mulheres e aos analfabetos o direito de voto nas sociedades democrticas. Alis, nesse sculo

    intensificou-se a defesa dos direitos do cidado, da mulher, da criana, do trabalhador, das

    etnias, das minorias, dos animais e da natureza99. Novos sujeitos passaram a integrar a

    educao, como as mulheres, as pessoas com deficincia100, as etnias excludas etc.

    Na pedagogia, destacam-se a forte influncia das cincias humanas e da valorizao da

    cultura cientfica no contedo; o positivismo e a sociologia de Durkheim101 e o

    97 Ibid., p. 227-230. 98 Ibid., p. 232. 99 ARANHA destaca que um sculo marcado por uma srie de fatos relevantes, como a ascenso e decadncia

    dos regimes socialistas, a crueldade do totalitarismo, a luta contra o apartheid, a xenofobia e a intolerncia

    tnica, o progresso das cincias e da tecnologia, mas que deixam prevalecer os interesses econmicos e vises

    estritamente utilitaristas e consumistas, e a produo de massas e de mecanismos de controle das massas. (Ibid.,

    p. 240). 100 Vale destacar as teorias e o trabalho de Maria Montessori (1870-1952), primeira italiana formada em

    medicina pela Universidade de Roma, que desenvolveu mtodos para a educao de crianas com deficincia

    mental baseados na autoeducao. (Ibid., p. 263-264). 101 P. 255-256 Na esteira do positivismo cientfico, mile Durkheim (1858-1917) conferiu autonomia

    pedagogia e enfatizou o carter determinista e a natureza social da educao, que se desenvolve pelas geraes

    adultas como preparo fsico, intelectual e moral das novas geraes para adequ-las sociedade poltica e meio

    que se encontrem. (Ibid., p.256-257)

  • 21

    behaviorismo102; a fenomenologia e o existencialismo francs103; o pragmatismo104 e as ideias

    de John Dewey105; a Escola Nova106; as teorias socialistas107; as tendncias no-diretivas108; a

    102 O behaviorismo, valorizador da exterioridade do comportamento e da instruo programada mecanicista,

    influenciou a orientao tecnicista da educao, a qual traz a mentalidade empresarial para o ensino, enfatizando

    a objetividade, o planejamento, a organizao, a diviso, a especializao, a burocratizao e o uso de tecnologia

    para alcanar eficincia e produtividade e atender aos interesses do mercado, (Ibid., p. 257-258) 103 Construda pelas ideias de Edmund Husserl (1859-1938), Heidegger, Jaspers, Sarte, Merleau-Ponty e Martin

    Buber, a fenomenologia humanizou a cincia. Na pedagogia, valeram-se dessas ideias Dilthey, os gestaltistas

    Khler e Koffka, Rollo May, Carl Rogers que reduziu ao mnimo a interferncia do professor, centralizando-se

    a ateno no aluno e Sartre que, com o existencialismo francs, trouxe a ideia de que o homem, inicialmente,

    existe e, depois, se define, de modo que a educao permite que o educando reconhea a sua liberdade e construa

    sua vida autntica. (p. 259-260) Para ele, cada pessoa nica, deve se fazer a si mesma em comunicao com

    as outras, com as quais estabelece a intersubjetividade. (Ibid., p. 260).

    A gestalt ou psicologia da forma trouxe crticas ao processo de aprendizagem mecnico, enfatizando a

    necessidade de compreenso dos mltiplos aspectos e relaes que envolvem a realidade. (Ibid., p. 260) 104 Opondo-se ao conhecimento contemplativo e puramente terico, focou-se na prtica e na experincia, na

    funcionalidade ou instrumentalidade do conhecimento (Ibid., p. 260-261) 105 Influenciado pelo pragmatismo de William James (1842-1910), o filsofo e pedagogo John Dewey (1859-

    1952) desenvolveu suas teorias que fundamentaram a Escola Nova. Para ele, o conhecimento deve se voltar para

    resolver os problemas da experincia humana, com nfase no aprendizado por meio da ao, para conferir ao

    educando condies de resolver, por si mesma, seus prprios problemas. Critica a educao tradicional, o

    intelectualismo, a memorizao, a educao pela instruo e a obedincia. Defende que a criana deve ser o

    centro do processo de aprendizagem, que deve ocorrer de acordo com os interesses da criana, valorizando o

    esprito de iniciativa e independncia, valores democrticos. Considerando a noo central de experincia,

    Dewey conclui que a escola no pode ser uma preparao para a vida, mas a prpria vida. Por isso, vida-

    experincia-aprendizagem no se separam, e a funo da escola est em possibilitar a reconstruo continuada

    que a criana faz da experincia. A educao progressiva consiste justamente no crescimento constante da vida,

    medida que aumentamos o contedo da experincia e o controle que exercemos sobre ela.

    (...)

    Marcado pelos efeitos da Revoluo Industrial e pelo ideal de democracia, Dewey queria preparar o aluno para

    sociedade do desenvolvimento tecnolgico e formar o cidado para a convivncia democrtica. A escola seria o

    instrumento ideal para estender esses benefcios a todos, indistintamente, caracterizando a funo

    democratizadora da educao de equalizar as oportunidades. (Ibid., p. 262).

    ARANHA aponta que da resultou a iluso liberal ou o otimismo pedaggico da Escola Nova, que

    desconsiderava as contradies sociais. 106 ARANHA explica que a Escola Nova, preconizada por Feltre, Basedow e Pestalozzi, defendia mtodos ativos

    de educao, para a formao global, que inclua a educao intelectual, moral, fsica, ativa, prtica, com

    trabalhos manuais, exerccios de autonomia, vida no campo, internato, coeducao e ensino individualizado.

    Buscava superar o intelectualismo da escola tradicional e trabalhar com mtodos que estimulassem o interesse da

    criana sem cercear a espontaneidade. (Ibid., p. 246-245) Tinha por ideal educar para a liberdade, no sentido de

    possibilitar a autogesto do educando e a construo da sociedade democrtica. (Ibid., p. 251) A autora

    complementa que, ao lado de uma ateno especial na formao do cidado em uma sociedade democrtica e

    plural que estimulava o processo de socializao da criana , havia o emprenho em desenvolver a

    individualidade, a autonomia, o que s seria possvel em uma escola no-autoritria que permitisse ao educando

    aprender por si mesmo, e aprender fazendo.

    Desse modo, a nfase da educao no est na acumulao de conhecimentos, mas na capacidade de aplic-los

    s situaes vividas. (Ibid., p. 263) 107 A educao nos pases socialistas tinha como prioridade. a educao popular, com a universalizao do

    ensino elementar, gratuito e obrigatrio, o esforo pela alfabetizao, o trabalho coletivo, a auto-organizao dos

    estudantes e a relao entre escola e vida e entre trabalho intelectual e manual. (Ibid., p. 247).

    Havia o relacionamento dialtico entre educao e sociedade e a estreita ligao entre educao e poltica, no

    s para estimular a crtica alienao e ideologia, como tambm para estimular a praxis revolucionria nos

    pases em que o socialismo teria chances de ser implantado, ou para mant-la ativa naqueles que j haviam

    passado pela revoluo. (Ibid., p. 266).

    Destaca-se a posio de Antonio Gramsci (1891-1937), que traz a ideia de hegemonia cultural, construda pelo

    consenso, pela persuaso, pela qual a classe dominante conquista a adeso da classe dominada e a mantm

    desestruturada e passiva. Prope, em substituio escola classista burguesa, a escola unitria, que oferece a

  • 22

    teoria crtica da Escola de Frankfurt109; as teorias crtico-reprodutivistas110; as teorias

    progressistas111; e as teorias construtivistas112.

    Assim, cada vez mais a educao assumiu carter poltico, devido ao seu papel na

    sociedade como instrumento de transmisso da cultura e formao da cidadania: formar o

    cidado, ou seja, o sujeito poltico que conhece seus direitos e deveres113. A educao se

    estruturou na sntese entre teorias que surgiram para defender a escola como esperana para

    democratizar a sociedade e outras que se seguiram destacando o uso ideolgico da escola pela

    classe dominante. Diante desse dilema, Aranha sustenta que, se a educao no pode tudo,

    mesma educao para todos, conciliando trabalho intelectual e manual, fazer e pensar, cultura erudita e cultura

    popular, formando o novo humanismo socialista. 108 Inspiradas nas ideias de Rousseau, que centraliza a educao no aluno e no no professor, permitindo que o

    aluno desenvolva sua experincia por conta prpria. Rebatem o autoritarismo educacional nazifascista e do

    totalitarismo sovitico, bem como as formas dissimuladas de autoritarismo. Embora tenham sido criticadas por

    deixarem os alunos vulnerveis s foras sociais da ideologia dominante, trouxeram questionamentos

    importantes sobre o autoritarismo, doutrinao, individualismo, que freqentemente prevalecem na herana da

    escola tradicional, impedindo a democratizao da escola, no s na ampliao do seu alcance (uma educao

    igual para todos) como na sua prpria gesto (uma autogesto pedaggica). (Ibid., 272).

    Destaca-se a contribuio de Carl Rogers (1902-1987), para quem a prpria relao entre as pessoas que

    promove o crescimento de cada uma, ou seja, o ato educativo essencialmente relacional e no individual (p.

    269) e de Alesander S. Neill (1883-1973), que criou a escola Summerhill, na costa sul da Inglaterra, que

    valorizava as emoes e as capacidades de autorregulao individual e de autogoverno coletivo, com a resoluo

    das questes de disciplina pelos prprios alunos em Assembleia Geral da Escola. (p. 269), bem como a

    desescolarizao de Ivan Illich (1926-2002) e as ideias anarquistas de escolas sob a responsabilidade da

    sociedade (Ibid., p. 270-271). 109 A Escola de Frankfurt, entre outras coisas, critica o autoritarismo, a cultura de massa, o uso da cincia a

    servio do capital e prope a recuperao da razo para a emancipao humana, o que gera influncias na

    educao. (Ibid., p. 272-273). 110 Para tais teorias, desenvolvidas por Althusser, Establet, Baudelot, Bourdieu e Passeron, a escola est de tal

    forma condicionada pela sociedade dividida que, em vez de democratizar, reproduz as diferenas sociais,

    perpetuando o status quo. (Ibid., p. 273). 111 ARANHA inclui nesse movimento Makarenko, Pistrak, Gramsci, Snyders, Suchodolski, Charlot, Giroux,

    Manacorda e Lobrot, que busca, entre outras coisas, de forma mais ampla, a superao da dicotomia entre

    trabalho manual e intelectual e a nfase nos contedos do ensino, vinculando o saber abstrato s necessidades

    sociais. George Snyders defende o papel do professor, com funo poltica, e da escola e, embora reconhea a

    crtica dos tericos reprodutivistas, ressalta o carter contraditrio da escola, que pode desenvolver a

    contraeducao, evitando assim a mera reproduo do sistema. (Ibid., p. 274). 112 As teorias construtivistas questionam o racionalismo, o empirismo e o universalismo metafsico modernos ao

    considerar que o conhecimento construdo pela interao contnua entre sujeito e objeto, que se modifica e se

    refaz conforme se d o surgimento de fatos novos e a modificao das circunstncias histricas e sociais. Como

    conseqncia para a educao, a criana no passiva nem o professor transmissor de conhecimento. Outra

    caracterstica desse momento epistemolgico decorre da constatao de que o conhecimento se produz a partir

    do desenvolvimento por etapas ou estgios sucessivos, nos quais a criana organiza e reorganiza o pensamento e

    a afetividade. (Ibid, .p. 275-276).

    Seguindo a linha construtivista clssica e mais recente ARANHA destaca, entre outros: Jean Piaget, que, entre

    outras coisas, aponta a importncia da educao para o desenvolvimento da conscincia moral e conquista da

    autonomia ou capacidade de autodeterminao; Vygotsky; Emilia Ferreiro; Kohlberg, que destaca a educao

    para valores, baseando-se nos pressupostos kantianos; Edgar Morin, que observa a crise dos paradigmas da

    modernidade, as contradies e incertezas do final do sculo XX, a complexidade do conhecimento e do sujeito e

    a importncia da transdisciplinaridade; Philippe Perrenoud, Richard Rorty, que traz o neopragmatismo, a

    importncia e a relao entre socializao (que visa integrao) e individualizao (que visa crtica), a

    continuidade do processo educativo, a recusa da verdade objetiva e a abertura do conhecimento. (Ibid., p. 275-

    284). 113 Ibid., p. 245.

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    mesmo assim ela tem uma funo importante a desempenhar, porque ela no s instrui

    socializando, como pode ser emancipadora, ao abrir espaos para a desmistificao da

    ideologia114.

    Contudo, a despeito de alguns avanos, os projetos de escola pblica, gratuita,

    obrigatria, unitria e universal no se implementaram por completo na prtica e o liberalismo

    que prevaleceu sobre o socialismo no foi capaz de democratizar a sociedade e a educao. O

    sculo XX presenciou o uso poltica da educao pelos Estados totalitrios115, a manuteno

    do dualismo escolar, que divide educao para o trabalho e educao humanista, alm da

    utilizao da educao para atender os interesses de mercado116, preparando indivduos

    pouco crticos para exercerem suas funes no mercado de trabalho117.

    Nesse contexto, Aranha observa que o modelo de escola tradicional passou por

    inmeras crticas, desde a Escola Nova at as mais contemporneas teorias. No entanto, alm

    das tentativas de mudanas metodolgicas118, a prpria instituio escolar que se acha em

    crise. Mesmo porque, nesse incio do sculo XXI, o nosso modo contemporneo de pensar,

    sentir e agir est posto em questo, o que exige, sem dvida, profundas modificaes na

    pedagogia e nas formas de educar.119

    114 Ibid., p. 245. 115 Segundo ARANHA, o nazismo e o fascismo so avessos teoria, e se vangloriam de um anti-

    intelectualismo fundado no primado da ao. Mais do que ideias, a eles interessam a retrica e seus efeitos de

    doutrinao, que levam obedincia e disciplina. (Ibid., p. 250).

    Complementa que a educao assumiu carter privilegiado de controle e difuso da ideologia oficial.

    (...)

    Nas escolas propriamente ditas, valorizavam-se as disciplinas moral e cvica, para formar o carter, a fora de

    vontade, a disciplina e o excessivo amor ptria. Especial ateno era dedicada educao fsica, para atender

    ao ideal de corpos sadios e rgidos (o endurecimento do corpo exige rigor militar). Por outro lado, prevalecia

    evidente desprezo pelas atividades intelectuais e por qualquer teoria, lembrando que o primado da ao consistia

    em meta explcita de Mussolini. (Ibid., p. 251). 116 ARANHA observa que o sculo XX presenciou movimentos sociais de contestao (movimentos de contra-

    cultura), que criticavam a sociedade massificada de con