Ramon Ferreira - Eu e Charles (2012)

3
XXII BIENAL I NTERNACIONAL DO LIVRO SÃO PAULO 2012 190 XXII BIENAL I NTERNACIONAL DO LIVRO SÃO PAULO 2012 191 momentânea – sentaram‑se todos juntos, na sala, e as crianças começaram a brincar e veio então a ideia do telefonema – o pri‑ meiro da menina 11, já citada, a sua mãe no interior do Estado Tudo começou meio tímido e foi tomando ares de veracidade; a criança já conversava com desenvoltura e dava detalhes da nova etapa de sua vida, sem se preocupar com os ouvintes, ali, em sua frente e, na gradação das perguntas, pois os telefones de plásti‑ co, em punho, tomaram ares de telefones funcionais; veio, então, aquela pergunta tradicional: e aí minha filha como é o pessoal aí? Estás bem tratada? O que vistes de diferente por aí? Conte‑me – Ah! Mamãe a moça aqui é muito boa e as meninas também, mas tem uma coisa que eu não gosto! – O quê? – Eles aqui têm mania de comer e gostar de um negócio es‑ quisito chamado pisca (pizza), que é um horror! E sabe do que mais? Cachorro – Cachorro?! – Sim, mãe, cachorro aqui, é comida e dizem que só se come quente!!! RAMON FERREIRA Nasceu em Paripiranga – BA, em 29 de março de 1989. Criou‑se na mesma cidade, transferindo‑se para Salvador – BA onde se formou em Letras. Retornou à sua cidade de origem e tem atuado como do‑ cente. Publicou em maio o conto A Vitória na Antologia de Contos, Crônicas e Poesias da Bienal de Minas Gerais (2012), da All Print Edi‑ tora, sendo este o seu segundo trabalho publicado em livro. Mantém o blog Impressões Leves, onde escreve pequenos textos. Contato: [email protected] Eu e Charles L embro‑me ainda de Charles e do seu modo particular de exis‑ tir – da sua maneira única de estar e perceber o mundo com os seus olhos extremamente castanhos e tão calmos Lembro‑me quando Charles se sentava ao meu lado e ficá‑ vamos, por várias horas, sempre muito calados – até então eu acreditava na possibilidade de não possuirmos verdadeiramente algo que valesse a pena falar; no entanto, acabei por esquecer que tínhamos, no fundo, a capacidade essencial de ouvir um ao outro – o que era tão raro para pessoas com a nossa idade Ele sempre ao meu lado naquele modo de estarmos tão próximos ou até mes‑ mo observando‑me de longe: a maneira de olhar era a mesma, observando‑me da mesma forma com os seus olhos meio tristes e tão profundos Charles se sentava ao meu lado e permanecia imóvel prati‑ camente todo o tempo ou falando, muito raramente, da chuva

description

Ramon Ferreira - Eu e Charles (2012)

Transcript of Ramon Ferreira - Eu e Charles (2012)

  • XXI IBIenal InternacIonal do lIvroSo Paulo 2012

    190XXI I

    BIenal InternacIonal do lIvroSo Paulo 2012

    191

    momentnea sentaram se todos juntos, na sala, e as crianas comearam a brincar e veio ento a ideia do telefonema o primeiro da menina 11, j citada, a sua me no interior do Estado Tudo comeou meio tmido e foi tomando ares de veracidade; a criana j conversava com desenvoltura e dava detalhes da nova etapa de sua vida, sem se preocupar com os ouvintes, ali, em sua frente e, na gradao das perguntas, pois os telefones de plstico, em punho, tomaram ares de telefones funcionais; veio, ento, aquela pergunta tradicional: e a minha filha como o pessoal a? Ests bem tratada? O que vistes de diferente por a? Conte me

    Ah! Mame a moa aqui muito boa e as meninas tambm, mas tem uma coisa que eu no gosto!

    O qu? Eles aqui tm mania de comer e gostar de um negcio es

    quisito chamado pisca (pizza), que um horror! E sabe do que mais? Cachorro

    Cachorro?! Sim, me, cachorro aqui, comida e dizem que s se come

    quente!!!

    RAMON FERREIRA

    Nasceu em Paripiranga BA, em 29 de maro de 1989. Criou se na

    mesma cidade, transferindo se para Salvador BA onde se formou

    em Letras. Retornou sua cidade de origem e tem atuado como do

    cente. Publicou em maio o conto A Vitria na Antologia de Contos,

    Crnicas e Poesias da Bienal de Minas Gerais (2012), da All Print Edi

    tora, sendo este o seu segundo trabalho publicado em livro. Mantm

    o blog Impresses Leves, onde escreve pequenos textos.

    Contato: [email protected]

    Eu e Charles

    Lembro me ainda de Charles e do seu modo particular de existir da sua maneira nica de estar e perceber o mundo com os seus olhos extremamente castanhos e to calmos

    Lembro me quando Charles se sentava ao meu lado e ficvamos, por vrias horas, sempre muito calados at ento eu acreditava na possibilidade de no possuirmos verdadeiramente algo que valesse a pena falar; no entanto, acabei por esquecer que tnhamos, no fundo, a capacidade essencial de ouvir um ao outro o que era to raro para pessoas com a nossa idade Ele sempre ao meu lado naquele modo de estarmos to prximos ou at mesmo observando me de longe: a maneira de olhar era a mesma, observando me da mesma forma com os seus olhos meio tristes e to profundos

    Charles se sentava ao meu lado e permanecia imvel praticamente todo o tempo ou falando, muito raramente, da chuva

  • XXI IBIenal InternacIonal do lIvroSo Paulo 2012

    192XXI I

    BIenal InternacIonal do lIvroSo Paulo 2012

    193

    que estava, porventura, a vir A conversa banal e quase sempre insossa escondia algo por detrs algo que no ramos capazes de descobrir at ento Mesmo estando calado, ele me falava, sim Mas eu no conseguia compreend lo e hoje sinto a sua falta quando parece que, para mim, Charles se calou pra sempre E ele permanecia, apesar de tudo, ao meu lado permanecia implacavelmente vivo e entregue a toda aflio que era a possibilidade da ausncia Eu poderia at mesmo, quem sabe, esconder me poderia encontrar um lugar distante e seguro para evitar que a sua fora me atingisse assim to diretamente: escondi me algumas vezes, sim, mas no adiantava muito ir to longe Mesmo distante, eu o sentia ainda to presente como o prprio ar minha volta que respiro Fugir: essa talvez fosse a maneira mais cruel de esconder o meu esprito do seu Charles me incomodava? O seu esprito me incomodava Quem sabe? Sinto me incomodado, s vezes, com o meu prprio esprito Sinto me incomodado, hoje, por nunca receb lo em minha casa eu, que desde sempre, estive entregue s coisas mais banais E, de tanto ficar tardes e tardes descontente com tudo o que, aos poucos, fugia do meu alcance, acabava por nem me lembrar de convid lo para uma visita que fosse, ou qualquer outra coisa que pudesse revelar inclusive para todos os outros que ramos, sim, amigos de verdade Nada Absolutamente nada disso existiu: a nica coisa que me conforta agora e ao mesmo tempo me entristece a maneira como correram os fatos

    Ou, quem sabe, at mesmo sim, ele me amava e, certamente, eu o amava tambm

    Mas sempre h a hora do adeus para todos os casos, h, sim, a mais terrvel das horas podemos acompanhar os seus passos quando, gradativamente, ela vem se aproximando, mas, quase nunca somos capazes de not la quando ela se encontra nossa frente; e assim, mesmo sem sucesso na maioria das vezes, tentamos ainda

    manter o contato que, aos poucos, torna se nfimo e sustentamos aquela mesma velha desculpa de ligue me quando quiser

    Tenho certeza de que Charles estar para sempre comigo Mesmo estando ele to diferente de como era quando o conheci: posso sentir ainda, muitas vezes, a sua estranha presena, a sua incrvel fora e vontade de viver mas, quem sabe, ele nem mais esteja entregue a essas agonias

    Era o instante da descoberta: precisvamos compartilhar aquele silncio que nos era to prprio

    Somente agora, no entanto, ocorreu me, de sbito, a descoberta da coisa em si eu que estive sempre to perdido em minhas limitaes

    Charles se sentava ao meu lado, permanecia indiferente ao que houvesse nossa volta e, logo em seguida, partia; nascia assim, de sbito, o ritual

    Somente ento, quando ficava novamente sozinho, eu percebia que algum, enfim, houvera me reconhecido Mas, na minha nsia de adolescente, eu no poderia entrar em contato to ntimo com o esprito alheio aquilo, para mim, naquele momento, era um fato necessrio, mas perigoso

    Talvez houvesse entrado em contato com a verdadeira felicidade e, no entanto, eu no a reconheci em seu estado mais bruto No havia mesmo explicao alguma que me convencesse de qualquer coisa

    As manhs eram sempre to ensolaradas, to vivas que eu mal cabia em mim de tanto entusiasmo por viver Havia, sim, tantas possibilidades que eu no sabia como enfrentar tudo aquilo que me era dado naqueles momentos, eu era incapaz de perceber a sua presena por entre todas as coisas que me rodeavam Charles era, tambm, aquele sol forte que me iluminava e eu nem mesmo tive a oportunidade de agradec lo Ou, talvez, eu o agradecia, mas da minha maneira prpria que, quase sempre, nem mesmo ele era

  • XXI IBIenal InternacIonal do lIvroSo Paulo 2012

    194XXI I

    BIenal InternacIonal do lIvroSo Paulo 2012

    195

    capaz de perceber: eu, inclusive, muitas vezes, no percebia o modo nico que tinha de agradecer s pessoas o tanto que me era dado

    Charles me olhava com indiferena: Quente, no?E eu balanava a cabea concordando Eu no sabia exatamente onde ele pretendia chegar com todo

    aquele silncio que contornava at mesmo a sua face Charles era jovem Eu, s vezes, segurava algumas pedras de

    tamanho quase insignificante entre os meus dedos e, de quando em quando, lanava as no to forte para o espao que havia minha volta E ele, to jovem, olhando me profundamente; talvez eu no entendesse o seu desespero calado a sua angstia escondida e continuasse ento a viver naquela coisa absurda achando e tratando Charles como aquele garoto que no tinha mesmo nada por falar Curiosamente, o silncio tem sido ainda o modo mais significativo que encontrei para entrar em contato ntimo com algumas das coisas que me so mais essenciais desde muito pequeno, a maneira mais fiel que conhecia para me entregar ao grande abismo que a vida foi calar calar e manter me sempre meio afastado de todas as coisas que s agora possuem, ao menos para mim, algum sentido prprio Todas as pessoas pareciam passar por mim e lanar, sobre os meus ombros, uma espcie de peso que no poderia ser meramente quantificado eu no conseguia metrific lo, nada para mim era possvel: mas aquela sombra era o meu descanso irremedivel e voraz

    Entrar em contato, desde ento, era fato extremamente perigoso e eu no tinha a coragem suficiente para faz lo

    Hoje sei que a passagem de Charles em minha vida no teve um incio prprio como tambm, at onde eu conheo, no ter um final bem acabado talvez seja essa a lgica para que compreendamos a passagem de todos aqueles que nos foram verdadeiramente importantes Estou ainda assustadssimo: estou assustads

    simo diante de todas as coisas que nos podem acontecer diante do que a vida, em sua forma multifacial, pode ainda nos reservar: este o segredo que levo comigo

    Se eu quem sabe o enfrentasse Agora, no entanto, no ser mais necessrio manter viva essa

    lembrana que tanto aflige o meu peito e persiste em minha memria a partir de agora ela ter pulmo e vida prpria No me preocupo tanto com o passado no me perturbam mais todas as portas que deixei por fechar S no consigo entender ainda porque nunca o enfrentei porque nunca permiti lanar me quele abrao quele modo meio alegre meio noturno de existir