Ramon Ferreira - Força Viva de Um Inferno (2015)

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Força viva de um inferno

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Ramon Ferreira

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Copyright © 2015, Ramon Ferreira Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009. Coordenação editorial Rusel Barroso Imagem de capa Adilson Andrade Capa e diagramação Michael Cyrus Revisão Lilian Cavalcante Matheus Andrade Direitos desta edição reservados ao autor [email protected] www.ramonferreira.com.br Printed in Brazil/ Impresso no Brasil Ficha catalográfica F4133f

Ferreira, Ramon, Força viva de um inferno/ Ramon Ferreira - Paripiranga: Faculdade Ages, 2015.

ISBN 978-85-64363-07-6

1. Romance brasileiro. I. Título CDD-B869 CDU-82-312.1

Faculdade AGES de Ciências Humanas e Sociais Avenida Universitária, s/n Centro Paripiranga BA CEP 48430-000 Tel. (75) 3279-2210 www.faculPdadeages.com.br

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“O que te escrevo é matéria bruta”.

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“Sua alma desmaiava lentamente, enquanto ele ouvia a neve

cair suave através do universo, cair brandamente, como se lhes descesse a hora final sobre todos os vivos e todos os

mortos”. JAMES JOYCE

“É que o mundo todo vivo tem a força de um inferno”. CLARICE LISPECTOR

“A porta do futuro vai se abrir. Lentamente. Implacavelmen-te. Estou no limiar. Só existe esta porta e o que espreita atrás dela. Tenho medo. E não posso chamar ninguém por socor-

ro. Tenho medo”. SIMONE DE BEAUVOIR

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Do quarto era possível ouvir o som quase inaudível da tele-visão. O relógio marcava cinco horas da tarde, alto, sonoro. Uma batida lânguida e completamente melódica. As ruas permaneciam indiferentes, com todas aquelas pessoas sem-pre tão ocupadas que mal conseguiam perceber a beleza que havia ao redor, na cidade. Alguns vendedores limpavam as calçadas e era também possível, mesmo de longe, ouvir o roçar das vassouras sobre o chão frio, cinza, encoberto pelo ar gelado que fazia.

Ao longo do enorme corredor do apartamento havia uns passos ligeiros e pequenos, inteiramente cadenciados pela natureza virgem e pelo sabor da descoberta recente do caminhar. Junto a eles misturavam-se também inúmeros objetos pequenos, todos eles coisas de crianças, espalhados pelo assoalho da sala, colocados sorrateiramente sobre a mesa grande de vidro, que deixava também sobre si um jar-ro enorme com algumas flores artificiais. A cor de cada um

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deles era, talvez, a única coisa que quebrava a paisagem cin-za muito comum àquela época do ano em que o céu parecia querer desabar sobre a cabeça de todos – da criança, das pessoas apressadas e do vendedor atento. Cristiano continu-ava sua enorme caminhada através do corredor e a cada pas-so que dava era como se sentisse o mundo reverberar sob os seus pés que estalavam de brancos, amaciados pela própria pele macia de quem há pouco saíra do berço e dos braços da mãe, sempre tão cuidadosa com todas as coisas relacionadas a ele. A pele tocava o chão e o coração de Cristiano palpitava violento, mesmo sem ninguém ali perceber. Os olhos fixos observavam apenas o destino e, mal sabia ele, que aquela seria mesmo uma prática tão comum em sua vida: observar somente o ponto de chegada, sem ao menos se importar com tudo o que havia à sua volta, no caminho. Por um se-gundo, parecia que um pequeno desequilíbrio o empurraria para o chão, os braços balançando fortes, e agora o coração ainda mais acelerado e uma dança pequena solta sobre o ar – os pés firmes o mantiveram ainda de pé. O corredor, pensa-va ele talvez, não parecia tão grande como agora o era en-quanto ele continuava com os seus passos ligeiros. O teto em riste, as paredes frias, preenchidas cuidadosamente com os quadros que a avó teimava manter mesmo passados tantos anos de uso de cada um deles, as portas entreabertas, os quartos sonoros. Parou um instante, já na sala, e olhou a porta que dava para a varanda aberta, com as suas cortinas imensas, brancas e esvoaçantes.

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Da varanda era possível ver a rua pequena em que jazia o prédio repleto de apartamentos. E na rua as árvores preen-chiam certo vazio com os seus galhos entrecortados e as suas folhas que balançavam com o vento frio de inverno. De re-pente, um pássaro pequeno, era possível Cristiano ver da porta aberta, um pássaro pequeno pousava sobre um dos galhos, debruçava-se à espreita, e lançava-se rapidamente sobre outro galho qualquer, como em brincadeira. Os olhos dele eram vivos e as cores que preenchiam o seu corpo quase insignificante coberto de penas leves davam uma alegria qualquer àqueles galhos mortos que acompanhavam o mesmo cinza que predominava no céu.

De quando em quando, Cristiano permanecia quieto e passava então a observar estas coisas meio insignificantes que teimavam existir à sua volta. Então, ficava em silêncio, mas o barulho vivo da televisão do quarto da mãe resistia, baixinho, assim como também o canto cadenciado do pássa-ro sobre os galhos, na árvore e seu canto era também colori-do e preenchia o frio enorme que fazia dentro do aparta-mento. A avó caminhava na cozinha, arrastando os chinelos, tranquila e quando não havia o barulho dos seus chinelos, ou Cristiano por um segundo esquecia-se completamente da televisão da mãe, ele parecia lançar-se a um silêncio absoluto e o dia desabrochava em uma tristeza intensamente cinza de inverno, com o seu céu inteiramente nublado. Aproximou-se, com os seus passos pequenos, da porta aberta – as corti-nas debruçadas sobre a parede enorme mais pareciam mas-

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sas de ar congeladas pelo frio imenso que permanecia, e lá de cima, da varanda, era como se ele não estivesse mesmo ligado ao mundo, a não ser pelo pássaro pequeno que tam-bém o observava curioso da árvore. Sua mãe o chamava, do quarto, aumentava o som da televisão e era possível ouvir:

Teu biquinho a chilrear, Tuas pernas a tremer... E ela continuava chamando-o, para que ele também ou-

visse a canção que tanto gostava: Neste baile bailarás, Dois saltinhos tu darás e voarás... Seguiu para o quarto da mãe, hipnotizado pela canção

que atravessava o corredor, invadindo os seus ouvidos, e os passos pequenos apressavam-se cada vez mais. Lá, lançou-se aos braços dela ternos, quentes e vivos e deu uma gargalhada alta, solta de felicidade. A mãe lhe fazia cócegas na barriga, tocando-lhes todo o corpo com as mãos macias e perguntava o que ele estava fazendo àquela hora caminhando pela casa, sozinho. Cristiano riu, passou o dedo indicador no rosto da mãe, em brincadeira e, depois, lançou-se sobre a cama enorme em que ela permanecia deitada, protegendo-se do frio que fazia lá fora:

— Há um pássaro na janela, disse ele.

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Tal como os próprios pés, ou mesmo as mãos da mãe, sua voz era também macia. “É mesmo, benzinho? ”.

A janela da mãe permanecia fechada, com suas cortinas grossas escuras escondendo-a completamente do dia que fazia lá fora, com sua tarde morta, despida inteiramente de cores. A televisão continuava cantando a sua canção infantil, mas Cristiano lhe dava tão pouca importância que nem mesmo a mãe ousara retirar-lhe a atenção do pássaro do qual ele falava. Manteve-o entre os braços, enquanto ele continuava:

— Ele é tão pequeno, mas tão pequeno que nem parece ser vivo! Daí eu queria ele para mim, aqui dentro.

Sua mãe raciocinou rapidamente, pensou em alguma resposta simples que o confortasse de certa forma pois, bem sabia ela, era mesmo impossível manter o pássaro ao alcance das mãos pequenas de Cristiano. Lembrou-se ela de quando, certa tarde, encontrara o garoto no chão da sala colocando formigas no bolso, de modo que todas elas estivessem segu-ras de verdade das pessoas que logo chegariam na sala e, independentemente de qualquer ser vivo que ali houvesse, pisariam tranquilas sobre o chão, onde as formigas seguiam um rumo determinado à procura de alimento. Mas as for-migas eram facilmente alcançáveis, enquanto o pássaro ja-mais deixaria ser pego para servir-lhe de inspiração de cores na tarde nublada que fazia. Há, de certo modo, àqueles que jamais se deixam prender de nenhuma forma e são exata-mente estes que preenchem os nossos dias com as mais pu-

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ras cores que podem existir no mundo. Os olhos grandes de Cristiano permaneciam atônitos, como se esperassem de alguma forma que a mãe lhe apontasse uma solução para o seu desejo mais profundo. Ela lhe sorria, olhava-o também desconcertada diante de algo tão improvável como aquilo que ele lhe havia pedido. Só então, quando ele tomava cons-ciência do olhar carinhoso da mãe é que Cristiano sabia que ali ele estava completamente protegido de qualquer perigo ou sofrimento.

Uma chuvinha fina caía agora sobre a cidade enorme, e os prédios imensos, vistos do alto, de longe, mais pareciam caixas tristes onde se depositavam todas aquelas pessoas apressadas sempre com tanto por fazer. Mas enquanto esti-vesse no quarto, sobre a cama quente e macia, nenhuma chuva fina ou mesmo nenhum céu nublado o assolaria, lhe empunhariam qualquer medo da vida e de todas as coisas que há à sua volta. Além disso, a própria mãe, assim como o pássaro pequeno visto há pouco, enchia o dia de Cristiano de muita cor e leveza e era como se o céu triste deixasse de existir e desse mesmo espaço ao mais puro céu azul em ex-plosão de sol. Sua mãe era mesmo uma dessas pessoas que, independentemente de qualquer coisa, irradiaria a mais in-tensa força de luz, o mais quente raio de sol que uma figura humana seria capaz de emitir.

— Você sabe que não pode trazer o pássaro no bolso, não é?

Ele a olhava ternamente, com os olhos grandes, de as-

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sombro, mas como se estivessem agora em pedido de per-dão.

A avó passava agora pelo corredor, aparecendo muito rapidamente através da porta do quarto da mãe e, sorriden-te, perguntava o que aquele pingo de gente fazia àquela hora da tarde perdido assim pela casa. Depois, falou alguma coisa sobre o jantar e sobre o frio que ainda fazia na cidade: era mesmo necessário fechar todas as portas e janelas, já que há muito ela não via a temperatura baixar tanto em uma cidade como aquela, cheia de mar. Sobre o casaco novo, a avó falava que logo concluiria a costura do seu e, aproveitando o que sobrara do tecido, houvera feito um também para Cristiano, pois o garoto estava quase despido de roupas de frio naquele inverno rigoroso.

Daí ele desceu aborrecido dos braços da mãe quando es-ta lhe disse, mesmo com o maior cuidado que uma mãe po-de negar algo ao filho pequeno, que não era, de nenhuma forma, possível manter o pássaro colorido sob a sua guarda, ao alcance das mãos. A mãe o colocou sobre o carpete macio que fazia cócegas nos pés de Cristiano e este tentava em vão observar algum sinal do dia, ou mesmo do pássaro, através da janela coberta de cortina. E, de longe, o barulho forte do motor de um veículo atravessava a rua imensa, desapare-cendo aos poucos logo em seguida, enquanto Cristiano permanecia imóvel, à espera de alguma solução.

— E se os gatos maus comerem os pássaros não haverá mais nenhum deles! Disse ainda.

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Talvez ele ainda estivesse lá, da janela, espreitando-se sobre os galhos, a observar Cristiano desolado.

No chão, ele foi até um dos seus carros pequenos, todo vermelho esse, e tomou-o com as mãos. Começou, assim, a passear por entre todos os objetos do quarto, atravessando mesmo as paredes e os cantos infinitos que pareciam multi-plicar-se cada vez mais à medida que Cristiano passava com o seu carro pequeno. Ele continuou, então, conduzindo-o até a porta do quarto até olhar, mais uma vez, para a mãe sobre a cama com a televisão à sua frente, e lançar-se ao que restava do apartamento, o corredor, os demais aposentos, a varanda. O carro pequeno vermelho habitado apenas pela mão pequena de criança continuava a atravessar todo aquele ambiente, passando por debaixo da mesa, e sobre o tapete subindo, sabe-se lá como, a poltrona grande, macia. Os olhos de Cristiano permaneciam vivos, a apreciar a estrutura sólida do carro, enquanto uma de suas mãos pequenas toca-vam o tapete que mais parecia um gatinho peludo e quente. Diante dele, também o jarro com as flores artificiais que, mesmo nesta condição de semimorta, a avó cuidava com tanto zelo. Uma corrente fininha de vento frio passou pela sala, pois a porta para a varanda estava aberta, e balançou quase invisível a estrutura plástica das flores, e o olhar de Cristiano aguçava-se ainda mais.

No quarto, percebera ele, todas as coisas imóveis per-maneciam como ele houvera deixado há pouco, antes de correr para a mãe a avisar-lhe que havia o pássaro na janela.

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Cada brinquedo, cada qual com sua estrutura e todos os seus traços tão íntimos e específicos, inteiramente mortos, imó-veis, caídos sobre o chão do quarto, esperando-o apenas para que as suas mãozinhas pequenas e quentes lhe deem a vida necessária, impregnando-lhes do mais puro movimento da brincadeira de criança. Imaginou uma cidade, e tudo o que havia ali espalhado passava a ter um sentido inteiramen-te seu porque havia postes, e janelas, e sobrados, e avenidas no que, para muitos, era só um amontoado.

— Posso atropelar o gato mau com o meu carro en-quanto coloco o pássaro pequeno no bolso e o livro de todos os perigos que têm por aqui – pensou, enquanto passeava com o brinquedo na sua cidade imaginária. Estava triste, pois esperava que o seu amigo recém conquistado continu-asse à sua espreita da janela, mas os seus olhinhos castanhos não mais o viam em lugar algum.

Quem sabe ele houvesse se lançado ao cinza que explo-dia no horizonte e, assim, tivesse mesmo se perdido comple-tamente porque a cidade era tão imensa que lhe dava medo.

Sentou-se aturdido e passou a enfileirar cada brinquedo seu, como se estivesse imaginando uma avenida imensa, igual àquela que vira outro dia enquanto voltava do médico com a mãe e o táxi demorara tanto a chegar para busca-los. Olhou para cima e os prédios gigantes pareciam querer mesmo desabar sobre a cabeça de todos aqueles que passa-vam despreocupados pela avenida, e a sirene ensurdecedora de uma ambulância o estarrecera tanto com o barulho que

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nem o pensamento pensava. De súbito, então, uma surpresa grande lhe houvera sido

feito pelo novo amigo que fizera há pouco: ele o observava ainda da janela, mesmo depois de todos aqueles movimentos – em que Cristiano parecia tê-lo abandonado. O garoto es-boçou um movimento alto, um grito de alegria, mas logo imaginou que isso poderia assustar o seu amigo, então prefe-riu permanecer leve, tranquilo, senão jamais o teria para si, da forma com que ele queria de verdade. O pássaro perma-necia pousado sobre o galho alto. Caso ele olhasse para bai-xo, pensava Cristiano, era capaz de ter uma tontura e cair diante de todos aqueles metros que o separavam do chão. Suportou o quanto ele pode, então correu novamente para o quarto da mãe, embebido da mais pura alegria que poderia haver no mundo:

— Eu não disse, minha mãe, que o pássaro é meu ami-go?

A mãe surpresa: — Então, deixe-o que se vá. Ditas estas últimas palavras, Cristiano sentiu-se atingido

e sua alegria dissipara-se um pouco, a ponto de ele guardá-la apenas para si. Não compreendia exatamente o que a mãe estava lhe dizendo quando pediu que ele o deixasse ir, quem sabe ela apenas estivesse zombando do garoto, visto que a necessidade de ter para si o pássaro pequeno aumentava cada vez que Cristiano referia-se a ele, com sua voz mansa, doce.

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— Ah, minha mãe, ele não pode ir porque ele é meu amigo – insistiu o garoto.

— É exatamente por isso que ele precisa ter a liberdade de ir embora quando achar necessário e você jamais poderá tê-lo em seu bolso ou dentro de uma gaiola – respondeu novamente a mãe, muito paciente diante da erupção de de-sejo que Cristiano sentia pelo seu amigo quase invisível.

— Eu já falei do gato mau que poderá machucar ele pa-ra sempre e será toda minha a culpa se isso acontecer – res-pondeu o garoto, como se proteger o amigo fosse sua res-ponsabilidade.

— Creio que ele saiba se cuidar em relação ao perigo que é ter um gato mau aqui no prédio, amor – disse a mãe. Até porque se ele chegou até a sua janela foi porque conse-guiu livrar-se, não?

Era possível, naquele instante, ouvir os passos cadencia-dos da avó que atravessava mais uma vez o corredor do apartamento, enquanto um ventinho frio abria um pouco mais a porta do quarto da mãe, rangendo.

— Precisa agasalhar-se, Cristiano – disse a mãe, preo-cupada com o frio que parecia aumentar.

— Eu estou querendo salvar o meu amigo e a senhora fica preocupada o tempo inteiro só comigo, minha mãe! – Respondeu ele, impacientando-se.

— Não posso me preocupar com todas as pessoas do mundo de uma vez só, Cristiano. Preciso cuidar primeiro de você, que é meu filho e está sob minha responsabilidade,

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entende? — Sim, eu sei, mas e quanto ao meu amigo que está lá

fora? — Ele que se arranje – respondeu a mãe. — Eu não acredito, minha mãe! – Respondeu ele. — É mesmo? Perguntou a mãe, divertindo-se com o ga-

roto. — Sim, é mesmo! – Disse o garoto, em riste, e dirigiu-se

para a avó que passava exatamente naquele instante pela porta do quarto, atravessando de novo o corredor. – Ah! Minha avó, veja só o que minha mãe está dizendo aqui!

— Conte para mim, meu amor, o que tem dito a tua mãe... – respondeu a avó toda cheia de carinho e atenção, como se ela fosse mesmo capaz de fazer todas as coisas pos-síveis para o garoto; olhando-o atenta e ao mesmo tempo serena, com o mesmo olhar de avó que todas lançam sobre seus netos.

Cristiano permaneceu em silêncio. — Agora ele tem a ideia fixa de que quer pegar para si

um pássaro que pousou em sua janela – respondeu a mãe, sorridente, olhando-os com os seus olhos grandes.

— Sim – disse Cristiano. — Oh, céus – disse a avó -, mas você bem sabe meu

amor que não há menor possibilidade que isto aconteça. O pássaro é pequeno e livre; jamais trocaria a sua liberdade de mundo para ficar dentro de um apartamento. Lá fora é me-lhor para ele.

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— Estou há um tempão tentando dizer isto para ele – disse a mãe com seus gestos complacentes.

— Ora, tenho certeza que logo, logo ele deixará de lado essa ideia e voltará aos seus brinquedos – disse a avó.

— Mas se eu quero ele comigo – disse Cristiano – é porque tenho medo que um gato o coma, pois há muitos gatos maldosos rondando por aí.

— A vida é assim mesmo, meu amorzinho, devemos deixar que as coisas aconteçam como elas precisam aconte-cer.

— Está vendo como sua avó está certa, Cristiano? Você mesmo falou outro dia que ela nunca está errada – disse a mãe.

Cristiano pensou um pouco: — Ele queria se esconder do gato mau! — E por que o gato é mau? Perguntou a tia, que apare-

ceu. — Porque, respondeu Cristiano, ele come o pássaro! A tia tentava confortá-lo: — Mas assim é a vida para eles, meu amor. A tia se afasta devagarzinho, acende um cigarro e cami-

nha lentamente até a cozinha para onde, junto com ela, foi a avó. Cristiano permanece ainda diante da varanda aberta – um vento forte esbarra contra o seu corpo pequeno – a chu-va se anuncia diante do horizonte. Da cozinha é possível sentir o cheiro forte de café, o jantar sendo preparado passo a passo cuidadosamente. “Melhor fechar essa porta, Cristia-

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no, porque vai cair uma chuva daquelas”, diz a avó da cozi-nha. Mas o céu está tão bonito assim triste, pensa ele. Não é mesmo incrível como os pássaros atravessam o céu escuro de maneira tão coerente?

A mãe vai até a cozinha onde estão a avó e a tia, cum-primenta-as:

— Conseguiram convencê-lo de que o pássaro não esta-va pedindo ajuda alguma, mas apenas espreitando algum alimento fácil no apartamento?

— É provável que ele mantenha essa ideia fixa na cabe-ça, disse a avó.

O apartamento foi acendendo as luzes e fechando as portas enquanto, lá fora, a chuva desabava soberana e fria. O som da televisão se mantinha, ainda, vindo do quarto da mãe e o cheiro forte de cigarro, do quarto da tia que estava sempre tão cansada de toda aquela trabalheira de aulas par-ticulares. No quarto da avó, esta estava já em sono profundo com os pés repousados sobre dois travesseiros grandes. Cris-tiano percorre todo o apartamento, imita o voo longínquo do pássaro, depois deita com a mãe, dorme enquanto a noite desabrocha como uma flor aberta.

Quando, da última vez, tinha visto o pai, este viera visitá-lo já na casa da sua avó e Cristiano ficou muito curioso e aten-to em relação àquele homem que o tratava com tanto zelo; depois se sentou com a mãe no sofá.

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— Está tão crescido o garoto... A mãe olhava Cristiano, desconcertada: — Sim, já é um rapaz. Naqueles instantes em que o pai estava na sala – a avó

logo trouxe o café excessivamente forte que ele tomava com muito gosto – a mãe estava séria:

— Próxima semana quero levá-lo para um passeio na Orla... dizia o pai.

— Agora com o colégio ele poderá sair apenas aos do-mingos, respondia a mãe.

— Pode ser também no domingo, quando tenho folga do serviço. Eu o levarei também a um passeio no parque, se quiser...

Todos na casa o observavam desconfiados. Não era pos-sível que o pai pudesse ter mudado em tão pouco tempo.

— Impossível não notar o nariz do pai aqui pregado na cara, não? Dizia ele.

Depois pousava a xícara pequena no centro, enquanto pegava o garoto e o colocava em seu colo:

— Os olhinhos miúdos são meus também! Percebeu como temos olhos iguais? Como você pode parecer tanto assim comigo, garoto? As mãozinhas pequenas são da mãe...

— Sim, concordou a mãe, quando o olho diretamente nos olhos dele é como se eu estivesse mesmo olhando você...

— Será igual a mim quando crescer e isso é muito bom! Herdará a minha feição! Mas essa timidez com certeza é da mãe também, disse ele rindo.

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A mãe tentava ficar um pouco mais confortável diante da situação para ela um tanto diferente: a primeira visita do pai a assustara muitíssimo.

— Depois eu o levarei para jogar futebol comigo, aos domingos mesmo...

O pai falava sobre os planos infinitos que tinha para eles – sobre os programas de domingo que haveria de fazerem juntos: levá-lo à praia também porque, acreditava ele, os banhos de mar são mesmo necessários à boa saúde de um homem. Ele o levaria aos domingos, bem cedinho, assim que o sol começasse a nascer para que o garoto, já desde cedo, se familiarizasse com a grandeza estranha do mar.

— Igual ao pai... Ficaram depois o pai e a mãe se entreolhando, sem sa-

ber exatamente o que fazer agora, depois da visita. Desde que se separaram, esta era a primeira vez em que ele apare-cera para visitar o filho. Ele tomou a pequena xícara mais uma vez à mão, bebeu os últimos goles já frios de café forte. Depois ficou passando o dedo através da borda da xícara, o dia estava nublado – quase já chovendo. A avó ofereceu mais café, depois acendeu a lâmpada grande da sala para que to-dos ficassem mais confortáveis, da janela era possível ver as primeiras gotas de chuva caindo sobre a cidade.

— Jamais deixaria o meu filho, disse o pai. Ele talvez es-tivesse arrependido de todas as coisas que dissera para a mãe outrora, arrependera-se também, quem sabe, por abandoná-la sozinha como fizera há poucos meses. Depois olhava o

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garoto como se estivesse a enxergar um prêmio grande, en-quanto este, ainda desconfiado, mantinha-se a uma distân-cia segura, mais próximo da mãe. Cristiano – repetia o pai – Cristiano é mesmo um nome tão bonito, forte como um touro. Depois havia ainda toda a vida adiante: os passeios com o pai, as horas infinitas ao lado da mãe, o café da ma-nhã com a avó e as lições de matemática com a tia – havia também a adolescência ainda e todas as descobertas tão ne-cessárias à formação humana de qualquer indivíduo. O pai, certamente, deveria acompanhá-lo ao longo de todas as mu-danças, ao longo de todo desenvolvimento até a fase final de homem feito. E ambos sentariam à mesa de um restaurante qualquer e conversariam sobre como o tempo passou rápi-do, sobre como a vida nos parece longa e, no entanto, passa tão rápido como o romper de uma semente qualquer em solo fértil. A avó bem sabia destas coisas relacionadas ao tempo, desde que seu avô morrera – há quase dez anos – ela aprendera muito acerca da vida e das possibilidades que ela nos guarda sempre.

O pai continuava ainda tomando o café que a avó servia tranquila. A mãe mexia o cabelo de Cristiano com a ponto dos dedos, enrolando-os carinhosamente.

— Acordo ainda à noite, às vezes – dizia o pai – e sinto como se estivéssemos casados; como se nunca houvéssemos nos separado e, por isso, caminho toda a casa à sua procura. Levo um tempo para perceber a realidade: deito novamente e aos poucos as coisas vão ficando novamente claras para

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mim. Por isso mantenho o mesmo hábito de abrir as janelas de madrugada e fumar um cigarro até que as coisas se de-brucem de novo perante essa realidade que me cerca agora.

A mãe estava quieta: — As coisas têm uma razão de acontecer... — Tem sido, continuou o pai, a mesma sensação que

mantenho desde que o meu pai morrera há quase trinta anos atrás. Eu ainda tão criança acordando de madrugada e aguardando que a realidade volte ao seu estágio natural: aguardando que qualquer esperança de que ele voltasse e entrasse pela porta do meu quarto deixasse infinitamente de existir. Algumas vezes ainda eu abria a janela também, tal como tenho feito hoje, só não havia naquela época a presen-ça estranha do cigarro e este prazer absurdo dos diabos, e soltava uma gargalhada enquanto falava, mas as sensações não são assim, de todo modo, diferenciadas. Mas – continu-ou ele voltando-se agora para a mãe – tenho certeza que logo esse pesadelo passará e eu me acostumarei ao que me foi imposto agora, da mesma forma que me acostumei à ausên-cia estranha do meu pai quando, ainda criança, ele morrera naquele acidente terrível.

— Lembro-me de toda a história... respondeu a mãe. — Minha mãe está um pouco adoentada esses dias, dis-

se o pai. — Mas tenho certeza de que ela ficará logo boa. A mãe tomava mais um pouco de café também. A avó e

a tia permaneciam, cada qual, em seu quarto. Cristiano ca-

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minhou até o quarto, observou cuidadosamente todos os brinquedos, todos os objetos espalhados sobre os armários, dentro do guarda-roupa: lembrou-se subitamente do que o pai acabara de falar, da mania que ele mantinha de acordar de madrugada e esperar que certas sensações deixassem a sua mente e a realidade novamente pesasse sobre sua cabeça e seu corpo: herdara então este hábito do seu pai, pensava ele, depois ficaria da janela, sozinho, olhando o sol nascer lá por detrás da cidade, transbordando tudo completamente de luz.

A noite começava a debruçar-se sobre o horizonte, as luzes estranhas da cidade estavam já todas elas acesas, colo-rindo aquele mar revolto de prédios enormes e avenidas, com nuvens pesadas espalhadas no céu.

— Espero que tenha gostado de ver o seu pai — Disse a mãe para ele já sobre a cama, pronto para dormir — Pois ele não deve se demorar para vir aqui mais uma vez e levá-lo a um passeio qualquer.

Cristiano mexia, quase desatencioso, os dedos pequenos de sua mãe, misturava-os aos seus ainda menores.

— O que foi, meu amor? Por que essa carinha triste? Não está feliz por seu pai ter voltado a procurá-lo novamen-te?

— Acho que estou, mamãe... Ela o beijou ternamente, arrumou um pouco o lençol. — Pois então, prepare-se: ele estará sempre contigo. — É que às vezes as pessoas têm jeitos diferentes de

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mostrar quando estão felizes, por isso eu estou assim quieto. A mãe o olhava surpresa: — Exatamente isso, meu amor: as pessoas, cada qual,

possuem diferentes formas de demonstrar que estão felizes... — E como é não ser feliz? A mãe ficou calada — não sabia exatamente o que res-

ponder, por isso abraçou-o enquanto o colocava para dor-mir.

A tia veio ao quarto, chamou a mãe. — Não está com sono? — Estou, mamãe... — Então dorme um pouco. — Não vai me responder? — Sim, claro, meu amor, mas preciso antes que você me

faça uma coisa. Amanhã bem cedo, assim que acordar, eu quero que você me faça um desenho sobre o que é estar feliz — sobre como você se sente quando está feliz e, ao lado, quero que me faça outro desenho sobre como você se sente quando não está feliz... depois ela o beijou mais uma vez, desejou-lhes boa noite.

— E se eu não souber? — Não souber o quê, meu amor? Perguntou a mãe. — Se eu não souber desenhar como é estar feliz? A mãe ficou enrubescida: — É claro que você saberá. Depois, levantou-se, fechou um pouco a janela para que

apenas um ventinho fresco adentrasse o quarto, caminhou

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até a porta, apagou a luz: — É claro que você saberá desenhar como é estar feliz...

ou por acaso nunca se sentiu feliz em nenhum momento da sua vida?

— Nunca, disse ele.

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À essa hora, a mesa já posta, o pai sentado confortavelmente numa das cadeiras diante do enorme jornal aberto e o vapor quente do café recém passado. De manhã estava tudo muito alegre e bom. As pessoas meio sonolentas, a brisa fresca, o sol.

No meio de todas as coisas está Cristiano, depois do ba-nho, já preparado para sair. O sol está alto, forte - sempre foi assim nesses dias de outubro cheios de vida.

Além disso, tudo parece mais interessante quando se tem catorze anos.

Cristiano se sentou à mesa e serviu-se com um pouco de café e algumas torradas. Estava tranquilo e, de vez em quan-do, enquanto mastigava a comida, olhava a janela adiante que o lançava sobre toda a vida acontecendo lá fora - toda a vida acontecendo independentemente de qualquer vontade sua ou condição. As árvores, as nuvens: tudo continuava indiferente. Cristiano mastigando e, atrás do enorme jornal,

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o pai. Eram oito horas da manhã. De repente, silêncio. Em seguida, Cristiano mastigando.

Agora o pai vira a página do jornal e um carro atravessa a avenida distante. O pai tomava mais um gole de café, Cristi-ano mastigando a torrada com enorme prazer, os passos da empregada que estava sempre por fazer alguma coisa - outro carro atravessando a avenida -, a vida seguindo sempre o seu curso natural.

Cristiano colocou um pouco mais de café e olhou o re-lógio que caminhava impaciente. Se chegasse um pouco mais cedo na escola, poderia ainda conversar com os seus amigos sobre a grande festa que aconteceria no sábado e, poderia quem sabe marcar uma hora para visitar André que continuava muito doente mesmo depois de todos aqueles dias no hospital - as coisas, para André, ficavam cada vez mais difíceis. Toda a sua vida estava, sim, sendo-lhes intole-rável, privando André de sentir todas as possibilidades que se é comum com aquela pouca idade.

Era possível, pensava Cristiano, era possível encontrar-se doente de corpo e, no entanto, sentir-se saudável em espí-rito; do mesmo modo, havia ainda aqueles que se encontra-vam completamente saudáveis, mas com o espírito destruí-do de alguma forma.

Entre a torrada, o sol e o jardim havia Cristiano e ele precisava, de algum modo, libertar-se daquele sentimento absurdo - aquele desespero calado, aquela agonia silenciosa.

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Caso entrasse em contato, ainda que por algum motivo es-tritamente banal, com o pai, quem sabe ele se sentisse me-lhor. Pensou em falar sobre a manhã fresca que fazia ou so-bre o café saboroso que a empregada lhe preparara com muito carinho até. O pai, certamente, nem mesmo desviaria o olhar atencioso do jornal. Cristiano tremeu um pouco, engoliu o último pedaço que estava em sua boca:

— Acha mesmo que André ficará bem? — Talvez, respondeu o pai indiferente. Nessas horas o

importante mesmo é levar em consideração o que dizem os médicos.

— Estive com ele na semana passada – continuou Cris-tiano – e os médicos haviam lhe informado que o seu estado era estável, pelo menos na última semana, mas, mesmo as-sim, ele precisaria continuar em observação. Cristiano olhando a janela, disse ainda: e o mais interessante de tudo isso é que especialmente hoje faz uma manhã tão linda de sol... mesmo com todas as coisas que nos aconteceram ulti-mamente. Tenho a sensação, às vezes, de que ainda que não sejamos felizes, nós temos, no mínimo, a obrigação de pare-cermos felizes. E essa é a coisa mais incrível que pode fazer um ser humano: sorrir, ao mesmo, mesmo com o coração em pedaços.

— Eu sei o quanto as coisas foram difíceis nesses últi-mos tempos, filho, mas, deve lembrar-se de que foram situa-ções difíceis para todos nós. O mínimo que devemos fazer não é tão somente parecermos felizes, mas, especialmente,

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manter a cabeça erguida diante dessa enorme dificuldade que temos enfrentado. Sim, Cristiano, está fazendo uma manhã cheia de sol, mas talvez as pessoas, diante dos pro-blemas de cada uma delas, nem se importem tanto assim.

Cristiano interrompeu: — Eu me importo. O pai sorriu. Chegar aos quinze anos, agora tão próximos, era mesmo

fato perigoso. Todas as possibilidades, todos os caminhos que lhe fariam ou não conquistar a condição de homem fe-liz. Tudo ali o embriagava. Mesmo daqui a cem anos, as ma-nhãs seriam ainda alegres e as pessoas também levantariam meio sonolentas. Depois o café quente, as torradas - mesmo daqui a cem anos. A velhice, a morte. Qual sentido havia em todas essas coisas? O que seria de Cristiano no futuro?

Naquela manhã, Cristiano não sabia exatamente onde manter o olhar: não sabia se espiava o relógio do pai que marcava, marcava, se espreitava as torradas tão secas ou mesmo a janela que pairava sobre tudo. Passou a ponta dos dedos sobre a borda quente da xícara - manteve-se comple-tamente sozinho ainda que o seu pai estivesse ao seu lado. Ele, muito raramente, desviava a atenção do jornal para le-var o café quente até a boca. Depois, Cristiano levou a ponta dos dedos levemente até o café e sentiu a sua textura molha-da e forte - tocou nos lábios e observou atentamente aquele sabor estranhamente vivo que pulsava, pulsava.

Olhou o pai sempre muito ocupado - esperou que al-

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guma coisa lhes acontecesse, mas tudo o que existe sempre esteve previamente determinado: todas as suas alegrias ou mesmo qualquer outro sentimento não poderia fugir do padrão que lhes impunham ao nascer.

Cristiano ficou esperando, esperando que alguma coisa acontecesse - alguma coisa que ferisse tudo o que estivesse determinado e somente alguns poucos fossem capazes de entender ou mesmo sentir.

A empregada avisara de que havia alguém na porta… era a sua mãe.

Cristiano se levantou num sobressalto e despediu-se muito rapidamente do pai. Carregou a mochila e caminhou até o carro frente à sua casa onde a sua mãe o esperava ter-namente com um largo “bom dia”. Era sempre bom encon-tra-la - ela estava sempre tão alegre e lhes contava muitas coisas boas enquanto chegavam ao colégio. Todas as pessoas caminhavam apressadamente por entre as avenidas. Todas as pessoas com tanta pressa diante da vida.

— Espero que esteja preparado para a festa no sábado, rapaz.

— Sim, acho que estou. Disse Cristiano. — Todos os seus amigos estarão lá, não? — Espero que todos possam estar. — Eles não perderiam essa festa. André inclusive. — Não sei. — Ele ainda não saiu do hospital, mas não vai demorar

muito, com certeza.

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— Talvez. Disse Cristiano. — Não se preocupe, amor. Tudo ficará bem. — Eu espero que fique tudo bem, sim. Pretendo vê-lo

antes da festa. — Diga-lhes que mandei um beijo enorme. Cristiano desviou o olhar do rosto da sua mãe até o vi-

dro carro que parecia lhes separar completamente do mun-do que acontecia à sua volta. Mas, no fundo, havia algo dife-rente: um sentimento estranho começava a invadir todo o seu espírito lentamente. É uma manhã tão linda… e há ain-da a festa no sábado - não há com o que se preocupar, todas as coisas ficarão bem, com certeza. Quem sabe a sua mãe pudesse lhes dizer uma palavra de conforto - quem sabe ela, mesmo na condição de mulher, tivesse, um dia, lançando-se nesse estranho abismo que havia agora diante de Cristiano. Sim - ela saberia o que dizer nessas horas difíceis. Mãe é isso.

Lá fora, as pessoas corriam desesperadas para pegar o próximo ônibus na rua, os carros acenavam impacientes e um ou outro malabarista batia no vidro em busca de um trocado. “Mas isso não é possível, pensava Cristiano, a vida desse tipo de gente não é possível”.

Era uma manhã perfeita de sol para todos aqueles que viviam nas calçadas?

Desde que seus pais se separaram, sua rotina mudara um pouco: Cristiano perambulava entre um e outro, perma-necia meio perdido nessa coisa estranha que havia se torna-do a sua vida — as duas casas: Cristiano sentia não pertencer

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a nenhuma delas. — Acha mesmo que André estará na festa do sábado? — Claro que sim, amor. Os médicos não disseram na-

da? — Ainda assim… é possível que ele não esteja, não? Sua mãe desviou rapidamente a atenção do volante e

olhou-o com espanto. — Eu entendo a sua preocupação. — Consegue mesmo entender? Interrompeu Cristiano. — Claro que sim, amor. Mas preciso saber aonde você

pretende chegar. — Não sei aonde pretendo chegar, na verdade. Cristiano chorando. — O que está sentido, Cristiano? — Não sei, apenas uma preocupação… — Oh, amor, não chore, não chore… — Não sei o que faço exatamente… Sua mãe o acariciou ternamente. — Não fique assim, amor. Cristiano tinha se entregado. O carro atravessava as avenidas. Cristiano chorando

baixinho e, lá fora, o sol. Nunca, em toda a sua vida, houvera se entregado de tal forma. Sentia uma profunda angústia - era como se falasse, falasse e ninguém, absolutamente nin-guém, o entendesse ou mesmo ouvisse. Depois de um tempo calado, lembrou-se estranhamente de uma coisa que escre-vera há pouco tempo no pequeno diário que abandonara

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desde que chegara àquela idade. “E depois, pensou, haverá o instante que precederá o

próximo instante. Sempre foi assim desde toda a eternidade, mas, o que me assegura que todas as coisas e todas as pesso-as que estão ao meu lado serão ainda minhas no futuro? To-das as coisas - as pessoas - é possível que permaneçam comi-go depois dos instantes, instantes… mesmo depois de todo o tempo se desvanecer no ar…? ”

Sua mãe tentou ainda lhe trazer algum conforto mínimo que fosse - tentou mostrar-se atenta às coisas que estavam acontecendo de alguma forma. Passou a mão levemente so-bre os cabelos macios de Cristiano na tentativa de demons-trar-lhes o quanto o amava e, também, o quanto era bom estar com ele na vida. “Eu compreendo todas essas coisas-meio-sem-nome que lhes têm tirado o sono, amor. Mas logo tudo se acertará”. Seria mesmo o futuro que tanto o assusta-va? Cristiano tinha vergonha.

Depois, na escola, todas as coisas correriam normal-mente: as aulas, as conversas com os seus amigos sempre tão alegres - todos os planos para a festa no sábado -, os livros que lhe consagrariam um futuro realmente brilhante diante dos vários planos que todos os seus conhecidos o impuse-ram desde sempre: uma boa formação, um trabalho, depois, talvez, o casamento e os filhos e, finalmente, ser feliz. Esses deveriam ser, efetivamente, os planos que o fariam sentir-se mais humano?

Não havia, no mundo, alguma resposta que lhes fosse

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suficiente. A casa enorme do pai o esperando para mais uma tarde vazia. A empregada lhes trazendo um suco com biscoi-tos e o enorme jardim estalando de verde naquela tarde quente de sol. Toda uma vida entregue à superficialidade das coisas era o que Cristiano aguardava.

O sol, devagar, ia baixando, baixando despedindo-se de mais um dia quente que, para Cristiano, marcava um dia a menos. As flores que balançavam já de saudade do sol forte - as janelas, as luzes espalhadas pela casa agora radiante atra-vés de um amarelo meio queimado de sol se pondo. Cristia-no silencioso acompanhando todos os acontecimentos que lhes eram suficientemente essenciais - a empregada de vez em quando interrompendo-o.

No final da tarde as coisas ficavam estranhamente tris-tes. A noite seguia igual a todas as outras: deitar sobre o col-chão macio, murmurar algo incompreensível em prece e adormecer. O céu escuro e, ao longe, todas as estrelas que brilhavam indiferentes. Os carros corriam, corriam ainda através das avenidas e o pai chegando de mais um dia cansa-tivo de trabalho.

Na sua cama, tudo muito confortável - os lençóis cuida-dosamente bordados, as estampas num azul quase celeste que agora lhes preenchia o espírito. Os olhos de Cristiano ainda abertos e a boca meio seca, a casa vazia. A janela en-treaberta e algum barulho de vez em quando de alguém ca-minhando pelas ruas. Cristiano estava com medo - sentia-se só e não havia a quem chamar por socorro.

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Sua mãe o visitara mais uma vez. Estava ainda muito preo-cupada desde que a André houvera se internado e, por isso, sempre que necessário, ela visitava Cristiano enquanto este passava alguns meses com o pai e perguntava como as coisas estavam. Foram até um pequeno café numa avenida fresca, toda cheia de árvores. Cristiano pediu um pedaço enorme de torta de maçã e refrigerante, muito refrigerante. Sua mãe, no entanto, começara uma dieta especialíssima: pediu alguns biscoitos integrais e um pouco de chá.

— E seu pai? Como tem sido com você? Perguntava ela preocupada com Cristiano.

— Ele tem sido extremamente bom. Disse Cristiano entre um pedaço e outro de torta. Mas acho que mesmo es-tando tão ocupado com as obrigações do trabalho, ele se preocupa muitíssimo sobre como estou.

— Isso me anima, respondeu a mãe. Ele nunca foi ne-nhum modelo de marido, você bem sabe, e, a meu ver, não

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se sairia tão bem morando sozinho com você. — Temos a Cida também, e ela está sempre comigo. — Cida é uma ótima companhia, respondeu tomando

um gole pequeno do chá, desde quando compramos aquele apartamento, seu pai implicou que deveríamos levar Cida para lá. Ela era uma antiga empregada da casa dos seus avós e, há muito tempo, seu pai houvera colocado na cabeça que tinha já uma excelente empregada e amiga da família para cuidar de tudo o que fosse nosso ao casarmos.

— E ela tem feito isso, disse Cristiano. — Tem mesmo cuidado de todas as coisas que deixei,

mas, especialmente, tem cuidado da coisa mais preciosa de todas as outras que existem no mundo, disse a mãe sorrindo.

— André me disse uma coisa muito importante essa tarde, quando estive no hospital...

— Esteve no hospital? Perguntou a mãe espantada. Se tivesse me avisado eu até poderia acompanhá-lo.

— Hoje mesmo, um pouco mais cedo. Meu pai me le-vou lá. E André me falou sobre nunca desistir da vida, mes-mo quando tudo parece padecer diante dos nossos pés, mesmo quando todas as esperanças acabarem: esses são os momentos ideais em que nunca devemos desistir da vida. Foi o que André me disse hoje.

— E ele está certo, Cristiano. Saiba disso. Depois falaram do trabalho da mãe, do cansaço da vi-

da. Falaram das roupas que ela comprara para ele e do par-que que chegara há pouco na cidade. Cristiano se sentia livre

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nessas conversas com a mãe: sentia-se mais humano, mais homem. Mesmo as coisas mais humildes, os sentimentos mais sinceros: tudo parecia mais leve quando Cristiano con-versava com a mãe.

— Além de André, quais são seus outros amigos na es-cola?

Estou completamente sozinho. Sinto-me como se esti-vesse verdadeiramente entregue ao abismo grande da vida. A quem mais posso confiar o segredo que levo comigo? A quem mais, além senão de André, eu posso confiar aquilo que verdadeiramente sou? É sempre tão difícil confiar assim nas pessoas? Ou mesmo elas nunca nos surpreenderão? Além de André... além de André há a Cida. E depois tem meu pai – que, no entanto, nem mesmo posso contar todas as coisas que carrego comigo. E tem minha mãe, que me anima tanto todas as vezes que nos encontramos, embora o façamos tão poucas vezes. E só.

— Nunca fui tão sociável, a senhora sabe, disse Cristi-ano.

A mãe sorriu. — Mas tenho a certeza, continuou Cristiano, que te-

nho bons amigos, apesar de haver tão poucos. — Quando eu tinha sua idade, disse a mãe, nunca fui

também a mais popular da minha turma; pelo contrário: minha mãe dizia que nós, mulheres, devemos ser discretas e serenas. A calma é uma das maiores virtudes que uma mu-lher pode ter. E a discrição também, é claro.

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— Ela era uma mulher muito discreta, não? — E muito obediente também. Adorava ópera e,

quando meu pai morreu, ela me disse uma coisa interessan-tíssima: foi, depois de muitos anos, à uma ópera e sentiu-se finalmente uma mulher livre após todo aquele tempo casa-da.

— O casamento a prendia? Perguntou Cristiano. — Ela se deixava aprisionar. Não há nada, Cristiano,

nesse mundo que possa aprisioná-lo: você quem vai se per-mitir ou não que te aprisionem. Meu pai detestava ópera. Eu mesma não me lembro qual a última vez que ele e minha mãe foram à uma – nunca fomos, na verdade, os três.

— Mas ela o amava assim mesmo, não o amava? — Sim, ela o amava. Mas não sabia que deveria ser li-

vre ainda assim: para ela, o amor era como uma forma de prisão. Privar-se de todas as coisas que ela queria verdadei-ramente, de todas as suas vontades e prestar-se às condições de outra pessoa foi a educação que ela herdou da sua mãe.

— Você as culpa? — Não, eu não as culpo. Como disse, essa foi a educa-

ção que elas tiveram. Elas foram criadas para essa finalidade e com essa maneira de pensar. Mas o amor que deveria li-bertá-las de qualquer forma de aprisionamento servia, no entanto, de prisão para elas próprias.

— E por isso, antes que o meu pai a aprisionasse, a se-nhora resolveu manter a sua liberdade e se separar dele? Perguntou Cristiano com uma ousadia surpreendente.

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— Sim, antes mesmo que ele me aprisionasse, fui em-bora.

— E minha avó pôde, finalmente, ser feliz depois da morte de meu avô?

— Ela nunca mais pôde ser feliz, mesmo quando a li-berdade houvera retornado à sua vida. Respondeu a mãe.

Cristiano não compreendera. — Como é possível, depois de todos esses anos em que

esteve aprisionada, que ela não tenha sido feliz nos seus poucos anos de liberdade?

— Está aí mesmo, em sua pergunta, a resposta que vo-cê procura. Depois de tantos anos presa a um homem que a amava sim, verdadeiramente, ela não mais conseguia dar um passo qualquer à sua maneira. Depois que meu pai morreu, continuou ela, minha mãe era incapaz de tomar qualquer decisão em sua própria vida e, muitas vezes, quando pergun-távamos qualquer coisa, mesmo banal, ela respondia “per-gunte ao seu pai”.

Cristiano sorriu. — Mesmo quando meu avô tinha já morrido? — Exatamente. Só depois ela voltava a si e lembrava

que meu pai não estava mais conosco. — E a senhora tem reconquistado a sua liberdade des-

de que se separou do meu pai? — Em parte, sim, respondeu a mãe. Eu te digo que em

parte sim porque nenhum ser humano é completamente livre. Eu tenho ainda muitas limitações – que são propria-

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mente minhas – e que estarão, talvez, para sempre comigo. Mas eu me lembro que uma das primeiras coisas que fiz ao me separar foi caminhar sozinha numa pequena praça que caminhara na época em que eu e seu pai éramos apenas na-morados.

— E o que a senhora sentiu? Perguntou Cristiano. — Uma tristeza que mal cabia em mim de tão profun-

da. E, por pouco, eu não voltei correndo para desistir de tudo e retomar a vida normal que levava ao lado do seu pai.

A mãe tomava ainda muito cuidadosamente o chá com os biscoitos.

— Eu não estava habituada a toda aquela liberdade que me era dada e, por isso, eu me senti muito sozinha. Pou-cos são os que, verdadeiramente, conseguem se habituar à solidão que a liberdade, quando demais, costuma nos causar. Depois fui para um hotel e fiquei ali sozinha pensando sobre todas as coisas que me aconteceram, sobre quais eram os planos para a minha vida e o que eu houvera feito dela até ali. Sobre o meu pai que não estava mais assim tão próximo e sobre minha mãe, inclusive, que continuava a carregar o peso comum à maioria das mulheres.

A dor de existir... pensava Cristiano: a terrível dor de existir.

— Mas não somos tão sozinhos quanto pensamentos, continuou sua mãe. Lembre-se de você que tem a mim, e que eu tenho a você muitíssimo também. Há ainda aquelas pessoas que podemos confiar e que nos mostram o quanto à

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vida vale a pena. Você é tão jovem, Cristiano, mal conhece todas as possibilidades que te cercam.

— E a senhora também não compartilha comigo todas essas possibilidades? Perguntou Cristiano como um desafio.

— À medida que vamos crescendo, que nossa vida vai tomando forma e seguindo um caminho único, todas essas possibilidades vão, aos poucos, diminuindo.

Cristiano observava agora a avenida extremamente arbori-zada. A sombra dos antigos casarões, os carros atravessando. As pessoas meio perdidas naquela espécie de loucura que parecia ali toda a vida. Uma mulher sentada sobre a calçada pedia esmolas, o portão de uma garagem abria, fechava. O tempo corria translucidamente. O que o futuro a reservava? Uma criança triste e feia limpava os sapatos de alguns tran-seuntes pacientes. De repente, André passando pela calçada, deixando esbarrar contra os seus cabelos o sol. A camisa meio curta – de tom excessivamente claro – que Cristiano lhe dera no último aniversário: André tinha cheiro de vida. Cristiano o observava quase compulsivamente. Esqueceu-se completamente da sua mãe que falava ainda, esqueceu-se de todas as coisas que estavam à sua volta. André caminhando de maneira leve, suave, passando pelo café, atravessando a mesa em que Cristiano estava com a sua mãe e seguindo o caminho. O coração de Cristiano pulsava forte. André ob-servava Cristiano agora virando a face para trás, o vento rebentando contra o cabelo. Aquela canção que tocava ao

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fundo era mesmo real? De repente, o som estridente: a batida. Um carro acer-

tara em cheio um pedestre desatento. O sangue quente es-correndo sobre a avenida ensolarada. As pessoas curiosas. O cheiro do carro, da morte. Cristiano fora interrompido ab-ruptamente.

— Algo sério aconteceu ali, disse sua mãe. Cristiano pôde ver tão somente o braço caído sobre a

avenida, as pessoas cercavam a cena. Seria um braço de mu-lher? “Melhor irmos embora, Cristiano, não gosto quando essas coisas acontecem”, continuou sua mãe. Com o susto, Cristiano fora lançado à mais cruel realidade. “Onde estava André agora? ”, perguntava-se. Enquanto entravam no car-ro, ele pôde ver: era uma mulher caída sobre o asfalto quen-te. Aquele era o braço de uma mulher assassinada. Teria ela um namorado esperando-a em casa? Ou mesmo um filho? Ele nunca saberia – o mistério da vida era grande demais, inclusive para ser sustentado, ou mesmo suportado. Cristia-no precisava enfrentar a realidade. Todos precisam. Não há caminho alternativo nenhum: só há a realidade para nós, mesmo em sonho. Sobreviveria? Possivelmente, não. Mais pessoas agora cercavam a cena do crime – o que tanto as atraía ali? O espetáculo da morte. Os passos apressados da-queles que não avistaram ainda o rosto morto sobre o asfalto quente, os passos apressados daqueles que não pegaram ain-da o ônibus: o carro onde Cristiano repousava com certa tranquilidade apesar da correria à sua volta estava comple-

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tamente parado. Um enorme engarrafamento tomava conta da avenida. O barulho distante das sirenes, da polícia. “De-veriam logo ligar para algum conhecido da mulher, pensava Cristiano, trazer-lhes a notícia”. Quem o faria, no entanto?

A morte deveria lhe aquietar o espírito. A morte, em si, não existe. Sua mãe se fez notar logo em seguida: “acho que a moça não morreu, parece viva”. Cristiano a observava da janela, mesmo com os vidros completamente fechados. “Ela morreu”, pensou. E continuou ainda divagando: assim como eu um dia também morrerei, e minha mãe, e meu pai e todos os outros. Viver é estar sempre à beira da morte.

— Quero ver André novamente, mesmo no hospital, pediu Cristiano à sua mãe. Será muito bom vê-lo.

— Você acabou de vê-lo mais cedo, eles o deixarão en-trar novamente?

— Sim, disse Cristiano. André está mesmo precisando se distrair nesses tempos difíceis.

— Não acha que deveria você também preocupar-se um pouco mais com essas coisas também? Afinal, você pre-cisa ainda cuidar de muitas coisas da escola.

— Sim. O futuro o aguardava, com certeza. O futuro e todas as

suas nuances o aguardavam com muito entusiasmo até. O que será de Cristiano, no entanto, se a sombra escura da morte atravessar seu caminho? Haverá o futuro mesmo as-sim.

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Bem, continuou então: fechou o apartamento e olhou rapi-damente o corredor vazio - seu vizinho não percebera que ele estava saindo e, por isso, não abriu a porta para espiar de novo a sua vida - seguiu, assim, sozinho, rumo ao lugar onde talvez Ulisses o esperava. Marcaram o encontro no Líder às dez horas e aquela deveria ser uma noite especial, pois tudo estava meio fresco e bom. Arrumou um pouco a camisa en-quanto descia o elevador e sussurrou um “boa noite” quase inaudível ao porteiro que raramente lhe dava alguma aten-ção. Antes de sair, no entanto, olhou mais uma vez a cartei-ra: não estava mesmo esquecendo-se de nada - a noite pode-ria ser longa.

Seguiu indiferente pelas ruas mal iluminadas. O bairro estava sempre muito movimentado com todo

tipo de gente que se é possível imaginar - Cristiano se sentia enojado quando via no caminho as pessoas que ficavam a essa hora vendendo o corpo pelas avenidas: não entendia

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como alguém poderia transgredir àquele estágio de vida. Sentia muito medo ainda: não sabia o que o futuro lhe

reservava. “Era mesmo possível viver dessa maneira? ” Pergunta-

va-se. E, enquanto caminhava por entre as calçadas, ia per-cebendo que ele próprio estava sujeitando-se a viver sob aquela condição que, inclusive, todos aqueles perdidos na noite escura também viviam. Preferiu não pensar.

Tudo bem: Cristiano sabia que Ulisses não o amava - nem mesmo seria capaz diante do que houvera construído em toda a sua vida - mas, com certeza, no mínimo, Ulisses sentia um carinho muito especial por Cristiano. Impossível deitar-se com alguém na mesma cama e se prestar a todas as suas vontades daquela maneira por todo esse tempo. Sim, Ulisses não o amava - era um fato -, mas isso nunca aproxi-mou Cristiano àquela mesma condição dos que viviam a vender-se naquelas avenidas.

Conheceram-se por acaso num desses becos meio imundos que costumam ficar conversando com os amigos e bebendo alguma coisa gelada para lhes aliviar o calor insu-portável que fazia sempre naquela cidade. Olharam-se por um instante - o suficiente para que Cristiano o convidasse para tomar alguma coisa - e, como era de costume, Ulisses aceitara sem nenhuma objeção: não tinha mesmo nada a perder. Terminaram a noite num hotelzinho desses que existem aos montes em qualquer esquina - Cristiano mal cabia em si de tanta emoção: Ulisses era mesmo desses que

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raramente estão por aí assim disponíveis. Depois de quase seis meses de relações esporádicas, fi-

nalmente houvera chegado a hora de Cristiano saber o que Ulisses queria afinal: continuaria a sua vida medíocre ao lado de uma esposa raquítica e um filho que nem o trata como pai ou seguiria ao lado de Cristiano nessa coisa absur-da que era o relacionamento que possuíam? O resultado dessa conversa, no entanto, poderia machucá-lo profunda-mente, bem sabia Cristiano: a grande pergunta poderia ser perigosa demais e Ulisses, como um animal selvagem, quem sabe fugisse de repente na primeira tentativa de aprisioná-lo. Ainda assim, o risco, mesmo sendo fatal, era também extre-mamente necessário para os planos que Cristiano tinha em mente. Ele não poderia simplesmente desperdiçar mais o seu tempo ao lado de um homem que mal acreditava na possível relação que estava se solidificando entre eles - afinal, esta-vam já há quase seis meses encontrando-se três ou quatro vezes por semana e realizavam-se juntos - mesmo diante das diferenças que entre eles persistiam. Não havia mais como esconder esse desejo irrefutável que Cristiano nutria; preci-savam estar cada vez mais próximos - estavam planejando inclusive fazer uma viagem para Recife logo em breve.

Sentou-se finalmente numa das mesas do Líder e espe-rou que alguém o atendesse — as pessoas caminhavam indi-ferentes pelo Largo e, de vez em quando, um casal passava abraçado. Um homem gordo na mesa ao lado falava muito alto e parecia estar com muita fome, pois quando se calava

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finalmente, enfiava um pedaço grande de carne na boca e mastigava-o com prazer.

Pediu uma água, mesmo não estando com tanta sede assim, mas estava com a garganta seca e o fato de beber a água, quem sabe, mostrasse para os outros que ele estava por fazer alguma coisa ou esperando alguém. Olhou o relógio impaciente: faltavam ainda alguns poucos minutos para às dez horas - Ulisses não poderia fazer isso - ele não poderia simplesmente deixá-lo esperando em vão. Com certeza, logo em breve ele apareceria de repente e sentaria ao seu lado com aquele jeito que era unicamente seu - aquele modo de se comportar que acendia tanto os desejos de Cristiano. Olhou o relógio novamente e segurou o cardápio como se estivesse escolhendo o seu prato. Estava tão concentrado e, ao mesmo tempo, tão ansioso que nem percebeu quando Ulisses sentou-se à sua mesa e olhou-o fixamente. Cristiano não se mostrou surpreso; pelo contrário: estava indiferente à sua presença e falou um “como vai” insignificante, sem sa-bor algum. Voltou para o cardápio logo em seguida e, lendo ainda os pratos disponíveis, perguntou para Ulisses se ele estava com fome ou se iria preferir beber alguma coisa antes do prato principal. “Faça como quiser”, respondeu Ulisses.

Cristiano percebeu de imediato que eles estavam em guerra, pois sabiam exatamente o que pretendiam dizer um ao outro naquela noite. Fechou o cardápio educadamente e pediu uísque para ambos, depois olhou finalmente para Ulisses e disse rispidamente estar surpreso com as coisas

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que, até então, estavam acontecendo e, principalmente, esta-vam ainda por acontecer. “Não entendo onde você pretende chegar com essa conversa”, sussurrou Ulisses enquanto Cristiano olhava o homem gordo na mesa ao lado: “Sim, você entende”, respondeu ele. E continuou: “eu sei que você é capaz de entender onde eu quero chegar porque, ao que parece, desses seis meses que se passaram, até agora eu não cheguei a lugar nenhum”. Ulisses estava inquieto - quem sabe ele não conhecesse realmente com quem estava envol-vido até então: no começo, ele acreditava se tratar de um caso extraconjugal como qualquer outro dentre os vários que arrumou durante toda a sua vida. Por isso, naquele momento, ele talvez não estivesse compreendendo a pro-fundidade dos fatos - estava impaciente e mexia com esforço o anel que carregava consigo no polegar - respirou profun-damente e agradeceu ao garçom a bebida forte.

— Pretende mesmo colocar tudo a perder só porque eu não poderei ir contigo nessa viagem à Recife?

— Você mesmo sabe, Ulisses, que este não é o pro-blema de fato: existem muitas outras coisas que precisamos acertar. Não suporto mais vê-lo ir embora deitar-se todas as noites com outra pessoa.

— Ela é a mãe do meu filho, respondeu Ulisses, você precisa entender que eu quero estar presente na vida do meu filho, pois ele é a única coisa que tenho na vida - ele é a coisa que mais amo nesse mundo e quero que ele perceba o quan-to é importante para mim - parou um instante, bebeu um

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gole e continuou: — Desde o começo você sabia da existên-cia do meu filho e da mãe dele - em nenhum momento eu escondi isso de você. Cristiano o olhava com indiferença.

— Estou farto dessas suas histórias, Ulisses. Você mesmo sabe que mal consegue sustentar o seu próprio filho com o salário miserável que recebe - a mãe dele precisa tra-balhar o dia inteiro para que não lhe falte nada. Aquele garo-to pode, sim, ser o seu filho também, mas ele é, acima de tudo, filho daquela mulher que se mata para poder criá-lo e educá-lo. Cristiano passava o dedo na borda fria do copo que pairava sobre a mesa. A grande questão é essa: eu quero simplesmente saber onde fico nessa história toda - ou pre-tende esconder isso para sempre? E repetiu com força: Até quando você pretende continuar nessa?

— Você fica onde está agora, respondeu Ulisses. — Eu não estou em lugar algum! — Espero que fique feliz então acabando logo com tu-

do isso porque não suporto mais essa culpa toda em cima de mim.

— Culpa? Espantou-se Cristiano. — Você sabe que não gosto de homens. — Eu não acredito mais nisso. Depois de todas as coi-

sas que fizemos, você não me convence mais. — Eu acho que seja hora de você ir embora da minha

vida, então. Disse Ulisses. Cristiano finalmente fora atingido pela angústia - pela

angústia que era viver e precisar estar ao lado de alguém

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para sentir-se forte e capaz de enfrentar todas as coisas que nos são tão comuns em nossa vida. A simples possibilidade de não mais ter Ulisses ao seu lado o assustava. Respirou profundamente e olhou Ulisses com certo desprezo; pensou por um instante: “sim, era uma guerra, mas não havia por-que temer - ele era mais forte que Ulisses”. Disse, finalmen-te: “sei que você não quer que eu vá embora - eu sei que você me ama e está confuso diante disso”.

— Não, respondeu Ulisses, eu não o amo. Cristiano bebeu um pouco mais e sentiu-se um degrau

acima de Ulisses: estava forte e repleto de si - continuou: “você me ama, sim, pois, se não o fosse, já teria me deixado há muito tempo”.

Neste momento, Ulisses permaneceu calado - fora humilhado, atingido. Sentiu-se agora indefeso e sem respos-ta alguma - preferiu permanecer calado, então.

Cristiano ainda mais forte continuou: “não me venha também falar que está comigo por interesse - eu não acredi-to: raramente lhe pago uma bebida ou, por acaso, esqueceu-se que, na maioria das vezes, você mesmo pagou o motel? ”

Ulisses não compreendia - aquilo não era possível ser compreendido: logo ele, que agora tinha um filho e uma mulher sorridente, logo ele sentia-se meio perdido com aquele sentimento-que-não-tem-nome; era possível mesmo estar gostando de um homem? Mas aquilo feria todos os seus princípios: desde pequeno, fora educado a não aceitar tal aberração.

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O que estava, então, fazendo ali? Tudo era muito divertido, tudo estava sendo muito di-

vertido, mas não se poderia aceitar que tudo ali ultrapassasse a barreira intransponível da diversão. Atravessar essa barrei-ra seria quebrantar a sua condição de homem. Amanhã mesmo, certamente, Ulisses voltaria para sua casa e deitaria com a sua mulher: o que fazer quando a própria vida nos é intolerável? Era mesmo possível ser ainda feliz diante de todas as coisas que ele havia construído até ali? Ulisses ama-va, sim, o seu filho e tinha, apesar de tudo, muito orgulho dele, mas lhe faltava alguma coisa ainda - essa coisa desco-nhecida. Ele acreditava que fosse talvez o amor da sua mu-lher, mas com um pouco mais de tempo, percebera ele que não era necessariamente aquilo.

Em busca dessa coisa-meio-sem-nome, arranjou-se em diversas aventuras extraconjugais, mas nada adiantava.

No final, acabava sempre sozinho e culpado. Até que, numa noite dessas, Ulisses deparou-se com

aquele rapaz bonito e extremamente educado que, do nada, convidara-o para beber alguma coisa. Sim, ele aceitara real-mente porque estava ainda em busca de alguma coisa que nem ele, ao certo, sabia o que era. Aceitou e, aos poucos, foi percebendo que aquele rapaz tão inteligente era capaz de ouvi-lo como ninguém no mundo fora, alguma vez, capaz. Aquele rapaz era Cristiano - que olhava Ulisses de uma ma-neira extremamente única desde todo o início. Ulisses já sabia o quanto Cristiano o desejava. “Ninguém, em toda a

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minha vida, desejou tanto estar comigo”, pensava. Cristiano o procurava não somente como fonte de prazer e sexo: bus-cava-o também como companhia e, muitas vezes, convida-va-o para conversar até bem tarde em uma casa noturna qualquer.

Gostavam, também, de ir à praia aos domingos - o Porto ficava ainda mais belo nestas manhãs ensolaradas de domingo. Ulisses nadava como ninguém enquanto Cristia-no, muito raramente, atravessava as poucas ondas que re-bentavam contra ele. Divertiam-se bastante estando um a lado do outro e, depois da praia, um banho frio, doce e uma cama fresca com janela aberta bem ventilada para matarem a tarde juntos. Só mesmo à noite, quando chegava em casa, daria uma atenção qualquer à sua mulher.

Sim, pensava Ulisses, ele vivera, mesmo lentamente, ao lado daquele homem que agora o olhava meio com despre-zo.

— Você não pode fazer isso, disse Ulisses. — Acha mesmo que sou eu quem estou fazendo todas

essas coisas? — Sim, acho. — Talvez, disse Cristiano, se você percebesse as coisas

que você mesmo tem feito, tudo seria diferente. — Eu não sei ao certo o que fazer. — Não? — Simplesmente não sei ao certo o que fazer, pois essa

é uma situação completamente diferente de todas as coisas

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que vivi. — Você é o responsável pelo seu destino. — Eu nem mais tenho um coração, disse Ulisses. — Sim, você tem, pois se não tivesse, eu nem teria me

aproximado de você. — Talvez você não tenha me entendido: eu tenho um

coração, mas que nunca se mostra. Cristiano se calou. — O melhor que eu posso fazer, talvez, é mesmo ir

embora de uma vez por todas, continuou Ulisses. Afastou-se finalmente. Cristiano não estava ainda

acreditando no que houvera acontecido: sim, ele escolhera - ele escolhera deixá-lo. Cristiano fora engolido pelo orgulho - a vontade de dizer que as coisas não precisariam tomar aquele rumo lhe assolou o espírito, mas, se o fizesse, talvez demonstrasse todas as fraquezas que levava consigo. Cristia-no assistia sentado o desmoronar de uma relação completa-mente distorcida que mudara para sempre o rumo do seu caminho e mostrava, ainda, o quanto a vida poderia ser inesperada e ao mesmo tempo feliz. Ulisses o fazia feliz. Mesmo diante de todas as limitações que ele carregava; tal-vez isso o fizesse ainda mais especial. Ulisses o fazia feliz como em toda a sua vida ninguém o fizera. Lembrou-se, tolamente, de quando Ulisses batia à sua porta ou ligava para desabafar um problema ou uma preocupação qualquer - eles se abraçavam, mesmo diante da porta entreaberta, depois se olhavam pacientes: nunca, em toda sua vida, hou-

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vera experimentado aquela sensação que pulsava - ele olhava o rosto frágil de Ulisses que, tentando esconder algumas lágrimas que, vez ou outra, estancavam dos seus olhos. Bei-javam-se depois e, na tentativa de encontrar-se naquela vida tão aturdida que ambos levavam, deitavam-se abraçados e olhavam-se com grande prazer.

Ulisses parou um instante na porta do bar e olhou Cristiano que continuava, aparentemente, indiferente diante de todas as dores que lhe assolavam o espírito naquele mo-mento. Ulisses olhou-o rapidamente e, num único impulso, lançou-se ao Largo até perder-se dentre as muitas outras pessoas que passavam por ali.

Cristiano agora completamente sozinho. “Ele foi embora”, pensou consigo. — Ele me ama, disse ainda. Cristiano mantinha ainda a esperança: deveria haver

alguma possibilidade de ser feliz - deveria haver algo no mundo que o fizesse olhar em volta e perceber o quanto a vida lhe era grata, sim. Pagou a conta e foi até a saída - o mundo continuava acontecendo ainda como sempre fora desde o início - o mundo lhe pertencia todo agora como nunca pertencera.

Cristiano estava confiante em relação a todas as coisas que estavam ainda por acontecer.

Sim - Ulisses o procuraria novamente, assim como das outras vezes que, por alguma bobagem qualquer, eles se de-sentendiam.

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A praia era imensa e o cheiro secreto do mar invadia agora todo o seu corpo naquela manhã ainda fria.

O taxi atravessava a orla, lançava-se à imensidão da praia, contornando-a tranquilamente. Cristiano estava ainda sonolento, pousando a cabeça sobre o ombro da tia muito entusiasmada. A cidade caminhava perante os seus olhos quase fechados, as pessoas já tão cedo caminhando ao longo dos calçadões, a praia deserta, a luz do sol tocando muito levemente a espuma fresca das ondas que brilhavam e con-torciam-se enquanto se derramavam sobre a areia dura. Uma nuvem pequena, oca e solitária atravessava o céu e a grandiosidade daquele mar azul a fazia ainda menor.

A tia pediu que parasse o taxi e desceu muito apressa-damente; a areia estava já quente e ela mal teve tempo de atravessar a avenida – por pouco, outro carro que passava também não a atropelou – mas seguiu mesmo assim até as águas frias e salgadas do mar. Tocou-as com a ponta dos

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dedos, molhou um pouco a face já suada e caminhou pela areia, sentindo as ondas já sem força tocando os seus pés muito levemente.

— A essa hora quase toda a praia está vazia, disse ela à Cristiano ainda silencioso.

E foram caminhando ao longo daquela imensidão ba-nhada de um sol fresco, inteiramente despido de nuvens ao redor: o sol, todo ele, nu diante da grandiosidade do mar. Cristiano contorcia-se de prazer, sentia a brisa balançar o seu cabelo imenso, nesgo de mar. O barulho das ondas de-bruçando-se sobre a praia, para eles, era uma melodia rítmi-ca como um Adágio de Mozart.

— É mesmo uma pena que você não possa mais ficar conosco ainda por algum tempo, e logo tenha que se mudar, disse ainda a tia. Uma rajada forte de vento por pouco não levara o seu chapéu – ela o segurou com uma das mãos, en-quanto a outra mantinha entrelaçada ao braço forte de Cris-tiano. Não posso ainda acreditar que o tempo passou tão depressa!

Conceber o tempo ideal para que alguém se distancie – de qualquer forma possível – da nossa vida não é propria-mente uma tarefa fácil. O sol brilhava ainda mais forte e Cristiano chamou a tia para beber alguma coisa numa pe-quena mesa colocada sobre a areia ao longe – precisariam ainda caminhar um pouco mais, o sol estava já mais alto e quente àquela hora da manhã.

Depois, sentaram-se e a tia permaneceu calada obser-

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vando, muito atentamente, um ou outro transeunte que ca-minhasse através da praia àquela hora da manhã. O ar fresco a tomava por inteiro, lançava-a numa liberdade que palavra alguma seria capaz de traduzir. Cristiano, no entanto, man-tinha ainda o mesmo ar severo, sério.

— Eu o amo. E a palavra “amor” para ele agora soava como o canto

irrisório de um pássaro qualquer voando sobre a praia imen-sa, levado pelo ar. O amor seria mesmo este sentimento ab-surdo que, depois de usado, poderia ser levado pelo vento como um canto qualquer ou talvez uma folha pequena car-regada por um minúsculo fio de água. Depois ele deixou escorrer uma lágrima pequena que atravessou sua face co-berta de areia finíssima espalhada pela brisa. O garçom trouxe muita água que parecia estalar de tão gelada, colo-cou-as sobre a mesa pequena, serviu-a em copos grandes de vidro transparente e voltou-se para o restaurante há alguns metros da areia. A água era fresca, invadia milimetricamente o corpo inteiro de Cristiano e, por um momento, lançando-o a uma frieza estranha, como se fosse o medo da vida. O cheiro distante da comida que era feita no pequeno restau-rante misturava-se à brisa fresca que escorria sobre a areia já quente da praia, sobre as pessoas sonolentas que caminha-vam nas calçadas imensas. A tia mantinha ainda o mesmo ar repleto em seu esmero e dedicação.

— E ele me ama, também! Respondeu Cristiano en-quanto a tia o observava muito carinhosamente.

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Depois veio o garçom trazendo mais água e suco de la-ranja.

— Eu espero, do fundo do meu coração, que ele o ame também, assim como você a ele. A tia sempre teve dessas coisas, sempre o entendeu da melhor maneira possível, compreensiva e tranquila, tal como era quase todos os dias, desde que Cristiano era ainda uma criança correndo ao lon-go do corredor enorme no apartamento com a avó.

O vento forte permanecia ainda vivo sobre todas as coi-sas e todas as pessoas que passavam, naquele instante, por ali. Cristiano pensou em caminhar um pouco sobre as águas imensas, lançando-se à grandeza do mar que rebentava ago-ra em fortíssimas ondas – sentindo a água atravessar-lhes completamente o espírito como em forma de libertar-se finalmente de toda a sua própria vida.

A tia permanecia muito atenta, sentada, tomando suco de laranja sem nenhum açúcar. Cristiano caminhando sozi-nho diante do mar, o azul que reluzia com a luz do sol refle-tida nas águas em movimento, o cheiro forte das ondas e a solidão a que se tinha entregado enquanto, distante, a cidade permanecia quase imóvel. Deixou que o mar o alcançasse até os joelhos, quase lhes tocando o short leve e macio.

Ao longe, no céu, algumas poucas nuvens espalhavam-se largamente sobre o espaço azul que mais parecia infinito de tão imenso. Cristiano tornava-se apenas um ponto um pouco negro – dada as cores mais escuras da tintura de suas roupas – naquela mistura de azul vazio de céu e toneladas de

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água revolta quebrando-se em ondas e espumas. Depois, ele abaixou-se e tomou uma porção pequena de água salgada entre as mãos, observou os grãos minúsculos de areia em movimento ainda, a grandeza que era a própria pequeneza do mar.

Seguiu caminhando pela praia, lembrando-se das horas infindáveis que passava através da orla enquanto seguia para o trabalho, anos atrás: o ritual quase imutável de atravessar as avenidas iluminadas de mar ao som da música tranquila que quase sempre saudava mais um dia em sua vida enquan-to os ônibus enormes e os milhares de carros seguiam indi-ferentes. De vez em quando, uma nuvem mais espessa enco-bria o sol e certo frescor tomava conta daquele pedaço de mar, alguns pássaros pequenos circundavam as rochas mais distantes à procura de um alimento qualquer. Certa tristeza, no entanto, tomou-o de repente. Uma vontade imensa – quase do tamanho do próprio mar – de não ser mais ele mesmo, de não precisar viver todas aquelas coisas a que vi-nha se submetendo: Ulisses agora em sua vida há poucos meses, a própria possibilidade dele – de repente – abando-nar todas as coisas e seguir através de um caminho comple-tamente novo e distante de Cristiano. E, ainda assim, as praias continuariam incrivelmente lindas, continuariam seguindo a sua mais secreta perfeição que arquitetura hu-mana alguma é capaz de sustentar. As águas semitranspa-rentes do Atlântico, a areia espessa, o vento forte rebentando sobre o seu peito e a lembrança de Ulisses – que estaria ago-

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ra dormindo, talvez, ou mesmo tomando um café forte, co-mo ele próprio costumava acentuar sua preferência; nada como um café extremamente forte para começar o dia, repe-tia sempre e, depois, seguia o mesmo ritual enquanto o pre-parava cuidadosamente, tal como sua própria mãe o ensina-ra. E mesmo assim, todos os anos seguiriam indiferentes, todos os dias e todas as próprias manhãs ensolaradas conse-guiriam ainda manter a mesma calma de outrora, ainda que Ulisses não mais fizesse parte da sua vida. Enquanto houves-se a vida – tal como a conhecemos em seu estado mais su-perficial – haverá sempre esta mesma sensação de possível perda que teima em perdurar sobre todos aqueles que ama-mos: a vida, em si, só pode ser assim classificada se a sua possível ausência completa nos seguir sempre, tal qual a sombra da infelicidade sobre os corações estranhos daqueles que amam. Ulisses um dia morrerá, lembrou-se subitamen-te. Ulisses um dia morrerá e, ainda que permaneça vivo, poderá escolher não mais compartilhar a sua vida ao meu lado. Ulisses poderá, a qualquer momento, desaparecer completamente da minha vida até que apenas os retratos antigos e os objetos ínfimos, que mantenho sempre comigo tão bem guardados, servirão como prova perante todas as coisas que juntos vivemos. E, ainda assim, as ondas rebenta-rão contra as rochas distantes na praia.

A vida agora parecia extremamente clara e inteiramente possível de ser compreendida: eis o grande ciclo que a litera-tura popular tanto vos comenta; eis a grande explicação para

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todas as coisas que vivemos – pois, em certo momento o seu próprio ciclo com Ulisses também cessará e restarão apenas os momentos vividos, as lembranças de um passado inten-samente aproveitado.

Depois tomaram um táxi e voltaram para o apartamen-to. No caminho, era possível ver ainda a mesma praia, as pessoas caminhando através das calçadas enormes da orla, as praças espalhadas e os prédios que mais pareciam blocos sérios e tristes. A tia estava exausta e comentava tranquila como a praia, mesmo nas visitas mais rápidas, tinham aque-le poder de enfadar tanto as pessoas; disse que estava ansiosa para chegar logo em casa, tomar um banho gelado e deitar na cama fresca, com a janela aberta. Cristiano permanecia ainda silencioso com o corpo meio banhado em sal e suor. A pele um pouco ressecada e o cabelo um tanto bagunçado pelo vento enquanto, lá fora, as avenidas, as pessoas e os prédios caminhavam através da janela pequena do automó-vel. Respirou profundamente, comentou qualquer coisa so-bre o tal cansaço a que se referia sua tia e voltou a observar a paisagem tão próxima e, ao mesmo tempo, tão distante e inalcançável. Era mesmo incrível como os anos tinham pas-sado tão rapidamente, pensava ele agora. Parecia que a últi-ma vez em que vira o pai fora há algumas semanas e lá se vão quase nove anos desde a sua morte. A notícia, lembrava-se Cristiano, não havia sido naquela época a mais terrível que recebera até então, mas somente agora certas coisas pas-savam a ter algum sentido: a possibilidade de ausentar-se

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completamente da vida de todos aqueles que nos são impor-tantes é verdadeiramente real, pois seu pai era mesmo uma prova clara disso. A noite houvera seguido como outra qual-quer, a chegada da escola, o banho fresco e depois a janta que a sua avó houvera preparado com o mesmo carinho de sempre. Enquanto terminava a janta e se preparava já para o festival de desenhos que o esperava na televisão, o telefone tocou com a notícia. Talvez pela chuva, ou mesmo a rodovia encharcada: não houve tempo necessário para frear e a coli-são foi inevitável. A mãe, naquela noite, precisou tomar vá-rios comprimidos para dormir enquanto a avó desatava-se de preocupação: a tia precisou sair naquela mesma noite para resolver algumas coisas, mas o festival de desenhos es-tava tão divertido – como qualquer outro dia normal. No outro dia, lembrava-se Cristiano, ele não precisou ir à aula, nem mesmo pôde ver o corpo do pai já preparado para o sepultamento que se realizou no largo cemitério. A tarde desabrochava-se num frescor típico daquelas depois da chu-va, a terra ainda úmida e as pessoas, no entanto, muito sérias acompanhando o cortejo. Cristiano voltou para a casa da avó, naquele dia, ainda muito desconcertado em relação a todas as coisas que houveram acontecido desde a noite ante-rior. Ao voltar do cemitério, ele tirou o pequeno terno, e seguiu para o banheiro onde sua mãe já o esperava. Enquan-to ela o banhava, explicou com detalhes o que havia aconte-cido; falou da sua nova condição agora e, também, que não mais seria possível Cristiano ver o seu pai. A ideia da morte

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não estava ainda muito clara em sua cabeça – naquela época, o peso de uma ausência como aquela ainda não tinha assim tanto efeito sobre ele. De que forma agora aquela ausência pesaria sobre sua vida? Era mesmo possível que as pessoas pudessem desaparecer das nossas vidas? A mãe lhe dizia que, ao seu lado, Cristiano estaria sempre protegido e que ela jamais o abandonaria. Cristiano, agora maior, iniciava novas experiências, conhecia pessoas novas no trabalho ou mesmo na faculdade – Ulisses também o acompanhava há alguns meses. A cidade enorme, as pessoas indiferentes, o táxi parando em frente ao prédio naquela manhã que estava já meio nublada. Subiu as escadas, entrou no seu quarto e decidiu: agora que começara a trabalhar, Cristiano precisava de um lugar inteiramente seu. Falou com a família e todos concordaram, desde que aos finais de semana, sempre que possível, Cristiano os visitasse para uma tarde alegre de do-mingo. Todas aquelas sensações híbridas o tomavam completamen-te.

Uma mistura absurda de medo e impaciência perante todas as coisas que estavam por acontecer; uma sensação de insegurança e, ao mesmo tempo necessidade de estar pró-ximo das pessoas que tanto se ama – seria impossível calcu-lar aquela combinação inteiramente incoerente: uma vonta-de inexplicável de manter todas as coisas exatamente como

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elas estão e, ao mesmo tempo, modificá-las a fim de se expe-rimentar a felicidade completa em seu estado mais bruto.

Ulisses, quem sabe, pudesse explicá-lo de forma mais concisa esta sensação. Ele sempre o compreendia das manei-ras mais coerentes que uma pessoa poderia compreender outra no mundo. O pássaro pequeno, porém, livre, corria todos os perigos que uma criatura totalmente indefesa pode-ria correr. A liberdade o condicionava ao perigo grande da vida, lançava-o por inteiro ao abismo mais sagrado no mun-do: poder escolher seu próprio caminho.

Sentia-se inteiramente pleno por ter escolhido o seu próprio trajeto, no entanto, isso o condicionava ao perigo grande que há na vida esta que se vive plenamente. Tinha receio de que logo se machucasse – assim como o pássaro capaz de escolher sozinho o seu plano de voo completamen-te à mercê da própria morte - esta que se materializava em um gato de pelo macio e quente, cheio de vida e sorrateiro. E caso logo aparecesse um gato enorme que despedaçasse o seu corpo indefeso? Isso o excitava. O perigo que se corre enquanto se vive o excitava de todas as maneiras possíveis. Depois, morrer era também uma possibilidade. A morte carregava em seu bojo a grandiloquência que é a ausência triste em pleno verão – o sol forte, o mar calmo, transparen-te e o corpo morto numa manhã fresca de sábado.

Naquele dia mesmo em que conheceu Ulisses, lembrou-se subitamente do corpo morto sobre o asfalto quente que vira pouco antes. Enquanto o taxi cortava a avenida com

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pressa, algumas pessoas observavam a carne já sem vida ex-posta sobre o asfalto – não era possível perceber a causa da morte – mas havia, ainda assim, a presença sombria desta indesejada dos vivos diante do cenário que lhes fora exposto. O homem com os braços abertos, a cabeça um pouco caída para o lado, os carros passando ao redor. A crueza da cena o havia paralisado: quem sabe ele tivesse uma namorada, ou mesmo um filho que sentiria, a partir de agora, o peso gran-de de sua ausência – ou mesmo os seus pais, pois não se tra-tava de um homem velho. E, daqui a algumas semanas, a sua carne fria, podre e morta sob a terra vermelha de um cemi-tério qualquer, as pessoas que logo o esqueceriam, seus cole-gas de trabalho que levariam suas vidas adiante: a morte era mesmo a coisa mais absurda que alguém poderia ter criado para dar a coerência completa da vida. Todas as canções que viriam a seguir, todas as comemorações ou mesmo os acon-tecimentos que agora ele não mais acompanharia. Logo, chegaria mais uma vez o Natal e então a sua casa pesaria, talvez, com a sua ausência. Enquanto Cristiano tinha ao seu alcance todas as horas que seguiriam adiante, o corpo morto não possuía absolutamente nenhum segundo a mais sequer de vida: aquele corpo no asfalto só carregava o peso grande da matéria morta, da carne sem vida e sangue frio, parado. Esta ausência completa de vida e de horas o excitava tam-bém.

Isso, no entanto, não o fazia de modo algum um ho-mem mau. Sentir-se atraído pelo mistério grande da morte

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não o condicionava à anormalidade. Qualquer forma de mistério o atraía muitíssimo – fora o mistério na face tran-quila de Ulisses que logo o chamou a atenção naquela noite mesma em que vira o homem morto. Qualquer forma de mistério excitava – o escuro grande da noite, o silêncio sun-tuoso da morte ou mesmo o olhar distante de Ulisses todas as vezes que, de manhã, ele observava a avenida movimen-tada da janela grande do apartamento: esse é o segredo mai-or que levava consigo, pensava ele.

Ou, quem sabe, se ele deixasse de lado toda essa coisa meio obscura de mistérios e se tornasse uma pessoa comum – como todas as outras iguais que vê, de quando em quando, ao se esbarrar numa rua movimentada ou num restaurante qualquer.

Mas naquela manhã, ele acordara diferente. Uma sensa-ção cobria todo o seu espírito: seria essa a chamada plenitu-de a que tantos se referem? Os seus gestos sempre leves, muito cuidadosos como se vivesse sempre à beira de uma estrutura fina de vidro – como se qualquer gesto mais vio-lento fosse capaz de destruir uma escultura fina de gelo; os seus gestos estranhamente vaporosos que, inclusive, às vezes irritavam Ulisses. Fica segurando todas as coisas, mesmo os objetos mais duros, como se estivesse com um passarinho recém-nascido entre as mãos, reclamava Ulisses. Sim, qual-quer gesto mais forte o mataria, bem sabia Cristiano e, por isso, continuava ainda com os seus modos cuidadosos. Acreditou, no entanto, que a coisa a que chamavam de ple-

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nitude era possível apenas nos romances de amor – ou mesmo no cinema: para a vida real, estes sentimentos quase sempre passavam despercebidos como o fio meio transpa-rente de um rio minúsculo meio à floresta escura. A felici-dade não lhes era mesmo possível de modo algum: a felici-dade, tal como ele ouvira sua mãe ou sua avó falar, nunca lhes seria possível. Os olhos permaneciam ainda abertos, observando atentamente a estrutura esbranquiçada do teto, o desenho formado pelo lustre pequeno que sua mãe lhe dera de presente desde que ele fora morar sozinho. Depois, as cortinas azuis encobrindo as janelas abertas, o vento fres-co invadindo o quarto, transportando-se para o apartamen-to; a felicidade jamais lhes seria possível, mesmo ele moran-do sozinho em um apartamento grande, perfeitamente con-fortável, mesmo Ulisses acordando de manhã bem cedo e abrindo as janelas para o dia que desabrochara há pouco. A convicção de não crer nessas bobagens criadas pela humani-dade a fim de dar um sentido qualquer às suas vidas jamais assolaria a mente completamente liberta de Cristiano. Ob-servo todos abaixo, na avenida escura, pensa Cristiano, e procuro, por Deus, quem sou. Procuro compreender um pouco da inquietude do meu espírito, desses anseios que nada no mundo, aparentemente, é capaz de satisfazer. O trabalho, o apartamento fresco, Ulisses: era esse o começo da felicidade? Inteiramente, o mundo todo é perfeito. O mundo em suas mais complexas estruturas – desde a forma leve e invisível de um átomo, até o Universo em todas as suas di-

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mensões – o mundo todo é perfeito porque, por mais que nós tentemos, nunca seremos capazes de compreendê-lo; eis o grande sentido de todas as coisas. A não-compreensão do que está à sua volta – a própria não-compreensão do que seja, efetivamente, a felicidade é que torna o mundo intei-ramente interessante para todos eles; para Ulisses, inclusive, que sempre se preocupou tanto em dar as explicações mais racionais que se é possível obter, tal como um grande mate-mático hindu. Quer dizer, o mundo todo existe apenas em nome da esperança de que as nossas forças não sejam inúteis – existe apenas, meu Deus, em nome da banalidade que tei-mamos repetir cotidianamente ao longo dos nossos dias tão insossos, enquanto o Universo explode numa expansão sem fim. O que me tranquiliza é que tudo o que me cerca agora carrega em seu bojo o que há de ser mais divino no mundo: a verdadeira perfeição, devaneia Cristiano. Desde o átomo primeiro que forma a estrutura lisa do vidro que cerca a mi-nha janela até a rocha imensa encontrada ali perto, no terre-no baldio. Tudo o que existe, segue, cada qual a seu passo, a verdadeira perfeição; e, somente assim, é que podemos compreender o sentido oculto dos acontecimentos. Subita-mente, ele fora tomado por um ímpeto de tranquilidade, por uma segurança tão grande que somente a presença silencio-sa de Ulisses dormindo ao seu lado seria capaz de lhe pro-porcionar. É curioso, meu Deus, o quanto o mundo é grande e, no entanto, deitar-me com Ulisses o faz ainda mais imen-so, mesmo eu compondo uma estrutura tão ínfima neste

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horizonte sem fim. O Universo caberia, ele todo, na sua própria cama, enquanto Ulisses repousava distraído.

De onde surgia aquela ansiedade grande perante o seu próprio futuro?

Acordara muito cedo, como de costume, e logo prepa-rou o café da manhã – agora que estava sozinho, não pode-ria mais esperar sua avó perguntar o que ele gostaria de to-mar no café. Enquanto organizava os lençóis, lembrou-se subitamente quando, em criança, observava a tia já à mesa, a mãe arrumando os seus lençóis, a avó colocando o café quente nas xícaras pequenas: aquelas eram suas primeiras lembranças. Deixou-se ser invadido por aquelas sensações – a aspereza macia do tapete na sala, o sol atravessando a jane-la, repousando sobre o piso, as folhas de uma pequena plan-ta na varanda balançando com o vento fresco da manhã –, aquela era a sua vida. Sua infância sempre tão preenchida pela presença terna da tia, da mãe e da avó – enquanto o seu pai muito raramente o visitara – talvez o tenha feito uma ou duas vezes, lembrava-se Cristiano, durante toda a sua infân-cia.

Deitou-se mais uma vez na cama, os lençóis estalavam em um branco caudaloso, pareciam escorrer ao longo do quarto. Lembrou-se, rapidamente, da imagem de Ulisses, da sua voz meio rouca falando ao seu ouvido. Lembrou-se da maneira feroz que ele tinha de contorcer-se enquanto estava embebido de gozo puríssimo; Cristiano beijando-o terna-mente enquanto ele palpitava de prazer. O cheiro forte, o

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calor grande que habitava ao longo de todo o seu corpo: tudo aquilo o excitava ainda mais. Poderiam estar numa praia deserta qualquer, tal como em seus sonhos de jovem, diante do mar escuro rebentando contra a areia, formando ondas repletas de espumas vivíssimas, poderiam estar numa dessas praias desertas e tomarem um ao outro com o mesmo desejo tão profundo enquanto o coração de ambos reluzia de felicidade. O pássaro solto o observando de um galho qual-quer era o mesmo que aquele das tardes chuvosas de sua infância. Atravessando o céu completamente escuro de mar. O mundo todo o pertencia: a sua infância enquanto ao lado dos pais, a separação, a casa da avó tranquila com a tia, o corredor imenso, o mundo todo o pertencia quase por intei-ro. Depois de tudo, havia além disso Ulisses, havia toda a vida ainda a ser vivida ao seu lado, acariciá-lo, compartilhar a sua existência com a dele e, enfim, a felicidade plena. A busca eterna mais absurda da humanidade era também a sua: a felicidade.

Contorceu-se de prazer. Aquela era a forma mais con-creta de se mostrar um gozo de vida próprio, ultrapassando mesmo a própria libido. Em que momento desaparecera a criança doce que ele sempre fora desde tão cedo? Sentiu-se envergonhado. Contorceu-se, no entanto, mais uma vez ainda em êxtase. A noite seguiria tranquila, o céu estaria completamente escuro – seria impossível enxergar as estre-las estando ele rodeado de prédios luminosos como aqueles. Um vento fresco escorreria também pela janela, balançaria a

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cortina e debruçar-se-ia sobre o seu corpo nu, escorrendo através das suas curvas completamente masculinas. O reló-gio continuaria marcando, marcando. Lembrou-se de Ulis-ses mais uma vez, onde ele estaria agora, ou mesmo se havia alguma companhia ao seu lado. O coração palpitando feroz, a noite derramada sobre a cidade.

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Ulisses acordou um pouco mais cedo e decidiu abrir as jane-las, enquanto Cristiano estava já de pé diante da mesa enorme toda ela preenchida com pãezinhos, café e frutas frescas.

Aquela parecia uma manhã completamente diferente de todas as outras. Os pássaros contornavam o céu que explo-dia em um azul infinito! A brisa meio fresca escorria por entre as cortinas, desabrochava diante da sala enorme, do enorme corredor.

Ulisses observava atento o horizonte diante da sua jane-la, olhava as cores disformes que surgiam entre o enorme céu e as águas longínquas que se perdiam em um negro sem fim. Aquela manhã mais parecia uma manhã de sábado, pensava Ulisses, igual às suas da infância (ou seria mesmo uma manhã de sábado daquelas que a mente humana jamais é capaz de esquecer?).

Desceu solenemente as escadas, deparou-se com Cristi-

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ano procurando algo entre os armários. “Dessa vez esque-ceu-se de quê? Da maionese? ”, perguntou, “Impossível que eu não o tenha trazido na última compra que fizemos”, res-pondeu Cristiano.

Não, não se tratava exatamente da maionese: esqueceu-se do queijo dessa vez. Não havia em seu apartamento tam-bém o queijo naquela mesma manhã primaveril em que dormiram juntos pela primeira vez. Parece que foi um dia desses, e lá se vão mais de três anos! Era mesmo incrível tu-do aquilo que estavam vivendo, pensava Ulisses diante da mesa quase pronta.

As ruas estavam sempre tão movimentadas que, por pouco, Cristiano não se deixou ser atropelado por um jovem que passava com sua bicicleta. O Seu Mendes o cumpri-mentara com aquele mesmo largo sorriso e falou do preço dos tomates. “Não são exatamente os tomates que me preo-cupam, Seu Mendes. Preciso do melhor queijo que o senhor dispõe em sua prateleira”, respondeu Cristiano, enquanto observava atento todos aqueles estranhos que seguiam coti-dianamente através das ruelas e das enormes avenidas que se perdiam na cidade.

— Se o preço do tomate aumenta, tudo aumenta, disse Seu Mendes.

— Incrível como as pessoas se deixam enganar mesmo nesses tempos de eleição, não? Perguntou Cristiano.

Seu Mendes estava naquela cidade havia já quase cin-quenta anos – deixou o interior em busca de um pouco mais

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de aventura, um pouco mais de liberdade para experimentar todas as sensações que lhes são possíveis. Acostumou-se com aquele ritmo de vida – com aquela correria tanta que mais parecia a loucura maior de toda a sua existência. Antes de atravessar a rua, Cristiano olhou mais uma vez o relógio; não queria se atrasar, pois tudo deveria estar incrível naque-le dia.

“Lembro-me, dizia seu Mendes, quando estive ainda aqui pela primeira vez e tudo parecia tão desconhecido e distante; a cidade, toda ela imensa, mais parecia um monstro feroz capaz de digerir qualquer sonho meu que houvesse e, mesmo assim, segui ainda adiante em busca de todas as coi-sas essas que sempre acreditei”. O queijo ardia de amarelo. Cristiano observava cada gesto leve de Seu Mendes: segurava qualquer alimento como a uma criança.

“O queijo me parece excelente hoje”, disse Cristiano. E Seu Mendes: “Essa manhã tão ensolarada, esse dia fresco o faz assim”. Esta cidade incrível era mesmo uma loucura: como não

a amar neste ritmo ainda tão intenso? Enquanto caminhava, Cristiano desviava-se de toda espécie de gente que se é pos-sível existir. Entre aqueles todos que circulavam em torno do largo, vendedores ambulantes, pequenos comerciantes com suas barracas de frutas, japoneses donos de restaurantes e mendigos esfarrapados esbarravam-se nas senhoras que faziam, naquela manhã, as compras da semana.

Todos sempre tão preocupados, sempre com tanto por

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fazer: para alguns, faltava-lhes tempo enquanto, para muitos outros, faltava-lhes disposição. O largo estava já quase com-pletamente iluminado pela luz ainda tímida do sol, as som-bras dos prédios cobriam geometricamente as calçadas, as folhas distantes das árvores balançavam com o vento fresco que atravessava os muros de mais puro concreto.

O sol de setembro despertava intenso. O inverno se fin-dara e com ele a força triste daqueles dias nublados extin-guia-se gradativamente. O frio que encobria todas as árvores e todos os espíritos parecia se perder diante do calor que setembro trazia já em todo seu bojo. Dona Verônica tam-bém estava já de pé fazendo sua caminhada diária, acenando tranquilamente para Cristiano.

Engraçado, pensava Cristiano, “desde o dia em que encon-trara o seu jovem rapaz, este a convencera, mesmo através de rigoroso pagamento, de como a vida não houvera ainda acabado assim naquela idade; o sexo fazia Dona Verônica crer, inclusive, na possibilidade de ser feliz – mesmo estando ela com seus quase cinquenta anos já completos”. As elei-ções se aproximavam – os cartazes espalhados nas paredes e nas ruas estendiam ainda mais toda a sujeira que insistia encobrir aquele cenário; pequenos folhetins trazidos pelo vento prendiam na calça de vez em quando.

Seu professor, Dr. Rivero e seu filho caminhavam felizes na calçada, parecia que ele o levava a mais um passeio em um daqueles parques enormes que chegavam sempre na

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cidade – o carro estava cuidadosamente estacionado em um dos canteiros e, antes, no entanto, de livrar-se dos pequenos cartazes de candidatos desconhecidos colados em seu vidro, Dr. Rivero pôde ainda falar rapidamente com Cristiano.

Reclamara, assim como da última vez em que conversa-ram também naquela mesma avenida, da sujeira toda que faziam os propagandistas e de como a democracia irracional daquela cidade enraizava a ineficiência de qualquer depar-tamento político do Estado. Dr. Rivero sempre tão politiza-do, pensava Cristiano, enquanto o ouvia falar; o garoto pa-recia impaciente e, antes mesmo que Dr. Rivero convidasse Cristiano para um café, fez-se logo notar gritando que, caso não chegassem cedo, os ingressos logo acabariam. Ele acal-mou o filho, disse-lhes que os ingressos não acabariam assim tão rapidamente.

“Assistiremos ao genial Shakespeare, Cristiano! ”, disse Dr. Rivero com enorme entusiasmo: “está sabendo da nova montagem? ”, perguntou ainda. “As montagens que são fei-tas de Shakespeare não têm sido nada atrativas, respondeu Cristiano, talvez eu espere um pouco mais”. Quinze ou vinte amigos seus estariam certamente naquela montagem que, há quase dois meses, estava sendo anunciada no jornal de mai-or circulação da cidade. Todos sempre tão atentos a qual-quer lançamento que acomodasse as mentes intranquilas numa zona qualquer de mínimo conforto. Depois o convi-dariam para um café e falariam eternamente sobre os lan-çamentos literários, sobre alguma outra peça que estava em

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cartaz e sobre como o preço dos e-books encareceria a pro-dução de livros impressos. Dr. Rivero precisaria ainda, antes da peça, levar o garoto ao médico: tivera uma gripe dessas comuns, mas a sua enorme preocupação não o manteria em paz hora nenhuma enquanto o doutor não o tranquilizasse sobre a completa cura do filho.

O inverno houvera sido rigoroso, a cidade toda se per-dia em um enorme cinza e a temperatura caíra considera-velmente. Nem todos estavam acostumados àquele tempo, imaginem então em quais condições as nossas crianças não ficaram diante de tanto frio e chuva. As praias ficaram de-sertas ao longo daquelas semanas – apenas alguns poucos surfistas ou mesmo uma ou outra senhora que mantinha o mesmo ritmo caminhando na orla que parecia naufragar diante do céu negro que se contorcia. Ulisses se assustava facilmente com aquelas tardes assombradas pelas nuvens negras que rebentavam no horizonte em enormes estrondos.

Lembrava-se de quando, voltando apressados de um passeio qualquer, perderam-se numa parte, para eles, desco-nhecida da cidade. A chuva impiedosa desabava cada vez mais forte sobre as avenidas, sobre os casebres que mais pa-reciam querer voar com a força do vento que rebentava. De repente, a água entrava já no estepe do carro, tocava-lhes fria os pés, amedrontava ambos que muito pouco enxergavam o que havia à frente. Estacionaram num ponto qualquer - não havia aonde ir - a força terrível da natureza impedia qual-quer movimento. Permaneceram abraçados ao longo da

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noite feroz. “O que seria de mim, caso Ulisses não estivesse comigo

esta noite? ”, pensava Cristiano enquanto observava a chuva solene atravessar as avenidas levando consigo os milhões de objetos que viviam por aí espalhados em todos os cantos da cidade – garrafas plásticas, embalagens e folhas mortas. Ulis-ses estava ao seu lado, mesmo numa situação, ao menos para ele, terrível como essa; do mesmo modo, lembrara-se subi-tamente também na última tarde em que estiveram juntos na praia. Como era bom acompanhá-lo em qualquer lugar que Ulisses estivesse! Mesmo uma noite chuvosa, ou uma tarde quente na praia – ou, inclusive, uma manhã fresca de sábado como aquela que estourava agora em suas vidas. Ob-servou ainda Dr. Rivero que acenava “adeus” da janela do seu carro e pensou: “como pode o Dr. Rivero ser tão feliz mesmo distante de Ulisses, mesmo vivendo todos os seus dias e noites completamente vazios da beleza que apenas Ulisses é capaz de irradiar tão tranquilamente? ”.

A primavera chegara, no entanto, com todo esse encan-to que somente ela pode trazer. Os campos completamente floridos, estourando de verdes, as pessoas mais tranquilas e o ar mais fresco: esses eram os maiores presentes que a pri-mavera entregava à vida de qualquer um. Conheceram-se pouco antes da primavera, lembrara-se Cristiano, numa noite comum no final do inverno de 2008. Tudo extrema-mente simples, sem nenhum grande acontecimento que pudesse ceder àquela relação um ar maior de superioridade

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ou mesmo alguma força maior a que chamavam tolamente de destino.

Dona Verônica parou ainda para falar com Cristiano. Falava-lhes sobre a manhã de sábado que fazia e sobre como seria bom estar na praia numa manhã como aquela. Cristia-no concordava, mas ressaltou ainda que não gostava assim tanto de manhãs ensolaradas na praia, dizia-lhes que adora-va caminhar, mas as águas densas do oceano o assustavam muitíssimo: caminhar somente, observar de longe o mar ou mesmo o horizonte era um dos seus programas preferidos. Ulisses, do contrário, sempre preferiu o mar – sempre o atraía o perigo das águas profundas e salgadas do Atlântico e, por isso, todas as vezes que iam à praia, Ulisses lançava-se para o mais longe que pudesse da margem; para desespero de Cristiano.

— Também não gosto tanto assim de nadar, dizia Dona Verônica, todo aquele sal… sem falar ainda sobre como a força da correnteza me assusta.

Corpos despidos em sal, no entanto, depois da praia in-teressavam a ambos: era bom o sabor da carne humana em-bebida do sal e areia da praia – aquilo lhes aumentava ainda mais qualquer desejo. Depois falaram sobre os preços dos tomates e sobre como a vida naquela cidade infernal com-plicara-se muito depois de todos aqueles anos com o mesmo prefeito – ainda bem que se podia, mesmo assim, confiar na democracia. Poderia atravessar agora a pequena rua em que tantos transeuntes se debatiam, mas preferiu esperar. Dona

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Verônica houvera partido. Dr. Rivero também partira já há algum tempo. De repente, olhou em volta: não havia ne-nhum conhecido seu ao alcance dos olhos. Engraçado, às vezes, imaginar-se estar em um lugar completamente estra-nho de qualquer outro que estivera; acompanhar atenta-mente o rosto de todos aqueles que passam à sua volta e per-ceber-se num mundo onde todas as coisas se dispersam com a mesma facilidade que um monte de folhas secas varridas pelo vento. Sentir-se estranho, então, e definhar diante de toda a sua própria estranheza. Definhar-se completamente para, só assim, reconstruir-se em uma nova existência. Mor-rer é isso? Perguntava-se Cristiano: seria essa mesma a sen-sação de estranheza que temos quando se morre?

Cristiano era capaz de compreender, como ninguém, a natureza de qualquer ser humano. Conseguia permanecer horas a fio ouvindo apenas o que todos os outros que viviam à sua volta teimavam em lhes falar quase cotidianamente – todas as suas impressões e medos do que a vida vos reserva-va.

E, por isso, ouvia Dr. Rivero e ouvia também muito atentamente Dona Verônica reclamar-lhes o preço dos to-mates; seria essa a sua característica fundamental que fizera Ulisses apaixonar-se assim tão rapidamente por Cristiano?

Ulisses sempre preferiu falar que ouvir, sempre esteve entregue a esse modo de vida – ao modo de vida daqueles que, muito rapidamente, revelam para os outros o seu pró-prio espírito. “Mal conheço o meu próprio espírito, dizia

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sempre a Ulisses, enquanto passava a mão sobre os seus ca-belos que mais pareciam estourar de tão castanhos, talvez você próprio, Ulisses, conheça-me até melhor que eu mes-mo”.

Ulisses deleitava-se com as considerações complicadas que quase sempre Cristiano era capaz de utilizar em seus discursos, ou mesmo em conversas simples, informais.

“Talvez por isso ainda estejamos juntos, dizia Ulisses: atrai-me muitíssimo tudo o que, para mim, é desconhecido”. Cristiano sorriu. “Mas não quero que pare de mexer em meus cabelos”, disse Ulisses voltando à sua leitura noturna, enquanto estavam debruçados sobre o enorme sofá. De re-pente, o sono: a cabeça suavemente inclinada para o lado, os olhos profundos, até que deixa cair o livro aberto:

"Sumir-me-ei entre a névoa, como um estrangeiro a tudo, ilha humana desprendida do sonho do mar e navio com ser supérfluo à tona de tudo."

Pensou: poderia voltar à padaria e comprar mais alguns pãe-zinhos. A ideia de ir à padaria sempre o acalmava, então, quem sabe, Cristiano não se sentisse um pouco mais tran-quilo talvez diante de todos aqueles outros que, como ele, esperavam no balcão o atendimento. Segurou entre os dedos o jornal do dia e caminhou lentamente ao longo da pequena mercearia que compunha também a própria padaria. Obser-vou todos aqueles objetos enfileirados adequadamente nas

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prateleiras, o selo com os preços geometricamente colocados na mais perfeita organização que se é possível algum ser humano possuir.

“Certamente o Seu Mendes organizara pessoalmente toda aquela prateleira, pois não havia na cidade homem mais organizado que ele, pensou, talvez por isso ainda exista e tenha crescido tanto a pequena mercearia que ele houvera herdado do pai”. Tomou na mão um pequeno enlatado de vidro: as ervilhas talvez estivessem frescas. Observou o inte-rior do produto – talvez a pessoa que tenha trazido até a pequena mercearia do Seu Mendes aquelas ervilhas ame, assim como Cristiano, tão estupidamente, alguém nesse mundo. Tomou, no milésimo de segundo próximo, um sus-to enorme com aquela pessoa que o observava atentamente.

Seu Mendes! “Que susto o senhor me pregou! Por pou-co pensei ser um desses pequenos assaltantes que vivem aos montes espalhados na cidade”, disse Cristiano. “Esqueceu-se de alguma coisa, meu jovem? Perguntou Seu Mendes cordi-almente, não era minha intenção assustá-lo, mas há pouco estivera aqui comprando queijo e agora o vejo perdido dian-te de um pequeno pote de ervilhas”, continuou ele sorrindo.

“Sim, foi isso, completou Cristiano: pensei em comprar mais alguns pãezinhos e tentei lembrar se não faltavam ervi-lhas em casa”, disse ainda sem jeito. Pretendia cozinhar esse final de semana, já que não havia mesmo nada por fazer e todos os compromissos profissionais estavam já resolvidos. Seu Mendes concordou com Cristiano, disse-lhes que era

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mesmo uma excelente ideia cozinhar; que aquilo fazia muito bem ao espírito e era um exercício para as pessoas ansiosas e pouco tranquilas. “Estou mesmo precisando relaxar, Seu Mendes, o trabalho tem me deixado muito ansioso; rara-mente tenho tempo para dedicar-me às coisas que me são mesmo importantes, como a cozinha, por exemplo”.

Cristiano adorava a sua incapacidade de sair de uma si-tuação embaraçosa. Seu Mendes fingiu acreditar naquela história absurda: sabia que o rapaz era incapaz de fazer o prato mais simples que existisse, mas, mesmo assim, deixou-o à vontade despedindo-se.

Antes, no entanto, de sair da padaria, observou mais uma vez a rua movimentada.

E se preparasse mesmo algo diferente para o almoço? Ulisses elogiara sempre os pratos feitos com pescados...

Poderia comprar um desses e tentar preparar um almo-ço diferente. Seu João poderia lhe recomendar um prato fácil de fazer, com uns pescados já quase prontos, afinal, há tan-tos anos ele trabalhava com isso – e seu cheiro insuportável, mas sua enorme gentileza. Todos os cheiros se misturavam naquela pequena aglomeração, na verdade. É possível, pen-sou Cristiano, distinguir, no entanto, entre todos esses, o cheiro tranquilo de eucalipto. Lembrava-se, todas as vezes, de quando, na infância, ia para a fazenda no interior repleta de eucaliptos; e, por isso, agora, mesmo em circunstâncias tão diferentes daquelas em que viveu quando criança, o per-fume tranquilo do eucalipto lhe soava ainda mais intenso

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diante da memória que levava consigo das tardes tranquilas correndo ao redor daquelas árvores enormes – que nem mesmo pareciam ter fim – diante de Cristiano tão pequeno e inseguro.

— Viver requer coragem, disse Cristiano a Ulisses. Buscar, sem cessar, a felicidade mesmo em sua forma

mais bruta requer a coragem de um exército em plena guer-ra. A coragem necessária para lançar-se ao que efetivamente o fazia feliz, a coragem de compartilhar sua vida por inteiro era o que mais fazia Ulisses desacreditar na ideia da própria felicidade. O amor nunca o libertaria. O amor, tal como ele conhecera já desde muito pequeno, jamais o libertaria da-quela sua condição humanamente frágil. De que modo po-deriam se entregar um ao outro – de maneira tão própria – sem, no entanto, sentirem-se acuados diante das impossibi-lidades que aquela paixão súbita causava?

A tarde explodia em céu azul, completamente despido de nuvens – muito comum na cidade. Alguns pássaros pou-savam, de quando em quando, em volta do pequeno riacho límpido e parado, saltavam tranquilos, tocavam com o bico o espelho de água quase transparente e lançavam-se subita-mente ao voo enorme. Os carros sempre tão apressados atravessavam a avenida ao lado parque, desaparecendo den-tro da cidade cinza. Cristiano esteve sempre muito ligado a essas coisas relacionadas à natureza: achava muitíssimo inte-

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ressante como os pássaros costumavam dormir nas árvores espalhadas ao longo das ruas e avenidas, o modo incomum que eles, já de madrugada, enquanto o dia amanhece, acor-dam desabrochando um canto alegre, repleto de vida; depois lançavam-se ao perigo no voo e nos observavam do céu aberto: não poderia existir sensação mais sublime que sentir o vento forte rebentando contra as penas minúsculas de suas asas, enquanto se atravessava o espaço infinito. Era mesmo incrível como todas aquelas coisas tão naturais – o voo de um pássaro quase invisível, o balanço tranquilo das águas com o vento fresco, as folhas desabrochando e lançando-se ao solo vivo da terra – era mesmo incrível como todas aque-las coisas continuariam a existir – tal como sempre foi desde o início da eternidade – e, agora, Cristiano finalmente acompanhado de uma alma completamente inteira e sua, compartilhando consigo a grandiosidade de suas vidas. E por mais que chegassem verões caudalosos ou invernos de-sabando em chuvas sem fim, nada o desconsolaria, pois, o que esperava desde muito cedo, mesmo quando ainda era um adolescente, finalmente havia se concretizado: estar ao lado de alguém que o acolheria por toda sua vida era mesmo um presente grande.

— Coragem, por exemplo, de assumir o que somos, dis-se ainda.

Sentiu, então, uma palpitação forte em seu coração, a possibilidade de qualquer resposta negativa de Ulisses era, para Cristiano, uma situação desoladora. Tinha inúmeros

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medos ainda, desde quando era uma criança correndo atra-vés do corredor imenso do apartamento da avó, e mantinha – incrivelmente – certos receios que nem mesmo a presença segura da sua mãe era capaz de evitar. Cristiano, no entanto, não poderia continuar levando a sua vida daquela maneira, escondendo para quase todos à sua volta aquilo que ele ver-dadeiramente era: precisava-se lançar ao grande abismo que estava sendo a sua vida e somente a coragem necessária a quem vive poderia lhe lançar adiante. Ulisses precisava tam-bém dessa mesma coragem a que Cristiano tanto se referia.

— Talvez a maneira com que você tenha levado a sua vida ao longo desses anos tenha sido mais coerente, disse Ulisses.

— Não existe apenas uma forma coerente — respondeu Cristiano.

E falava sobre as inúmeras formas de vida possível, so-bre como nunca era, verdadeiramente, tarde para se tentar a felicidade plena. Dizia que, desde muito cedo, aprendera a pedir muito pouco da vida e, por isso, era exatamente o que dela ele esperava: muito pouco – a tranquilidade de um apartamento enquanto a tarde morria na cidade, o cheiro forte do café no começo de noite e, por fim, televisão e co-bertor. Obviamente todos aqueles planos mantinham tam-bém a presença silenciosa de Ulisses. Cristiano o amava. Ulisses sorria diante daquela consideração – tentava conter-se, controlar as sensações que nunca, em toda a sua vida, fora educado controlar. Depois segurava uma folha seca e

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muito pequena entre os dedos, deixava-a para que o vento a levasse – a brisa forte que fazia naquela noite era já o anún-cio do verão que estava por vir. E continuava sorrindo, co-mo se aquela fosse a maneira mais coerente de manter-se inteiro diante dos planos que Cristiano construíra para si. “Ulisses, preciso te dizer que desde a última vez em que nos vimos – ao longo desses meses todos em que temos nos en-contrado, dizia ele – não tenho pensado em absolutamente nada senão na vida a dois que podemos construir juntos”. Ulisses se sentia tal qual um animal selvagem, prestes, quem sabe, a experimentar o amor – essa prisão.

Uma criança corria sozinha no parque, era possível ou-vir o barulho das folhas secas quebrantadas sob seus pés.

Enquanto a tarde desmoronava no horizonte, acenden-do todas as luzes da cidade, o parque aos poucos se esvazia-va, Cristiano voltou-se logo para o apartamento, foi deitar-se para que a manhã seguinte viesse. Acordou, no entanto, de madrugada: a janela grande do quarto aberta, o coração palpitando feroz. Olhou a cidade adormecida e silenciosa: Ulisses fazia parte deste oceano imenso de casas e prédios, pensava.

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Certo de que as ruas da cidadela são tão curtas quanto as próprias estradas que quase sempre levam a lugar algum, ainda assim as pessoas caminhavam meio apressadas como se um pedaço qualquer de urbanização os assolasse e aquilo lhes pesasse como o fardo maior de toda a sua existência. Mesmo nas ruazinhas, estreitas e mal iluminadas, refletindo ainda os retratos refratários das teimosas luzes escassas, não era de forma alguma concebível que estendessem o braço um ao outro.

A tarde desdobrava-se sob uma imensa escuridão tipi-camente daqueles meses de fevereiro quando o verão anun-ciava a sua partida e as águas intensas derramavam-se, es-correndo sobre o asfalto irregular e frio, atravessando as pedras várias que pairavam junto aos galhos mortos e suas folhas. Pararam frente à uma loja dessas muito pequenas e extremamente arrumadas, com aquela infinidade de coisas tão miúdas para preencher certo vazio que havia em todos

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os lares, espiaram uma vez mais a vitrine pouco arruma – incrível toda aquela gente e o seu péssimo gosto para arru-mação de vitrine, queixava-se Cristiano sob o olhar compla-cente de Ulisses que o observava calmamente sorrindo-lhes meio de canto, como se não o quisesse mesmo oferecer qualquer centavo de ousadia. Depois, pousava novamente a sua atenção à vitrine realmente pouco arrumada enquanto o frio escorria pelas ruelas, atravessando as árvores distantes, ultrapassando os tetos baixos das casas. As mãos eram man-tidas no bolso da calça que Cristiano mesmo lhe dera algu-mas semanas depois de conhecerem-se. De repente, enquan-to atentava-se à vitrine e o seu vidro imenso, parou por um instante o seu pensamento e passou a observar aquele objeto mecanicamente, como se quisesse mesmo desvelar as entra-nhas do que estava para além do próprio vidro quando este era capaz de captar a natureza fria e cinza da cidade naquela tarde nublada de fevereiro toda rodeada de pessoas apressa-das que atravessavam as ruelas, descendo e subindo nas cal-çadas, quando necessário. Tudo agora, aquele universo do qual fazia parte, as crianças correndo por entre as pessoas que passavam também por ali, um vendedor ambulante que carregava uma mala pesada, um casal extremamente jovem de mãos dadas e sério. O reflexo que lhe proporcionava o vidro tornada tudo aquilo meio fantasmagórico, penetrável, distante da sua natureza concreta e real.

A loja se encontrava numa pequena esquina que, na verdade, formava um ângulo meio agudo, quase reto, entre

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as maiores avenidas que ali havia e, por isso, fora possível Ulisses perceber todo aquele movimento que perpassava a espessura lisa e fria do vidro. Cristiano o permitia, mesmo sem poder tocar-lhes as mãos, como tanto quisesse, ele o permitia que se entregasse aos mais variados devaneios, até porque deveria ser muito difícil para Ulisses acostumar-se a uma vida completamente diferente daquela que ele o manti-nha na capital, regrada às mais dificultosas passagens que se pode conceber.

De repente, Cristiano permanecia um pouco imóvel, como se toda aquela estrutura tão próxima da sua mais ín-tima natureza fosse permissível aos seus mais secretos dese-jos. O casal que agora atravessava a ruela, subindo sorratei-ramente a calçada e passando por entre Cristiano e Ulisses, meio à vitrine que refletia todos aqueles acontecimentos tão banais, era cinza, triste e seco. Todas as suas formas pareci-am já previamente estabelecidas e o preenchimento do espa-ço anteriormente calculado para a vida de cada um deles talvez não fosse, de verdade, o que os fazia mesmo felizes. Mas ainda assim eles enfrentavam as desventuras a que todo ser humano está sujeito quando se insere nesta coisa doida que é a nossa própria realidade. A menina, extremamente jovem e morta, observava Cristiano com o mesmo olhar complacente que lançara segundos antes Ulisses, ambos pa-rados frente à vitrine na esquina da loja sobre a calçada, e enquanto os observava, Cristiano sentia que assim como todas as outras pessoas que passavam também por ali, a me-

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nina dura e seca também concordava com todos e dizia em pensamento que pessoas como eles – parados de pé frente à vitrine – não deveriam mesmo sob nenhuma hipótese exis-tir. A neblina grossa apagava o horizonte que permanecia indiferente e distante até que, de repente, uma revoada de micro gotículas de água gélida era derramada sobre todos os que estavam na rua.

Ainda que todos negassem a sua própria existência, Cristiano sabia o quanto era necessário sobreviver a toda aquela indiferença generalizada. Era tão difícil, no entanto, permanecer indiferente àquela repulsa evidente, a essa coisa verdadeiramente absurda que era o incômodo dos outros quanto à sua felicidade mais sincera. Ulisses observava agora os gestos distraídos de Cristiano que mais parecia ter se des-ligado do mundo real e se lançado àquela coisa doida que era o seu universo particular e intransponível. “Pensei que quisesse entrar na loja e sair um pouco dessa garoa fina”, disse Ulisses.

O impacto frontal com que recebeu a fala de Ulisses o absteve de qualquer movimento cego autônomo e artificial. Seus olhos aparentavam um quase choro e as mãos trêmulas ele tentava esconder no bolso grande do casado marrom que comprara na última viagem à capital. Enquanto respirava, era possível sentir um vento frio atravessar o seu pulmão, rebentar todo o seu corpo numa frieza quase mesmo sobre-natural, até expelir o pouco ar quente que lhe restava ainda na garganta e no olhar.

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“Façamos assim”, respondeu ele enquanto retomava o ritmo natural das coisas, “vamos à casa de Emanuel, logo ali”.

Os passos meio largos de ambos se misturavam a um ralo silêncio, até perderem-se completamente na atmosfera melancólica que pairava sobre a cidade naquela tarde de fevereiro. Havia ainda na rua uma senhora muito sequinha carregando um balde imenso sobre a cabeça, e entre eles tinha um pedaço pequeno de pano florido que ela usava para que o peso não a atingisse assim tão diretamente, mas era impossível que aquele peso grosso, desumano, não a machucasse. Era mesmo impossível que ela pudesse sair daquele instante como se não o estivesse vivido e Cristiano bem o sabia de suas limitações porque era uma velha sequi-nha e frágil que mais carecia de um abraço e um afago numa tarde como aquela tão gelada. Ele tentava a todo custo ser indiferente à toda a dor alheia, mas aquilo era tão impossível que nem mesmo ele sabia como livrar-se do sentimento de impotência que o assolava desde já há tantos anos. O modo como Cristiano encarava todas as dores e fragilidades hu-manas não era, sob hipótese alguma, digno de qualquer ad-jetivação.

A chuva parecia aumentar ainda mais, junto com a neblina densa que se condensava pouco a pouco, transfor-mando-se numa nuvem grossa que encobria mesmo poucos metros à frente daqueles todos que passavam por ali. Passa-ram por uma vidraçaria que empilhava uma série de pedaços

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de sabe-se-lá-o-que no carro grande, inteiramente apropria-do para aquela espécie de serviço. Mais uma vez era possível, mesmo diante dos passos largos que Ulisses teimava dar até que chegasse na casa de Emanuel, era possível observar-se refletido nos pedaços imensos que pairavam frente à vidra-çaria e, enquanto lembrava da vitrine de há pouco somada aos reflexos meio distorcidos de agora, Ulisses imaginava que aquilo só poderia mesmo ser uma piada de muito mau gosto.

— É melhor que apertemos o passo, Cristiano. Cristiano concordara silenciosamente apenas com o

balançar positivo da cabeça enquanto a chuva aumentava. Pararam diante da calçada, já na casa de Emanuel, e

tocaram a sinaleira uma, duas vezes seguidas para que este os atendessem rapidamente. As escadas eram imensas e, até que este chegasse para abrir o gradeado que separava a resi-dência da parte externa, na rua, era mesmo necessário um punhado de segundos – poucos para uma tarde quente e ensolarada, mas abundantes para quem o aguarda meio àquela chuva não tão forte, mas fria o suficiente para gelar qualquer coração. Tocaram novamente a sinaleira, três, qua-tro vezes e Emanuel apareceu lá do alto, adiantando-se para abrir o gradeado sob a neblina misturada à chuva que caía sobre todos os que se aventuravam, por ousadia ou necessi-dade, a sair do interior de suas casas naquela tarde.

Enquanto subiam as escadas, agora com o gradeado já aberto, eles ouviam ali perto o trotar e uma carroça levada

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por um senhor muito atento à sua atividade, mas pouco preocupado com o que havia em volta. O mais engraçado naquela cena era, inclusive, a nenhuma atenção dada pelo senhor à chuva que caía agora um pouco mais intensamente. Ulisses logo entrou na casa, atravessando a sala com os sapa-tos molhados e retirando o casaco grosso e Cristiano, man-tendo o seu antigo hábito de muito observar todos os que estavam à sua volta, achou curioso e engraçado a pouca li-gança dada pelo velho ao frio e à chuva que lhes atingia tão diretamente e permaneciam sobre a cidade.

— Como pode aquele homem nem mesmo se impor-tar com a chuva e o frio que o assolam assim tão diretamen-te? Perguntou-se Cristiano.

O velho tão fraco e preto, somado à própria senhora também frágil com o balde pesado sobre a cabeça mais pare-ciam para Cristiano uma ferida mole aberta.

A casa de Emanuel era exposta e fria, e este os convi-davam para que entrassem rapidamente e tirassem aqueles casacos molhados, pois o frio que assolara a cidade não o era visto com tamanha rigorosidade há muito tempo. Sua mãe não estava – havia saído para acompanhar mais uma daque-las intermináveis reuniões com as amigas para tratar de qualquer assunto ligado à igreja e suas infinidades de tarefas – por isso, estavam ali todos muito à vontade sem o olhar curioso da Sra. Haggem. Sentaram-se no sofá grande da sala, enquanto Emanuel preparava um café muito forte e quente na cozinha e voltava vez ou outra para a sala onde estavam

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Cristiano e Ulisses para comentar rapidamente algum largo acontecimento ora engraçado, ora melancólico sobre todos os que frequentavam as mesmas reuniões e os mesmos espa-ços que eles. Em seguida, sentaram-se todos nos sofás imen-sos, sobre o tapete gordo e quente que preenchia a sala ex-tremamente iluminada, mesmo numa tarde como aquela toda cheia neblina. Da janela, era possível observar o hori-zonte todo ele preenchido de um branco pastoso e frio que o entorpecia.

Havia algumas árvores distantes, sobre o horizonte, is-so era ainda possível ver mesmo naquela tarde, e em meio àquelas arvores tantas que encobriam tudo de um verde azu-lado quase inacreditável aos olhos de quem vê, também era possível observar algumas casas muito isoladas umas das outras, com suas estradas tão longas e estreitas, com seus postes já acesos mesmo tão cedo – mas a neblina os obriga-vam – e a solidão de todas aquelas paredes ínfimas que sepa-ram o interior das residências, onde era possível ter vida, e a imensidão verde e branca que jazia fria e terna ao redor. Para Cristiano, aquela era uma paisagem já muito conhecida dos tempos de outrora, quando ainda era adolescente.

— Mas há tanta violência agora por entre essas regiões do interior, disse Ulisses a Emanuel que voltava já com as xícaras quentes, repletas daquela substância esfumaçante que mais parecia poesia negra em sua fase líquida. Cristiano permanecia ainda com o olhar fixo na janela, como se ob-servar apenas o que havia por detrás do horizonte e suas

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árvores e casas, fosse já o suficiente para que ele absorvesse toda aquela forma de vida.

Não seria possível ver, naquela tarde, o sol que logo há pouco deveria se pôr e dar lugar à noite imensa que faria logo em seguida, com seus cheiros frios, intensos e o cricri-lar dos grilos constante.

Então Emanuel começou a falar sobre as inúmeras di-vagações que lhe assolavam o corpo e o espírito. Seria mes-mo possível permanecer indiferente àquela toda ausência que enfrentava desde os tempos de outrora quando rompera a antiga amizade de Marco Aurélio e agora lançava-se livre a qualquer aventura que por acaso lhe aparecesse? Ulisses es-tava já cansado daquela mesma conversa, sabia bem Cristia-no, mas este tentava permanecer ainda assim muito atento a tudo que lhe era dito por Emanuel.

Da escada, era possível ouvir os passos quase inteira-mente silenciosos de Sra. Haggem que subia vagarosamente os degraus perguntando logo se havia alguma visita em casa, pois não era comum deixarem o gradeado aberto como este estava; em seguida, reclamava já do frio intenso que fazia e de como as amigas da igreja eram mesmo umas bobas de saírem de casa sem agasalhar-se devidamente ou apenas com um guarda-chuva que lhe encobrisse e protegesse-as dos intempéries da chuva que permanecia a cair sobre toda a cidade, inclusive em seu interior, nas regiões mais verdes preenchidas de árvores escuras e densas. Em seguida, ouvia-se os sapatos roçarem o tapete da frente, como se ela estives-

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se mesmo com força tentando limpá-los antes de adentrar a sua própria residência.

— Soube que dona Inês precisou se hospitalizar para tratar do pâncreas, gritou lá da frente Sra. Haggem para Emanuel que prontamente respondeu: “Eu já soube. ”

Enquanto terminava de falar, Sra. Haggem foi logo en-trando em sua casa, atravessando a área aberta, na varanda, seguindo pela sala primeira e abrindo a porta do seu quarto, onde pendurou o casaco recém utilizado. Depois seguiu para a outra sala onde estavam todos e surpreendeu-se com a visita inesperada. Estava ainda ofegante da longa caminhada que houvera dado e, por isso, fez-se muito cordial, à medida do possível, aos rapazes que estavam já ali.

— Oh, Cristiano, há tanto não o vejo, disse ela aper-tando-lhes fraternalmente as mãos.

— Como tem passado, Sra. Haggem? Respondeu Cris-tiano enquanto voltava-se para o sofá imenso onde estava sentado e aguardava que Ulisses se levantasse para cumpri-mentar também a senhora, mas curiosamente este não o fez.

— Tenho ido muito bem, disse Sra. Haggem enquanto aguardava também que Ulisses a cumprimentasse, mas este esboçou apenas um pequeno sorriso somado a um gesto meio incompreensível com as mãos.

— Minha mãe disse que logo aparecerá para uma visi-ta, continuou Cristiano, diante da necessidade de aparentar-se inteiramente social. “Ela está meio ocupada com o papai, por isso tem saído muito pouco. ”

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Sra. Haggem tirava agora o relógio e algumas pulsei-ras, pousando-os sobre a mobília pequena, enquanto Ema-nuel, voltando-se para a cozinha, falava qualquer coisa justi-ficando não a tê-la acompanhado:

— Café? Perguntou Emanuel subserviente. — Não é possível que você tenha servido este café feito

há tanto para as visitas, Emanuel, sua voz era raquítica e impaciente, e tirava agora o cachecol que ela mesmo o fizera há poucos meses.

— Não está nem mesmo preparado para fazer um café, quem dirá para morar sozinho como tem planejado, disse ainda para Cristiano. “Convença-o de que deixe para lá to-das essas bobagens de ir sair de casa. ”

— Mas é dele mesmo essas ideias, respondeu Cristia-no.

— Por isso mesmo peço-o que o convença do contrá-rio, garoto, disse ela.

— Farei o possível, Sra. Haggem, respondeu. — Aqui está, disse Emanuel entrega a xícara já cheia

para a mãe. — Obrigada, docinho, respondeu ela, e, enquanto to-

mava o primeiro gole, resmungou ofegante: “Como é mes-mo que pretende sair de casa, Emanuel, se você é ainda in-capaz de preparar um mísero café para uma visita que chega assim de repente? ”.

— É apenas uma questão de tempo, mamãe, até que eu mesmo o faça com as minhas próprias mãos! Disse ele rapi-

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damente. Depois, voltou-se em direção aonde estavam os seus dois amigos e sentou-se no sofá, sobre o tapete quente, e disse qualquer coisa inaudível sobre a mãe que jamais con-ceberia que ele partisse dali e a deixasse.

Em seguida, perdurou um silêncio curto. — Não há tanta dificuldade assim em morar sozinho,

disse Ulisses rispidamente mesmo sob os ouvidos atentos de Sra. Haggem.

— Por quanto tempo você o fez, rapaz? Perguntou Sra. Haggem a Ulisses.

— Nunca o fiz, mas sei que não é, respondeu. — Se tudo o que nós achamos fosse mesmo condizen-

te com a realidade, querido Emanuel, tenho certeza que le-varíamos as nossas vidas com muito mais leveza – disse Sra. Haggem sorrindo e tomando um pouco mais de café ainda de pé, diante dos jovens.

— Às vezes é, Sra. Haggem, disse Cristiano. “Muitas vezes as coisas acontecem conforme nós imaginamos. ”

— Outras vezes, não, respondeu a senhora pronta-mente.

— Eu acho muito natural que a senhora o queira assim tão próximo da senhora, mas haverá um momento em que Emanuel precisará se desligar de certas coisas do passado, certos lugares.

— Ainda é muito cedo para que ele se lance a essas aventuras que a vida o guarda, disse ela.

— Não é a senhora quem deve decidir o momento

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exato em que ele deve desligar-se, respondeu Ulisses. Um breve silêncio se fez após esta colocação de Ulis-

ses, e foi possível ouvir todas as coisas que estavam à volta da casa, o silêncio frio daquele fim de tarde esbranquiçado, a dureza e a seriedade das pessoas.

— Estarei na cozinha, disse Sra. Haggem. Seguiu, então, a senhora sozinha até o outro ambiente

da casa onde lá permaneceria até que as coisas se acalmas-sem um pouco na sala e as visitas por ela inesperadas sumis-sem dali. Emanuel estava meio desconsertado, pois mal sa-bia ele sobre qual lado pender.

— Não nos demoraremos, disse Cristiano. A chuva que pairava há pouco sobre a cidade parecia cada vez mais dissipar-se e log escureceria, por isso a necessidade de não mais se demorarem como de outras vezes em que a Sra. Haggem não estava. Emanuel permanecia ainda muito cala-do diante do que acontecera.

— Entendam que ela não o fez por mal, disse ainda o rapaz como se aquela fosse a forma mais significativa de proteger a mãe.

— Pouco nos preocupamos com as intenções de sua mãe, Emanuel, disse Cristiano. “Do contrário: nós a respei-tamos muitíssimo, pois se não fosse por ela você certamente estaria mesmo perdido. ”

— Incapaz de fazer um café, respondeu Ulisses. — Não posso abandoná-la aqui, justamente agora

quando todos os meus irmãos se foram para longe e ela tem

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somente a mim. Ambos terminaram o café e pousaram cuidadosamen-

te as xícaras sobre a pequena mobília que havia no centro da sala, entre os sofás.

— Lembre-se que não é apenas sua essa responsabili-dade, disse Ulisses.

— Não há como deixar de viver a própria vida, de apagar-se por conta do outro, ainda que esta seja a sua mãe, Emanuel, disse ainda Cristiano.

— Compreendo que ela não é a melhor pessoa para quem revelarei todos os meus segredos mais sinceros”, res-pondeu Emanuel. “Não posso, no entanto, me alunar, es-quecer todas as coisas que passamos, eu e ela, por conta des-sa coisa doida que tem se tornado a minha vida.

— Confesso que não o compreendo, disse Ulisses com um ar meio desgostoso e enfadonho. Se não há nenhuma possibilidade que ela o aceita tal como você é.

— ..., mas essas coisas requerem tempo, Ulisses, inter-viu Emanuel. Não posso exigir que ela faça um esforço mai-or do que o que lhe é possível.

— Enquanto isso, você tem tentado fazer um esforço maior do que você mesmo é capaz de fazer, apagando-se completamente.

Emanuel sorriu desconsertado tamanha a violenta sin-ceridade com a qual lhe falara Cristiano. “Tenho muitos planos para este ano ainda, ” tentou responder, “e, por isso, com certeza não me devo demorar tanto assim aqui nesta

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casa. ” — É mesmo muito importante que estes seus planos

sejam logo colocados em prática, disse Cristiano. — As coisas têm mudado tanto, Emanuel, talvez nem

mesmo você tenha se dado conta disso, concordou Ulisses. — Como você quer que a sua mãe o respeite se nem

mesmo você, já homem feito, parece possuir a coragem ne-cessária para respeitar-se?

— Compreendo que cada qual possui o seu ritmo, fa-lamos apenas por atenção e cuidado com o tanto que nos preocupamos com você, completou Ulisses.

— Compreendo, responde Emanuel. Todos foram à varanda e de lá era ainda possível ouvir

os passos próximos da mãe que caminhava pela cozinha de um lado a outro. A chuva de há pouco houvera se dissipado, mas a grossa neblina permanecia ainda mais densa e volu-mosa como se aquelas fossem as próprias nuvens que havi-am se rompido do céu e se espatifado no solo rochoso, duro e frio.

— Quem sabe em breve eu não esteja mesmo prepara-do para deixa-la? Perguntou Emanuel aos rapazes que já se preparavam para sair, pegando cada qual o seu casaco imen-so.

— Ah, Emanuel, desde que o conheci você me tem ta-peado com essa mesma conversa, disse Cristiano observan-do a neblina misturar-se às nuvens imensas que pairavam naquele céu triste, cinza. Emanuel passava uma mão sobre a

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outra, friccionando-as para que elas pudessem aquecer-se frente ao vento gelado que pairava na varanda.

Emanuel sonhara, certa vez, com a mesma casa pe-quena e extremamente aconchegante que Cristiano agora conquistara com Ulisses. Os passos largos diante do corre-dor e as janelas abertas para uma área verde que mais pare-cia ter saído de uma fábula fantasiosa, dessas difíceis mesmo de se acreditar. No sonho, conforme tinha dito o próprio Emanuel, era uma tarde alaranjada, com aquela tonalidade típica de uma tarde prestes a findar-se lá pelas cinco horas. Conforme o céu escurecia, vagas estrelas apontavam distan-tes no céu e Emanuel olhava através da janela da casa a escu-ridão imensa que fazia em volta, mas dessa vez ele não tinha medo porque agora não havia mais porque ter medo, pois ele não estava mais sozinho como nos tempos de outrora. Da janela, uma cabeça apontava, acordada. Observava Ema-nuel e ele nem mesmo sabia de quem se tratava. Ainda as-sim, ele não sentia medo.

Já com as mãos dentro dos bolsos do casaco, Cristiano perguntou: “Você ainda tem tido os mesmos sonhos estra-nhos com aquela pessoa desconhecida? ” Emanuel respon-deu: “Só o tive daquela vez, e todos os outros sonhos dife-renciam-se, mas parecem seguir uma lógica única, como se houvesse em todos eles a mesma necessidade que tenho car-regado desde que Marco Aurélio desapareceu completamen-te. ”

— Sim, sim, disse Ulisses. Era mesmo muito natural

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que aquela necessidade estivesse acompanhando Emanuel até mesmo nos seus próprios sonhos. Cristiano o abraçou ternamente, despedindo-se enquanto Ulisses, mais cordial, estendeu-lhes a mão em cumprimento. Emanuel agradeceu a visita e respondeu que logo logo também apareceria na fazenda onde eles estavam agora. Não era exatamente uma fazenda, dizia Cristiano, apenas uma casa no meio de árvo-res enormes e plantações. O trabalho o consumia muitíssi-mo e, por isso, justificava-se Emanuel, ele estava mesmo em falta com muitos dos seus amigos. Todo início de ano era sempre a mesma coisa: a mesma correria, os mesmos con-tratempos e o frio oriundo de um inverno já muito conheci-do e extremamente rigoroso que assolava todos ali, em espe-cial o próprio Emanuel.

— Mas deve haver tempo sempre para os velhos ami-gos, disse Cristiano. “Ainda mais agora, depois de tantos acontecimentos. ”

Emanuel abriu o gradeado para que eles saíssem. — Espero que não chova mais tanto assim, disse Ulis-

ses. Pelo menos, que não chova até eles encontrarem um táxi que os leve para casa. A rua estava agora bem mais preen-chida de massa humana, pois as pessoas já tinham se acos-tumado às baixas temperaturas que atingiam a cidade, mes-mo ela estando numa região tão quente em outras épocas. Tudo ficava muito úmido, os muros e os telhados das casas, os automóveis e as próprias pessoas que passavam por ali, estava tudo extremamente frio e molhado. Emanuel subiu as

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escadas apressado, acenou, despedindo-se mais uma vez, para o casal que o observava da calçada e meteu-se na casa da sua mãe. Cristiano e Ulisses descia da calçada e atravessa-va a avenida, precisavam achar um táxi antes que a chuva retornasse – e, certamente, ela não demoraria muito para isso. Era mesmo muito estranho que Emanuel se submetesse a todas as vontades da mãe, reconhecera Ulisses, mas nem todos haviam nascido para a vida desregrada que eles vivi-am, respondia Cristiano prontamente, e ambos sorriam. Depois comentavam como era difícil naquela cidade arru-mar um táxi, como todos eles pareciam sempre muito ocu-pados ou sumiam completamente.

— A melhor maneira de conseguir um táxi rapida-mente é não precisar de um, dizia Ulisses com a sua impaci-ência habitual, enquanto Cristiano desprendia um sorriso largo.

— Todos parecem resolver andar de táxi quando faz frio, disse ele.

— Todos decidem andar de táxi quando nós precisa-mos de um, respondeu Ulisses.

— Faz apenas alguns minutos que saímos, não estão demorando tanto assim, disse Cristiano.

Ele então tentou aproximar-se mais, tocar com o pró-prio ombro o casaco grosso em que estava metido Ulisses.

— Há muito o que se aproveitar enquanto o espera-mos, completou ainda Cristiano, e continuavam a caminhar através da avenida, observando novamente as vitrines das

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lojas, os pequenos salões onde todas aquelas mulheres raquí-ticas e anêmicas preparavam-se para sabe-se-lá-o-que. Aos finais de semana era muito comum que todas elas se jogas-sem para a capital, ou mesmo as que ficavam quase sempre tinham alguma festividade ou algum evento a comparecer. As donas de casa arrumavam-se para ficar em casa mesmo, bem sabia Cristiano, preparavam-se todas para mais uma noite serem ignoradas pelos maridos.

Havia uma pequena livraria quase completamente preenchida de seu imenso vazio. Pouco papel para muito menos pessoas.

— Tenho a impressão de que logo todos os nossos cé-rebros atrofiarão”, resmungou Ulisses, “dado o pouco ou quase nenhum uso que temos feito dele.

— Como assim? Perguntou Cristiano, enquanto lan-çava o olhar atento para todas as coisas que haviam à sua volta.

Ulisses respondeu-o sorrindo. — Ora, não é mesmo a lei do uso e desuso que nos

orienta? O pouco uso de um determinado órgão da nossa espécie acaba por atrofia-lo até que este deixe de existir.

— Não entendo como a demora de um táxi o deixa tão aborrecido, respondeu Cristiano, achando graça.

— Estou apenas fazendo uma rápida análise dos fatos que estão aqui postos à nossa vista, Cristiano. Você mesmo percebeu quantos estão no salão de beleza e quantos estão na livraria, não é?

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— Intelectuais também precisam se sentir bonitos, também há para estes mortais o cuidado com a aparência.

— Talvez intelectuais frequentem também, vez ou ou-tra, a única livraria que há aqui na cidade, respondeu Ulis-ses. “E isso quem sabe ocorra até mais vezes que uma ida ao salão. ”

— Não haverá mal algum se o nosso cérebro atrofiar. — Concordo. Levaremos a vida com muito mais leve-

za, não? Cristiano olhou para Ulisses. Era tão comum ele se

utilizar daquelas perguntas retóricas como se este fosse o mecanismo para mantê-lo ainda mais inserido na conversa saboreando a sua acidez típica das ironias que somente Ulis-ses poderia ser autor. Cristiano o achava bonito mesmo nes-sas horas em que Ulisses aparentava transbordar através da sua completa ausência de cordialidade e, tal qual uma nava-lha na carne, emanar, rasgante, suas mais duras opiniões. Eram nessas horas que as mais saborosas piadas lhes saíam da boca. Ulisses se sentia inteiramente satisfeito com os pró-prios comentários, exercitava o seu poder crítico extrema-mente essencial vivendo em uma cidade como aquela: muito bonita, por sinal, porém fútil. Ele olhou para Cristiano e percebeu o quanto este o achava esnobe e debochado. Aque-le talvez fosse o seu maior charme e Ulisses se sentia feliz também em divertir Cristiano, pois este era sempre tão sério e duro, como se a sua profissão estivesse modelando o pró-prio modo de ser e de agir em casa.

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Neste momento, no entanto, finalmente um táxi parou diante dos dois e eles rapidamente entraram no veículo co-mo se lhes houvesse chegado, depois de toda aquela espera, a sua própria salvação. O coração de Cristiano palpitava de tanta alegria por ter aparecido enfim aquele senhor bondoso que os vira no ponto aguardando em meio ao frio intenso que fazia. O senhor os observou mais uma vez e perguntou prontamente para onde eles desejavam prosseguir. Ulisses, sempre muito prático, respondeu-o objetivamente e voltou-se para Cristiano, enquanto este acomodava-se no banco, arrumando o seu casaco.

— Talvez voltemos aqui na próxima semana, disse Cristiano.

Ulisses concordou quase silenciosamente, apenas com um sussurro.

— Precisarei resolver algumas coisas aqui na cidade e, se você quiser, podemos vir juntos para que você caminhe um pouco, tome um ar, respire o gás carbônico ainda que raso daqui. Afinal, o excesso de ar puro deve estranhá-lo muitíssimo, não é?

Ulisses encostou a cabeça no próprio banco do carro – estavam ambos na parte detrás do veículo – e fechou os olhos, como se estivesse prestes a desligar-se do mundo.

— É possível que eu venha, caso seja necessário, res-pondeu.

— Sim, disse Cristiano. — O interior há muito o que oferecer e eu não discor-

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do disso, continuou Ulisses ainda com os olhos fechados. “Mas tudo tem me cansado um pouco. ”

Cristiano mantinha o seu olhar fixo em Ulisses, apenas aguardando que este abrisse os olhos para que ele o compre-endesse inteiramente somente com o olhar. “Não me tenho sentido útil nesses últimos tempos”, completou.

Cristiano permanecia ainda imóvel apenas observando cada palavra emitida por Ulisses e, quando este abriu final-mente os olhos e voltou, aparentemente, ao mundo real, Cristiano sorriu perguntando-lhes por que todas as tardes reflexivas junto aos seus amigos sempre lhe rendiam conclu-sões melancólicas sobre o seu estado atual. Falando assim, tão frágil, dizia Cristiano, ele nem mesmo aparentava ser aquele sujeito tão cruel de há pouco, capaz de sacrificar to-das as mulheres do salão chamando-as de cérebros atrofia-dos.

— Os melancólicos também possuem ainda algum senso crítico, respondeu Ulisses.

— Sei disso, disse ele sorrindo. — Principalmente aqueles que investem o seu tempo

nos afazeres alheios, completou. — Você tem, Ulisses, os seus próprios afazeres. Não se

subestime. Enquanto o automóvel atravessava as poucas avenidas,

desviando dos transeuntes sempre tão distraídos, Cristiano observava, com o mesmo olhar atencioso que mantinha desde a infância, da janela, a tarde desfazendo-se pouco a

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pouco. A palidez daquele dia talvez tornasse também as próprias pessoas pálidas e indiferentes ao espetáculo grande da vida: poucos se importavam com aquelas tantas coisas que aconteciam todas ao mesmo tempo – a neblina grossa, as nuvens e o frio intenso, depois a tarde desafazendo-se. Ulisses permanecia calado, extremamente quieto, vez ou outra fechando os olhos como se estivesse descendo sobre ele o sono grande da morte e, por isso, Cristiano o achava sempre tão divertido e curioso.

— O frio que tem feito esse ano está bem mais rigoro-so que todos os outros anteriores, comentou o senhor que dirigia o táxi. Ulisses abriu finalmente os olhos e logo o res-pondeu.

— Espero que permaneça assim ainda por muito tem-po, afinal, não é sempre que temos a cidade tão bem preen-chida com esta neblina e este frio quase europeu.

Cristiano não tinha a mesma paciência que Ulisses pa-ra mostrar-se tão educado e cordial com os desconhecidos que vez ou outra tentavam qualquer contato.

— Logo é possível perceber que o senhor não é desta cidade”, continuou o taxista, “senão o senhor haveria de lembrar-se do frio que fez há dez anos.

— O senhor é mesmo um excelente observador, disse Ulisses.

— Vivo aqui há muito tempo, por isso posso reconhe-ce-lo, entende?

— Todas as pessoas que vivem aqui parecem estar aqui

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ou fazer parte destas terras há muito tempo, não é mesmo? Perguntou Ulisses.

O senhor ficou um tanto desconsertado, talvez o esti-vesse atrapalhando com aquela conversa meio insossa. “Es-pero não o ter incomodado, perguntei apenas por perguntar, sem jamais creditar qualquer intenção. ” Ulisses prontamen-te respondeu: “Não há problema algum. ”

Depois, certo silêncio atravessou o interior de todo o veículo. Qualquer clima de cordialidade havia se dissipado e Cristiano pouco se importava, pois nunca foi de aproximar-se daquela maneira de estranhos. No entanto, bem sabia ele, Ulisses logo arrumaria alguma conversa para repreender o mal-estar que houvera ali sido posto. Ele sempre fora uma sumidade em fazê-lo. As ruas da cidade ficaram para trás e agora somente as estradas sem calçamento algum os acom-panhavam. Por sorte a chuva não causara nenhum estrago nas estradas, como era de costume. Uma árvore imensa pai-rava caída sobre um pequeno cercado de madeira e arame farpado – o vento era ainda mais forte naquela região e ár-vores antigas como aquela não suportavam por muito tem-po o início das estações chuvosas.

— O senhor certamente nasceu e foi criado aqui por esta região mesmo, disse Ulisses ao motorista.

Cristiano agora divertindo-se, “salve-nos! ” — Nasci e me criei aqui nesta região, sim, senhor. Mo-

rei fora alguns anos, perdi parte da minha vida em São Pau-lo, mas consegui voltar para o berço de onde nunca havia de

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ter saído, disse ele. O motorista era um senhor franzino, de longo bigode e pouca barba, com cabelos excessivamente grisalhos. Era provável que ele conhecesse Cristiano, mas este jamais perguntaria qualquer coisa, pois preferia ouvir o diálogo entre Ulisses e o taxista. Depois de algum tempo, era possível ver adiante já a fazenda apontando no horizonte.

Cristiano permanecia imóvel e, enquanto a conversa estreitava-se cada vez mais, preferiu fingir que estava con-centrado observando a paisagem. Ulisses era sempre tão cordial com todos os desconhecidos que apareciam de quando em quando – sabia se relacionar bem, ainda que fosse ácido com as pessoas quando necessário. O táxi parou na porta da fazenda. Ambos desceram e Ulisses acertou com ele o pagamento da corrida. Cristiano caminhava já apressa-do para a porteira enorme, seguia pela pequena estrada de terra, já dentro da sua propriedade, que dava para a varanda enorme do casarão. Ulisses o acompanhou, enquanto Cristi-ano procurava o seu molho de chaves para abrir a porta grande da frente. “Estava aqui em um dos meus bolsos. ”

Depois de apalpá-los um a um, Cristiano já irritado percebera que havia perdido todas as suas chaves. Ulisses seguiu pela varanda, foi até um dos vasos das plantas e reti-rou uma chavezinha, depois continuou penetrando a casa por uma porta pequena que havia nos fundos, enquanto Cristiano resmungava enfático: “Diabos! ” Àquela hora a noite parecia bem mais confortável e um ven-

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to frio escorria através do horizonte fazendo balançar os antigos galhos que se esparramavam aos montes ao redor da casa e também, com essa mesma rajada de vento, moviam-se as cortinas, perante a janela. Havia uma sensação meio ab-surda diante do tempo livre que dispunham ambos, um para o outro. Não era mesmo nem um pouco comum o que esta-va agora acontecendo e essa talvez fosse a primeira indicação que a vida não era mais como nos tempos de antes, em que os afazeres diários somados a todas as obrigações sociais tomavam tanto de cada um deles.

Na geladeira, Cristiano colocava o que sobrou do jantar dentro dos pratos muito bem arrumados e cobertos todos eles com um plástico transparente e fino. “Parece que sessou toda a chuva finalmente”, disse.

Ulisses permanecia sentado sobre a cadeira, diante da mesa quase toda vazia, levantando um pouco a cabeça vez ou outra para ver melhor o estalar dos galhos diante da jane-la fechada de vidro.

Observar como era sua vida, desde que Ulisses adentrara, de repente, os porões úmidos e frios de sua existência, era o mesmo que uma criança – quando esta tentava, inútil, re-lembrar seu passado de útero. Mergulhado na placenta, o corpo vivo e já pulsante de Ulisses era um milagre. Os olhos meio abertos, as mãos pequenas, frágeis, e os órgãos micros-cópicos. De repente, movimento. Era já a vida, em seu esta-

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do mais bruto de origem. Hoje, Ulisses já homem – trans-bordando toda sua sexualidade assim tão livremente – hoje, Ulisses com sua voz grave, ressonante. O som da sua risada, o peso dos seus passos: impressionante o modo como a vida encontra sempre os seus meios para que todas as coisas aconteçam da maneira mais própria.

Enquanto caminhava, naquela noite, anos atrás, rumo ao seu encontro com Ulisses, Cristiano sentia o modo irre-gular como as pedras da rua sobrepunham-se umas sobre as outras e empurravam os seus pés para cima, com força. De repente, parou um pouco: observou o pequeno restaurante todo ele já repleto de desconhecidos que se espalhavam lar-gamente diante das inúmeras mesas, diante do pouco espaço que havia ali. O Líder era mesmo um espaço concorrido para toda aquela gente que, quase sempre, espremia-se entre as mesas e cadeiras espalhadas diante do Largo. As mulheres sempre tão doces e requintadas que cruzavam as pernas, e mexiam levemente no cabelo; os homens um pouco mais abertos, mas carregando ainda certo ar de leveza e graça dentro daquelas roupas pouco confortáveis que, mesmo assim, eles insistiam usar.

Cristiano parou diante da porta do restaurante, procu-rou rapidamente qualquer lugar confortável em que pudes-se, com calma, conversar com Ulisses. Enquanto o esperava, uma súbita felicidade tomava conta de todo o seu espírito, depois mexia impaciente o cardápio à sua espera, Cristiano tentava não pensar em todas as coisas que estavam ainda por

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acontecer enquanto Ulisses permanecesse em sua vida, en-quanto eles pudessem compartilhar aquele sonho, ainda que, para Ulisses, as coisas fossem caminhando – ou, pelo menos, deveriam caminhar – de um modo um pouco mais lento, pois havia ainda o receio e a própria desconstrução da sua sexualidade. Mesmo assim, ainda que para Ulisses tudo caminhasse de modo um pouco mais lento, certamente Cris-tiano abdicaria de toda a pressa e urgência que sempre man-teve de existir.

Cristiano seria mesmo capaz de abdicar de todas aque-las contagens regressivas e, com isso, aguardaria o tempo que fosse necessário para que todas as coisas acontecessem do modo exato que ele planejara para ambos. Toda a sua felicidade estava já planejada ao lado de Ulisses.

Respirou um pouco antes de seguir para a mesa vazia mais próxima. Respirou profundamente como se aquela fosse, verdadeiramente, a sua hora final. Depois abriu os olhos, o mundo continuava à sua volta.

A mesa era pequena, preenchida com uma toalha qua-driculada cuidadosamente bordada sob a toalha transparen-te maior. Havia ainda algumas flores sobre a mesa, além do cardápio. Caminhou lentamente até poder sentar-se de ma-neira confortável e, assim, acalmar um pouco toda a sua impaciência.

Agora estava somente à espera de Ulisses. Quanto tem-po houvera durado aquela noite? Impossível concentrar-se na própria simples contagem. Era incrível o quanto aqueles

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instantes pareciam tão petrificados em sua memória... o quanto, mesmo num passado distante, aquela noite ainda parecesse permanecer no presente.

O dia rebentava agora diante da sua janela, Ulisses acordando:

— O que faz aí, Cristiano, acordado ainda a essa hora? — Estava com pouco sono porque ainda ontem à tarde

dormi por algumas horas e, com isso, acordei assim cedo. O café já posto cuidadosamente sobre a mesa fria, gros-

sa. A mão quente de Ulisses tocando o ombro esguio de Cristiano e o dia amanhecendo diante da janela. Ulisses o beijou no pescoço como em agradecimento, tocou-lhes a cintura e sentiu a presença forte de Cristiano sobre todas as coisas em sua vida.

Ulisses, em seguida, sentou-se diante da mesa farta: sen-tia-se meio envergonhado diante de toda aquela disposição de Cristiano, mesmo após esses anos um ao lado do outro. Preferiu não pensar. Beijou-lhes novamente em agradeci-mento.

A cada gesto de Ulisses, Cristiano parecia desconfiar ainda mais da sua própria realidade. Sentia como se todas as coisas existentes no mundo estivessem, de certa forma, des-conexas das suas próprias funções. O café quente diante da mesa – assim como fora outrora, nos dias anteriores –, os anos que seguiam indiferentes, o casamento com alguém que, de verdade, fazia o seu coração pulsar de maneira mais forte e viva: era mesmo possível que a sua vida toda seguisse

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de tal maneira como o ritmado som de um instrumento afi-nado e contínuo? Cristiano se assustava diante da possibili-dade de, em algum momento, o silêncio que lhes é tão pró-prio tomasse uma forma efetiva.

Essa é a maior de todas as grandezas, pensava ele. En-frentar os momentos de mais pura dor e solidão é a capaci-dade que o faz humano e, por isso, diferente de todos os outros animais ditos irracionais que estavam à sua volta. Era possível, continuava Cristiano, reconhecer inúmeros ani-mais irracionais de sua própria espécie – aqueles incapazes de perceber o quanto o fim da felicidade lhes é uma retoma-da para que a vida lhes seja mais densa. Cristiano se sentia desprotegido diante da ausência de Ulisses. Toda a sua vida – ou mesmo a mãe, a tia e a avó – jamais tomariam o mesmo contorno que a presença simples de Ulisses já traçava em sua vida.

Que desespero! Pensava Cristiano. De repente, perceber que Ulisses não mais estaria com ele era uma situação intei-ramente nova. Ainda que, para Ulisses, aquela fosse uma possibilidade quase a zero, para Cristiano jamais deixou de ser uma possibilidade efetivamente capaz de acontecer. Seu coração palpitava feroz, como se em consonância com o próprio coração de Ulisses sentado à mesa diante do café. Uma voz lhes falava – seria isso o que chamam de intuição?

Cristiano jamais movera sequer uma palha afim de que Ulisses – em toda a sua vida juntos – deixasse de contar com essa mesma possibilidade. Cristiano não era do tipo que se

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refazia a cada instante com o intuito de demonstrar para Ulisses o quanto ele era capaz de reinventar-se para uma existência completa e feliz – constantemente renovada. Exis-tia, de certa maneira, algum modo de manter toda aquela mesma forma de vida pulsante e feroz? Algumas dúvidas sempre se mostraram constantes.

A grandeza suprema daqueles que sacrificam todas as coisas na vida para encontrar a felicidade – mesmo em seu estado mais bruto! A coragem que a vida requer é mesmo sobrenatural, pensava Cristiano, e disto ele já tinha consci-ência desde a adolescência quando seguia diariamente para a escola preparando-se para os exames finais rumo à faculda-de e à vida toda que o aguardava tão de repente. Quando saiu do colégio e, enfim, atravessou a fase adulta, Cristiano pensava acerca da primeira coisa que lhe passou pela cabeça naqueles tempos: enfim, a liberdade! Depois, retomava a consciência lembrando-se o quanto a vida seguiria ainda ceifando quase todas as suas oportunidades.

As horas sobrepunham-se umas às outras, mortas. O vento ainda frio da manhã fresca passeava sobre o seu rosto, descendo junto ao pescoço, enquanto Ulisses experimentava já o café adocicado e quente.

Lembrou-se do passeio que fariam no interior ainda na-quele final de semana próximo. Respirar um pouco daquele ar puro – a que seus avós estavam condicionados desde a mais tenra juventude – quem sabe fizesse bem. O verde que explodia diante dos campos imensos espalhados ao longo do

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horizonte, a água transparente que escorria através dos cau-dalosos rios em volta: a vida em seu estado mais natural. Tudo isso tranquilizaria o seu coração e, assim, Cristiano poderia perceber o quanto havia ainda muito por fazer ao longo dessa sua jornada intensa. Cristiano comentou rapi-damente, enquanto Ulisses experimentava agora s pãezinhos frescos. Este concordou: seria mesmo muito bom para am-bos. Preciso me deitar um pouco mais, disse Cristiano, ainda durante o café – havia aquela vantagem em estar de férias. Depois Ulisses deveria seguir adiante, voltar ao trabalho, enquanto Cristiano continuava inteiramente bombardeado por aqueles pensamentos talvez absurdos.

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O golpe seguinte houvera sido, aparentemente, mortal: o líquido branco e meio viscoso explodira do seu útero feroz-mente - agora estava já tudo exposto. Ele profundamente assustado. “Tentei ainda expulsá-la para longe de mim, pen-sava Cristiano em profunda agonia, tentei, sim, expulsá-la”.

Provavelmente, a própria barata não compreendia as tentativas de Cristiano para expulsá-la dali - ele nem mesmo percebia o risco que a sua vida estava correndo. Enquanto Cristiano, que nunca tinha visto aquele bicho assim tão de perto sob essa perspectiva, estava em desespero, a barata corria, corria de um lado para o outro como uma tonta pro-curando alguma passagem escura para esconder-se e, assim, salvar-se.

Naquele dia mesmo, depois de acordar às três horas da madrugada, Cristiano caminhou levemente até a cozinha atravessando o enorme corredor escuro. Tinha sede, mas, antes mesmo de alcançar o copo dentro do armário, ele se

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desesperou de nojo da barata que lhes surgia por debaixo do refrigerador: lançou, de súbito, o primeiro objeto que lhe veio à mente - o chinelo no qual estava calçado - e, o que parecia uma tarefa simples - expulsar a barata para longe - tornou-se, por fim, uma batalha genuinamente napoleônica, pois, nada retirava a convicção da barata em lançar-se aos pés de Cristiano. O primeiro golpe houvera sido em vão.

Precisaria ter mais cautela ou perderia essa guerra: segu-rou com firmeza o seu segundo chinelo e, num golpe dessa vez certeiro, explodiu o útero marrom e gordo da barata - seus micro órgãos espalharam-se no chão frio da cozinha. Cristiano respirou profundamente aliviado. Era possível que ela, a barata, tivesse mesmo vida própria? A cozinha quase escura, Cristiano perdido ainda sem saber ao certo o que fazer depois de cometido o seu crime - o relógio na parede marcava, marcava silencioso. Mas as coisas não seriam assim tão fáceis como ele pensava já que, no instante exato em que Cristiano se aproximou do corpo da barata, de repente a surpresa: a barata estava viva ainda e tentava caminhar mesmo com o seu ventre completamente exposto.

A barata caminhou lentamente. Profundamente, arrastou-se ainda como se buscasse

mesmo sangue vivo - ele agora mais desesperado - “ela é imortal “, pensou.

À medida que se arrastava, aos poucos, a barata ia dei-xando um rastro de sangue pulsante - um rastro de fome de vida. A barata, acima de tudo, procurava viver. Certamente,

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naquele estado, ela não iria muito longe. Nem Cristiano. Lembrou-se, então, do que lera tolamente numa revista:

é possível que ela, a barata, consiga viver até mesmo três dias sem a própria cabeça. “Ela pode querer se vingar de mim, pensava Cristiano em profunda agonia, quem sabe chame inclusive todo o seu bando”. E, nutrido dessa mesma agonia, lançou o terceiro golpe também certeiro sobre a barata. Pau-sa. Não era apenas uma barata: era um objeto vivo aquela carapaça dura e marrom explodida.

Depois, respirou aliviado e percebeu que, mesmo na sua condição de semimorta, a barata mexia ainda as pernas para o alto como se aquele fosse o seu último sinal de socorro.

“Haveria mesmo alguma espécie de vida por detrás da-quela casca grossa de barata? ” Perguntava-se.

E, se fosse assim, a barata – assim como Cristiano – cos-tumava ter pesadelos típicos de quem vive?

O encontro com Cristiano, talvez, houvera sido, para a barata, como um pesadelo, mas dessa vez real.

A barata estava morta – Cristiano, não. Essa era a única coisa que poderia diferenciar uma cria-

tura viva de outra qualquer? Cristiano continuava assusta-díssimo.

Aquilo o assustava - mas o assustava de verdade. Cristi-ano ficava tenso como um cavalo posto à cela: depois, cami-nhou até a janela onde jazia o céu escuro, completamente pontilhado.

No fundo, as estrelas eram como um pedaço da sua ter-

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ra, eram a única coisa que restava ainda dos seus outros tempos, das suas outras vidas, porque olhar as estrelas hoje ainda é como olhar as estrelas há três milênios.

Cristiano não tinha consciência alguma de todas as coi-sas que estavam ainda por acontecer. Abriu a janela do apar-tamento e sentou-se no parapeito - permaneceu completa-mente calado em voz e em espírito. A janela era enorme, toda rodeada de vidros - um vento forte e vazio soprava so-bre os seus cabelos. Era vento de madrugada. Cristiano não sabia, mas a vida estava lhe propondo a mais doce e pura solidão - a solidão de pássaro selvagem. Seu ninho era o mundo. Cristiano precisava agora esperar o nascimento de cada uma de suas asas - esse é o processo doloroso de colo-ração dos anjos. Ele tinha as asas que estavam ainda por nas-cer.

Uma árvore uivava na rua escura - os grilos teciam a madrugada e, de vez em quando, um pássaro noturno nave-gava céu adentro. “Posso sentir o cheiro forte de vida que há em minha volta - todas as coisas sedentas por viver. Assim como Ulisses que tem, também, sede por viver”, pensava Cristiano. A própria barata estava sedenta por viver, sabia ele.

Lembrou-se das galinhas que viviam na fazenda antiga da tia-avó. Todas as galinhas tinham asas e, no entanto, não podiam voar. Cristiano gosta das galinhas mesmo quando elas comem as baratas e, depois, Cristiano come as galinhas: essa é a absurda contradição da vida que se vive assim, de

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repente. Quando as galinhas deixarem de comer as baratas, Cristiano não terá mais porque comer as galinhas e aí tudo perderá o sentido.

Cristiano sorriu. Estava ainda tão assustado com o fato de a barata ter lhe aparecido assim de repente que, por pou-co, não colocara um ovo de tanta aflição. Uma vida houvera sido perdida naquele instante - a vida da barata, mas, a essa altura, ele não sabia nem o que lhe era mais valioso: se a vida humana ou a do bicho. O fato de ter consciência de que se vive faz a sua vida ser mais especial que todas as outras? Aquilo era absurdo.

“Eu preciso entrar em contato com as coisas que me são verdadeiramente valiosas, pensava ele. A passagem de qual-quer vida no mundo é tão breve, tão frágil, lembrava-se”.

“Por mais que eu tente - por mais que eu tente, as coisas não estão verdadeiramente desnorteadas do real sentido que possuem. Tudo no mundo fora criado para durar somente por enquanto - por mais que eu tente, todas as coisas não podem ficar estacionadas o tempo inteiro. A casa antiga, a vida que se vivia - tudo acontece o tempo todo. Mas o misté-rio na noite ainda acontece por causa da esperança: a espe-rança de estar vivo no próximo instante. Não sei. Não sei: mas prefiro estar entregue a essas coisas pálidas em nome de um futuro tão vasto que me atinge obliquamente como o raio de uma estrela já morta. Eu sou feito de instantes… percebes o que há realmente em mim? ”

“Gosto de sentir o cheiro da brisa numa manhã ensola-

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rada que está ainda por nascer”, pensava ainda. “O cantar frio dos galos por entre os quintais cheios de

árvores. Impossível acreditar que tudo o que existe já, no mundo, não seja, também, uma parte essencial de mim. Es-tou entregue”.

Cristiano precisa entrar em contato com o silêncio que ele descobriu, por acidente, ser a reunião de todas as vozes - mas a sua voz também é o silêncio que canta e colore o vazio que o cerca.

A voz de Cristiano é tão estridente que ele mal consegue ouvi-la. Ele precisaria ainda de cem trilhões de vozes para que o seu silêncio fosse realmente inaudível.

Ele sabe que existe e, por isso, ele o sente. Essa coisa misteriosa a que chamam de vida continua a persegui-lo.

Os seus olhos estão abertos. Agora não estão mais. Estão abertos de novo. O que acontecerá quando eles se fecharem para sempre? Cristiano queria mesmo voar. Ele não sabe, mas, no fundo, a vida toda é um grande “adeus”. A própria vida lhe acena “adeus” todos os dias em que ele é forçado aceitar-se diante das imperfeições que lhe vão surgindo ao longo do caminho, assim naturalmente, como se lhes brotas-se do solo vivo.

Cristiano é este solo vivo e irradia o vazio - longos espa-ços vazios circulados de vida.

Cristiano soprou tão forte que deu origem a todas essas coisas que existem no mundo agora. Ele é uma parte essen-cial de Deus. Foi o sopro de vida de Cristiano que fez nascer

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tudo o que há no mundo - ele criou o sol, a chuva e o vento da noite também. Enquanto Cristiano está vivo, o que o mantém ainda assim é a possibilidade de compartilhar as várias existências que o compõe. Cristiano estava ao lado de Deus naquele grande dia e ele sabe o que havia antes mesmo da própria criação. Cristiano viu Deus nascer e segurou-O até em seus braços com enorme carinho. Ele O segurou e aqueceu-O com toda a proteção que se é possível dar a um filho. Ele O viu dando os primeiros passos e o primeiro sor-riso também: sorriso grande de criança forte. O que havia antes mesmo da pré-existência da própria pré-existência é o que Cristiano viu, mas não consegue entender.

Cristiano não se lembra com tanta clareza de todas as coisas que viveu, ou, se ele lembra, não encontra os termos necessários para traduzir. Algumas coisas serão sempre in-dizíveis. Ele tenta, com grande esforço, lembrar-se de algu-ma coisa que lhe seja útil para, quem sabe, dormir em paz.

Antes de Deus criar o Universo havia silêncio grande. No princípio, Ele disse: “que se faça a luz”, e foi feito o

grande erro porque, se existe a luz, deve existir também a ausência dela e toda ausência é podre.

Mesmo estando mergulhado em Sua infinita sabedoria, Deus cometeu o erro grave.

Mas Cristiano sabe que, inclusive Ele, pode errar. Esse vazio que se sente agora é a Sua presença diante de tudo o que há no Universo. Inclusive Cristiano também é parte essencial do Universo que ele desconhece - por isso essa sen-

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sação tão vazia e forte. Não há mais, no entanto, o que dizer nem ao menos a

quem falar. Mesmo assim ele precisa continuar, pois en-quanto vai falando, Cristiano tem certeza de existir ainda. Ele não pode acrescentar um ponto final nessa coisa meio desconhecida e incerta que existe agora entre ele e a própria vida - Cristiano continuará para sempre: tudo o que ele tem a dizer nunca acabará. Tudo o que Cristiano se tornou não possui um início próprio, assim como, também, nunca terá um final bem-acabado. Ele o é desde sempre. Desde que o mundo passou, finalmente, a ser mundo, o céu era já tão azul como fora desde os seus tempos de criança. Ele gostava, quando criança, de observar o céu enquanto morriam as tardes.

O pesadelo de Cristiano: certa vez sonhara que, ao che-gar dentro do mundo, todas as coisas estavam ainda em construção: os anjos harmoniosos caminhavam colocando todas as árvores, as paredes e as pessoas no seu devido lugar. Cristiano entrava e dizia: “o que está acontecendo aqui? ” Os anjos se escondiam rapidamente quando ouviam sua voz surgir assim tão de repente.

“Você não deveria estar aqui agora, Cristiano”, dizia um deles lá de longe, mas era tão longe que ele nem conseguia vê-lo. “Aonde eu deveria estar então? ” Perguntava ele es-pantado. “Volte para o lugar de onde você veio”, respondi-am. “Mas eu não sei de onde eu vim. Eu não tenho para aonde ir! ” E começava a chorar como um doido por não ter

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para onde ir. Depois olhava o relógio. Ele marcava. Esperou que todas as coisas fossem sendo colocas em seu lugar - to-das as árvores, as paredes e as pessoas - esperou que todas as coisas fossem colocadas em seu lugar e, quando parecia que estava já tudo terminado, ele olhava o relógio novamente. Ele marcava ainda o mesmo instante que o de tempos atrás. Todas as coisas, todas as pessoas - a vida inteira era um enorme teatro. As pessoas que o cercam existem somente enquanto durar a peça, depois disso, cada uma delas irá para a sua casa.

Cristiano não tem para onde ir. Estar completamente sozinho no mundo é a liberdade

mais dolorosa que se pode existir. Estar completamente sozinho no mundo não deveria

nem mesmo ser visto como uma espécie de liberdade e, no entanto, ela o é. A liberdade perigosa de existir. Existir é um fardo, sabia Cristiano. Um fardo necessário.

As árvores estão libertas mesmo quando as raízes ro-chosas lhe prendem no solo duro? Sim. Estão libertas das agonias que nos limitam. Árvore é árvore aonde quer que ela vá. Quanto a nós, precisamos estar em constante ebulição. O apartamento estava escuro, triste e vazio. Olhou ao seu redor - continuava vazio ainda. Estava completamente suado. A sua cama era oca, Ulisses continuava seu sono profundo. Não havia chão nenhum que pudesse suportá-lo. Pisar no chão seria crime. Fechou os olhos novamente - era como se os mantivesse ainda abertos. Aos poucos, Cristiano fora se

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recompondo do pesadelo. Não havia por quem chamar: nin-guém o compreenderia, mesmo Ulisses – que é o mais apto a compreendê-lo. Tocou o chão frio com a ponta dos dedos: sim, estava tudo ali. Depois, sentou-se devagarinho como se pedisse perdão por estar vivo ainda. Estava meio desespera-do. Algo estaria por acontecer - algo que o mudaria para sempre estava por acontecer.

A realidade começava agora a se reconstruir ao redor do apartamento escuro de Cristiano. Os lençóis quentes, as flo-res: tudo estava novamente no lugar que lhe era devido. Ele permanecia imóvel, como se olhasse muito estranhamente o teto do seu quarto. Pensou, de repente, “estou entregue à vida e, ainda que não bastasse, preciso correr contra um tempo que parece querer me enterrar a cada segundo que o relógio, da parede, vai contando, contando”. O relógio era alto, silencioso. Cristiano o olhava fixamente quando, final-mente, uma ideia nasceu tão de repente que, para não a per-der no ar, ele logo se lançou ao que houvera lhe surgido.

Tocou o chão frio, áspero. Caminhou lentamente e, ao se deparar com o relógio que agora o assombrava, sentiu que ele era, sim, mais forte que aquele objeto. O abraço forte do tempo o tomava por completo - era abraço materno, como se, em sonho, Cristiano estivesse sentido a realidade. “Este relógio continuará contando, contando, contando por toda a eternidade, inclusive as horas que eu não mais possuir para mim”, pensou. Lá fora o dia se misturava ainda ao escuro grande da noite e, juntos, produziam uma cor meio indizível

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que se espalhava desde o horizonte. Estava frio e Cristiano permanecia ainda imóvel diante do tempo. Aquilo que lhe surgira há pouco certamente não serviria como solução para nenhum de seus medos, no entanto, quem sabe lhe acalmas-se o espírito.

Retirou o relógio da parede num só golpe e, mesmo sem nenhuma pausa, lançou-o ao chão desfazendo-o em peda-ços.

Havia ainda a obrigação de viver. Todas as pessoas que o cercavam - todas sempre tão alegres - todas as pessoas lhes diziam que havia, sim, a obrigação de viver. Era mesmo pos-sível ser feliz, deveria acreditar Cristiano. E lembrava-se de Ulisses, ao seu lado, compartilhando a vida dele com a sua. Assim como Ulisses, milhões o repetiam todos os dias: o grande sentido da vida. E todas as coisas pareciam confun-dir-se cada vez mais.

“Lembra-se, Cristiano, quando, em nosso primeiro passeio juntos, fomos à piscina numa manhã feliz de sábado. E era como se toda a nossa vida estivesse por começar naquele instante - como se estivesse mesmo por começar naquele dia! ” Recordava Ulisses. “Naquela noite mesma, fomos jan-tar fora com alguns dos nossos melhores amigos. Foi uma ocasião muito divertida”.

Depois, relembrar todos aqueles passeios antigos lhe fa-ria muito bem. Todas as suas lembranças, muitas de suas alegrias, ficaram guardadas naqueles tempos em que o traba-

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lho lhes tomava quase a vida inteira. Agora a carreira, o ca-samento: sim, era muito bom estar vivo. Era muito bom acordar bem cedo e respirar profundamente aquele ar meio gélido de cada manhã.

O que, então, lhes faltava? De onde surgiam todas aque-las coisas meio sem significado?

Teria essa mesma oportunidade, ainda que daqui a cin-quenta anos? Não compreendia o funcionamento do tempo - não compreendia como os objetos sólidos, ou mesmo as pessoas - iam se desfazendo no ar; até que, de repente, não restava absolutamente nada de uma vida inteira.

As horas não passavam - ainda que os ponteiros cami-nhassem, caminhassem, as horas não passavam e Cristiano sentia como se estivesse dentro de uma noite estranhamente feroz: estranhamente sem fim. Os sons da madrugada o per-turbavam - os curiosos sons daquilo que nem mesmo parece existir. Quando acabaria o seu pesadelo? A barata permane-cia morta ainda sobre o chão frio da cozinha.

Morta ainda - agora em decomposição: desfazendo-se no ar de acordo com o seu mais estranho medo sobre o tempo. E o sopro de vida da barata, por onde estaria? Exis-tia? Certamente, sim - bem como todos os outros bichos que viviam por aí. Até mesmo o microscópico inseto que nem mesmo Cristiano era capaz de perceber possuiria também um sopro de vida estranhamente próprio. Somente isso ex-plicaria essa busca sem fim que todos têm pela vida.

Fechou os olhos mais uma vez e tentou acreditar que es-

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tava dormindo tranquilamente como o fazia sempre antes dessas ideias absurdas lhe invadirem o espírito.

Fechou os olhos, mas, logo, a aparente tranquilidade dissolveu-se em um estranho vazio e Cristiano sentiu como se estivesse caindo, caindo, caindo.

E mesmo que tentasse apanhar com as mãos qualquer estrutura sólida para sustentar-se, não havia nada o que apanhar.

Estava completamente sozinho caindo, caindo. Desesperou-se. Não havia exatamente lugar algum por

onde seu corpo estivesse atravessando - nem mesmo o vazio. Mas como poderia estar caindo então? De onde surgia

aquela sensação estranha? Morrer é estar caindo? Não havia mais como suportar tamanha angústia.

Acordou em um sobressalto. Estava ainda em seu quar-to. Mais um pesadelo houvera assolado o seu espírito.

Água. Tomaria um enorme copo com água e todas as coisas voltariam ao lugar de onde nunca deveriam ter saído. Estava enlouquecendo? Não. Tinha sede ainda, pois, com o susto da barata ele próprio esquecera da água. Voltaria até a cozinha? Teria ainda a coragem necessária para tanto? Não sabia exatamente o que fazer.

Era completamente possível ainda sentir o cheiro de morte que vinha da cozinha. “Por que todas as criaturas vi-vas possuíam esta sede pela vida? ”, perguntava-se Cristiano.

Até mesmo aquela barata pré-histórica que estupida-mente vagava pela casa dentro da madrugada sem fim tinha

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também a sede incalculável pela vida. Isso a aproximava ainda mais de qualquer ser humano racional.

Voltou à cozinha. Seus passos leves se perdiam no escuro da madrugada. O ronco distante de um automóvel espalhava-se no espaço. Abriu o armário e cuidadosamente retirou o co-po transparente. A barata continuava no chão.

Se observasse mais de perto, veria que as suas antenas se mexiam ainda. A vida continuava ali – a grande sede de vi-da. Seria assim com qualquer criatura viva? Aquilo era mesmo algo espantoso. Cristiano colocou o copo sobre a pia e debruçou-se no chão. Seu corpo estava quente. Olhava a barata mexer as suas antenas – olhava a barata, na verdade, sob um ângulo que nunca, em toda sua vida, houvera visto.

Ficou, como um tonto, deitado ao lado da barata. Quem mais, ali, clamava pela vida? Teria ele, por ser humano, mai-or direito de viver? E todas as criaturas sólidas que vagam pela noite escura – que passeiam sobre o jardim, voam sob o céu escuro da madrugada: todas as criaturas vivas não seri-am também uma parte sagrada de Deus? A racionalidade que todos tanto lhe impunham o faria melhor que todas as coisas? Deitado ali, sobre o chão frio, Cristiano se sentia igual à barata: completamente despido de qualquer direito. O ar quente que ele expirava fazia marcas no assoalho. A mancha branca deixada pela barata ao se arrastar – o cheiro da morte se misturava ao próprio cheiro quente da vida. De

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repente, uma lágrima que desabrochava da face imóvel de Cristiano. Virou-se um pouco e lançou agora o seu olhar triste sobre o teto imóvel do apartamento. Respirou fundo e fechou devagar os olhos. Haveria ainda tantas tardes tran-quilas por viver. Enquanto permanecia de olhos fechados, sentiu como se um corpo pousasse cuidadosamente sobre o seu num enorme abraço. Cristiano deixou ser entregue àquele afago perdido na madrugada – sentiu, então, uns lábios doces tocarem os seus. Ao abrir os olhos muito tran-quilamente, viu que Ulisses tinha agora pousado a cabeça sobre o seu peito quente.

“Estou tão assustado”, disse Cristiano silenciosamente. “Estou tão assustado”, repetia ele ainda.

“Quando todas essas coisas passarem, todas essas sensa-ções, este medo; eu espero que você continue ao meu lado e então, tudo será diferente. Poderemos ser livres de novo”, disse Cristiano que, ao fechar os olhos e tentar tocar os cabe-los macios de Ulisses só então percebera que estava sozinho diante da barata já agora sem vida. “O que estou fazendo? ”, pensou. Levantou, assim, num sobressalto e colocou um pouco de água no copo. Somente então, ao tomar o primeiro gole, olhou diante da janela e percebeu que o dia já começa-va a nascer. Os primeiros raios tímidos de sol se mostravam ao longe no horizonte. Talvez se vestisse para mais um pas-seio qualquer – ou permaneceria em casa enfrentando todas as possibilidades que insistiam em existir.

Permaneceu imóvel ainda. Esperou que a água escorres-

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se no interior de todo o seu corpo. Era mesmo possível con-seguir descansar com aquele aperto forte de Ulisses contra o seu peito? Assustou-se, no entanto, com o barulho vindo de fora do apartamento. Ouvira a voz de Ulisses chamando-o na avenida. Foi até a janela e procurou dentro da escuridão algum sinal de vida que fosse. Sim, pensava ele, ouvira a voz de Ulisses chamando-o lá fora: Cristiano! Cristiano! Dizia. Saiu finalmente da cozinha e meteu-se diante do enorme corredor.

Todas as luzes apagadas, o ar fresco da madrugada em riste: não teve medo nenhum, certamente, pois, confiava muito em Ulisses. Lançou-se através da avenida enorme - todas aquelas pedras, as árvores… parecia que a voz de Ulis-ses ficava cada vez mais distante. Procurou-o por entre to-dos os cantos, através de todas as ruas e, inclusive, dentro da praça também diante do prédio em que viviam tranquila-mente desde que passaram a morar juntos. Lá, a escuridão prevalecia em absoluto - podia ainda ouvir ao longe os pas-sos de algum animal que o observava assustado.

Não havia absolutamente nada. Estava sozinho e perde-ra toda a sua tranquilidade - caminhou sobre o asfalto frio que jazia morto, triste e só. Era possível ver ao longe os pri-meiros raios de sol meio alaranjados que rasgavam o hori-zonte em festa - alguns pássaros também contornavam o silêncio com o seu canto, anunciando manhã que estava por vir.

Uma terrível angústia lhe tomou o peito, de repente. Era

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possível ouvir ao longe os chamados de Ulisses - era tudo muito nítido em seus ouvidos. Passou a procurá-lo por entre todas as ruas, atravessando-as, inclusive, aos montes.

Gritou por Ulisses algumas vezes até e desesperou-se diante daquela busca incapaz de ser alcançada.

Gritou novamente como se esse fosse o modo mais efi-caz de reconhecer onde estaria ele agora.

Por um segundo, parou finalmente. Sentou-se e, por pouco, não desabou sobre o chão frio que parecia pertencer-lhes de certa maneira tão viva - sentiu o seu coração pulsar em saudade. Saudade de si mesmo, até.

“Morrer é assim? ”, perguntou-se. Morrer é estar com-pletamente sozinho diante do dia que começa a nascer?

De repente, o portão do prédio aberto. Alguém diante da porta e a madrugada morrendo aos poucos. “Ulisses! ”, pensou Cristiano. Sim. Era muito nítida toda aquela visão. Cristiano caminhou em sua direção até que ele, ao reconhe-cê-lo, lançou-se também aos seus braços. “Cristiano! ”, gri-tou Ulisses assustado.

Depois de alguns instantes - quando o sol estava já por nascer - Cristiano acordou finalmente do susto. Ulisses não o esperava na porta. Ulisses teria morrido, mesmo enquanto o dia começava a nascer cheio de vida? Cristiano ainda ator-doado: “impossível que tudo aquilo seja meramente criação de minha cabeça - tudo estava tão nítido! Era mesmo possí-vel ouvir a sua voz! ”. Ninguém o compreenderia, certamen-te.

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“A realidade é essa coisa da qual faço parte? Essa coisa absurda que cada vez mais me distancia da vida - vida de verdade? Não é possível que eu esteja novamente caindo no discurso da Criação”. Caso houvesse algum sinal de vida ou, talvez, uma esperança, Cristiano seria lançado à sua mais antiga culpa por nada ter feito.

A morte era uma simples questão de aceitação e com-prometimento com a eternidade. Haveria, certamente, algo por vir depois de lacrados os olhos de tudo o que há de sóli-do no mundo - mas as coisas insossas devem possuir algum significado e, para nós, somente parecem insossas porque na verdade, elas não são.

“Meu Deus, dizia Cristiano, não sei o que fiz de mim mesmo - não sei o que fiz das pessoas que vivem ainda ao meu redor”. Para ele, Ulisses não estava mais ao seu lado. Cristiano continuou perturbado na manhã seguinte. E se Ulisses o deixasse, como viveria? Resolveu dali mesmo, en-tão, preparar um café da manhã todo especial. Arrumou a mesa, os pãezinhos frescos, as frutas recém-colhidas, as jane-las abertas.

Amor. Cristiano pensou, desde a infância, que este senti-mento o tomaria por completo e o faria a pessoa mais feliz de todo o mundo. Quando soava, a palavra “amor” mais parecia aquela coisa sobrenatural capaz de domesticar qual-quer criatura selvagem. De repente, Ulisses parecia, para ele,

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um bicho meio selvagem, capaz de fugir a qualquer instante e, por isso, embebido pela palavra “amor”, quem sabe, ele permanecesse ao alcance de Cristiano.

Naquela tarde, enquanto Ulisses não havia ainda volta-do do trabalho, Cristiano sentou-se um pouco no chão da sala – com as janelas abertas e o vento fresco de fim de tarde invadindo todo o apartamento – e sentiu o frio que começa-va já a fazer anunciando a noite que logo seguiria. O barulho distante da rua, as pessoas de quando em quando no corre-dor do prédio e a sensação absurda de que ao passo em que a qualquer momento Ulisses logo apareceria para continuar vivendo ao seu lado, havia ainda a possibilidade dele jamais retornar e, até mesmo, decidir voltar à vida que ele levava com a esposa raquítica e o filho.

Tentou retomar a consciência, enquanto levantava. Caminhou até a cozinha pequena, tomou um copo nas mãos com água excessivamente gelada e pôs a beber gole a gole, pois estava seco de sede. Acendeu a luz da sala e, da janela aberta, um violino distante tocava meio fora do tom. O mar permanecia ainda calmo, preenchido de frescor e escuridão já àquela hora. O silêncio possível tornava todas as coisas meio sombrias e ameaçadoras para Cristiano – o mais breve silêncio que fazia àquela hora da noite lançava-o a mais ter-rível solidão que alguém no mundo seria capaz de conceber. O mundo todo se esvaziava completamente de vida humana. O violino parou com a sua música estridente, o som distante dos carros preenchia agora todo o espaço vazio. Os passos

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no corredor não eram de Ulisses – Cristiano bem o conhe-cia; talvez o vizinho chegando do trabalho assim como todas as outras vezes. Havia ainda a opção do voo em pleno oitavo andar: havia a possibilidade de se manter inteiramente desli-gado de todas essas coisas que tanto assolavam o seu cora-ção, mas esta, quem sabe, não fosse a solução mais coerente para o que Cristiano planejava ainda ao lado de Ulisses. A força estranha da solidão o tornaria mais humano, derrama-ria sobre o seu peito a sua própria vida e tudo o que está ligado a ela, depois rastejando, absorvê-lo-ia cada centíme-tro do seu corpo esguio.

A janela aberta o tomava como a uma possibilidade qualquer de libertação. De repente, os braços abertos como em preparo para o voo, o mundo se desfazendo completa-mente à sua volta e o impacto final no solo duro e seco. É possível morrer, pensou Cristiano. No entanto, a vida intei-ramente completa e feliz que levava ao lado de Ulisses o fa-zia redobrar a consciência. A terrível liberdade de existir o tomava agora e felicidade nenhuma no mundo o faria no-vamente enfrentar todas as coisas que outrora enfrentara em nome deste sentimento por Ulisses.

— É possível morrer. O seu rosto quente era adocicado e gentil. Sua mãe, cer-

ta vez, falou-lhes sobre como era ele um garoto especial que mudara completamente o rumo de todas as coisas na casa. Sua chegada, na época, fora festeja com grande entusiasmo por todos ali envolvidos e, por isso, ele nasceria nesta pro-

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messa de concertar todas as coisas na vida das pessoas que estavam ao seu redor. Era imenso demais o amor que ele nutria pelo próprio mundo. A morte seria súbita e débil, depois toda aquela papelada, uma ambulância retirando o seu corpo da rua quente, os curiosos em volta: aquele seria mesmo um fim inteiramente desagradável para ele, sempre acostumado ao mínimo de conforto e comodidade em todas as suas decisões. No entanto, retomou ainda a consciência, Cristiano passaria agora a ser apenas um peso morto e só. Não estaria presente para resolver absolutamente nada em relação à sua própria morte. Apenas a ausência eterna de si mesmo que ecoaria por entre todos os dias que deveriam seguir indiferentes de qualquer coisa. Depois o sol amanhe-cendo novamente, as ruas claras, completamente ilumina-das, as pessoas novamente repletas com suas vidas fartas e, finalmente, a noite morta, em silêncio.

Sobre a mesa pequena – diante das quatro cadeiras tí-midas – havia o vaso antigo com algumas flores suaves; azuis como o céu e inteiramente sobrepostas à natureza morta do apartamento pequeno, vazio. A toalha sua avó mesma bor-dara e lhe dera de presente quando Cristiano saíra da sua casa. Os móveis todos da cozinha pareciam sobreviver sem a presença desprezível de Cristiano – todos aqueles objetos pequenos, as compras feitas ainda naquela semana para os dias seguintes, os pequenos potes transparentes com os grãos e o café preto, estúpido: era este o mundo que Cristia-no sempre sonhara desde os seus tempos mais remotos da

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adolescência. Cristiano retomou a consciência – tentou deixar um

pouco de lado a sua obsessão inexplicável pela morte e pas-sou a observar todas as coisas que conquistara até então, diante do trabalho duro que dera. Se preparasse o jantar, logo Ulisses estaria no apartamento preenchendo todo aque-le espaço morto com a mais pura alegria viva que se pode existir. Depois do jantar, alguma coisa na televisão e assim suceder-se-iam todos os dias e anos seguintes – se é que se pode acreditar na possibilidade de Ulisses acompanhar Cris-tiano ao longo dos próximos anos de sua vida. Mesmo as-sim, pensava, era importante que ele estivesse aqui e agora: era o suficiente. A força que tinha sua presença sobre a vida de Cristiano era, sim, algo inacreditável – ele o cobria com toda segurança que alguém precisava mesmo possuir.

Desceu as escadas, triunfante, seguiu pelo saguão de en-trada, quase vazio se não fosse a presença estranha e cons-tante do porteiro que raramente lhe emprestava qualquer atenção. Na rua, um jovem o observava sentado na pequena mesa de uma lanchonete qualquer de esquina. Cristiano sentia toda liberdade que se poderia existir naqueles peque-nos instantes. Esquecia-se completamente de Ulisses e pen-sava, divertido, que seria muito engraçado convidar um des-ses jovens quaisquer que há aos montes na cidade para uma dormir ao seu lado em seu apartamento.

Depois prepararia uma comida rápida, observaria o ho-rizonte de sua janela e o corpo do jovem desconhecido sobre

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a sua cama, em sono profundo. De repente, Ulisses não mais existiria de forma alguma em sua vida. A sua presença estra-nha, a sua segurança, o seu modo sempre constante de olhar se esvaziaria por inteiro e, quem sabe, apenas assim, Cristia-no saberia o que a vida lhe havia reservado. Era dolorosa aquela prisão a que ele se submetia em nome do amor que sentia – e escolhia manter vivo – por Ulisses. Ulisses, bem sabia Cristiano, mantinha ainda a esposa e o filho sob sua proteção também; e, por isso, Cristiano se perguntava agora se seria mesmo traição dormir com um corpo qualquer des-tes que o circulavam na cidade. Um súbito desejo tomou todo o seu espírito. O rapaz continuava observando-o meio de longe, disfarçado, enquanto Cristiano fingia esperar por alguém olhando, impaciente, o relógio. Depois seguiu para a padaria e comprou alguns pães frescos. Voltou para o apar-tamento. As pessoas na rua pareciam evitar a sua presença estranha, pareciam querer esmagá-lo como a um inseto pe-rigoso. Fechou a porta e pode, enfim, sentir-se um pouco mais seguro de novo.

Sentiu-se um pouco mais feliz ao observar o jovem que também o desejava? Sentia-se um pouco mais feliz mesmo diante da ausência de Ulisses? Era possível seguir sua vida sem ele?

Preferiu não pensar. Observou, do seu apartamento, a rua abaixo, as pessoas

caminhando apressadas, a noite que já se sobressaía diante da cidade enorme. Ulisses não precisaria saber... pensou

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ainda. Por que ele não poderia tentar viver de verdade?

Um pouco de música talvez diluísse aquela estranheza que agora o acobertava de maneira tão íngreme. Cristiano per-manecia ainda sobrevivendo através dos poucos movimen-tos que o compunha: parecia deslizar diante da aspereza grande da vida e, por isso, a música talvez o empregasse uma calma que verdadeiramente não lhe é própria, no entanto, lhe é extremamente necessária. A música o tornava a mesma criança pueril e humilde que sempre fora desde os tempos na casa da avó. Sentia uma nostalgia imensa, uma vontade grande de retomar aquela mesma vida tranquila e descrente em relação às coisas grandes de si e do mundo. As mesmas notas dissonantes, a mesma voz adocicada: aquilo era capaz de lhe fazer a criatura mais humana que poderia existir. Aquela sensação o lançava ao mais doce abismo da morte, da saudade e da grandeza de certos espíritos.

Seguiu até a cozinha, imaginou ouvir os passos distantes de Ulisses – com a sua voz meio estridente reclamando de alguma coisa qualquer, algum descuido de Cristiano na casa. Caso ele se recordasse bem, Cristiano perceberia que desde o aparecimento de Ulisses – mesmo em circunstâncias tão adversas – era possível, pensava, era possível perceber que sua vida melhorara significativamente. A maçã pousada so-bre a mesa, a maçã com a sua mesma estrutura desde os tempos mais remotos da Antiga Roma. Nenhum movimen-

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to, no entanto, parecia conseguir tomar na boca aquele sa-bor úmido e adocicado da maçã.

De repente, enquanto aproximava-se vagarosamente até a maçã colocada matemática sobre a mesa em perfeito equi-líbrio com todas as coisas – com o próprio prédio imenso que vivia, no oitavo andar – enquanto aproximava-se, Cris-tiano sentia aumentar em si a mesma insegurança que, na adolescência, tanto o atormentava. Uma fadiga se sobrepu-nha ao seu próprio espírito, a mesma vontade de lançar to-das as coisas que tanto o assolavam janela abaixo e, quem sabe, tentar uma vida mais próxima ao que realmente aquie-tava o seu coração. Cristiano era o único culpado. Há so-mente um culpado no amor para que todos, no entanto, quase sempre saiam feridos.

Houvera passado alguns minutos ou mesmo três mil anos? O sol desaparecera sob o horizonte.

Cristiano lembrara-se, subitamente, das tardes imensas em que, junto à sua tia, permanecia quase imóvel mergulha-do ao som triste e cadente do piano clássico em que esta estava quase sempre envolvida. “A música, sem dúvidas, é a maior grandeza que qualquer ser humano é capaz de guar-dar nessa vida”, repetia ela diante dos olhos curiosos de Cristiano. Depois, o disco imenso na vitrola compacta e, finalmente, Debussy.

— É inconcebível, Cristiano, que o mesmo recado que nos foi dado por um homem inteiramente desconhecido pelo mundo moderno esteja ainda tão claro e dissonante a

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partir da sua mais perfeita criação artística. Dizia a tia meio abobalhada enquanto se deixava levar pelos tons de Clair de Lune. A música o tomava por completo e uma sensação qua-se absurda de total desprendimento do mundo físico absor-via o corpo do garoto que permanecia ainda deitado, com a tia, no quarto quase escuro de tarde chuvosa. Se ouvisse, mais uma vez, agora em seu apartamento a mesma canção que a tia ouvira tantas vezes ao longo da infância de Cristia-no, certamente a mesma sensação de desprendimento, mis-turada à mais pura nostalgia que se é possível sentir do seu tempo de infância, quem sabe, preenchessem o coração de Cristiano. Depois o remorso amargo: entregara-se inteira-mente a um homem que jamais o amaria de verdade, alguém que jamais entregaria para Cristiano a sua vida.

Em seguida, ainda nas mesmas tardes tristes, sua tia procurava também ouvir algo um pouco menos triste, algu-ma canção capaz de preencher com o mínimo de cores pos-sível o cinza que insistia existir no céu imenso, nublado e frio. As guitarras elétricas logo surgiam, as vozes meio estri-dentes muito comuns naquela época em que Cristiano não passava ainda de uma criança ingênua, boba e só. A mãe logo batia na porta chamando-os para o jantar e repetia com aquela fraternidade materna típica que qualquer dia desses, a tia enlouqueceria o garoto. Enlouquecer, para a tia, seria o mesmo que encontrar-se, verdadeiramente, naquele mundo de retardados. Sua avó logo se fazia notar comentando o quanto a tia houvera se revolucionado após o contato com

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aquelas músicas inteiramente novas que se repetiam no pró-prio rádio e na TV.

— Bobagens, minha mãe... bobagens... Cristiano, àquela hora, preso agora na TV, precisava

quase sempre ser arrastado para que, junto com os demais de sua família, mantivesse a mesma tradição de jantarem todos à mesa.

— Esse menino qualquer dia desses enlouquece... Cristiano se sentia grato e confortável, mesmo diante

das adversidades que surgiram ainda no casamento da mãe, mesmo diante da ausência do pai – com os seus compromis-sos quase intermináveis e o olhar sério que mantinha quan-do o via – Cristiano era inteiramente livre para escolher aquilo que o faria verdadeiramente feliz, como dizia sempre sua tia: o menino logo terá oportunidade de fazer-se grande e, assim, trilhar um caminho completamente novo que nin-guém na família houvera ainda trilhado. Deverá ser artista, repetia a mãe. De vez em quando a outra tia aparecia tam-bém para o jantar: qualquer dia desses eu o levo para casa, pois os primos sempre o convidam para passar uma tarde qualquer com eles nessas férias. E continuava falando ainda da vida feliz que construíra ao lado do marido e dos filhos pequenos que este lhe proporcionara de repente.

— Tenho certeza que a qualquer hora dessas você ainda retoma o seu casamento, minha irmã...

Retomar aquela vida ao lado de um homem que não a amava por completo? Perguntava-se a mãe.

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— Uma pessoa nunca a amará verdadeiramente, conti-nuava a irmã, porque somos, nós mulheres, no fundo, os seres mais desconhecidos que podem existir no universo. Ninguém nunca nos amará do modo exato que merecemos ser amadas porque nem mesmo nós somos capazes de nos conhecer no sentido mais amplo de nossa essência. Daí a necessidade do perdão, daí a necessidade cada vez mais ur-gente de que compreendamos que nossos homens, eles pró-prios, desconhecem a nossa natureza mística e, mesmo as-sim, arriscam-se a estar ao nosso lado.

Cristiano observava os pratos quase vazios de todas aquelas mulheres diante da mesa – a avó, sempre tão cordial e compreensiva; a mãe, que mais parecia uma flor aberta; e as tias que conversavam de maneira alegre e mesmo assim distinta.

— Somos um mistério para nós mesmas... Depois, foram todas para a sala e, enquanto tomavam

algumas taças de vinho, conversavam ainda alegremente sobre aquelas antigas distinções entre elas próprias e os ho-mens.

A natureza imaterial de uma mulher, diziam, está acima da sua condição física. Uma mulher se faz, por assim dizer, a partir da sua essência imaterial, a partir do seu perfume ado-cicado e feroz, mesmo ela estando em um corpo inteiramen-te desconfortável e desconhecido.

— Ulisses... Ulisses, repetia agora Cristiano sozinho. Como era possível conceber que Ulisses – o seu Ulisses

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– houvera se entregado à natureza desconhecida de uma mulher, como era possível que aquele corpo – que era uni-camente seu – havia de se deitar no colo quente e letífero de uma mulher. O seu corpo nu, em êxtase.

— Cristiano? Perguntou, de repente, uma voz. — Sim? Respondeu ele. — O que faz aí sozinho, no escuro? — Tudo. Vagarosamente, o corpo de Cristiano foi retomando a

sua forma física, percebendo todas as coisas que havia à sua volta e, substancialmente, as lembranças da infância se dis-tanciavam mais e mais a cada segundo em que ele, meio as-sustado com a luz agora acesa que Ulisses, meio cansado, acendera para encontrar um objeto qualquer na cozinha e perguntar o que fazia ele ali, completamente sozinho, em devaneio. A maçã permanecia ainda sobre a mesa, agora iluminada. O silêncio da casa enfim quebrado dava espaço para o corpo enorme de Ulisses que abria o refrigerador e tomava um pouco de água, enquanto falava alguma coisa qualquer do trabalho recém-conquistado. Depois reclamava do trânsito que, cada vez mais, tornava a vida naquela cida-de um inferno e, por fim, aproximava-se de Cristiano ainda em silêncio, observava-o diretamente nos olhos e tentava contornar a sua face meio desconcertada de como levar a vida. “Por acaso, estava – perguntou Ulisses – por acaso es-tava devaneando sobre a maionese outra vez, como hoje de manhã? ” Cristiano sorria meio encabulado. “Quanto a

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qualquer devaneio – respondia ele – mais vale um cachorro morto”. A janela ainda aberta os lançava à cidade enorme que persistia existir ainda sob o horizonte, dentro da noite imensa que fazia àquela hora.

Cristiano lhe contara sobre como, enquanto pensava o que preparar para o jantar, havia lembrado as tardes chuvo-sas com a tia, ou mesmo as noites intermináveis com a famí-lia no jantar. Era mesmo improvável que todas as coisas vi-vidas outrora voltassem com a mesma intensidade quando havia enquanto estas aconteciam, mas, de forma alguma, isto desconsiderava a possibilidade de se manter na memó-ria todos aqueles momentos bons para que, vez ou outra, eles viessem à tona e encobrisse Cristiano de certa calma necessária à vida naquela cidade infernal – como dizia sem-pre Ulisses.

Ulisses, depois de certo momento, enquanto tomava ainda a água, pousava – meio rispidamente – o copo frio sobre a pia e tirava a camisa quente que, por sua vez, revela-va o corpo forte e suado de homem que ele sempre preserva-ra mesmo durante o casamento com a mulher e o filho. Cristiano o abraçava – assim mesmo, suado – e, por um ins-tante, fechava os olhos tentando imaginar como seria a sua vida sem aquele calor imenso que irradiava do corpo enor-me de Ulisses, sem aquela força estranha que lhe era tão ne-cessária para enfrentar todas as coisas a que estava submeti-do, mesmo naquela forma de vida que mantinha agora, des-de o início da sua fase adulta. O corpo de Ulisses era quente,

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úmido e carregava consigo ainda o cheiro forte do perfume que o próprio Cristiano lhe dera no último aniversário – aquele cheiro meio amadeirado e doce, muito próprio.

Ulisses observava Cristiano naquela sua forma mais frá-gil e insegura – com o mesmo olhar meio perdido e indife-rente em relação a todas as coisas a que estava submetido na vida suburbana que levava. Os seus olhos eram imensos, castanhos e vivos. Ulisses correspondeu ao abraço de Cristi-ano e permaneceram ainda na cozinha, diante da maçã enorme que servia como testemunha frente à grandeza que era a entrega ali de ambos.

— Estive hoje tão assustado, disse Cristiano. Ulisses o observava agora mais diretamente: — Por quê? — Senti hoje, mesmo de repente, a sensação que seria se

eu o perdesse... Ulisses sorriu meio desconcertado: — Ora, Cristiano... — Parecia de verdade... — E por acaso você acha que eu posso, assim de repen-

te, desaparecer completamente de sua vida? Acha mesmo que eu seria capaz de fazê-lo?

— Não, não acho. Ulisses o abraçou ainda mais forte, tomou o corpo intei-

ro de Cristiano e prendeu-o sobre o seu. — Talvez por ficar tanto tempo sozinho em casa essas

ideias absurdas tenham lhe acontecido.

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— Talvez... — Mas agora eu estou aqui ao seu lado, não é? Não pre-

cisa mais sofrer por causa dessas ideias absurdas. Cristiano sorriu. — Não chega a ser um absurdo, mas uma possibilidade. Ulisses o olhou, meio espantado: — Uma possibilidade remota, digamos... — Que, mesmo por isso, não deixa de existir. — Você está obcecado com essa ideia. — Não, não é uma obsessão. Ulisses voltou ao seu copo com água. Cristiano passou a mão sobre o corpo de Ulisses, tocou-

lhes as costas, depois sobrepôs as duas mãos no ombro do rapaz.

— Eu o amo, disse ainda. Suas mãos representavam a sede imensa que Cristiano

sentia do corpo quente e forte de Ulisses. Cada vez mais os braços foram se encontrando aos poucos, o beijo quente e vivo de rapaz sobre as costas imensas de Ulisses, esfriando um pouco o seu espírito. Ulisses o tomou pelos braços, vol-tou a sua face séria sobre a face também reservada de Cristi-ano – o coração palpitando feroz – pensou ainda em falar qualquer coisa, mas logo desistiu, era inútil naquele instante qualquer palavra.

O mesmo corpo forte e estranhamente adocicado de Ulisses tornava a existência de Cristiano toda ela inteira-mente mais intensa. Aprendera, ao longo destes últimos

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anos em que esteve ao seu lado, muitas coisas acerca da vida e sobre como os corações humanos podem assolar-se com o maior peso que pode haver uma ausência. O corpo forte, de Ulisses, era a maior obra de arte que poderia existir em todo o Universo: seu corpo imenso, sobre os lençóis meio amar-rotados e extremamente brancos da cama, numa manhã qualquer em que juntos acordavam para enfrentar a insis-tência dos dias – não havia coisa alguma no mundo que se igualasse àquela visão, pensava Cristiano - “seu corpo, dizia ele, possui luz própria, é mesmo possível notar”.

Desde que observara Ulisses naquela esquina imunda, numa noite qualquer, todas as formas daquele corpo pareci-am conduzi-lo a um estágio de vida mais elevado que todos os outros naquela cidade infernal. Depois, aquela troca já íntima de olhares – a conversação inteiramente ausente de palavras, os corpos mesmo distantes falando a língua uni-versal, até que, de repente, Cristiano o convidara para uma bebida qualquer. Teria ele a mesma capacidade de fazê-lo com outro rapaz daqueles que existem aos montes nos becos e nas esquinas imundas da cidade? É provável que não, pen-sava Cristiano. Ele sentia, já de início, todas as coisas possí-veis que viveria ao lado daquele homem, até então, estranho, daí a sua necessidade emergencial de entrar logo em contato.

Cristiano falando-lhe: — Espero que você não tenha acreditado que sou desses

que iniciam um diálogo possível qualquer com o primeiro que aparentemente se mostra interessado... eu senti o quan-

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to você era diferente desde o primeiro olhar. — Eu não disse isso, respondeu Ulisses, eu já havia

também percebido que você não estava habituado àquela situação.

Cristiano revirou-se um pouco na cama, sentou-se de maneira mais confortável enquanto o vento fresco da noite desabrochava da janela atravessando o quarto.

— Não me achou ridículo fazendo aquilo? Oferecendo uma bebida qualquer a um estranho...?

— Não, não achei. Cristiano sorriu, deixando transparecer um pouco a sua

enorme timidez de menino. Os olhos um pouco arregalados, a gargalhada macia, o rosto de Ulisses quase enterrado sobre o travesseiro. Depois silêncio. O barulho distante dos carros sobre as avenidas. Cristiano disse ainda:

— Mas fui. Ulisses sorriu também, levantou da cama e seguiu para

a porta do quarto tomando, em seguida, o caminho da cozi-nha através do corredor. Cristiano o observava em silêncio – mas um silêncio comedido, inteiramente visual, ainda que a chama quente de um inferno assolasse o seu coração que palpitava feroz. Ulisses voltou com um copo repleto de água extremamente fria em uma das mãos, colocou-o sobre o criado-mudo, falou alguma coisa qualquer sobre sua sede noturna que, desde muito criança, ele era acometido. Cristi-ano ainda silencioso, fez que tomaria a água, por implicân-cia, zombando de Ulisses.

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Depois a mesma voz tranquila de Ulisses: — Não compreendo de que forma uma pessoa, assim

como você, é capaz de amar a mim. Cristiano permanecia ainda no mesmo silêncio seu ha-

bitual das conversações noturnas, meio sorridente. — O que tanto o impressiona nisso? Perguntou. Ulisses não tinha ainda o domínio pleno das palavras

para expressar exatamente as coisas todas que se passavam em seu coração. Tentou falar alguma coisa, mas parou logo em seguida:

— Eu acho que...

— É mesmo pouco provável, digamos assim, continuou Cristiano, que eu não esteja definitivamente apaixonado, não?

Ulisses o observava agora silencioso. — É provável que a paixão tenha deixado de existir.

Disse ainda. — O que restou, então? Cristiano parou um pouco, sentia-se meio envergonha-

do – com a sua habitual timidez – em abrir-se assim. — A questão não é exatamente o que restou, tendo em

vista que os nossos sentimentos não seguem os mesmos pa-drões concretos e matemáticos. Não restou, porque todas essas coisas a que nos temos entregado não é, meramente, uma operação numérica qualquer. Os nossos sentimentos –

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falo como qualquer ser humano – eles tendem a evoluir, a transformar-se continuamente, mesmo quando nós menos percebemos. Confesso que inicialmente fui seduzido apenas pela sua força física e sua maneira singular de expressar-se naquela noite quente, mas, ao conhecê-lo melhor, pude per-ceber, no entanto, que o que há aí dentro, em seu coração, existe de uma maneira tão verdadeira que apenas alguns poucos são capazes de atravessar certas barreiras instrans-poníveis tal como tenho me aventurado. Finalmente, amor.

Ulisses o observava assim ainda mais tranquilo e curio-so por desconhecer, até então, as declarações que Cristiano agora concretizava de maneira tão natural.

— A mera paixão física, atrativa, Ulisses, foi continua-mente evoluindo para aquilo a que temos tantas vezes nos submetido, mesmo de maneira indevida; por isso, cada mo-mento ao seu lado, conhecendo-o de certo ângulo que pes-soa alguma no mundo fora capaz de te conhecer, cada mo-mento ao seu lado reafirma apenas a certeza do quanto você é especial e incrível. Não pude me conter, lancei-me ao teu abismo, sem nenhum paraquedas.

Ulisses o abraçou – agora ainda mais forte – tomou o seu corpo por inteiro através daquele abraço afetuoso e quente – tal como um animal feroz que sente a fragilidade de sua cria e, por isso, para protegê-lo, agarrava-o de modo que nenhum mal que pudesse afligi-lo. Cristiano sentia mi-limetricamente a força estranha de Ulisses mesmo no interi-or daquele abraço afetuoso e, quando ele finalmente o solta-

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va, Cristiano sentia-se como uma pedra minúscula lançada no interior de uma floresta escura, completamente despro-tegido. Quando estava com Ulisses, pensava Cristiano, sen-tia-se finalmente em paz.

— É incrível, para mim, conceber que fugindo dos pro-blemas com minha antiga mulher, tentando me distrair um pouco das dores de cabeça a que era submetido, eu encontrei o homem que mudaria para sempre a minha vida. Eu, ja-mais, seria capaz de prever que qualquer coisa parecida acontecesse...

Cristiano, ao lado de Ulisses, sentia-se ainda mais ho-mem. Assim como Ulisses próprio também falava o mesmo: ao lado dele, toda a sua masculinidade se aflorava e não ha-via motivo algum no mundo que o faria sentir-se inferiori-zado diante da sua relação com Cristiano. Não havia mesmo mistério algum diante daquele relacionamento: a natureza os fizera assim, e seria assim que Deus – imaginava Cristia-no – os respeitaria como a Sua mais pura e fiel criação. Eis o amor, diria Deus, o amor em seu estágio mais sincero é a maior prova que há de minha existência. Deus, em sua infi-nita sabedoria, criara aquele amor extremamente sincero e bom para confundir ainda mais a cabeça dos homens.

— Não me sinto, de forma alguma, inferior em deitar-se contigo em nossa cama e nos prestarmos ao que há de mais divino no universo. Não me envergonho da maior felicidade que tenho sentido de maneira tão bruta, sem estereótipos, sem prescrições dogmáticas, sem especulações religiosas... O

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medo de amar-te, Ulisses, não existe mais. Ulisses contava sobre todas as coisas que lhe acontece-

ram no trabalho naquele dia, sobre como as colegas sempre procuravam alguma forma de empurrar-lhes para uma aventura qualquer – mal sabiam elas da vida que Ulisses levava ao lado de Cristiano, afinal, era mesmo muito comum este desconhecimento da vida alheia em uma cidade como aquela imensa, com todo o tipo de gente que se pode existir em qualquer lugar do mundo. Aquela existência infinita-mente desinteressante que todos os outros levavam em suas vidas, enquanto Ulisses se entregava a mais sincera forma de amor, era mesmo uma das maiores decepções que este per-cebia sempre que conversava com aquelas pessoas.

Cristiano, na semana seguinte, voltaria ao trabalho e, por isso, temia um pouco o fato de não mais estar plena-mente disponível para atender Ulisses a partir de então. Acostumara-se com a vida tranquila que levava cuidando de todas as coisas, e da casa, enquanto Ulisses trabalhava fora. Ulisses, no entanto, repetia quase sempre o mesmo discurso de Cristiano sobre como era importante buscar, cada qual, a sua independência financeira em tempos tão complexos como aqueles em que viviam.

Aqueles dias últimos de férias, no entanto, deveriam fa-zê-lo muito bem: as mesmas manhãs ensolaradas – refresca-das apenas pelo que sobrou dos ventos frios de inverno – as manhãs ensolaradas, o rádio já ligado bem cedo e o café so-bre a mesa inteiramente ornamentada. O trabalho sempre o

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consumia tanto, mal lhe fornecia qualquer possibilidade para Cristiano experimentar cuidadosamente cada sensação como aquela minúscula que é a manhã ensolarada banhada de sopro frio.

A noite permanecia ainda. Atravessava aquelas horas todas, lançava-se sobre o silêncio grande que logo quase toda a cidade faria. Ulisses, deitado sobre a cama imensa, fechava compassadamente os olhos, de leve, tentando, em vão, escapar um pouco do sono que o encobria. Cristiano, ainda muito vivo, observava-o atentamente, depois cami-nhava até a janela, olhava o mar.

Conseguira, até então, tudo o que sempre sonhara desde a mais tenra adolescência: houvera arrumado um trabalho, saído de casa, estava agora casado com alguém que amava verdadeiramente. O que mais esperar da vida? O mundo todo poderia, quem sabe, interromper todas as suas trans-formações e lançar-se ao mais puro modo estático para que todas as coisas se convertam, plenamente, à eternidade? O mundo todo vivo teria mesmo essa capacidade?

Da última vez em que alguém tocara assim tão profun-damente o seu coração, Cristiano pensou, “enfim, amor”. Lembrou-se, distante, de André, no entanto, todas as decep-ções, todos os desentendimentos que ocorreram em seguida o fez desconfiar de que certas coisas não possuem o mesmo tempo cronológico que foi como os seus avós, ou mesmo seus pais. A felicidade custava, sim, chegar para alguns, mas, certamente, ela logo viria. Bastava a paciência necessária

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para que ele, logo em seguida, lançasse-se novamente a esse abismo.

Cristiano despiu Ulisses cuidadosamente, com receio de acordá-lo. A camiseta que ele colocara depois do banho, a bermuda leve que ele mesmo escolhera da última vez em que foram fazer compras; depois o cobriu até a cintura com o lençol que sua avó mesma lhe dera quando Cristiano se mu-dou para aquele novo apartamento. A luz do quarto, agora, apagada – apenas a pequena luminosidade da cidade lá fora atravessando a janela e derramando-se sobre o assoalho do apartamento. De vez em quando, o vento entrava também, passeava pelo corpo semicoberto de Ulisses, desabrochava no corredor.

Cristiano voltou à cozinha – a mesa ainda posta da jan-ta, os pratos espalhados. Lembrou-se subitamente do pesado que tivera, lembrou-se inesperadamente da barata morta sobre o chão frio da cozinha. Teria sido mesmo um pesadelo ou havia sido real?

Parou um instante: todos aqueles objetos pequenos, to-da aquela louça tão suave; até quando tudo ali permaneceria no presente? Olhar o objeto, agora, seria o mesmo que olhar esse objeto daqui a três, cinco ou dez anos? Qual a linha tê-nue separava o presente do passado? Sua mais profunda preocupação, talvez, consistisse na possibilidade de Ulisses tornar-se, também, parte de um passado bem vivido.

De repente, a lembrança da infância – a lembrança de todos os objetos que, desde as suas primeiras memórias visí-

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veis, já o acompanhavam: o corredor imenso, as almofadas extremamente leves e tranquilas sobre as enormes poltronas, sobre o enorme sofá; a mesa da sala banhada de luz do dia, as flores de plástico mortas e, no entanto, coloridas, sobre a mesa de vidro. As cores felizes de todos aqueles dias, as luzes imensas daquelas horas tão fugidias e, agora, enfim, a reali-dade: o sabor insosso e escorregadio da realidade o tomava por inteiro. Estava a um passo da eternidade? Ulisses dormia profundamente.

Depois o silêncio. O céu abrandava-se ao longo da madrugada. O dia hou-

vera sido muito tranquilo, mesmo depois do pesadelo da noite anterior, o dia houvera sido muito tranquilo e fresco enquanto Cristiano preparava todas as coisas para Ulisses em casa. O vento se lançava ainda sobre o apartamento – parecia querer tomar todo o espaço unicamente para si, en-quanto Cristiano devaneava.

Sentiu que, logo em breve, algo extremamente impor-tante aconteceria em sua vida, mas não sabia ele do que aquilo, em si, se tratava. Ainda naquela tarde sua avó ligara para ele e houvera dito muitas coisas sobre como, no seu último exame médico, o doutor lhe havia apenas receitado alguns calmantes e mais uma pequena dieta com pouco açú-car. Sua avó falava sempre com grande entusiasmo sobre todas as coisas possíveis, perguntava sobre Ulisses, reco-mendava-lhes algumas novas receitas, perguntava sobre co-mo estava Cristiano ao longo das suas férias. Depois passava

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a falar da casa, sobre como sua mãe estava satisfeita e feliz desde que entrara na faculdade – ainda que, para ela, aquilo não tivesse propriamente nenhuma grande finalidade. Mas ela precisa mesmo se distrair, dizia sempre a sua avó.

Depois da ligação, Cristiano lembrou-se de como, quando jovem, sua mãe lhe falava sobre o desejo de estudar.

Silêncio. A desconfiança de que Ulisses em breve o deixaria, en-

tão, de súbito, tomou-lhes toda a face e o enrubesceu. Um frio enorme o encobriu, por inteiro, e era como se o vento grande da madrugada estivesse agora inteiramente dentro dele – recompondo-se em longas rajadas amargas. Se Ulisses o deixasse, pensou, ele morreria. Não seria, de forma algu-ma, capaz de sustentar o peso enorme que a ausência dele lhe causaria. Certamente, pensou ainda, morreria. O apar-tamento enorme, as ruas sempre tão cheias de gente como eram naquela cidade: tudo ali era muito ele.

As manhãs alegres de sábado inteiramente preenchidas de sol e vento fresco não teriam, jamais, o mesmo sabor sem que Ulisses estivesse ali para, ao lado de Cristiano, aprovei-tar todas aquelas sensações tão íntimas. Repetiu ainda: se Ulisses o deixasse, ele morreria. Não haveria mais porque tanto trabalhar, não existiria motivo algum para que Cristi-ano tanto lutasse ao longo de todas essas horas mortas – Ulisses era o ar que Cristiano respirava. Jamais voltaria para casa sozinho, ou mesmo deixaria que aquela ausência o su-focasse pouco a pouco: preferiu não pensar. Esses três anos

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em que esteve ao lado de Ulisses o fomentou a necessidade de sempre estar próximo de alguém que o fizesse verdadei-ramente, passo a passo, feliz.

Mas essa angústia, no entanto, era de onde originária? De Ulisses dependia a sua felicidade? Cristiano não sabia. Não havia como dar prova de algo que nem mesmo Cristia-no era capaz de confirmar existir: não havia alguém no mundo capaz de lhe provar o quanto sua felicidade resistia ainda mesmo em seu estado mais bruto. Entregou-se, assim, de corpo inteiro a Ulisses – como se este fosse, verdadeira-mente, sua grande e única chance de sentir-se, de todo mo-do, feliz. Ulisses, no entanto, de repente, parecia escorrer por entre os dedos de Cristiano como quando tentamos manter intacto um pedaço de areia entre as mãos. E era ali que findara completamente a sua felicidade – a sua tentativa última à verdadeira felicidade.

O amor seria o seu caminho único à salvação? O amor jamais o salvaria, pois mesmo Cristiano desconfiava das incertezas do próprio amor.

— O amor jamais me pertenceu porque ele, em suma, jamais existiu.

Enquanto Ulisses permanecia ainda adormecido, Cristiano caminhava ao longo do apartamento vazio – meio perdido diante de todas as suas lembranças; diante de todas as limi-tações que o seu próprio coração lhe impunha. A cidade

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esvaziava-se por completo agora, um ou outro carro atraves-sava distante a avenida e era possível ouvir vozes perdidas dentro da noite. O rosto pálido de Ulisses sobre o travessei-ro, o calor da sua respiração e toda aquela segurança que apenas ele era capaz de transmitir mesmo diante da noite enorme que jazia sobre a cidade.

— Eu acho... eu acho que... — Cristiano tentava ainda falar qualquer coisa, no entanto todo aquele mistério era demais para ser quebrantado.

As horas foram passando silenciosas. O relógio batia compassado na parede da sala, cada vez mais a cidade pare-cia adormecer ainda mais profundamente. O desespero o tomava agora, a possibilidade que, qualquer dia, Ulisses de-saparecesse completamente de sua vida o angustiava mais profundamente. Se Ulisses assim o fizesse, Cristiano certa-mente morreria.

Nem tudo, no entanto, estava perdido ainda. O peso da ausência de Ulisses seria a dor mais intensa que alguém po-deria carregar ao longo de sua vida e Cristiano, certamente, seria capaz de enfrentar exatamente toda esta caminhada.

A sombra dos seus antepassados o atormentava. Cristiano lembrava-se logo da avó, muito cuidadosa, diante de todas aquelas tardes mornas ao longo do apartamento enquanto Cristiano era ainda uma criança tão frágil e pequena. Do pai, pouco se recordava: talvez apenas algumas visitas esporádi-

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cas – três ou quatro –quando ele tentava, em vão, reconcili-ar-se com sua mãe, mas esta nunca cedera. Depois a tia que, ao chegar do trabalho, carregava Cristiano nos braços e o jogava em sua cama, divertindo-o tanto. Todas aquelas ho-ras eram mesmo iguais? Cristiano não conseguia dormir. Sentia ainda que logo algo aconteceria e para sempre ele seria atormentado por todas aquelas possibilidades que ape-nas alguns poucos que vivem verdadeiramente são atormen-tados continuamente. Qualquer forma de felicidade jamais lhe seria suficiente. Toda a grandeza dos dias e das horas que seguiriam umas sobre as outras jamais preencheria o vazio que Ulisses – somente Ulisses – era capaz de provocar. Aquele era o único caminho a que submeteria toda a sua vida: aquela forma de existir era unicamente a maior gran-deza que uma pessoa poderia possuir verdadeiramente.

A felicidade lhe era fugidia. O próprio gozo, para ele, soava como um retumbante lamento. Todas as pedras que carregava consigo, ao longo dos bolsos pequenos de criança ainda naqueles mesmos passeios antigos com a mãe, sempre lhe foram, sim, tão necessárias quanto o ar de todas aquelas horas mortas. A madrugada logo avançaria profundamente, assim como na última noite e o mesmo tormento que outro-ra o tomou, de súbito, quem sabe agora estivesse completa-mente se dissipado, mas as sensações ainda o acompanha-vam como no dia anterior – a mesma estranheza do aparta-mento, da vida que levava com Ulisses. Se não conseguisse dormir mais uma vez, amanheceria morto de cansado para o

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dia seguinte e Ulisses estranharia o seu comportamento meio irritado diante de todas as horas que se sucederiam. O mundo todo parecia dormir silenciosamente agora e Cristi-ano experimentava a límpida impressão de ser a única cria-tura viva diante de todo o Universo que o contornava. Inspi-rou profundamente – sentiu o ar frio invadir os seus pul-mões. Nada mais, fora daquele mundo que era o seu apar-tamento e a vida ao lado de Ulisses, nada mais fazia sentido algum.

Diante da janela pensou: como seria o seu corpo caindo naquela madrugada última entre todos os vivos no Univer-so? Qual seria mesmo o peso da luz? Usou, no entanto, um pouco do raciocínio matemático que ainda lhe restava: o mundo existe.

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Enquanto Ulisses se lembrava de tudo o que houvera vivido até ali, enquanto a própria ausência da sua mulher – o espa-ço vazio que a ausência do seu filho lhe deixara no coração – enquanto todo esse sentimento o tomava, ele tentava manter equilibrada a sua própria consciência.

O primeiro dia em que dormiram juntos, para ambos, houvera sido tão intenso que, certamente pensaram, ficari-am para sempre unidos. Ulisses, com a fuga, sentia-se intei-ramente livre e capaz de se lançar às maiores aventuras que qualquer coração humano pudesse imaginar. Talvez sua mulher descobrisse todo o seu plano em pouco tempo. Tal-vez ela própria, assim que Ulisses saíra de casa, suspeitava já daquela história sem nenhum fundamento acerca de um trabalho numa cidade tão distante. O que Ulisses buscava agora, com Cristiano, era uma vida completamente nova.

E enquanto ele seguia apressado através do Largo, na-quela última noite de anos atrás em que Cristiano parecia

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não mais querer compartilhar todos aqueles instantes ao seu lado, Ulisses, enfim, houvera tomado a maior decisão de sua vida – pelo menos até aquele momento.

A noite se estendia pela cidade crua, algumas nuvens densas tomavam conta do céu escuro, sem lua, que fazia. Caso um dia voltasse para sua casa, pensava Ulisses, ele in-ventaria qualquer história absurda para sua mulher e a dei-xaria para sempre indo, agora, viver o resto dos seus dias ao lado de Cristiano – aquele homem que mesmo há tão pou-cos meses o compreendia como ninguém no mundo fora capaz de compreender. Aquela cidade era mesmo tão imen-sa que, muito provavelmente, ele jamais encontraria sua mulher novamente – por mais que ela o procurasse, o que certamente ela jamais faria.

Sua casa ficava no alto de uma ladeira enorme, inteira-mente circundada de outras casas tão pequenas quanto à sua. A rua era estreita, ainda mais quando os inúmeros ven-dedores se espalhavam pelas calçadas. Ulisses carregava sua pequena mala arrastando-a meio desconcertado enquanto todos o observavam com certo desprezo. Sua vida seria completamente nova. Sua ambição seria enfim saciada, pois agora ele tinha um homem que também o protegeria e que, acima de tudo, amava-o como ninguém fora capaz de amá-lo ao longo desses anos em sua vida. Esperou um instante no ponto de ônibus. Mesmo àquela hora da noite, um vendedor passava em seu rádio pequeno uma música muito alegre. Ulisses sentia o seu coração palpitar, suas mãos estavam frias

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e seu espírito assustado com todas essas possibilidades que agora se mostravam. Desaparecer de toda aquela gente imunda, desaparecer e nunca mais pisar novamente ali os pés talvez fosse a maior resposta que ele daria a todos aque-les que tanto o desprezaram nesses anos todos.

Um sorriso tímido era desenhado agora em seu rosto – um sorriso quase invisível tomava todo o seu espírito pois, para ele, aquele era apenas o primeiro passo para a vida que durante tanto tempo ele aguardara. Agora, ninguém mais o seguraria. O escuro total que fazia naquela noite, o céu den-so carregado de nuvens pesadas, enquanto seu coração per-manecia leve.

Quando, enfim, ele chegou à casa de Cristiano, este o recepcionara com tamanha surpresa que nem mesmo ele era capaz de calcular. Cristiano jamais poderia acreditar que ao assumir, finalmente, o relacionamento, Ulisses tomasse aquela decisão extremamente inusitada, mas que para Cris-tiano fazia mesmo assim todo o sentido. Enquanto Cristiano ajudava Ulisses carregar a mala pesada até o elevador ele não sentia nem mesmo o peso do seu próprio corpo, tamanha a euforia que Ulisses lhe causara ainda naquela noite de tantos conflitos. O porteiro do seu prédio enfim notara a sua pre-sença.

Ulisses se lembrava de todos aqueles momentos agora com tamanha nitidez que, caso apontasse com a mão, seria ainda possível tocar na sua antiga mala, ou mesmo nos cabe-los macios do seu filho que dormia tranquilamente naquela

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noite em que ele desaparecera completamente de sua vida. Quais teriam sido, pensava Ulisses, as coisas que a mãe do seu filho lhe diria quanto à ausência do seu próprio pai? A saudade que sentia do seu filho lhe rebentava como uma faca em seu próprio coração. Ele jamais poderia se desfazer assim das coisas que houvera construído – quanta bobagem acreditar que aquilo seria mesmo possível! Como ele pode achar que ao lado de Cristiano seria possível iniciar uma vida nova – despida de tudo o que houvera vivido até então? Seu filho, quem sabe, estivesse esperando-o ainda, desde aquela noite em que ele o deixara.

De repente, lembrava-se também do seu próprio pai que desaparecera quando Ulisses era ainda tão pequeno quanto o próprio filho. Ele ainda guardava do pai uma imagem úl-tima: a pequena fotografia que levava consigo no bolso até os sete anos, depois, foi se esquecendo da imagem, passou a perceber que seu herói, tal como o próprio Ulisses o conce-bera, jamais houvera existido. Depois foi a vez da sua mãe também desaparecer deixando-o ao cuidado dos avós. En-graçado, pensava Ulisses, como a história sempre teve esse hábito de repetir-se continuamente. Ele, no entanto, sobre-vivera. Era uma grande vitória a sua de manter-se vivo dian-te de todas as coisas que lhe aconteceram, diante de toda a sua família que, aos poucos, abandonava-o passo a passo. Quando estava já com a avó – esta mesma abandonada pelo próprio marido – Ulisses agora com seus quase dezessete anos, resolveu então sair de casa e nunca mais voltar. Sua

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família, pensava ele agora, eram os seus poucos amigos. Cristiano. Encontrara Cristiano numa noite dessas

qualquer. Havia deixado a mulher e o filho para divertir-se num desses becos meio imundos da cidade – rodeado da-queles que tanto o desejavam.

Cristiano, no entanto, era diferente de todos os outros e foi exatamente por isso que Ulisses poderia sempre contar com ele para todas as coisas que precisasse. Para Cristiano, Ulisses nunca tinha nenhuma dúvida, pois sua presença era já suficiente para que todas as coisas passassem a fazer sen-tido. E assim, de repente, Ulisses estava já na cama de Cristi-ano. Para sempre.

Ulisses, agora no uso de todas as suas faculdades, se-guindo todas as manhãs para o trabalho, chegando ao final da tarde em casa – ou, quando a cidade imensa parava, no começo da noite enquanto Cristiano permanecia ele tam-bém à sua mais tenra espera.

— Daqui a pouco precisaremos de um apartamento maior, dizia Cristiano.

— Também com vista para o mar? Cristiano tinha em mente todo o futuro já planejado pa-

ra ambos, pois desde muito cedo, aprendera o que deve ou não ser feito para que se tenha uma vida repleta e feliz.

Ulisses já o sabia: toda a sua vida houvera já sido plane-jada por Cristiano. Todos os seus dias seguindo o mais puro ritual que pode existir em uma relação – seguindo os mes-mos passos que já seguira anteriormente quando havia a sua

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mulher e o seu filho, sabia Ulisses. Aquilo não poderia mesmo, de forma alguma, ser real.

Ulisses desacreditava agora do Cristiano que conhecera e que se relacionara ao longo daqueles primeiros meses to-dos eles repletos das mais grandiosas aventuras que alguém poderia conceber.

Atrás de todos aqueles dias, bem atrás mesmo, não po-deria jamais existir qualquer forma de felicidade.

Ulisses, agora, tinha plena consciência de tudo o que houvera feito dele mesmo, de tudo que Cristiano inclusive tinha já planejado, mas mesmo assim Ulisses o amava. Ulis-ses o amava de um amor impuro e errôneo pois acreditava ele que somente Cristiano seria mesmo capaz de salvá-lo da própria dureza que habitava em seu coração.

Cristiano agora abrindo os olhos calmamente, desafian-do também o olhar de Ulisses ainda atônito, repleto de si. Respirando profundamente, por pouco aliviado, mas seguro novamente da possibilidade que há tanto assolara o seu co-ração. Não haveria mesmo resposta alguma no Universo. Não haveria mesmo quem pudesse, de alguma forma, resga-tá-lo da sua própria vida.

— Dormindo? — Perguntou Ulisses sussurrando. — Há muito não durmo, respondeu Cristiano. Há mui-

to o medo tem assolado o meu coração tão diretamente que a própria calmaria do sono não me é mais possível.

— Precisamos acertar algumas coisas agora, então. Cristiano respirou profundamente. Por um momento

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todo o seu corpo tremeu um pouco, depois ficou gelado e imóvel. Os lábios meio ressecados e o rosto pálido. Os olhos continuavam abertos e sua vida parecia ter voltado de novo ao começo. Por um rápido instante, o desespero na sua for-ma mais pura assolara o coração de Cristiano enquanto este tocava levemente com a ponta dos dedos o cobertor macio.

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De repente, pensou: O quarto em que estou parece mais tranquilo como o

de costume. Meu corpo dói e preciso de muita força para, ao menos, levantar-me da cama - tudo isso, certamente, sem acordar Ulisses que dorme ainda ao meu lado. Decidida-mente, estou entregue ao que o futuro me reserva.

Há poucos anos mantenho o antigo ritual de acordar excessivamente cedo para deixar já preparado o café forte com pãezinhos quentes para Ulisses. Ele sempre muito aten-to ao jornal como se aquelas notícias de alguma forma fos-sem afetá-lo: o que jamais aconteceria para uma pessoa co-mo ele.

Para mim, aquele seria mais um dia como todos os ou-tros que o antecedem - levantar cedo, comprar os pãezinhos e, depois, preparar algo saboroso para o almoço. Tudo, às vezes, acompanhado pelo olhar atento de Ulisses e, de vez em quando, alguma de suas raras opiniões na cozinha. Ele,

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no fundo, nunca esteve muito a par dos afazeres que me eram tão comuns.

Fui até o espelho do banheiro onde senti que as coisas estavam, sim, mudando a todo instante - o rosto que pairava diante do espelho estava muito diferente e as mãos, agora trêmulas, não carregavam mais aquele antigo ar de pura força. As flores estavam estranhamente brancas e, ao meu lado, as cortinas pareciam levitar diante dessa mansidão que pairava sobre toda a casa.

Sentei um pouco e esperei que aquele sentimento pas-sasse. Não existem muitas emoções novas a se experimentar depois de alguns anos de casados. De repente, lembrei-me de todas as vezes que, na fazenda, permanecíamos, eu e Ulis-ses, sentados diante da varanda em meu jardim - a cidade ainda tão pequena, as pessoas todas tão limitadas e eu, jo-vem ainda, com tanta coisa por viver.

O que esperar agora da vida? Todas as emoções já sen-tidas, todas as palavras tantas vezes ditas - absolutamente tudo no mundo parecia ter sido feito ou, alguma vez, expe-rimentado. E, ainda que houvesse alguma coisa por fazer, certamente eu não teria mais ânimo algum ou energia para fazê-lo. Todos os meus sonhos - mesmo aqueles que inclusi-ve eu ficava espantado - todos os meus sonhos foram deixa-dos, sim, para trás em troca de uma vida tranquila ao lado do homem que ainda hoje segue comigo.

As coisas poderiam ter sido diferentes. Mas, nem sem-pre “ter acontecido de maneira diferente” significa “ter sido

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melhor”. Ainda assim, havia tantas possibilidades. Lembro-me de ter acordado, certa vez, aos quinze anos e, diante da madrugada escura ter pensado o quanto havia ainda por viver - todos os caminhos que havia por trilhar, ou todas as pessoas que eu estava ainda por conhecer. Estando eu diante dos meus quinze anos, pensava que aquilo, certamente, era o começo da felicidade.

Tudo foi tão rápido. Todos os anos que foram seguin-do indiferentes, todas as coisas que vivi - tudo aconteceu tão rápido que nem sequer percebo, às vezes, ter a idade que realmente tenho. O que se esperar quando lhe vem a certeza de que nenhuma coisa diferente acontecerá mais em sua vida?

Nenhuma outra viagem será tão emocionante como aquela feita para o Recife anos atrás. Nenhuma felicidade igual àquela que senti ao entrar em nosso novo apartamento. Ou quando Ulisses era promovido em seu trabalho e saía-mos para jantar e ver a praia à noite. Nenhum desses senti-mentos. Nunca mais.

Viver é o bastante? Em busca dessas coisas boas que nos são sempre tão essenciais, passei pelos caminhos mais bonitos. Nenhuma outra palavra sairá da minha boca senão os pedidos de agradecimento por tudo que me foi dado e os velhos pedidos de perdão. Não possuo mais o direito de er-rar. Não há tempo.

Ou melhor: há tempo. Eu é que não o tenho mais. Quando percebi, parecia terem passados cinquenta anos e

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minha vida estava ainda meio estacionada nas coisas que houvera construído desde os meus vinte e três anos quando me casei com Ulisses. A certeza de que jamais poderei carre-gar no colo um filho e acaricia-lo é a coisa mais dolorosa que posso imaginar.

Nessa manhã, Ulisses estava um pouco estranho tam-bém e, ao sentar-se à mesa, deslocou a sua xícara transbor-dante de café quente e pediu um pouco de vinho para co-memorar. Fiquei confuso. Achei inclusive ter sido uma pia-da, mas, enquanto ele continuava a olhar em meus olhos à espera da garrafa de vinho, percebi que ele falava sério. Hesi-tei ainda antes de pegar a garrafa e, despercebido, permiti que ele tocasse o meu corpo como, há muito, não houvera tocado.

Eu não sabia ao certo o que fazer. Como disse, existem determinados sentimentos que não nos são mais possíveis e, dada talvez a personalidade tão singular de Ulisses, ele, com certeza, não houvera sido inundado pelo simples desejo se-xual. Ele estava me tocando com uma delicadeza singular - como se todas as coisas no mundo houvessem perdido o sentido e aquele fato somente fosse o que há de vivo em todo o universo.

Depois do seu toque, vi que ele estava estranhamente nervoso. Talvez houvesse desistido do vinho, ou, quem sabe, houvesse finalmente desistido inclusive de mim e da vida que levara esses anos ao meu lado. Mas a segurança de que desperdiçar tudo o que houvera sido construído àquela altu-

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ra seria uma enorme ignorância me confortava. Estávamos na cozinha, diante de uma enorme janela e, por um momen-to, receei com a possibilidade de algum vizinho nos ver. As pessoas, certamente, não compreenderiam a profundidade do que estava acontecendo e, principalmente, não compre-enderiam o quanto eu o amava ainda.

Levei a garrafa até a mesa e, novamente, sentei-me di-ante dele. Mostrou-se um pouco nervoso e ainda assim ele mesmo abriu o vinho e colocou em duas taças que ganhara do seu antigo patrão e guardara ainda com muito gosto.

— Lembre-se que ainda é possível ser feliz… Eu respondi: — E por que não seria? Brindamos delicadamente e, enquanto saboreávamos

o vinho tinto, ele me olhava ainda como se aquela fosse re-almente a hora final de nossas vidas. Respirei profundamen-te.

Depois, levei mais um gole de vinho à boca e fui per-cebendo o modo estranhamente artístico que o vinho tinha de permanecer repousado sobre a taça.

Olhei, por um instante, as horas que corriam, corriam e, depois, enfrentei aquele rosto assustado por conta de to-das as coisas que nos aconteceram ao longo dos anos: Ulisses estava ainda meio abobalhado com a vida que levávamos agora - estava meio abobalhado com essa coisa absurda que se transformara o mundo e, naquele momento, certamente nem ele mesmo se orgulhava de fazer parte desse modo es-

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tritamente animal que as pessoas tinham de levar a vida. O vinho seguia com o seu modo extremamente artístico - plás-tico. Lá fora, o jardim jazia calmo. Tudo nos desafiava.

Não tive nenhuma intenção de questioná-lo ou mes-mo reafirmar o quanto era bom estar ao seu lado naquela manhã tão cheia de sol - não tive intenção nenhuma de compreender todas as coisas que nos aconteceram e eram ainda tão presentes em nossa vida. Depois, Ulisses segurou as minhas mãos e continuamos sentados um frente ao outro, naquele modo muito comum aos recém-namorados. Talvez, continuar me amando fosse a maneira mais eficaz de pagar toda a liberdade que ele me privara ao longo de nossas vidas.

Aquele, quem sabe, fosse o começo da nova vida que éramos obrigados a levar - depois de todo esse tempo um ao lado do outro, poderíamos nos dizer que, enfim, éramos casados, mas o perigo de não possuir necessariamente nada de novo por viver continuava nos assombrando. Todos os nossos amigos iam se esgotando um a um - todas as ruas que costumávamos caminhar sempre muito abraçados ia se transformando até perder completamente a sua textura de natural tranquilidade: absolutamente tudo o que nos era tão comum transformara-se para sempre. E tudo aquilo que fomos um dia já não éramos mais. O vinho me escorria tranquilo, leve. A respiração seguia fria, perdidamente entre-laçada entre o sabor adocicado e a necessidade de viver.

Ulisses estava cabisbaixo e por um momento pensei ter saltado do seu rosto uma lágrima transparente e salgada.

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Depois, voltava-se à janela, carregado por um ar perdido – como se todas as coisas que fizera da vida não possuíssem mais sentido algum. Era um falido, pensava ele talvez. Espe-rei me dizer alguma coisa - esperei ele confessar qualquer coisa que o fizesse mais tranquilo e reatasse a sua aura de bom homem.

Quando toquei finalmente o seu rosto, ele sorriu so-mente. Respirava muito profundamente e sorria como cri-ança. Senti-me tão atordoado e, ao mesmo tempo, inundado por um alívio estranhamente simples que, por pouco, não lhe falei uma bobagem qualquer - preferi continuar em si-lêncio, pois depois de tantos anos de convivência, houvera percebido que, muitas vezes, as pessoas precisam simples-mente de alguém para ouvir. Eis o necessário. De repente, lembrei-me de quando o conhecera há tantos e, no entanto, tão poucos anos atrás - e ele sorriu para mim enquanto eu estava meio cabisbaixo por timidez. Éramos estranhos até então quando, por impulso talvez, eu o convidei para con-versar um pouco. Quase explodi de emoção - aquele rapaz que mais parecia estalar de tão lindo com seus olhos claros, meio marrons, ter vindo até a mim e, sem nenhum pudor, aceitado o meu convite para conversar um pouco. Depois daquela noite, passamos a nos ver, ao menos, uma vez por semana até quando, diante das coisas todas que nos aconte-ceram, unimo-nos de uma vez. Parecem tão poucos os anos, mas a convivência os tornam tão significativos – todos os dias compartilhar com alguém as horas mais claras e tam-

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bém as mais duras. O caminho que escolhemos, quem sabe, não nos tenha feito felizes, no entanto, o modo como traça-mos nossos caminhos foi o que manteve viva essa chama que sempre existiu ao nosso redor. O tempo não custava a passar quando estávamos um ao lado do outro e, ao perce-bermos, houveram passados três anos de convivência.

Existem tantas formas de levar a vida, mas, ao certo, viver é sempre seguir um caminho tão único que me assusto às vezes com as poucas possibilidades que nos podem ser dadas.

Passamos a morar na Barra num apartamento cuida-dosamente arrumado, o que não durou muito dada a neces-sidade que tínhamos de estar perto da terra. Precisávamos de um jardim enorme à nossa volta e um quintal para espa-lhar os filhos futuros - o que era muito comum naquela épo-ca. Depois de alguns meses de casados, fui com Ulisses pas-sar um tempo no interior, enquanto duravam as férias, na antiga fazenda da minha tia. Nessa mesma casa recebemos muitas visitas de nossos amigos - fazíamos grandes festas em torno do enorme jardim à nossa volta. E esse jardim sobre-vive ainda ao peso do tempo - a casa está muito diferente, os móveis foram se perdendo ao longo dos anos, as pessoas que por tantas vezes nos visitaram desapareceram completamen-te. Enquanto nós permanecíamos ainda resistindo ao pró-prio tempo.

De repente, percebi que, diante desses anos que nos pesavam agora sobre os ombros, a única coisa que nos resta-

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va era o fato de possuirmos um ao outro. Toda a nossa vida fora dedicada unicamente a isso. Agora, a vida é tão somente um quadro que permanece ainda diante da nossa janela: o movimento que acontece tão somente lá fora. Essa espécie de loucura não nos pertence mais. Viver não nos é mais pos-sível.

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Naquela primeira manhã, Cristiano sentiu que não podia mais.

“Talvez você jamais me compreenda, Cristiano, mas preciso ir-me agora para nunca mais. Eu vos suplico: não morra. Por mim e por tudo o que de bom vivemos um ao lado do outro; eu vos suplico: enfrente todos os momentos que seguirão mesmo sem a minha presença ao teu lado por-que eu não tenho nada mais nessa vida a não ser a certeza do teu amor. Enquanto houver vida, todas as coisas no mundo hão de se consertar... enquanto houver você, eu tenho abso-luta certeza de que há ainda, vivo no mundo, o mais verda-deiro amor. Eu suplico que Deus nos ajude; eu Vos peço que essa incompreensão seja a maior dádiva que possa haver no mundo porque não somos nada mais que essa pura e solitá-ria incompreensão. ”

Agora sozinho, naquela cidade tão pequena e vazia, Cristiano percebera que não era mais, de forma alguma,

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possível lutar contra aquela possibilidade que há tanto sem-pre permaneceu em sua memória, redobrando o fardo pesa-do das suas costas: enfim, a batalha houvera se dissipado. Sentiu-se derrotado, mas ao mesmo tempo certo alívio to-mou conta da sua alma porque não mais havia dúvida algu-ma que assolasse o seu coração. Todas as dúvidas tinham caído por terra. Todas aquelas sensações absurdas – todas as madrugadas em que o sono demorava tanto por vir – toda a sua intranquilidade diante da simples possibilidade de, um dia, Ulisses não mais estar em sua vida era, agora, real.

Estendeu os braços vazios – debruçou-se contra o seu próprio corpo e, por um momento, sentiu um leve desequi-líbrio. Os braços vazios estavam ainda repletos do que so-brou da presença de Ulisses: os braços vazios possuíam ain-da alguma coisa estranha – as sobras do carinho, do cheiro adocicado e, ao mesmo tempo, feroz daquele que, nesses últimos anos, fora inteiramente seu de corpo e espírito. No quarto, quase nada restara do seu homem: as roupas, ou mesmo os poucos objetos pessoais, não estavam mais nos lugares de costume como nos últimos dias em que estiveram naquela cidade. De repente, Cristiano tentava chorar baixi-nho. Aquela era a sua forma mais íntima de expressar o peso imenso da dor. Depois redobrava a consciência, tentava não pensar. Mas era mesmo impossível acreditar que poderia voltar para o seu apartamento, na capital, e retomar a sua vida tal como era anos atrás, antes de Ulisses aparecer. Fa-çamos assim, pensou Cristiano baixinho, eu vos deixo ser e,

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em troca, ele me deixa ser também porque a maior prova de amor que uma pessoa pode dar a outra é a possibilidade de esta ser aquilo que verdadeiramente sempre fora, mesmo nos tempos mais remotos em que nem havia ainda aquele amor.

U-lis-ses. Sussurrava de maneira quase inaudível e, as-sim, um frio intenso assolava o seu coração. Incrível era mesmo a força que certas palavras pareciam ter quando, em nossas vidas, elas verdadeiramente têm. Talvez Cristiano não voltasse mais ao apartamento e à vida que deixara na cidade – antes de lançar-se ao descanso desses dias no inte-rior. “Terei de enfrentar as mais duras horas tendo apenas a mim mesmo como maior companhia”. Esta era a vida, repe-tia Cristiano para si. U-lis-ses.

Sentou-se um pouco sobre a cama ainda desarrumada – os lençóis meio espalhados, os travesseiros ainda amassados com o calor de seu corpo – sentou-se na cama e preferiu engolir toda aquela dor inteiramente sozinho: não chamou por ninguém naquele instante. Toda a sua dor – todo o de-sespero que desde a mais antiga infância assolava a sua vida – houvera se solidificado e tomado corpo. U-lis-ses: bastava um nome para que tudo fizesse sentido. A janela aberta de-nunciava o dia que estava já amanhecendo lá fora: toda a vida continuando como sempre fora desde quando Cristia-no ainda se pertencia.

Se houvesse ainda o mar à sua espera, assim como quando tempos atrás Cristiano caminhava com a sua tia, se

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houvesse ainda o mar e todas as possibilidades que uma ma-nhã ensolarada na praia é capaz de nos oferecer, quem sabe as coisas não fossem, de certa forma, um pouco menos duras para com Cristiano? No entanto, o peso da cidade perdida naquele espaço inteiramente verde e frio, a atmosfera morta e sombria da cidade que aos poucos vai se esvaziando pare-cia sufocá-lo ainda mais. A solidão era agora a sua maior companhia. Cristiano sabia que nunca retomaria a consci-ência, tal como fora anos atrás.

As mesmas cortinas que ainda na manhã anterior esvo-açavam livres, agora pareciam densas e perturbadas. Ne-nhum vento – mesmo aquele mais fresco da manhã – era capaz de consolidar qualquer movimento ínfimo. O pano frio mantinha a sua estrutura imóvel, como se todo ele fosse a mais dura escultura de mármore projetada por um grande artista. A janela estava ainda aberta enquanto o dia desabro-chava lá fora.

Tentou ainda dormir um pouco, tentou fazer como se aquele momento fosse apenas um pesadelo triste que logo passaria assim que acordasse. Voltou à cama, debruçou-se sobre a leveza melancólica dos lençóis, os olhos acentuavam ainda mais toda a tristeza que assolava o seu próprio cora-ção. Enquanto permanecesse completamente sozinho, tran-cado naquele quarto pequeno, o mundo todo parecia não estar a par da sua nova situação. Poderia esconder-se de to-dos os amigos – até mesmo de sua própria família ou de tudo o que se sucedera. Suas mãos jorravam uma frieza qua-

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se sobrenatural. Cristiano teve medo. A manhã desenvolvia-se tranquila. De vez em quando o

canto cadenciado e rítmico de um pássaro adentrava os seus ouvidos de modo suspeito e estrangeiro. Poderia ainda sen-tir a leveza do seu perfume? Aquele mesmo aroma adocica-do de Ulisses que mais parecia cheiro frio de mato molhado tomava conta de todo o seu quarto, do seu próprio corpo e, inclusive, do seu espírito. Então, perguntava-se: como se livrar assim do cheiro forte de alguém? Como livrar-se do aroma triste de uma pessoa quando esta é capaz de incendiar toda a sua alma com a mais intensa força que apenas a soli-dão se faz irradiar?

O vento assobiava tranquilo sobre os telhados – escorria diante dos seus pés docemente. Incrível, pensava Cristiano, como era possível, mesmo assim, Ulisses fazer parte daquele ambiente extremamente solitário e duro que era o mundo agora. Cristiano sabia que mesmo sem Ulisses, este ainda preencheria o vazio na vida de qualquer pessoa que fosse no mundo – menos ele. Apenas Cristiano estaria inteiramente fora deste imenso conjunto de almas humanas a serem pre-enchidas pelo espaço que somente Ulisses é capaz de preen-cher. Logo, todas as demais horas decorreriam compassadas, a tarde se construiria e o céu iria se contorcer de preguiça para as horas seguintes que também deveriam chegar. E logo tudo seria contornado pelo laranja sombrio do crepúsculo até que a noite tomasse forma e invadisse todo o céu o fa-zendo extremamente vazio de qualquer forma possível de

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vida. Perguntava-se: que palavra seria mesmo capaz de ex-pressar toda forma de dor que estava agora experimentan-do? Haveria resposta alguma no mundo que o consolasse de que, supostamente, aquele era o seu destino mesmo depois de todos esses anos compartilhando sua vida com alguém até então – e agora ainda mais – desconhecido? As mãos trêmulas foram tocando o seu corpo triste e vazio – os lábios meio ressecados e os olhos condensados intensificavam ain-da mais todos aqueles sentimentos. Lembrara-se que na se-mana seguinte – será mesmo real ou fruto de qualquer delí-rio seu agora – na semana seguinte seria o aniversário de Ulisses. Seu estômago soava frio, era tomado por uma frieza estranhamente inexplicável enquanto o coração palpitava feroz. Cada vez mais, Cristiano percebia que a sua grandeza residia no fato dele próprio não compreender o quanto sua vida houvera sido inteiramente repleta da mais pura felici-dade. Agora, no entanto, sua própria voz se calava triunfante enquanto seu rosto macio espreitava o silêncio matinal do quarto – os lençóis ainda derramados sobre a cama e o es-tranho peso que a ausência de Ulisses lhe causava faziam tremer ainda mais as suas mãos.

A estrada seguia indiferente – o caminho raso, repleto de poeira seca e, levantada pelo vento, quase transparente. Os galhos pesadamente carregados de folhas balançavam ziguezagueando; o sol estourava ainda mais forte diante do céu – seriam dez horas da manhã, ou quase onze? Se ele morresse, pensou, se Ulisses morresse talvez aquele peso o

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deixasse e Cristiano, então, pudesse continuar a viver – mas havia ainda tantas coisas por acontecer: havia ainda tantas possibilidades.

Debruçava-se diante da sua própria solidão e buscava nela a força para seguir adiante. Pensou: por mais que ele não estivesse consigo – ao seu lado tomando o café ou che-gando cansado do trabalho – por mais que ele não estivesse consigo, ninguém – absolutamente ninguém – o tiraria do seu próprio coração. Ali dentro, Ulisses poderia viver eter-namente; infinitamente guardado apenas para si. O seu co-ração acelerava cada vez mais – estou vivo! Pensou. E era como se aquele começo de vida para Cristiano fosse, na ver-dade, o ingresso ao mais sombrio espaço que pudesse existir em si mesmo. Caso pudesse ainda respirar, quem sabe as coisas tomassem ainda outra forma.

Cristiano jamais ceifaria o direito de Ulisses de viver. O mundo, pensava ele, era bem mais interessante com Ulisses nele. Mas quanto a ele próprio? Que mais restaria de tudo o que se dissipou de sua própria existência? Os seus contornos leves, a sua voz adocicada que durante tanto tempo preen-chera o apartamento da avó com a mais doce alegria que alguém pode irradiar – será mesmo que alguém sentiria a sua falta? Caso o seu coração deixasse, de repente, de bater e tudo no mundo para ele fosse agora o passado de um morto, absolutamente ninguém seria capaz de notar a sua ausência. As praias desertas continuariam a levantar a brisa salgada de ondas, o parque explodiria de tão verde e outras crianças

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atravessariam a sua estrutura metálica, como forma de abra-ço. O apartamento também continuaria – com as suas corti-nas leves, a toalha imensa sobre a mesa e o corredor vazio com seu vizinho sempre tão curioso. Morrer seria mesmo uma grande possibilidade – cessar tudo o que restara da sua vida seria a forma mais romântica de terminar toda essa história com Ulisses; enquanto o mundo continuaria intei-ramente indiferente à sua própria ausência. Cristiano há muito não pensara tanto em Deus como naqueles momentos em que se encontrava, sem Ulisses, completamente despido de corpo e de alma. A palavra “Deus” lhes soava agora como alguma possível explicação de como todas as coisas no Uni-verso precisam realmente de alguma lógica – mesmo im-própria – para perdurarem ao longo da eternidade. Deus seria a grande lógica de todas as coisas – não o Deus huma-nizado que tantos acreditam conhecer, mas aquele em que consistia sua própria existência no mistério que somente Ele, desde o mais remoto dos tempos, é capaz de incitar.

Abriu a porta da casa, observou o jardim repleto de borboletas pequenas tocando rapidamente flor a flor com a mesma alegria daqueles que não sabem que vivem. Algumas nuvens atravessavam agora o céu imenso – o relógio marca-va meio-dia – e algumas crianças passavam pela estrada pe-quena voltando da escola. De repente, lembrou-se de quan-do ainda era como uma dessas crianças e o mundo ainda não o houvera machucado de maneira tão direta. Depois foi crescendo e os anos foram se tornando cada vez mais obscu-

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ros até, finalmente, ele conhecer a verdadeira felicidade que se é possível experimentar quando se compartilha, com o outro, a sua própria vida.

Uma nuvem atravessava agora o sol. Soprava um vento frio – tal como o da própria madru-

gada. Certo silêncio se consolidou naquele ambiente, naquele

começo de tarde em que todas as coisas pareciam nesgas de sol.

Sim, Ulisses o amava. Sentiu-se livre então daquela prisão que ele próprio

construíra. O amor era a sua própria prisão. Incrível como qualquer pessoa no mundo acreditava que apenas o amor seria capaz de libertar o próprio ser humano sem, no entan-to, perceber que quanto mais se é lançado até ele, mais se é escravizado. O sentimento de posse que se constrói, a neces-sidade de estar cada vez mais próximo um do outro, a sede de corpos que de repente se intensifica: escravizar-se por um sentimento ainda tão desconhecido seria mesmo a maior forma de experimentar a felicidade que somente alguns poucos são capazes de sentir? Enquanto vivia, Cristiano to-mava para si aquele absurdo, depois o repugnava e ria do próprio destino que, assim como qualquer outro, fizera-o inteiramente inclinado àquela sensação já tão conhecida – desprovida de qualquer novidade. Amor e eternidade se completam mutuamente porque, para existirem, precisam escravizar toda forma humana de vida.

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Agora, Cristiano não mais permitiria que o amor – ou qualquer outro sentimento – o escravizasse. A súbita im-pressão de que o amor era apenas uma criação humana, co-mo qualquer outra, tomava por inteiro o seu coração, en-quanto a tarde debruçava-se às duas horas.

Impossível acreditar que aquele sentimento pudesse mesmo ser real ou não uma criação fantasiosa da sua mente sempre tão fértil, pronta para agir. Enquanto mantinha a carta tão breve ainda entre os dedos era como se aquela fosse a ma-neira última de, ao menos, poder sentir o sabor inexplicável do toque. A tarde prosseguia indiferente, alaranjando-se no horizonte. A rua estreita continuava tranquila, completa-mente vazia de qualquer forma estranha de vida. Da casa, atravessou correndo o jardim, debruçou-se no cercado grande de madeira cravada na terra: as nuvens corriam tranquilas, completamente banhadas pelas cores do sol que se punha diante do céu e parecia contorcer-se em cólera. Nem mesmo uma criança corria feliz ao longo da estrada pequena de terra pisada, nem mesmo um pássaro rasgava o espaço. As plantas balançavam tranquilas, movendo os ga-lhos frondosos com o vento frio daquele fim de tarde, os insetos corriam invisíveis ao longo dos estreitos caminhos, debaixo das folhas mortas. De repente, no entanto, um gato preto preparando-se para o bote: baixando a cabeça cautelo-samente, parecia mesmo manter a vítima distraída com o

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bailar da sua cauda em riste. Pensou: sim, sim. Tudo o que ele lhe houvera dito ressoava ainda na sua cabeça. A sensa-ção estranha de perda que aquela situação lhe obrigava su-portar era mesmo formada por um peso incalculável de tris-teza. O vento frio da tarde que caía, o céu alaranjado, a es-trada estreita de terra e o gato que se preparava cauteloso: tudo agora existia sem mais haver Ulisses em sua vida. Ao longo da rua, próximo à sua casa, morava um velho sozinho que estreitava a sua calçada abrindo o portão. Nunca se ca-sou o coitado e, agora, estava obrigado a viver na mais pura solidão que se é possível imaginar. Se ele, quem sabe, hou-vesse tido, ao menos, uma namorada, existiria no mínimo a lembrança daquilo que não ficou. Os passos tranquilos de Ulisses, no entanto, insistiam ainda em atravessar lentamen-te a estrada – fazendo suas marcas no tapete enorme de po-eira que se misturava ao barulho almofadado dos sapatos batendo contra o chão. Aqueles mesmos passos que, outro-ra, costumavam trazê-lo para os braços de Cristiano, aqueles mesmos passos – tão jovens – que desde o começo promete-ram ser para sempre dele, no entanto, não mais atravessari-am aqueles caminhos. Cristiano houvera sido feliz. Mesmo diante das enormes adversidades que cada vez mais se soli-dificavam agora à sua volta, Cristiano tinha de verdade con-seguido construir um passado intensamente vivido: todas aquelas manhãs ensolaradas, as noites intermináveis em que, juntos, observavam atentos o mar, os corpos despidos um sobre o outro. O apartamento vazio existia, bem como as

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flores sobre a mesa. Existiam também as árvores em volta da casa e o vento escuro que as açoitava durante a madrugada. Existia o relógio pregado à parede que contava, contava, existiam todas as pessoas, todos os vizinhos. A cidade que se encolhera para anoitecer também existia e o velho sentado à beira do caminho, sobre a calçada. Existia a solidão daqueles que amam – que, pensava Cristiano, era a dor maior que alguém poderia carregar ao longo da vida. Curioso como a sua intenção houvera sido tão precisa.

Todas essas coisas precisariam mesmo de um sentido qualquer. A cidade pequena em que vinha a passeio desde os tempos mais remotos de vida – a sua tenra infância ao longo das enormes plantações de laranja e os olhos d’água imen-sos. Esta era a vida. O vizinho lhe acenava tranquilo e só. Seria mesmo possível que todas as coisas há pouco vividas com Ulisses pudessem acabar assim de repente? Qual o sen-tido de justiça acompanhava todos aqueles acontecimentos? Era mesmo possível que Ulisses batesse novamente à sua porta implorando-lhes perdão, dizendo que ordenou melhor as ideias e aquela não era a decisão mais sensata? Uma liber-dade indescritível tomava conta do seu corpo por inteiro: a liberdade daqueles que estão sujeitos à mais dura solidão de pássaro selvagem lhe acalmava agora todo o espírito. Havia ainda a vida a ser vivida intensamente – acabou o amor, mas a vida – superior – teimava continuar pulsando.

O mundo todo beirava agora à sua frente e o desafiava em êxtase. A vida tranquila naquela cidade quase insignifi-

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cante ou o turbilhão imenso da capital que mais parecia um motor incansável de amor e ódio em si mesma? Desde que recebera o bilhete de Ulisses, ele parecia quase desacreditar em toda a humanidade – mas havia ainda muito que viver ao longo da pequena estrada que era a sua vida: havia ainda o amor, a esperança e a própria solidão. A esperança de que chegariam dias melhores, de que a vida não lhe seria assim completamente intolerável, pensava Cristiano.

Os dias seguiriam calmos e vazios. A possibilidade da vida tranquila naquela cidade lhes aquietava o espírito. Mesmo todos aqueles instantes que cada vez lhes acenavam estranhos diante da ausência de Ulisses não ficariam para sempre, como acreditava Cristiano naquele momento. Enca-rar a vida de frente, extrair o que dela houver melhor e de-pois lançar-se ao abismo grande da morte – mesmo ainda em vida. Eis o caminho.

O vento arrastava uma pequena folha que parecia ex-plodir de verde perdida naquele cenário agora cinza. Cristi-ano tomou-a com as mãos abertas, acariciou-a com a ponta dos dedos e lançou-a ao longo do caminho agora infindável.

Um ou outro transeunte seguia pela estrada, puxando a mão do filho com pressa, o céu escurecia e os primeiros pontos brilhantes começavam a aparecer. Cristiano ainda imóvel diante da estrada perguntava-se estarrecido: seria ele mesmo que pertencia à cidade ou a cidade o pertencia com-pletamente? Permaneceu em silêncio completo, pois não tinha mesmo nada a falar; não tinha absolutamente palavra

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alguma que o fizesse transmitir a dor imensa que assolava agora todo o seu coração. O silêncio sempre fora a sua maior forma de expressão.

Qualquer possibilidade de ser feliz deixava agora de existir para ele: não havia força alguma no mundo que fosse capaz de aliviar a sua dor – não havia criatura humana que conseguisse substituir a tranquilidade que só os traços de Ulisses carregavam com tanta naturalidade. No entanto, diriam os outros, havia tantos na cidade grande que deixari-am, sim, suas vidas para compartilhar, ao lado de Cristiano, aquela sua maneira tão própria de existir; diriam ainda: você é tão jovem, garoto, que nem mesmo compreende a corrente natural da vida e a forma de acontecer que algumas coisas possuem. Depois, pedir-lhe-iam que tivesse calma, que não levasse assim este assunto tão a sério, pois o tempo logo se encarregaria de corrigir aquela situação toda. Sempre há algo possível de se falar em qualquer situação da vida, pen-sava Cristiano; as pessoas teriam sempre argumentos que ao menos tentariam fazer Cristiano esquecer a dor imensa que acompanharia o seu coração para sempre. Lembrou-se, subi-tamente, da figura da avó sempre tão preocupada em relação às escolhas que ele houvera feito até ali, depois a mãe que certamente o apoiaria em qualquer decisão sua – qualquer decisão, no entanto, que não o machucasse; e, por fim, a tia que jamais compreenderia o porquê de Ulisses tê-lo aban-donado daquela forma tão desumana. Há coisas, pensava Cristiano, que não têm uma explicação completamente coe-

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rente à mente humana – há coisas que estão acima de nossa própria compreensão e o que podemos fazer somente é acei-tar a ferida que estará aberta para sempre em nossos cora-ções; silenciosamente aceitar carregar o peso que certa au-sência é capaz de causar, aceitar que há, sim, a possibilidade de se viver completamente sozinho no mundo e essa é uma das maneiras mais cruéis de se levar a vida porque somente um coração inteiramente seco de amor conseguiria se adap-tar a essa forma de vida. O dia começará de novo e a coisa mais incrível é que para todos eles o dia logo amanhecerá – para Cristiano e também para Ulisses – e depois haverá o café da manhã repousado sobre a mesa silenciosa, o vento fresco de todas as manhãs que seguirão depois desta: sua vida jamais seria a mesma agora com o peso da ausência de Ulisses; Cristiano jamais poderia aceitar o fato de que outra pessoa – em qualquer lugar do mundo – àquela hora estaria, talvez, compartilhando a sua vida com Ulisses, levando-o para passear e cuidando da sua saúde quando ele, por acaso, adoecesse: aquela que era a tarefa que Cristiano desempe-nhava tão bem. Veio-lhes uma palpitação feroz em seu cora-ção, seguido de um suor frio e uma pequena arritmia nas mãos. Voltou quieto para a casa completamente assombrada pelo fantasma ausente de Ulisses – os objetos que ele tocou, o lugar preferido em que costumava assistir à TV no sofá, os lençóis e as roupas que guardavam ainda aquele cheiro de vida tão próprio – e logo cessaria, perdendo-se através do tempo que seria o senhor de todas as coisas naquele mo-

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mento. Uma lágrima quente, úmida e solitária escorria pelo rosto de Cristiano, depois a revolta lhes tomando todo o espírito, a vontade de não mais ser ele mesmo, ou – por que não? – Dar cabo também à vida de Ulisses para que todo aquele tormento que era a sua própria vida pudesse enfim cessar. Imaginou um plano absurdo, depois sentiu o pescoço quente de Ulisses contra as suas mãos, o sorriso na face de Cristiano enquanto Ulisses padecia já sem vida, depois de uma luta feroz – os olhos repletos de sangue. Perfeitamente absurdo, pensou, no entanto, Cristiano. Mas aquilo talvez ligasse a sua vida à de Ulisses para sempre, e logo o seu no-me seria citado em uma conversa qualquer como aquele que matou o seu amante unicamente por amor e pela incapaci-dade de suportar o peso que a ausência dele causou em sua vida.

Aquele pensamento absurdo, agora, parecia finalmente ter lançado voo da sua cabeça. Enquanto pensava na morte como solução para que sua dor se amenizasse, ela poderia, no entanto, ser o início de uma ausência maior, pois nada o garantiria que eles seguiriam juntos mesmo em condições tão próximas.

A vida, no entanto, transbordava agora através de toda a sua face, a vida grande em abundância – ainda que a ausên-cia de si mesmo o tomasse por completo. Como se entre duas pedras duras, frias e mortas nascesse qualquer forma estranha de vida – era essa a condição a que Cristiano se entregava: seu corpo seguia a mesma estrutura morta das

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pedras frias perdidas dentro de qualquer floresta escura. De repente, uma luz clareava todo o espaço vazio de floresta... Cristiano não tinha certeza, mas aquela talvez fosse a luz de felicidade essencial a todo coração humano. Seu coração – que mais parecia a mesma pedra fria, úmida, recebia aquele raio de luz que aos poucos tomava todo o ambiente como um sol nascendo diante do horizonte, tomava todo o ambi-ente e, finalmente, toda a floresta era inundada pela clarida-de repleta e quente que apenas a felicidade – ainda que em seu estado mais bruto – é capaz de refletir. Cristiano não era mais dono dos seus próprios pensamentos, bem sabia ele, e, por isso, mesmo a ausência de Ulisses não mais o machuca-ria: quando a dor é muito intensa, ela ultrapassa a nossa própria capacidade de sentir dor. Ulisses jamais estaria completamente ausente de sua vida: a presença estranha de Ulisses acompanharia para sempre todas as horas de Cristi-ano – mesmo quando este houvesse superado tudo o que fora vivido. Essa, talvez, seja a dor maior dos abandonados: eles jamais se recuperam. Um coração ferido, bem sabia Cristiano, nunca retoma o seu estado natural, por mais que todas as dores estejam plenamente cicatrizadas, há ainda uma infinidade de horas futuras a serem enfrentadas a partir da mais estranha ausência de alguém que amamos. Esta é a maior herança que podemos carregar em nosso espírito: o peso de uma ausência é a maior prova de que tudo aquilo vivido, por mais sofrido, foi verdadeiramente real.

O que ressoava em seu coração era o mais bruto grito de

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dor. Como seriam todas as histórias de heróis se esses não ultrapassassem as mais duras batalhas para, enfim, atingirem o pleno descanso que somente algumas poucas almas são capazes de usufruir? Certa força, no entanto, brotara do seu peito e de sua própria alma. Certa força inexplicável era a maior coisa que um coração ferido como o de Cristiano po-deria transbordar: aquela sensação – aquela vontade infinita de sobreviver ao que lhe ocorreu – só poderia mesmo ter surgido das profundezas mais escuras do limbo. A rua com-pletamente vazia de qualquer forma de vida, Cristiano ainda de pé, imóvel, experimentando os minutos iniciais de sua própria liberdade – agora, ele finalmente poderia ser exata-mente quem era, sem a preocupação constante de atender também o que Ulisses buscava em alguém. A força viva que lhe surgia, agora mais intensa que antes, empurrava-o para frente como um tripé. Aquela força viva, surgida diretamen-te das chamas mais caudalosas do inferno, seria a matéria-prima da sua própria existência a partir de então. Cristiano percebeu que logo a madrugada chegaria, tomaria todo aquele ambiente – toda sua casa, os corredores escuros, as ruas e avenidas – tomaria todo aquele ambiente e, em segui-da, cessaria através da mais pura incompreensão que é a nossa própria existência. Mesmo essa repetição contínua e infinita de dias, noites e madrugadas, mesmo a repetição de todas as horas que voltavam sempre ao seu estado original, a vida, por mais que a busquemos, jamais será a mesma. A vida nunca a é. Todo o movimento contínuo do tempo é a

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sua própria recriação. Poderei mesmo romper toda a sua ausência do meu próprio espírito e, assim, retomar o cami-nho da verdadeira liberdade? – Liberdade esta que palavra alguma no mundo é capaz de retratar com o mínimo de propriedade. Os meus próximos passos, resignados e vazios, serão também capazes de suportar o peso do meu próprio corpo? Terei a capacidade de ser a minha própria fonte de energia e, assim, encontrar, no meu mais profundo interior, toda a felicidade necessária à minha mínima existência? Não sou capaz de tomar a dimensão daquilo que me tornei e, por isso, preciso, ao menos, me tratar com a menor complacên-cia. Eu vos suplico que caiam sobre mim todas as dores, pois até mesmo o mais intenso uivo de dor é ainda melhor que a completa falta de sentimentos que tem assolado o meu cora-ção. Até mesmo a morte será incapaz de me livrar desta ter-rível batalha que tenho travado comigo mesmo e, então, completamente despido daquilo que verdadeiramente sou, poderei caminhar rumo a um mundo novo.