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Editora UnematEditor Maria do Socorro de Sousa ArauacutejoCapa Rangel Gomes SacramentoDiagramaccedilatildeo Rangel Gomes Sacramento

Editora Unemat 2017

Editora UnematAvenida Tancredo Neves nordm 1095 - Cavalhada

Fonefax (065) 3221-0077Caacuteceres-MT ndash 78200-000 - Brasil

E-mail editoraunematbr

Conselho EditorialAriel Lopes TorresGuilherme Angerames Rodrigues Gustavo Laet RodriguesJoseacute Ricardo M T de Oliveira CarvalhoLuiz Carlos ChieregattoMaria do Socorro de Sousa Arauacutejo (Presidente)Mayra Aparecida CortesNeuza Benedita da Silva ZattarRoberto Vasconcelos PinheiroSandra Mara Alves Silva Neves Severino de Paiva SobrinhoTales Nereu Bogoni

DIREITO NA FRONTEIRA E AS FRONTEIRAS DO DIREITOOrganizadores Danielle Cevallos Soares Ma Evely Bocardi de Miranda Salda-nha Me Murilo Oliveira Souza

D59896 Direito na fronteira e as fronteiras do direito Danielle Cevallos Soares Evely Bocardi de Miranda Saldanha Murilo Oliveira Souza ndash Caacuteceres Editora da Unemat 2017 208p

Inclui BibliografiaISBN 978-85-7911-169-3

1 Direito 2 Poliacutetica 3 Fronteira I Autores II Tiacutetulo

APRESENTACcedilAtildeO

Natildeo concordo com uma palavra do que dizes mas defenderei ateacute o ultimo instante seu direito de

dizecirc-la(Voltaire)

No periacuteodo de 09 a 11 de novembro de 2016 foi realizado o I Congresso O Direito na Fronteira e as Fronteiras do Direito pela Coordenaccedilatildeo do Curso de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT na cidade de Caacuteceres do qual par-ticiparam professores e alunos do curso de Direito dos campi da Universidade que ofertam esse curso bem como professores con-vidados de outras IES do paiacutes

Tratando-se do primeiro evento com essa temaacutetica decidi-mos pela publicaccedilatildeo de um livro que reuacutene uma coletacircnea de tra-balhos de professores e acadecircmicos com o objetivo de disseminar as pesquisas apresentadas e discutidas durante o Congresso

O presente livro intitulado O Direito na Fronteira e as Fronteiras do Direito compreende dez textos que discutem ques-totildees referentes agrave fronteira tendo em vista a relativa proximidade da cidade de CaacuteceresMT sede da Universidade do Estado de Mato Grosso com a fronteira territorial Brasil-Boliacutevia a exemplo do impacto ambiental transnacional criminalidade e relaccedilotildees co-loniais que ainda persistem na regiatildeo bem como questotildees teoacuterico-filosoacuteficas dada a importacircncia em superar aspectos conservadores do Direito no intuito de que esta aacuterea do conhecimento se torne um mecanismo de transformaccedilatildeo e sobretudo de emancipaccedilatildeo

Os textos apresentam uma pluralidade temaacutetica teoacuterica e metodoloacutegica proacutepria da aacuterea das pesquisas desenvolvidas nos diversos Campi que sediam o Curso de Direito da Universidade e muitos deles foram produzidos por alunos em coautoria com do-centes o que mostra o niacutevel de interlocuccedilatildeo e orientaccedilatildeo entre o professor-pesquisador e o aluno de iniciaccedilatildeo cientiacutefica uma expe-riecircncia que vem se consolidando nas praacuteticas de ensino e pesquisa

Os artigos de modo geral contribuem para a reflexatildeo

sobre como certas questotildees juriacutedicas que estatildeo sendo pensadas analisadas e interpretadas pelos autores agrave luz dos procedimentos teoacuterico-metodoloacutegicos da aacuterea mesmo quando divergem de deter-minados ordenamentos legais

Agradecemos o apoio da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT Campus de CaacuteceresMT e da Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do Estado de Mato Grosso ndash FAPEMAT que tornou possiacutevel a publicaccedilatildeo desta obra

Esperamos que esta coletacircnea possa dar visibilidade agraves pesquisas realizadas pelos Cursos de Direito e que instigue os lei-tores da comunidade acadecircmica da UNEMAT e de outras IES a realizar novos projetos e investigaccedilotildees que consolidem cada vez mais a produccedilatildeo cientiacutefica na aacuterea do Direito

Danielle Cevallos SoaresMa Evely Bocardi de Miranda Saldanha

Me Murilo Oliveira Souza(Organizadores)

SUMAacuteRIO

APRESENTACcedilAtildeO2Danielle Cevallos SoaresEvely Bocardi de Miranda SaldanhaMurilo Oliveira Souza

ldquoWASH OUTrdquo FRENTE AO ORDENAMENTO JURIacuteDICO BRA-SILEIRO7Ana Flaacutevia Trevizan

A FRONTEIRA JURIacuteDICO-POLIacuteTICA ENTRE OS SISTEMAS JU-RIacuteDICOS DA COMMON LAW E DA CIVIL LAW E SEUS IMPAC-TOS NO DIREITO PAacuteTRIO27Ana Paula Soares de Souza e Danilo Pires Atala

VISIBILIZANDO A VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO PSICOLOacuteGICA COMO LESAtildeO Agrave SAUacuteDE DA VIacuteTIMA Revisitando o artigo 129 do Coacutedigo de Processo Penal brasileiro agrave luz da Lei Maria da Pe-nha49Artenira da Silva e SilvaJoseacute Maacutercio Maia Alves CIDADE SEM FRONTEIRAS FRONTEIRAS SEM CIDA-DES77Daniella S Dias

IMPACTO AMBIENTAL TRANSFRONTEIRICcedilO NA PERSPEC-TIVA DO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL97Dimas Simotildees Franco NetoOseias Amaral da Silva

JULGAMENTO INDIacuteGENA DE CONFLITOS INTERNOS RECO-NHECIDO PELO DIREITO ESTATAL NA PERSPECTIVA DO PLURALISMO JURIacuteDICO117Eliel Alves Camerini SilvaLuciana Stephani Silva Iocca

A TEORIA DO PREJUIacuteZO NAS NULIDADES RELATIVAS O COROLAacuteRIO DA DISCRICIONARIEDADE NO PROCESSO PE-NAL137Evandro Monezi BenevidesFelipe Teles Tourounoglou

CAacuteCERES E O DEacuteFICIT DE MORADIAS O CASO DA OCUPA-CcedilAtildeO DO BAIRRO EMPA 155Evely Bocardi de Miranda Saldanha Richard Rodrigues da Silva

PROVA NO HOMICIacuteDIO SEM CADAacuteVER169Gabrielle Vidrago de Souza Machado Solange Teresinha Carvalho Pissolato

OS MEIOS CONSENSUAIS DE SOLUCcedilAtildeO DE CONFLITOS NA COMARCA DE CAacuteCERESMT191Sandrely Ugulino CardosoGeovanna Gabriela Sandri Andreacute Trapani Costa Possignolo

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ldquoWASH OUTrdquo FRENTE AO ORDENAMENTO JURIacuteDICO BRASILEIRO

Ana Flaacutevia Trevizan1

RESUMO O presente artigo tem por escopo apresentar alguns apontamentos baacutesicos no tocante ao ldquowash outrdquo e sua incidecircncia nos contratos agraacuterios e observar de que maneira o direito paacutetrio tem se portado perante tal instituto Ressalta-se a estima em realizar esse paralelo por se tratar de algo que foi importado e por estar se difundindo entre os contratos que versam sobre commodities deveraacute atender aos princiacutepios e normas internamente estabelecidos Por ser inovador o pretenso assunto ocasionaraacute grandes debates nos quais seratildeo impresciacutendiveis as construccedilotildees doutrinaacuterias e jursiprudecircnciais sobre a mateacuteria uma vez que os impactos advindos do ldquowash outrdquo satildeo de excessiva monta Passando pela escassa jurisprudecircncia interna ao referido assunto seratildeo dadas delimitaccedilotildees e uma roupagem ante o ordenamento juriacutedico nacional

PALAVRAS-CHAVE ldquoWash outrdquo Contrato agraacuterio Commodities Direito brasileiro

ABSTRACT The purpose of this article is to present some basic notes on the ldquowash outrdquo and its incidence on agrarian contracts and to observe how the countryrsquos law has behaved before such an institute Emphasis is placed on making this parallel because it is something that has been imported and because it is spreading among contracts that deal with commodities should comply with the principles and standards internally established Being innovative the alleged subject will cause great debates in which the doctrinal and jursiprudecircncia constructions on the matter will be essential since the impacts arising from the ldquowash outrdquo are of excessive amount Turning to the scarce internal jurisprudence on the subject will be given delimitations and a drapery before the national legal order1 Mestranda em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Professora do Departmento de Direito da UFMT Bolsista CAPES-FAPEMAT E-mail aftre-vizangmailcom

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KEYWORDS ldquoWash outrdquo Agrarian contract Commodities Brazilian law

INTRODUCcedilAtildeO

Com a abertura do mercado interno principalmente no fi-nal da deacutecada de 80 o Brasil comeccedilou a dar maior notoriedade agrave exportaccedilatildeo comercial Algumas medidas como a diminuiccedilatildeo das aliacutequotas sobre a importaccedilatildeo e a extirpaccedilatildeo da maioria das restri-ccedilotildees natildeo-tarifaacuterias colocaram em ascensatildeo o mercado exportador

Nessa conjuntura globalizada merecem papel de desta-que as tradings companies que em simples linhas satildeo empresas comerciais que promovem a exportaccedilatildeo por meio da compra de produtos circulantes no mercado interno Seu marco legislativo se deu em novembro de 1972 com o advento do Decreto-Lei nordm 1248 futuramente inovado pelo Decreto nordm 45432002 O primeiro tu-tela os tributos incidentes em relaccedilatildeo aos produtos exportados e o uacuteltimo disciplina requisitos essenciais agraves tradings

Em virtude da dinacircmica presente no mercado internacio-nal torna-se comum a estipulaccedilatildeo de claacuteusulas em contratos inter-nacionais firmados entre as tradings e o paiacutes para o qual se exporta que impotildeem multas envolvendo alta quantia monetaacuteria no caso de descumprimento Um exemplo eacute a sobre-estadia a qual se refere ao pagamento feito pela restituiccedilatildeo atrasada do contecirciner do titu-lar mas que na maioria das vezes recai sobre as tradings

Todavia as tradings visando amortizar os gastos advindos de multas importaram para o direito paacutetrio um instituto chamado ldquowash outrdquo que objetiva a indenizaccedilatildeo de excessivo valor mone-taacuterio no caso de descumprimento da empresa ou pessoa fiacutesica que vende produtos agriacutecolas agraves tradings

Imperiosa eacute a anaacutelise do ldquowash outrdquo sobre o enfoque do direito brasileiro levando em consideraccedilatildeo os princiacutepios e normas tanto do direito civil como do direito constitucional Eis a finalida-de deste artigo

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Apontamentos baacutesicos sobre as Tradings Companies

As Tradings Companies em atividades no Brasil des-de 1970 ganharam destaque no cenaacuterio nacional no iniacutecio da deacutecada de 90 Foi em 1990 com o estabelecimento da Poliacutetica Industrial e de Comeacutercio Exterior que o Brasil fortalece suas relaccedilotildees mercantis com paiacuteses exteriores

Nas palavras de Anna Carolina Euclides Santos Bruno Henrique Felipe Gomes e Juliana Lima Credendio (2007 p 29)

Com a abertura da economia brasileira no governo do presidente Fernando Collor de Melo as empre-sas de grande porte sentiram-se motivadas a desen-volver suas atividades no mercado externo Com a elevada demanda essas empresas natildeo conseguiam atender agraves necessidades do mercado e iniciaram parcerias com as tradings pois perceberam as van-tagens e benefiacutecios de sua utilizaccedilatildeo ou ateacute mesmo criando a sua proacutepria Trading Company

Eacute nesse mesmo periacuteodo que as tradings ganham destaque e no primeiro momento optam pela comercializaccedilatildeo de commo-dities como por exemplo o cafeacute que na atualidade cede espaccedilo agrave soja

A Receita Federal do Brasil na Soluccedilatildeo de Consulta nordm 56 de 16 de junho de 2011 publicada no Diaacuterio Oficial da Uniatildeo de 17 de junho de 2011 definiu o instituto Trading Company como uma empresa comercial exportadora constituiacuteda sob a forma de socie-dade por accedilotildees dentre outros requisitos miacutenimos previstos no De-creto-Lei nordm 124872 (BRASIL 2009) Ou seja trading company eacute uma empresa comercial que realiza atividades como exportaccedilatildeo importaccedilatildeo e agenciamento das operaccedilotildees de compra e venda de mercadorias

O Decreto em voga veio para regulamentar alguns pon-tos especiacuteficos sobre a aquisiccedilatildeo de produtos no mercado interno visando agrave exportaccedilatildeo aleacutem de estatuir requisitos miacutenimos para a instituiccedilatildeo das tradings no Brasil

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De acordo com Pereira e Boavista (2010 p74)

Deve-se ressaltar que antes do advento dessa legis-laccedilatildeo jaacute existiam empresas comerciais exportadoras Logo a contribuiccedilatildeo da legislaccedilatildeo foi estabelecer uma categoria especiacutefica de comerciais exportado-ras ndash as que se enquadrassem no disposto no art 2ordm do referido Decreto-lei Este determinava exigecircncias quanto ao capital miacutenimo e agrave organizaccedilatildeo societaacuteria das tradings que pretendiam i) minimizar a proba-bilidade de as firmas natildeo honrarem seus compro-missos ii) influenciar esse mercado com a visatildeo de que a escala miacutenima eficiente para essas empresas deveria ser mais elevada (em linha com a experiecircn-cia japonesa) e iii) facilitar a fiscalizaccedilatildeo

Daiacute decorre a distinccedilatildeo entre trading company e comercial exportadora A primeira segue os ditames prescritos no art 2ordm do Decreto Lei nordm 1248 de 1979 quais sejam compor uma sociedade de accedilotildees accedilotildees essas nominativas e com direito a voto possuir ca-pital miacutenimo estabelecido pelo Conselho Monetaacuterio Federal e natildeo constar puniccedilotildees em decisatildeo administrativa final por infraccedilotildees relativas ao comeacutercio exterior

Hodiernamente a diferenciaccedilatildeo entre os dois citados insti-tutos se daacute no atinente ao porte em que as tradings desempenham maiores operaccedilotildees que as comerciais exportadoras

Insta ressaltar que Pereira e Boavista (Idem p 72-73) nota-ram essa mudanccedila Conforme os autores

[] os termos trading company e comercial exportado-ra tecircm no Brasil uma dimensatildeo conceitual maior do que quando foram estabelecidos Ou seja natildeo cabe mais a associaccedilatildeo do termo trading apenas agrave expor-taccedilatildeo indireta pois essas empresas atuam tanto na compra de mercadorias para exportaccedilatildeo quanto no auxiacutelio a outras empresas que pretendem exportar diretamente ndash oferecendo uma gama de serviccedilos de exportaccedilatildeo que ultrapassa em muito a simples ati-vidade de intermediaccedilatildeo comercial caracterizando-as como facilitadoras ou mesmo consultoras de

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exportaccedilatildeo Os serviccedilos oferecidos atualmente pelas tradings satildeo - Intermediaccedilatildeo comercial - Prospecccedilatildeo comercial estudos de mercado iden-tificaccedilatildeo de clientes canais de comercializaccedilatildeo etc - Accedilotildees de promoccedilatildeo comercial feiras material pro-mocional propaganda encontros de negoacutecios etc - Suporte logiacutestico preparaccedilatildeo de documentaccedilatildeo contrataccedilatildeo de transporte domeacutestico e internacional armazenagem serviccedilos alfandegaacuterios etc - Apoio agrave organizaccedilatildeo da produccedilatildeo e agrave adaptaccedilatildeo de produtos (regulamentos e normas teacutecnicas design etiquetagem embalagem etc) - Serviccedilos financeiros gerenciamento de risco e se-guros estruturaccedilatildeo de operaccedilatildeo de financiamento pagamento a fornecedores etc

Notam-se as grandes estruturas envolvendo as tradings ateacute mesmo pelo fato de a maior parte dessas manter relaccedilotildees dire-tas com paiacuteses de ilibada conduta no tocante ao mercado externo para o ecircxito de suas atividades

Natildeo se deve olvidar que ao se relacionar com os outros paiacuteses os contratos firmados com as tradings devem ser estipula-dos conforme a legislaccedilatildeo do paiacutes cliente Paiacutes cliente entende-se o Estado destinataacuterio da exportaccedilatildeo o qual fixaraacute o contrato res-peitando as regras de seu ordenamento juriacutedico A tiacutetulo de exem-plificaccedilatildeo se uma tranding nacional firmar contrato de exportaccedilatildeo com a China as claacuteusulas constantes nesse instrumento seguiratildeo as normativas do direito chinecircs Logo a depender do Estado clien-te as regras seratildeo modificadas

Aleacutem de se relacionar com outros Estados as tradings ne-gociam com os fornecedores internos de commodities que podem ser empresas ou pessoas fiacutesicas por meio de contratos que deveratildeo obedecer ao ordenamento paacutetrio

Eacute justamente frente aos fornecedores que as tradings vecircm importando a claacuteusula objeto de estudo e aplicando-as sobre os contratos firmados em domiacutenio nacional

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APLICACcedilAtildeO DO ldquoWASH OUTrdquo NO BRASIL

Internamente as tradings e os fornecedores de produtos agriacutecolas estabelecem contratos em sua maioria de compra e ven-da nos quais os fornecedores entregam na data aprazada a quan-tidade acordada do produto E para tanto em algum grande porto do Brasil jaacute existe um navio para exportar tais produtos

Por se tratar de relaccedilotildees comerciais de vultosas quantias os referidos instrumentos preveem claacuteusulas penalizadoras graves nos casos de inadimplemento contratual Eacute visando ao cumpri-mento total do acordado que se firma um ajuste entre as tradings e os paiacuteses-clientes no qual se estipula uma multa de elevado valor para cada dia que o mesmo navio ficar agrave espera da mercadoria Eacute o chamado demurrage ou sobre-estadia que segundo Gabardo (2011 p 2)

Nos contratos de transporte mariacutetimo de cargas o transportador se compromete mediante contrapres-taccedilatildeo do frete a transportar a mercadoria consigna-da pelo embarcador ao destino acordado Para que esta transaccedilatildeo possa ser efetuada normalmente o transportador concede ao usuaacuterio um determinado prazo de dias livres (estadia) para a realizaccedilatildeo das operaccedilotildees de carga e descarga das mercadorias Contudo havendo excesso ao periacuteodo estipulado tanto na utilizaccedilatildeo do navio quanto das unidades de cargas (contecirciner) o embarcador estaraacute incorrendo em sobre-estadia sobredemora ou demurrage como eacute internacionalmente conhecida

Batista (2011 p 2) ressalta que ldquopor dia extra cada navio gera entre US$ 15 mil e US$ 30 mil de penalidade ao embarcador ou seja agraves tradings exportadoras de commoditiesrdquo Logo a cada dia de atraso no embarque das commodities as tradings tecircm que arcar com essa excessiva penalidade

Nota-se a importacircncia dada ao princiacutepio do pacta sunt ser-vanda Por se tratar de comeacutercio internacional este princiacutepio deve ser respeitado para que a credibilidade e confiabilidade do paiacutes

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bem como das tradings natildeo sejam questionadasEntretanto visando minimizar as perdas eventualmente

tidas com a sobre-estadia as tradings estabelecem uma disposiccedilatildeo contratual aos produtores nacionais e por meio dela comerciali-zam no caso de inadimplemento Eacute a figura conhecida como ldquowash outrdquo termo derivado da liacutengua inglesa que significa ldquodesgastarrdquo

Salienta-se sua novidade no ordenamento juriacutedico interno fato que impossibilita maiores pesquisas e embasamento teoacutericos a seu respeito Primeiramente analisou-se o ordenamento da Aus-traacutelia paiacutes que possui o GTA (About Grain Trade Australia 2014) que significa Comeacutercio de Gratildeos da Austraacutelia o qual aleacutem de ou-tras funccedilotildees desempenha a arbitragem como forma de lidar com os conflitos derivados dos contratos agriacutecolas

O regramento estabelecido pelo GTA natildeo define o ldquowash outrdquo que usualmente eacute utilizado pelas induacutestrias nos casos de exe-cuccedilatildeo contratual em que uma das partes natildeo consegue adimplir suas obrigaccedilotildees Em natildeo havendo um acordo entre as partes no tocante ao valor do ldquowash outrdquo as induacutestrias podem socorrer do Serviccedilo de Resoluccedilatildeo de Disputas (Idem)

O ldquowash outrdquo em sua grande maioria implica o paga-mento de uma parte para outra havendo manifestaccedilatildeo de vontade de ambas Desse modo qualquer das partes entrevendo que natildeo conseguiraacute executar sua obrigaccedilatildeo pode utilizar-se do instituto em comento ateacute mesmo como forma de se resguardar quanto agraves osci-laccedilotildees de mercado (GTA 2011)

Nos casos de quebra de safra ou eminente quebra de safra os vendedores podem escolher pelo ldquowash outrdquo ou buscar gratildeos em substituiccedilatildeo no mercado Dessa forma o ldquowash outrdquo seraacute cal-culado pela diferenccedila entre o preccedilo fixado no contrato e o seu valor no comeacutercio no momento em que for estipulado podendo a ele agregar alguns outros encargos administrativos (Idem)

No Brasil o tema em comento ganhou outra roupagem Via de regra vem embutida nos contratos de compra e venda Pode tambeacutem ser objeto de um contrato autocircnomo habitualmente chamado de ldquoacordo de wash outrdquo Ambos satildeo constituiacutedos de ma-

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neira unilateral pelas tradings Assim como na Austraacutelia o ldquowash out brasileirordquo tem por

escopo a indenizaccedilatildeo sobre a valorizaccedilatildeo das commodities no mer-cado ou seja a diferenccedila entre o preccedilo no momento da celebra-ccedilatildeo do contrato e no instante em que o mesmo for descumprido e aquele comprador tiver que procurar no mercado do dia o produto que deseja

Isso se daacute quando os contratos agriacutecolas de compra e ven-da desses produtos satildeo ratificados meses antes da sua execuccedilatildeo A tiacutetulo de exemplo se o negoacutecio juriacutedico tiver por objeto a safra de soja eacute celebrado no dia em que o custo da saca de soja eacute de R$ 6000 (sessenta reais) o contrato teraacute por base esse valor poreacutem a execuccedilatildeo do contrato se daraacute alguns meses apoacutes Se na data apra-zada o contrato natildeo for cumprido e o valor da soja agrave eacutepoca for de R$ 7000 (setenta reais) o ldquowash outrdquo consistiraacute em R$ 1000 (dez reais) de diferenccedila por cada saca de soja

Poreacutem no ordenamento juriacutedico brasileiro o ldquowash outrdquo possui diferentes caracteriacutesticas Conforme anteriormente dito em territoacuterio nacional ele natildeo eacute estipulado conforme a vontade dos contratantes e sim de acordo com a conveniecircncia das tradings Ou-tro atributo se daacute ao fato de nos contratos originaacuterios envolvendo aquisiccedilatildeo de commodities ter presente alguma claacuteusula estipulando indenizaccedilotildees no caso de descumprimento da obrigaccedilatildeo ateacute mesmo porque no sistema paacutetrio vigente haacute mecanismo para tais casos Desse modo estabelecer o ldquowash outrdquo seria aplicar duplamente a penalizaccedilatildeo em virtude do inadimplemento

A propriedade que atinge diretamente o agricultor eacute o va-lor fixado a tiacutetulo de ldquowash outrdquo Ao inveacutes de seguir os paracircmetros convencionais do referido instituto estrangeiro e de o quantum ser aferido em razatildeo da diferenccedila existente entre o preccedilo da commodi-ty no momento da contrataccedilatildeo e no instante da inadimplecircncia no Brasil esse valor jaacute vem previamente ajustado de forma unilateral pelas tradings

Na grande maioria das vezes o custo do ldquowash outrdquo eacute tatildeo excessivo que pode atingir a integralidade do valor objeto do

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contrato Evidentemente natildeo se eacute averiguada a diferenccedila a qual o ldquowash outrdquo propotildee

Conceitualmente ldquowash outrdquo eacute uma claacuteusula existente nos contratos agraacuterios que estipulam uma indenizaccedilatildeo excessivamente onerosa para o contraente que natildeo cumprir suas obrigaccedilotildees in-denizaccedilatildeo essa que teoricamente consiste na diferenccedila valorativa das commodities existentes entre o dia da ratificaccedilatildeo do contrato e o da inadimplecircncia por conta de oscilaccedilotildees do mercado Eacute justa-mente nesse contexto que aleacutem de ferir uma seacuterie de normativas paacutetrias fere frontalmente os princiacutepios aqui em vigor dentre os quais alguns seratildeo adiante ponderados

Princiacutepios aplicaacuteveis ao ldquowash outrdquo

Ao adentrar o ordenamento paacutetrio o ldquowash outrdquo deveraacute obedecer aos princiacutepios aqui vigentes dentre eles os infratranscri-tos Como marca inicial tem-se a boa-feacute como sendo o princiacutepio fundamental das relaccedilotildees entre os seres humanos inclusive nas mediaccedilotildees contratuais

Para Vilaccedila (1995 p 98)

O princiacutepio da boa-feacute deve ser antes de tudo men-cionado pois ele assegura o acolhimento do que eacute liacutecito e a repulsa ao iliacutecito A contrataccedilatildeo de boa-feacute eacute a essecircncia do proacuteprio en-tendimento entre os homens e a presenccedila da eacutetica nos contratos Sim porque a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da boa-feacute traz para a ordem juriacutedica um elemento de Direito Natural que passa a integrar a norma de direito

Tal vetor permeia o ordenamento juriacutedico por inteiro Eacute interessante destacar o que o Coacutedigo Civil Portuguecircs assevera so-bre o assunto

Artigo 227(Culpa na formaccedilatildeo dos contratos)Quem negocia com outrem para conclusatildeo de um

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contrato deve tanto nos preliminares como na for-maccedilatildeo dele proceder segundo as regras da boa feacute sob pena de responder pelos danos que culposamen-te causar agrave outra parte (Portugal Lei 822014)

Nota-se que ao estipular o ldquowash outrdquo nos contratos haacute uma afronta direta ao princiacutepio em voga pois o contratante ao estipular a tal claacuteusula ao menos pode aferir se de fato haveraacute um efetivo dano na data aprazada

Por atuar como uma espeacutecie de indenizaccedilatildeo aos danos fu-turos e constituir uma claacuteusula com valor excessivo o ldquowash outrdquo evidentemente viola o princiacutepio da boa feacute O princiacutepio de liberda-de contratual se presta a defender aquela parte que nas relaccedilotildees contratuais natildeo possui livre-arbiacutetrio para dispor sobre seus inte-resses ficando atrelada agrave vontade da parte adversa

Isso ocorre por haver na relaccedilatildeo contratual uma parte mais vulneraacutevel que a outra a qual acaba por aceitar as imposiccedilotildees para natildeo perder o negoacutecio No caso em voga pelo fato de os produtores de commodities serem a parte mais fraca pois dependem direta-mente das atividades das tradings para exportaccedilatildeo surge um qua-se dever em aceitar os termos contratualmente ordenados Com isso lesotildees satildeo ocasionadas

Nesta senda Vilaccedila (1995 ano p 99-100) preceitua

Realizado o pacto sob essa pressatildeo a lesatildeo ocorre sendo difiacutecil e custosa a reparaccedilatildeo para repor certos valores destruiacutedos Se dermos forccedila demais agrave liberdade contratual fi-cando o homem livre na sociedade sem condiccedilotildees de discutir razoavelmente sobre suas convenccedilotildees seraacute ele o mesmo que um paacutessaro libertado de um a gaiola ao faacutecil alcance de um gaviatildeo pronto para atacaacute-lo Pouco duraria a liberdade daquele

Deste modo embora haja liberdade nos contratos certas limitaccedilotildees devem ser imanentes ao princiacutepio em comento em res-peito agrave sistemaacutetica do direito

Outro ponto que merece destaque eacute o princiacutepio da funccedilatildeo

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social dos contratos bem esclarecido por Vilaccedila (2011 p 100)

Por esse princiacutepio os contratos desempenham um relevante papel na sociedade nacional e internacio-nalmente considerada Pelos contratos os homens devem compreender-se e se respeitar para que encontrem um meio de enten-dimento e de negociaccedilatildeo sadia de seus interesses e natildeo um meio de opressatildeo

Assim sendo a real funccedilatildeo desempenhada pelo contrato de compra e venda entre produtores e tradings consiste no justo preccedilo da aquisiccedilatildeo das commodities e a entrega da mercadoria con-forme o convencionado pautando-se pela boa-feacute Menccedilotildees contra-tuais que contrariem esse postulado certamente causaratildeo danos a algumas das partes

Pela comutatividade princiacutepio imanente ao direito tem-se que as prestaccedilotildees e contraprestaccedilotildees devem ser equilibradas sendo impostas aos contratantes para terem ciecircncia desde o iniacutecio do negoacutecio juriacutedico de seus lucros e perdas

Um dos principais postulados estaacute estampado no princiacute-pio Rebus sic stantibus que pode ser traduzido pela expressatildeo ldquoas coisas estatildeo assimrdquo No direito moderno eacute conhecido como teoria da imprevisatildeo tendo por escopo relativizar o princiacutepio do pacta sunt servanda em relaccedilatildeo aos fatos que se alterarem notadamente no transcorrer do contrato

Para tanto nos moldes de Vilaccedila (2011 p 101-102)

Todavia essa claacuteusula considerada pela Doutrina e pela Jurisprudecircncia brasileiras como existente em todos os contratos ainda que natildeo expressamente contratada apresenta-se com trecircs pressupostos fun-damentais autorizadores de sua aplicaccedilatildeoDeve ocorrer primeiramente uma alteraccedilatildeo radical do contrato em razatildeo de circunstacircncias imprevistas e imprevisiacuteveis (aacutelea extraordinaacuteria) []Por outro lado eacute preciso que exista enriquecimento prejuiacutezo inesperado e injusto por um dos contratan-tes

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O terceiro pressuposto eacute a onerosidade excessiva que sofre um dos contratantes tornando-se para ele insuportaacutevel a execuccedilatildeo contratual Com o visto torna-se impossiacutevel a aplicaccedilatildeo da claacuteu-sula ldquorebus sic stantibusrdquo ante a natildeo-ocorrecircncia de um desses trecircs pressupostos

Diante do ldquowash outrdquo eacute evidente que por se tratar de pro-duto agriacutecola depende diretamente de vaacuterios fatores naturais os quais o ser humano natildeo pode influir os riscos da atividade satildeo maiores podendo ocorrer uma modificaccedilatildeo ao longo da vigecircncia contratual que impossibilita o cumprimento do mesmo Entra em cena o princiacutepio supracitado por nortear o operador do direito

Por fim destaca-se o princiacutepio da onerosidade excessiva no qual um dos contratantes estipula uma obrigaccedilatildeo exagerada ao outro

Aplicando-se ao ldquowash outrdquo os produtores ao negocia-rem com as tradings ou ateacute mesmo com outras empresas ficam res-ponsabilizados por no caso de inadimplecircncia ainda que parcial a indenizar uma grandiosa quantia monetaacuteria Tal fato causa seacuterias lesotildees aos produtores que natildeo possuem condiccedilotildees de arcar com esta claacuteusula abusiva

Vilaccedila (2011 p103) sabiamente leciona

Ao Direito repugna a atuaccedilatildeo iliacutecita e mesmo o en-riquecimento indevido pois a lesatildeo estaacute presente neles O fenocircmeno da lesatildeo no direito contratual moder-no deve ser encarado objetivamente Causado o prejuiacutezo ocorrendo o desequiliacutebrio nas prestaccedilotildees deve ser o reestabelecimento da igualdade entre os contratantes Isto porque o agravamento unilateral da prestaccedilatildeo de uma das partes contratantes torna excessivamente onerosa sua obrigaccedilatildeo e via de con-sequecircncia insuportaacutevel o cumprimento desta

Desse modo sendo o ldquowash outrdquo onerosamente excessivo acaba por violar natildeo soacute o princiacutepio em voga como todos os ante-

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riormente aduzidos

Implicaccedilotildees do ldquowash outrdquo no direito paacutetrio

Por ter adentrado o direito brasileiro o ldquowash outrdquo deve ser guiado pelos preceitos estatuiacutedos na Magna Carta e legislaccedilotildees infraconstitucionais

E ainda que a Secretaria de Comeacutercio Exterior tenha pu-blicado a Portaria nordm 15 de 17 de novembro de 2004 disciplinando alguns pontos no tocante ao ldquowash outrdquo natildeo houve eficaacutecia e apro-veitamento algum para o ordenamento juriacutedico brasileiro embora pudesse ser uacutetil uma vez que preleciona o seguinte

O SECRETAacuteRIO DE COMEacuteRCIO EXTERIOR DO MINISTEacuteRIO DO DESENVOLVIMENTO INDUacuteS-TRIA E COMEacuteRCIO EXTERIOR no exerciacutecio de suas atribuiccedilotildees com fundamento no art 15 do Ane-xo I ao Decreto nordm 4632 de 21 de marccedilo de 2003 vi-sando consolidar as disposiccedilotildees regulamentares das operaccedilotildees de exportaccedilatildeo resolvesect 8ordm Poderatildeo ser acolhidos pedidos de operaccedilotildees de recompra (wash out) desde que atendam aos seguin-tes requisitos preliminaresI - ganho cambial (preccediloprecircmio da recompra obri-gatoriamente inferior ao da venda) em cada RV a ser definido de acordo com as condiccedilotildees de mercado na eacutepoca do pedido de recompraII - ser submetido a exame na data de sua negocia-ccedilatildeo acompanhado de documentaccedilatildeo pertinenteIII - a empresa deveraacute comprovar o efetivo ingres-so das divisas no prazo de dez dias uacuteteis contados a partir da data da negociaccedilatildeo mediante apresentaccedilatildeo do contrato de cacircmbio relativo agrave operaccedilatildeo de recom-pra devidamente liquidado (BRASIL 2004)

Depreende-se da assertiva acima que foram estabelecidos alguns criteacuterios miacutenimos para aplicaccedilatildeo do ldquowash outrdquo elementos esses que poderiam servir de paracircmetros para delinear os contra-tos uma vez que traz preceitos importantes inclusive de acordo com o inciso I ao prever o pagamento do valor agrave eacutepoca da recom-pra

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Haacute tambeacutem o informe da Associaccedilatildeo de Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (APROSOJA) que conceitua o tema em voga

22 Claacuteusula de indenizaccedilatildeo (wash-out) Essa claacuteu-sula normalmente prevecirc a obrigaccedilatildeo de que aquele que der causa agrave rescisatildeo do contrato deve pagar agrave outra o valor do produto adquirido no dia da liqui-daccedilatildeo do contrato (no dia da entrega do produto) e normalmente possui a seguinte descriccedilatildeo a ser ve-rificada contrato por contrato ldquo[] sobre o produto natildeo entregue o produtor deveraacute arcar com perdas e danos que fica estipulada em 100 do preccedilo do pro-duto comercializado ao preccedilo do produto na data de entrega []rdquo (2016 p 3)

Contudo natildeo se mostra suficiente a conceituaccedilatildeo acima aleacutem de deixar em completo desequiliacutebrio as partes contratantes ao previamente fixar multa de 100 sobre o descumprimento con-tratual

O ordenamento juriacutedico brasileiro possui todas as ferra-mentas necessaacuterias para que a parte que descumprir o contrato arque com os prejuiacutezos causados Sendo assim o ldquowash outrdquo tal qual estaacute sendo aplicado no Brasil natildeo possui embasamento legal por desrespeitar aleacutem dos princiacutepios supramencionados as regras do Coacutedigo Civil Estando previsto em uma claacuteusula resta configu-rada sua abusividade sustentada pela onerosidade excessiva de que se reveste correspondendo a uma consideraacutevel porcentagem do valor da obrigaccedilatildeo originaacuteria

Considerando um negoacutecio juriacutedico o ldquowash outrdquo pode ser analisado sob a tricotomia deste No plano da existecircncia de fato os requisitos estatildeo preenchidos Na validade a manifestaccedilatildeo da vontade deve ser livre e como discorrido anteriormente pode ocorrer de o ldquowash outrdquo ser uma claacuteusula praticamente imposta para celebraccedilatildeo do acordo Nesse caso viciado estaria conduzindo agrave nulidade da claacuteusula

Atinente agrave eficaacutecia certamente o ldquowash outrdquo poderaacute surtir efeitos juriacutedicos Neste contexto se insere o papel acadecircmico vi-

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sando auxiliar a jurisprudecircncia na dinacircmica do tema por ser um assunto novo e complexo Como exemplo cito o Acoacuterdatildeo 1268606-7 do estado do Paranaacute no qual a douta Relatora entendeu pela legalidade da claacuteusula ldquowash outrdquo por natildeo julgaacute-la abusiva (BRA-SIL Acoacuterdatildeo na Apelaccedilatildeo 1268606-7)

Nesta senda papel de destaque possuem os trabalhos aca-decircmicos por fomentar o assunto e auxiliar os operadores do di-reito na compreensatildeo do tema em comento e por mais intrincado que seja necessaacuteria eacute essa construccedilatildeo pela real tendecircncia do ldquowash outrdquo ser mais utilizado acarretando disputas judiciais sobre sua incidecircncia

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Por ser algo novo no cenaacuterio brasileiro a escassez de ma-terial foi um grande obstaacuteculo na elaboraccedilatildeo do presente trabalho que se fundou basicamente em publicaccedilotildees dos primeiros advoga-dos a terem contato com o tema em anaacutelise

Enfatizaram-se os papeacuteis das tradings nesse contexto res-saltando-se as forccedilas de tais empresas nas relaccedilotildees comerciais e a influecircncia que as mesmas possuem ao estipular os termos contra-tuais nos quais os produtores acabam ratificando para natildeo perder o negoacutecio

Eacute justamente nesse contrato que se insere o ldquowash outrdquo uma claacuteusula que originariamente visa restituir a valorizaccedilatildeo da commodity entre o periacuteodo em que foi estabelecido o contrato e o momento em que o mesmo foi inadimplido Meses se passam en-tre esses fatos e havendo aumento de preccedilo das commodities eacute o ldquowash outrdquo que iraacute restauraacute-lo

No Brasil foram dados agrave referida claacuteusula contornos di-versos dos originalmente estabelecidos nos paiacuteses estrangeiros conforme o acima exposto Aqui o ldquowash outrdquo eacute uma claacuteusula por vezes abusiva que visa agrave reparaccedilatildeo de possiacutevel dano na maioria das vezes alcanccedilando valores exorbitantes

Reiterada estaacute se tornando tal praacutetica que eacute questatildeo de

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tempo ateacute chegar ao judiciaacuterio oacutergatildeo que deveraacute ter embasamento teoacuterico para realizar um julgamento de forma equacircnime visando compreender um instituto que natildeo eacute de faacutecil assimilaccedilatildeo aleacutem de afrontar princiacutepios e normas do direito interno

Postulados como boa-feacute liberdade contratual funccedilatildeo so-cial do contrato comutatividade rebus sic stantibus e onerosidade excessiva devem ser considerados quando o assunto eacute ldquowash outrdquo A depender do contexto em que eacute inserido e da sua quantificaccedilatildeo monetaacuteria poderaacute afrontar diretamente os princiacutepios supracita-dos

Aparentemente o ldquowash outrdquo como vem sendo posto possui linhas de ilegalidade justamente por ferir regras e princiacute-pios vigentes no ordenamento juriacutedico nacional Visto sobre o pla-no tricotocircmico dos negoacutecios juriacutedicos tambeacutem seraacute necessaacuterio um estudo casuiacutestico no tocante agrave validade e eficaacutecia

Nos moldes como foi introduzido no Brasil o ldquowash outrdquo eacute uma penalidade em repeticcedilatildeo por jaacute existirem no ordenamento paacutetrio mecanismos aptos a penalizar quem descumprir o contrato O ldquowash outrdquo teve sua forma originaacuteria totalmente desviada e por assim ser natildeo foi adaptado e inserido como uma ferramenta eficaz

Eacute importante dizer que por ser uma novidade estrangeira o ldquowash outrdquo pode ser adaptado ao direito paacutetrio obedecendo ao ordenamento aqui instituiacutedo ponderaccedilatildeo essa que seraacute realizada pelo poder judiciaacuterio o qual recorreraacute dos estudos acadecircmicos e doutrinaacuterios para o julgamento das lides

Destarte registra-se que o assunto em voga merece fo-mento e destaque por ser atual e de grande importacircncia para o sistema juriacutedico

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A FRONTEIRA JURIacuteDICO-POLIacuteTICA ENTRE OS SISTEMAS JURIacuteDICOS DA COMMON LAW E DA CIVIL LAW E SEUS IM-PACTOS NO DIREITO PAacuteTRIO

Ana Paula Soares de Souza1

Danilo Pires Atala2

RESUMO Este trabalho tem como objetivo apresentar as peculiaridades existentes entre os sistemas juriacutedicos da Common Law e da Civil Law com enfoque respectivamente nos ordenamentos juriacutedicos norte-americano e francecircs na perspectiva de Garapon e de outros estudiosos do direito E visa principalmente realccedilar as influecircncias que tais sistemas juriacutedicos realizaram no direito paacutetrio por meio de comparaccedilotildees mostrando que o direito brasileiro atual possui um sistema misto Para esse fim estruturou-se o trabalho em trecircs momentos distintos primeiramente fez-se uma abordagem geral apontando caracteriacutesticas que o Brasil positivou do Common Law para seu ordenamento juriacutedico Apoacutes demonstrou-se como o contexto histoacuterico influenciou sobremaneira a adoccedilatildeo deste ou daquele sistema juriacutedico E por fim explanou-se que a globalizaccedilatildeo e a tecnologia foram transformando o sistema juriacutedico brasileiro outrora extremamente arraigado na cultura Civil Law em um sistema juriacutedico misto que ora utiliza-se apenas da lei ora utiliza-se de um precedente para analisar um caso concreto

PALAVRAS-CHAVE Civil Law Common Law Sistema juriacutedico brasileiro

ABSTRACT This paper aims to present the peculiarities existing between the legal system of Common Law and Civil Law with a focus respectively on the North American and French legal systems from the perspective of Garapon and other scholars of

1 Acadecircmica do 8ordm periacuteodo do Curso de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT2 Professor Doutor do Departamento de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT

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law And purpose to highlight the influence of such legal systems on brasilian through comparisons showing that current brazilian legal system has a mixed system To this end the present work was structured in three distinct moments first a general approach was made pointing out characteristics that Brazil positived from Common Law to its legal order Afterwards it was demonstrated how the historical context greatly influenced the adoption of this or that legal system And finally it was explained that globalization and technology were transforming the Brazilian legal system once deeply rooted in a Civil Law culture to a mixed legal system that now uses only the law or a precedent is used to analyze a concrete case

KEYWORDS Civil Law Common Law Brazilian legal system

INTRODUCcedilAtildeO

O presente artigo tem por objeto caracterizar a diferenccedila entre os sistemas juriacutedicos Common Law e Civil Law tendo como fronteira juriacutedico-poliacutetica a Europa Continental a Inglaterra e os Estados Unidos da Ameacuterica Emprega-se o meacutetodo juriacutedico des-critivo que permite a decomposiccedilatildeo do problema em diferentes niacuteveiselementos e estabelece as interligaccedilotildees entre os mesmos para analisar e responder ao problema proposto

O sistema juriacutedico nacional embora seja tradicionalmen-te legislado aos poucos vai incorporando teorias e institutos do sistema da Common Law como por exemplo a suacutemula vinculante introduzida pela Emenda Constitucional 0452004 que acresceu o art 103-A Ainda tem-se os exemplos do que se convencionou chamar de direito jurisprudencial nos artigos 489 V-VI e 947 e 976 do Coacutedigo de Processo Civil de 2015 principalmente no art 926 que estabelece o dever dos tribunais de manter a jurisprudecircncia integra estaacutevel e coerente em evidente agasalhamento da Teoria do Direito com Integridade de Ronald Dworkin (1999) Ainda neste sentido destaca-se que no Brasil o reconhecimento da uniatildeo ho-moafetiva decorreu da construccedilatildeo ou criaccedilatildeo jurisprudencial no julgado do STF na ADI nordm 4277 e ADPF nordm 132 Assim entender as

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distinccedilotildees e as caracteriacutesticas destes dois sistemas proporcionaraacute uma melhor compreensatildeo do proacuteprio direito nacional

Breves apontamentos acerca dos Sistemas Juriacutedicos Common Law e Civil Law

O Sistema Civil Law tambeacutem usualmente apelidado de ldquoromano-germacircnicordquo diz respeito aos paiacuteses que cunharam a ciecircn-cia do direito tendo como base o direito romano cujo nascedouro se deu na Europa Nos dizeres de David (2002) os primoacuterdios do sistema Civil Law remontam aos seacuteculos XII e XIII Historicamente esse periacuteodo corresponde agrave fase em que as cidades e o comeacutercio comeccedilaram a se expandir fato que intensificou na sociedade da eacutepoca o ideal de que somente o direito pode assegurar a ordem e a segu-ranccedila necessaacuterias ao progresso (DAVID idem p 39) Com este vieacutes Medeiros (2009) diz que o ideal de uma sociedade cristatilde fundada na caridade eacute abandonado o que produz uma ruptura entre o di-reito e a religiatildeo tornando-se o direito autocircnomo

Aponta Cretella (1986) como jaacute foi dito na Roma Antiga que o direito passou a se constituir extraindo o preceito juriacutedico dos casos concretos cotidianos identificando sua classificaccedilatildeo e em seguida aplicando-se a novos casos Por isso muitos doutri-nadores apontam que o Estado Romano foi fundamental para a histoacuteria do direito constituindo-se em um divisor de aacuteguas nos processos de formaccedilatildeo dos sistemas de Civil Law e Common Law

A partir do momento em que a academia passou a se uti-lizar de textos romanos acabou por incorporar o conteuacutedo termi-noloacutegico e conceitual bem como a teacutecnica proacutepria de raciociacutenio juriacutedico para o desenvolvimento das regras juriacutedicas Tal entendi-mento juriacutedico se caracteriza mormente pelo fato de suas regras de direito serem concebidas como regras de conduta

Segundo Bobbio (1995 p 64-65) em seu livro O Positivis-mo Juriacutedico

[] a exigecircncia da codificaccedilatildeo nasceu de uma con-cepccedilatildeo francamente iluminista como demonstra

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o mote sapere aude citado por Thibaut tambeacutem na Franccedila (e na verdade com maior razatildeo visto ser este paiacutes a paacutetria maior do iluminismo) a ideacuteia de co-dificaccedilatildeo eacute fruto da cultura racionalista e se aiacute pocircde se tornar realidade eacute precisamente porque as ideacuteias iluministas se encarnaram em forccedilas histoacuterico-poliacuteti-cas dando lugar agrave Revoluccedilatildeo Francesardquo Eacute de fato propriamente durante o desenrolar da Revoluccedilatildeo Francesa (entre 1790 e 1800) que a ideacuteia de codificar o direito adquire consistecircncia poliacutetica

Diversos acontecimentos na Franccedila no seacuteculo XIX como a uniatildeo do monarca e da nobreza abusos excessivos de privileacutegios dos nobres do clero e tambeacutem dos magistrados conforme Sam-paio (2001) resultaram na Revoluccedilatildeo Francesa que foi o grande marco histoacuterico responsaacutevel pela consolidaccedilatildeo de um novo mode-lo juriacutedico riacutegido pois os revolucionaacuterios desse momento enxerga-ram a necessidade de conter a atuaccedilatildeo judicial que nos dizeres de Marinoni (2009 p 46)

[] para a Revoluccedilatildeo francesa a lei seria indispen-saacutevel para a realizaccedilatildeo da liberdade e da igualdade Por este motivo entendeu-se que a certeza juriacutedica seria indispensaacutevel diante das decisotildees judiciais uma vez que caso os juiacutezes pudessem produzir deci-sotildees destoantes da lei os propoacutesitos revolucionaacuterios estariam perdidos ou seriam inalcanccedilaacuteveis A cer-teza do direito estaria na impossibilidade de o juiz interpretar a lei ou melhor dizendo na proacutepria lei Lembre-se que com a revoluccedilatildeo francesa o poder foi transferido ao parlamento que natildeo podia confiar no judiciaacuterio

Do mesmo modo para Wambier (2010) a lei nesse pe-riacuteodo passou a ter o papel fundamental de representar um ideal de igualdade impossibilitando qualquer forma de interpretaccedilatildeo devendo nesse contexto histoacuterico ao magistrado restringir sua decisatildeo ao texto legal A concepccedilatildeo de igualdade no Civil Law era associada agrave rigorosa aplicaccedilatildeo da lei o que deu origem a um in-tenso processo de codificaccedilatildeo do direito cabendo ao juiz a funccedilatildeo

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de apenas aplicar as leis positivadas garantindo deste modo uma igualdade meramente formal

Assim aleacutem de restringir a aplicaccedilatildeo do direito pelo ma-gistrado fez com que o direito se transfigurasse na mera aplicaccedilatildeo do positivismo legislativo sem nenhuma anaacutelise das peculiarida-des do caso concreto Conforme Grossi (2006) todo o direito da eacutepoca iniciando-se com o direito civil foi aprisionado em milhares de artigos organicamente sistematizados e contidos em alguns li-vros chamados ldquocoacutedigosrdquo

Marinoni (2010) de forma brilhante aponta que natildeo eacute o fato de se ter coacutedigos ou natildeo que determina o modelo juriacutedico ado-tado a distinccedilatildeo eacute feita sobretudo a partir da concepccedilatildeo de coacutedigo que cada indiviacuteduo possui Na sua concepccedilatildeo no Common Law os coacutedigos natildeo pretendem coibir a interpretaccedilatildeo da lei razatildeo pela qual se houver um conflito entre uma lei codificada e uma empre-gada pela Common Law ficaraacute ao encargo do juiz interpretar qual das duas deveraacute ser aplicada

Dentre os vaacuterios paiacuteses que adotaram tal sistema cita-se o Brasil que por ter sido colocircnia de Portugal e nele predominar o sis-tema romano-germacircnico teve no nascedouro da ciecircncia do direito uma geraccedilatildeo de legisladores e juristas que procuravam codificar para deste modo reformular comportamentos Vejamos

[] em face de sua tradiccedilatildeo romanista o Direito Bra-sileiro tambeacutem eacute marcado pela sistematizaccedilatildeo e pela codificaccedilatildeo bem como por fazer uso de institutos originados no Direito Romano e revistados pelos doutrinadores da Europa Continental poacutes Idade Meacutedia [] O ensino do Direito no Brasil somente se iniciou em 1827 entretanto por conta da presenccedila dos jesuiacutetas e com a ida de jovens a Portugal para se tornarem bachareacuteis os estudos da Universidade de Coimbra acabaram cruzando o Atlacircntico ainda na eacutepoca colonial (SANTOS 2010 p 25)

A tiacutetulo de exemplo o Coacutedigo Civil de 1916 se encontra abarrotado de institutos oriundos do Direito Portuguecircs que por sua vez tem suas raiacutezes juriacutedicas provenientes do Direito Romano

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Em contraponto tem-se o sistema Common Law que tem suas raiacutezes nas estruturas judiciaacuterias da Inglaterra Paiacutes de Gales Irlanda do Norte e Escoacutecia e que embora tenham particularidades em razatildeo de vicissitudes histoacutericas todas elas satildeo baseadas no di-reito casuiacutestico ou case law segundo Oliveira (apud TUCCI 2010)

Diferentemente do sistema Civil Law que se deu precipu-amente mediante fases histoacutericas o sistema Common Law se deu de maneira ininterrupta baseado no cotidiano da sociedade ingle-sa ou seja ele foi se transformando no decorrer das relaccedilotildees esta-belecidas

Nas palavras de Wambier (2009 p 54)

O common law natildeo foi sempre como eacute hoje mas a sua principal caracteriacutestica sempre esteve presente casos concretos satildeo considerados fonte do direito O direito inglecircs berccedilo de todos os sistemas de common law nasceu e se desenvolveu de um modo que pode ser qualificado como ldquonaturalrdquo os casos iam sur-gindo iam sendo decididos Quando surgiam casos iguais ou semelhantes a decisatildeo tomada antes era repetida para o novo caso Mais ou menos como se dava no direito romano

Denota-se pelas palavras da autora que esse sistema juriacute-dico por ter dado mais autonomia aos juiacutezes permitiu-lhes que compusessem um sistema de precedentes para julgamento de ca-sos futuros e eacute dessa concepccedilatildeo de empregar julgamento de casos passados para vincular soluccedilotildees futuras que se extrai a concepccedilatildeo de precedente judicial

Jaacute o sistema do stare decisis se refere ao modo de opera-cionalizar o sistema da Common Law cominando certeza a essa praacutetica Eacute o denominado sistema de precedentes que nasceu tatildeo-somente no seacuteculo XVI Deste modo a teoria do stare decisis et non quieta movere que significa literalmente ldquomantenha-se a decisatildeo e natildeo mexa no que estaacute quietordquo (SABINO 2010 p 61) estaacute relacio-nada agrave ideia de que os juiacutezes estatildeo vinculados agraves decisotildees do pas-sado ou seja aos precedentes

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Entretanto Marinoni (2010) sabiamente explica que natildeo se deve confundir a doutrina de stare decisis com o proacuteprio sistema Common Law pois o Common Law foi desenvolvido pelos costumes gerais e como jaacute dito se desenvolveu no decorrer dos seacuteculos an-tes de surgir o stare decisis ou precedente vinculante Assim o stare decisis eacute tatildeo-somente um componente presente que se encontra in-cluso dentro do modelo juriacutedico baseado na Common Law

O realce da distinccedilatildeo entre stare decisis e Common Law natildeo obstante necessaacuterio para afastar uma banal confusatildeo centra-se na preocupaccedilatildeo deste trabalho em amparar o sistema de precedentes que pode constituir parte do sistema brasileiro Com efeito o sta-re decisis constitui apenas um elemento do moderno Common Law que tambeacutem natildeo se confunde com o Common Law de tempos remo-tos ou com os costumes gerais de natureza secular (MARINONI 2009)

Conforme Marinoni (Idem) o magistrado inglecircs teve fun-ccedilatildeo crucial na efetivaccedilatildeo do sistema juriacutedico Common Law pois nesse contexto histoacuterico o poder do juiz era o de afirmar o Common Law o qual se sobrepunha ao Legislativo que por isso deveria atuar de modo a complementaacute-lo Desta maneira na Inglaterra o juiz permaneceu ao lado do parlamento no combate agraves arbitrarie-dades empreendidas pelo monarca preocupando-se com a tutela dos direitos e das liberdades do cidadatildeo Por isso mesmo diferen-temente do que ocorreu na Revoluccedilatildeo Francesa natildeo houve justifi-cativa para desconfiar do Judiciaacuterio ou para desconfiar de que os juiacutezes se posicionariam em favor do rei ou do absolutismo

Nesta senda ao se referir que o juiz do Common Law cria o direito natildeo se estaacute fundamentalmente assegurando que a sua decisatildeo tem a mesma forccedila e qualidade do produto elaborado pelo Legislativo isto eacute da lei A decisatildeo neste contexto natildeo se equipara agrave lei pelo fato de ter forccedila obrigatoacuteria para os demais juiacutezes Poreacutem seria possiacutevel argumentar que a decisatildeo por ter forccedila obrigatoacuteria constitui direito

Para Marinoni (2009 p 190)

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O Common Law considera o precedente como fonte de direito Note-se contudo que quando um prece-dente interpreta a lei ou a Constituiccedilatildeo como acon-tece especialmente nos Estados Unidos haacute eviden-temente direito preexistente com forccedila normativa de modo que seria absurdo pensar que o juiz neste caso cria um direito novo

Assim como bem exposto por Marinoni (2009) o que per-mite assegurar que o juiz do Common Law cria o direito eacute a com-paraccedilatildeo do seu papel com a do juiz da tradiccedilatildeo do Civil Law cuja funccedilatildeo se atinha agrave mecacircnica aplicaccedilatildeo da lei No Civil Law quando se dizia que ao juiz cabia apenas expressar as palavras ditadas pelo legislador o direito era concebido exclusivamente como lei A ta-refa do Judiciaacuterio se resumia agrave aplicaccedilatildeo das normas gerais O juiz inglecircs natildeo apenas teve espaccedilo para densificar o Common Law como tambeacutem oportunidade de a partir dele controlar a legitimidade dos atos estatais

Para Villey (2009) em seu livro A Formaccedilatildeo do Pensamen-to Juriacutedico Moderno na formaccedilatildeo do Estado Moderno (fim da ida-de medieval e iniacutecio do iluminismo) existiu a luta pelo poder ou da legitimaccedilatildeo do poder Os ldquoDireitosrdquo existentes eram a) usos e costumes locais b) direito canocircnico (Igreja Catoacutelica) c) usos e costumes dos baacuterbarosgermacircnicos e) direito romana atraveacutes das compilaccedilotildees e gozadores da jurisprudecircncia romana

Nesse contexto o rei queria impor o seu poder atraveacutes de sua lei escrita baseado na teoria desenvolvida por Hobbes (2003) em Leviatatilde Os ingleses embora aceitassem o sistema monarca re-cusavam a lei do rei de impor seus usos e costumes com base na teoria criada por Locke (2002) em Segundo Tratado de Governo

Assim para Hobbes (Idem) naturalmente os homens natildeo satildeo justos piedosos bondosos mas ao contraacuterio os homens satildeo tendentes agrave parcialidade orgulho e vinganccedila Na realidade nes-sa condiccedilatildeo o homem estaacute em situaccedilatildeo de guerra de todos contra todos como dito em sua marcante frase o homem eacute lobo do homem Com esta ceacutelebre frase o filoacutesofo quer advertir que o Estado eacute um mal necessaacuterio ou seja o Estado sendo soberano faz com que os

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suacuteditos se submetam em absoluto ao soberano o detentor do po-der a fim de garantir seguranccedila e uma vida mais tranquila saltan-do da condiccedilatildeo de intranquilidade instabilidade e da constante e iminente medo da morte violenta que urge a todo o momento no estado de natureza

Assim para evitar que a sociedade se torne um caos e te-nha um fim traacutegico de todos contra todos faz-se necessaacuterio outor-gar o poder ao Estado de preferecircncia a um soacute homem o soberano Para Hobbes (2003) natildeo se deve pensar que a liberdade limitada seria uma condiccedilatildeo ruim pois nessa perspectiva seria muito me-lhor ter a liberdade diminuiacuteda pelo Estado do que regressar ao estado inicial o de guerra como jaacute dito de todos contra todos

Nos dizeres de Lopes (2012) o Estado enquanto titular de todos os poderes age buscando garantir a paz e todos os direitos baacutesicos dos cidadatildeos sem levar em consideraccedilatildeo qualquer base eacutetica e moral Hobbes nesse contexto observa que o contrato so-cial eacute a soluccedilatildeo para a superaccedilatildeo tanto da violecircncia como da inse-guranccedila coletiva existentes no estado de natureza e assim o Esta-do eacute a soluccedilatildeo agrave sobrevivecircncia do homem em sociedade

Desse modo o Estado obriga por seu poder soberano o cumprimento das leis civis que servem para dirigir as accedilotildees dos homens com o escopo de garantir a paz e a seguranccedila Assim para evitar que os homens voltem ao estado natural eacute imperioso um Estado civil com poder soberano capaz de obrigar os homens a cumprirem seus pactos mesmo que para tal se utilize da espada coerccedilatildeo do castigo ou da forccedila

Para Locke (2002) o ldquoestado de naturezardquo natildeo eacute caracte-rizado necessariamente por um ldquoestado de guerrardquo hobbesiano E embora concorde com a possibilidade de existecircncia de um ldquoestado de guerrardquo para o filoacutesofo o estado de guerra se daacute quando se usa a forccedila contra a pessoa de outrem e natildeo existe um superior comum a quem apelar

De acordo com o fundamento epistecircmico lockeano as ideias complexas de direito e dever pressupotildeem uma relaccedilatildeo con-sensual de caraacuteter empiacuterico-psicoloacutegico pela qual os indiviacuteduos

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criam normas ou regras que atribuem ao sujeito a faculdade cog-nitiva de fazer ou deixar de fazer determinadas coisas cabendo ao Estado garantir esse direito limitando-o atraveacutes do dever

Losurdo (apud SILVA 2011 p 126) vai dizer que

Os dois tratados sobre o governo podem ser consi-derados momentos essenciais da preparaccedilatildeo e con-sagraccedilatildeo ideoloacutegica desse acontecimento que marca o nascimento da Inglaterra liberal Estamos na pre-senccedila de textos perpassados pelo pathos da liberda-de pela condenaccedilatildeo do poder absoluto pelo apelo a se insurgir contra aqueles infelizes que quisessem privar o homem da sua liberdade e reduzi-lo agrave es-cravidatildeo Mas de vez em quando no acircmbito dessa celebraccedilatildeo da liberdade se abrem fendas assustado-ras pelas quais passa na realidade a legitimaccedilatildeo da escravidatildeo nas colocircnias

Para melhor compreender tais sistemas faz-se necessaacuterio mergulhar na histoacuteria de cada paiacutes e verificar como as experiecircn-cias cotidianas contribuiacuteram para um determinado paiacutes adotar de forma predominante este ou aquele sistema juriacutedico Mais do que isso eacute observar os rituais que satildeo utilizados e contrapocirc-los a outros utilizados

Nesse contexto eacute apropriado citar Garapon (1997) que em seu livro Bem Julgar de forma brilhante compara estrutura e expotildee como se organizam os sistemas judiciaacuterios dos Estados Uni-dos e Franccedila Vislumbra-se que Garapon busca demonstrar de que modo a sociedade e sua cultura afetam o modus operandi do Direito e por consequecircncia a adoccedilatildeo do sistema Civil Law ou do Common Law Em uma das passagens de seu livro o autor cita que nos Es-tados Unidos o juiz se comporta como aacuterbitro enquanto na Franccedila como um padre ou seja aquele garante as regras do jogo enquanto este eacute o ator da cerimocircnia

A principal caracteriacutestica deste sistema juriacutedico eacute a codifi-caccedilatildeo Segundo as precisas observaccedilotildees de Garapon e Papapoulus (2008 p 33)

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Nos sistemas de direito romano-germacircnico a lei eacute a fonte primaacuteria do direito A codificaccedilatildeo aumenta consideravelmente a forccedila da lei hierarquizando as suas disposiccedilotildees e as reagrupando em um conjun-to exaustivo e coerente em suma racional A co-dificaccedilatildeo eacute certamente a teacutecnica mais caracteriacutestica dos direitos da famiacutelia romanista Longe de ser uma simples coletacircnea de regras o coacutedigo eacute um edifiacutecio legislativo que pretende ser o espelho de uma polis harmoniosa Ele deve fornecer ao cidadatildeo um mate-rial legiacutevel ao qual seja sempre possiacutevel referir-se e ser para o juiz um guia precioso para perceber atraveacutes da disposiccedilatildeo dos princiacutepios e da classifica-ccedilatildeo das regras a intenccedilatildeo legisladora Aliaacutes somente a lei constitui o direito do qual os juiacutezes satildeo apenas os porta-vozes

Jaacute a formaccedilatildeo da Common Law deriva dos antigos costumes locais e nem as fases porvindouras que lhe afeiccediloaram o estilo que hoje ela possui foram capazes de modificar sua caracteriacutestica essencial Como na Common Law os statutory laws tecircm papel secun-daacuterio a basilar fonte do direito eacute o direito como posto pelo magis-trado no caso concreto O direito inglecircs foi intensamente caracteri-zado pela carecircncia durante o seu periacuteodo de formaccedilatildeo de poder legislativo real no seio do Parlamento e pelo poder das Cortes Re-ais de Justiccedila A Common Law designa a totalidade dessas regras suscetiacuteveis de serem subsumidas a partir de decisotildees particulares No fundamento da Common Law se encontra portanto a regra do precedente

Garapon (1997) ainda em seu livro Bem Julgar quis de-monstrar que nos Estados Unidos em que se prepondera o Com-mon Law o comportamento empregado pelo juiz eacute o comparado ao de um aacuterbitro visto que apenas intermedia o conflito existente entre as partes Diferentemente da Franccedila onde o magistrado com-porta-se como um padre ele seria a peccedila principal do julgamento ditando a forma como deveriam se comportar as partes Essa com-paraccedilatildeo metafoacuterica feita por Garapon (Idem) busca mostrar que os rituais utilizados no Judiciaacuterio nada mais satildeo do que a externali-zaccedilatildeo dos valores da repuacuteblica e da democracia de cada paiacutes e os

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representa na cena no espaccedilo no tempo nas vestimentas na lin-guagem nos papeacuteis assumidos pelos atores de modo a tornar efi-ciente a sua comunicaccedilatildeo natildeo racional A ecircnfase portanto eacute dada aos papeacuteis assumidos por quem dirige o ritual e pelos seus parti-cipantes buscando conhecer as relaccedilotildees estabelecidas entre eles

O que o direito brasileiro tem de legislado e o que tem da Common Law

Como jaacute explanado nos primoacuterdios de criaccedilatildeo do Direito brasileiro prevaleceu o sistema Civil Law todavia por ser o Direito uma ciecircncia dinacircmica e considerando a globalizaccedilatildeo hoje eacute plau-siacutevel asseverar que o Brasil possui um sistema misto com traccedilos caracteriacutesticos dos dois sistemas juriacutedicos

Vislumbra-se sobretudo que com o advento do Coacutedigo de Processo Civil de 2016 positivou-se de forma muito mais en-faacutetica o emprego dos precedentes judiciais que o anterior Obser-va-se por este paradoxo que por meio do Civil Law positivou-se a importacircncia do precedente judicial que eacute caracteriacutestica marcante do Common Law de caraacuteter vinculante no ordenamento juriacutedico brasileiro Vejamos

Art 985 Julgado o incidente a tese juriacutedica seraacute aplicadaI - a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idecircntica questatildeo de direito e que trami-tem na aacuterea de jurisdiccedilatildeo do respectivo tribunal in-clusive agravequeles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou regiatildeoII - aos casos futuros que versem idecircntica questatildeo de direito e que venham a tramitar no territoacuterio de com-petecircncia do tribunal salvo revisatildeo na forma do art 986sect 1o Natildeo observada a tese adotada no incidente ca-beraacute reclamaccedilatildeo

Denota-se pelo artigo supracitado que a tese juriacutedi-ca delineada vincularaacute os demais oacutergatildeos do Poder Judiciaacuterio sob

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pena de ajuizamento de reclamaccedilatildeo que nada mais eacute do que um remeacutedio constitucional empregado nos casos de julgamento em dissonacircncia com a tese jaacute firmada Denota-se ainda nitidamente uma valorizaccedilatildeo maior para a interpretaccedilatildeo judicial das normas positivas visando dar maior agilidade bem como impedir insegu-ranccedila juriacutedica existente no Coacutedigo Processual Civil de 1973

Ademais o advento da EC nordm 452004 trouxe ao ordenamento juriacutedico a ideia de o juiz ser um agente integrador entre o ordenamento juriacutedico e a justiccedila Todavia a ideia de uma interpretaccedilatildeo verticalizada do ordenamento juriacutedico natildeo pode ser absoluta sob pena de atividade judicante ficar condenada a uma vinculaccedilatildeo preacutevia

De fato havendo similaridade no caso concreto e precedente de caraacuteter vinculante deveraacute o juiz acompanhaacute-lo sob pena de desrespeitar o princiacutepio da igualdade todavia essa ativi-dade judicante monocraacutetica deve ser dotada de autonomia incum-bindo o juiz ao analisar o caso concreto deixar de aplicaacute-lo levan-do em conta fatores regionais situacionais que se tornaratildeo desse modo o caso singular e portanto tornando incabiacutevel a utilizaccedilatildeo do precedente vinculante

Na concepccedilatildeo de Schauer (2009) uma decisatildeo que siga os precedentes eacute melhor do que uma decisatildeo correta e que repetidamente eacute mais importante uma dada decisatildeo seguir os pre-cedentes do que ter as melhores consequecircncias

Em contraponto para Dworkin (1999) o direito seria um conceito interpretativo como a cortesia no exemplo imaginaacuterio ci-tado em seu livro O Impeacuterio do Direito Para ele caberia aos juiacutezes reconhecer o dever de continuar o desempenho da profissatildeo agrave qual aderiram em vez de rejeitaacute-la E os proacuteprios magistrados desen-volveriam em resposta as suas proacuteprias convicccedilotildees e tendecircncias teorias operacionais sobre a melhor interpretaccedilatildeo de suas respon-sabilidades nesse desempenho Nesta concepccedilatildeo a atividade inter-pretativa em grande parte seria a busca sobre a melhor interpreta-ccedilatildeo de algum aspecto pertinente ao exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo do caso concreto

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Dworkin (Idem p 110) exemplifica em que consiste a ati-vidade interpretativa do magistrado

Assim o destino de Eacutelmer vai depender das convic-ccedilotildees interpretativas do corpo de juiacutezes que julgaratildeo o caso Se um juiz acha que para alcanccedilar a melhor in-terpretaccedilatildeo daquilo que os juiacutezes geralmente fazem a propoacutesito da aplicaccedilatildeo de uma lei ele nunca deve levar em conta as intenccedilotildees dos legisladores poderaacute entatildeo tomar uma decisatildeo favoraacutevel a Eacutelmer Mas se ao contraacuterio acha que a melhor interpretaccedilatildeo exige que ele examine essas intenccedilotildees eacute provaacutevel que sua decisatildeo favoreccedila Goneril e Regan Se o caso Eacutelmer for apresentado a um juiz que ainda natildeo refletiu sobre a questatildeo da interpretaccedilatildeo ele deveraacute entatildeo fazecirc-lo e de ambos os lados encontraraacute advogados dispostos a ajudaacute-lo As interpretaccedilotildees lutam lado a lado com os litigantes diante do tribunal

Nesse conceito interpretativo o exerciacutecio do precedente na concepccedilatildeo de Dworkin natildeo poderia ser ignorado pelo juiz em sua interpretaccedilatildeo pois a atividade judicante incorpora aspectos de outras interpretaccedilotildees correntes na eacutepoca

Aleacutem disso para Dworkin (1999) os juiacutezes conjecturam sobre o direito no acircmbito da sociedade e natildeo fora dela o meio inte-lectual de modo geral assim como a linguagem comum que reflete e protege esse meio exerce restriccedilotildees praacuteticas sobre a idiossincra-sia e restriccedilotildees conceituais sobre a imaginaccedilatildeo

Todavia o proacuteprio autor critica o inevitaacutevel conservado-rismo do ensino juriacutedico formal ainda presente na academia e do processo de selecionar juristas para as tarefas judiciaacuterias e admi-nistrativas considerando a cultura juriacutedica existente O fato eacute que certas soluccedilotildees interpretativas incluindo pontos de vista sobre a natureza e a forccedila da legislaccedilatildeo e do precedente satildeo muito popula-res em determinada eacutepoca e sua popularidade ajudada pela ineacuter-cia intelectual normal estimula os juiacutezes a consideraacute-las estabele-cidas para todos os propoacutesitos praacuteticos Elas satildeo os paradigmas e quase-paradigmas de sua eacutepoca Mas ao mesmo tempo outras

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questotildees talvez igualmente fundamentais satildeo objeto de debates e controveacutersias

Assim na concepccedilatildeo de Dworkin (Idem) o precedente deve ser adotado como um princiacutepio e as teorias gerais do direito devem ser abstratas pois seu desiacutegnio eacute interpretar o ponto essen-cial e a estrutura da jurisdiccedilatildeo natildeo uma parte ou seccedilatildeo especiacutefica desta uacuteltima Para ele os filoacutesofos do direito discutem sobre o fun-damento interpretativo que qualquer argumento juriacutedico deve ter Desse modo o voto de qualquer juiz eacute em si uma peccedila de filosofia do direito mesmo quando a filosofia estaacute oculta e o argumento manifesto eacute dominado por citaccedilotildees e listas de fatos A doutrina eacute a parte geral da jurisdiccedilatildeo o proacutelogo silencioso de qualquer vere-dito

Percebe-se deste modo que se faz necessaacuterio partir do pressuposto de que nenhum caso eacute rigorosamente igual ao outro e por conta dessas peculiaridades faz-se necessaacuterio identificar as razotildees que fazem privilegiar as diferenccedilas ou semelhanccedilas de um caso Assim eacute necessaacuterio verificar a viabilidade da teacutecnica da dis-tinccedilatildeo que nada mais eacute do que observar a possibilidade da natildeo aplicaccedilatildeo de um precedente ao argumento racional e convincente pois o novo caso a ser julgado apresenta caracteriacutesticas especiais que exigem um tratamento diferenciado

Nesse contexto entra em accedilatildeo o distinguishing positivado por meio do art 489 e seguintes do Coacutedigo de Processo Civil (CPC) Esse termo teacutecnico para Didier Jr (apud LOURENCcedilO 2011) sig-nifica que o magistrado por meio de sua atividade judicante e de meacutetodos interpretativos do precedente invocado constata uma distinccedilatildeo entre o caso concreto em julgamento e o paradigma seja porque natildeo haacute coincidecircncia entre os fatos fundamentais debati-dos e aqueles que serviram de base a ratio decidendi (tese juriacutedica) constante do precedente seja porque a despeito de existir uma aproximaccedilatildeo entre eles determinada particularidade no caso em julgamento afasta a aplicaccedilatildeo do precedente E assim por haver dissonacircncia o magistrado restringe a aplicaccedilatildeo do precedente in-vocado

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No entanto caso o precedente encontre-se superado con-forme se denota pelo contido no art 297 sect3ordm do CPC estar-se-aacute diante de umas das teacutecnicas de superar um precedente denomina-do overruling que nos dizeres de Arauacutejo eacute uma superaccedilatildeo total do precedente tornando possiacutevel a revisatildeo de um precedente sempre que houver novos argumentos criando-se um novo precedente fazendo uma comparaccedilatildeo para aclarar o entendimento Tal insti-tuto se assemelha a uma revogaccedilatildeo total de uma lei pela outra Ocorre que natildeo se pode mudar do dia para noite um precedente sob pena de quebra de confianccedila sendo deste modo necessaacuteria uma fundamentaccedilatildeo abrangente para ocorrer o overruling com ar-gumentos ateacute entatildeo natildeo enfrentados bem como a necessidade de se superar o precedente

De igual maneira ainda demonstra aproximaccedilatildeo ao sis-tema da Common Law a utilizaccedilatildeo do instituto da Repercussatildeo Geral no Recurso Extraordinaacuterio estabelecido pelo art 102 sect 3ordm da Constituiccedilatildeo Federal de 88 (CF) introduzido tambeacutem pela EC 452004 e art 543-A do CPC73 (com alteraccedilotildees inseridas pela Lei nordm 114182006) Tambeacutem foram inseridas no ordenamento juriacute-dico brasileiro a suacutemula impeditiva de recurso (artigo 518 sect 1ordm CPC73 introduzido pela Lei nordm 112762006) a improcedecircncia liminar de demandas repetitivas (art 285-A CPC73 introduzida tambeacutem pela Lei nordm 112772006) e o julgamento de recursos por amostragem (art 543-B CPC73 introduzido atraveacutes da Lei nordm 114182006) dentre tantos outros exemplos

Jaacute o Coacutedigo de Processo Civil de 2016 trouxe ao ordena-mento juriacutedico a possibilidade de as partes de forma consensual estabelecer um calendaacuterio processual para um determinado pro-cesso que se aprovado de comum acordo vincula as partes in-clusive o juiz conforme se denota pelo art 191 CPC Percebe-se desse modo que as partes de comum acordo poderatildeo dilatar ou restringir prazos data em que seraacute realizada a produccedilatildeo de provas bem como a data em que seraacute a sentenccedila exarada jaacute tipicamente utilizada no direito processual estadunidense francecircs e recente-mente no italiano

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Outro ponto interessante trazido pelo Coacutedigo de Processo Civil de 2015 eacute o art 357 sectsect 2ordm e 3ordm CPC que possibilita agraves par-tes de forma consensual apresentarem decisatildeo saneadora ao juiz que poderaacute quando a causa for complexa designar audiecircncia para proferir decisatildeo de saneamento e organizaccedilatildeo do processo tendo deste modo de forma liacutempida desraigado com a antiga concepccedilatildeo eminentemente influenciada pelo direito portuguecircs em que a tal funccedilatildeo era exclusiva do magistrado

Nos dizeres de Porto (apud TRIGUEIRO 2014) eacute possiacutevel perceber que os institutos juriacutedicos da Common Law e da Civil Law estatildeo se sintonizando cada vez mais e criando um novo institu-to juriacutedico chamado commonlawlizaccedilatildeo em face das jaacute destacadas facilidades de comunicaccedilatildeo e pesquisa postas na atualidade e a disposiccedilatildeo da comunidade juriacutedica Realmente na chamada com-monlawlizaccedilatildeo do direito nacional se pode perceber que a partir da constataccedilatildeo da importacircncia da jurisprudecircncia as decisotildees jurisdi-cionais vecircm adquirindo no sistema paacutetrio por meio de normas po-sitivadas mormente por uma crescente funccedilatildeo interpretativa das normas pelo juiz

Ainda sobre a criatividade judicial Cappelletti (1993) em sua obra Juiacutezes Legisladores apoacutes discorrer sobre as altercaccedilotildees en-tre os sistemas supracitados conclui que eacute evidente o aumento da criatividade juriacutedica nos paiacuteses de Civil Law da mesma forma que ocorre no Common Law sendo as contendas cada vez mais abran-dadas entre ambos derivando do que o autor denomina ldquoconver-gecircncia evolutivardquo

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Vislumbra-se por tudo que foi exposto no decorrer deste trabalho que natildeo restam duacutevidas de que o direito brasileiro sofreu influecircncia direta e inicial do sistema juriacutedico romano-germacircnico sobretudo no nosso ordenamento juriacutedico que se encontra abar-rotado de leis regulamentos decretos resoluccedilotildees enfim a lei em sentido amplo eacute considerada no paiacutes fonte primaacuteria sendo deste

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modo o instrumento baacutesico que regula as relaccedilotildees sociais A tiacutetulo ilustrativo nota-se que se encontram positivados

direitos e deveres ainda quando nascituros e que tais garantias e deveres persistem para depois da morte Nada obstante agrave preva-lecircncia do direito legislado observa-se no que foi discutido que a lei natildeo tem a capacidade de esgotar todas as possibilidades pois ja-mais o constituinte de 1988 imaginaria os avanccedilos tecnoloacutegicos na aacuterea da informaacutetica que viriam a ocorrer ao proteger por exemplo o sigilo da correspondecircncia que hoje abrange as correspondecircncias encaminhadas por correio eletrocircnico que eacute fruto de interpretaccedilatildeo judicial O fato eacute que de laacute para caacute ocorreram inuacutemeras mudanccedilas e portanto natildeo pode uma pessoa ter seus direitos negados em ra-zatildeo da ausecircncia de norma legal que a ampare

Eacute pensamento arcaico apontar a lei como uacutenica soberana fonte primaacuteria e eacute aiacute que entra em campo a jurisprudecircncia que tem por escopo adequar a lei agraves mudanccedilas que ocorrem na sociedade Como jaacute demonstrado faz-se necessaacuterio uniformizar a jurispru-decircncia das normas dos nossos Tribunais sob pena de rechaccedilar o principio da igualdade material e ter aplicado aquele velho brocar-do ldquodois pesos e duas medidasrdquo Todavia longe de ser extremista e encobertando-se sob o principio da igualdade formal e da celeri-dade processual eacute deixar de analisar as peculiaridades e estagnar no tempo e no espaccedilo as intepretaccedilotildees judiciais que retroacutegadas natildeo teriam relaccedilatildeo com as mudanccedilas da sociedade

Desse modo faz-se necessaacuterio repensar que o sistema ju-riacutedico brasileiro jaacute natildeo mais eacute exclusivamente aderente ao sistema juriacutedico da Civil Law pois o Coacutedigo de Processo Civil de 2015 veio corroborar de forma positivada as ideias haacute tempos utilizadas nos tribunais e discutidas pelos doutrinadores de que o uso de prece-dente vinculante aleacutem de proporcionar uma nova concepccedilatildeo de que o Direito natildeo eacute soacute aquilo que estaacute posto instiga na mesma ocasiatildeo uma reflexatildeo sobre a conduta postada pelo Estado quando se ocupa de atribuir um aumento de poder aos Tribunais Paacutetrios e como estes utilizaratildeo os precedentes para fazer justiccedila

Pelo exposto eacute de clareza solar que as novas relaccedilotildees pro-

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cessuais deveratildeo observar natildeo apenas a letra da lei e tampouco observar de forma absoluta os precedentes fixados mas sim res-guardar e efetivar os Direitos previstos na Carta Magna

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VISIBILIZANDO A VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO PSICOLOacuteGICA COMO LESAtildeO Agrave SAUacuteDE DA VIacuteTIMA REVISITANDO O AR-TIGO 129 DO COacuteDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO Agrave LUZ DA LEI MARIA DA PENHA

Artenira da Silva e Silva 1

Joseacute Maacutercio Maia Alves2

RESUMO Este estudo tem o objetivo de demonstrar a possibilidade de criminalizaccedilatildeo da violecircncia psicoloacutegica pura como crime de lesatildeo corporal agrave sauacutede da viacutetima de violecircncia domeacutestica com base no caput e sect 9ordm do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro combinados com o art 7ordm II da Lei 113402006 O texto aborda apontamentos teoacutericos sobre a adequaccedilatildeo tiacutepica da lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica a partir de reflexotildees acerca da concepccedilatildeo de elemento normativo do tipo apresentando ainda uma proposta de anamnese para aferir a violecircncia psicoloacutegica e seus efeitos danosos ainda na fase de investigaccedilatildeo criminal na delegacia de poliacutecia

PALAVRAS-CHAVE Violecircncia psicoloacutegica Adequaccedilatildeo tiacutepica Anamnese

ABSTRACT This study aims to demonstrate the possibility to criminalize psychological violence as a crime of bodily injury which offends the health of the victim specially considering domestic violence victims based on the caput and on the sect9 of the article 129 of the Brazilian Penal Law combined with the article 7 II of the 113402006 Law The text presents theoretical notes about psychological health damage as well as reflections about the concept of the normative element type It also presents a general

1 Poacutes-doutora em Psicologia e Educaccedilatildeo e Doutora em Sauacutede Coletiva Docente e pesquisadora do Departamento de Sauacutede Puacuteblica e do Mestrado em Direito e Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila da Universidade Federal do Maranhatildeo Coordenadora de linha de pesquisa do Observatoacuterio Ibero Americano de Sauacutede e Cidadania e Coordenadora do Observatorium de Seguranccedila Puacuteblica (PPGDIRUFMACECGP) Email artenirassilvahotmailcom 2 Mestrando do PPGDIRUFMA (Direito e Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila) E-mail jose-marciompmampbr

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anamnesis proposal to assess psychological violence harmful effects since itacutes criminal investigation phase in the police station

KEYWORDS Psychological violence Typical adequacy Anamnesis

INTRODUCcedilAtildeO

Nos paiacuteses em que o direito tem tradiccedilatildeo romano-germacirc-nica e que sofreram a influecircncia do incremento do ideal positivista poacutes-revoluccedilatildeo francesa haacute uma resistecircncia endecircmica em se atri-buir alcance e significado agrave lei aleacutem do que seria a genuiacutena ldquointen-ccedilatildeo do legisladorrdquo As leis caducam com mais facilidade porque natildeo acompanham as mudanccedilas dos fatos sociais o contexto que elas pretenderam um dia prever passa a natildeo existir mais e em consequecircncia inauguram-se outras leis A pretexto da seguranccedila juriacutedica haacute uma necessidade de a ldquoregra legalrdquo (a lei) continua-mente esgotar a prodigiosidade da sua pretensatildeo de regulaccedilatildeo

Trata-se de uma postura equivocada que culmina por engessar a prestaccedilatildeo jurisdicional para que o Juiz cada vez mais ldquodiga o direitordquo como o legislador supostamente quis que ele fosse dito Poreacutem muito diferente de oferecer seguranccedila juriacutedica essa medida pode fomentar deficit de efetividade de direitos porque em razatildeo dela natildeo se desenvolve o haacutebito de usar-se da interpretaccedilatildeo para aplicar as normas aos casos concretos

Vecirc-se entatildeo uma sensiacutevel dicotomia quanto ao que ldquoeacute o direitordquo em paiacuteses originaacuterios da civil law e da common law de ori-gem inglesa Nos primeiros haacute um impeacuterio da norma em que a lei se esforccedila em prever qual desfecho juriacutedico se entende por apro-priado agraves situaccedilotildees nos uacuteltimos tem-se uma concentraccedilatildeo sobre a resoluccedilatildeo do litiacutegio no caso concreto e a lei eacute mero coadjuvan-te para se buscar uma soluccedilatildeo que corresponda ao melhor direito possiacutevel mediante decisotildees racionalmente fundamentadas

Esta premissa se faz importante por permitir dizer que no Brasil cujo direito tem origem romano-germacircnica a liberdade para extrair sentidos racionalmente construiacutedos acerca da norma

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ou para transitar por significados e conceitos extrajuriacutedicos que tenham forccedila para incidir diretamente nas decisotildees pode soar perigosa e por isso sofre resistecircncias que por vezes natildeo se justi-ficam Exemplo disso eacute a escasso exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de juiacutezos de valor ao elemento normativo ldquosauacutederdquo que se encontra no caput do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro mesmo depois de a Lei 113402006 ter traccedilado uma seacuterie de possibilidades de compro-metimento agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima aviltada por toda sorte de violecircncia domeacutestica sobretudo a psicoloacutegica

Este trabalho visa demonstrar que o paradigma da des-legitimaccedilatildeo da violecircncia domeacutestica que daacute suporte agrave defesa do gecircnero feminino com toda a extensatildeo hermenecircutica que a teoria de gecircnero possa alcanccedilar (direito agrave diversidade de identidade de gecircnero agrave homoafetividade agrave orientaccedilatildeo sexual e a um conceito de famiacutelia baseado na afetividade) exige uma nova abordagem ju-riacutedica do elemento normativo sauacutede que convirja para a agenda internacional que prima por coibir a violecircncia no acircmbito das rela-ccedilotildees familiares

A partir desse pano de fundo far-se-atildeo consideraccedilotildees acer-ca da teoria do tipo penal e das elementares normativas para se admitir a possibilidade de se configurarem os sintomas psiacutequicos resultantes da violecircncia domeacutestica como ofensa agrave sauacutede da viacutetima

Em seguida demonstrar-se-atildeo argumentos para funda-mentar a existecircncia do crime de ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo como consequecircncia da violecircncia de gecircnero para entatildeo se investigar como os profissionais do sistema de justiccedila sobretudo Delegados de Poliacutecia Promotores de Justiccedila e Juiacutezes estatildeo enfrentando essa temaacutetica na praacutetica e como poderiam direcionar suas atividades de forma a assumir uma postura profissional proacutexima de um po-sicionamento mais eficaz e com vista ao compromisso assumido pelo Estado brasileiro perante a comunidade internacional de coi-bir a violecircncia familiar

Por fim o trabalho sugeriraacute uma anamnese a ser aplicada agraves viacutetimas de violecircncia domeacutestica ainda nas delegacias de poliacute-cia de forma a fornecerem indiacutecios para a formulaccedilatildeo de denuacutencia

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pelo Ministeacuterio Puacuteblico por ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo com ofensa agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima sobretudo em razatildeo dos quadros cliacuteni-cos de Transtorno de Estresse Poacutes-traumaacutetico e da Siacutendrome da Mulher Espancada

Um Paradigma para o Conceito de Violecircncia Psicoloacutegica

Eacute no contexto mundial de luta pela deslegitimaccedilatildeo da vio-lecircncia contra a mulher que emergiu esse conceito sustentado pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) que considera como tal ldquoqualquer ato de violecircncia baseado no gecircnero que resulta ou que seja suscetiacutevel de resultar em dano fiacutesico sexual psicoloacutegico ou em sofrimentos agraves mulheres incluindo ameaccedilas de tais atos coaccedilatildeo ou privaccedilatildeo de liberdade ocorrendo tanto na vida puacuteblica quanto na privadardquo (ONU 1993) No Brasil a Lei Maria da Penha (LMP) ain-da especifica a agressatildeo pode resultar de qualquer relaccedilatildeo iacutentima de afeto e as relaccedilotildees pessoais independem de orientaccedilatildeo sexual (BRASIL 2006)

O que se percebe na LMP eacute que o legislador brasileiro na contramatildeo da sua tradiccedilatildeo romano-germacircnica apresentou agrave socie-dade uma lei em que natildeo haacute palavras inuacuteteis ou com efeitos de sen-tido rasos Ao contraacuterio trata-se de um texto que estaacute apto a sofrer conformaccedilotildees jurisprudenciais na medida em que sejam introjeta-das na comunidade percepccedilotildees feministas acerca das vicissitudes e da diversidade do direito deao gecircnero e agrave orientaccedilatildeo sexual

A Lei 113402006 diz bem mais do que o seu proacuteprio tex-to assim como colima por objetivos natildeo explicitamente revelados que reclamam abordagens menos simplistas eou reducionistas agrave luz de casos concretos

A reafirmaccedilatildeo da doutrina feminista o direito agrave diversida-de da identidade de gecircnero e a ressignificaccedilatildeo do conceito de famiacute-lia satildeo premissas sobre as quais estatildeo fundadas as bases da LMP A partir dessa concepccedilatildeo eacute que se sustentam os instrumentos legais de defesa dos direitos daquelas que ostentam o gecircnero feminino E isso remete ao esforccedilo necessaacuterio de se atribuir uma maacutexima efeti-

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vidade agrave extensatildeo desses remeacutedios sob pena de se transformar a lei e sua mudanccedila de paradigma em mera carta de intenccedilotildees

Induvidoso que a garantia dessa maacutexima efetividade pas-sa pela dotaccedilatildeo dos operadores do direito ndash sobretudo dos que es-tejam agrave frente das instituiccedilotildees do sistema de justiccedila ndash de conheci-mentos transdisciplinares que revelem a verdadeira mens legis da LMP como ferramenta insuflada pela rede feminista global acerca da violecircncia domeacutestica

Natildeo excluir os operadores do direito do acesso a esse deba-te em forma de qualificaccedilatildeo formal e continuada significa garantir uma mudanccedila de paradigma para o de deslegitimaccedilatildeo da violecircncia domeacutestica atraveacutes do recrudescimento do discurso socioloacutegico fe-minista no meio juriacutedico para que ele migre do abstrato agrave praacutetica das relaccedilotildees sociais geridas pelo Poder Judiciaacuterio

Daiacute dizer-se que cada signo presente na LMP deve ser sub-metido a um crivo de enfrentamento agrave luz da teoria feminista da proteccedilatildeo agrave vulnerabilidade do gecircnero feminino da reafirmaccedilatildeo da dignidade humana e do desejo de construccedilatildeo de uma sociedade mais justa solidaacuteria e livre de qualquer forma de discriminaccedilatildeo

No que toca agrave violecircncia psicoloacutegica eacute forte o entendimen-to de que a sua configuraccedilatildeo e reconhecimento no caso concreto serve apenas como vetor que projeta o tratamento da persecuccedilatildeo criminal por um injusto-tipo jaacute previsto na legislaccedilatildeo de sorte a submetecirc-lo agraves regras da Lei Maria da Penha Isso implicaria p ex subtrai-lo da competecircncia dos Juizados Especiais Criminais limi-tar a renuacutencia agrave representaccedilatildeo e ateacute mesmo atribuir aos crimes de lesatildeo corporal leve a natureza de accedilatildeo penal puacuteblica incondicio-nada (ADI nordm 44242012-STF) aleacutem de autorizar o deferimento de medidas protetivas especiacuteficas e geneacutericas em favor da viacutetima

Teoria do Tipo O Elemento Normativo ldquoSauacutederdquo

A legislaccedilatildeo brasileira adotou a teoria finalista da accedilatildeo para considerar uma conduta criminalmente tiacutepica Equivale dizer que o resultado produzido por uma conduta pode ser exigido dispen-

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saacutevel indiferente ou ateacute impossiacutevel de ocorrer (crimes materiais formais e de mera conduta) mas o inteacuterprete natildeo pode se furtar agrave anaacutelise do impacto do elemento subjetivo do injusto que permeou a conduta do agente Isso porque haacute crimes que soacute podem se confi-gurar se o agente quis se comportar de forma afrontosa a um sen-timento de justiccedila entronizado pela sociedade (dolo) outros haacute em que sob o influxo de uma indiferenccedila tocada pela assunccedilatildeo de um risco esse comportamento quebrou uma representaccedilatildeo mental de previsatildeo de um mal maior (dolo eventual) assim como haacute os que se revestiram de uma previsibilidade do mal maior mas que natildeo tangenciaram a assunccedilatildeo do risco produzindo-se o resultado por uma quebra de um dever objetivo de cuidado (culpa) Fora dessas hipoacuteteses a teoria finalista considera as condutas criminalmente atiacutepicas

Na composiccedilatildeo do injusto-tipo amalgamam-se ou natildeo trecircs espeacutecies de elementares objetiva subjetiva e normativa A primei-ra delas trata de signos ou expressotildees com significados escorreitos descritivos sobre os quais natildeo paira qualquer duacutevida A segunda corresponde agraves vontades especiacuteficas previstas no tipo geralmente sucedidas da expressatildeo ldquocom o fim derdquo ou algo que a ela equiva-lha Satildeo vontades anunciadas

Jaacute quanto agrave terceira espeacutecie de elementar ndash que interessa ao presente estudo ndash tem-se o elemento normativo do tipo Tratam-se de signos ou expressotildees que para colmatarem a adequaccedilatildeo tiacutepica e a aperfeiccediloarem requerem um esforccedilo de interpretaccedilatildeo valorativa juriacutedica ou teacutecnico-transdisciplinar extrajuriacutedica

A presenccedila dessa espeacutecie de elementar daacute azo aos chama-dos tipos abertos que dependem da interpretaccedilatildeo de quem conhece os seus significados (teacutecnicos) ou de quem os atribui de forma ra-cionalmente fundamentada (advogados membros do Ministeacuterio Puacuteblico e da Magistratura) Falam-se mesmo de tipos anormais que exigem uma aquilataccedilatildeo de significados que natildeo permitem fechar de antematildeo a adequaccedilatildeo tiacutepica e que interessaratildeo de forma crucial agrave conduta ldquoquer por conduzirem a um julgamento de valor quer por levarem agrave interpretaccedilatildeo de termos juriacutedicos ou extrajuriacutedicos

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quer por exigirem afericcedilatildeo do acircnimo ou no intuito do agente quan-do pratica a accedilatildeordquo (MIRABETE 2014 p 100)

A parte final do tipo encontrado no caput do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro eacute emblemaacutetica quanto agrave importacircncia da afericcedilatildeo do elemento normativo para se alcanccedilar uma adequaccedilatildeo tiacutepica coerente e para ateacute mesmo se visibilizar uma acepccedilatildeo de tipi-cidade que possa natildeo se apresentar recorrente na praacutetica

O tipo considera lesatildeo corporal ofender a integridade corpo-ral ou a sauacutede de outrem Agrave guisa de uma decodificaccedilatildeo que natildeo se pretende exaustiva dir-se-ia que se estaacute a tratar de uma accedilatildeo fi-naliacutestica que exige resultado naturaliacutestico e que admite condutas dolosas e culposas Daiacute extrair-se que ofender a integridade corporal corresponderia a causar dano na medida em que frustra a incolu-midade de algum componente fisioloacutegico da viacutetima que se fazia iacutentegro Jaacute na lesatildeo agrave sauacutede a extensatildeo dos efeitos da ofensa ultra-passa o dano fisioloacutegico Aqui o elemento normativo sauacutede reme-te a uma infinidade de interpretaccedilotildees atribuiacuteveis tecnicamente ou pela via da fundamentaccedilatildeo racional Estaacute a reclamar colmataccedilotildees que eclodem a partir de juiacutezos de valor que podem sofrer muta-ccedilotildees Afinal o que pode ser considerado sauacutede

Para Bitencourt (2001 p 176)

Ofensa agrave sauacutede compreende a alteraccedilatildeo de funccedilotildees fisioloacutegicas do organismo ou perturbaccedilatildeo psiacutequi-ca A simples perturbaccedilatildeo de acircnimo ou afliccedilatildeo natildeo eacute suficiente para caracterizar o crime de lesatildeo cor-poral por ofensa agrave sauacutede Mas configuraraacute o crime qualquer alteraccedilatildeo ao normal funcionamento do psiquismo mesmo que seja de duraccedilatildeo passageira Podem caracterizar essa ofensa agrave sauacutede os distuacuterbios de memoacuteria e natildeo apenas os distuacuterbios de ordem intelectiva ou volitiva

Quer-se dizer que o signo sauacutede pode permitir significados e extensotildees muacuteltiplos mas uma vez considerados deve-se obser-var se esta sauacutede restou maculada para que tenha ocorrido o crime de ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo Daiacute a importacircncia de se aferirem as

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perturbaccedilotildees do psiquismo para se considerar a adequaccedilatildeo tiacutepica oriunda de uma lesatildeo levada a efeito pela violecircncia psicoloacutegica Com efeito Aniacutebal Bruno (976 p184-185) considera que

Perturbaccedilotildees moacuterbidas do psiquismo produzidas por obra do agente tambeacutem entram na categoria de lesotildees corporais como dano agrave sauacutede da viacutetima aiacute in-cluindo-se do mesmo modo estados de inconsciecircncia ou insensibilidade determinados pelo uso de anes-teacutesicos ou inebriantes ou ainda casos de depressatildeo fiacutesica ou mental desmaios estados confusionais e outras manifestaccedilotildees de perturbaccedilatildeo nervosa ou psiacute-quica Se ocorre a alteraccedilatildeo da integridade do corpo ou da sauacutede eacute indiferente que haja ou natildeo produccedilatildeo de dor

Desse raciociacutenio extrai-se uma conclusatildeo preliminar eacute preciso introjetar nos profissionais do sistema de justiccedila a atitu-de de modular a elementar normativa sauacutede diante das condutas criminosas sob pena de se gerar um enorme deficit de efetividade na criminalizaccedilatildeo dessas praacuteticas que acabaraacute por invisibilizar o reconhecimento da violecircncia psicoloacutegica e de sua importacircncia

A ldquoLesatildeo agrave Sauacutede Psicoloacutegicardquo na Violecircncia de Gecircnero

Para atingir a justificaccedilatildeo da possibilidade do tipo de lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica tomam-se por referecircncia neste trabalho algumas consideraccedilotildees da pesquisa conduzida pela pesquisadora Isadora Vier Machado acerca de como vem sendo conduzido o manejo da violecircncia psicoloacutegica ndash prevista na Lei nordm 113402006 (Lei Maria da Penha) ndash na persecuccedilatildeo criminal preliminar perante as Dele-gacias de Poliacutecia e o Ministeacuterio Puacuteblico Algumas constataccedilotildees da pesquisa conduziratildeo agrave necessidade de uma mudanccedila teacutecnico-ju-riacutedica e estrutural na atuaccedilatildeo destas Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila no enfrentamento da violecircncia psicoloacutegica Pretende-se de-monstrar que esse novo olhar pode conduzir mesmo a uma maior efetividade do art 7ordm inciso II da LMP

Duas problematizaccedilotildees trabalhadas por MACHADO con-

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duziratildeo agraves impressotildees criacuteticas que se propotildee primeiramente tem-se a suposta barreira do princiacutepio da legalidade do qual a violecircn-cia psicoloacutegica se encontraria esvaziada no direito ordinaacuterio atual o que faria com que essa espeacutecie de violecircncia de gecircnero necessitas-se de outras figuras normativas tipificadas criminalmente para que pudesse aparecer no cenaacuterio juriacutedico ainda que eclipsada depois aponta-se a nota de imprescindibilidade de conhecimentos trans-disciplinares dos operadores do direito para que compreendam a extensatildeo do conceito de violecircncia psicoloacutegica com o objetivo de o acomodar nos injustos-tipos de que se serve no ordenamento juriacutedico

Quanto ao primeiro ponto Machado (2013) se ocupa da anaacutelise do efeito de sentido das elementares integridade corporal e sauacutede encontradas no tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal para sugerir que o bem juriacutedico tutelado nesse dispositivo trans-cenderia a mera integridade fiacutesica para alcanccedilar tambeacutem a integri-dade moral e psicoloacutegica da viacutetima

O efeito de sentido atribuiacutedo ao caput do art 129 que visa acomodar a criminalizaccedilatildeo da violecircncia psicoloacutegica por si mesma exsurgiria a partir da pretensatildeo de dissociaccedilatildeo do corpus delicti em um binocircmio fisioloacutegico-psiacutequico que revelasse um caraacuteter plurio-fensivo do crime de lesatildeo corporal

Embora a construccedilatildeo do argumento seja coerente Macha-do (Idem) natildeo o acolhe como pressuposto para as suas conclusotildees acerca das razotildees para o deficit de efetividade do reconhecimento da violecircncia psicoloacutegica no acircmbito das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila

Admitindo esses argumentos a pesquisadora faz coro agrave visatildeo de esvaziamento da violecircncia psicoloacutegica como tipo penal para alocaacute-la apenas como ldquoparacircmetro interpretativordquo para outros tipos penais existentes na lei tais como ameaccedila caluacutenia denun-ciaccedilatildeo caluniosa constrangimento ilegal e injuacuteria muito embora admita que esses injustos-tipos se afigurem apenas como ldquomeios pelos quais se possa produzir um resultado final de prejuiacutezo agrave in-tegridade psicoloacutegicardquo

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Entretanto natildeo parece coerente tatildeo somente acoplar as formas de violecircncia de gecircnero previstas no art 7ordm da lei a tipos pe-nais preexistentes com singelas cominaccedilotildees legais Fazer isso seria reduzir ou mesmo dissolver os discursos de luta pela dignidade das mulheres em vez de os inserir em um contexto que represente uma regulamentaccedilatildeo eficaz agrave norma programaacutetica do art 226 sect8ordm da Constituiccedilatildeo cuja finalidade eacute criar mecanismos para coibir a violecircncia no acircmbito das relaccedilotildees da famiacutelia

Da mesma forma tambeacutem natildeo eacute aceitaacutevel que o efeito de sentido que a norma constitucional tenha pretendido atribuir ao signo ldquocoibirrdquo implique como resposta em forma de prestaccedilatildeo ju-risdicional apenas tirar da competecircncia dos Juizados Especiais os crimes que envolvam violecircncia domeacutestica e possibilitar que a mu-lher tenha a garantia de medidas de proteccedilatildeo em escala assecura-toacuteria crescente em gravidade agrave medida que se acentue o perigo agrave sua incolumidade fiacutesica

A questatildeo eacute que nem sempre o princiacutepio da reserva legal se serve de tipos com condutas criminosas escorreitas Ao contraacuterio frequentemente os tipos se revelam plurais como resultado mesmo do esforccedilo interpretativo sobre normas de extensatildeo da figura tiacutepica e elementos normativos do tipo que permitem uma elasticidade toleraacutevel para que o texto da lei alcance adequaccedilotildees que natildeo foram sugeridas pela letra estrita da norma penal incriminadora

Quando o texto do caput do art 129 do Coacutedigo Penal criminaliza a ofensa agrave ldquointegridade corporalrdquo ou agrave ldquosauacutede de ou-tremrdquo oferece sucessivamente ao inteacuterprete uma elementar objetiva e outra normativa A primeira diz respeito agrave agressatildeo ao corpo da viacutetima enquanto mateacuteria sob o aspecto exclusivamente fisioloacutegico Trata-se de desfigurar o que se fazia iacutentegro que sugere que qual-quer alteraccedilatildeo fisioloacutegica que o agressor produza na viacutetima por menor que seja e que sequer lhe abale o seu cotidiano deve mere-cer a censura da lei Estaacute-se a tratar de resultados naturaliacutesticos cla-ros derivados de um ato comissivo ou omissivo sem se exigir que sejam aferidas outras repercussotildees que se tenham dado na vida da viacutetima Aqui o foco eacute a alteraccedilatildeo da integridade fiacutesica em si

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Jaacute o signo ldquosauacutederdquo revela-se como uma elementar nor-mativa que desafia um juiacutezo de valor ou teacutecnico que o inteacuterprete lhe deveraacute atribuir para chegar agrave adequaccedilatildeo tiacutepica em cada caso concreto E eacute nesse momento que eclode a indagaccedilatildeo proacutepria das elementares normativas que no caso do crime do art 129 pode remeter a uma possibilidade plural de adequaccedilatildeo tiacutepica o que se entende por sauacutede A partir de seu conceito o que pode ser consi-derado como conduta que a ofenda

A Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) conceitua sauacutede como a ausecircncia de doenccedila aliada a uma situaccedilatildeo de bem-estar fiacutesico mental e social Sem pretender enveredar por uma extensa miriacuteade teacutecnica a que o vocaacutebulo sauacutede possa remeter ou incursio-nar pelas subjetividades que o termo bem-estar possa sugerir (FER-RAZ SEGRE 1997) o homem meacutedio de que se serve o Direito Pe-nal responderia que se entende por sauacutede tatildeo somente um estado de boa disposiccedilatildeo fiacutesica e psiacutequica que proporcione bem-estar ao ser humano Eis o ponto de estrangulamento da discussatildeo que se propotildee

Falar em comprometimento agrave sauacutede de algueacutem natildeo sig-nifica simplesmente comprometer as suas aptidotildees fiacutesicas mas tambeacutem de alguma forma ou em algum grau desestabilizar seu equiliacutebrio psiacutequico entendendo-o aqui tambeacutem como equiliacutebrio psicoloacutegico Pensar o contraacuterio seria como a proacutepria Machado (2013) lembra incursionar equivocadamente pela tendecircncia cultu-ral ocidental de ver o corpo como um ente essencialmente bioloacutegi-co

Com efeito ver a violecircncia domeacutestica sob a perspectiva da mera violecircncia fiacutesica e lhe exigir um resultado naturaliacutestico de mero dano fisioloacutegico apequena a sua importacircncia e desvirtua o propoacutesito institucional de a coibir porque assim de fato a violecircn-cia psicoloacutegica na Lei Maria Penha natildeo passaria de um vieacutes infor-mativo uacutetil apenas e unicamente para atribuir um rito diferente agrave instruccedilatildeo de um processo por um ldquotipo penal guarda-chuvardquo3 que por sua natureza e pela pena que lhe eacute cominada seria de menor

3 Expressatildeo usada por Isadora Vier Machado em sua tese de doutoramento

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potencial ofensivoTalvez esse olhar que definitivamente natildeo converge com

a mens legis da Lei n 113402006 ocorra em razatildeo de um outro equiacutevoco afeito agrave interpretaccedilatildeo acerca da teacutecnica legislativa aplica-da agrave espeacutecie

Eacute que a rigor o legislador natildeo precisaria criar um tipo penal novo para criminalizar a violecircncia psicoloacutegica com todas as vicissitudes que a compotildeem Na verdade o caraacuteter de uma novatio legis in pejus que denota a coerecircncia do ordenamento juriacutedico em coibir eficazmente a violecircncia de gecircnero fez-se sentir apenas ndash e foi suficiente nesse sentido ndash com a inserccedilatildeo do sect9ordm do art 129 do Coacutedigo Penal que criou uma qualificadora do crime de lesatildeo cor-poral para a hipoacutetese de a agressatildeo se dar em um contexto em que o agente ldquose prevaleccedila das relaccedilotildees domeacutesticasrdquo

Mas atente-se o legislador majorou a pena do crime de lesatildeo corporal por razotildees circunstanciais acerca de como ele se puder dar notadamente em contextos que a lei achou por bem considerar mais gravosos O que natildeo quer dizer que se esqueceu de especificar que essa mesma majoraccedilatildeo se daria em caso de vio-lecircncia psicoloacutegica ateacute porque esta eacute uma das formas de ofensa agrave sauacutede cuja caracterizaccedilatildeo se extrairaacute na verdade do exerciacutecio in-terpretativo a ser deflagrado sobre o elemento normativo ldquosauacutederdquo compreendido aqui sob o vieacutes de equiliacutebrio psicoloacutegico emocional alheio a perturbaccedilotildees psicopatoloacutegicas agraves quais a viacutetima natildeo tenha dado causa

O que parece estar havendo eacute que o titular da accedilatildeo penal estaacute interpretando o caput do artigo 129 sob o paradigma da lesatildeo corporal enquanto violecircncia fiacutesica sem atentar que jaacute haacute o reco-nhecimento pelo ordenamento juriacutedico (e natildeo precisaria haver) de uma nova figura que modula o elemento normativo do tipo (sauacute-de) qual seja o conceito de violecircncia psicoloacutegica inserto no art 7ordm inciso II da Lei Maria da Penha A bem do coerente a violecircncia psicoloacutegica eacute que se encaixa no tipo do art 129 quando modula o seu elemento normativo

A outra problematizaccedilatildeo sugerida pela pesquisadora trata

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da deficiecircncia dos operadores do Direito em conhecimentos trans-disciplinares notadamente dos membros do Ministeacuterio Puacuteblico A seu sentir essa capacitaccedilatildeo eacute necessaacuteria para que a violecircncia psi-coloacutegica natildeo seja refeacutem de leituras subjetivas e passe a ser melhor reconhecida nos fatos criminosos a fim de servir de justificativa para que os tipos penais a que se agrega possam merecer uma per-secuccedilatildeo penal segundo o que prega a Lei Maria da Penha

Quanto aos crimes mais graves para a consecuccedilatildeo dos quais a violecircncia domeacutestica ndash natildeo necessariamente psicoloacutegica ndash te-nha sido apenas um meio ou conduta concomitante menos gravo-sa o reconhecimento dessa violecircncia seraacute importante apenas para habilitar o julgador a deferir as medidas de proteccedilatildeo previstas em lei inclusive a prisatildeo cautelar para os casos de crimes que em ra-zatildeo da sua pena natildeo admitam a prisatildeo preventiva Deveratildeo ser demonstrados para isso que haacute uma relaccedilatildeo de poder baseada no gecircnero que ocorreram os resultados previstos na lei em qualquer um dos planos de violecircncia seja fiacutesica psicoloacutegica patrimonial moral ou sexual que o fato se deu na unidade domeacutestica da famiacute-lia ou em razatildeo de qualquer relaccedilatildeo de afeto e que a violecircncia eacute considerada independente da orientaccedilatildeo sexual da viacutetima

Natildeo haacute duacutevidas de que a preocupaccedilatildeo com o conhecimen-to transdisciplinar se justifica com toda forccedila para a caracterizaccedilatildeo do que poderiacuteamos chamar de violecircncia psicoloacutegica pura Eacute que in-dependentemente de haver violecircncia fiacutesica como afirma Machado (2013 p 174) em outro contexto ldquoa identificaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo de violecircncia psicoloacutegica requer que o problema apresentado seja minuciosamente sondadordquo Isso porque os seus danos se apresen-tam como resultado de posturas sutis praticadas pelo agressor no dia a dia A mulher pode perfeitamente natildeo ter sofrido violecircncia fiacutesica mas ainda assim ter sido aviltada na sua integridade psiacute-quica em niacuteveis significativos

Frise-se que o comportamento insidioso do agressor pode desencadear uma seacuterie de asseacutedios psicoloacutegicos importantes que podem significar ofensas agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima Forte em es-tudos de Marie-France Hirigoyen Machado (2013) pontua os com-

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portamentos que mais comumente eclodem na relaccedilatildeo conjugal controle isolamento ciuacuteme patoloacutegico asseacutedio aviltamento (mi-nar a autoestima) humilhaccedilotildees intimidaccedilatildeo indiferenccedila a deman-das afetivas e ameaccedilas Eles podem causar diagnoacutesticos de com-prometimentos psicoloacutegicos importantes inclusive os de ordem psicossomaacutetica que requerem realmente conhecimentos teacutecnicos de cliacutenica meacutedica psicologia e ou psiquiatria para ser apontados em processos judiciais como provaacuteveis conteuacutedos do que a Lei Maria da Penha considera como resultados alcanccedilaacuteveis pela vio-lecircncia psicoloacutegica prejuiacutezo agrave autodeterminaccedilatildeo dano emocional diminuiccedilatildeo da autoestima prejuiacutezo ao pleno desenvolvimento de-gradaccedilatildeo e controle que podem definir prejuiacutezo intenso da sauacutede psicoloacutegica

Contudo eacute importante observar que pelo menos para a propositura da accedilatildeo penal em razatildeo de uma lesatildeo agrave sauacutede com base no art 129 do Coacutedigo Penal natildeo eacute imprescindiacutevel que o promotor de justiccedila labore em cogniccedilatildeo exauriente para demonstrar o juiacutezo de mera probabilidade criminosa exigido para a formulaccedilatildeo da de-nuacutencia que se traduz no texto da lei como ldquoindiacutecios suficientes de materialidade e autoriardquo aleacutem da demonstraccedilatildeo do elemento sub-jetivo da conduta exigido dolo ou culpa Jaacute para a prolataccedilatildeo da sentenccedila eacute de bom alvitre que a viacutetima seja submetida ao atendi-mento interdisciplinar a tiacutetulo de periacutecia para que sejam aferidos tecnicamente os resultados que a violecircncia psicoloacutegica provocou para daiacute restarem comprovados ou natildeo os elementos necessaacuterios agrave adequaccedilatildeo tiacutepica na fase de sentenccedila

A falta de percepccedilatildeo preacutevia da violecircncia psicoloacutegica nas delegacias de poliacutecia aliada agrave postura conservadora dos promoto-res de justiccedila de natildeo a considerar como espeacutecie autocircnoma de lesatildeo corporal que comprometa a sauacutede da viacutetima de fato faz com que essa espeacutecie de violecircncia embora relatada natildeo apareccedila nas esta-tiacutesticas do combate agrave violecircncia domeacutestica Menos aparecem ainda porque os crimes aos quais geralmente se acoplam para conduzir a persecuccedilatildeo criminal agrave luz da Lei Maria da Penha (ameaccedila injuacute-ria caluacutenia denunciaccedilatildeo caluniosa e ou constrangimento ilegal)

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tecircm pena cominada diminuta e na sua maioria tecircm natureza de accedilatildeo penal privada ou puacuteblica condicionada agrave representaccedilatildeo cuja disponibilidade que provoca na persecuccedilatildeo criminal eacute demasia-damente promovida por mulheres viacutetimas tambeacutem do asseacutedio do poder econocircmico dos agressores e de questotildees emocionais afetas aos filhos e ao casal que natildeo permitem o rompimento dos laccedilos conjugais e que geram na ofendida uma toleracircncia ciclicamente aprisionante agraves agressotildees

Assim do enfrentamento criacutetico das problemaacuteticas apon-tadas extraem-se quatro conclusotildees que se consideram importan-tes

1) quanto agrave primeira problemaacutetica sugerida o ordenamen-to juriacutedico admite a formulaccedilatildeo de accedilatildeo penal em razatildeo de vio-lecircncia psicoloacutegica autocircnoma como conteuacutedo da modulaccedilatildeo do ele-mento normativo ldquosauacutederdquo do tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal natildeo se servindo essa espeacutecie de violecircncia de gecircnero apenas para acoplar-se a outros tipos penais como paracircmetro interpreta-tivo para tatildeo somente conduzir a persecuccedilatildeo penal destes ao acircm-bito do rito penal ordinaacuterio e para garantir a aplicaccedilatildeo de medidas protetivas de urgecircncia

2) quanto agrave segunda embora natildeo se ignore que seja ne-cessaacuterio haver um incremento na formaccedilatildeo dos profissionais do Direito notadamente dos Defensores Delegados Promotores de Justiccedila e Magistrados quanto agraves questotildees de gecircnero e conhecimen-tos transdisciplinares correlatos esse diferencial intelectual natildeo indica que serviraacute apenas para identificar a violecircncia psicoloacutegica no suporte faacutetico que subjaz na adequaccedilatildeo a ldquotipos penais guarda-chuvasrdquo para que a partir daiacute as viacutetimas aufiram os benefiacutecios da Lei Maria da Penha Mais do que isso com base na premissa da existecircncia de reserva legal para o crime de lesatildeo agrave sauacutede psicoloacute-gica em razatildeo da modulaccedilatildeo do elemento normativo ldquosauacutederdquo en-contrado do injusto-tipo do caput do art 129 esses conhecimentos transdisciplinares ndash e ateacute mesmo o apoio de equipe interdisciplinar ndash seriam mais importantes para identificar a violecircncia psicoloacutegica nas sutilezas de que se reveste no dia a dia para de logo e antes

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de se associar a outras formas de violecircncia merecer uma postura das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila que convirja realmente com a norma programaacutetica constitucional de ldquocoibir a violecircncia no acircm-bito das relaccedilotildees da famiacuteliardquo

3) Dessas duas primeiras conclusotildees extrai-se mais uma quanto agrave necessidade de duas mudanccedilas de postura institucional no acircmbito do Ministeacuterio Puacuteblico uma teacutecnico-juriacutedica no sentido de repensar a interpretaccedilatildeo do tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal a partir do poder modulador que o conceito de violecircncia psicoloacutegica exerce sobre o elemento normativo ldquosauacutederdquo e outra quanto ao incremento intelectual e na estrutura de pessoal das pro-motorias de justiccedila no sentido de qualificar formalmente os pro-motores em questotildees de gecircnero e dotar as promotorias do serviccedilo interdisciplinar psicossocial para avaliar a incidecircncia de eventos de violecircncia psicoloacutegica nos casos que chegam para deliberaccedilatildeo acerca do que foi produzido nas investigaccedilotildees policiais

4) Por fim a necessidade de se desenvolverem fluxos nas delegacias de poliacutecia atraveacutes dos quais com a utilizaccedilatildeo de anam-neses na forma de entrevistas agraves ofendidas ficariam evidenciados desde o iniacutecio os indiacutecios da presenccedila da violecircncia psicoloacutegica e dos seus efeitos danosos agrave sauacutede das viacutetimas

Da Necessidade de Enfrentamento da Violecircncia Psicoloacutegica a partir do Mapa da Violecircncia

Observa-se que algumas anomalias no funcionamento das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila levam agrave invisibilidade da respos-ta da Justiccedila a violecircncia psicoloacutegica sofrida pelo gecircnero feminino mesmo apoacutes a vigecircncia da Lei Maria da Penha Mais ainda essas anomalias levam mesmo ateacute agrave exclusatildeo da consideraccedilatildeo desse tipo de violecircncia como evento provocador de uma persecuccedilatildeo penal independente

A obviedade da influecircncia dessas anomalias que se ma-terializam nessa invisibilidade aparece nos nuacutemeros do mapa da violecircncia contra a mulher Pesquisa mostra que em 2014 das no-

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tificaccedilotildees de violecircncia contra a mulher lanccediladas no Sistema de In-formaccedilatildeo de Agravos de Notificaccedilatildeo (SINAN) a partir de informaccedilotildees originaacuterias do atendimento do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) depois da violecircncia fiacutesica o tipo de violecircncia sofrida pelas mulheres mais relatado foi a psicoloacutegica Tomando-se como referecircncia o puacuteblico feminino de jovens e adultas em que eacute maior a incidecircncia de vio-lecircncia praticada por cocircnjuges e ex-cocircnjuges (WAISELFISZ 2015 p 49) vecirc-se que 589 das jovens e 571 das adultas atendidas pelo serviccedilo de sauacutede puacuteblica relataram ter sofrido violecircncia fiacute-sica A partir do mesmo nuacutemero absoluto do qual se aferiu essa porcentagem verifica-se que 245 das jovens e 266 das adultas relataram ter sofrido violecircncia psicoloacutegica aleacutem da violecircncia fiacutesica ou independente dela (WAISELFISZ 2015) Esse percentual cai sensivelmente quando se falam de outras formas de violecircncia

Pesquisa acerca do ano de 2014 da Central de Atendimen-to agrave Mulher (Ligue 180) natildeo destoa da verificaccedilatildeo de alta incidecircncia de informaccedilotildees acerca da violecircncia psicoloacutegica sofrida e relatada pelas ofendidas Naquele ano 3181 das mulheres atendidas re-lataram a violecircncia psicoloacutegica como uma das ou a espeacutecie exclusi-va de violecircncia sofrida atraacutes apenas da violecircncia fiacutesica que repre-sentou 5168 dos relatos (BRASIL 2015)

Percebe-se pois que os eventos de violecircncia psicoloacutegica

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existem e satildeo vultosos Aleacutem disso a pesquisa mostra que dos casos em que houve relatos de violecircncia contra a mulher no atendi-mento do SUS 462 dos que foram relatados por mulheres jovens foram encaminhados a instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila assim como 461 dos casos relatados por adultas Somando-se os en-caminhamentos agraves delegacias especializadas em defesa da mulher e agraves delegacias gerais tem-se 372 entre os 462 encaminhados agraves Instituiccedilotildees do sistema de defesa da mulher em se tratando de relatos de violecircncia feitos por mulheres jovens (805 dos casos) e 36 entre os 461 encaminhados agraves mesmas Instituiccedilotildees em se tratando de relatos feitos por mulheres adultas (78 dos casos) (WAISELFISZ 2015)

O que se pode concluir eacute que ou por deficit de remessa dos casos de violecircncia psicoloacutegica agraves delegacias ou por falta de inves-tigaccedilotildees concentradas tambeacutem nessa espeacutecie de violecircncia ou por um deficit de formulaccedilatildeo de denuacutencias que a tenham considerado como circunstacircncia moduladora do elemento normativo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal o que eacute sintomaacutetico eacute que a violecircncia psicoloacutegica natildeo aparece nos nuacutemeros de condenaccedilotildees da Justiccedila como delito autocircnomo Exemplo disso eacute o levantamento estatiacutes-tico da uacutenica Vara Especial de Violecircncia Domeacutestica e Familiar contra a Mulher de Satildeo Luiacutes capital do Estado do Maranhatildeo O lapso temporal da pesquisa refere-se aos meses de junho e de julho dos anos de 2012 e 2013

Os nuacutemeros referidos na pesquisa mostram que dos pro-cessos que tramitaram naquela Vara naquele periacuteodo e que se re-feriram a Medidas Protetivas de Urgecircncia 36 relataram violecircncia psicoloacutegica em 2012 e 35 em 2013 Mais ateacute do que os relatos de violecircncia fiacutesica que ocuparam 26 em 2012 e 29 em 2013 (MA-RANHAtildeO 2014)

Quanto aos nuacutemeros referentes agraves sentenccedilas vecirc-se que 91 delas foram ldquosentenccedilas inibitoacuteriasrdquo em 2012 e 92 em 2013 A pesquisa relata que essas sentenccedilas tecircm o ldquoobjetivo de coibir o ato violento praticado pelo requeridordquo contudo natildeo se tratam neces-sariamente de sentenccedilas de meacuterito em que se vejam condenaccedilotildees

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por violecircncia domeacutestica e muito menos em que se possam aferir nuacutemeros acerca das condenaccedilotildees por lesotildees corporais com ofensa agrave sauacutede psiacutequica das viacutetimas

Com pequena variaccedilatildeo nos nuacutemeros a tendecircncia se repete na pesquisa publicada em 2015 realizada pela mesma Vara espe-cializada e que teve os meses de janeiro a abril de 2014 como obje-to de anaacutelise (MARANHAtildeO 2015)

Esse cenaacuterio emerge em que pese o reconhecimento de que a violecircncia psicoloacutegica pura pode gerar um estado patoloacutegico em diversos niacuteveis tende a ser cronificada e extremamente destrui-dora porque geralmente eacute praticada por um agressor com quem a viacutetima manteve uma relaccedilatildeo de afeto e de quem espera algum niacutevel de respeito A vinculaccedilatildeo afetiva preteacuterita ou presente entre agressor e viacutetima comumente gera um sentimento de culpa da viacuteti-ma em relaccedilatildeo agrave violecircncia sofrida podendo contribuir para que ela questione inclusive sua sanidade mental Fecha-se assim um ciclo torturante e doloroso de comprometimento da sauacutede da viacutetima de violecircncia domeacutestica

Induvidoso que essa premissa conceitual faz emergirem discrepacircncias entre as adequaccedilotildees tiacutepicas dos crimes contra a hon-ra e ateacute dos de ameaccedila ndash que satildeo aferiacuteveis por evento e satildeo pontua-dos no tempo e no espaccedilo ndash e os de lesatildeo agrave sauacutede em razatildeo de violecircn-cia psicoloacutegica Eacute que nestes se tratam de resultados naturaliacutesticos aferiacuteveis no acircmbito do psiquismo mediante juiacutezos de valor ou teacutec-nicos Falam-se como relata a Psicoacuteloga Juriacutedica Sonia Rovinski de sintomas como choque negaccedilatildeo recolhimento confusatildeo entor-pecimento medo depressatildeo desesperanccedila baixa autoestima e ne-gaccedilatildeo sendo o transtorno de estresse poacutes-traumaacutetico um dos quadros cliacutenico-patoloacutegicos mais comuns (MACHADO 2013)

Portanto chega-se agrave conclusatildeo de que a mudanccedila insti-tucional para um enfrentamento mais eficaz desse estado de coi-sas soacute poderaacute ocorrer com o desenvolvimento de fluxos ainda na delegacia de poliacutecia que ofereccedilam elementos indiciaacuterios baacutesicos para que o oacutergatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico dotado de conhecimentos transdisciplinares afetos agrave teoria de gecircnero possa formular accedilotildees

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penais com adequaccedilotildees tiacutepicas que tratem de lesotildees corporais agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima de violecircncia domeacutestica

A Anamnese acerca da Violecircncia Psicoloacutegica na Persecuccedilatildeo Criminal Preliminar

Diante da dificuldade de se inaugurarem persecuccedilotildees pe-nais em razatildeo da violecircncia psicoloacutegica que caracterize a ofensa agrave sauacutede da viacutetima do gecircnero feminino eacute importante que se estabe-leccedilam fluxos baacutesicos para investigar indiacutecios dessas lesotildees ainda nas delegacias de poliacutecia de forma a proporcionar que o oacutergatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico munido de conhecimentos transdisciplinares possa posteriormente identificar a probabilidade de ocorrecircncia de algum transtorno ou sintoma psiacutequico em razatildeo da violecircncia para entatildeo formular accedilatildeo penal adequada e requerer a condenaccedilatildeo es-peciacutefica por lesatildeo agrave sauacutede psiacutequica da ofendida

Para esse fim eacute importante que se construa uma anamnese com alguns questionamentos agrave ofendida e que comporiam o cader-no policial Essa entrevista colimaria por evidenciar as posturas do agressor e consequecircncias delas referentes agraves violecircncias psicoloacutegicas que satildeo previstas na LMP e em seguida visaria perquirir caracte-riacutesticas que levassem aos sintomas das patologias mais comuns em razatildeo de violecircncia psicoloacutegica o Transtorno de Estresse Poacutes-Traumaacute-tico (TEPT) (CID 10 F 431) e Siacutendrome da Mulher Espancada (SME)

Quanto agrave primeira patologia trata-se de um distuacuterbio de ansiedade que faz com que pessoas que tenham presenciado ou sido viacutetimas de atos percebidos como intensamente violentos pas-siacuteveis de comprometerem sua seguranccedila ou de outrem revivam o episoacutedio pela representaccedilatildeo mental mas como se ele estivesse ocorrendo novamente revivendo-se as mesmas sensaccedilotildees dores e sofrimentos experimentados outrora mesmo diante de fatos novos potencialmente menos danosos Jaacute quando agrave segunda a siacutendrome se desenvolve em trecircs fases primeira o agressor assume postu-ras que criam tensotildees no relacionamento depois o estado de ten-satildeo migra para as agressotildees efetivas de qualquer espeacutecie por fim

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ocorre a fase da reconciliaccedilatildeo em que a mulher perdoa o agressor mas o ciclo de violecircncia recomeccedila e a viacutetima passa a atribuir a si a culpa dos atos do seu algoz assumindo a responsabilidade por eles ocorrerem Este estado mental continuado pode desencadear sintomas psicoloacutegicos e psicossomaacuteticos diversos alterando inclu-sive a percepccedilatildeo de realidade da viacutetima

A anamnese poderia ser composta de trecircs blocos de per-guntas semiestruturadas em cujas respostas a ofendida entrevista-da poderia desenvolver os detalhes acerca dos sintomas sem que percebesse que estaria falando deles

1ordf Fase Caracteriacutesticas gerais da violecircncia psicoloacutegica previstas na LMP

1) Vocecirc acha que por algum motivo o comportamento ou a atitude do seu namoradocompanheiromarido (NCM) compro-meteu ou compromete o sentimento de valor e seguranccedila que vocecirc tem de vocecirc mesma Relate os episoacutedios quando eles ocorrem e o que vocecirc sente quando eles acontecem (Esse quesito investiga a diminuiccedilatildeo de autoestima e seguranccedila da viacutetima)

2) Vocecirc acha que em razatildeo de algum comportamento ou atitude do seu NCM vocecirc se sentiu ou se sente controlada ou me-nosprezada com relaccedilatildeo ao que vocecirc acredita e quer para si no que se refere a comportamentos crenccedilas e decisotildees de vida Relate os episoacutedios e se eles ocorrem mediante algum desses elementos ameaccedila constrangimento humilhaccedilatildeo manipulaccedilatildeo isolamento vigilacircncia constante perseguiccedilatildeo frequente insulto chantagem ridicularizaccedilatildeo exploraccedilatildeo limitaccedilatildeo do seu desejo de se deslocar para onde queira ou outro natildeo especificado

2ordf Fase Caracteriacutesticas acerca do Transtorno de Estresse Poacutes-traumaacutetico

3) Relate que tipo de violecircncia vocecirc sofreu do seu NCM quando e com que frequecircncia ela(s) ocorreu(ram) ou ocorre(m)

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fiacutesica (lesatildeo ao corpo) psicoloacutegica (que a deixou desestabilizada emocionalmente por um periacuteodo de meacutedio a longo prazo) sexual (praacutetica de ato sexual natildeo consentido) tortura (sofreu lesotildees me-diante praacuteticas que vocecirc considerou abominaacuteveis ou especialmen-te ultrajantes) patrimonial (teve seus objetos pessoais e bens dani-ficados ou destruiacutedos) moral (sentiu-se atacada na sua honra ou quanto ao conceito que vocecirc tem de vocecirc mesma ou ainda quanto ao conceito que acredita que os outros tecircm de vocecirc)

4) Vocecirc tem lembranccedilas espontacircneas recorrentes (natildeo su-geridas por outrem) desse(s) episoacutedio(s) de violecircncia(s) Tem pe-sadelos com ele(s) Explique em que situaccedilotildees essas lembranccedilas (flashbacks) acontecem

5) Haacute objetos lugares pessoas comportamentos muacutesicas contatos atividades ou qualquer outra coisa que a remeta agrave lem-branccedila da(s) violecircncia(s) Vocecirc costuma usar da estrateacutegia de fuga ou desvio de quaisquer dessas coisaspessoascircunstacircncias que a possam rememorar a lembranccedila da agressatildeo sofrida Explique como vocecirc lida com essas lembranccedilas

6) Como vocecirc avalia o seu grau de interesse afetivo pelas pessoas que fazem parte de seu ciclo de vida (NCM pais filhos irmatildeos amigos colegas de escolafaculdade ou trabalho) Sente que essas relaccedilotildees jaacute foram mais prazerosas que mantecircm uma es-tabilidade quanto agrave sua satisfaccedilatildeo pessoal ou esse grau de satisfa-ccedilatildeo diminuiu Relate situaccedilotildees que possam respaldar os sentimen-tos relatados

7) Quando ocorrem fatos que lhe causam tensatildeo e que vocecirc considera anormais agrave sua rotina (fatos que causam excitaccedilatildeo emo-cional) vocecirc considera que tem um bom grau de autocontrole em relaccedilatildeo a eles ou se acha muito sensiacutevel a essas situaccedilotildees Vocecirc tem reaccedilotildees a esses fatos que considere repentinas eou instantacircneas que causam aceleraccedilatildeo de batimentos cardiacuteacos transpiraccedilatildeo ca-lor ou medo de morrer Apoacutes essas situaccedilotildees eacute comum vocecirc apre-sentar dificuldades para comeccedilar a dormir ou atingir sono profun-do dificuldade de concentraccedilatildeo facilidade de irritaccedilatildeo estado de alerta (hipervigilacircncia) ou alteraccedilatildeo de seu ciclo de fome deixando

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de sentir fome ou comendo demais por ansiedade8) Vocecirc se sente impotente em algum aspecto da sua vida

Acha-se incapaz de se proteger de perigos De alguma forma ou em algum grau natildeo tem esperanccedilas em relaccedilatildeo ao futuro ou tem sensaccedilatildeo de vazio A que vocecirc atribui essas sensaccedilotildees

3ordf Fase Caracteriacutesticas acerca da Siacutendrome da Mulher Espancada

9) Vocecirc considera que tem dependecircncia econocircmica em re-laccedilatildeo ao seu NCM Decirc detalhes da sua vida financeira e se souber do orccedilamento familiar (receitas e despesas)

10) Antes das agressotildees sofridas seu NCM criava situa-ccedilotildees que a deixavam embaraccedilada incomodada e que a faziam pen-sar que talvez ele natildeo fosse a melhor pessoa para vocecirc Relate os episoacutedios que lembre

11) Seu NCM costumava ou costuma pedir perdatildeo eou demonstrar arrependimento profundo apoacutes os episoacutedios de vio-lecircncia cometidos Vocecirc perdoou seu NCM das agressotildees que so-freu dele O que vocecirc levou em consideraccedilatildeo para perdoaacute-lo

12) Depois do perdatildeo agraves agressotildees o relacionamento cos-tuma ficar bem por certo tempo (em clima de lua de mel) Com que frequecircncia estes episoacutedios de arrependimento aconteciam ou acontecem Quanto tempo costuma transcorrer ateacute o proacuteximo epi-soacutedio de agressatildeo

13) Mesmo depois da(s) agressatildeo(otildees) sofrida(s) vocecirc con-sidera que conseguiraacute manter um clima de paz no relacionamento e que convenceraacute o seu NCM a fazer o mesmo Quais as estrateacute-gias que costuma usar Explique o que vocecirc acha que levaraacute a esse estado de paz

14) Por que vocecirc acha que essas agressotildees acontecem (A intenccedilatildeo da pergunta eacute avaliar se a viacutetima se sente culpada pelas agressotildees sofridas indicando seu grau de vulnerabilidade)

15) Vocecirc teme ser agredida de uma forma mais grave pelo seu NCM Houve ameaccedila dele nesse sentido Em caso afirmativo relate o que a leva a ter esse medo

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16) Seu NCM fez ou faz ameaccedilas de agredir a vocecirc ou a algueacutem que vocecirc ame caso de separeseparasse dele Relate epi-soacutedios

17) Vocecirc se sente impotente para tomar alguma atitude contra o seu NCM que possa resultar em puniccedilatildeo dele em razatildeo da(s) agressatildeo(ccedilotildees) sofrida(s) por vocecirc Por quecirc Explique

18) Vocecirc acredita ou acreditava que o contato com auto-ridades para tratar da violecircncia sofrida faraacute(ia) com que vocecirc so-fra(fesse) agressotildees mais graves por seu NCM Em caso positivo explique o que a leva a pensar assim

19) Vocecirc costuma ingerir bebidas alcooacutelicas usar drogas ou fazer uso de algum medicamento Considera que depois das agressotildees sofridas esses haacutebitos ficaram mais recorrentes no seu dia a dia

Importante destacar que essa anamnese tem a finalidade de o Delegado de Poliacutecia poder proceder a um relatoacuterio mais com-pleto em que aflorem caracteriacutesticas da lesatildeo agrave sauacutede da ofendida em razatildeo da violecircncia psicoloacutegica e para que a par dessa consta-taccedilatildeo o Ministeacuterio Puacuteblico possa denunciar o agressor com fulcro no caput do art 129 do Coacutedigo Penal combinado com o seu sect9ordm de sorte a atribuir agrave violecircncia psicoloacutegica uma razatildeo autocircnoma para a condenaccedilatildeo criminal por lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica ou havendo con-comitacircncia com outras formas de violecircncia para que seja conside-rada como motivaccedilatildeo para majoraccedilatildeo da dosimetria da pena em razatildeo do elevado grau de culpabilidade (intensidade de dolo) impu-tado ao agressor

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Diante do que se observou os fins colimados pela Lei Ma-ria da Penha na sua melhor extensatildeo dependem do desapego da praacutetica juriacutedica ndash sobretudo na fase de persecuccedilatildeo criminal preli-minar ndash a uma postura culturalmente positivista e ou reducionista de se esperar que a lei ofereccedila soluccedilotildees ostensivamente previstas para as demandas criminais que envolvam a violecircncia domeacutestica

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No que interessa agrave figura da violecircncia psicoloacutegica urge observar que a sua consideraccedilatildeo nos casos concretos se serve para bem mais do que funcionar como vetor de poliacutetica criminal que permita remeter os processos de violecircncia domeacutestica para a com-petecircncia das(dos) VarasJuizados de Violecircncia Domeacutestica e familiar contra a mulher imprimindo a esses casos a possibilidade de medi-das protetivas de urgecircncia em favor da ofendida e medidas restri-tivas mais duras contra o agressor que convirjam com a poliacutetica de coibiccedilatildeo da violecircncia contra a mulher

Mais do que isso a legislaccedilatildeo oferece alternativas para que os agressores se vejam condenados pela proacutepria violecircncia psico-loacutegica como resultado de uma tipificaccedilatildeo da ofensa agrave sauacutede (caput do art 129 do Coacutedigo Penal) ou como elemento que incremente a dosimetria penal em razatildeo da sua incidecircncia sobre o grau de culpa-bilidade enquanto intensidade do dolo na praacutetica do delito

Eacute preciso entretanto que os operadores do direito do sis-tema de justiccedila se deem agrave atribuiccedilatildeo de juiacutezo de valor ao elemento normativo sauacutede encontrado no tipo do art 129 para que a respos-ta judicial quanto agrave violecircncia psicoloacutegica apareccedila nos nuacutemeros do Judiciaacuterio Para isso fazem-se necessaacuterios incentivar a aquisiccedilatildeo de conhecimentos transdisciplinares pelos profissionais do Siste-ma de Justiccedila e a criaccedilatildeo de fluxos desde as delegacias de poliacutecia com formulaccedilatildeo de questionaacuterios agraves ofendidas agrave guisa de anamne-se para que haja indiacutecios fortes que possam fundar accedilotildees penais puacuteblicas que sejam aptas a provocar condenaccedilotildees por ldquolesatildeo agrave sauacute-de psicoloacutegicardquo

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MIRABETE Julio Fabbrini Manual de direito penal Vol 1 30 ed Satildeo Paulo Atlas 2014

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CIDADE SEM FRONTEIRAS FRONTEIRAS SEM CIDADES

Daniella S Dias1

RESUMO O presente artigo eacute um estudo bibliograacutefico e aponta processo de urbanizaccedilatildeo global a desigualdade planetaacuteria a periferizaccedilatildeo e a favelizaccedilatildeo mundiais como efeitos da globalizaccedilatildeo Apresenta reflexotildees sobre os efeitos da produccedilatildeo capitalista do espaccedilo sobre nossas cidades e sobre nossas vidas e como o atual modelo capitalista tem corroborado para que nossas cidades se tornem espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de atividades capitalistas produtivas Aponta a responsabilidade do Estado para o controle sobre o territoacuterio face agrave transformaccedilatildeo que o modelo capitalista produz nos espaccedilos urbanos e rurais e para a implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais para o enfrentamento da segregaccedilatildeo e da desigualdade social e analisa como as atuais poliacuteticas habitacionais implementadas pelo Estado brasileiro tem propiciado a segregaccedilatildeo socioespacial e a financeirizaccedilatildeo da moradia

PALAVRAS-CHAVE Globalizaccedilatildeo Direito agrave moradia Direito agrave cidade

ABSTRACT The present article is a bibliographic study that addresses the process of global urbanization the planet social inequality the peripheraization and the world phenomenon of shanty towns as effects of globalization It provides reflections on the effects of the capitalist space production in our cities and our lives as well as on how the current capitalist model has supported the fact that our cities have become essential spaces for the development of capitalist production activities It addresses the responsibilities of the State with the control over territorial space vis-a-vis the transformation that the capitalist model has caused in the urban and rural spaces as well as with the implementation of housing development policies for coping with the social segregation

1 Doutora em Direito Puacuteblico ndash UFPE Professora da Graduaccedilatildeo e Poacutes-graduaccedilatildeo UFPAUNIFESSPA e Promotora de Justiccedila

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and inequality Furthermore it analyzes how the current housing devepment policies as implemented by the Brazilian State has led to the socio-spatial segregation and the financialization of housing development

KEYWORDS Globalization Right to the city The right to housing

INTRODUCcedilAtildeO

Neste artigo pretendemos abordar alguns dos temas mais delicados a serem enfrentados pelos paiacuteses desenvolvidos e sub-desenvolvidos como o processo de urbanizaccedilatildeo global de perife-rizaccedilatildeo e de favelizaccedilatildeo mundiais a desigualdade planetaacuteria e o desafio de concretizaccedilatildeo do direito agrave cidade Contudo nenhuma reflexatildeo pode ser realizada de forma descontextualizada pois o processo de urbanizaccedilatildeo global tem intriacutenseca relaccedilatildeo com o de-senvolvimento do modelo capitalista transnacional e seus deleteacute-rios efeitos sobre a qualidade de vida nos espaccedilos urbanos e rurais

Eacute necessaacuterio refletir sobre os processos de diferenciaccedilatildeo espacial que seguem apartando camadas hipossuficientes das possibilidades de desenvolvimento humano e de exerciacutecio da cidadania culminando em segregaccedilatildeo histoacuterica cultural econocirc-mica tecnoloacutegica e digital Nesse sentido a mundializaccedilatildeo do ca-pital tem intriacutenseca relaccedilatildeo com a existecircncia e com a inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas habitacionais o que tem tornado nossas cida-des espaccedilos para a reproduccedilatildeo do capital

Uma das funccedilotildees do Estado para o controle sobre o terri-toacuterio face agrave transformaccedilatildeo que o modelo capitalista produz nos es-paccedilos urbanos e rurais eacute a de implementar poliacuteticas habitacionais como forma de enfrentamento da segregaccedilatildeo e da desigualdade social Refletir sobre o direito agrave moradia como bem social eacute tarefa imprescindiacutevel tarefa que natildeo se realiza sem anaacutelise criacutetica sobre as atuais poliacuteticas habitacionais implementadas pelo Estado brasi-leiro

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A Globalizaccedilatildeo o Processo de Urbanizaccedilatildeo Global e a Desigualdade Planetaacuteria

A globalizaccedilatildeo eacute uma nova ordem paradigmaacutetica (CUNHA 1998) que por meio das revoluccedilotildees teacutecnico-cientiacuteficas e das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas levou agrave compressatildeo das categorias tempo e espaccedilo (BECK 2000) Trata-se de uma nova forma de in-terconexatildeo entre Estado e sociedade interconexatildeo que se estabele-ce por meio de um novo marco econocircmico que gerou e tem pro-vocado profundas modificaccedilotildees nos acircmbitos econocircmico poliacutetico juriacutedico ambiental cultural e sobretudo territorial (DIAS 2010)

Para Julio-Campuzano (2003 p 19-20)

La globalizacioacuten representa como sostiene Octavio Ianni un nuevo ciclo de expansioacuten del capitalismo como modo de produccioacuten y proceso civilizatorio de alcance mundial un ciclo caracterizado por la integracioacuten de los mercados de forma avasalladora y por la intensificacioacuten de la circulacioacuten de bienes servicios tecnologiacuteas capitales e informaciones a niacutevel planetario De este modo la globalizacioacuten apa-rece concebida como la lsquointegracioacuten sisteacutemica de la economiacutea a nivel supranacional deflagrada por la creciente diferenciacioacuten estructural y funcional de los sistemas productivos y por la subsiguiente am-pliacioacuten de las redes empresariales comerciales y fi-nancieras a escala mundial actuando de modo cada vez maacutes independiente de los controles poliacuteticos y juriacutedicos a nivel nacionalrsquo Es lo que Wallerstein ha denominado lsquo economiacutea mundial capitalistarsquo un nuevo marco econocircmico mundial regido por el siste-ma capitalista cuya dinaacutemica expansiva alcanza asiacute su culminacioacuten De un extremo a otro del planeta el capitalismo se extiende y se ramifica en muacuteltiples derivaciones locales un uacutenico sistema cuyos des-doblamientos crean uma imagen de particularidad

O modelo capitalista global ou como apontam alguns au-tores o modelo capitalista transnacional tecnologicamente avan-ccedilado tem como consequecircncias o aumento do trabalho informal

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a precarizaccedilatildeo das relaccedilotildees trabalhistas a crise ecoloacutegica (BECK 2000) o aumento da desigualdade planetaacuteria cabendo destacar o processo de urbanizaccedilatildeo planetaacuteria que ocorre concomitantemen-te ao aumento da pobreza da periferizaccedilatildeo de enormes camadas populacionais e da inexistecircncia de condiccedilotildees de moradia digna (HARVEY 2014)

A desigualdade planetaacuteria se revela no crescimento ex-ponencial das favelas no processo de expansatildeo urbana ldquosem ci-dadesrdquo na falta de planejamento urbano e da prestaccedilatildeo de ser-viccedilos essenciais como saneamento baacutesico iluminaccedilatildeo seguranccedila puacuteblica entre outros serviccedilos Como bem ressalta Davis (2006) a expansatildeo urbana natildeo eacute a expressatildeo do desenvolvimento humano mas sim da reproduccedilatildeo da pobreza

Pobreza e favelizaccedilatildeo satildeo temas intrinsecamente rela-cionados Para Davis (2006) o crescimento populacional urbano no Terceiro Mundo nas proacuteximas deacutecadas dar-se-aacute nos espaccedilos destinados agraves comunidades informais

Os dados sugerem que os assentamentos precaacuterios seratildeo formas dominantes de ocupaccedilatildeo territorial Segundo pesquisa rea-lizada pela ONU 32 da populaccedilatildeo mundial vivem em favelas (COSTA e PORTO-GONCcedilALVES 2006) e os assentamentos precaacute-rios trazem consigo problemas de distintas ordens Contudo vale destacar de acordo com Castel (2008) dentre os efeitos nefastos do processo de periferizaccedilatildeo mundial a segregaccedilatildeo social cultural poliacutetica tecnoloacutegica ambiental e territorial

As periferias natildeo se caracterizam apenas por ser espaccedilos de vida que se produziram de forma espontacircnea por meio da au-toconstruccedilatildeo desprovidos de serviccedilos essenciais do planejamento e da intervenccedilatildeo do estado Os espaccedilos perifeacutericos satildeo para Castel (2008 p 24-25) ldquoespaccedilos de desterrordquo de falta de futuro espaccedilos fraacutegeis que revelam a total ruptura do tecido social

O espaccedilo como bem pontua Santos (2008) eacute relacional O espaccedilo eacute dinacircmico resultado da intriacutenseca relaccedilatildeo entre configura-ccedilatildeo territorial paisagem e sociedade eacute ldquoo resultado da geografi-zaccedilatildeo da sociedade sobre a configuraccedilatildeo territorialrdquo (Idem p 85)

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Para o autor satildeo as relaccedilotildees socioespaciais as estruturas sociais que sofrem profundas modificaccedilotildees com o capital Portanto eacute ne-cessaacuterio refletir sobre os processos de diferenciaccedilatildeo espacial que seguem apartando camadas hipossuficientes das possibilidades de desenvolvimento humano e de exerciacutecio da cidadania

No Brasil natildeo podemos deixar de destacar que o processo de segregaccedilatildeo socioespacial eacute histoacuterico e natildeo se trata tatildeo somente de uma segregaccedilatildeo territorial A segregaccedilatildeo territorial traz a rebo-que uma segregaccedilatildeo histoacuterica cultural e econocircmica tecnoloacutegica e digital (DIAS 2014)

Davis (2006 p 27) ao tratar sobre o crescimento das fave-las no Brasil afirma que

As favelas de Satildeo Paulo ndash meros 12 da populaccedilatildeo em 1973 mais 198 em 1993 ndash cresceram na deacuteca-da de 1990 no ritmo explosivo de 164 ao ano Na Amazocircnia uma das fronteiras urbanas que cres-cem com mais velocidade em todo mundo 80 do crescimento das cidades tecircm-se dado nas favelas privadas em sua maior parte de serviccedilos puacuteblicos e transporte municipal tornando assim sinocircnimos lsquourbanizaccedilatildeorsquo e lsquofavelizaccedilatildeorsquo

Vale salientar como bem sintetiza Herardi (2017) a mun-dializaccedilatildeo do capital trouxe como efeitos o deacuteficit de poliacuteticas puacute-blicas habitacionais deacuteficit que propiciou ldquoa produccedilatildeo ilegal do espaccedilo urbanordquo ( p 6) Para a autora ldquoo quadro atual representa a continuidade do processo histoacuterico iniciado com a industrializaccedilatildeo e desenvolvimento econocircmico do Estado brasileiro sempre marca-do pela exclusatildeo e desigualdade socialrdquo (Idem)

Precisamos portanto refletir sobre os efeitos da produccedilatildeo capitalista do espaccedilo sobre nossas cidades e sobre nossas vidas pois o modelo capitalista por meio de sua ldquodestruiccedilatildeo criativardquo transforma paulatinamente nossas cidades em puro espaccedilo de tro-cas isto eacute espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de ativida-des capitalistas produtivas

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O Mercado Existe para as Cidades Ou as Cidades Existem para o Mercado

Essas perguntas natildeo podem ser respondidas sem que nos debrucemos sobre a anaacutelise teoacuterica realizada por David Harvey

Para Harvey (2014 p 30)

Desde que passaram a existir as cidades surgiram da concentraccedilatildeo geograacutefica e social de um excedente de produccedilatildeo A urbanizaccedilatildeo sempre foi portanto al-gum tipo de fenocircmeno de classe uma vez que os ex-cedentes satildeo extraiacutedos de algum lugar ou de algueacutem enquanto o controle sobre o uso desse lucro acumu-lado costuma permanecer nas matildeos de poucos

Essa situaccedilatildeo geral persiste sob o capitalismo sem duacutevida mas nesse caso haacute uma dinacircmica bem di-ferente em atuaccedilatildeo O capitalismo fundamenta-se como nos diz Marx na eterna busca de mais valia (lucro) Contudo para produzir mais valia os ca-pitalistas tecircm de produzir excedentes de produccedilatildeo Isso significa que o capitalismo estaacute eternamente produzindo os excedentes de produccedilatildeo exigidos pela urbanizaccedilatildeo A relaccedilatildeo inversa tambeacutem se apli-ca O capitalismo precisa da urbanizaccedilatildeo para ab-sorver o excedente de produccedilatildeo que nunca deixa de produzir Dessa maneira surge uma ligaccedilatildeo iacutentima entre o desenvolvimento do capitalismo e a urbani-zaccedilatildeo (HARVEY 2014 p 30 grifo nosso)

[] A urbanizaccedilatildeo desempenha um papel particular-mente ativo (ao lado de outros fenocircmenos como os gastos militares) ao absorver as mercadorias exce-dentes que os capitalistas natildeo param de produzir em sua busca de mais-valia (Idem)

Se como leciona Harvey existe uma intriacutenseca relaccedilatildeo entre produccedilatildeo capitalista e urbanizaccedilatildeo atualmente o processo de urbanizaccedilatildeo se tornou global e a possibilidade de absorccedilatildeo do capital excedente tem provocado profundas modificaccedilotildees nos pro-cessos de expansatildeo urbana

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Eacute importante refletir sobre os efeitos da produccedilatildeo capita-lista sobre o espaccedilo para que possamos perceber que a apropriaccedilatildeo dos espaccedilos urbanos e rurais tem se dado de forma a beneficiar os interesses capitalistas viabilizando acumulaccedilatildeo e expansatildeo do proacuteprio sistema (DIAS 2014) Harvey chama a atenccedilatildeo para o fato de que as transformaccedilotildees espaciais provocadas pelo modelo capi-talista modificam natildeo somente os espaccedilos fiacutesicos mas sobretudo as relaccedilotildees sociais pois ldquoem razatildeo da eterna necessidade de encon-trar esferas rentaacuteveis para produccedilatildeo e absorccedilatildeo do excedente do capitalrdquo (Idem p 31) o capitalismo se apropria de novos recursos naturais produz novas tecnologias cria novos meios de produccedilatildeo utiliza-se da oferta de infraestrutura e da matildeo de obra organizan-do a sua proacutepria expansatildeo geograacutefica (Ibidem p 45) Essa reestru-turaccedilatildeo do capitalismo ocorre concomitantemente a uma transfor-maccedilatildeo do modelo de urbanizaccedilatildeo pois os espaccedilos urbanos passam a ser espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de atividades capitalistas lucrativas Por isso Harvey afirma que

A cidade tradicional foi morta pelo desenvolvi-mento capitalista descontrolado vitimada por sua interminaacutevel necessidade de dispor da acumulaccedilatildeo desenfreada de capital capaz de financiar a expan-satildeo interminaacutevel e desordenada do crescimento ur-bano sejam quais forem suas consequecircncias sociais ambientais ou poliacuteticasrdquo (HARVEY 2014 p 20 gri-fo nosso)

A necessidade interminaacutevel de expansatildeo urbana para ab-sorccedilatildeo dos excedentes do capital tem intriacutenseca relaccedilatildeo com a ex-pansatildeo do mercado imobiliaacuterio tornando quase tudo mercadoria Aliaacutes para Bensaiumld (2013 p 8)

Na realidade do mundo atual o capitalismo se aproxima de seu conceito teoacuterico Faz tudo virar mercadoria as coisas os serviccedilos o saber e a vida Generaliza a privatizaccedilatildeo dos bens comuns da humanidade Desencadeia a concorrecircncia de todos contra todos (Grifo nosso)

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Se o dinheiro eacute ldquoo verdadeiro poder e finalidade uacutenicardquo e como afirma Marx (apud BENSAIumlD 2013 p 33) ldquoeacute a verdadeira capacidaderdquo nossas cidades podem ser ldquopurardquo mercadoria O mercado existe para as cidades Ou as cidades existem para o mer-cado

Sandel (2012) chama a atenccedilatildeo para o fato de que os valo-res de mercado estatildeo dominando quase todos os aspectos da vida por consequecircncia quanto mais o dinheiro pode comprar maior desigualdade teremos na sociedade O dinheiro estaacute controlando nossas cidades e nossas fronteiras Estaacute ldquoimplodindordquo por meio da ldquodestruiccedilatildeo criativardquo (HARVEY 2014 p 49) nossas fronteiras e por consequecircncia nossas cidades

Quando o mercado passa a governar nossas cidades os efeitos da desigualdade social se agudizam e natildeo podemos des-cartar ndash de nossa anaacutelise sobre os desafios para o enfrentamento da exclusatildeo socioespacial do processo de favelizaccedilatildeo global e da periferizaccedilatildeo de nossas cidades ndash o fato de que a expansatildeo econocirc-mica capitalista estaacute transformando nossas cidades em mercado-rias subjacente a esses problemas estaacute a grande polarizaccedilatildeo social fruto da desigual distribuiccedilatildeo da riqueza (MENDES 2013)

O efeito nefasto da ldquomercantilizaccedilatildeordquo de nossos espaccedilos territoriais eacute a desumanizaccedilatildeo das nossas cidades registrada nas formas espaciais verdadeiro mosaico de desigualdades e de pri-vaccedilotildees

Os dados alarmantes revelam que o Estado por meio da inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas e de planejamento assistiu im-passiacutevel ao aumento das habitaccedilotildees informais e ao crescimento das favelas E segundo Davis ldquoas favelas apesar de serem funestas e inseguras tecircm um esplecircndido futurordquo (DAVIS 2006 p 155 grifo nosso)

Para Harvey (2014 p 59)

A urbanizaccedilatildeo desempenhou um papel crucial na absorccedilatildeo de excedentes de capital e o que tem feito em escala geograacutefica cada vez maior mas ao preccedilo de processos florescentes de destruiccedilatildeo criativa que

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implicam a desapropriaccedilatildeo das massas urbanas de todo e qualquer direito agrave cidade (HARVEY 2014 p 59)

Nossas cidades estatildeo cada dia mais desiguais mais vio-lentas mais poluiacutedas e insustentaacuteveis e muito pouco tem sido feito para transformar essa realidade Nossas cidades satildeo caras e insus-tentaacuteveis do ponto de vista social cultural poliacutetico e ambiental

A pobreza urbana as precaacuterias condiccedilotildees de vida nas fa-velas a inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas habitacionais consisten-tes a marginalidade econocircmica territorial poliacutetica e social a que satildeo submetidos milhares de cidadatildeos brasileiros a inexistecircncia de higiene e de condiccedilotildees sanitaacuterias a falta de acesso agrave aacutegua potaacutevel a inseguranccedila juriacutedica da posse tornam esses habitantes e seus ter-ritoacuterios invisiacuteveis

A desigualdade social poliacutetica territorial digital eacute o gran-de desafio para a sociedade e para o Estado De nada adianta teo-rizarmos sobre a necessidade de efetivaccedilatildeo dos Direitos Humanos sem considerarmos o cenaacuterio mundial marcado pela desigualda-de planetaacuteria pelo desemprego estrutural pelas cataacutestrofes am-bientais e pelo crescimento do crime organizado

Seraacute que o direito como instrumento de controle social poderaacute agregar conjunto valorativo transformador agrave implementa-ccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Seraacute que o direito pode ser ferramenta para a transformaccedilatildeo do quadro atual de desigualdade no que diz respeito ao acesso a poliacuteticas puacuteblicas habitacionais Ou a moradia virou ldquopura mercadoriardquo Essas indagaccedilotildees se fazem pertinentes porque o planejamento e ordenamento territorial satildeo ferramentas importantes para definiccedilatildeo de atividades e de funccedilotildees bem como para prover necessidades concretas dos que habitam os espaccedilos territoriais Nesse sentido indaga-se em que medida eacute possiacutevel que o Estado realize o controle sobre o territoacuterio face agrave transforma-ccedilatildeo que o capital propulsiona nos espaccedilos urbanos e rurais

Essas indagaccedilotildees estatildeo relacionadas agrave analise sobre a im-plementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais no Brasil para que possa-mos refletir criticamente sobre o processo de implementaccedilatildeo de

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poliacuteticas habitacionais e sobre a ldquocontinuidade do processo histoacute-ricordquo de produccedilatildeo espaccedilos urbanos marcados pela segregaccedilatildeo e desigualdade social

Moradia Bem Social ou Mercadoria

No Brasil a Emenda Constitucional nordm 26 inseriu o direito agrave moradia como direito social na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 no Capiacutetulo II artigo 6ordm em 14 de abril de 2000

Apesar de o texto constitucional determinar aos entes fe-derativos mesmo antes do reconhecimento do direito agrave moradia como direito social a responsabilidade de ldquopromover programas de construccedilatildeo de moradia e a melhoria das condiccedilotildees habitacionais e de saneamentordquo (Art 23 IX CF) apesar de o Estatuto da Cidade determinar em seu artigo 2deg inciso I que o municiacutepio tem por competecircncia realizar o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade bem como garantir o direito agrave cidade sustentaacutevel sendo esse o direito agrave terra urbana agrave moradia ao saneamento ambien-tal agrave infraestrutura urbana ao transporte e aos serviccedilos puacuteblicos ao trabalho e ao lazer para as presentes e futuras geraccedilotildees (artigo 2deg inciso I Lei nordm 102572001) apesar de referidas determinaccedilotildees serem normas cogentes determinando aos entes federados a reali-zaccedilatildeo de programas de poliacuteticas para que todos possam viver e ter acesso agrave moradia digna as poliacuteticas para garantir o direito agrave cidade e o direito agrave moradia satildeo fraacutegeis incipientes e passiacuteveis de criacuteticas

Saule Jr (1999 p 96) ao tratar do direito agrave moradia como um direito cuja aplicaccedilatildeo eacute imediata dotado de eficaacutecia plena aler-ta

Isto eacute de imediato o Estado Brasileiro tem a obriga-ccedilatildeo de adotar as poliacuteticas accedilotildees e demais medidas compreendidas e extraiacutedas do texto constitucional para assegurar e tornar efetivo esse direito em es-pecial aos que se encontram em estado de pobreza e miseacuteria

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Apesar de ser prioridade e obrigatoacuterio para o Estado criar poliacuteticas de desenvolvimento urbano que propiciem o direito agrave ci-dade sustentaacutevel e viabilizem o acesso agrave moradia digna segura adequada em um local livre de desastres e que o meio ambiente esteja protegido (SALDANHA 2016) apesar de diversas normas brasileiras tratarem da necessidade de estabelecimento de poliacuteti-cas puacuteblicas que propiciem o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade para garantir a qualidade de vida das presentes e futuras geraccedilotildees o que se constata eacute que grande parte dessas poliacuteticas natildeo priorizam a concretizaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana

No Brasil a falta de planejamento eacute a tocircnica o que po-tencializa a ocorrecircncia de conflitos relacionados agrave apropriaccedilatildeo dos espaccedilos territoriais

Apesar de ser responsabilidade dos entes da Federaccedilatildeo criar poliacuteticas puacuteblicas para o enfrentamento das desigualdades abissais de acesso agrave cultura agrave sauacutede agrave seguranccedila puacuteblica agrave qua-lidade de vida ao meio ambiente sadio agrave moradia a ocupaccedilatildeo do territoacuterio brasileiro continua a ser feita sem o planejamento democraacutetico e sem enfrentamento da exclusatildeo socioespacial Os efeitos deleteacuterios da falta de planejamento e da falta de intervenccedilatildeo do Estado na organizaccedilatildeo e no controle do processo de expansatildeo urbana estatildeo intrinsecamente relacionados agrave expansatildeo do merca-do agrave manipulaccedilatildeo do espaccedilo urbano caracterizando diferenccedilas sociais econocircmicas e poliacuteticas (SANTOS 2007) assim como o au-mento da violaccedilatildeo dos direitos humanos

O planejamento para o ordenamento territorial eacute a uacutenica possibilidade para o enfrentamento da polarizaccedilatildeo social pois a pobreza a desigualdade a exclusatildeo territorial poliacutetica e econocircmi-ca satildeo decorrentes das distintas formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Contudo os modelos de planejamento e os processos de decidibili-dade devem buscar a reestruturaccedilatildeo do proacuteprio processo decisoacuterio por meio da gestatildeo democraacutetica Eacute preciso que os cidadatildeos sejam ouvidos acerca das suas necessidades especiacuteficas como sauacutede mo-radia saneamento educaccedilatildeo trabalho Eacute preciso que haja um re-

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desenho do modelo de planejamento um redesenho a partir do processo decisoacuterio que deve possibilitar a ampla discussatildeo com a sociedade (SILVEIRA 1999)

Em suma o processo de planejamento urbano deve ter por finalidade o cumprimento das funccedilotildees sociais da cidade Haacute valores intangiacuteveis para garantir o direito agrave cidade e esses valores estatildeo intrinsecamente relacionados agrave possibilidade de que todos possam em igualdade de condiccedilotildees ter uma vida digna e acesso a uma moradia digna

E natildeo se trata de mera liberalidade do gestor puacuteblico O Estatuto da Cidade e o Texto constitucional propotildeem uma nova forma de compreensatildeo do exerciacutecio do direito de propriedade e do cumprimento da funccedilatildeo social da propriedade mudanccedila para-digmaacutetica que vincula a atuaccedilatildeo de legisladores administradores e operadores do direito

No que tange agrave obrigatoriedade de implementaccedilatildeo de po-liacuteticas habitacionais no Brasil constata-se que os assentamentos humanos informais satildeo locais onde eacute impossiacutevel se ter uma vida decente e tambeacutem iremos constatar a partir da leitura de textos de Rolnik (2015) que a atual poliacutetica habitacional para prover o di-reito agrave moradia sequer considera os requisitos para uma habitaccedilatildeo digna E vale aduzir que habitaccedilatildeo digna eacute uma das prioridades que a Uniatildeo definiu para a realizaccedilatildeo de programas e poliacuteticas para o desenvolvimento urbano Vale frisar que o Texto constitucional define como competecircncia de todos os entes da Federaccedilatildeo a promo-ccedilatildeo de programas de construccedilatildeo de moradia e de programas para melhoria das condiccedilotildees habitacionais e de saneamento baacutesico da populaccedilatildeo brasileira (artigo 23 inciso IX CF)

Para Agenda Habitat habitaccedilatildeo digna ou adequada eacute aquela que apresente condiccedilotildees de vida sadia com seguranccedila apresentando infraestrutura baacutesica como suprimento de aacutegua e saneamento baacutesico energia bem como a existecircncia da presta-ccedilatildeo eficiente de serviccedilos puacuteblicos urbanos como sauacutede educaccedilatildeo transporte coletivo coleta de lixo Pressupotildee-se a seguranccedila da ha-bitaccedilatildeo entendida como habitaccedilatildeo em que se faz possiacutevel ir e vir

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em seguranccedila bem como habitar locais que natildeo sejam suscetiacuteveis a desastres naturais Quanto agrave acessibilidade eacute preciso que a in-fraestrutura viaacuteria permita o acesso decente e seguro agrave habitaccedilatildeo2

Infelizmente o processo de financeirizaccedilatildeo da moradia e do solo urbano tem gerado sistemaacuteticas remoccedilotildees violentas de po-pulaccedilotildees hipossuficientes para o estabelecimento de projetos por meio de investimentos puacuteblicos que pouco ou quase nada refletem os interesses da populaccedilatildeo e a necessidade de garantir o direito agrave moradia digna (MENDES 2013)

Rolnik (2015) aponta com riqueza de detalhes os efeitos deleteacuterios dos avanccedilos do complexo imobiliaacuterio-financeiro sobre os territoacuterios populares avanccedilos que satildeo o reflexo da financeiriza-ccedilatildeo da moradia e do solo urbano sob o novo marco do pensamento e praacuteticas neoliberais

Como alerta Rolnik (2016 p01) no Brasil

Tivemos uma mudanccedila de paradigma da habitaccedilatildeo como um bem social para a moradia como uma mer-cadoria a ser produzida pelo setor privado e desem-penhando um papel importante como ativo financei-ro ou seja como uma das esferas onde um capital excedente financeiro global poderia aterrissar para multiplicar renda atraveacutes dos juros

Rolnik (2015) faz profunda anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e imple-mentaccedilatildeo do Programa Minha Casa Minha Vida apontando clara-mente que o programa teve por objetivo principal o salvamento de incorporadoras financeirizadas e tornou-se a poliacutetica habitacional que estabeleceu um uacutenico modelo de acesso agrave casa proacutepria por meio do mercado e do creacutedito hipotecaacuterio Vale ressaltar que essa poliacutetica habitacional manteacutem o padratildeo de segregaccedilatildeo socioespa-cial pois os grandes conjuntos habitacionais satildeo construiacutedos via de regra em aacutereas perifeacutericas onde a terra eacute mais barata Como o Programa daacute o poder de decisatildeo aos agentes privados sobre a loca-

2 In Declaracioacuten de Estambul sobre los Asentamientos Humanos Disponiacutevel em URL=unhabitatagendaespanolist-decshtml Acesso em 11 mai 2000

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lizaccedilatildeo e o desenho do projeto os empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida localizam-se nas franjas urbanas recru-descendo a divisatildeo territorial entre ricos e pobres (Idem 2015)

Segundo Rolnik (2015 p 314)

Apesar dos muitos bilhotildees de reais em subsiacutedios puacute-blicos o programa MCMV natildeo impacta a segregaccedilatildeo urbana existente Pelo contraacuterio apenas a reforccedila produzindo novas manchas urbanas monofuncio-nais ou aumentando a densidade populacional de zonas guetificadas jaacute existentes A intensa produccedilatildeo de moradia sem cidade ao longo das deacutecadas de ur-banizaccedilatildeo intensa acabou por gerar ampla segrega-ccedilatildeo e uma seacuterie de problemas sociais que trouxeram ocircnus significativos para o poder puacuteblico nas deacutecadas seguintes fenocircmeno que estaacute se repetindo nova-mente (ROLNIK 2015 p 314)

No Brasil nos uacuteltimos anos sob o discurso da efetivaccedilatildeo do direito agrave moradia estaacute ocorrendo a gentrificaccedilatildeo de nossas ci-dades e a exclusatildeo socioterritorial dos mais pobres (FERREIRA 2011) Esses processos de destruiccedilatildeo criativa (HARVEY 2014 p 49) ldquoacabam por atingir as camadas mais hipossuficientes da po-pulaccedilatildeo brasileirardquo

Nesse sentido Rolnik (2016 p 02) aborda a falta de efeti-vidade do direito agrave moradia

A ideia de implantar programas habitacionais mas-sivos de construccedilatildeo de moradias em nome da ideia de fazer moradias de interesse social foi implantada mundialmente nas uacuteltimas deacutecadas com resultados muito parecidos Se vocecirc for ao Meacutexico hoje na re-giatildeo metropolitana do Distrito Federal encontraraacute milhotildees de casas vazias Se vocecirc for a China encon-traraacute milhotildees de casas e apartamentos vazios Ao mesmo tempo encontraraacute muita gente sem um lu-gar para morar ou vivendo em assentamentos infor-mais construiacutedos pelas proacuteprias pessoas o que estaacute aumentando cada vez mais Esse eacute um fenocircmeno mundial especialmente nos paiacuteses do Sul global na

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Ameacuterica Latina na Aacutefrica e na Aacutesia Nestas regiotildees encontramos essa contradiccedilatildeo uma espeacutecie de des-colamento entre o processo de produccedilatildeo do espa-ccedilo construiacutedo e as necessidades das pessoas Essas duas dimensotildees tornaram-se coisas completamente independentes como se fazer cidades natildeo tivesse como objetivo principal satisfazer as necessidades das pessoas (Grifo nosso)

()Nosso problema no Brasil natildeo eacute deacuteficit de moradia Isso eacute uma falaacutecia Noacutes temos um problema de deacutefi-cit de cidade Natildeo temos produccedilatildeo de cidade sufi-ciente para acolher a totalidade das pessoas Quando vocecirc faz um programa de produccedilatildeo em massa de ca-sas sem ter a produccedilatildeo de cidade embaixo dela vocecirc acaba gerando os problemas que foram gerados no Chile e no Meacutexico por exemplo e que estatildeo come-ccedilando a ser gerados aqui no Brasil com a produccedilatildeo massiva do Minha Casa Minha Vida faixa um na extrema periferia ()Haacute muitos territoacuterios populares autoconstruiacutedos que tecircm plenas condiccedilotildees de permanecer onde es-tatildeo e melhorar infinitamente a condiccedilatildeo urbaniacutestica das pessoas que vivem ali Precisamos de um pro-grama para urbanizar esses assentamentos Estou falando de uma gama de programas Nenhum mo-delo uacutenico vai atender a quantidade diversificada de demandas que noacutes temos A soluccedilatildeo natildeo eacute uma soluccedilatildeo mas satildeo muitas (Grifo nosso)

A configuraccedilatildeo de nossas cidades reflete um padratildeo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano excludente e o Estado brasileiro tem grande responsabilidade pela forma de regulamentaccedilatildeo do uso e do acesso ao solo urbano Quanto menos democraacutetico o acesso ao solo urbano menor parcela da sociedade tem acesso ao direito agrave cidade

O que constatamos eacute que o Programa Minha Casa Minha Vida eacute um exemplo marcante dos efeitos do modelo de produ-ccedilatildeo capitalista em que a supervalorizaccedilatildeo da terra acaba por res-tringir o acesso agrave moradia digna para todos Com o crescimento

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econocircmico temos a reproduccedilatildeo da desigualdade social em nossas cidades e a manutenccedilatildeo da pobreza tendo o Estado um papel im-prescindiacutevel e condescendente para a manutenccedilatildeo da segregaccedilatildeo socioespacial

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Apesar de o Texto constitucional ter incorporado o princiacute-pio da funccedilatildeo social da propriedade e o princiacutepio da funccedilatildeo social da cidade apesar do reconhecimento do direito agrave moradia como um bem social a crise urbana brasileira revela o modelo predatoacuterio de implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais e por consequecircncia de produccedilatildeo de cidades Trata-se de um modelo excludente um modelo de expansatildeo urbana perverso que potencializa e consolida ainda mais a desigualdade em nosso paiacutes

Apesar de termos um conjunto normativo que viabiliza a implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais e de regularizaccedilatildeo fun-diaacuteria para que sejam asseguradas a posse e o direito agrave moradia infelizmente nem o direito agrave moradia nem o direito agrave cidade satildeo direitos que de fato estatildeo refletidos nas atuais poliacuteticas habitacio-nais

Acreditamos que as anaacutelises de Marx Harvey Bensaiumld Sandel e Rolnik satildeo fundamentais para o debate Decerto o capi-talismo faz tudo virar mercadoria

O dinheiro estaacute controlando nossas cidades e nossas fron-teiras Por meio da destruiccedilatildeo criativa o modelo capitalista eco-nocircmico transnacional estaacute implodindo nossas fronteiras e por consequecircncia nossas cidades Estamos assistindo a remoccedilotildees sis-temaacuteticas de assentamentos informais para dar lugar ao capital para dar lugar a grandes projetos a grandes empreendimentos imobiliaacuterios

Estamos assistindo ao processo global de financeirizaccedilatildeo da moradia por meio de uma poliacutetica puacuteblica estatal A moradia deixa de ser um direito esculpido na Carta constitucional e torna-se ldquomercadoriardquo acessiacutevel apenas agravequeles que possuem renda

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O Estado brasileiro de matildeos dadas com o capital sob o discurso da efetivaccedilatildeo do direito agrave moradia tem impulsionado a gentrificaccedilatildeo de nossas cidades e a exclusatildeo socioterritorial dos mais pobres

Os efeitos nefastos dessa poliacutetica que amputam o senti-do de cidadania e o verdadeiro valor do princiacutepio da igualdade satildeo diversos contudo apontamos a exclusatildeo do debate puacuteblico de questotildees que natildeo tecircm preccedilo vez que estamos assistindo agrave ldquoprecifi-caccedilatildeordquo de valores intangiacuteveis como centralidade habitaccedilotildees segu-ras e dignas mobilidade e acessibilidade em nossas cidades

O planejamento para o ordenamento territorial eacute a uacutenica possibilidade para o enfrentamento da polarizaccedilatildeo social pois a pobreza a desigualdade a exclusatildeo territorial poliacutetica e econocirc-mica satildeo decorrentes das distintas formas de apropriaccedilatildeo do es-paccedilo Precisamos nos apoderar dos instrumentos juriacutedicos e do planejamento urbano como ferramentas para pensar cidades mais sustentaacuteveis e conduzir criacutetica e urgentemente o planejamento ur-bano Precisamos nos apropriar dos instrumentos juriacutedicos para a transformaccedilatildeo qualitativa de nossos espaccedilos de vida

Precisamos urgente e criticamente conduzir o processo so-cial de ocupaccedilatildeo do territoacuterio por meio do planejamento democraacute-tico como forma de enfrentamento da exclusatildeo social E para isso o Estado precisa de transformaccedilatildeo de profunda mudanccedila nas praacute-ticas poliacuteticas que fortaleccedilam o modelo de produccedilatildeo e expansatildeo urbana desigual intolerante e violento de nossas cidades

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IMPACTO AMBIENTAL TRANSFRONTEIRICcedilO NA PERS-PECTIVA DO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL

Dimas Simotildees Franco Neto1

Oseias Amaral da Silva2

RESUMO A poluiccedilatildeo eacute um tema que dadas as suas caracteriacutesticas deve ser tratada pelo direito internacional puacuteblico O fato eacute que a poluiccedilatildeo como evento ambiental natildeo respeita os limites das soberanias nacionais avanccedilando para aleacutem das fronteiras da naccedilatildeo de sua origem Neste sentido uma regulamentaccedilatildeo juriacutedica que trate da poluiccedilatildeo deve necessariamente calcar-se nos instrumentos do direito internacional tornando o tema da poluiccedilatildeo fronteiriccedila uma questatildeo central do direito internacional ambiental Os sistemas juriacutedicos nacionais preveem a obrigaccedilatildeo do Estudo Preacutevio de Impacto Ambiental quando em face do licenciamento ambiental de atividade potencialmente causadora de significativo impacto ambiental Poreacutem essas normas nacionais nem sempre satildeo suficientes para solucionar a questatildeo da poluiccedilatildeo transfronteiriccedila ou do impacto ambiental trasnfronteiriccedilo que se daacute quando os efeitos de um empreendimento estendem-se para outros Estados Uma soluccedilatildeo seria interpretar as normas nacionais agrave luz dos princiacutepios de direito internacional do meio ambiente Dessa forma no presente trabalho vamos analisar os princiacutepios do direito internacional e ao final avaliar se existe uma eventual obrigaccedilatildeo juriacutedica de se efetuar um Estudo Preacutevio de Impacto Ambiental quando em face do potencial impacto ambiental vai aleacutem das fronteiras do paiacutes em que o empreendimento se localiza Para tanto utilizaremos principalmente os precedentes internacionais do Caso Fundiccedilatildeo Trail e o Caso das Papeleiras

PALAVRAS-CHAVE Poluiccedilatildeo transfronteiriccedila Direito internacional do meio ambiente Estudo preacutevio de impacto ambiental1 Professor Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT Campus de Barra do Bugres2 Professor Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT Campus de Barra do Bugres

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ABSTRACT Pollution is a subject which given its characteristics must be dealt with by public international law The fact is that pollution as an environmental event does not respect the limits of national sovereignties advancing beyond the borders of the nation of its origin In this sense legal regulation dealing with pollution must necessarily be based on the instruments of international law making the issue of border pollution a central issue in the international environmental law The national legal systems foresee the obligation of the Prior Environmental Impact Assessment when in face of the environmental licensing of activity potentially causing significant environmental impact However these national rules are not always sufficient to solve the issue of transboundary pollution or the transboundary environmental impact that occurs when the effects of an undertaking extend to other States One solution would be to interpret national rules in the light of the principles of international environmental law Thus in the present work we gol analyze the principles of international law and at the end evaluate if there is a possible legal obligation to carry out a Prior Environmental Impact Assessment when faced of the potential environmental impact goes beyond the borders of the country in which the Locates To do so we will mainly use the international precedents of the Trail Smelter Case and the Pulp Mills on the River Uruguay

KEYWORDS Transboundary pollution International environmental law Prior environmental impact assessment

INTRODUCcedilAtildeO

O tema da poluiccedilatildeo em geral eacute um tema que dadas as suas caracteriacutesticas bastante peculiares deve ser tratado incon-trolavelmente pelo direito internacional puacuteblico O fato eacute que a poluiccedilatildeo como evento ambiental natildeo respeita os limites das soberanias nacionais avanccedilando para aleacutem das fronteiras da naccedilatildeo de sua origem Neste sentido uma regulamentaccedilatildeo juriacutedica que trate da poluiccedilatildeo para que seja efetiva deve necessariamente cal-car-se nos instrumentos do Direito internacional tornando o tema da poluiccedilatildeo fronteiriccedila uma questatildeo central do Direito Internacio-

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nal AmbientalEacute justamente com a poluiccedilatildeo transfronteiriccedila que o direito

internacional do meio ambiente eacute inaugurado com suas linhas es-truturais integralmente presentes Se ateacute o caso da Fundiccedilatildeo Trail (trail smelter) haviam algumas manifestaccedilotildees de proteccedilatildeo interna-cional juriacutedica de questotildees ambientais foi somente apoacutes a arbitra-gem do referido caso que o Direito Internacional Ambiental teve seu ponto de partida

O caso da Fundiccedilatildeo Trail tratou de uma situaccedilatildeo de polui-ccedilatildeo transfronteiriccedila que acabou por gerar um conflito entre dois paiacuteses Basicamente o que se apresentou no caso da Fundiccedilatildeo Trail foi uma situaccedilatildeo de poluiccedilatildeo transfronteiriccedila em que um agente privado canadense causava danos agrave sauacutede e ao patrimocircnio de pes-soas localizadas para aleacutem das fronteiras do Canadaacute pois os efei-tos dessa poluiccedilatildeo chegavam ainda bastante nocivos em territoacuterio norte-americano

O tratado que constituiu a arbitragem estabeleceu algumas questotildees a serem respondidas pela corte arbitral sendo que a prin-cipal delas tratava da existecircncia ou natildeo da obrigaccedilatildeo de a Fundiccedilatildeo Trail alterar a sua atuaccedilatildeo para evitar danos no lado norte-ameri-cano da fronteira e em caso positivo quais seriam as normas que regeriam a conduta canadense bem como a conduta da Fundiccedilatildeo Trail Importante dizer que o tratado determinava a decisatildeo da ar-bitragem tendo como lei aplicaacutevel o Direito internacional puacuteblico e tambeacutem as leis norte-americanas

Esse tratado foi aceito pelo Canadaacute pois as suas leis eram mais prejudiciais aos empreendedores da Fundiccedilatildeo do que agraves leis norte-americanas e agraves do Direito internacional3 Sobre a decisatildeo do Tribunal Arbitral Stephens (2012 p 131) faz uma siacutentese nos se-guintes termos

Como questatildeo preliminar o tribunal decidiu que fosse a questatildeo regida pelo direito domeacutestico ou pelo direito internacional os mesmos princiacutepios de-veriam ser aplicados na medida em que ambos os

3 Ibidem

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sistemas de direito adotavam a mesma forma de abordagem O tribunal reconheceu as frequentes afirmaccedilotildees dos publicistas da existecircncia de um dever geral de respeitar os outros Estados e os seus terri-toacuterios Todavia a dificuldade aqui fora definir lsquoqual pro subject materiae eacute considerada constituinte de um ato nocivorsquo Neste ponto especiacutefico o tribunal notou que apesar de natildeo existir nenhuma decisatildeo preacutevia de um tribunal internacional referente agrave poluiccedilatildeo do ar haviam decisotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos referentes agrave questatildeo da poluiccedilatildeo entre fron-teiras federais

Tendo feito essas consideraccedilotildees sobre os fundamentos ju-riacutedicos da decisatildeo o Tribunal Arbitral resume as obrigaccedilotildees dos Estados para com a integridade de outro Estado limiacutetrofe da se-guinte maneira

[] dentro dos princiacutepios do estado de direito inter-nacional bem como do direito dos estados unidos nenhum [estado] possui o direito de usar ou permitir que se use o seu territoacuterio de tal maneira que cause prejuiacutezo por meio de fumaccedila no territoacuterio de outro Estado ou na propriedade ou pessoas que laacute se en-contrem quando houverem seacuterias consequecircncias e o dano seja estabelecido por uma evidecircncia clara e convincente4

Esse trecho da decisatildeo arbitral se tornou bastante impor-tante tendo sido considerado um marco essencial do Direito Inter-nacional Ambiental (SOARES 2003) criando um dever ao Estado para natildeo causar danos ao meio ambiente de outro Estado e que como veremos tratou de repercutir ateacute mesmo nos tratados inter-nacionais ambientais contemporacircneos

No caso especiacutefico da arbitragem da Fundiccedilatildeo Trail o Tribunal Arbitral julgou o Canadaacute responsaacutevel internacionalmen-te pela conduta da Fundiccedilatildeo Trail e determinou que a Fundiccedilatildeo parasse de causar danos ao Estado de Washington por meio da 4 TRAIL SMELTER ARBITRAL TRIBUNAL Decisioin reported on april 16 Washington 1938 p 1965 Traduccedilatildeo nossa

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fumaccedila exaladaO legado principal deste laudo arbitral eacute que pela primeira

vez ficou expresso em um julgamento internacional a obrigaccedilatildeo de o Estado natildeo atuar em seu territoacuterio de maneira a causar dano a outro Eacute certo que o caso tratou somente de poluiccedilatildeo atmosfeacuterica mas o princiacutepio que se cristalizou ali serviu como guia para futuras normas internacionais

Para o tema do EIA internacional esta decisatildeo possui re-levacircncia na medida em que o EIA internacional busca justamente prevenir a ocorrecircncia de eventual dano ecoloacutegico ao meio ambien-te do Estado limiacutetrofe ou proacuteximo ao Estado de origem do em-preendimento

Assim podemos dizer que uma eventual obrigaccedilatildeo de promover o EIA internacional deriva-se ao menos da parte do dever de os Estados natildeo prejudicarem o meio ambiente dos paiacuteses vizinhos que eacute exatamente o toacutepico sobre o qual inova o caso da Fundiccedilatildeo Trail

A influecircncia desta decisatildeo como dissemos acima pocircde ser sentida deacutecadas depois da Declaraccedilatildeo de Estocolmo de 1972 que faz uma ponderaccedilatildeo entre os limites da soberania em face agrave obriga-ccedilatildeo de natildeo causar danos a outros Estados de maneira claramente inspirada na decisatildeo do Tribunal Arbitral Vejamos o texto da De-claraccedilatildeo em seu princiacutepio 21

Em conformidade com a Carta das Naccedilotildees Unidas e com os princiacutepios de direito internacional os Es-tados tecircm o direito soberano de explorar seus proacute-prios recursos em aplicaccedilatildeo de sua proacutepria poliacutetica ambiental e a obrigaccedilatildeo de assegurar-se de que as atividades que se levem a cabo dentro de sua juris-diccedilatildeo ou sob seu controle natildeo prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda jurisdiccedilatildeo nacional

Aleacutem disso esta mesma influecircncia pocircde ser sentida duas deacutecadas apoacutes Estocolmo conforme o artigo 2deg da Declaraccedilatildeo do Rio em 1992 que tambeacutem vem no sentido de determinar aos Es-

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tados que atuam sobre o meio ambiente de suas jurisdiccedilotildees de maneira tal natildeo prejudiquem o meio ambiente de outros paiacuteses Ainda hoje eacute difiacutecil encontrar uma soluccedilatildeo para o conflito natural que existe entre a soberania nacional para a utilizaccedilatildeo de recursos naturais e o dever de natildeo causar danos ao meio ambiente de outros paiacuteses (SCHRIJVER 2008) problema para o qual o EIA interna-cional se apresenta como uma das formas de soluccedilatildeo possiacuteveis O precedente do caso Fundiccedilatildeo Trail representa uma primeira forma de tratamento e enfrentamento da questatildeo

A decisatildeo e principalmente o seu nuacutecleo transcrito acima se referem especificamente agrave poluiccedilatildeo atmosfeacuterica todavia a for-ma abrangente dos termos adotados pelo tribunal serviu para que o fundamento se prestasse a orientar o entendimento para outras formas de poluiccedilatildeo e impacto transfronteiriccedilo (STEPHENS 2009)

Como uma primeira linha de regulamentaccedilatildeo de impac-tos transfronteiriccedilos podemos perceber que o tribunal natildeo coibiu qualquer forma de impactos externos mas sim os impactos que possuiacutessem ldquoseacuterias consequecircnciasrdquo

Esta determinaccedilatildeo nos importa para a compreensatildeo do EIA internacional pois traz uma questatildeo importante sobre se o Estado estaacute proibido de causar ou permitir que se cause qualquer espeacutecie de dano ambiental internacional ou somente um dano sig-nificativo ou seja de uma magnitude maior ao meio ambiente de outro Estado trataremos disso mais adiante

O recente caso das papeleiras (Case concerning pulp Mills on the river uruguay) trouxe novamente essa discussatildeo A situaccedilatildeo faacutetica que deu iniacutecio ao conflito entre a Argentina e o Uruguai iniciou-se com a construccedilatildeo de uma usina de celulose na margem uruguaia do rio Uruguai Tal construccedilatildeo seria feita pela empresa Botnia SA

Em resumo sustentou a demandante (Argentina) que o Uruguai havia violado os termos do Estatuto do Rio Uruguai tra-tado firmado entre as partes no ano de 1975 A violaccedilatildeo seria pro-cedimental devido agrave falta de notificaccedilatildeo haacutebil nos termos do art 7deg do tratado agrave Comissatildeo Administradora do Rio Uruguai bem como agrave Argentina (paraacutegrafos 71 a 158 da sentenccedila de 20 de abril

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da CIJ) Aleacutem disso haveria ainda uma violaccedilatildeo substancial por

parte do Uruguai concernente agrave efetiva manutenccedilatildeo de um niacutevel adequado da qualidade da aacutegua do Rio Uruguai (paraacutegrafos 159 a 266 da sentenccedila)

Por fim a demandante tambeacutem questionava a eventual agressatildeo do demandado agrave qualidade ambiental do Rio Uruguai (artigo 41 do Tratado do Rio Uruguai de 1975) em face da constru-ccedilatildeo da faacutebrica (paraacutegrafos 190 a 202 da sentenccedila)

A sentenccedila bem como os memoriais e as manifestaccedilotildees das partes no caso podem ser analisados das mais diversas ma-neiras demonstrando as suas implicaccedilotildees nos variados institutos do Direito Internacional do Meio Ambiente (dever de informaccedilatildeo dever de prevenccedilatildeo dever de cooperaccedilatildeo responsabilidade por violaccedilatildeo de obrigaccedilatildeo internacional direito dos tratados dentre outros)

Inicialmente a Argentina requereu uma medida provisio-nal no sentido de suspender a construccedilatildeo da faacutebrica sustentando que

a construccedilatildeo e o funcionamento da usina de papel certamente causariam e seriam suscetiacuteveis de causar danos ao meio ambiente natural de maneira irre-versiacutevel por causa do impacto potencial sobre todo ecossistema do rio Uruguai e a qualidade de suas aacuteguas (CIJ 2006)

Em que pesem as argumentaccedilotildees expendidas a CIJ enten-deu que nada indicava que a construccedilatildeo da faacutebrica implicaria um risco iminente de dano irreparaacutevel (CIJ 2006) Nesta decisatildeo refe-rente agrave medida provisional o Juiz Vinuesa em dissonacircncia com a maioria demonstrou em seu voto-dissidente que agrave medida que a Argentina tivesse provado que a autorizaccedilatildeo de funcionamento da faacutebrica teria gerado um risco razoaacutevel de dano ao meio ambien-te era necessaacuterio a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo o qual na sua opiniatildeo ldquonatildeo se trata de uma abstraccedilatildeo acadecircmica ou um

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desejaacutevel elemento de soft law mas uma regra de direito dentro do direito internacional geral na maneira como ele eacute entendido atualmenterdquo (CIJ 2006)

Em seguida houve a apresentaccedilatildeo dos memoriais opor-tunidade na qual novamente a Argentina evoca o princiacutepio da precauccedilatildeo pelo qual se deve ldquolevar em conta os riscos incertos na concepccedilatildeo elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo de qualquer projeto ou qualquer uso relativo agraves aacuteguas do rio Uruguai e a sua zona de influecircnciardquo (CIJ 2007) Nos contra-memoriais o Uruguai indica que a Argen-tina natildeo teria comprovado a presenccedila de riscos ao meio ambiente a ponto de se aplicar o princiacutepio da precauccedilatildeo (Idem)

O princiacutepio eacute novamente invocado em nova manifestaccedilatildeo da demandante indicando a obrigaccedilatildeo de o Uruguai tecirc-la infor-mado antecipadamente sobre os riscos mesmo que em potencial da construccedilatildeo da usina Ademais sustentou-se ainda que agrave Cor-te caberia a leitura do Tratado do Rio Uruguai de 1975 agrave luz do Ddireito internacional atual ou seja incorporando-se ao princiacutepio da precauccedilatildeo (CIJ 2008) Na sua resposta o Uruguai novamente indica que natildeo se apresentou nenhuma evidecircncia concreta de ris-cos ao meio ambiente que justificasse a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo (CIJ 2008)

Destarte tendo as duas partes apresentados seus argu-mentos a CIJ finalmente proferiu uma sentenccedila em 20 de abril de 2010 Em suma a Corte entendeu que houve sim uma violaccedilatildeo ao Tratado do Rio Uruguai de 1975 mas tatildeo somente no seu aspecto processual ou seja no dever de o Uruguai informar e atuar con-juntamente com a Argentina na liberaccedilatildeo do projeto da usina de papel

A Corte indicou poreacutem que natildeo houve uma violaccedilatildeo substancial do tratado ou seja o Uruguai natildeo teria efetivamente atuado no sentido de prejudicar o uso das aacuteguas do Rio Uruguai isto eacute em nenhum momento teria prejudicado substancialmente as aacuteguas ou a possiacutevel utilizaccedilatildeo do Rio Uruguai para outros fins Finalizando a Corte considerou legiacutetima a atuaccedilatildeo do Uruguai no que tange agrave questatildeo ambiental sustentando natildeo ter havido por

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parte do Uruguai nenhuma agressatildeo efetiva ao ecossistema nem sequer ameaccedila

Cumpre dizer que a CIJ natildeo aplicou ao caso a despeito de ter sido objeto de farta e robusta argumentaccedilatildeo o princiacutepio da precauccedilatildeo A linguagem e os fundamentos utilizados na sentenccedila denotam um total afastamento do princiacutepio da precauccedilatildeo e dos seus efeitos sobre o caso concreto Todavia a CIJ tratou do dever de prevenir danos ambientais para aleacutem das fronteiras bem como tratou do EIA como instrumento para concretizar esse dever

Nota-se que quando a Corte in casu analisou os eventu-ais danos ambientais da construccedilatildeo da faacutebrica analisou questotildees como o impacto da descarga de diversas substacircncias toacutexicas (foacutesfo-ro substancias felocircnicas nonifenols e dioacutexidos) na oxigenaccedilatildeo da aacutegua e sua consequente poluiccedilatildeo bem como todos os efeitos sobre a diversidade bioloacutegica Natildeo obstante a demandante ter argumen-tado no sentido do risco de tais eventos ao meio ambiente do Rio Uruguai a CIJ ( 2010 p91) decidiu que

265 Se apreende do acima exposto que natildeo existe evidecircncias conclusivas nos autos que demonstrem que o Uruguai natildeo tenha agido com o grau de di-ligecircncia adequada ou que as descargas de efluentes da Orion (Botnia) usina possuam efeitos deleteacuterios ou causaram danos aos recursos vivos ou agrave qualida-de da aacutegua ou ao equiliacutebrio ecoloacutegico do rio desde o iniacutecio das operaccedilotildees em novembro de 2007

A Corte entende que a falta de ldquoevidecircncias conclusivasrdquo de um dano ambiental natildeo permite que a mesma determine a pa-ralisaccedilatildeo das atividades da faacutebrica Ocorre que uma interpretaccedilatildeo agrave luz do princiacutepio da precauccedilatildeo natildeo exige a evidecircncia conclusiva mas sim um indiacutecio de risco

Criticando a decisatildeo temos o voto do Juiz Canccedilado Trin-dade (CIJ 2010 p 166) para quem

113 Natildeo apenas a CIJ natildeo tomou conhecimento natildeo afirmou a existecircncia dos dois princiacutepios [prevenccedilatildeo

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e precauccedilatildeo] natildeo os elaborou deixando passar en-tatildeo uma ocasiatildeo uacutenica nesta seara do Direito Inter-nacional contemporacircneo O fato de que a Corte silen-ciou sobre eles natildeo significa que estes princiacutepios da prevenccedilatildeo e da precauccedilatildeo natildeo existam Eles existem sim e se aplicam e satildeo em minha opiniatildeo da maior importacircncia como parte do jus necessarium Dificil-mente nos podemos falar sobre o Direito Interna-cional do Meio Ambiente atualmente sem estes dois princiacutepios A Corte teve uma oportunidade uacutenica nas circunstacircncias do caso da Pulp Mills [papeleiras] para reclamar a aplicaccedilatildeo da prevenccedilatildeo bem como da precauccedilatildeo ela infelizmente preferiu natildeo fazecirc-lo por motivos que vatildeo aleacutem e escapam da minha com-preensatildeo

Em outro ponto da decisatildeo a CIJ resolve a questatildeo refe-rente agrave inversatildeo do ocircnus da prova requerida pela Argentina em funccedilatildeo da aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo (paraacutegrafos 160 agrave 168 da sentenccedila) A Corte novamente afasta a aplicaccedilatildeo do prin-ciacutepio da precauccedilatildeo e natildeo promove a inversatildeo do ocircnus de provar aplicando portanto a consagrada regra processual do onus proban-di incubit actori ou seja de que ao autor cabe a prova do alegado

A CIJ natildeo versando sobre o tema deixou agrave margem a questatildeo de definir se o princiacutepio da precauccedilatildeo possuiria o status de costume internacional ou de princiacutepio geral de direito natildeo pro-movendo avanccedilos nesta discussatildeo (ANTON 2010)

Essa ideia compreendida no seio do julgamento da ques-tatildeo arbitral qual seja a de que um Estado natildeo poderaacute atuar em seu territoacuterio de maneira a causar dano no meio ambiente de outro Estado influenciou decisivamente para o surgimento dos princiacute-pios do Direito Internacional do Meio Ambiente os quais veremos abaixo Poreacutem antes deles veremos um pouco sobre o estudo preacute-vio de impacto ambiental no Direito domeacutestico

O EIA no direito domeacutestico

As legislaccedilotildees dos paiacuteses preveem mecanismos de contro-

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le preacutevio do impacto de atividades potencialmente causadoras de dano ambiental No Brasil por exemplo o EIA eacute conceituado por Taldem Farias (FARIAS 2013 p 68) como

A avaliaccedilatildeo de impacto ambiental eacute um instrumen-to de defesa do meio ambiente constituiacutedo por um conjunto de procedimentos teacutecnicos e administra-tivos que visam agrave realizaccedilatildeo da anaacutelise sistemaacutetica dos impactos ambientais da instalaccedilatildeo ou operaccedilatildeo de uma atividade e suas diversas alternativas com a finalidade de embasar as decisotildees quanto ao seu licenciamento

Nesse sentido a norma que trata do assunto prevecirc que o EIA eacute entatildeo uma espeacutecie de licenciamento ambiental Em outras palavras natildeo eacute todo o licenciamento ambiental que seraacute sujeito agrave obrigatoriedade do EIA Vejamos o texto constitucional sobre o as-sunto

Art 225 Todos tecircm direito ao meio ambiente ecolo-gicamente equilibrado bem de uso comum do povo e essencial agrave sadia qualidade de vida impondo-se ao Poder Puacuteblico e agrave coletividade o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as presentes e futuras geraccedilotildees

IV - exigir na forma da lei para instalaccedilatildeo de obra ou atividade potencialmente causadora de significa-tiva degradaccedilatildeo do meio ambiente estudo preacutevio de impacto ambiental a que se daraacute publicidade

A principal norma infraconstitucional que versa o tema eacute a Resoluccedilatildeo nordm 0186 do Conama que trata da competecircncia para o licenciamento bem como traz alguns requisitos para o mesmo Pela clareza da norma vale a transcriccedilatildeo de alguns dos seus dis-positivos O artigo 6ordm por exemplo trata dos requisitos miacutenimos para o estudo

Artigo 6ordm - O estudo de impacto ambiental desenvol-veraacute no miacutenimo as seguintes atividades teacutecnicas

I - Diagnoacutestico ambiental da aacuterea de influecircncia do

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projeto completa descriccedilatildeo e anaacutelise dos recursos ambientais e suas interaccedilotildees tal como existem de modo a caracterizar a situaccedilatildeo ambiental da aacuterea antes da implantaccedilatildeo do projeto considerando

a) o meio fiacutesico - o subsolo as aacuteguas o ar e o clima destacando os recursos minerais a topografia os ti-pos e aptidotildees do solo os corpos drsquoaacutegua o regime hidroloacutegico as correntes marinhas as correntes at-mosfeacutericas

b) o meio bioloacutegico e os ecossistemas naturais - a fauna e a flora destacando as espeacutecies indicadoras da qualidade ambiental de valor cientiacutefico e econocirc-mico raras e ameaccediladas de extinccedilatildeo e as aacutereas de preservaccedilatildeo permanente

c) o meio soacutecio-econocircmico - o uso e ocupaccedilatildeo do solo os usos da aacutegua e a soacutecio-economia destacan-do os siacutetios e monumentos arqueoloacutegicos histoacutericos e culturais da comunidade as relaccedilotildees de dependecircn-cia entre a sociedade local os recursos ambientais e a potencial utilizaccedilatildeo futura desses recursos

II - Anaacutelise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas atraveacutes de identificaccedilatildeo previsatildeo da magnitude e interpretaccedilatildeo da importacircncia dos provaacuteveis impactos relevantes discriminando os impactos positivos e negativos (beneacuteficos e adver-sos) diretos e indiretos imediatos e a meacutedio e lon-go prazos temporaacuterios e permanentes seu grau de reversibilidade suas propriedades cumulativas e sineacutergicas a distribuiccedilatildeo dos ocircnus e benefiacutecios so-ciais

III - Definiccedilatildeo das medidas mitigadoras dos impac-tos negativos entre elas os equipamentos de contro-le e sistemas de tratamento de despejos avaliando a eficiecircncia de cada uma delas

lV - Elaboraccedilatildeo do programa de acompanhamento e monitoramento (os impactos positivos e negativos indicando os fatores e paracircmetros a serem conside-rados)

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Paraacutegrafo Uacutenico - Ao determinar a execuccedilatildeo do estu-do de impacto ambiental ao oacutergatildeo estadual compe-tente ou o IBAMA ou quando couber o Municiacutepio forneceraacute as instruccedilotildees adicionais que se fizerem ne-cessaacuterias pelas peculiaridades do projeto e caracte-riacutesticas ambientais da aacuterea

Tambeacutem o Direito francecircs exige dos empreendimentos que faccedilam o estudo preacutevio antes da sua operaccedilatildeo Explicando o sistema francecircs Yamaguchi e Souza (2011 p 17 ) pontuam que

Para Bessa (2008) a legislaccedilatildeo francesa adota o prin-ciacutepio de que toda obra deve ser previamente sub-metida a um estudo de impacto A Administraccedilatildeo em respeito ao princiacutepio estabelece uma lista nega-tiva (observe-se que o sistema francecircs de avaliaccedilatildeo de impactos ambientais funciona com uma lista po-sitiva ndash necessidade do EIA ndash e uma lista negativa ndash desnecessidade do EIA) isto eacute classifica algumas obras que natildeo precisaratildeo passar pelo preacutevio estudo de impacto

Tambeacutem o Direito norte-americano possui previsatildeo seme-lhante A norma norte- americana possui semelhanccedila com a nacio-nal em verdade a norma brasileira em certa medida se inspira nas regras do Estados Unidos Tratando do assunto vejamos a li-ccedilatildeo de Amoy (2006 p 607)

O Estudo de Impacto Ambiental ndash EIA ndash teve iniacutecio nos estudos do Prof Lynton Caldwell nos EUA onde foram expressos no National Environmental Police Act (NEPA) de 1969 que estabeleceu os ob-jetivos e princiacutepios da poliacutetica ambiental americana Aquela lei determinou ainda que todas as propostas de legislaccedilatildeo accedilotildees e projetos federais que afetassem significativamente a qualidade do meio ambien-te incluiacutessem uma detalhada avaliaccedilatildeo ambiental 44A NEPA eacute uma lei fundamental para o Direito Ambiental dos diversos Estados norte-americanos

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dos quais 18 jaacute adotam ldquominiNEPAsrdquo e de diversos paiacuteses pois tem servido de inspiraccedilatildeo para muitas legislaccedilotildees nacionais inclusive a brasileira

Vimos por meio dos exemplos acima que os estados na-cionais possuem normas mais ou menos rigorosas quanto agrave ne-cessidade de EIA Ocorre que natildeo tratam da eventualidade de o impacto ambiental avanccedilar para aleacutem das fronteiras nacionais

No proacuteximo toacutepico vamos analisar brevemente algumas interpretaccedilotildees das normas nacionais brasileiras agrave luz dos princiacute-pios do Direito Internacional do Meio Ambiente tendo em conta uma possiacutevel obrigaccedilatildeo de produzir-se EIA quando do impacto transfronteiriccedilo

A poluiccedilatildeo trasnfronteiriccedila e o dever de prevenir os impactos em acircmbito externo agrave luz dos princiacutepios do direito internacional do meio ambiente

A decisatildeo no Caso das Papeleiras tratou de maneira incon-clusiva o dever de efetivar o EIA nos casos de poluiccedilatildeo transfron-teiriccedila Vamos ao trecho da decisatildeo (CIJ 2010 p 83)

Nesse sentido a obrigaccedilatildeo de proteger e preservar nos termos do artigo 41 (a) Do Estatuto deve ser in-terpretado de acordo com uma praacutetica que nos uacutelti-mos anos ganhou tanta aceitaccedilatildeo entre os Estados que pode ser considerado um requisito5 do direito internacional geral de uma avaliaccedilatildeo de impacto am-biental sempre que exista o risco de a atividade in-dustrial proposta ter um impacto adverso significa-tivo em um contexto transfronteiriccedilo em particular sobre um recurso partilhado Aleacutem disso a devida diligecircncia e o dever de vigilacircncia e prevenccedilatildeo que implica natildeo seriam considerados como tendo sido

5 No original a expressatildeo eacute a seguinte ldquohas to be interpreted in accordance with a practice wich in recent years has gained so much acceptance among States tha it may now be consideres a require-ment under gereal international law to undertake an environmental impact assessment where ther is arisk that the proposed industrial activity may have a significant adverse impact in a transboundary context in particular on a shares resourcerdquo O termo ldquorequisiterdquo no original ldquoreuquerimentrdquo pode ser traduzido tambeacutem por ldquoexigecircnciardquo

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exercido se uma parte que as obras susceptiacuteveis de afectar o regime do rio ou a qualidade das suas aacuteguas natildeo procedeu a uma avaliaccedilatildeo do impacto ambiental do potencial efeito de tais obras 205 A Corte observa que nem o Estatuto de 1975 nem o Estatuto Direito internacional especificam o acircmbito e o conteuacutedo de um estudo preacutevio de impac-to ambiental Cumpre salientar aleacutem disso que a Argentina e o Uruguai natildeo satildeo partes na Convenccedilatildeo de Espoo Por uacuteltimo o Tribunal observa que o ou-tro instrumento a que a Argentina se refere em apoio dos seus argumentos nomeadamente os Objetivos e Princiacutepios do PNUA natildeo vinculam as Partes mas como diretrizes emitidas por um oacutergatildeo teacutecnico inter-nacional devem ser tomadas em consideraccedilatildeo pelas partes em conformidade com o artigo 41ordm aliacutenea a) na adopccedilatildeo de medidas no acircmbito do seu quadro re-gulamentar nacional Aleacutem disso este instrumento apenas prevecirc que os ldquoefeitos ambientais em um EIA devem ser avaliados com um grau de detalhe pro-porcional ao seu provaacutevel impacto ambientalrdquo (Prin-ciacutepio 5) sem dar qualquer indicaccedilatildeo dos componen-tes miacutenimos dessa avaliaccedilatildeo Consequentemente eacute a opiniatildeo da Corte de que compete a cada Estado determinar na sua legislaccedilatildeo nacional ou no pro-cesso de autorizaccedilatildeo do projeto o conteuacutedo da ava-liaccedilatildeo de impacto ambiental exigida em cada caso tendo em conta a natureza e a magnitude do projeto proposto bem como o possiacutevel impacto adverso no ambiente bem como a necessidade de efetuar nes-sa avaliaccedilatildeo toda a diligecircncia possiacutevel O tribunal considera tambeacutem que uma avaliaccedilatildeo do impacto ambiental deve ser conduzida antes da implemen-taccedilatildeo de um projeto Aleacutem disso uma vez iniciada e sempre que necessaacuterio durante toda a vida uacutetil do Projeto deve ser empreendido o contiacutenuo monitora-mento dos seus efeitos no ambiente

Sabemos que as fontes do Direito internacional satildeo aque-las discriminadas no artigo 38 do estatuto da CIJ quais sejam sim-plificadamente as convenccedilotildees os princiacutepios gerais de direito e o costume internacional

A decisatildeo da CIJ natildeo deixa claro se essa obrigaccedilatildeo seria

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oriunda de um princiacutepio (talvez princiacutepio da prevenccedilatildeo) ou de um costume Natildeo eacute possiacutevel avaliar pelo texto da decisatildeo o caraacuteter juriacutedico da obrigaccedilatildeo de promover o EIA no direito internacional

No Direito brasileiro tambeacutem natildeo temos nenhuma nor-ma que trate do assunto Poreacutem poderiacuteamos buscar fundamento normativo para essa obrigaccedilatildeo por exemplo no artigo 4 inciso X da Constituiccedilatildeo Fedral de 88 que prevecirc o princiacutepio das relaccedilotildees internacionais a ldquocooperaccedilatildeo entre os povos para o progresso da humanidaderdquo

Poreacutem se por um lado eacute possiacutevel falarmos de uma obri-gaccedilatildeo de evitar danos agrave naccedilatildeo estrangeira por causa ambiental em territoacuterio domeacutestico como sendo um princiacutepio de Direito Inter-nacional do Meio Ambiente qual seja o princiacutepio da prevenccedilatildeo (SANDS 2003) natildeo podemos avanccedilar para concluirmos que de-rivaria desse dever a obrigaccedilatildeo de efetuar o EIA

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

O caso das papeleiras demonstra que a questatildeo da polui-ccedilatildeo transfronteiriccedila e o dever de preveni-la continuam no centro dos conflitos ambientais internacionais Ainda que natildeo seja pos-siacutevel falarmos em uma obrigaccedilatildeo juriacutedica de promover o EIA em face da poluiccedilatildeo transfronteiriccedila tambeacutem jaacute natildeo se pode falar em uma total ausecircncia de responsabilidade do Estado quanto a danos para aleacutem de suas fronteiras

A questatildeo somente ficaraacute mais delineada em seus aspectos juriacutedicos com os avanccedilos dos casos e da doutrina especializada devendo o jurista ficar atento em especial aos desdobramentos relacionados agraves consequecircncias da decisatildeo da CIJ no caso Pulp Mils (papeleiras)

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JULGAMENTO INDIacuteGENA DE CONFLITOS INTERNOS RE-CONHECIDO PELO DIREITO ESTATAL NA PERSPECTIVA DO PLURALISMO JURIacuteDICO

Eliel Alves Camerini Silva1

Luciana Stephani Silva Iocca2

RESUMO O presente artigo explora a garantia legal constitucional do processo juriacutedico criminal indiacutegena concebida pela Constituiccedilatildeo Federal Brasileira e pela Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho e legislaccedilotildees afins e de seu reconhecimento pelo Estado por meio da Sentenccedila proferida pela Comarca de BonfimRO nos autos de nordm 009010000302-0 e mantida pela turma recursal Ao seguir os moldes do neoconstitucionalismo latino-americano aponta o direito indiacutegena como um direito autocircnomo dotado de alteridade e com jus puniendi proacuteprio sem grau de hierarquia com o jus puniendi do Estado-juiz Tal reconhecimento insurge tambeacutem na valorizaccedilatildeo de um Estado multicultural com diferentes sistemas juriacutedicos proacuteprios e vaacutelidos no respectivo acircmbito jurisdicional dentro do territoacuterio brasileiro tido como pluralismo juriacutedico capaz de influenciar o Direito Estatal seja na sua criaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo Compreender a existecircncia de pluralismo eacute conhecer o direito indiacutegena enquanto direito comparado surgindo a possibilidade de aprofundar o conhecimento dos sistemas juriacutedicos aprimorando o direito nacional e aproximando os povos atraveacutes do respeito de suas identidades culturais tema este pouco abordado pela doutrina juriacutedica brasileira e nas academias juriacutedicas

PALAVRAS-CHAVE Direito Indiacutegena Reconhecimento Estatal Multiculturalismo

1 Acadecircmico do Curso de Direito da UNEMAT CaacuteceresMTelielcamerinigmailcom 2 Professora Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT lucianaioc-cagmailcom

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ABSTRACT This article explores a Constitutional legal warranty of the indigenous criminal legal process conceived by the Brazilian Federal Constitution and by the International Labour Organization and related legislation and its recognition by the State by means of the judgment pronounced by the district of Bonfim Rondocircnia Brazil records number 009010000302-0 and maintained by the recursal class By following the molds of Latin American Neoconstitutionalism points to indigenous law as an autonomous right full of alterity and with own jus puniendi without degree of hierarchy with State-judgersquos jus puniendi Such recognition also insists on the appreciation of a multicultural State composed by different legal systems of their own and valid in the judicial sphere within the Brazilian territory understood as legal pluralism able to influencing State Law whether in its creation interpretation and application To understand the existence of pluralism is to know the Indigenous Law as protected right arising the possibility of deepening the knowledge of legal systems improving national law and approaching people through the respect of their cultural identities which is not usually addressed by Brazilian legal doctrine and in legal academies

KEYWORDS IndigenousLaws Staterecognition Multiculturalism

INTRODUCcedilAtildeO

A partir da Convenccedilatildeo 169 da OIT ndash Organizaccedilatildeo Inter-nacional do Trabalho ndash da qual o Brasil eacute signataacuterio e da proacutepria Constituiccedilatildeo Federal de 1988 mudanccedilas poliacuteticas e principalmen-te juriacutedicas surgiram no que diz respeito agraves relaccedilotildees do Estado e da sociedade brasileira com os povos indiacutegenas tendo em vista o reconhecimento aos povos indiacutegenas de sua organizaccedilatildeo social costumes liacutenguas crenccedilas tradiccedilotildees e autodeclaraccedilatildeo

Acerca do assunto o professor Rogeacuterio Geraldo Rocco (2015 online) tece o seguinte comentaacuterio

Sem duacutevida referida Convenccedilatildeo tem sido utilizada para a proteccedilatildeo de culturas tradicionais especial-mente de indiacutegenas e quilombolas na Amazocircnia Mas eacute um instrumento de consulta que se aplica

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quando eventuais projetos ou programas atingirem as suas terras e culturas Quanto a seus sistemas ju-riacutedicos o reconhecimento e respeito por parte da cultura hegemocircnica depende da formalizaccedilatildeo de um pluralismo juriacutedico (Grifo nosso)

Tais mudanccedilas se caracterizam pela positivaccedilatildeo de direitos pluralistas no acircmbito da etnicidade poliacutetica e cultura dos povos pautadas na concepccedilatildeo do neocostitucionalismo latino-americano

Nesse contexto tatildeo certo de que o direito de um paiacutes faz parte do patrimocircnio nacional o Tribunal de Justiccedila de Roraima decidiu em 18 de dezembro de 2015 a Apelaccedilatildeo Criminal nordm 009010000302-0 reconhecendo a jurisdiccedilatildeo indiacutegena criminal e portanto a materializaccedilatildeo do estado plurieacutetnico

Tratou-se do caso do crime de homiciacutedio praticado por Denilson Trindade Douglas que apoacutes ingerir bebida alcooacutelica desferiu facadas na viacutetima Alanderson Trindade Douglas ambos irmatildeos e membros da mesma tribo na comunidade indiacutegena do Manoaacute terra indiacutegena Manoaacute-Pium na Reserva Raposa Serra da Lua municiacutepio de Bonfim Estado de Roraima O Ministeacuterio Puacute-blico de Roraima ofereceu denuacutencia com base no art 121 sect 2ordm II do Coacutedigo Penal Brasileiro Na defesa a Procuradoria Federal responsaacutevel pela Seccedilatildeo de Indiacutegenas alegou a impossibilidade de punir o mesmo fato duas vezes bis in idem conforme o art 57 do Estatuto do Iacutendio haja vista que o crime foi punido conforme os usos e costumes da comunidade indiacutegena atraveacutes de decisatildeo das lideranccedilas das comunidades Anauaacute Manoaacute e WaiWai O Tribunal de Justiccedila de Roraima deixou de apreciar o meacuterito declarando a ausecircncia de in casu do direito de punir estatal

Entendimento do neoconstitucionalismo latino-americano

As profundas transformaccedilotildees ocorridas no cenaacuterio mun-dial na deacutecada de 90 no que diz respeito agraves relaccedilotildees econocircmicas poliacuteticas juriacutedicas e sociais entre os povos influenciaram (e in-fluenciam) na construccedilatildeo do neoconstitucionalismo latino-ameri-

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cano (DALMAU 2009)Tais mudanccedilas juriacutedicas se datildeo na esfera das relaccedilotildees in-

ternacionais concebidas atraveacutes de um sistema juriacutedico em forma de redes devido agraves muacuteltiplas cadeias normativas3 como tambeacutem no acircmbito interno de cada Estado atraveacutes do implemento de meca-nismos que visam efetivar o sistema poliacutetico adotado

O neoconstitucionalismo latino-americano surge como uma nova forma de organizaccedilatildeo juriacutedico-poliacutetica voltada para a construccedilatildeo de um ldquoEstado Democraacutetico de Direito Estado consti-tucional de direito Estado constitucional democraacuteticordquo ao institu-cionalizar no texto constitucional a dignidade da pessoa humana e normas de direitos fundamentais garantias de cunho social sob a proteccedilatildeo juriacutedica (BARROSO 2007)

A autora peruana Raquel Z Yrigoyen Fajardo (2008 p 16) identifica que o neoconstitucionalismo em linha temporal desen-volveu-se em trecircs ciclos

I - constitucionalismo multicultural (1982-1988) com a introduccedilatildeo do conceito de diversidade cultural e o reconhecimento de direitos indiacutegenas especiacuteficos II - constitucionalismo pluricultural (1988-2005) com a adoccedilatildeo do conceito de ldquonaccedilatildeo multieacutetnicardquo e o de-senvolvimento do pluralismo juriacutedico interno sendo incorporados vaacuterios direitos indiacutegenas ao cataacutelogo de direitos fundamentais III - constitucionalismo plurinacional (2006-2009) demanda pela criaccedilatildeo de um Estado plurinacional e de um pluralismo juriacutedi-co igualitaacuterio

Mais recentemente se vecirc a implantaccedilatildeo de um novo mo-delo fruto de reivindicaccedilotildees sociais de parcelas historicamente ex-cluiacutedas do processo decisoacuterio notadamente a populaccedilatildeo indiacutegena ndash como a promulgaccedilatildeo das Constituiccedilotildees do Equador (2008) e da Boliacutevia (2009) com praacuteticas de pluralismo igualitaacuterio jurisdicional em que haacute ldquoconvivecircncia de instacircncias legais diversas em igual hie-rarquia jurisdiccedilatildeo ordinaacuteria estatal e jurisdiccedilatildeo indiacutegenacampo-

3 FARIA Joseacute Eduardo Reforma constitucional em periacuteodo de globalizaccedilatildeo econocircmica 1997 p 5

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nesardquo (WOLKMER 2010 p 11)Em essecircncia um novo processo constitucional voltado

para o reconhecimento de um Estado plural ndash plurinacional ndash que segundo Dantas (2012) eacute ldquobaseado no pluralismo juriacutedico em que segue um novo regime poliacutetico pautado na democracia intercultural participaccedilatildeo popular resguardo a individualidades particulares ou coletivasrdquo

Nesse vieacutes a Constituiccedilatildeo Brasileira de 1988 investida da corrente neoconstitucionalista latino-americana com o caraacuteter de Constituiccedilatildeo Cidadatilde passa a reconhecer a identidade plurieacutetni-ca do Brasil Aos indiacutegenas satildeo reconhecidos direitos especiacuteficos bem como a garantia de direitos fundamentais enquanto cidadatildeos de direito presente no art 5ordm da Carta Magna Como resultado rompe-se a visatildeo integracionista ndash assimilacionista ndash agrave eacutepoca que entendia os indiacutegenas como categoria social transitoacuteria a ser incor-porada agrave comunhatildeo nacional E passa-se agrave perspectiva de sujeitos de direitos comuns e especiacuteficos como institucionaliza o Cap VIII intitulado ldquoDos Iacutendiosrdquo

Art 231 Satildeo reconhecidos aos iacutendios sua organiza-ccedilatildeo social costumes liacutenguas crenccedilas e tradiccedilotildees e os direitos originaacuterios sobre as terras que tradicio-nalmente ocupam competindo agrave Uniatildeo demarcaacute-las proteger e fazer respeitar todos os seus bens

sect 1ordm Satildeo terras tradicionalmente ocupadas pelos iacutendios as por eles habitadas em caraacuteter permanente as utilizadas para suas atividades produtivas as imprescindiacuteveis agrave preservaccedilatildeo dos recursos ambientais necessaacuterios a seu bem-estar e as necessaacuterias a sua reproduccedilatildeo fiacutesica e cultural segundo seus usos costumes e tradiccedilotildees

sect 2ordm As terras tradicionalmente ocupadas pelos iacutendios destinam-se a sua posse permanente cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo dos rios e dos lagos nelas existentes

sect 3ordm O aproveitamento dos recursos hiacutedricos incluiacutedos os potenciais energeacuteticos a pesquisa e a

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lavra das riquezas minerais em terras indiacutegenas soacute podem ser efetivados com autorizaccedilatildeo do Congresso Nacional ouvidas as comunidades afetadas ficando-lhes assegurada participaccedilatildeo nos resultados da lavra na forma da leisect 4ordm As terras de que trata este artigo satildeo inalienaacuteveis e indisponiacuteveis e os direitos sobre elas imprescritiacuteveis

sect 5ordm Eacute vedada a remoccedilatildeo dos grupos indiacutegenas de suas terras salvo laquoad referendumraquo do Congresso Nacional em caso de cataacutestrofe ou epidemia que ponha em risco sua populaccedilatildeo ou no interesse da soberania do Paiacutes apoacutes deliberaccedilatildeo do Congresso Nacional garantido em qualquer hipoacutetese o retorno imediato logo que cesse o risco

sect 6ordm Satildeo nulos e extintos natildeo produzindo efeitos juriacutedicos os atos que tenham por objeto a ocupaccedilatildeo o domiacutenio e a posse das terras a que se refere este artigo ou a exploraccedilatildeo das riquezas naturais do solo dos rios e dos lagos nelas existentes ressalvado relevante interesse puacuteblico da Uniatildeo segundo o que dispuser lei complementar natildeo gerando a nulidade e a extinccedilatildeo direito agrave indenizaccedilatildeo ou a accedilotildees contra a Uniatildeo salvo na forma da lei quanto agraves benfeitorias derivadas da ocupaccedilatildeo de boa feacute

sect 7ordm Natildeo se aplica agraves terras indiacutegenas o disposto no art 174 sect 3ordm e sect 4ordm

Art 232 Os iacutendios suas comunidades e organiza-ccedilotildees satildeo partes legiacutetimas para ingressar em juiacutezo em defesa de seus direitos e interesses intervindo o Mi-nisteacuterio Puacuteblico em todos os atos do processo

Acordantes no Cap III Seccedilatildeo II tiacutetulo ldquoDa Culturardquo os artigos 215 e 216 normatizam o reconhecimento e fortalecimento da identidade dos povos indiacutegenas assegurando o efetivo exerciacutecio dos direitos culturais e liberdade de manifestaccedilotildees culturais bem como a valorizaccedilatildeo das matrizes histoacutericas Tem-se entatildeo o direi-to indigenista um conjunto das normas positivas que tratam das

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questotildees indiacutegenas sejam leis princiacutepios ou demais atos normati-vos que regem as relaccedilotildees entre iacutendios e natildeo iacutendios

Por outro lado o direito indiacutegena ou direito consuetudinaacute-rio indiacutegena embora tenha garantia legal para sua manifestaccedilatildeo eacute tido como ldquoregras postas aos iacutendios nas aldeias vistas a reger as relaccedilotildees entre indiviacuteduos famiacutelias grupos e povosrdquo e integra a forma de organizaccedilatildeo e da cultura da comunidade indiacutegena atra-veacutes das relaccedilotildees ancestrais com carga moral e cultural (SILVA 2005 online)

Como bem explana Francisco das Chagas Lima Filho (2007) ao acrescentar que

[] nas relaccedilotildees de famiacutelia casamento propriedade sucessatildeo e mesmo na questatildeo criminal existe uma plenitude do direito indiacutegena que se revela atraveacutes de um sistema juriacutedico completo com direitos e de-veres normas e sanccedilotildees criadas de modo coletivo por toda a comunidade de acordo com as necessi-dades do grupo

A presenccedila de outras fontes de produccedilatildeo juriacutedica dentro de um Estado muitas vezes intituladas de direito natildeo-oficial direi-to marginal ou alternativo eacute a concepccedilatildeo do pluralismo juriacutedico O direito natildeo-oficial tem suas proacuteprias regras que satildeo seguidas e respeitadas por um nuacutemero consideraacutevel de habitantes que o reco-nhecem como tal aplicando-o na soluccedilatildeo de conflitos E por vezes acarretam modificaccedilotildees no direito oficial por via das decisotildees judi-ciaacuterias (TAVARES 2014)

Direito indiacutegena enquanto direito comparado

A presenccedila de variados sistemas juriacutedicos leva por vezes agrave necessidade de conhececirc-los para eventualmente aperfeiccediloar ou unificar o direito Certo eacute que os modelos juriacutedicos mudam ininterruptamente por lenta evoluccedilatildeo ou por sobreposiccedilatildeo global ocorrendo mutaccedilotildees ndash originais ou imitaccedilotildees (SACCO 2001)

Eis que se faz necessaacuterio o uso do direito comparado qual

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seja a contribuiccedilatildeo que ele oferece ao possibilitar a verificaccedilatildeo das vaacuterias maneiras de se organizar institutos juriacutedicos e de regular re-laccedilotildees juriacutedicas semelhantes instrumentalizando o funcionamento do ordenamento

O direito comparado por vezes eacute apresentado como a constataccedilatildeo dos pontos comuns e das divergecircncias existentes em dois ou vaacuterios direitos Contudo natildeo deve ser visto apenas como o apontamento das diferenccedilas e semelhanccedilas E sim na perspec-tiva de conhecer a natureza e evoluccedilatildeo histoacuterica das instituiccedilotildees do direito relacionando as notiacutecias e tradiccedilotildees do passado com o presente Assim como sua importacircncia na descoberta e formulaccedilatildeo dos princiacutepios comuns que regem as relaccedilotildees sociais bem como a possibilidade de enriquecimento reciacuteproco entre normas juriacutedicas e por fim o fornecimento de bases juriacutedicas e conclusotildees cientiacutefi-cas a partir da experiecircncia com o objetivo de aperfeiccediloar o sistema juriacutedico nacional (JIMENEZ SERRANO 2006)

Para explicar essas ldquomultiplicidadesrdquo no direito compara-do Ana Lucia de Lyra Tavares professora de Direito Constitucio-nal Comparado da PUC-Rio traz as seguintes consideraccedilotildees

Diversamente do que ocorreu por muito tempo em que os campos para a comparaccedilatildeo juriacutedica eram se-lecionados segundo afinidades geopoliacuteticas e ideoloacute-gicas dos Estados envolvidos ou de acordo como a similitude de graus de desenvolvimento econocircmico ou ainda em funccedilatildeo de raiacutezes culturais comuns em suma a comparaccedilatildeo do comparaacutevel em nossos dias a prefixaccedilatildeo desses campos passou a traduzir um in-teresse acadecircmico e teoacuterico Isso porque a realidade da globalizaccedilatildeo impocircs relaccedilotildees entre sistemas juriacute-dicos profundamente heterogecircneos aleacutem de extra-polarem as bases internacionais de relacionamento chegando-se a patamares supranacionais e ateacute mes-mo universais Assim se a urgecircncia da compreensatildeo entre os oriundos desses sistemas eacute ditada a curto prazo por interesses de natureza econocircmica a longo prazo satildeo exigecircncias mais profundas de compreen-satildeo intercultural que devem ser consideradas para que se alcance um entendimento mais vasto (TA-VARES 2014 online)

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Em concordacircncia nota-se que ldquoa ideia de comparaccedilatildeo au-menta a compreensatildeo entre os povos e contribui para a coexistecircn-cia das naccedilotildeesrdquo uma vez que gera aproximaccedilatildeo dos povos pelo respeito de suas identidades culturais (SACCO 2001 p 27)

Na visatildeo do professor Rogeacuterio Geraldo Rocco (2005 onli-ne)

Entretanto essa definiccedilatildeo de grandes sistemas juriacute-dicos caracteriza uma visatildeo hegemocircnica sobre gru-pos sociais que por certo satildeo diversos distintos e plurais num mesmo territoacuterio Eacute algo proacuteximo do monismo juriacutedico referido por Lins Mesquita (2012 p 157) segundo o qual os direitos dos povos tradi-cionais natildeo seriam senatildeo especificaccedilotildees histoacutericas Eacute certo que as comunidades indiacutegenas possuem seus sistemas juriacutedicos e que natildeo guardam muitas seme-lhanccedilas com os sistemas hegemocircnicos na proporccedilatildeo de seu distanciamento da cultura dominante E que o grande dilema contemporacircneo reside no desafio de harmonizar os distintos sistemas juriacutedicos eis que coincide sua incidecircncia no tempo e no espaccedilo

De fato o direito comparado pode gerar efeitos influen-ciar na mudanccedila de institutos como na criaccedilatildeo da norma juriacutedica ou no campo da hermenecircutica atraveacutes da interpretaccedilatildeo das nor-mas juriacutedicas

A conjuntura do direito comparado pode produzir mu-danccedilas no acircmbito juriacutedico no entanto atentam ao direito criado mediante um procedimento artificial o direito estatal Em contra-posto o direito tradicional como o direito indiacutegena por vezes eacute ignorado (SACCO 2001)

Jurisdiccedilatildeo equiparada

Na praacutetica o direito estatal vem imperando sobre o direito indiacutegena ao aplicar o direito positivo aos indiacutegenas negando o di-reito consuetudinaacuterio que adveacutem das praacuteticas sociais e da tradiccedilatildeo dos povos indiacutegenas pondo-o como fonte secundaacuteria do direito

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Exigindo que seja compatiacutevel com o sistema juriacutedico nacionalParalelo agrave concepccedilatildeo dogmaacutetica no sistema juriacutedico esta-

tal o Tribunal de Justiccedila de Roraima em decisatildeo ineacutedita no siste-ma juriacutedico brasileiro determinou que o Estado natildeo pode aplicar pena prevista no Coacutedigo Penal a indiacutegena que jaacute foi punido pela proacutepria comunidade

Ao declarar a ausecircncia de jus puniendi o juiz de primeiro grau suscitou a titularidade dos dois entes ndash Estado e comunidade indiacutegena ndash do direito de punir denominando de duplo jus puniendi garantindo autonomia ao Conselho Indiacutegena agrave luz do art 57 do Estatuto do Iacutendio ldquoSeraacute tolerada a aplicaccedilatildeo pelos grupos tribais de acordo com as instituiccedilotildees proacuteprias de sanccedilotildees penais ou disci-plinares contra os seus membros desde que natildeo revistam caraacuteter cruel ou infamante proibida em qualquer caso a pena de morterdquo (1973 np)

Em entrelinhas atraveacutes dessa interpretaccedilatildeo reconhece que o Estado natildeo eacute uacutenico detentor do poder de julgar e aplicar pu-niccedilatildeo colocando ambas as jurisdiccedilotildees em igual status hieraacuterquico como acontece em outras Repuacuteblicas latinas como Boliacutevia (2009) e Equador (2008)

Conforme documentos acostado agraves f 185-187 dos autos do processo em anaacutelise o Conselho Indiacutegena atraveacutes de seus usos e costumes impocircs ao indiacutegena as seguintes penalidades

ldquo1) O iacutendio Denilson deveraacute sair da Comunidade do Ma-noaacute e cumprir pena na Regiatildeo WaiWai por mais 5 (cinco) anos com possibilidade de reduccedilatildeo conforme seu comportamento

2) Cumprir o Regimento Interno do Povo WaiWai res-peitando a convivecircncia o costume a tradiccedilatildeo e moradia junto ao povo WaiWai

3) Participar de trabalho comunitaacuterio4) Participar de reuniotildees e demais eventos desenvolvido

pela comunidade5) Natildeo comercializar nenhum tipo de produto peixe ou

coisas existentes na comunidade sem permissatildeo da comunidade juntamente com tuxaua

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6) Natildeo desautorizar o tuxaua cometendo coisas agraves escon-didas sem conhecimento do tuxaua

7) Ter terra para trabalhar sempre com conhecimento e na companhia do tuxaua

8) Aprender a cultura e a liacutengua WaiWai9) Se natildeo cumprir o regimento seraacute feita outra reuniatildeo e

tomar outra decisatildeordquo (2013 p 224)Importante destacar alguns trechos da Sentenccedila dos autos

nordm 009010000302-0 TJRR proferida pelo Juiz de Direito Aluiacutezio Ferreira Vieira em 03 de setembro de 2013

[] Cabe acentuar que todo o procedimento su-pramencionado foi realizado sem mencionar em momento algum a legislaccedilatildeo estatal tendo apenas como norte a autoridade que seus usos e costumes lhes confere[] Vecirc-se portanto a potencial condenaccedilatildeo e exe-cuccedilatildeo de pena por mais de 2 (dois) entes em tese titulares do direito de punir o mesmo fato Insta ob-servar que natildeo se trata de bis in idem pois os entes detentores do direito de punir satildeo distintos e natildeo apenas o Estado mas de instituto novo que poderiacute-amos denominar de ldquoDuplo Jus Puniendirdquo Em razatildeo da situaccedilatildeo supramencionada a Defesa alccedilou a existecircncia do no bis in idem ou seja a im-possibilidade do acusado ser sancionado duas vezes pelo mesmo fato logo este Juiacutezo deveria declarar-se incompetente em razatildeo da mateacuteria haja vista o ante-rior julgamento do fato pela comunidade indiacutegena a que pertence o acusadoPois bem rechaccedilo em parte o argumento da ilustre Defesa A uma pois tenho que o imbroacuteglio natildeo se trata de bis in idem mas de ldquoDuplo jus Puniendirdquo em face do que dispotildee o art 57 da Lei 600173 (Es-tatuto do Iacutendio)[] Ora natildeo se estaacute aqui alccedilando qualquer alegaccedilatildeo de incompetecircncia do Tribunal do Juacuteri pois se trata de algo acima disso que a ausecircncia in casu do direito de punir do Estado-Juiz Logo seria uma discussatildeo esteacuteril em face da inaplicabilidade dos institutos do processo estatal Ademais ainda que se considerasse o niacutevel constitucional do prescrito no art 5ordm inciso

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XXXVIII da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica como direito fundamental a ser observado o contraponto estaria no art 231 da mesma Constituiccedilatildeo que tambeacutem eacute direito fundamental logo com a necessaacuteria obser-vacircncia aos costumes e tradiccedilotildees dos povos indiacutege-nasConveacutem advertir que a esmagadora maioria da doutrina entende que a previsatildeo art 57 do Estatuto do Iacutendio seria uma exceccedilatildeo ao direito de punir esta-tal Com base nisso poderia se concluir que o Esta-do natildeo poderia atuar de forma alguma nos casos de crimes ocorridos nas comunidades indiacutegenas o que natildeo traduz a finalidade da legislaccedilatildeo e tatildeo pouco o que acontece na realidadeVejo pois que essa natildeo eacute a melhor conclusatildeo uma vez que o Estado teraacute ampla autonomia para inves-tigar processar e julgar o indiacutegena nos casos em que a comunidade indiacutegena natildeo julgaacute-lo logo o Estado em casos tais atuaraacute de forma subsidiaacuteria[] Em outras palavras o Estado deve apenas pro-nunciar a sua ausecircncia de poder de punir uma vez que o acusado jaacute foi julgado e condenado por quem deteacutem o direito Muito maior que o reconhecimento do direito de pu-nir seus pares as comunidades indiacutegenas sentiratildeo muito mais fortalecidas em seus usos e costumes fa-tor de integraccedilatildeo e preservaccedilatildeo de sua cultura haja vista que o Estado estaraacute sinalizando o respeito ao seu modo de viver e lhe dar com as tensotildees da vida dentro da comunidadeHaacute quem pense e diga que haja o temor da repercus-satildeo social da fragilizaccedilatildeo do Estado ou o potencial recrudescimento da violecircncia dentro das comunida-des indiacutegenasDigo o inverso o Estado natildeo estaraacute fragilizado pois caso as comunidades indiacutegenas natildeo julguem seus pares manteacutem-se o Direito de Punir Estatal de for-ma subsidiaacuteriaEnfim natildeo se enfraquece de forma alguma o Poder Estatal mas ao inverso fortalece-se a atividade juris-dicional ao se reconhecer uma excepcionalidade que deve ser tratada de forma distinta afinal o Estado natildeo eacute absolutista[] Ante ao exposto deixo de apreciar o meacuterito da denuacutencia do Oacutergatildeo Ministerial representante do Es-

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tado para DECLARAR A AUSEcircNCIA IN CASU DO DIREITO DE PUNIR ESTATAL em face do julga-mento do fato por comunidade indiacutegena relativo ao acusado DENILSON TRINDADE DOUGLAS brasi-leiro solteiro agricultor nascido aos 130389 filho de Alan Douglas e Demilza da Silva Trindade com fundamento no art 57 da Lei nordm 600173 e art 231 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica (VIEIRA 2013)

Ainda como fundamentaccedilatildeo o juiacutezo levantou uma deci-satildeo do Conselho de Sentenccedila do Tribunal do Juacuteri Popular da Jus-ticcedila Federal em Roraima presidido pelo juiz federal Helder Giratildeo Barreto que entendeu pela absolviccedilatildeo do indiacutegena Basiacutelio Alves Salomatildeo por falta de culpabilidade tendo em vista que o reacuteu cum-priu sua pena imposta pela comunidade indiacutegena Vejamos o tre-cho proferido pelo titular

Pois bem apoacutes cometer o crime o acusado foi pre-so e julgado pela proacutepria Comunidade Indiacutegena agrave qual pertencia recebendo as seguintes penas cavar a cova e enterrar o corpo da viacutetima e ficar em degre-do de sua comunidade e de sua famiacutelia pelo tempo que a comunidade achasse conveniente No dia do julgamento o acusado estava haacute quase catorze anos sem poder retornar ao conviacutevio da Comunidade Indiacutegena do Maturuca Ao ser interrogado em ple-naacuterio o acusado declarou quando um iacutendio comete um crime eacute costume ele ser julgado pelos proacuteprios companheiros Tuxauas e que isso eacute um costume que vem antes do tempo dos seus avoacutes As testemunhas confirmaram os fatos Em plenaacuterio foi ouvida a an-tropoacuteloga Alesandra Albert que assegurou que na tradiccedilatildeo da etnia Macuxi um iacutendio que mata outro eacute submetido a um Conselho escolhido pela proacutepria comunidade e reconhecido como detentor de auto-ridade que a maior pena aplicada pelo Conselho eacute o banimento que tanto o julgamento quanto a pena satildeo modos como eles encaram a Justiccedila e conclui para a pessoa que sofreu banimento o julgamento e a pena tecircm o sentido da perda da convivecircncia e da di-minuiccedilatildeo do conceito perante a Comunidade coisas que satildeo muito importantes (BARRETO 2000)

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Muito embora o juiz Aluiacutezio Ferreira Vieira tenha discor-dado quanto agrave ldquoabsolviccedilatildeordquo pois absolviccedilatildeo entende-se pelo julga-mento da mateacuteria e para aquele o Estado in casu que natildeo detinha o direito de punir em virtude do que se concluiria pela competecircn-cia do jus puniendi indiacutegena

Dessa maneira entendeu-se pela inaplicabilidade dos ins-titutos do processo estatal uma vez que o Estado seria incompeten-te em razatildeo da mateacuteria diante da pena jaacute aplicada pelo Conselho Indiacutegena dando iniacutecio ao reconhecimento do Estado Plurinacio-nal com visibilidade agraves experiecircncias indiacutegenas com novas e criati-vas possibilidades de se pensar o direito

Em suma na praacutetica seraacute aplicado da seguinte maneira

a) Nos casos em que autor e viacutetima satildeo iacutendios fato ocorre em terra indiacutegena e natildeo haacute julgamen-to do fato pela comunidade indiacutegena o Estado deteraacute o direito de punir e atuaraacute apenas de forma subsidiaacuteria Logo seratildeo aplicaacuteveis todas as regras penais e processuais penais

b) nos casos em que autor e viacutetima satildeo iacutendios o fato ocorre em terra indiacutegena e haacute julgamento do fato pela comunidade indiacutegena o Estado natildeo teraacute o di-reito de punir Assim torna-se evidente a impossibi-lidade de se aplicar regras estatais procedimentais a fatos tais que natildeo podem ser julgados pelo Estado Eacute o que aconteceu neste caso (Grifo nosso)

Em apelaccedilatildeo a turma recursal atraveacutes do Relator Des Mauro Campello em 18 de dezembro de 2015 manteve a senten-ccedila como se nota

[] Firme na Convenccedilatildeo 169 da OIT bem assim no conhecido art 231 da Constituiccedilatildeo Federal e toman-do por base a experiecircncia comparada (conforme o permite o art 4ordm da LINDB) entendo como correta a decisatildeo em 1ordf instacircncia ressalvadas as consideraccedilotildees sobre parte da justificativa nela adotada como ano-tei o que em todo caso nos leva agrave mesma conclusatildeo Ante ao exposto considerando afastada a jurisdiccedilatildeo

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estatal com o julgamento do fato pela comunidade indiacutegena concernida sob pena de se acarretar bis in idem voto pelo desprovimento do recurso de ape-laccedilatildeo ministerial mantendo inalterada a sentenccedila (CAMPELLO 2015)

Por outro lado o Relator fez algumas reflexotildees colocando o caso em questatildeo como violaccedilatildeo ao princiacutepio non bis in idem dis-cordando do termo duplo jus puniendi utilizado pelo juiz senten-ciante

[] Se o que denomina o Juiz sentenciante de ldquoDu-plo Jus Puniendirdquo significa que haacute dois entes juridi-camente legitimados a punir uma infraccedilatildeo penal e julgando um deles um certo crime natildeo poderaacute se imiscuir o outro no mesmo fato arrogando para si o direito de examinar a culpabilidade do agente e eventualmente responsabilizaacute-lo tambeacutem por isto seria se outro modo justamente aquilo que veda o brocardo ldquoNemo debet bis vexari pro uma et eadem causardquo (Ningueacutem deve ser sancionado mais de uma vez por um e mesmo fato) cuja contraccedilatildeo correspon-de ao non bis in idem Este princiacutepio natildeo implica (apenas) que um mesmo ente natildeo pode punir duas vezes o mesmo fato e sim como garantia processual penal ampla do indiviacuteduo que este natildeo pode ser pu-nido duas vezes por umpelo mesmo fato qualquer se seja o ente que o puneTenho que a compreensatildeo para o caso deve ser a que percebe violado o principio non bis in idem no presente caso natildeo porque seja refrataacuterio a novos institutos que possam ser reconhecidos na casuiacutes-tica judicial mas apenas porque me parece que o ldquoDuplo Jus Puniendirdquo poderia acender um debate paralelo acerca do conflito de jurisdiccedilotildees e que esse novel instituto natildeo suplantaria adequadamente o argumento da acusaccedilatildeo de que haveria violado na espeacutecie principio da inafastabilidade da jurisdiccedilatildeo (CAMPELLO 2015)

Em suma a decisatildeo corresponde agrave realidade latino-ameri-cana reconhecendo a jurisdiccedilatildeo indiacutegena quebrando o monopoacutelio

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estatal ao conceber a utilizaccedilatildeo de meacutetodos tradicionais dos po-vos indiacutegenas para soluccedilatildeo de conflitos mesmo em mateacuteria penal Decisatildeo essa que eacute reflexo do neoconstitucionalismo latino-ame-ricano uma vez que efetiva os direitos fundamentais dos povos indiacutegenas valida e reforccedila o pluralismo existente no paiacutes Capaz de influenciar numa nova concepccedilatildeo de valores ou ideologias no que concerne a outras fontes de jurisdiccedilatildeo

Segundo dados do IBGE de 2010 a populaccedilatildeo indiacutegena brasileira eacute representada por 305 diferentes etnias conhecidas cada qual com costumes e regras proacuteprias com 274 liacutenguas indiacute-genas sendo que 175 da populaccedilatildeo indiacutegena natildeo falam a liacutengua portuguesa Mostra-se claramente um Estado composto por uma sociedade multicultural e multiliacutengue que possui seu reconheci-mento sob respaldo constitucional

Neste cenaacuterio reconhecer o jus puniendi indiacutegena em grau de paridade com o jus puniendi do Estado-juiz natildeo torna incompe-tente a atuaccedilatildeo do Estado mas sim descentraliza a efetividade do poder vez que restringe a sua atuaccedilatildeo ao caraacuteter subsidiaacuterio se o indiacutegena assim o quiser nem mesmo se teraacute uma sanccedilatildeo desfavo-raacutevel isso porque se viabiliza a aplicabilidade de outras fontes do direito nacional condizente com a realidade social indiacutegena

Atuaccedilatildeo semelhante acontece com as Constituiccedilotildees Boli-viana e Equatoriana paiacuteses em que a populaccedilatildeo eacute composta signi-ficativamente por povos originaacuterios que atraveacutes de ampla parti-cipaccedilatildeo da populaccedilatildeo durante a elaboraccedilatildeo dos respectivos textos constitucionais traccedilaram o objetivo de humanizaccedilatildeo dos povos e comunidades tradicionais sobretudo quanto ao tratamento dado agraves tradiccedilotildees e praacuteticas indiacutegenas e assim legitimaram a atuaccedilatildeo das autoridades indiacutegenas no exerciacutecio da administraccedilatildeo da justi-ccedila em seus espaccedilos territoriais com seu proacuteprio direito e procedi-mentos

O Artigo 1ordm da Constituiccedilatildeo boliviana preconiza

Boliacutevia se constituye em um Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario libre In-dependiente soberano democraacutetico intercultural

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descentralizado y com autonomias Boliacutevia se funda em lapluralidad y el pluralismo poliacutetico econocircmico juriacutedico cultural y linguiacutestico dentro Del processo integrador del paiacutes

De fato a Constituiccedilatildeo brasileira jaacute reconhece os direitos dos povos indiacutegenas e comunidades tradicionais entretanto as di-ficuldades que encontram estatildeo na efetivaccedilatildeo de tais direitos vez que versam principalmente sobre direitos de caraacuteter coletivo Na Constituiccedilatildeo boliviana por exemplo para materializar a perspec-tiva de um Estado Plurinacional houve uma transformaccedilatildeo insti-tucional Sobretudo com a composiccedilatildeo do Tribunal Constitucional Plurinacional Boliviano que em sua composiccedilatildeo aleacutem da presenccedila de representantes da jurisdiccedilatildeo estatal conta com a presenccedila obri-gatoacuteria de indiacutegenas eleitos pelo povo para um melhor diaacutelogo intercultural atraveacutes da participaccedilatildeo popular e da percepccedilatildeo in-diacutegena

Com perspectiva semelhante a Constituiccedilatildeo do Equador traz a criaccedilatildeo da Corte Constitucional Equatoriana composta com paridade entre homens e mulheres atraveacutes de um pluralismo juriacute-dico igualitaacuterio Traz ainda na essecircncia do Texto constitucional o rompimento do antropocentrismo atraveacutes da percepccedilatildeo indiacutegena da integraccedilatildeo do homem com o meio em que vive com a vida de modo geral

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Na concepccedilatildeo indiacutegena devido ao princiacutepio da solidarie-dade os interesses da comunidade satildeo mais importantes e se so-brepotildeem aos interesses ou direitos individuais de tal maneira que o direito indiacutegena se origina da proacutepria comunidade por isso a legitimidade das normas e da puniccedilatildeo natildeo satildeo questionadas

Essa visatildeo eacute diversa da empregada pelo direito comum (que se utiliza de outros meios para criaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo) mas pos-sui garantias no acircmbito constitucional e internacional

Embora presentes alguns dispositivos legais a Constitui-

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ccedilatildeo Federal vigente natildeo positiva expressamente a jurisdiccedilatildeo indiacute-gena com grau de paridade com a jurisdiccedilatildeo estatal limitando-se agrave aplicaccedilatildeo dos usos e costumes nas relaccedilotildees entre indiacutegenas salvo quando contrariar o sistema juriacutedico nacional ou direitos humanos internacionais

A Constituiccedilatildeo da Boliacutevia por sua vez elenca um rol sig-nificativo de artigos com direitos indiacutegenas Desse modo determi-na equivalecircncia entre a justiccedila indiacutegena e a justiccedila comum aleacutem de abrir espaccedilo para a participaccedilatildeo poliacutetica Assim reafirma a coexis-tecircncia de ldquonaccedilotildeesrdquo dentro do territoacuterio boliviano

Compreender a existecircncia de pluralismo eacute conhecer o di-reito indiacutegena enquanto direito comparado surgindo a possibili-dade de aprofundar o conhecimento dos sistemas juriacutedicos apri-morando o direito nacional e aproximando os povos atraveacutes do respeito de suas identidades culturais

Graccedilas agrave sentenccedila em anaacutelise o Brasil inova e abre frente para novas interpretaccedilotildees e aplicaccedilotildees do direito convalidando di-retrizes da ONU OIT e da proacutepria Constituiccedilatildeo Federal

Na concepccedilatildeo indiacutegena o reconhecimento da aplicaccedilatildeo de seus usos e costumes traz a integraccedilatildeo de povos que coexistem num mesmo espaccedilo fiacutesico

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A TEORIA DO PREJUIacuteZO NAS NULIDADES RELATIVAS O COROLAacuteRIO DA DISCRICIONARIEDADE NO PROCESSO PENAL

Evandro Monezi Benevides1

Felipe Teles Tourounoglou2

RESUMO Com a superaccedilatildeo do Estado Liberal desenvolveu-se que se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito expressatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo agrave luz do poacutes-positivismo No Brasil com a Constituiccedilatildeo Cidadatilde e a experiecircncia da ditadura militar inaugurou-se uma nova ordem juriacutedico-constitucional ensejando terreno feacutertil na efetivaccedilatildeo de direitos e garantias constitucionais Em contrapartida os paradigmas juriacutedicos erigidos com a democracia mormente tecircm sido alvo de levantes vez que o sistema normativo paacutetrio ainda continua vinculado agraves leis que natildeo mais expressam os valores constitucionais Somado a isso o Judiciaacuterio diante de sua progressiva autonomizaccedilatildeo vivencia uma era regada pela discricionariedade hermenecircutica colocando em risco inclusive a supremacia da Constituiccedilatildeo Assim o presente trabalho tem por objetivo analisar como tem se dado a atuaccedilatildeo do Judiciaacuterio na aplicaccedilatildeo da teoria do prejuiacutezo nas nulidades processuais penais e a sua imbricaccedilatildeo com a discricionariedade tatildeo bem recepcionada atualmente por juiacutezes e tribunais bem como apontar possiacuteveis saiacutedas Para tanto lanccedilaremos matildeo da teoria criacutetica do direito como forma de anaacutelise da temaacutetica proposta apresentando posicionamentos que coadunam com o tema a partir de pesquisas bibliograacuteficas Tal estudo demonstra-se fundamental viabilizando discussotildees acadecircmicas sobre a necessidade de se combater comportamentos antidemocraacuteticos que resvalam as necessidades do atual constitucionalismo

PALAVRAS-CHAVE Constitucionalismo Contemporacircneo Poacutes-positivismo Interpretaccedilatildeo 1 Graduando do curso de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail evandromonezzihotmailcom2 Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado do Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail felipetelesadvgmailcom

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ABSTRACT With an overcoming of the Liberal State what has now been understood by the Constitutional State of Law the expression of Contemporary Constitutionalism has been developed in the light of post-positivism In Brazil with the Citizen Constitution and an experience of the military dictatorship a new juridical-constitutional order was inaugurated providing fertile ground for the realization of constitutional rights and guarantees On the other hand legal paradigms erected with democracy have usually been the target of uprisings which the countryrsquos normative system remains bound by laws that no longer express constitutional values Added to this the Judiciary faced with its progressive autonomization experienced an era ruled by hermeneutical arbitrariness even putting at risk the supremacy of the Constitution The purpose of this study has to analyze how the activity of the Judiciary has been applied in the application of the theory of injury in criminal proceedings and its connection with arbitrariness currently received by judges and courts pointing out possible exits Finally we will use the critical theory of law as a way of analyzing the proposed theme presenting positions that fit the theme using bibliographical research This study proves to be fundamental since it makes it possible to vocalize academic discussions about the need to combat undemocratic behaviors that go against the needs of the current constitutionalism

KEYWORDS Contemporary Constitutionalism Post-positivism Interpretation

INTRODUCcedilAtildeO

Com o agravamento das tensotildees poliacuteticas provocadas em parte pela desmoralizaccedilatildeo dos gestores puacuteblicos legitimamente constituiacutedos pelo voto em funccedilatildeo de escacircndalos de corrupccedilatildeo bem como do descompasso de suas accedilotildees face agraves necessidades sociais o Direito tem alcanccedilado um grau de autonomia cada vez mais elevado Isso se deve ao fato de que o Direito passa a ter um caraacuteter cada vez mais progressista no sentido de ser transformador potencializando as esperanccedilas sociais de verem concretizados os

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direitos fundamentais assumidos nos textos constitucionais Nes-se novo cenaacuterio paradigmaacutetico a poliacutetica (leia-se Executivo e Le-gislativo) em todas as suas conjecturas acaba ficando em deacuteficit com os direitos fundamentais Tais circunstacircncias possibilitaram a construccedilatildeo de um novo modelo de Direito e de Estado uma vez que a Constituiccedilatildeo passa a ser uma verdadeira forma de concreti-zaccedilatildeo de direitos

Por outro lado aquilo que poderia ser beneacutefico tem de-monstrado progressivamente seu lado funesto A autonomia do Direito construiacuteda pela afirmaccedilatildeo e materializaccedilatildeo de direitos e garantias constitucionais tem produzido um indesejaacutevel ldquoefeito colateralrdquo a discricionariedade jurisdicional Tal discricionariedade encontra-se fundamentada no fato de que dentro da dogmaacutetica juriacutedica (tradicional) seria (e tem sido) impossiacutevel ao inteacuterprete (juiz) se desvencilhar da sua subjetividade bem como da objetivi-dade do texto e lanccedilar matildeo de uma interpretaccedilatildeo do fato social a partir de uma concepccedilatildeo histoacuterico-ontoloacutegica do direito Isso sig-nifica dizer que a discricionariedade esvazia-se de quaisquer in-fluecircncias concreto-reais e mergulha na abstratalidade do Direito Se a liberdade portanto do legislador foi restringida em funccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo constitucional deve-se buscar caminhos que impe-ccedilam a discricionariedade do inteacuterprete em detrimento dos direitos e garantias fundamentais mormente solapados pelo decisionismo jurisdicional

Diante disso e como prova dos efeitos nocivos da discri-cionariedadearbitrariedade do inteacuterprete o ponto fulcral o qual o presente trabalho pretende abordar trata-se da teoria do prejuiacutezo amplamente debatida pela doutrina processual penal a qual se situa no instituto das nulidades relativas poreacutem muito mal apli-cada em decisotildees judiciais as quais em vez de concretizarem o respeito aos direitos fundamentais acabam se tornando a expres-satildeo maacutexima dessa discricionariedade violando direitos e garantias fundamentais e anulando e pondo agrave prova o que se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito Pior que isso colocando em risco a autonomia do Direito e inevitavelmente a supremacia da Constituiccedilatildeo

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O Estado Constitucional de Direito e a Autonomia do Direito

Trecircs foram as referecircncias inaugurais do constitucionalis-mo moderno a norte-americana a francesa e a inglesa as quais impulsionaram a construccedilatildeo do cenaacuterio juriacutedico-constitucional e poliacutetico do final do seacuteculo XVIII bem como os contornos do Estado Constitucional de Direito expressatildeo clara da limitaccedilatildeo do poder estatal

Sarlet (2013 p 52) aponta que ldquoo processo de afirmaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do Estado (Constitucional) de Direito que nasceu como um Estado Liberal de Direito revela que se trata de uma trajetoacuteria gradualrdquo pois outras experiecircncias constitucionais fo-ram sendo delineadas ao longo da histoacuteria3 Assim alerta o autor que sob o manto de Estados Constitucionais modelos distintos de constitucionalismos podem ser identificados como o Estado Cons-titucional Liberal o Estado Constitucional Social e o Estado Cons-titucional de Direito os quais se manifestam a partir de perspecti-vas ideoloacutegicas distintas mas que contribuiacuteram para a edificaccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo

Leciona Barroso (2010) que o marco do constitucionalis-mo que hoje se conhece como ldquogarantistardquo e ldquoprogramaacuteticordquo teve como marco histoacuterico o poacutes Segunda Guerra na Europa especial-mente na Alemanha e Itaacutelia4 com suas Constituiccedilotildees escritas No Brasil o marco foi a redemocratizaccedilatildeo poacutes Ditadura Militar em 1988 com a Constituiccedilatildeo Cidadatilde que possibilitou a travessia de um regime autoritaacuterio para o democraacutetico solidificado ateacute entatildeo Todos esses ldquomarcosrdquo a partir de suas contribuiccedilotildees histoacuterias de

3 Muito comum encontrar juristas que buscam estabelecer distinccedilotildees entre Estado Liberal e Estado Social apontado um ou outro como possivelmente mais adequado Logo necessaacuterio e oportuno eacute o esclarecimento de Streck (2014 p 138) ao afirmar que ldquonatildeo parece adequada portanto a tese da contraposiccedilatildeo do modelo de direito do Estado Social ao modelo de direito do Estado Liberal Isso seria ignorar os dois pilares sobre as quais estaacute assentado o terceiro modelo o Estado Democraacutetico de Direito a proteccedilatildeo dos direitos social-fundamentais e o respeito agrave democraciardquo 4 Duas satildeo as referecircncias de constitucionalismo a Constituiccedilatildeo alematilde denominada ldquoLei funda-mental de Bonnrdquo promulgada em 1949 erigindo uma sustentaacutevel tradiccedilatildeo constitucional no acircmbito dos paiacuteses de tradiccedilatildeo romano-germacircnica e a Constituiccedilatildeo italiana de 1947 Ambas auxiliaram para a aproximaccedilatildeo de ideais de democracia e constitucionalismo produzindo uma nova configuraccedilatildeo poliacutetica (BARROSO 2010)

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fato possibilitaram uma transformaccedilatildeo na compreensatildeo do Direi-to e mais que isso na compreensatildeo de validade das normas infra-constitucionais e das instituiccedilotildees pertencentes ao Estado

A redemocratizaccedilatildeo no Brasil apoacutes mais de duas deacutecadas do regime militar e a superaccedilatildeo do Positivismo Juriacutedico5 tiveram papel decisivo na estruturaccedilatildeo de um direito constitucional para aleacutem da compreensatildeo de uma Constituiccedilatildeo meramente poliacutetica e vinculada aos interesses legislativos e administrativos A Consti-tuiccedilatildeo aleacutem de exigir uma efetiva compatibilidade das leis estabe-lece limites ao legislador ao administrador e tambeacutem ao inteacuterprete da lei impondo-lhes deveres e limites inexoraacuteveis de atuaccedilatildeo

O marco do poacutes-positivismo6 reintroduziu as ideias (e os ideais) de justiccedila e legitimidade nos diversos niacuteveis do poder es-tatal Isso significa dizer que o Direito antes compreendido como uma ciecircncia ldquopurardquo e isolada de outros conhecimentos passa a comungar com a realidade histoacuterico-social propiciando um senti-mento constitucional Mais que isso passa a proporcionar instru-mentos que possibilitam as mudanccedilas reivindicadas pela socieda-de e de direitos expressamente garantidos no texto constitucional Quer dizer no Estado Constitucional de Direito a lei passa a ser um instrumento de realizaccedilatildeo do Estado oportunizando mecanis-mos de promoccedilatildeoconcretizaccedilatildeo das reivindicaccedilotildees sociais peran-te a ineacutercia do Executivo eou do Legislativo como por exemplo o mandado de injunccedilatildeo o mandado de seguranccedila coletivo a accedilatildeo civil puacuteblica para citar alguns

Ao passo dessas transformaccedilotildees e como forma clara de efetivaccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo consolidou-se a compreensatildeo de Supremacia da Constituiccedilatildeo a dizer a ldquoseguranccedilardquo de que os poderes constituiacutedos natildeo poderatildeo dispor (tatildeo facilmente)

5 A doutrina sofreu muitas influecircncias de pensadores que buscavam professar um direito natildeo mais refeacutem dos pensamentos ultrapassados ou seja de um direito com perspectivas individualista-dogmaacute-tica teacutecnico-burocraacutetica e assim por diante mas buscava agora compatibilizar-se com perspectivas democraacuteticas em direccedilatildeo a um constitucionalismo garantista e programaacutetico 6 Importante ressaltar que o conceito de ldquopoacutes-positivismordquo deve ser compreendido aqui como a superaccedilatildeo da dogmaacutetica juriacutedica regado por concepccedilotildees solipsistas de um direito autocircnomo e in-dividualista trata-se de forma clara da superaccedilatildeo do positivismo normativista poacutes-kelseniano ou simplesmente positivismo primitivo

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das previsotildees constitucionais estabelecidas pelo Poder Constituinte muito menos contrariar tais disposiccedilotildees sob pena de serem repe-lidos do ordenamento juriacutedico Essa ldquoseguranccedilardquo por outro lado acaba sendo abalada sempre que uma (nova) ordem constitucional natildeo seja capaz de se desvencilhar de leis ordinaacuterias visivelmen-te conflitantes com essa (nova) ordem Isso porque ao contraacuterio do que pensam alguns juristas a Constituiccedilatildeo natildeo se funda ldquodo nadardquo seja com a primeira Constituiccedilatildeo de um Estado ou mesmo com a elaboraccedilatildeo de uma nova a qual substituiraacute outra Natildeo se pode tentar ldquopurificarrdquo um Poder Constituinte (como tentou fazer Kelsen) Nenhuma Constituiccedilatildeo eacute livre de influecircncias sociais poliacute-ticas culturais e religiosas Ainda mais se diante da fragilidade do monismo estatal reconhece-se a existecircncia de um direito natildeo esta-tal paralelo ao direito oficial o que certamente nos levaraacute agrave con-clusatildeo de que nenhum constituinte eacute totalmente imune agraves influecircn-cias de um direito preacute-existente quiccedilaacute das efervescecircncias sociais

Ao lado dessa inseguranccedila provocada por um sistema normativo que em muitos casos vai de encontro aos preceitos constitucionais o ponto fulcral da discussatildeo que envolve o Esta-do Democraacutetico de Direito diz respeito agrave autonomia que o Direito alcanccedilou e tem alcanccedilado Eacute preciso ter em mente que hoje no Es-tado Democraacutetico de Direito o foco de toda a atenccedilatildeo se volta ao Judiciaacuterio e isso se daacute aponta Streck (2014 p 138) em funccedilatildeo da perda da ldquoliberdade da conformaccedilatildeo do legislador em favor do controle contramajoritaacuterio feito pela jurisdiccedilatildeo constitucionalrdquo ou seja haacute uma niacutetida diminuiccedilatildeo do ldquopoderrdquo da vontade geral (Legislativo) e um aumento do espaccedilo da jurisdiccedilatildeo e o principal motivo dessa diminuiccedilatildeo de poder recai sobre a ineacutercia do Legis-lativo e do Executivo diante das garantias constitucionais que por eles satildeo negligenciadas permitindo que o Judiciaacuterio assuma uma postura mais ativa7 com o propoacutesito de concretizar os reclames da sociedade

7 Aqui a palavra ldquoativardquo (que remete ao termo ldquoativismo juriacutedicordquo) deve ser compreendida nas pa-lavras de Barroso (2012 p 1-50) como ldquouma participaccedilatildeo mais ampla e intensa do Judiciaacuterio na con-cretizaccedilatildeo dos valores e fins constitucionais com maior interferecircncia no espaccedilo de atuaccedilatildeo dos outros dois Poderes Em muitas situaccedilotildees sequer haacute confronto mas mera ocupaccedilatildeo de espaccedilos vaziosrdquo

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Diante dessa autonomizaccedilatildeo do direito do fortalecimen-to da atividade jurisdicional e da consequente diminuiccedilatildeo da in-fluecircncia dos demais poderes bem como diante da incompletude da lei que por vezes natildeo consegue abranger todas as situaccedilotildees possiacuteveis evidencia-se como defende Streck (2010) a necessidade de se encontrar mecanismos de controle do epicentro da tensatildeo entre jurisdiccedilatildeo e legislaccedilatildeo as decisotildees judiciais Isto eacute com essa au-tonomizaccedilatildeo do Direito adquirida no Estado Constitucional juiacute-zes e tribunais (e mais do que nunca os Tribunais Constitucionais) tecircm encontrado dificuldade em impedir que as suas decisotildees sejam solapadas pela discricionariedadearbitrariedade Quer dizer o que ateacute entatildeo representa(ria) um avanccedilo para o Direito agora tem sido seu principal entrave vez que natildeo tem sido usada de forma a exprimir o ldquoespiacuteritordquo do Constitucionalismo Contemporacircneo mas passa a exprimir interesses outros que natildeo se consubstanciam com a nova ordem vigente

Partindo dessa reflexatildeo pergunta-se como seraacute possiacutevel lidar com a dicotomia ldquoautonomiardquo versus ldquodiscricionariedaderdquo que hoje paira sobre o Direito muitas vezes chancelado pelos in-teacuterpretes da lei E eacute justamente no Processo Penal locus em que se deveria materializar o respeito aos direitos fundamentais que ilogicamente se tem encontrado a expressatildeo maacutexima dessa discri-cionariedade Natildeo raro chegam-se ao conhecimento puacuteblico de-cisotildees teratoloacutegicas que agrave luz da consciecircncia do julgador passam por cima da Constituiccedilatildeo violam direitos e garantias fundamen-tais e anulam a base do que agraves duras penas se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito isto eacute colocando em risco a autonomia do Direito e o pior a supremacia da Constituiccedilatildeo Como bem analisa Lopes Jr (2014 p 1176)

o sistema de garantias da Constituiccedilatildeo eacute o nuacutecleo imantador e legitimador de todas as atividades de-senvolvidas naquilo que concebemos como instru-mentalidade do processo penal eacute dizer um instru-mento a serviccedilo da maacutexima eficaacutecia do sistema de garantias da Constituiccedilatildeo

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Para tanto eacute preciso que se compreenda o Processo Penal agrave luz do sistema de garantias constitucionais a fim de efetivar a finalidade pela qual existem tais garantias limitaccedilatildeo do poder estatal face aos direitos fundamentais do reacuteu Posto isso eacute impossiacutevel negar que com a queda do regime totalitaacuterio e a promulgaccedilatildeo da Cons-tituiccedilatildeo de 1988 surgiu uma nova era constitucional advinda de um regime democraacutetico e que resvala da compreensatildeo dogmaacuteti-co-normativa do direito Todavia aleacutem do ordenamento juriacutedico vigente continuar ainda em sua grande maioria umbilicado com leis fascistas de outrora criando uma verdadeira instabilidade le-gal constitucional os inteacuterpretes do direito tambeacutem continuam os mesmos

A partir dessa problemaacutetica pode-se identificar dois pos-siacuteveis comportamentos igualmente nocivos a essa nova legalida-de constitucional ou os inteacuterpretes continuam aplicando o direito com o pressuposto da loacutegica positivista (primitiva) criando situa-ccedilotildees absurdas e desconexas com a nova ordem constitucional ou ao contraacuterio disso natildeo aceitando aplicar um Direito que natildeo mais coaduna com a nova ordem passam de meros ldquobocas da leirdquo a ldquocriacute-ticos da leirdquo proferindo decisotildees discricionaacuterias contraacuterias agrave Cons-tituiccedilatildeo que em nome de um neoconstitucionalismo natildeo abrem matildeo das raiacutezes solipsistas Como se veraacute a partir de agora o segundo comportamento tem se intensificado na seara processual penal

Teoria do ldquoVale-tudordquo

O instituto das nulidades em Processo Penal eacute um dos terremos mais arenosos no Direito atualmente Seja na juris-prudecircncia ou na doutrina raramente encontram-se opiniotildees con-vergentes sobre o assunto Todavia aleacutem das inuacutemeras discussotildees possiacuteveis que o instituto proporciona o que chama atenccedilatildeo eacute a denominada teoria do prejuiacutezo que atrelada agraves nulidades relativas transformou-se em mais um tumor do Processo Penal que volta e meia fere o sistema de garantias constitucionais

Extraiacuteda da dicccedilatildeo do artigo 563 do Coacutedigo de Processo

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Penal8 a teoria do prejuiacutezo tem finalidade uacuteltima de servir agrave apli-caccedilatildeo da nulidade relativa (que eacute uma classificaccedilatildeo doutrinaria das nulidades no sistema processual penal) O dispositivo explicita o famoso princiacutepio pas de nulliteacute sans grief (natildeo haacute nulidade sem pre-juiacutezo) isto eacute para que determinado ato seja declarado nulo seraacute necessaacuteria a comprovaccedilatildeo do prejuiacutezo pela parte que alega salvo se o ato natildeo viole norma cogente situaccedilatildeo em que o juiz poderaacute reconhececirc-la de ofiacutecio Entretanto nas palavras de Lopes Jr (2014) o ldquoprejuiacutezordquo como distinccedilatildeo entre nulidades relativas e absolutas9 possibilita espaccedilos de manipulaccedilatildeo interpretativa e a aplicaccedilatildeo inadequada das nulidades processuais penais nos casos concretos

O primeiro ponto a ser analisado entatildeo eacute a inapropriada influecircncia do processo civil exercida sobre o processo penal quanto ao tema das nulidades processuais Pois o ldquoprejuiacutezordquo ateacute entatildeo soacute era aplicado nos casos de nulidade relativa e desde que devida-mente comprovada a lesatildeo que o ato causou agravequele que alegou Todavia haacute muito nos tribunais tem-se aceitado o fenocircmeno da relativizaccedilatildeo das nulidades absolutas do processo civil em processo penal exigindo da parte que alega a nulidade absoluta a compro-vaccedilatildeo efetiva do prejuiacutezo o que implica em consequecircncias danosas ao suporte faacutetico dos direitos e garantias do imputado Nota-se portanto uma tendecircncia em evitar a decretaccedilatildeo de nulidade pro-cessual (seja ela relativa ou absoluta) sob o argumento de que a nulificaccedilatildeo natildeo condiz com os objetivos de celeridade e de precau-ccedilatildeo contra dilaccedilotildees processuais indevidas Daiacute se justificaria por exemplo a violaccedilatildeo do devido processo legal ()

8 Art 563 Nenhum ato seraacute declarado nulo se da nulidade natildeo resultar prejuiacutezo para a acusaccedilatildeo ou para a defesa (BRASIL 2016) 9 Considera-se como nulidade relativa o viacutecio que embora grave decorre de violaccedilatildeo de normas de interesse privado (ou normas infraconstitucionais) sem qualquer repercussatildeo constitucional Seu reconhecimento depende de provocaccedilatildeo do interessado com a demonstraccedilatildeo do efetivo ldquoprejuiacutezordquo sujeito a prazo preclusivo podendo se convalidar A nulidade absoluta por sua vez eacute o viacutecio de gra-vidade manifesta pois decorre de violaccedilatildeo de norma cogente ou seja que viola norma de interesse puacuteblico (e de ordem constitucional) e por isso o juiz deve alegaacute-la de ofiacutecio decretando sua inva-lidade A doutrina majoritaacuteria aponta que o prejuiacutezo nesse caso eacute presumido mas o STF e STJ tecircm relativizado as nulidades absolutas as quais nesse entendimento precisam gerar prejuiacutezo agraves partes a fim de que sejam declaradas ineficazes Nesse sentido ver STF ndash Segunda Turma ndash HC 406648 ndash Rel Min Teori Zavascki ndash Dje 26112013 e STJ ndash Quinta Turma ndash RMS 35180 ndash Rel Min Laurita Vaz ndash Dje 05112013

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Trata-se portanto de verdadeira metaacutestase vez que a re-cepccedilatildeo de categorias do processo civil para o processo penal (no caso a relativizaccedilatildeo das nulidades absolutas) como explica Lopes Jr (2014) tem produzido verdadeiro atropelamento de direitos e garantias fundamentais embasado em uma postura utilitarista e sob o manto da manipulaccedilatildeo discursivo-interpretativa Reiterando esse posicionamento Fernandes e Fernandes (2002 p 41) afirmam por outro lado que mais grave que os inconvenientes da decla-raccedilatildeo de nulidade processual ldquoseraacute a condenaccedilatildeo de um acusado com proscriccedilatildeo das garantias fundamentais do contraditoacuterio da ampla defesa da liberdade plena de produccedilatildeo de provardquo

Como consequecircncia dessa lesatildeo inicial (leia-se da inade-quada influecircncia do processo civil em processo penal) as ceacutelulas canceriacutegenas da discricionariedade do inteacuterprete acabaram se dis-seminando por todo o sistema de garantias constitucionais do reacuteu conquistado agraves duras penas frisa-se De mais a mais a pergunta que se faz eacute afinal a serviccedilo de quem estaacute o sistema de garantias constitucionais quanto agraves nulidades processuais penais Nas pala-vras de Binder (2000 p 58)

En los siglos XVIII y XIX a la par del desarrollo del pensamiento liberal (Beccaria Montesquieu Fi-lan-gieri Pagano luego Carrara etc) con los materiales del formalismo propio del sistema inquisitivo co-mienza a gestarse una nueva ingenieriacutea institucio-nal del proceso penal orientada a la contencioacuten de la violencia y la arbitrariedad del poder penal de la cual deriva lo que hoy desde Ferrajoli llamamos sis-tema de garantios

Natildeo se pode perder de vista o que jaacute fora discutido ante-riormente isto eacute que as normas bem como todas as instituiccedilotildees sujeitas ao Estado Constitucional de Direito estatildeo vinculadas a uma nova dogmaacutetica juriacutedico-constitucional que apresenta caracteriacutes-ticas dotadas de especial importacircncia na realizaccedilatildeo normativa dos direitos e garantias da Constituiccedilatildeo Logo natildeo eacute (e natildeo seraacute) pos-siacutevel compreender a teoria do prejuiacutezo e as nulidades em processo

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penal como um todo desvinculadas da compreensatildeo de Constitu-cionalismo Contemporacircneo Nessa linha arremata Binder (2000 p 59)

Formas procesales verdad proceso cognitivo prin-cipios del proceso sistema de garantiacuteas y liacutemites al poder penal son un conjunto de conceptos ligados entre siacute en un nivel de fundamento Quien no se si-tuacutee en el universo conformado por esos conceptos y su relacioacuten mutua difiacutecilmente pueda comprender el reacutegimen de las nulidades en el proceso penal

Nesta senda forma no Estado Constitucional de Direito e mais do que nunca dentro da seara processual penal eacute sinocircnimo de garantia Adequada eacute a afirmaccedilatildeo de Lopes Jr (2014 p 1175) de que o ldquoprocesso penal eacute um instrumento de limitaccedilatildeo do poder punitivo do Estado impondo severos limites desse poder e tam-beacutem regras formais para o seu exerciacutecio Eacute a forma um limite ao poder estatalrdquo e mais ldquoa forma eacute uma garantia para o imputado em situaccedilatildeo similar ao princiacutepio da legalidade do direito penalrdquo Co-mungando com essa visatildeo Streck (2010 p 170) pontua que ldquosalta-mos de um legalismo rasteiro que reduzia o elemento central do direito ora a um conceito estrito de lei [] para uma concepccedilatildeo de legalidade que soacute se constitui sob o manto da constitucionali-daderdquo Deduz-se portanto que todo o sistema de garantias e por consequecircncia de limitaccedilatildeo do puniendi estatal deve estar voltado para o reacuteu No entanto essa natildeo eacute a realidade

Nessa perspectiva e ao contraacuterio do que se imaginava a forma tem evitado que garantias constitucionais sejam colocadas em praacutetica e o pior tudo engendrado justamente por aqueles que deveriam garanti-la o inteacuterprete Diante disso introduz-se aqui o segundo ponto a ser analisado a discricionariedade travestida de le-galidade constitucional mas que na verdade tangencia qualquer noccedilatildeo de constitucionalidade Exemplo claro disso eacute o julgamento do habeas corpus nordm 148723SC em que o Superior Tribunal de Jus-ticcedila (STJ 2010 p 9) denegou a ordem de habeas corpus ao paciente que alegava nulidade absoluta em funccedilatildeo de o processo tramitar

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em segredo de justiccedila sem motivaccedilatildeo violando o princiacutepio consti-tucional da publicidade sob o seguinte fundamento

O simples fato de o feito ter tramitado em sigilo com a impliacutecita concordacircncia da Defesa natildeo gera qual-quer nulidade Poderia se cogitar eventual viacutecio em situaccedilatildeo oposta ou seja se natildeo tivesse sido obser-vado o sigilo determinado pela lei No caso contu-do natildeo haacute qualquer maacutecula processual [] natildeo se demonstrou qualquer prejuiacutezo () em decorrecircncia da providecircncia adotada A magistrada esclareceu que a Defesa teve o devido acesso aos autos e o impetrante natildeo alega o contraacuterio (Grifo nosso)

Percebe-se que sob o fundamento da preclusatildeo () a in-devida tramitaccedilatildeo em segredo de justiccedila da Accedilatildeo Penal in casu violando frontalmente ditame constitucional estampado no art 93 IX da CF88 natildeo constitui ldquoqualquer maacutecula processualrdquo Ora eacute sabido que no caso de nulidade absoluta natildeo haacute falar em conva-lidaccedilatildeo tatildeo pouco em preclusatildeo do ato eis que a invalidade pro-cessual pode ser arguida a qualquer tempo enquanto perdurar o processo penal aleacutem disso para que seja reconhecida a nulidade absoluta natildeo eacute necessaacuteria a provocaccedilatildeo da parte interessada po-dendo ser declarada de ofiacutecio pelo juiz e inclusive ser alegada em sede de revisatildeo criminal ou habeas corpus ainda que formada a coisa julgada

Outra questatildeo que toca o objeto do presente trabalho eacute que natildeo haacute falar em demonstraccedilatildeo de prejuiacutezo em nulidades ab-solutas vez que o prejuiacutezo eacute presumido E mais se se entende que ldquoformardquo eacute garantia uma vez violada a ldquoformardquo eacute obvio que tal atipicidade produza dano Apesar disso verifica-se que no exem-plo operou-se a relativizaccedilatildeo da nulidade absoluta e consequen-temente a aplicaccedilatildeo do princiacutepio pas nilliteacute sans grife mesmo sendo caso de nulidade insanaacutevel (absoluta)

Natildeo precisa ser especialista para notar a influecircncia ainda muito presente nos tribunais do animus inquisitivo Nas palavras de Lopes Jr (2014 p 1) ldquopara reconhecer uma nulidade o juiz

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precisa ser lsquoinvocadorsquo mas para ir atraacutes da prova decretar prisatildeo busca e apreensatildeo etc pode e deve atuar de ofiacutecio Olhem o ab-surdordquo E vai aleacutem o autor ao afirmar que determinado ato soacute seraacute declarado nulo ldquoquando o tribunal quiser para quem ele quiser e com o alcance que ele quiser Essa eacute a verdadeira ditadura judicial vivenciada hojerdquo (Idem) Agrave vista disto lanccedila-se mais uma pergun-ta haveria entatildeo soluccedilatildeo para o problema da discricionariedade quanto agrave aplicaccedilatildeo da teoria do prejuiacutezo em processo penal

Lopes Jr (Ibidem) em sua obra Direito Processual Penal apresenta uma possiacutevel saiacuteda O autor propotildee o que ele denomina de ldquoinversatildeo de sinaisrdquo ou seja natildeo seraacute a parte que alega o prejuiacute-zo que deveraacute demonstraacute-lo mas o proacuteprio juiz que para manter a eficaacutecia do ato deveraacute fundamentaacute-lo demonstrando que o ato alcanccedilou sua finalidade ou foi regularmente sanado Este tambeacutem eacute o posicionamento de Badaroacute (2007) para o qual deveraacute ocorrer uma liberaccedilatildeo da carga probatoacuteria por parte da defesa restando ao juiz tal incumbecircncia Isso se justifica uma vez que a defesa dificil-mente conseguiria demonstrar o prejuiacutezo por exemplo em casos de violaccedilatildeo do princiacutepio da publicidade como no caso em anaacutelise Quer dizer qual foi o prejuiacutezo nesse caso se o paciente teve opor-tunidade de alegar o defeito mas natildeo o fez oportunamente Qual foi o prejuiacutezo se o paciente sequer apontou um Ora o prejuiacutezo eacute nada mais que a violaccedilatildeo de uma norma constitucional Ou em outros casos a inobservacircncia de direitos fundamentais

Frisa-se entretanto que por mais que a medida adotada por Lopes Jr seja um grande passo para evitar a violaccedilatildeo de di-reitos e garantias constitucionais soacute ela natildeo satisfaz Afinal nada impediria que o juiz ou o tribunal continuassem tendo atitudes discricionaacuterias e violadoras bastasse apresentar razotildees que para sua consciecircncia legitimariam a inobservacircncia da Constituiccedilatildeo ou de determinada formalidade prevista no processo penal Mais que isso eacute imperioso um conjunto de accedilotildees o que inclui fundamental-mente que juiacutezes e tribunais tenham a correta compreensatildeo do processo penal natildeo mais como um sistema inquisitoacuterio mas como um sistema inexoravelmente inserido em uma nova ordem juriacutedi-

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co-constitucional na qual a forma eacute a maacutexima expressatildeo de garantiaDentro desse conjunto de accedilotildees por sua vez deve perpas-

sar tambeacutem uma maior importacircncia agrave hermenecircutica juriacutedica natildeo como ldquomais um meacutetodordquo ou como ldquoum saber operacionalrdquo mas como um instrumento a fim de se alcanccedilar interpretaccedilotildees fundi-das com a Constituiccedilatildeo Natildeo se pode mais permitir como aponta Streck (2010 p 162) que ldquolsquoo processoprocedimento interpretati-vorsquo possibilit[e]a que o sujeito [] alcance o sentido que mais lhe conveacutem lsquoo real sentido da regra juriacutedicarsquo etcrdquo Natildeo restam duacutevi-das de que no acircmbito da hermenecircutica juriacutedica haacute uma verdadei-ra banalizaccedilatildeo do processo interpretativo pois natildeo se sabe mais o que se deve seguir se ldquoa vontade da leirdquo ou ldquoa vontade do legisla-dorrdquo10 Quando nenhuma delas ldquoresolverdquo aplica-se a ldquovontade do inteacuterpreterdquo e assim em termos de nulidades em processo penal estaacute montada a torre de Babel Como explica Streck (Idem)

o resultado disso eacute que aquilo que comeccedila com (um)a subjetividade ldquocriadorardquo de sentidos (afinal quem pode controlar a ldquovontade do inteacuterpreterdquo pergun-tariam os juristas) acaba em decisionismos e arbi-trariedades interpretativas isto eacute em um ldquomundo juriacutedicordquo em que cada um interpreta como (melhor) lhe conveacutem Enfim o triunfo do sujeito solipsista o Selbstsuumlchtiger

Este portanto eacute justamente o resultado que natildeo se pode esperar quer dizer a subjetividade a discricionariedadearbitra-riedade o decisionismo Nenhum desses comportamentos har-moniza-se com o Estado Constitucional de Direito e deve ser du-ramente combatido por aqueles que acreditam na supremacia da Constituiccedilatildeo Natildeo se pode mais admitir que garantias fundamen-tais sejam violadas a fim de se satisfazer a consciecircncia do inteacuterpre-

10 Streck (2010 p 162) ensina que ldquoalguns autores colocam na consciecircncia do sujeito-juiz o locus da atribuiccedilatildeo de sentido (solipsista) Nesse contexto lsquofilosofia da consciecircnciarsquo e lsquodiscricionariedade judicialrsquo satildeo faces da mesma moeda Haacute ainda juristas filiados agraves antigas teses formalistas propalando que a interpretaccedilatildeo deve buscar a vontade da lei desconsiderando de quem a fez ndash sic ndash e que a lei lsquoterminadarsquo independe de seu passado importando apenas o que estaacute contido em seus preceitos (o texto teria um sentido lsquoem sirsquo)rdquo

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te e pior que isso que tais ilegalidades sejam chanceladas pelos tribunais

Atualmente o decisionismo no acircmbito do processo penal em especial no que diz respeito agraves nulidades processuais estaacute ri-gorosamente arraigado sendo legitimado pela doutrina diga-se de passagem Eacute preciso como jaacute dito um conjunto de accedilotildees dentre as quais a primordial eacute a compreensatildeo do sistema juriacutedico inevita-velmente inseparaacutevel da Constituiccedilatildeo e da ordem juriacutedica por ela estabelecida Compreendido isso chegar-se-aacute agrave conclusatildeo de que a formalidade de fato natildeo pode ser utilizada como um fim em si mesma assim como natildeo pode ser utilizada ao bel prazer de seus inteacuterpretes

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao fim e ao cabo com a construccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo o Direito deve se apresentar justaposto agrave nova dogmaacutetica juriacutedica implantada pelo Estado Constitucional de Di-reito mas natildeo soacute ele Tal exigecircncia deve-se estender peremptoria-mente aos seus ldquooperadoresrdquo quer dizer juiacutezes e tribunais preci-sam ter uma compreensatildeo cada vez mais consubstanciada com a nova ordem juriacutedica tendo em vista a progressiva autonomizaccedilatildeo do Direito que somada agrave incompreensatildeo dos inteacuterpretes da lei na aplicaccedilatildeo do saber tem provocado avalanches de criacuteticas as quais reprovam toda e qualquer atividade discricionaacuteria das autorida-des judiciaacuterias

A tendecircncia do Judiciaacuterio impulsionada por uma maior li-berdade de conformaccedilatildeo do sistema contramajoritaacuterio dos direitos fundamentais e em muitos casos lastreada por um falacioso dis-curso neoconstitucional por violar garantias constitucionais tem sido totalmente questionaacutevel especialmente quando tais violaccedilotildees ocorrem no acircmbito do Direito Penal e Processual Penal conside-rando seu caraacuteter subsidiaacuterio (ultima ratio) Como analisado ante-riormente evidencia-se que o grande desafio entatildeo eacute construir condiccedilotildees que evitem que a atividade jurisdicional (ou a atividade

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dos juiacutezes) se sobreponha ao proacuteprio Direito agrave proacutepria Constitui-ccedilatildeo afinal natildeo eacute em todos os casos que o Direito seraacute o que os tribunais dizem que ele eacute (e como de fato natildeo tem sido)

Esse descompasso entre a atuaccedilatildeo do judiciaacuterio e os ideais constitucionais tem se tornado nocivo para o processual penal vez que muito facilmente se tem subtraiacutedo direitos do reacuteu em prol da consciecircncia do julgador Isso fica muito claro como jaacute visto quan-do o judiciaacuterio passa a relativizar todas as nulidades no acircmbito do processo penal Sem sombra de duacutevidas tal entendimento que tem sido amplamente recepcionado por juiacutezes e tribunais nasceu em funccedilatildeo de uma equivocada recepccedilatildeo de categorias do processo civil a qual diferencia as nulidades absolutas das relativas a partir na natureza da norma ndash norma de interesse puacuteblico ou de interes-se privado Essa equivocada recepccedilatildeo insiste-se tem provocado a violaccedilatildeo dos direitos do reacuteu Primeiro porque no processo penal a forma deve ser vislumbrada como garantia isto eacute garantia contra a arbitrariedade do poder estatal Natildeo eacute por acaso que no processo inquisitivo a informalidade eacute tatildeo apreciada vez que ali o poder eacute melhor distribuiacutedo natildeo existindo limites definidos para a sua atuaccedilatildeo Essa realidade repete-se agrave exaustatildeo eacute altamente noci-va quando aplicada no processo penal levando-se em conta que a proteccedilatildeo do reacuteu eacute puacuteblica da mesma forma que puacuteblicos satildeo os direitos constitucionais que o tutelam

Diante da necessidade de proteccedilatildeo e defesa dos direitos e garantias fundamentais fazem-se essenciais algumas readequa-ccedilotildees procedimentais quanto agrave aplicaccedilatildeo das nulidades no processo penal Nesse passo a denominada ldquoinversatildeo de sinaisrdquo proposta pelo doutrinador Aury Lopes Jr (2014) apresenta-se uma possibi-lidade vez que defende que o ocircnus na demonstraccedilatildeo do prejuiacutezo natildeo ficaraacute mais com a parte que a alega (e que em muitos casos recai sobre o proacuteprio reacuteu) Tal encargo entretanto seraacute direcio-nado ao proacuteprio juiz que para manter a eficaacutecia do ato deveraacute fundamentaacute-lo demonstrando que o ato alcanccedilou sua finalidade ou foi regularmente sanado Por outro lado como apontado por mais que a medida adotada por Lopes Jr seja de grade valia para

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o sistema de garantias constitucionais ela por si soacute natildeo eacute sufi-ciente Em conjunto com essa proposta torna-se fundamental uma tomada de consciecircncia por parte do inteacuterprete quanto agrave relaccedilatildeo entre o sistema de nulidade processual penal e as garantias previs-tas na Constituiccedilatildeo Eacute preciso compreender que tais garantias (no caso as nulidades processuais) foram elaboradas a favor daquele sobre o qual recai o poder do Estado o imputado Seguindo esse raciociacutenio o inteacuterprete natildeo pode sacrificar regras e princiacutepios esta-belecidos constitucionalmente a fim de dar lugar as suas proacuteprias convicccedilotildees aos seus proacuteprios interesses

Nota-se enfim a importacircncia da hermenecircutica juriacutedica no processo de compreensatildeo do Direito como um todo o qual pro-duziraacute reflexos quando da sua aplicaccedilatildeo A superaccedilatildeo da crise de efetividade da Constituiccedilatildeo no acircmbito do Judiciaacuterio (e que haacute mui-to assola o Poder Legislativo e Executivo) em especial quanto ao tema das nulidades no processo penal estaacute inteiramente imbrica-da na retomada de uma legalidade que soacute se fundamenta por meio da constitucionalidade do respeito agrave Constituiccedilatildeo Legalidade esta que natildeo se confunde com o retorno a pensamentos positivistas mas de uma legalidade atraveacutes da qual obedecer agrave Constituiccedilatildeo simboliza um progresso consideraacutevel na defesa de direitos funda-mentais conferidos ao cidadatildeo em especial ao reacuteu

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CAacuteCERES E O DEacuteFICIT DE MORADIAS O CASO DA OCUPACcedilAtildeO DO BAIRRO EMPA

Evely Bocardi de Miranda Saldanha1

Richard Rodrigues da Silva2

RESUMO O presente trabalho analisa a ocupaccedilatildeo irregular ocorrida no bairro Jardim das Oliveiras conhecido popularmente como EMPA em CaacuteceresMT bem como verifica a situaccedilatildeo do acesso agrave moradia dos habitantes no que diz respeito agrave referida aacuterea Cabe destacar que em razatildeo do deacuteficit habitacional existente no municiacutepio a populaccedilatildeo de baixa renda se viu obrigada a ocupar irregularmente o local onde vive e sobrevive sem miacutenimas condiccedilotildees de saneamento infraestrutura baacutesica e qualquer planejamento urbano por parte do Poder Puacuteblico O municiacutepio de Caacuteceres atualmente tem uma populaccedilatildeo de 87942 habitantes segundo Censo do IBGE-2010 o qual estimou que em 2016 estaria com uma populaccedilatildeo de 90881 habitantes sendo que 8707 da populaccedilatildeo de Caacuteceres vivem na aacuterea urbana com incidecircncia de pobreza de 3902 (IBGE 2016) O Programa Minha Casa Minha Vida que atende ao municiacutepio foi criado pelo governo federal para fomentar a produccedilatildeo habitacional para populaccedilatildeo de baixa renda concentrando seus recursos nas accedilotildees de urbanizaccedilatildeo e desenvolvimento de assentamentos precaacuterios como mecanismo de reduccedilatildeo das desigualdades socioespaciais contudo natildeo consegue suprir a necessidade habitacional do municiacutepio

PALAVRAS-CHAVE Direito agrave moradia Deacuteficit habitacional Caacuteceres EMPA

ABSTRACT The present study analyzes the irregular occupation that occurres in the Jardim das Oliveiras neighborhood popularly

1 Profa Mestra em Direitos Humanos do Departamento de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail evelysaldanhagmailcom2 Acadecircmico do 10ordm Semestre do Curso de Direito de CaacuteceresMT da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT E-mail richardsilva1995hotmailcom

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known as EMPA in Caacuteceres MT as well as verify the situation of access to the dwelling of the inhabitants in what pertains to said area Was forced to occupy the place irregularly where it lives and survives without minimum sanitation conditions basic infrastructure and any urban planning by the Public Power The municipality of Caacuteceres currently has a population of 87942 inhabitants according to IBGE-2010 Census which estimated that in 2016 it would have a population of 90881 inhabitants 8707 of the population of Caacuteceres living in the urban area with incidence of poverty of 3902 (IBGE 2016) The My Home My Life Program that serves the municipality was created by the federal government to foster housing production for the low-income population concentrating its resources on urbanization and precarious settlement development as a mechanism to reduce socio-spatial inequalities Cannot meet the housing needs of the municipality

KEYWORDS Right to housing Housing deficit Caacuteceres EMPA

INTRODUCcedilAtildeO

A cidade de CaacuteceresMT assim como a maioria das cida-des brasileiras eacute marcada pela ocupaccedilatildeo espontacircnea ou irregular normalmente pela populaccedilatildeo mais pobre que vive em lugares mais perifeacutericos menos valorizados da cidade e sobrevive sem as miacutenimas condiccedilotildees de infraestrutura e saneamento baacutesico nas aacutereas marginais da cidade sem qualquer planejamento urbano

A proliferaccedilatildeo de processos informais de desenvolvimen-to urbano tem sido uma das principais caracteriacutesticas do processo de urbanizaccedilatildeo no Brasil ldquoAo longo das deacutecadas de crescimen-to urbano mas sobretudo nas uacuteltimas deacutecadas dezenas de mi-lhotildees de brasileiros natildeo tecircm tido acesso ao solo urbano e agrave moradia senatildeo atraveacutes de processos e mecanismos informais ndash e ilegaisrdquo (FERNANDES 2002 p 440)

As principais formas de habitaccedilatildeo produzidas diariamen-te nas cidades brasileiras satildeo loteamentos e conjunto habitacionais irregulares eou clandestinos favelas corticcedilos casa dos fundos ocupaccedilotildees de aacutereas puacuteblicas nas beiras de rios

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O crescimento desordenado das cidades e o processo de favelizaccedilatildeo tecircm avivado grande atenccedilatildeo e discussatildeo acerca dos instrumentos de proteccedilatildeo e defesa do bem-estar dos seus habi-tantes uma vez que a ocupaccedilatildeo desenfreada daacute-se normalmente em aacutereas de risco aacutereas de preservaccedilatildeo ambiental lugares menos valorizados e mais afastados da cidade sem infraestrutura neces-saacuteria como saneamento baacutesico escolas assistecircncia agrave sauacutede trans-porte e lazer para uma vida digna

Normalmente as aacutereas ocupadas irregularmente transfor-maram-se em bairros nos quais predomina a falta de higiene colo-cando os seus moradores sujeitos agraves doenccedilas degradaccedilatildeo social e moradia indigna sem infraestrutura no meio da poeira e da lama

Cabe destacar que a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 traz em seu bojo um marco da ordem urbaniacutestica e prevecirc a poliacutetica de desenvolvimento urbano que ldquotem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantesrdquo (BRASIL on line) conforme dispotildee o seu artigo 182

Em 2001 foi aprovado o Estatuto da Cidade (Lei nordm 102572001) que regulamenta a poliacutetica urbana no Brasil (artigos 182 e 183 da Constituiccedilatildeo Federal) e apresenta-se ldquocomo suporte juriacutedico para a realizaccedilatildeo do planejamento urbano e para a accedilatildeo dos governos municipais traccedilando as diretrizes necessaacuterias para o planejamento e para a conduccedilatildeo do processo de gestatildeo das cida-desrdquo (DIAS 2012 p 43) garantindo qualidade de vida aos habi-tantes e sustentabilidade agrave existecircncia da cidade

O papel do Poder Puacuteblico eacute de grande importacircncia por as-sumir a responsabilidade de criar acesso agrave moradia da populaccedilatildeo de baixa renda e natildeo permitir a criaccedilatildeo de novos loteamentos ir-regulares os quais natildeo tecircm os padrotildees miacutenimos exigidos por lei com a implantaccedilatildeo de serviccedilos baacutesicos e toda infraestrutura como ruas e sistema de drenagem aacutegua encanada serviccedilos de esgoto e coleta de lixo creches e escolas hospitais e etc

Desse modo eacute necessaacuterio que o Poder Puacuteblico elabore poliacuteticas de desenvolvimento urbano que facilitem o acesso agrave mo-

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radia digna e adequada num meio ambiente urbano equilibrado e preservado para as presentes e futuras geraccedilotildees garantindo o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade o bem-estar e a sadia qualidade de vida de seus habitantes

Contudo em que pesem as legislaccedilotildees que garantem o acesso agrave moradia digna em Caacuteceres nos anos 90 ocorreu a ocupa-ccedilatildeo irregular da aacuterea da Empresa Mato-grossense de Pesquisa As-sistecircncia e Extensatildeo Rural - SA (EMPAER-MT)3 instituiacuteda como bairro Jardim das Oliveiras e conhecido popularmente por EMPA pela populaccedilatildeo de baixa renda cacerense que se deu em razatildeo do deacuteficit de moradias existentes no municiacutepio ou seja pela falta de acesso agrave moradia Com a invasatildeo do local houve a construccedilatildeo de moradias precaacuterias pelos ocupantes da aacuterea

Assim o nosso objetivo neste trabalho eacute analisar a ocu-paccedilatildeo irregular ocorrida no bairro Jardim das Oliveiras antigo EMPA no municiacutepio de CaacuteceresMT bem como verificar a situa-ccedilatildeo do direito e acesso agrave moradia dos habitantes

O direito agrave moradia como direitos humanos

O direito agrave moradia eacute um dos nuacutecleos que permite o alcan-ce da dignidade da pessoa humana razatildeo pela qual foi inserido no rol dos direitos humanos desde a proclamaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos em 1948 inaugurando uma nova dimensatildeo de direitos sociais em prol de uma vida digna essenciais ao pleno reconhecimento de sua importacircncia como direito baacutesico e essencial agrave vida humana

Em 1966 foi aprovado o principal documento de proteccedilatildeo aos direitos sociais no acircmbito das Naccedilotildees Unidas o Pacto Interna-cional de Direitos Econocircmicos Sociais e Culturais ldquoquando pela primeira vez o termo moradia surgiurdquo (SOUZA 2013 p 56)

O Pacto Internacional de Direitos Econocircmicos Sociais e

3 Empresa Mato-Grossense de Pesquisa Assistecircncia e Extensatildeo Rural - SA eacute uma socie-dade de economia mista vinculada agrave Secretaria de Agricultura e Assuntos Fundiaacuterios do Estado de Mato Grosso dotada de personalidade juriacutedica de direito privado com patrimocirc-nio proacuteprio e autonomia administrativa e financeira estabelecida em Cuiabaacute-MT

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Culturais de 1966 em seu artigo 11 prevecirc que ldquoos Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um niacutevel de vida adequado para si proacuteprio e para sua famiacutelia inclusive agrave alimentaccedilatildeo vestimenta e moradia adequadas assim como uma melhoria contiacutenua de suas condiccedilotildees de vidardquo (ONU 1966)

Jaacute em 1976 foi realizada em Vancouver no Canadaacute a pri-meira Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Assentamentos Urba-nos que adotou a Declaraccedilatildeo sobre Assentamentos Humanos de Vancouver na qual o olhar sobre a habitaccedilatildeo e a moradia foi feito na perspectiva dos assentamentos humanos (human settlements)

As razotildees que motivaram a realizaccedilatildeo da Conferecircncia es-tatildeo expressas na Declaraccedilatildeo de Vancouver sobre os Assentamen-tos Humanos que apresenta os princiacutepios gerais e propostas para accedilotildees efetivas no sentido de melhorar a qualidade de vida dos in-diviacuteduos nos assentamentos humanos e ainda refere-se agraves peacutessi-mas condiccedilotildees de vida e agraves dificuldades em satisfazer as necessi-dades baacutesicas dos indiviacuteduos como emprego moradia serviccedilos de sauacutede educaccedilatildeo e recreaccedilatildeo e as aspiraccedilotildees condizentes com os princiacutepios da dignidade humana (GOMES 2005)

A Declaraccedilatildeo de Vancouver detalha os assentamentos hu-manos e destaca o problema para melhorar a qualidade de vida dos indiviacuteduos e traz a moradia como elemento indispensaacutevel do programa de accedilatildeo e poliacutetica dos Estados para uma vida digna de seus indiviacuteduos

Merece destaque a Agenda 21 adotada na Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento rea-lizada no Rio de Janeiro em 1992 que em seu capiacutetulo VII item 6 prevecirc o direito de ldquoacesso a uma habitaccedilatildeo sadia e segura eacute es-sencial para o bem-estar econocircmico social psicoloacutegico e fiacutesico da pessoa humana e deve ser parte fundamental das accedilotildees de acircmbito nacional e internacionalrdquo (SAULE JUNIOR 1999 p 82)

Em 1996 um importante instrumento internacional so-bre o direito agrave moradia foi inaugurado e adotado na Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Assentamentos Humanos ndash Habitat II realizada em Istambul a Agenda Habitat ldquoque teve como temas

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globais a Adequada Habitaccedilatildeo para Todos e o Desenvolvimento de Assentamentos Humanos Sustentaacuteveis em um Mundo em Ur-banizaccedilatildeordquo (Idem)

A Agenda Habitat estabelece que o direito agrave moradia com-preenda a habitaccedilatildeo adequada sadia acessiacutevel e disponiacutevel segu-ra protegida com a inclusatildeo de serviccedilos baacutesicos como aacutegua ener-gia saneamento baacutesico coleta de lixo e etc baseada no bem-estar e melhor qualidade de vida para seus habitantes

Assim o direito agrave moradia foi expressamente reconheci-do como um direito humano incluiacutedo no rol dos direitos sociais e que tem por finalidade garantir um niacutevel de vida adequado ao ser humano e sua famiacutelia assim como uma melhoria contiacutenua das condiccedilotildees de vida

O Brasil reconheceu a importacircncia do direito de acesso agrave moradia quando inseriu o direito agrave moradia na Constituiccedilatildeo Fe-deral com a Emenda Constitucional nordm 262000 como direito so-cial fundamental E ainda o Estatuto da Cidade ndash Lei Federal nordm 102572001 ndash que prevecirc o direito agrave moradia como sendo um dos objetivos da poliacutetica urbana

Do mesmo modo no acircmbito do municiacutepio de CaacuteceresMT as diretrizes e os objetivos previstos na Constituiccedilatildeo Federal e no Estatuto da Cidade foram contemplados no Plano Diretor do Municiacutepio ndash Lei Complementar Municipal nordm 902010 que em seu art 81 inciso VI garante ldquoo acesso agrave moradia digna com a amplia-ccedilatildeo da oferta de habitaccedilatildeo para as faixas de renda meacutedia e baixardquo (CAacuteCERES Lei complementar nordm 90 2010)

No entanto diante da realidade brasileira e cacerense haacute um descompasso uma vez que eacute assegurado o direito agrave moradia como sendo indispensaacutevel agrave vida humana poreacutem a populaccedilatildeo estaacute longe de gozaacute-lo e de ter acesso agrave moradia digna o que vere-mos a seguir

O deacuteficit de moradias e a realidade cacerense

O Brasil enfrenta um dos seus maiores problemas sociais

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o deacuteficit habitacional que hoje estaacute estimado em 6 milhotildees de mo-radias (CBIC 2014) Caacuteceres assim como os demais municiacutepios brasileiros tambeacutem enfrenta seacuterios problemas na aacuterea de habita-ccedilatildeo Em 2011 havia um deacuteficit habitacional em Caacuteceres que chega-va a 8 mil casas (CAacuteCERES 2014)

O municiacutepio de Caacuteceres atualmente tem uma populaccedilatildeo de 87942 habitantes segundo Censo do IBGE-2010 o qual esti-mou que em 2016 estaria com uma populaccedilatildeo de 90881 habitantes sendo que 8707 da populaccedilatildeo de Caacuteceres vivem na aacuterea urbana com incidecircncia de pobreza de 3902 (IBGE estimativa de popu-laccedilatildeo 2016)

O Programa Minha Casa Minha Vida do governo federal instituiacutedo haacute aproximadamente 7 anos tem ofertado aos habitan-tes cacerenses com renda ateacute R$ 160000 o acesso agrave moradia no entanto essa oferta natildeo tem sido suficiente para suprir o deacuteficit habitacional no municiacutepio e segundo o secretaacuterio de Accedilatildeo Social Claudio Henrique Donatoni em 2016 ldquoCaacuteceres ainda possui um deacuteficit habitacional para famiacutelias de baixa renda de aproximada-mente 7 mil moradiasrdquo (TEIXEIRA 2016)

A poliacutetica habitacional no Brasil enfrenta seacuterios proble-mas desde a extinccedilatildeo do Banco Nacional de Habitaccedilatildeo (BNH) em 1986 em razatildeo da descontinuidade do enfrentamento do deacuteficit de moradia pela perda de capacidade de formulaccedilatildeo de poliacuteticas em niacutevel federal e do encolhimento de recursos destinados agraves poliacuteti-cas urbanas A partir de 1988 com a redemocratizaccedilatildeo promovida pela Constituiccedilatildeo Federal o setor habitacional passou a depender da iniciativa municipal (CARDOSO et al 2011)

Segundo Cardoso et al (Idem) ldquoentre 1986 e 2003 a poliacute-tica habitacional em niacutevel federal mostrou fragilidade institucional e descontinuidade administrativa com reduzido grau de planeja-mento e baixa integraccedilatildeo agraves outras poliacuteticas urbanasrdquo

Em Caacuteceres entre os anos 1986 e 2003 natildeo se tem notiacutecias de programas habitacionais com ofertas de moradia agrave populaccedilatildeo de baixa renda tanto que na deacutecada de 90 ocorreram a invasatildeo e a ocupaccedilatildeo da aacuterea da Empresa Mato-grossense de Pesquisa Assis-

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tecircncia e Extensatildeo Rural - SA - EMPAER-MTO bairro Jardim das Oliveiras conhecido popularmente

como EMPA estaacute localizado agrave margem esquerda do Rio Paraguai e nasceu a partir de uma ocupaccedilatildeo irregular em terras doadas pelo Municiacutepio de Caacuteceres-MT agrave Empresa Mato-grossense de Pesquisa Assistecircncia e Extensatildeo Rural - SA - EMPAER-MT mediante escri-tura puacuteblica de doaccedilatildeo de uma aacuterea de 1301873 ha sob matriacutecula nordm 42654 do 1ordm Ofiacutecio - Serviccedilos Notariais e Registrais da Comarca de CaacuteceresMT Todavia apoacutes alguns anos de funcionamento a empresa deixou de realizar suas pesquisas abandonando o local e as instalaccedilotildees o que favoreceu a invasatildeo da aacuterea em razatildeo da falta de oferta de acesso agrave moradia no municiacutepio O bairro EMPA estaacute localizado na periferia do municiacutepio de Caacuteceres e a sua ocupaccedilatildeo inicial foi realizada pela populaccedilatildeo de baixa renda por se tratar de aacuterea abandonada por empresa do Estado situada longe da centra-lidade da cidade

Cabe destacar que somente a partir de 2003 no Brasil ini-ciou ldquoum movimento mais sistemaacutetico para a construccedilatildeo de uma poliacutetica habitacional mais estaacutevelrdquo (CARDOSO et al 2011) Foi criada a Secretaria Nacional de Habitaccedilatildeo no acircmbito do Minis-teacuterio das Cidades com o objetivo de dar sequecircncia ao projeto de moradia com o propoacutesito de reforccedilar o papel estrateacutegico das admi-nistraccedilotildees locais (municipais) articular institucional e financeira-mente com outros niacuteveis de governo a partir do Sistema Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social (Ibidem)

Para se integrar ao novo Sistema Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social os estados e municiacutepios deveriam ldquoaderir agrave es-trutura de criaccedilatildeo de fundos conselhos e planos locais de Habita-ccedilatildeo de Interesse Social (HIS) de forma a garantir sustentabilidade racionalidade e sobretudo a participaccedilatildeo democraacutetica na defini-ccedilatildeo e implementaccedilatildeo dos programas e projetosrdquo (CARDOSO et al 2011 p 2) E a partir da criaccedilatildeo do Fundo Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social ndash FNHIS a possibilidade de repasse de recursos aos municiacutepios e estados para implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo das po-liacuteticas habitacionais

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Segundo Cardoso et al (2011 p 2) ldquoentre 2006 e 2009 fo-ram alocados no FNHIS recursos da ordem de 44 bilhotildees de reais beneficiando mais de 4400 projetosrdquo para investimento habitacio-nal No ano de 2007 foi lanccedilado pelo governo federal o Plano de Aceleraccedilatildeo do Crescimento - PAC com o objetivo de promover o crescimento econocircmico e investimentos em infraestrutura no qual houve previsatildeo de investimentos em habitaccedilatildeo e saneamento ur-bano

No ano de 2008 mesmo com a crise mundial o governo brasileiro sustentou os investimentos puacuteblicos na aacuterea de infraes-trutura com destaque na aacuterea de habitaccedilatildeo em razatildeo do PAC E em marccedilo de 2009 anunciou o Programa Minha Casa Minha Vida com o objetivo de ampliaccedilatildeo do mercado habitacional para aten-dimento familiar com renda de ateacute 10 salaacuterios miacutenimos no qual estabeleceu um patamar de subsiacutedio direto e proporcional agrave renda das famiacutelias (CARDOSO et al 2011)

Assim o Programa Minha Casa Minha Vida foi criado para fomentar a produccedilatildeo habitacional no Brasil para populaccedilatildeo de baixa renda com auxiacutelio e participaccedilatildeo do setor privado con-centrando seus recursos nas accedilotildees de urbanizaccedilatildeo e desenvolvi-mento de assentamentos precaacuterios por orientaccedilatildeo do Ministeacuterio das Cidades como mecanismo de reduccedilatildeo das desigualdades so-cioespaciais

Em Caacuteceres a partir de 2009 iniciou-se uma poliacutetica habi-tacional com oferta de moradia agrave populaccedilatildeo de baixa renda com a implementaccedilatildeo do Programa Minha Casa Minha Vida no entanto a demanda por moradia estaacute longe de ser suprida uma vez que ainda haacute um deacuteficit habitacional de 7 mil moradias (TEIXEIRA 2016)

Vale ressaltar que a moradia compreendida aleacutem de mero teto deve ser digna e abarcar a integraccedilatildeo com a cidade em seu en-torno com disponibilidade de infraestrutura urbana e acesso aos serviccedilos puacuteblicos como oportunidades de emprego profissionali-zaccedilatildeoeducaccedilatildeo seguranccedila transporte acesso agrave justiccedila a existecircn-cia de aacutereas de lazer e outros que se caracterizam como inclusatildeo

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ao direito agrave cidade e ao exerciacutecio de cidadaniaA partir do estudo realizado observou-se que no Bairro

EMPA natildeo uma haacute integraccedilatildeo do bairro com a cidade os mora-dores satildeo privados de diversos serviccedilos puacuteblicos e infraestrutura baacutesica como coleta de lixo aacutegua tratada ldquono bairro existe apenas uma escola municipal que fornece o ensino fundamental sendo assim apoacutes terminar o ensino fundamental o estudante tem que procurar outra escola que fica distante para terminar o ensino meacute-diordquo (COSTA et al 2014) e natildeo houve uma preocupaccedilatildeo do Poder Puacuteblico em realizar a regularizaccedilatildeo fundiaacuteria da aacuterea

Segundo Coy et al (1994 p 91) em Caacuteceres nos depara-mos com

Um desenvolvimento completamente desordenado no contexto urbano causado pelo processo migratoacute-rio e pela expulsatildeo do homem do campo para a ci-dade E assim grandes aacutereas urbanizadas surgiram de invasotildees e de grilagem e mais de 50 dos lotes urbanos particulares em Caacuteceres natildeo tem documen-tos nenhum tiacutetulo somente posse

De acordo com Dan (2010 p 94) ldquoa urbanizaccedilatildeo reflete determinadas relaccedilotildees sociais assim como as contradiccedilotildees da eco-nomia de mercado e tambeacutem as desigualdades sociais marcadas pela estratificaccedilatildeo e pela produccedilatildeo setorizada do espaccedilo urbanordquo

Verifica-se que o espaccedilo urbano cacerense eacute fragmentado e explorado com contradiccedilotildees entre abundacircncia e escassez ricos e pobres centralidade e periferia havendo portanto uma enorme desigualdade social e falta de acesso agrave moradia digna

Para Santin e Mattia (2007 p 2)

A ocupaccedilatildeo veloz e desordenada das cidades gerou entre outros problemas como a deterioraccedilatildeo do am-biente urbano desorganizaccedilatildeo social falta de habi-taccedilatildeo desemprego loteamentos clandestinos sem saneamento baacutesico muitos em aacutereas de preservaccedilatildeo ambiental construccedilotildees em desacordo com as nor-mas municipais atividades comerciais invadindo

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aacutereas residenciais sem respeito agraves regras de zonea-mento traacutefego intenso falta de ruas pavimentadas inviabilizando o acesso da poliacutecia de ambulacircncias da coleta de lixo ausecircncia de iluminaccedilatildeo puacuteblica Enfim uma cadeia de problemas que se constituem em consequecircncia da urbanizaccedilatildeo desordenada

Deste modo eacute necessaacuterio que o Poder Puacuteblico crie poliacuteti-cas puacuteblicas que estabeleccedilam nos dizeres de Milton Santos (2007 p 41) ldquoos alicerces de um espaccedilo verdadeiramente humano de um espaccedilo que possa unir os homens para e por seu trabalho mas natildeo para em seguida dividi-los em classes em exploradores e ex-ploradosrdquo

Emergem assim a necessidade de integraccedilatildeo e a conver-gecircncia das poliacuteticas puacuteblicas e planejamento urbano a partir de atividades e responsabilidades sociais voltadas agrave moradia e agrave cons-truccedilatildeo da qualidade de vida urbana nas periferias como eacute o caso do EMPA para a promoccedilatildeo da sustentabilidade do espaccedilo urbano e na construccedilatildeo de uma cidade mais justa

CONCLUSAtildeO

O Poder Puacuteblico deve buscar a implementaccedilatildeo das dimen-sotildees fundamentais propostas pelo Estatuto da Cidade para a con-solidaccedilatildeo da ordem constitucional de desenvolvimento urbano na elaboraccedilatildeo de uma poliacutetica urbana que ordene e discipline a ocu-paccedilatildeo do espaccedilo a partir de uma gestatildeo democraacutetica e de acesso agrave moradia contribuindo para a qualidade de vida dos habitantes da cidade

Eacute preciso investimento puacuteblico no acesso agrave moradia digna na regularizaccedilatildeo fundiaacuteria urbana na infraestrutura entre outros para evitar as mazelas sociais e conflitos relacionados ao planeja-mento gestatildeo propriedade apropriaccedilatildeo e uso do solo nas aacutereas urbanas como ocorreu no caso do bairro EMPA

Deste modo o desafio maior para a soluccedilatildeo dos problemas urbanos enfrentados em Caacuteceres natildeo se refere somente agrave legisla-

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ccedilatildeo mas agrave formulaccedilatildeo de estrateacutegias e elaboraccedilatildeo de poliacuteticas puacute-blicas mais eficazes que garantam o acesso de todos ao mercado habitacional constituindo planos e programas habitacionais que atendam agrave populaccedilatildeo de baixa renda que natildeo tem acesso agrave mora-dia e vive em condiccedilotildees precaacuterias de habitabilidade

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PROVA NO HOMICIacuteDIO SEM CADAacuteVER

Gabrielle Vidrago de Souza Machado1

Solange Teresinha Carvalho Pissolato2

RESUMO Este estudo objetiva demonstrar a possibilidade do pronunciamento e condenaccedilatildeo do agente pela praacutetica do crime de homiciacutedio sua materialidade e quais provas poderatildeo ser utilizadas no decorrer do processo mesmo tendo a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo real do fato e abordar a importacircncia das provas no decorrer do processo penal pois satildeo elas que levaratildeo agrave descoberta da verdade real Foi realizada pesquisa bibliograacutefica leitura da legislaccedilatildeo de doutrinas artigos e jurisprudecircncias Destacou-se ainda o estudo de dois julgados de crime de homiciacutedio sem que o cadaacutever fosse encontrado O que estaacute em questatildeo eacute o modo de provar que o crime realmente aconteceu pois quando natildeo haacute o corpo da viacutetima que no caso do homiciacutedio eacute a materialidade do crime impossibilitando a realizaccedilatildeo do exame de corpo de delito direto surge entatildeo a possibilidade da utilizaccedilatildeo de outros meios de prova ou seja a realizaccedilatildeo do exame de corpo de delito indireto que eacute obtido atraveacutes de testemunhas somadas aos vestiacutegios deixados pelo crime Conclui-se que a inexistecircncia do cadaacutever natildeo poderaacute deixar o reacuteu impune podendo ele ser denunciado pronunciado e posteriormente condenado pela praacutetica do crime

PALAVRAS-CHAVE Provas Crime material Exame de corpo de delito

ABSTRACT This study aimes to demonstrate the possibility of pronouncing and condemning the perpetrator for the homicide crime its materiality and which evidence may be used during the process even though the absence of the corpse for actual evidence of the fact and addresse the importance of evidence during the course of criminal proceedings since they are the ones that will lead

1 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Diamantino-MT2 Professora Mestranda do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Diamantino-MT

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to the discovery of the real truth A bibliographical research was carried out the reading of doctrines articles and jurisprudence It was also highlighted the study of two felony murder trials without the corpse being found What is at issue is the way of proving that the crime really happened because when there is not the body of the victim that in the case of the murder is the materiality of the crime making it impossible to carry out the examination of a direct crime body then the possibility of The use of other means of proof that is the conduct of the examination of an indirect offense that is obtained through witnesses added to the traces left by the crime It is concluded that the non-existence of the corpse cannot leave the defendant unpunished being able to be denounced pronounced and later condemned by the practice of the crime

KEYWORDS Evidence Crime material Examination of corps of crime

INTRODUCcedilAtildeO

A preocupaccedilatildeo deste trabalho centrou-se na possibilidade de deixar algueacutem impune de responsabilizaccedilatildeo no crime de homi-ciacutedio diante da ausecircncia do corpo da viacutetima para comprovar a ma-terialidade do crime Nesse cenaacuterio surgem as chamadas provas do crime A prova material do homiciacutedio se mostra relevante para que haja a condenaccedilatildeo do agente e ainda para comprovaccedilatildeo do de-lito Quando nos referimos ao crime de homiciacutedio haacute uma grande repercussatildeo na sociedade visto que eacute o delito que desperta maior interesse na populaccedilatildeo pois se trata do bem mais precioso que o homem possui a vida

As discussotildees surgem devido agrave ausecircncia do cadaacutever pois o crime de homiciacutedio se consubstancia no exame de corpo de delito direto e por consequecircncia no respectivo laudo que o atesta

O presente artigo tem por escopo analisar com breves consideraccedilotildees tal situaccedilatildeo visto que de um lado temos os prin-ciacutepios do Estado Democraacutetico de Direito que satildeo abalados diante da incerteza de uma condenaccedilatildeo por outro lado surge o receio de

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deixar impune o agente que comete um crime tatildeo grave No caso em questatildeo questiona-se se eacute possiacutevel juridicamente processar o reacuteu sem o cadaacutever pois o delito qual seja o homiciacutedio exige dois aspectos para a denuacutencia indiacutecio de autoria e a materialidade A materialidade seria no caso o cadaacutever mas eis que surge a duacutevida como condenar algueacutem por homiciacutedio sem o corpo da viacutetima A pergunta que se faz eacute seria possiacutevel ficar um acusado impune pela inexistecircncia de cadaacutever em um crime de homiciacutedio

Importante destacar que muitas pessoas leigas na aacuterea juriacutedica natildeo concordam com o fato de um cidadatildeo ser condena-do por um crime em que natildeo haacute prova concreta da sua existecircncia Poreacutem a importacircncia do presente estudo eacute justamente demons-trar que se natildeo houvesse a possibilidade de condenaccedilatildeo em nosso ordenamento juriacutedico em muito facilitaria para o agente planejar e praticar o delito de forma que o corpo natildeo aparecesse para com-provaccedilatildeo do crime Contudo a robustez das provas pode levar o culpado agrave condenaccedilatildeo

O estudo teve como aporte a realizaccedilatildeo de uma pesquisa bibliograacutefica leitura de doutrinas artigos e jurisprudecircncias Des-tacou-se ainda o estudo de dois julgados brasileiros de crime de homiciacutedio sem que o cadaacutever fosse encontrado objetivando assim descrever a importacircncia das provas no decorrer do processo penal pois satildeo elas os meios de se descobrir a verdade real do crime O que eacute relevante destacar eacute o modo de provar que o crime realmente ocorreu independentemente da existecircncia do cadaacutever oportuni-zando assim a condenaccedilatildeo do agente delituoso

DA PROVA NO PROCESSO PENAL

Conceito

Processualmente falando a prova eacute o meio eficaz para se chegar agrave verdade sendo tambeacutem a forma de o juiz formar sua con-vicccedilatildeo a respeito da existecircncia ou inexistecircncia de um fato para que se possa assim decidir e prolatar a sentenccedila mais justa possiacutevel

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Nucci (2007 p 335) menciona sobre o tema

O termo prova origina-se do latim ndash probatio ndash que significa ensaio verificaccedilatildeo inspeccedilatildeo exame argu-mento razatildeo aprovaccedilatildeo ou confirmaccedilatildeo Dele deri-va o verbo provar ndash probare ndash significando ensaiar verificar examinar reconhecer por experiecircncia aprovar estar satisfeito com algo persuadir algueacutem a alguma coisa ou demonstrar

Assim o termo ldquoprovardquo trata de todos os elementos capa-zes de demonstrar a existecircncia ou natildeo de determinado fato Ressal-ta-se ainda seu valor por ser o meio de formaccedilatildeo da convicccedilatildeo do juiz que iraacute utilizar todas as provas encontradas como base para fundamentaccedilatildeo da sentenccedila Em consonacircncia com a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 todas as decisotildees judiciais devem ser fundamen-tadas conforme a disposiccedilatildeo do artigo 93 inciso IX

Objeto da prova

A finalidade da prova no direito processual como jaacute ex-posto acima eacute a formaccedilatildeo da convicccedilatildeo do juiz Conceitua-se como objeto da prova todos os fatos acontecimentos que devem ser re-velados no processo a fim de que o juiz possa utilizaacute-los como ins-trumento de autenticidade para resolver o litiacutegio e atribuir valor a cada fato

Ocircnus da prova

A regra do Coacutedigo de Processo Penal (CPP) eacute a de que o ocircnus da prova incumbe a quem o alega O Art 156 desse Coacutedigo assim dispotildee ldquoA prova da alegaccedilatildeo incumbiraacute a quem a fizer mas o Juiz poderaacute no curso da instruccedilatildeo ou antes de proferir sentenccedila determinar de ofiacutecio diligecircncias para dirimir duacutevidas sobre o pon-to relevanterdquo

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Sujeitos da prova

No que se refere ao sujeito a prova poderaacute ser real (coisa) ou pessoal Diz que se refere ao pessoal quando a prova resultar da vontade racional do indiviacuteduo Nesse caso necessitaraacute de uma declaraccedilatildeo da pessoa com o propoacutesito de estampar a verdadeira realidade dos fatos A prova real equivale agrave atestaccedilatildeo que adveacutem da proacutepria coisa constitutiva da prova como ferimento o projeacutetil baliacutestico (LIMA 2013)

Do valor da prova

No tocante aos efeitos e valor da prova esta poderaacute ser plena (quando se tratar daquelas provas sem sombra de duacutevida que o magistrado ao deparar com tais provas teraacute certeza de sua veracidade) ou natildeo plena e tambeacutem chamada de indiciaacuteria (quan-do o juiz ao apreciaacute-las verifica que tem a possibilidade de ser uma prova veriacutedica mas natildeo haacute uma certeza) Para Taacutevora (2013 p 348) ldquoeacute o grau de certeza gerado pela apreciaccedilatildeo da provardquo

a) Plena - Prova convincente e verossiacutemilb) Indiciaacuteria ou natildeo plena ndash Natildeo haacute certeza sobre o fato e

satildeo tratadas como indiacutecios Podemos ver que haacute uma ligaccedilatildeo desses efeitos da prova

com os dois princiacutepios o princiacutepio do in dubio pro reo e o in duacutebio pro societate

Quando por meio de uma prova o juiz natildeo conseguir ob-ter um juiacutezo real sobre o fato ser veriacutedico ou natildeo prevalecendo a incerteza ele deveraacute absolver o reacuteu e nesse caso surge o princiacutepio do in duacutebio pro reo Todavia se o juiz ao averiguar as provas tiver um juiacutezo de esperanccedila e a hipoacutetese dela ser veriacutedica ele poderaacute usar o princiacutepio do in duacutebio pro societate podendo por exemplo decretar a prisatildeo preventiva de algueacutem para proteger os interesses da sociedade em razatildeo da hipoacutetese de o fato ser verdadeiro

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Sistema de valoraccedilatildeo das provas

A apreciaccedilatildeo das provas foi evoluindo conforme o costu-me e o regime poliacutetico de cada povo Importante salientar que esse sistema se formou e se amoldou conforme os anos (DINAMAR-CO 2001)

Nucci (2015 p 345) esclarece sobre os trecircs sistemasa) livre convicccedilatildeo que eacute o meacutetodo concernente agrave va-loraccedilatildeo livre ou agrave intima convicccedilatildeo do magistrado natildeo haacute necessidade de motivaccedilatildeo para as decisotildees sistema adotado no Tribunal do Juacuteri b) prova legal cujo meacutetodo eacute ligado agrave valoraccedilatildeo taxada ou tarifa-da da prova c) persuasatildeo racional que eacute o meacutetodo misto tambeacutem chamado de convencimento racional livre motivado apreciaccedilatildeo fundamentada ou prova fundamentada

Trata-se do sistema adotado majoritariamente pelo pro-cesso penal brasileiro com fundamento na Constituiccedilatildeo Federal (art 93 inciso IX)

Princiacutepios que norteiam a prova

Dispotildee Nucci (2007 p76) nesse sentido ldquoPrinciacutepio juriacute-dico quer dizer um postulado que se irradia por todo o sistema de normas fornecendo um padratildeo de interpretaccedilatildeo integraccedilatildeo conhecimento e aplicaccedilatildeo do direito positivo estabelecendo uma meta maior a seguirrdquo Dentre os princiacutepios estatildeo Iniciativa das Partes Contraditoacuterio e Ampla Defesa Juiz Natural Verdade Real Publicidade Presunccedilatildeo de Inocecircncia Duplo Grau de Jurisdiccedilatildeo

Lima (2013) faz menccedilatildeo ao princiacutepio da proporcionalida-de da comunhatildeo da prova da autorresponsabilidade das partes da oralidade e liberdade probatoacuteria

OS MEIOS DE PROVA

Os meios de prova satildeo todas as provas que podem ser em-

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pregadas dentro do processo excetuando-se as natildeo permitidas por lei Logo a prova iliacutecita natildeo pode ingressar nos autos do processo A sanccedilatildeo prevista na Constituiccedilatildeo para a prova reconhecida iliacutecita eacute a sua inadmissibilidade devendo ser desentranhada dos autos (LIMA 2013)

Taacutevora (2013 p 349) descreve que ldquoOs meios de prova satildeo os recursos de percepccedilatildeo da realidade e formaccedilatildeo do convenci-mento Eacute tudo aquilo que pode ser utilizado direta ou indireta-mente para demonstrar o que se alega no processordquo

As provas que evidenciam o fato arrolado no Coacutedigo de Processo Penal natildeo satildeo taxativas e sim exemplificativas se fossem taxativas poderiam conter o culpado de trazer ao processo con-cretas provas que teriam um valor relevante em seu julgamento ademais poderia prejudicar justamente os princiacutepios da verdade real o princiacutepio do contraditoacuterio ampla defesa e o princiacutepio da liberdade das provas

Deste modo esclarece Mirabete (2006 p 252)

Como no processo penal brasileiro vige o princiacutepio da verdade real natildeo haacute limitaccedilatildeo dos meios de pro-va A busca da verdade material ou real que preside a atividade probatoacuteria do juiz exige que os requi-sitos da prova em sentido objetivo se reduzam ao miacutenimo de modo que as partes possam utilizar-se dos meios de prova com ampla liberdade Visando o processo penal o interesse puacuteblico ou social de re-pressatildeo ao crime qualquer limitaccedilatildeo agrave prova preju-dica a obtenccedilatildeo da verdade real e portanto a justa aplicaccedilatildeo da lei

Costuma-se relatar que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto aos meios de prova quando se pretende alcanccedilar a verdade real visto que a investigaccedilatildeo tem a necessidade de ser a mais vasta possiacutevel visan-do como propoacutesito principal conseguir a veracidade do fato da autoria e das circunstacircncias do crime Contudo a liberdade proba-toacuteria natildeo eacute absoluta uma vez que vamos nos deparar com restri-ccedilotildees prescritas pela lei para determinados casos

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Para que ocorra a condenaccedilatildeo eacute necessaacuterio ter a certeza quanto agrave materialidade do crime e sua autoria Desta forma o ma-gistrado busca saber o que realmente ocorreu de que forma ocor-reu quem incorreu para a infraccedilatildeo e todas as suas circunstacircncias Vigora assim no processo penal o princiacutepio da verdade real

Defende Tourinho Filho (2011 p 62)

Melhor seria falar de ldquoverdade processualrdquo ou ldquover-dade forenserdquo ateacute porque por mais que o Juiz pro-cure fazer a reconstruccedilatildeo histoacuterica do fato objeto do processo muitas e muitas vezes o material de que ele se vale poderaacute conduzi-lo a uma ldquofalsa verdade realrdquo

Em suma o ldquoprinciacutepio da verdade real significa pois que o magistrado deve buscar provas tanto quanto as partes natildeo se contentando com o que lhe eacute apresentado simplesmenterdquo (NUC-CI 2008 p 105)

Espeacutecies de provas liacutecitas

Possuiacutemos em nosso ordenamento juriacutedico as provas que natildeo contrariam o que a lei estabelece e nem mesmo os bons cos-tumes Abaixo veremos as provas que poderatildeo ser produzidas e posteriormente aceitas

Da declaraccedilatildeo do ofendido

Ofendido eacute o sujeito passivo do crime o titular do direito ofendido Somente participaraacute e teraacute o direito de depor no proces-so penal se for pessoa fiacutesica

O artigo 201 do Coacutedigo de Processo Penal preceitua ldquoSem-pre que possiacutevel o ofendido seraacute qualificado e perguntado sobre as circunstacircncias da infraccedilatildeo quem seja ou presuma ser o seu au-tor as provas que possa indicar tomando-se por termo as suas declaraccedilotildeesrdquo

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Das testemunhas

A prova testemunhal tem sua previsatildeo expressa no artigo 202 do Coacutedigo de Processo Penal

Segundo o ilustre doutrinador Norberto Avena (2011 p 319) ldquo[] Pode testemunhar em juiacutezo qualquer indiviacuteduo que tenha condiccedilotildees de perceber os acontecimentos ao seu redor e narrar o resultado destas suas percepccedilotildees independente de sua integridade mental idade e condiccedilotildees fiacutesicasrdquo

Como regra contida no artigo 342 do CP e 206 do CPP as pessoas tecircm o dever de testemunhar Quando a testemunha for intimada e natildeo comparecer sem motivo justificaacutevel o artigo 218 do CPP autoriza a sua conduccedilatildeo de forma coercitiva conforme deter-minaccedilatildeo do juiz e se sujeita a um processo-crime por desobediecircn-cia

O Artigo 206 do aludido Coacutedigo de Processo Penal precei-tua as pessoas que estatildeo dispensadas de depor tais como os pa-rentes mais proacuteximos como ascendente ou descendente o afim em linha reta o cocircnjuge ainda que desquitado o irmatildeo e o pai a matildee ou o filho adotivo do acusado natildeo satildeo obrigados a depor mas se natildeo for possiacutevel solucionar o crime por outro meio de prova eles poderatildeo prestar depoimento contudo seratildeo ouvidos como meros informantes do juiacutezo ou declarantes sendo ainda dispensados de prestar compromisso da verdade real dos fatos

Jaacute o art 207 do CPP nos remete agraves pessoas que satildeo proi-bidas de depor se refere agraves pessoas que devem guardar sigilo em razatildeo de funccedilatildeo ministeacuterio oficio ou profissatildeo assim dispotildee ldquoSatildeo proibidas de depor as pessoas que em razatildeo de funccedilatildeo ministeacuterio ofiacutecio ou profissatildeo devam guardar segredo salvo se desobrigadas pela parte interessada quiserem dar o seu testemunhordquo

Periacutecia

A Prova Pericial estaacute prevista nos artigos 158 a 184 do Coacute-digo de Processo Penal Compreende-se por periacutecia o exame con-duzido por pessoa que possua certos entendimentos teacutecnicos cien-

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tiacuteficos artiacutesticos ou praacuteticos sobre ocorrecircncias eventualidades ou condiccedilotildees pessoais ligados ao fato condenaacutevel com o propoacutesito de provaacute-los

Na hipoacutetese do exame do corpo de delito assim como em outras periacutecias a lei prevecirc no artigo 159 do Coacutedigo de Processo Penal que as regras satildeo as mesmas e deveratildeo ser realizadas por um perito oficial ldquoexame de corpo de delito e outras periacutecias seratildeo realizados por perito oficial portador de diploma de curso supe-riorrdquo

Exame de corpo de delito

No Sistema Juriacutedico Brasileiro possuiacutemos duas espeacutecies de crimes aqueles que deixam vestiacutegios tambeacutem chamados de fa-tos permanentes e os delitos que natildeo deixam vestiacutegios chamados de fatos transeuntes

Como bem preceitua Gomes (1978 p31) ldquoas infraccedilotildees penais podem deixar vestiacutegios (delicta facti permanentis) como o homiciacutedio a lesatildeo corporal e natildeo deixar vestiacutegios (delicta facti tran-seuntes) como as injuacuterias verbais o desacatordquo

Quando se fala em prova pericial importante lembrar-se de uma prova que possui grande valor no processo penal que eacute a prova conhecida como exame de corpo de delito Esse exame estaacute previsto no artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal e trata- se do conjunto de vestiacutegios deixados pelo crime

Quando o crime deixar vestiacutegios materialmente compro-vados deveraacute ser realizado o exame de corpo de delito Essa pro-va eacute obrigatoacuteria e indispensaacutevel e sua realizaccedilatildeo eacute imposta pela lei

Taacutevora e Alencar (2013 p417) conceituam corpo de delito como

o conjunto de vestiacutegios materiais deixados pela in-fraccedilatildeo penal seus elementos sensiacuteveis a proacutepria materialidade em suma aquilo que pode ser exami-nado atraveacutes dos sentidos Ex a mancha de sangue deixado no local da infraccedilatildeo as lesotildees corporais a janela arrombada no crime de furto etc Jaacute o exame

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de corpo de delito eacute a periacutecia que tem por objeto o proacuteprio corpo de delito

Imprescindiacutevel destacar que o exame de corpo de delito deveraacute ser efetuado por um perito o mais raacutepido possiacutevel para que natildeo desapareccedilam os vestiacutegios deixados pelo ato criminoso

Nesse sentido preceitua Gomes (1978 p 32) que ldquoo corpo de delito deve realizar-se o mais rapidamente possiacutevel logo que se tenha conhecimento da existecircncia do fatordquo

Mirabete (2006 p 265) diz que exame de corpo de delito eacute ldquoo conjunto de vestiacutegios materiais deixados pela infraccedilatildeo penal a materialidade do crime aquilo que se vecirc apalpa sente em suma aquilo que pode ser examinado atraveacutes dos sentidosrdquo

Quando o crime deixar vestiacutegios materialmente compro-vados deveraacute ser realizado o exame de corpo de delito Essa pro-va eacute obrigatoacuteria e indispensaacutevel e sua realizaccedilatildeo eacute imposta pela lei

Prescreve o artigo 158 do Coacutedigo Penal ldquoquando a infra-ccedilatildeo deixar vestiacutegios seraacute indispensaacutevel o exame de corpo de delito direto ou indireto natildeo podendo supri-lo a confissatildeo do acusadordquo

A ausecircncia do exame de corpo de delito ao ser decretada a sentenccedila poderaacute ocasionar nulidade natildeo sendo nem a confis-satildeo do acusado suscetiacutevel de substituiccedilatildeo O Coacutedigo de Processo Penal todavia conteacutem uma observaccedilatildeo em seu artigo 167 sendo a ausecircncia do exame supriacutevel pela prova testemunhal O que ocor-re neste caso eacute o exame de corpo de delito indireto Sendo assim podemos concluir que a confissatildeo natildeo poderaacute suprir o exame de corpo de delito

O artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal nos remete a duas modalidades de exame do corpo de delito o exame direto e o indireto Eacute conceituado direto quando os peritos examinam os vestiacutegios deixados materialmente pelo crime Seraacute indireto aque-le realizado com base nas informaccedilotildees deixadas por testemunhas documentos entre outros referentes ao fato

Em relaccedilatildeo ao artigo 167 do Coacutedigo de Processo Penal quando os vestiacutegios sumirem e natildeo puder ser realizado o exame

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de corpo de delito poderaacute a prova testemunhal suprir-lhe a falta isto eacute o exame indireto poderaacute suprir o direto quando natildeo existir mais vestiacutegios

O artigo 167 do Coacutedigo de Processo Penal existe para im-pedir uma inesperada impunidade pois se natildeo houvesse essa res-salva qualquer pessoa que praticasse um crime poderia fazer com que os vestiacutegios desaparecessem e assim ficar impune

Da acareaccedilatildeo

A acareaccedilatildeo tem sua previsatildeo legal nos artigos 229 e 230 do Coacutedigo de Processo Penal

No processo poderaacute ocorrer o caso de duas ou mais pesso-as narrarem o ato criminoso de forma distinta Em virtude disso o artigo 229 do CPP permite a realizaccedilatildeo da acareaccedilatildeo que eacute ato de colocar frente a frente as pessoas que deram versotildees diferentes a fim de desvendar tal desarmonia

Reconhecimento de pessoas e coisas

O reconhecimento de pessoas e coisas estaacute previsto no arti-go 226 e inserido no tiacutetulo reservado agraves provas do processo penal e tem por finalidade a identificaccedilatildeo de um suspeito ou de um objeto atraveacutes da palavra da viacutetima ou das testemunhas

Interrogatoacuterio do reacuteu

O interrogatoacuterio do reacuteu estaacute previsto nos artigos 185 a 196 do CPP sendo caracterizado como o ato em que o juiz procede agrave oitiva do reacuteu O julgador realiza perguntas ao reacuteu com base na acusaccedilatildeo a ele dirigida

Interrogatoacuterio pode ser definido como um ato persona-liacutessimo em razatildeo de que apenas o indiciado pode ser interrogado ademais eacute ato privativo pois soacute o juiz pode interrogaacute-lo em con-cordacircncia com o art 187 do Coacutedigo de Processo Penal A oralidade do interrogatoacuterio aproxima o acusado do juiz

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Tornaghi (1997 p 365) afirma que

O interrogatoacuterio eacute a grande oportunidade que tem o juiz para num contato direto com o acusado formar juiacutezo a respeito de sua personalidade da sincerida-de de suas desculpas ou de sua confissatildeo do estado drsquoalma em que se encontra da maliacutecia ou da negli-gecircncia com que agiu da sua frieza e perversidade ou de sua nobreza e elevaccedilatildeo eacute ocasiatildeo propiacutecia para estudar- lhe as reaccedilotildees para ver numa primeira ob-servaccedilatildeo se ele entende o carter criminoso do fato e para verificar tudo mais que estaacute ligado ao seu psi-quismo e agrave sua formaccedilatildeo moral

Conforme o artigo 185 do CPP in verbis ldquoO acusado que comparecer perante autoridade judiciaacuteria no curso do processo penal seraacute qualificado e interrogado na presenccedila de seu defensor constituiacutedo ou nomeadordquo

Da confissatildeo

Confissatildeo eacute ato efetuado pelo suposto culpado de consen-tir como veriacutedica a imputaccedilatildeo que lhe foi feita na denuacutencia ou na queixa-crime Ou seja eacute dizer que foi o causador do crime relatado na exordial acusatoacuteria A previsatildeo desta espeacutecie de prova e os dis-positivos que os compotildeem estatildeo previstos nos artigos 197 a 200 do Coacutedigo de Processo Penal

Dos documentos

A prova documental estaacute prevista nos artigos 231 a 238 do Coacutedigo de Processo Penal

Conforme o art 232 do CPP ldquoConsideram-se documentos quaisquer escritos instrumentos ou papeacuteis puacuteblicos ou particula-resrdquo

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Indiacutecios

Os indiacutecios estatildeo previstos no artigo 239 do Coacutedigo de Processo Penal e natildeo satildeo considerados essencialmente como um meio de prova e sim parte de um raciociacutenio

Assim eacute o entendimento de Oliveira (2009 p382)

Na verdade o indicio mencionado no art 239 do CPP natildeo chega a ser propriamente um meio de pro-va Trata-se antes disso da utilizaccedilatildeo de um raciociacute-nio dedutivo para a partir da valoraccedilatildeo da prova de um fato ou de uma circunstacircncia chega-se agrave conclu-satildeo da existecircncia de outro ou de outra

Os indiacutecios natildeo podem ser comparados com as presunccedilotildees conforme os ensinamentos de Nucci (2007 p 468) ldquoas presunccedilotildees natildeo satildeo consideradas como meios de prova pois as presunccedilotildees constituem apenas mera opiniatildeo com base em algo suspeito ou ateacute mesmo algo suposto eacute um processo considerado como dedutivordquo Jaacute atraveacutes de indiacutecios o magistrado poderaacute alcanccedilar um estado de certeza

HOMICIacuteDIO

O crime de homiciacutedio previsto no Coacutedigo Penal tem como finalidade a salvaguarda do bem mais precioso ou seja a vida

A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 ao revelar o perfil poliacutetico constitucional do Brasil (art 1ordm) instituiu o Estado Democraacutetico de Direito que conteacutem os Direitos e as Garantias Fundamentais in-clusive o direito agrave vida que eacute assegurado no artigo 5ordm caput e inciso X no qual se diz que o direito agrave vida eacute inviolaacutevel em razatildeo de sua importacircncia pois sem a vida natildeo haacute o que se falar em dignidade humana e todos os direitos dela decorrentes

O homiciacutedio eacute previsto na parte Especial do Coacutedigo Penal em seu artigo 121 sob a expressatildeo tiacutepica ldquomatar algueacutemrdquo

Considerando a vida o bem juriacutedico mais valioso e o crime que desperta maior interesse da sociedade iremos analisar as suas

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peculiaridades

Do homiciacutedio sem cadaacutever

Haacute muito que se discutir sobre a possibilidade do acusado ser processado e condenado pelo crime de homiciacutedio mesmo com a ausecircncia do corpo para comprovaccedilatildeo real do fato por se tratar o homiciacutedio de um crime material

No caso em questatildeo eacute possiacutevel juridicamente processar o reacuteu sem o corpo pois o delito qual seja o homiciacutedio exige dois aspectos para a denuacutencia indiacutecio de autoria e a materialidade A materialidade seria no caso o cadaacutever mas eis que surge a duacutevida como condenar algueacutem por homiciacutedio sem o corpo da viacutetima

De acordo com o artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal ldquoQuando a infraccedilatildeo deixar vestiacutegios seraacute indispensaacutevel o exame de corpo de delito direto ou indireto natildeo podendo supri-lo a confis-satildeo do acusadordquo Em contrapartida temos o artigo 167 do mesmo Coacutedigo que prevecirc ldquoNatildeo sendo possiacutevel o exame de corpo de de-lito por haverem desaparecido os vestiacutegios a prova testemunhal poderaacute suprir-lhe a faltardquo

Ainda nessa direccedilatildeo possuiacutemos outro inciso contido no artigo 564 do CPP mais especificadamente o inciso III aliacutenea ldquobrdquo que declara ldquohaveraacute nulidade pela falta do exame de corpo de de-lito nos crimes que deixam vestiacutegiosrdquo poreacutem ressaltando o dispos-to no artigo 167 do CPP o qual diz que a testemunha poderaacute suprir a falta do exame direto

Portanto os trecircs artigos acima devem ser interpretados conjuntamente para que natildeo se faccedila uma interpretaccedilatildeo errocircnea no procedimento de qualquer inqueacuterito

O corpo de delito trata-se de um mero meio de prova que poderaacute ser suprido por outros meios de prova visto que natildeo haacute uma hierarquia entre as provas e o que se preza eacute a procura da verdade real ou seja deve-se recorrer aos outros meios passiacuteveis para formar o convencimento sobre o crime

O recebimento da denuacutencia leva em consideraccedilatildeo a prova

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da materialidade mesmo que essa prova seja por um exame do corpo de delito indireto e indiacutecios de autoria ou seja indiacutecios de que a pessoa que estaacute sendo acusada e que apoacutes o recebimento da denuacutencia seraacute reacuteu tem indiacutecios de sua participaccedilatildeo no desapareci-mento daquela pessoa

ESTUDO DE CASOS

Buscou-se analisar dois casos acerca da possibilidade de condenaccedilatildeo pelo crime de homiciacutedio ante a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo do caso O primeiro caso ocorrido em Aragua-ri em MG no ano de 1937 ficou conhecido como o ldquoCaso dos Irmatildeos Navesrdquo e o segundo ocorrido no ano de 2010 com rele-vante repercussatildeo midiaacutetica ficou conhecido como o ldquoCaso do Goleiro Brunordquo

Conforme informaccedilotildees do livro do autor Joatildeo Alamy Fi-lho (1990) o caso dos Irmatildeos Naves trata-se do maior erro judici-aacuterio no qual houve uma condenaccedilatildeo injusta com lastro na rainha das provas que foi uma confissatildeo conseguida mediante tortura dos irmatildeos Sebastiatildeo e Joaquim Naves acusados do homiciacutedio de Benedito o qual decidiu desaparecer do paiacutes por encontrar-se em dificuldades financeiras agravadas pela crise econocircmica da eacutepoca Durante vaacuterios meses os irmatildeos Naves foram submetidos pelo delegado da eacutepoca a vaacuterias torturas e privados de condiccedilotildees miacutenimas de higiene e alimentaccedilatildeo a fim de que confessassem o crime destacando-se que natildeo havia nem corpo nem indiacutecios nem outros meios de prova do homiciacutedio

Diante dessa situaccedilatildeo eles se viram obrigados a assinar o termo que o delegado tanto desejava a confissatildeo Ainda natildeo con-tente o delegado mandou prender os familiares dos acusados que tambeacutem passaram a sofrer torturas constantes

Os irmatildeos passaram por dois julgamentos tendo sempre como acusaccedilatildeo o temido delegado que sempre recorreu da deci-satildeo com recursos diversos Passados 8 anos e 3 meses apoacutes o jul-gamento devido ao bom comportamento dos irmatildeos na prisatildeo

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finalmente foram colocados em liberdade condicionalAnos mais tarde em 1952 a viacutetima aparece viva pois ha-

via decidido desaparecer agrave eacutepoca porque estava endividado e natildeo conseguira adimplir as diacutevidas Em 1953 os irmatildeos foram inocen-tados e entraram com um pedido de indenizaccedilatildeo que soacute foi conse-guido apoacutes 7 anos em 1960

Atualmente deve ser superado o erro judiciaacuterio que teve agrave eacutepoca do caso dos Irmatildeos Naves atraveacutes da busca da materia-lidade indireta O ordenamento juriacutedico admite provas periciais documentais e testemunhais desde que liacutecitas e legiacutetimas

No segundo caso o Caso do Goleiro Bruno as informa-ccedilotildees foram obtidas atraveacutes da Denuacutencia-Processo 0356249-62010 oferecida no ano de 2010 em Contagem-MG envolvendo o go-leiro Bruno do Flamengo um dos iacutedolos das maiores torcidas de futebol do paiacutes Trata-se de um assassinato no qual a viacutetima Eliza Samuacutedio foi executada cruelmente Consta na Denuacutencia que Eliza Samuacutedio iniciou um envolvimento amoroso com o goleiro e apoacutes algum tempo desse episoacutedio revelou estar graacutevida A gravidez levada a termo contrariou as expectativas de Bruno e a viacutetima mediante constantes ameaccedilas do entatildeo goleiro para que realizas-se aborto foi assassinada em 2010

A materialidade formou-se com base na soma de todas as provas um conjunto de indiacutecios especialmente as provas pe-riciais documentais e testemunhais entre elas o depoimentorelato da prova oral que configurou suficiente demonstraccedilatildeo de materialidade do crime de homiciacutedio No inqueacuterito haacute provas teacutec-nicas obtidas atraveacutes de rastreamento de carros e telefonemas do registro do uso de celulares pelas antenas instaladas ao longo do percurso realizado pelos acusados e tambeacutem do que diz respei-to agraves ligaccedilotildees telefocircnicas as quais natildeo deixaram duacutevidas de uma accedilatildeo coordenada Atraveacutes da triangulaccedilatildeo do sinal dos aparelhos celulares foi possiacutevel para os peritos estabelecerem com precisatildeo endereccedilos e horaacuterios dos lugares identificados em cada aparelho de telefone usado e por consequecircncia seu portador quanto agraves provas testemunhais haacute seis depoimentos que indicam que Bruno

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e Eliza estiveram juntos no siacutetio do goleiro nos dias que antecede-ram o crime No que tange agraves provas materiais o sangue encontra-do nos vidros e no banco da picape Range Rover de propriedade do goleiro era da jovem Eliza comprovado pela periacutecia por meio de exames de DNA

Outra peccedila fundamental para a poliacutecia foi o bebecirc Bruni-nho filho de Eliza ter permanecido sem a matildee e que sob os cui-dados da mulher do goleiro teve o seu nome trocado para Ryan Yuri objetivando dificultar sua identificaccedilatildeo e localizaccedilatildeo e foi encontrado posteriormente em posse de estranhos Ainda no que se refere agraves provas documentais foi encontrada uma carta escrita pelo ex-goleiro Bruno detalhando um Plano B no caso de o cerco se fechar sobre ele prescrevendo que o amigo Macarratildeo deveria assumir toda a culpa pelo crime

Entre os indiacutecios mais fortes de que o goleiro comandou uma espeacutecie de ldquooperaccedilatildeordquo para matar Eliza estaacute o sangue en-contrado na Land Rover do goleiro apreendida com um de seus amigos aleacutem de infraccedilotildees de tracircnsito cometidas no Rio de Janeiro e Minas Gerais e o horaacuterio das ligaccedilotildees telefocircnicas de todos os acusados Por meio do cruzamento das informaccedilotildees e das provas periciais a poliacutecia diz ter conseguido remontar o que aconteceu

As evidecircncias mais importantes no entanto satildeo os depoi-mentos contraditoacuterios As duas principais testemunhas que foram o ponto de partida para a prisatildeo dos demais acusados os primos de Bruno Seacutergio Rosa Sales e o adolescente apreendido J muda-ram suas versotildees ao longo das investigaccedilotildees

No caso do ex-goleiro Bruno sabia-se que Eliza estava desaparecida que natildeo fez contato pessoal telefocircnico e-mail natildeo usou cartatildeo de creacutedito nem conta bancaacuteria haacute um viacutedeo em que Eliza diz que sofreu violecircncia para abortar e que se algo lhe acon-tecesse o responsaacutevel seria Bruno comprovou-se que Eliza foi obrigada a tomar comprimidos de origem desconhecida ou seja foi submetida agrave tentativa de aborto haacute prova de que esteve no siacutetio do suspeito com o filho somente a crianccedila apareceu haacute sangue da viacutetima no carro haacute um depoimento do menor Jorge primo de

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Bruno que conta detalhes sobre a morte e o vilipecircndio a confir-maccedilatildeo desse depoimento se deu pela anaacutelise do GPS do carro e pela comprovaccedilatildeo de que Bruno deslocou-se de aviatildeo para Minas Gerais no periacuteodo

Quando natildeo se localiza o corpo da viacutetima o que se utiliza eacute a ldquocerteza moral do crimerdquo e essa se daacute quando todas as circuns-tacircncias demonstram a morte sob pena de ficarmos agrave mercecirc dos criminosos mais perigosos que satildeo aqueles que matam e depois consomem com o corpo apostando na impunidade Vale ressaltar que as provas no Caso do goleiro Bruno foram obtidas atendendo agrave previsatildeo do ordenamento juriacutedico

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

O presente trabalho buscou analisar a possibilidade de pronunciamento e condenaccedilatildeo do agente que comete o crime de homiciacutedio e natildeo se encontra a prova material do crime o cadaacutever

No decorrer do trabalho fez-se estudo dos meios proba-toacuterios permitidos em nosso ordenamento juriacutedico no que concerne aos crimes materiais ou seja aqueles que deixam vestiacutegios

Destacou-se ainda no presente estudo a possibilidade no crime de homiciacutedio de admitir a substituiccedilatildeo da prova direta pelo prova indireta visto que o proacuteprio ordenamento juriacutedico prevecirc essa possiblidade ante a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo do crime poderaacute utilizar-se das provas testemunhais somadas a outros indiacutecios visto que seria injusto deixar algueacutem impune

Socorreu-se do caso do maior erro Judiciaacuterio ou seja o caso dos Irmatildeos Naves que ficou conhecido nacionalmente e que ateacute hoje assombra a decisatildeo dos juiacutezes em casos semelhantes Po-reacutem destaca-se se que a uacutenica prova utilizada no referido caso foi a confissatildeo obtida mediante tortura

Tivemos caso recente que causou grande repercussatildeo na miacutedia o Cso do ex-goleiro Bruno no qual se constatou a existecircncia de vaacuterias provas indiretas que possuiacuteam o condatildeo de conduzir a um desfecho do crime ocorrido mesmo ante a ausecircncia do corpo

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da viacutetima para comprovaccedilatildeo do fatoCertifica-se que a prova testemunhal se somada a outras

provas poderaacute substituir o cadaacutever se for suficiente para compro-var o delito mesmo com a ausecircncia material do corpo

Atraveacutes dos estudos realizados pode-se constatar que a inexistecircncia do corpo da viacutetima natildeo deixa o reacuteu impune podendo ele ser denunciado pronunciado e posteriormente condenado pela praacutetica do crime

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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MIRABETE Julio Fabbrini Processo penal 18 ed rev e atual Renato N Fabbrini Satildeo Paulo Atlas 2006

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OLIVEIRA Eugecircnio Pacelli de Curso de processo penal 11 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2009

TAacuteVORA Nestor ALENCAR Rosmar Antonini Rodrigues Cavalcanti de Curso de direito processual penal 8 ed rev ampl e atual Salvador JusPODIVM 2013

TORNAGHI Heacutelio Curso de processo penal 10 ed atual Satildeo Paulo Saraiva v1 1997

TOURINHO FILHO Fernando da Costa Processo penal 33 ed Satildeo Paulo Saraiva v 1 2011

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OS MEIOS CONSENSUAIS DE SOLUCcedilAtildeO DE CONFLITOS NA COMARCA DE CAacuteCERESMT

Sandrely Ugulino Cardoso1

Geovanna Gabriela Sandri2

Andreacute Trapani Costa Possignolo3

RESUMO Pesquisa realizada na aacuterea do Direito Processual Civil sobre os institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo e sua eficaacutecia na comarca de CaacuteceresMT como meios alternativos na resoluccedilatildeo de conflitos Aleacutem de apresentar as principais caracteriacutesticas e objetivos dos institutos o trabalho aborda tambeacutem a perspectiva da mediaccedilatildeo para a resoluccedilatildeo de conflitos na esfera familiar ressaltando seus benefiacutecios em relaccedilatildeo aos meios judiciais A anaacutelise realizada tem como base legal a Resoluccedilatildeo 12510 do Conselho Nacional de Justiccedila que disciplina tais institutos frente ao Poder Judiciaacuterio bem como ordena aos tribunais a criaccedilatildeo de Centros Judiciaacuterios de Resoluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica de autores que disciplinam os meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos o presente trabalho faz um levantamento de dados das audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo realizadas no Centro Judiciaacuterio do Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT analisando no caso concreto se os objetivos e benefiacutecios desses institutos consensuais tecircm realmente sido alcanccedilados bem como se tecircm trazido resultados satisfatoacuterios ao Poder Judiciaacuterio e agrave sociedade do municiacutepio de CaacuteceresMT

PALAVRAS-CHAVE Mediaccedilatildeo Conciliaccedilatildeo CEJUSC

1 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT san-drelyugulinogmailcom2 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT geovan-nasandrigmailcom3 Professor do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT andre-tpossiggmailcom

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ABSTRACT Research carried out in Civil Procedural Law area on the institutes of mediation and conciliation and its effectiveness in the county of CaacuteceresMT as alternative means in the resolution of conflicts Besides presenting the main features and goals this work also approaches the perspective of mediation for conflict resolution in the Family Law sphere highlighting its benefits over judicial means The analysis is based on Resolution 12510 of the Conselho Nacional de Justiccedila which disciplines such institutes in Judiciary as well as order the courts to create Centros Judiciaacuterios de Resoluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania In addition to the bibliographic research on consensual means of conflict resolution this paper will also collect data from the conciliation and mediation hearings held at the Centro Judiciaacuterio of the CaceresMT County Forum analyzing in concrete case if the goals and benefits of these consensual institutes have actually been achieved as well as whether they have brought satisfactory results to the Judiciary and to the society of CaceresMT

KEYWORDS Mediation Conciliation CEJUSC

INTRODUCcedilAtildeO

Um dos principais objetivos buscados pelo Direito eacute a paz social de modo a tornar as relaccedilotildees mais estaacuteveis dirimindo os conflitos bem como as desigualdades sociais aleacutem de promover o desenvolvimento da sociedade (SANTOS 2004)

No entanto eacute visiacutevel que o Direito ainda natildeo conseguiu alcanccedilar a almejada pacificaccedilatildeo social hajam vista os numerosos processos que se encontram sob a eacutegide do Poder Judiciaacuterio agrave es-pera de uma soluccedilatildeo para o conflito Sabe-se que o Poder Judiciaacuterio possui muitas falhas em seu modo de atuar tais como tecnicismo proacuteprio e exacerbado inerente ao processo judicial que por exem-plo possui vernaacuteculo especiacutefico e de difiacutecil compreensatildeo para as proacuteprias partes litigantes tornando o processo judicial ainda mais formal aleacutem das altas custas processuais e a demora para a solu-ccedilatildeo do litiacutegio fatores esses que afastam cada vez mais o Judiciaacuterio da sociedade (ALVES 2015)

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Primando pelo princiacutepio constitucional da inafastabilida-de da jurisdiccedilatildeo a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 apresenta em seu art 5ordm inciso XXXV ldquoa lei natildeo excluiraacute da apreciaccedilatildeo do Poder Judiciaacuterio lesatildeo ou ameaccedila a direitordquo (BRASIL 1988) Sendo as-sim eacute garantido a toda pessoa o poder de buscar no Judiciaacuterio a efetividade dos seus direitos violados

O Poder Judiciaacuterio tendo a obrigaccedilatildeo de abranger toda demanda da sociedade passou a enfrentar uma crise gerando o abarrotamento de processos Deste modo o Judiciaacuterio comeccedilou a natildeo suportar tamanha procura para a soluccedilatildeo de conflitos haja vista que natildeo consegue respeitar sequer alguns princiacutepios proces-suais como a celeridade processual tornando-se moroso na reso-luccedilatildeo dos litiacutegios (ALVES 2015)

Para os motivos de tal morosidade existem diversos fa-tores Alguns destes estatildeo ora relacionados agrave estrutura e funcio-namento do Poder Judiciaacuterio ora agraves partes litigantes e seu modo de agir Em suma os fatores mais citados satildeo sucateamento dos equipamentos do Judiciaacuterio escassez de funcionaacuterios modo de agir das partes complexidade e burocracia do processo brasileiro (GESTEIRA 2014)

Atentando-se aos princiacutepios norteadores do Direito visto que o Poder Judiciaacuterio encontra-se em crise comeccedilaram a ser dis-cutidos outros meios alternativos de soluccedilatildeo de conflitos Surgiu assim a Resoluccedilatildeo 12510 do Conselho Nacional de Justiccedila (CNJ) disciplinando dois meios de suma importacircncia ao Direito brasilei-ro quais sejam mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo

Diante disso a presente pesquisa busca estudar esses meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos analisando se satildeo uacuteteis agrave so-ciedade como forma de dirimir litiacutegios ajudando na promoccedilatildeo da paz social prezada pelo Direito De outro modo aborda-se se estes meios de soluccedilatildeo de conflitos realmente trazem benefiacutecios se satildeo eficazes ao Judiciaacuterio diante da mencionada crise de abarrotamen-to de processos pela qual o mesmo enfrenta

Outro vieacutes a ser analisado trata-se da contribuiccedilatildeo das uni-versidades e dos acadecircmicos principalmente do curso de Direito

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na promoccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo bem como os benefiacutecios trazidos aos estudantes diante da aplicaccedilatildeo dos conhecimentos teoacutericos apreendidos nas salas de aula em casos praacuteticos

Tem-se ainda como objetivo mostrar a importacircncia do Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) no Foacuterum da Comarca do Municiacutepio de CaacuteceresMT bem como sua efetividade na resoluccedilatildeo de conflitos por meio da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Busca-se ainda expor alguns aspectos negativos le-vantados com relaccedilatildeo aos institutos de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo

Aleacutem disso realiza-se um levantamento de dados quan-titativos de audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo na Comarca do Foacuterum de CaacuteceresMT no Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Con-flitos e Cidadania para testar a aplicaccedilatildeo praacutetica dos resultados obtidos analisando concretamente se essas audiecircncias tecircm trazido resultados satisfatoacuterios ao Poder Judiciaacuterio na resoluccedilatildeo de con-flitos por meio da feitura de acordos entre as partes bem como se vecircm cumprindo com seu papel de assistecircncia agrave sociedade

Para isso utiliza-se como metodologia a pesquisa biblio-graacutefica de autores que trabalham a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como meios de resoluccedilatildeo de conflitos A partir da anaacutelise criacutetica das in-formaccedilotildees expostas visa-se trazer argumentos proacuteprios sobre o tema

Meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos

A pacificaccedilatildeo social como um dos objetivos primados pelo Direito se realiza por meio da resoluccedilatildeo dos conflitos Buscando se adequar a este objetivo os institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo tambeacutem tecircm almejado a paz social das partes litigantes que ami-gavelmente procuram dirimir os conflitos existentes Nesse senti-do o processualista Daniel Amorim Assumpccedilatildeo Neves (2016 p 32) admite que ldquoa pacificaccedilatildeo social (soluccedilatildeo da lide socioloacutegica) pode ser mais facilmente obtida por uma soluccedilatildeo do conflito deri-vada da vontade das partes do que pela imposiccedilatildeo de uma decisatildeo judicialrdquo

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Essa pacificaccedilatildeo social pode ser alcanccedilada mais facilmente nas formas consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos haja vista que o diaacutelogo entre as partes estaacute presente constantemente pois nessas as partes apresentam propostas capazes de dirimir as desavenccedilas com base em seus interesses pessoais e uma vez satisfeita a vonta-de de ambas o conflito existente eacute solucionado

O Poder Judiciaacuterio no uso de suas atribuiccedilotildees utiliza como principal ferramenta para a resoluccedilatildeo de conflitos a hetero-composiccedilatildeo que ldquoconsiste em meios onde a soluccedilatildeo dos litiacutegios eacute estabelecida por um terceiro sem interferecircncia das partesrdquo (MER-LO 2016 on line)

A partir da crise que afligiu o Judiciaacuterio novas teacutecnicas de dirimir os litiacutegios foram sendo amplamente discutidas surgindo a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como teacutecnicas de autocomposiccedilatildeo em que ao contraacuterio da heterocomposiccedilatildeo a soluccedilatildeo do problema natildeo eacute determinada por um terceiro distante do caso mas pelas proacuteprias partes litigantes que decidem como solucionar os conflitos pelos quais estatildeo passando Nesses meios autocompositivos prevalece a vontade das partes (Idem)

Assim como nos meios de heterocomposiccedilatildeo a mediaccedilatildeo e a conciliaccedilatildeo primam pela real soluccedilatildeo das desavenccedilas No entan-to a heterocomposiccedilatildeo em razatildeo de a soluccedilatildeo do conflito ser dada de acordo com o entendimento de um terceiro imparcial e distante do caso nem sempre possui forccedila capaz de satisfazer as vontades das partes jaacute que na maioria das vezes o decidido pelo magistra-do natildeo coincide com o querer das partes Desta forma ao contraacuterio dos meios consensuais os meios heterocompositivos nem sempre solucionam o conflito em sua essecircncia uma vez que natildeo atendem agrave real vontade das partes fazendo com que em muitos casos as desavenccedilas persistam mesmo apoacutes a suposta resoluccedilatildeo do conflito (ROSA apud GONCcedilALVES 2015)

A mediaccedilatildeo e a conciliaccedilatildeo por serem meacutetodos de auto-composiccedilatildeo possuem muitas semelhanccedilas distinguindo-se ape-nas quanto ao modo de atuaccedilatildeo do mediador e do conciliador

O instituto da mediaccedilatildeo eacute aconselhado para a resoluccedilatildeo de

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conflitos nos casos em que as partes conflitantes jaacute se conheciam e possuiacuteam algum viacutenculo O papel do mediador eacute caracterizado como de um facilitador do diaacutelogo entre as partes que auxilia as partes a visualizarem a melhor maneira de dirimir o conflito exis-tente natildeo podendo agir de forma imperativa no caso nem propor formas de solucionar o conflito mas tatildeo somente encaminhar as partes deixando a livre escolha dessas agrave feitura ou natildeo de um acor-do (DIDIER JR 2015)

Diferentemente da mediaccedilatildeo os casos que envolvem a resoluccedilatildeo de conflitos pela conciliaccedilatildeo segundo entendimento de Didier Jr (2015) satildeo aqueles em que as partes natildeo se conheciam ou seja natildeo possuiacuteam viacutenculos Nesses casos o conciliador tem maior autonomia para interferir no problema haja vista que pode propor soluccedilotildees para dirimir o conflito

Uma das principais caracteriacutesticas destes meios de auto-composiccedilatildeo eacute a maior atuaccedilatildeo das partes na soluccedilatildeo do conflito que satildeo os protagonistas da resoluccedilatildeo do litiacutegio o que eacute interes-sante uma vez que o conflito concerne somente a elas (MERLO 2016)

Vaacutelido ressaltar que esses mecanismos de autocompo-siccedilatildeo ao contraacuterio da heterocomposiccedilatildeo natildeo apresentam todo o tecnicismo proacuteprio de um processo judicial como o seu formalis-mo e utilizaccedilatildeo de vernaacuteculos especiacuteficos e robustos cuja ausecircncia permite que as partes possuam maior liberdade de se expressar visto que se baseiam mais na oralidade e na informalidade aleacutem de serem mais ceacuteleres baratos e justos (GONCcedilALVES 2015)

Entende-se que os acordos feitos por intermeacutedio desses meios alternativos de soluccedilatildeo de conflitos possuem a mesma forccedila de uma sentenccedila dada pelo magistrado por meio das vias comuns entretanto por serem meacutetodos que ainda podem ser considerados recentes diversas vezes natildeo satildeo efetivados pela visatildeo de que os acordos e decisotildees tomadas natildeo teriam o mesmo valor que uma decisatildeo judicial comum (MERLO 2016)

Aleacutem disso outra fragilidade que envolve os meios au-tocompositivos diz respeito agrave atuaccedilatildeo do mediador quanto agrave pos-

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sibilidade de que haja pressatildeo para que as partes cheguem a um acordo e que segundo o Manual de Mediaccedilatildeo Judicial (2015) preo-cupa os advogados por tratar-se de um receio legiacutetimo mas que quando notada deve ser comunicada agrave Secretaacuteria do Serviccedilo de Mediaccedilatildeo Forense

Resoluccedilatildeo n 12510 CNJ

O Conselho Nacional de Justiccedila editou a Resoluccedilatildeo nordm 125 de 29 de novembro de 2010 que em suma tem como objetivo a re-gulamentaccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Assim o CNJ por meio dessa Resoluccedilatildeo incentivou a soluccedilatildeo de controveacutersias por meio da autocomposiccedilatildeo (BRASIL 2010)

Para a criaccedilatildeo dessa Resoluccedilatildeo foram considerados vaacuterios pontos tais como a prestaccedilatildeo judicial de forma justa e efetiva a pacificaccedilatildeo social bem como a regulamentaccedilatildeo e uniformizaccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo (Idem) Assim um dos mais importantes artigos dessa Resoluccedilatildeo na qual se baseia todo o presente trabalho eacute o

Art 8ordm Os tribunais deveratildeo criar os Centros Judiciaacute-rios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (Centros ou Cejuscs) unidades do Poder Judiciaacuterio preferencial-mente responsaacuteveis pela realizaccedilatildeo ou gestatildeo das sessotildees e audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo que estejam a cargo de conciliadores e mediadores bem como pelo atendimento e orientaccedilatildeo ao cidadatildeo (BRASIL 2010)

Eacute com base nesse artigo que os atuais Centros Judiciaacuterios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) existem e realizam as audiecircncias de mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo sejam elas processuais (realizadas durante o tracircmite de processo judicial) ou preacute-proces-suais (que antecedem a propositura da accedilatildeo judicial)

Ademais aleacutem do caraacuteter de soluccedilatildeo de conflitos estes centros possuem uma funccedilatildeo de cidadania uma vez que atendem ao puacuteblico orientando e auxiliando os indiviacuteduos na busca por

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seus direitos (BRASIL 2015)A implantaccedilatildeo desses centros de soluccedilatildeo de conflitos a

partir da Resoluccedilatildeo nordm 12510 do CNJ que aleacutem de seu objetivo principal de incentivar que os litiacutegios sejam resolvidos de forma consensual reconheceu esses institutos como meios de acesso agrave justiccedila respeitando o princiacutepio constitucional de acesso agrave justiccedila Ademais em decorrecircncia da grande quantidade de demandas di-rigidas ao Poder Judiciaacuterio busca-se tambeacutem com as audiecircncias de mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo a diminuiccedilatildeo do abarrotamento de proces-sos uma vez que esses institutos satildeo mais ceacuteleres na soluccedilatildeo dos conflitos e a feitura de um acordo evita que novos casos resultan-tes de conflitos mal resolvidos fiquem pendentes da anaacutelise do Poder Judiciaacuterio (GONCcedilALVES 2015)

Aleacutem disso eacute importante compreender a atuaccedilatildeo dos con-ciliadores e mediadores bem como os princiacutepios e obrigaccedilotildees que os regem para que se quebre o paradigma de que um meio de resoluccedilatildeo de conflitos que envolva um terceiro que natildeo seja o ma-gistrado tambeacutem pode ser confiaacutevel e eficaz Por esta razatildeo a re-soluccedilatildeo prevecirc em seu artigo 1deg do Anexo III oito princiacutepios funda-mentais que devem ser seguidos para que se respeite o Coacutedigo de Eacutetica dos Mediadores e Conciliadores Satildeo eles confidencialidade decisatildeo informada competecircncia imparcialidade independecircncia e autonomia respeito agrave ordem puacuteblica e agraves leis vigentes empodera-mento e validaccedilatildeo (BRASIL 2010)

Os princiacutepios fundamentais previstos na resoluccedilatildeo satildeo de grande importacircncia para a conduccedilatildeo e o bom desenvolvimento dos procedimentos dos institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo

mediaccedilatildeo na resoluccedilatildeo de conflitos familiares

Pelo fato de a mediaccedilatildeo ser utilizada principalmente nos conflitos em que as partes jaacute se conheciam ela possui grande im-portacircncia na soluccedilatildeo de conflitos familiares mais ainda por se ba-sear principalmente no diaacutelogo entre as partes Tendo em vista as peculiaridades dos problemas familiares o instituto da mediaccedilatildeo

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tem sido cada vez mais empregado na resoluccedilatildeo desses conflitos Eacute evidente que as desavenccedilas familiares possuem aspectos mais delicados uma vez que envolvem laccedilos afetivos e por isso neces-sitam de guarida de forma especial comparados com outros confli-tos sociais (GONCcedilALVES 2015 GARBO 2015)

Para que natildeo haja desgaste emocional entre os familiares que se encontram em litiacutegio faz-se necessaacuterio a presenccedila da media-ccedilatildeo como meio consensual de resoluccedilatildeo de conflitos instrumento capaz de trazer a paz para as famiacutelias em desavenccedilas (TOALDO OLIVEIRA 2011)

Em decorrecircncia de o Poder Judiciaacuterio se encontrar abar-rotado de causas para serem solucionadas os conflitos sob a sua eacutegide demoram muito tempo ateacute sua resoluccedilatildeo Assim sendo a mediaccedilatildeo familiar um meio alternativo para a resoluccedilatildeo de con-flitos as demandas seratildeo solucionadas por este meio com mais rapidez fato esse de suma importacircncia nos desentendimentos fa-miliares uma vez que envolvem assuntos de natureza de urgecircncia perdurando o conflito por um periacuteodo bem menor se comparado aos meios judiciais tradicionais (PRUDENTE 2008)

Os principais casos resolvidos por meio da mediaccedilatildeo fa-miliar abrangem conflitos referentes a divoacutercio separaccedilatildeo de bens guarda fixaccedilatildeo e revisatildeo de alimentos Tais casos por se tratarem de assuntos pertinentes tatildeo apenas agraves proacuteprias partes satildeo resolvi-dos por meio da mediaccedilatildeo com grande aprovaccedilatildeo tendo em vista que a partir do diaacutelogo entre as partes pode surgir um acordo que satisfaccedila as vontades destas (GARBO 2015)

O meio heterocompositivo frente a um magistrado por natildeo possibilitar maior diaacutelogo entre as partes nem sempre per-mite que a vontade seja plenamente satisfeita inclusive porque a soluccedilatildeo do conflito viraacute de acordo com o entendimento de um terceiro distante do caso Assim diante da insatisfaccedilatildeo em rela-ccedilatildeo agrave decisatildeo tomada e da natildeo soluccedilatildeo dos conflitos ocultos novos impasses podem surgir resultando em novos processos judiciais contribuindo para o abarrotamento de processos e intensificando a crise do Poder Judiciaacuterio

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A mediaccedilatildeo familiar eacute sim uma alternativa viaacutevel para a superaccedilatildeo de conflitos familiares na socieda-de atual pois atraveacutes de mediadores capacitados e com conhecimentos especiacuteficos fazendo com que as partes cheguem uma melhor soluccedilatildeo que possa satisfazer a ambos sem a imposiccedilatildeo de uma deci-satildeo como ocorre no atual sistema juriacutedico brasileiro (TOALDO OLIVEIRA 2011 on line)

Aleacutem da insatisfaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave decisatildeo proferida por meio heterocompositivo o sentimento de conflito natildeo resolvido pode acarretar traumas emocionais aos filhos portanto quando se tem uma participaccedilatildeo muacutetua da famiacutelia para que se resolvam as questotildees familiares pendentes de forma amigaacutevel e respeitosa a decisatildeo natildeo traraacute apenas benefiacutecios processuais (custas celerida-de) como tambeacutem emocionais e psicoloacutegicos conforme menciona Parkinson (2016 p xxi)

Devemos ter em mente que longas batalhas pela guarda dos filhos satildeo extremamente prejudiciais agrave crianccedila aleacutem de apresentarem altos custos emocio-nais e financeiros ao passo que a mediaccedilatildeo incenti-va uma melhor comunicaccedilatildeo e cooperaccedilatildeo entre os pais podendo trazer benefiacutecios duradouros para a famiacutelia como um todo

Percebe-se assim que os conflitos familiares dependem grandemente do diaacutelogo para a sua soluccedilatildeo uma vez que apoacutes alguns desentendimentos os familiares se encontram receosos e abalados emocionalmente diante dos laccedilos afetivos envolvidos necessitando apenas que um terceiro no caso o mediador inter-venha no conflito para facilitar o diaacutelogo entre as partes fazendo com que as mesmas encontrem um acordo satisfatoacuterio fato esse que pode ser facilmente presenciado na mediaccedilatildeo diferentemente do que ocorre na heterocomposiccedilatildeo em que natildeo haacute tantas oportu-nidades de diaacutelogos entre as partes

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Contribuiccedilatildeo das Universidades aos CEJUSCrsquos

Tendo em vista que a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo abordam as-suntos pertinentes ao curso de Direito as universidades podem e devem contribuir na promoccedilatildeo desses institutos uma vez que ainda satildeo desconhecidos por grande parcela da sociedade Aleacutem de as universidades contribuiacuterem no incentivo e divulgaccedilatildeo dos meacutetodos consensuais de soluccedilatildeo de conflitos os acadecircmicos tam-beacutem satildeo beneficiados uma vez que poderatildeo colocar em praacutetica os aprendizados teoacutericos das aulas contribuindo para seu crescimen-to profissional futuro

O CNJ mesmo apoacutes ter criado a Resoluccedilatildeo 12510 incen-tiva ainda a pacificaccedilatildeo dos litiacutegios pela mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo por meio do Precircmio Conciliar eacute Legal de iniciativa do Comitecirc Gestor Nacional da Conciliaccedilatildeo A quinta ediccedilatildeo desse precircmio teve como uma das praacuteticas vencedoras a promoccedilatildeo de soluccedilotildees paciacuteficas de conflitos por meio do envolvimento de alunos e docentes do cur-so de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNE-MAT) Campus Francisco Ferreira Mendes em DiamantinoMT em trabalho conjunto com o Centro Judiciaacuterio da Comarca de Dia-mantinoMT (ARAUacuteJO 2015)

O projeto realizou-se por intermeacutedio da UNEMAT no Nuacute-cleo Permanente de Meacutetodos Consensuais de Soluccedilatildeo de Conflitos do Mato Grosso e do CEJUSC do TJMT e envolveu estudantes e professores que se propuseram a averiguar os processos submeti-dos ao Centro Judiciaacuterio na Comarca de DiamantinoMT (Idem)

Assim sendo fica claro que essa atitude serviu para tes-tificar os acadecircmicos envolvidos no projeto considerando que jaacute saem com capacitaccedilatildeo em conciliaccedilatildeo tornando-se uma verdadei-ra contribuiccedilatildeo acadecircmica para a sociedade o que exemplifica cla-ramente a proposta acessiacutevel da soluccedilatildeo de conflitos

Levantamento de dados realizados no CEJUSC de CAacuteCERESMT

Com base no levantamento bibliograacutefico apresentado foi

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realizada uma pesquisa quantitativa de levantamento de dados no Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT

Com a entrada em vigor da Resoluccedilatildeo 12510 do CNJ o Tribunal de Justiccedila do Mato Grosso buscou adequar-se a essa nor-ma tendo em vista que assim como apresentado no art 8ordf da refe-rida Resoluccedilatildeo foi imposta aos Tribunais de Justiccedila a criaccedilatildeo dos Centros Judiciaacuterios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania

Assim sendo foi instalado no dia 11 de julho de 2014 em CaacuteceresMT um Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cida-dania (CEJUSC) por meio da Portaria 0062014-NPMCSC-PRES (MATO GROSSO 2014)

Os dados a seguir foram informados pela gestora do CE-JUSC do Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT por meio dos rela-toacuterios que satildeo encaminhados ao CNJ Assim seratildeo apresentados os dados a respeito das conciliaccedilotildees e mediaccedilotildees realizadas tatildeo somente neste Centro expondo ainda os nuacutemeros das audiecircncias que restaram frutiacuteferas

Insta esclarecer que os dados da quantidade de audiecircncias realizadas referem-se tanto agraves audiecircncias na fase preacute-processual quanto processual Outrossim os dados apresentados satildeo apenas das audiecircncias realizadas no CEJUSC E os acordos que satildeo forma-lizados no decorrer dos processos natildeo estatildeo contidos nestes dados mas somente os formalizados em audiecircncias realizadas no Centro

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Quadro 01 minus Nuacutemero de audiecircncias realizadas no CEJUSC durante 2014 ndash 2016

Fonte Mato Grosso (2014)

A partir dos dados apresentados nota-se que a populaccedilatildeo de CaacuteceresMT tem buscado realizar tentativas de acordos para resoluccedilatildeo de conflitos mesmo sendo a heterocomposiccedilatildeo no Bra-sil a forma mais difundida e aceita para a soluccedilatildeo de conflitos O graacutefico reforccedila a tese de que os meios de autocomposiccedilatildeo tambeacutem estatildeo aos poucos ganhando mais espaccedilo e sendo utilizados fren-te aos benefiacutecios que estes meios proporcionam como celeridade menor custo econocircmico e resoluccedilatildeo do conflito por meio da satis-faccedilatildeo da vontade de ambas as partes

A tabela a seguir apresenta o nuacutemero de acordos formali-zados dentre a quantidade de audiecircncias realizadas no CEJUSC de Caacuteceres segundo apresentado no quadro 01 acima

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Quadro 02 minus Nuacutemero de audiecircncias com acordos

Fonte Mato Grosso (2014)

Por meio da anaacutelise dos dados acima descritos pode-se perceber que entre os meses em que foi realizada a pesquisa julho de 2014 a agosto de 2016 num total de 26 meses foram realizadas 1954 (mil novecentos e cinquenta e quatro) audiecircncias de conci-liaccedilatildeo e mediaccedilatildeo no Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania da Comarca de CaacuteceresMT Desse total de audiecircncias realizadas 1679 (mil seiscentos e setenta e nove) restaram frutiacute-feras ou seja obtiveram acordo correspondendo a aproximada-mente 86 de acordos do total de audiecircncias

Desta forma nota-se que estes meios alternativos de solu-ccedilatildeo de controveacutersias estatildeo sendo de suma importacircncia para a so-ciedade da comarca de Caacuteceres bem como para o Poder Judiciaacuterio local uma vez que os resultados obtidos tecircm sido satisfatoacuterios

Tais resultados corroboram com o entendimento defendi-do por Alves (2015 on line) ldquoConclui-se que a conciliaccedilatildeo eacute sem-pre a melhor opccedilatildeo para as partes em litiacutegio desde que o instituto seja aplicado corretamente em consonacircncia com os seus objetivos e por terceiros realmente imparciais e capacitadosrdquo

Para Warat (apud MERLO 2016 on line) estes institutos

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satildeo muito importantes para a sociedade visto que

As praacuteticas sociais de mediaccedilatildeo se configuram num instrumento ao exerciacutecio da cidadania na medida em que educam facilitam e ajudam a produzir dife-renccedilas e a realizar tomadas de decisotildees sem a inter-venccedilatildeo de terceiros que decidem pelos afetados por um conflito[] O acordo decorrente de uma mediaccedilatildeo satisfaz em melhores condiccedilotildees as necessidades e os desejos das partes jaacute que estas podem reclamar o que ver-dadeiramente precisam e natildeo o que a lei lhes reco-nheceria

Nota-se que a conciliaccedilatildeo e a mediaccedilatildeo realizadas no Cen-tro Judiciaacuterio de CaacuteceresMT diante dos resultados apresentados tecircm sido realmente uma alternativa eficaz para resoluccedilatildeo de con-flitos na comarca uma vez que ao produzir acordos entre as par-tes as desavenccedilas satildeo solucionadas proporcionando a paz social Aleacutem do mais pelo fato de o acordo ser realizado a partir da von-tade das partes sem a intervenccedilatildeo de um terceiro como o magis-trado os meios autocompositivos diminuem e por consequecircncia os casos a serem solucionados diretamente pelo Poder Judiciaacuterio atenuando a crise de abarrotamento de processos judiciais

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A partir das pesquisas realizadas foi possiacutevel perceber que o Poder Judiciaacuterio passa por um momento criacutetico pois se encontra abarrotado de processos e sem nenhuma condiccedilatildeo de acolher cor-retamente toda esta demanda de modo que precisou implementar outras alternativas que ajudassem a alterar esse cenaacuterio

Buscando sair deste momento de crise alguns mecanis-mos foram implementados atraveacutes da Resoluccedilatildeo nordm 12510 do CNJ quais sejam a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Percebe-se entatildeo que estes institutos foram e satildeo de fundamental importacircncia para o Ju-diciaacuterio visto que ao mesmo tempo que diminuem a grande pro-

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cura direta ao Judiciaacuterio para a resoluccedilatildeo de conflitos tambeacutem se baseiam em meacutetodos autocompositivos por meio dos quais todas as decisotildees tomadas partem tatildeo somente das proacuteprias partes liti-gantes resultando em uma justiccedila em conformidade com as neces-sidades almejadas pelas partes

Com relaccedilatildeo aos pontos positivos e negativos desses ins-titutos nota-se que os aspectos positivos prevalecem sobre os ne-gativos haja vista que estes decorrem do pouco conhecimento da sociedade de que os meios consensuais de soluccedilatildeo de conflitos satildeo eficazes e gozam dos mesmos efeitos de uma decisatildeo judicial Esse desconhecimento da sociedade deve-se ao fato de o meio ju-dicial tradicional ser utilizado haacute muito mais tempo necessitando assim que o Poder Judiciaacuterio incentive e divulgue a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como meios eficazes corroborando por consequecircncia com a diminuiccedilatildeo da crise judiciaacuteria As universidades conjun-tamente com os acadecircmicos do curso de Direito tecircm contribuiacutedo nesse aspecto de divulgaccedilatildeo e incentivo da sociedade para soluccedilatildeo dos litiacutegios por meio da autocomposiccedilatildeo atraveacutes de projetos reali-zados em parceria com os Centros Judiciaacuterios

Os meios consensuais tecircm apresentado resultados satis-fatoacuterios perante o ordenamento juriacutedico brasileiro haja vista que tecircm sido efetivamente utilizados para a soluccedilatildeo de conflitos sendo de grande valia ao Poder Judiciaacuterio e agrave sociedade principalmente agrave Comarca de Caacuteceres ora analisada

Quanto agraves resoluccedilotildees de conflitos por meio do Centro Ju-diciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania de Caacuteceres pode-se observar que apesar da autocomposiccedilatildeo como meio de resoluccedilatildeo de conflitos ainda natildeo ser amplamente difundida como acontece com os meios heterocompositivos a Comarca de Caacuteceres vem ob-tendo resultados satisfatoacuterios e natildeo soacute pela quantidade de acordos mas tambeacutem em relaccedilatildeo agrave procura deste meio

Percebe-se assim que a autocomposiccedilatildeo por meio da me-diaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo vem apresentando aos juristas aspectos po-sitivos como a diminuiccedilatildeo do abarrotamento de processos bem como esses institutos tecircm cumprido com seus objetivos sendo

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realmente eficazes na resoluccedilatildeo de conflitos

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ALVES Gabriela Pellegrina A conciliaccedilatildeo como meio de efetivaccedilatildeo do princiacutepio do acesso agrave justiccedila Disponiacutevel em httpwwwconteudojuridicocombrartigoa-conciliacao-como-meio-de-efetivacao-do-principio-do-acesso-a-justica51986html Acesso em jun 2016

ARAUacuteJO Elizacircngela Unemat recebe precircmio do CNJ por incentivar conciliaccedilatildeo entre estudantes Disponiacutevel em httpwwwcnjjusbrnoticiascnj79617-unemat-recebe-premio-do-cnj-por-incentivar-conciliacao-entre-estudantes Acesso em jan 2017

BRASIL Conselho Nacional de Justiccedila 2015 Guia de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo judicial orientaccedilatildeo para instalaccedilatildeo de CEJUSC Brasiacutelia Conselho Nacional de Justiccedila

______ Conselho Nacional de Justiccedila Resoluccedilatildeo n 125 29 de novembro de 2010 Dispotildee sobre a poliacutetica judiciaacuteria nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no acircmbito do poder judiciaacuterio e daacute outras providecircncias Disponiacutevel em httpwwwcnjjusbrbusca-atos-admdocumento=2579 Acesso em set 2016

DIDIER JR Fredie Curso de direito processual civil introduccedilatildeo ao direito processual civil parte geral e processo de conhecimento 17 ed Salvador Jus Podivm 2015

GARBO Maria Carolina Silva Mediaccedilatildeo familiar como alternativa agrave soluccedilatildeo de conflitos familiares resultantes de separaccedilatildeo eou divoacutercio Disponiacutevel em httpwwwambito-juridicocombrsiten_link=revista_artigos_leituraampartigo_id=15704amprevista_caderno=14 Acesso em set 2016

GESTEIRA Wander Joseacute Barroso Provaacuteveis causas da morosidade da justiccedila brasileira Disponiacutevel em httpswwwportaleducacaocombrdireitoartigos56733provaveis-causas-da-morosidade-da-justica-brasileira Acesso em dez 2016

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GONCcedilALVES Amanda Passos A mediaccedilatildeo como meio de resoluccedilatildeo de conflitos familiares Rio Grande do Sul Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul - PUCRS 2015

MERLO Ana Karina Franccedila Mediaccedilatildeo conciliaccedilatildeo e celeridade processual Disponiacutevel em lthttpwwwambito-juridicocombrsiteindexphpn_link=revista_artigos_leituraamp artigo_id=12349amprevista_caderno=21gt Acesso em mai de 2016

NEVES Daniel Amorim Assumpccedilatildeo Novo coacutedigo de processo civil ndash Leis 131052015 e 132562016 3 ed Satildeo Paulo Meacutetodo 2016

PARKINSON Lisa Mediaccedilatildeo familiar 2 ed Belo Horizonte Del Rey 2016

SANTOS Marcos Andreacute Couto O direito como meio de pacificaccedilatildeo social em busca do equiliacutebrio das relaccedilotildees sociais Disponiacutevel em httpsjuscombrartigos4732o-direito-como-meio-de-pacificacao-socialgt Acesso em mai 2016

TOALDO Adriane Medianeira OLIVEIRA Fernanda Rech de Mediaccedilatildeo familiar novo desafio do direito de famiacutelia contemporacircneo Disponiacutevel em httpwwwambitojuridicocombrsi ten_l ink=revis ta_ar t igos_le i turaampart igo_id=10860amprevista_cadero=21gt Acesso em set 2016

APRESENTACcedilAtildeO

Natildeo concordo com uma palavra do que dizes mas defenderei ateacute o ultimo instante seu direito de

dizecirc-la(Voltaire)

No periacuteodo de 09 a 11 de novembro de 2016 foi realizado o I Congresso O Direito na Fronteira e as Fronteiras do Direito pela Coordenaccedilatildeo do Curso de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT na cidade de Caacuteceres do qual par-ticiparam professores e alunos do curso de Direito dos campi da Universidade que ofertam esse curso bem como professores con-vidados de outras IES do paiacutes

Tratando-se do primeiro evento com essa temaacutetica decidi-mos pela publicaccedilatildeo de um livro que reuacutene uma coletacircnea de tra-balhos de professores e acadecircmicos com o objetivo de disseminar as pesquisas apresentadas e discutidas durante o Congresso

O presente livro intitulado O Direito na Fronteira e as Fronteiras do Direito compreende dez textos que discutem ques-totildees referentes agrave fronteira tendo em vista a relativa proximidade da cidade de CaacuteceresMT sede da Universidade do Estado de Mato Grosso com a fronteira territorial Brasil-Boliacutevia a exemplo do impacto ambiental transnacional criminalidade e relaccedilotildees co-loniais que ainda persistem na regiatildeo bem como questotildees teoacuterico-filosoacuteficas dada a importacircncia em superar aspectos conservadores do Direito no intuito de que esta aacuterea do conhecimento se torne um mecanismo de transformaccedilatildeo e sobretudo de emancipaccedilatildeo

Os textos apresentam uma pluralidade temaacutetica teoacuterica e metodoloacutegica proacutepria da aacuterea das pesquisas desenvolvidas nos diversos Campi que sediam o Curso de Direito da Universidade e muitos deles foram produzidos por alunos em coautoria com do-centes o que mostra o niacutevel de interlocuccedilatildeo e orientaccedilatildeo entre o professor-pesquisador e o aluno de iniciaccedilatildeo cientiacutefica uma expe-riecircncia que vem se consolidando nas praacuteticas de ensino e pesquisa

Os artigos de modo geral contribuem para a reflexatildeo

sobre como certas questotildees juriacutedicas que estatildeo sendo pensadas analisadas e interpretadas pelos autores agrave luz dos procedimentos teoacuterico-metodoloacutegicos da aacuterea mesmo quando divergem de deter-minados ordenamentos legais

Agradecemos o apoio da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT Campus de CaacuteceresMT e da Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do Estado de Mato Grosso ndash FAPEMAT que tornou possiacutevel a publicaccedilatildeo desta obra

Esperamos que esta coletacircnea possa dar visibilidade agraves pesquisas realizadas pelos Cursos de Direito e que instigue os lei-tores da comunidade acadecircmica da UNEMAT e de outras IES a realizar novos projetos e investigaccedilotildees que consolidem cada vez mais a produccedilatildeo cientiacutefica na aacuterea do Direito

Danielle Cevallos SoaresMa Evely Bocardi de Miranda Saldanha

Me Murilo Oliveira Souza(Organizadores)

SUMAacuteRIO

APRESENTACcedilAtildeO2Danielle Cevallos SoaresEvely Bocardi de Miranda SaldanhaMurilo Oliveira Souza

ldquoWASH OUTrdquo FRENTE AO ORDENAMENTO JURIacuteDICO BRA-SILEIRO7Ana Flaacutevia Trevizan

A FRONTEIRA JURIacuteDICO-POLIacuteTICA ENTRE OS SISTEMAS JU-RIacuteDICOS DA COMMON LAW E DA CIVIL LAW E SEUS IMPAC-TOS NO DIREITO PAacuteTRIO27Ana Paula Soares de Souza e Danilo Pires Atala

VISIBILIZANDO A VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO PSICOLOacuteGICA COMO LESAtildeO Agrave SAUacuteDE DA VIacuteTIMA Revisitando o artigo 129 do Coacutedigo de Processo Penal brasileiro agrave luz da Lei Maria da Pe-nha49Artenira da Silva e SilvaJoseacute Maacutercio Maia Alves CIDADE SEM FRONTEIRAS FRONTEIRAS SEM CIDA-DES77Daniella S Dias

IMPACTO AMBIENTAL TRANSFRONTEIRICcedilO NA PERSPEC-TIVA DO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL97Dimas Simotildees Franco NetoOseias Amaral da Silva

JULGAMENTO INDIacuteGENA DE CONFLITOS INTERNOS RECO-NHECIDO PELO DIREITO ESTATAL NA PERSPECTIVA DO PLURALISMO JURIacuteDICO117Eliel Alves Camerini SilvaLuciana Stephani Silva Iocca

A TEORIA DO PREJUIacuteZO NAS NULIDADES RELATIVAS O COROLAacuteRIO DA DISCRICIONARIEDADE NO PROCESSO PE-NAL137Evandro Monezi BenevidesFelipe Teles Tourounoglou

CAacuteCERES E O DEacuteFICIT DE MORADIAS O CASO DA OCUPA-CcedilAtildeO DO BAIRRO EMPA 155Evely Bocardi de Miranda Saldanha Richard Rodrigues da Silva

PROVA NO HOMICIacuteDIO SEM CADAacuteVER169Gabrielle Vidrago de Souza Machado Solange Teresinha Carvalho Pissolato

OS MEIOS CONSENSUAIS DE SOLUCcedilAtildeO DE CONFLITOS NA COMARCA DE CAacuteCERESMT191Sandrely Ugulino CardosoGeovanna Gabriela Sandri Andreacute Trapani Costa Possignolo

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ldquoWASH OUTrdquo FRENTE AO ORDENAMENTO JURIacuteDICO BRASILEIRO

Ana Flaacutevia Trevizan1

RESUMO O presente artigo tem por escopo apresentar alguns apontamentos baacutesicos no tocante ao ldquowash outrdquo e sua incidecircncia nos contratos agraacuterios e observar de que maneira o direito paacutetrio tem se portado perante tal instituto Ressalta-se a estima em realizar esse paralelo por se tratar de algo que foi importado e por estar se difundindo entre os contratos que versam sobre commodities deveraacute atender aos princiacutepios e normas internamente estabelecidos Por ser inovador o pretenso assunto ocasionaraacute grandes debates nos quais seratildeo impresciacutendiveis as construccedilotildees doutrinaacuterias e jursiprudecircnciais sobre a mateacuteria uma vez que os impactos advindos do ldquowash outrdquo satildeo de excessiva monta Passando pela escassa jurisprudecircncia interna ao referido assunto seratildeo dadas delimitaccedilotildees e uma roupagem ante o ordenamento juriacutedico nacional

PALAVRAS-CHAVE ldquoWash outrdquo Contrato agraacuterio Commodities Direito brasileiro

ABSTRACT The purpose of this article is to present some basic notes on the ldquowash outrdquo and its incidence on agrarian contracts and to observe how the countryrsquos law has behaved before such an institute Emphasis is placed on making this parallel because it is something that has been imported and because it is spreading among contracts that deal with commodities should comply with the principles and standards internally established Being innovative the alleged subject will cause great debates in which the doctrinal and jursiprudecircncia constructions on the matter will be essential since the impacts arising from the ldquowash outrdquo are of excessive amount Turning to the scarce internal jurisprudence on the subject will be given delimitations and a drapery before the national legal order1 Mestranda em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Professora do Departmento de Direito da UFMT Bolsista CAPES-FAPEMAT E-mail aftre-vizangmailcom

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KEYWORDS ldquoWash outrdquo Agrarian contract Commodities Brazilian law

INTRODUCcedilAtildeO

Com a abertura do mercado interno principalmente no fi-nal da deacutecada de 80 o Brasil comeccedilou a dar maior notoriedade agrave exportaccedilatildeo comercial Algumas medidas como a diminuiccedilatildeo das aliacutequotas sobre a importaccedilatildeo e a extirpaccedilatildeo da maioria das restri-ccedilotildees natildeo-tarifaacuterias colocaram em ascensatildeo o mercado exportador

Nessa conjuntura globalizada merecem papel de desta-que as tradings companies que em simples linhas satildeo empresas comerciais que promovem a exportaccedilatildeo por meio da compra de produtos circulantes no mercado interno Seu marco legislativo se deu em novembro de 1972 com o advento do Decreto-Lei nordm 1248 futuramente inovado pelo Decreto nordm 45432002 O primeiro tu-tela os tributos incidentes em relaccedilatildeo aos produtos exportados e o uacuteltimo disciplina requisitos essenciais agraves tradings

Em virtude da dinacircmica presente no mercado internacio-nal torna-se comum a estipulaccedilatildeo de claacuteusulas em contratos inter-nacionais firmados entre as tradings e o paiacutes para o qual se exporta que impotildeem multas envolvendo alta quantia monetaacuteria no caso de descumprimento Um exemplo eacute a sobre-estadia a qual se refere ao pagamento feito pela restituiccedilatildeo atrasada do contecirciner do titu-lar mas que na maioria das vezes recai sobre as tradings

Todavia as tradings visando amortizar os gastos advindos de multas importaram para o direito paacutetrio um instituto chamado ldquowash outrdquo que objetiva a indenizaccedilatildeo de excessivo valor mone-taacuterio no caso de descumprimento da empresa ou pessoa fiacutesica que vende produtos agriacutecolas agraves tradings

Imperiosa eacute a anaacutelise do ldquowash outrdquo sobre o enfoque do direito brasileiro levando em consideraccedilatildeo os princiacutepios e normas tanto do direito civil como do direito constitucional Eis a finalida-de deste artigo

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Apontamentos baacutesicos sobre as Tradings Companies

As Tradings Companies em atividades no Brasil des-de 1970 ganharam destaque no cenaacuterio nacional no iniacutecio da deacutecada de 90 Foi em 1990 com o estabelecimento da Poliacutetica Industrial e de Comeacutercio Exterior que o Brasil fortalece suas relaccedilotildees mercantis com paiacuteses exteriores

Nas palavras de Anna Carolina Euclides Santos Bruno Henrique Felipe Gomes e Juliana Lima Credendio (2007 p 29)

Com a abertura da economia brasileira no governo do presidente Fernando Collor de Melo as empre-sas de grande porte sentiram-se motivadas a desen-volver suas atividades no mercado externo Com a elevada demanda essas empresas natildeo conseguiam atender agraves necessidades do mercado e iniciaram parcerias com as tradings pois perceberam as van-tagens e benefiacutecios de sua utilizaccedilatildeo ou ateacute mesmo criando a sua proacutepria Trading Company

Eacute nesse mesmo periacuteodo que as tradings ganham destaque e no primeiro momento optam pela comercializaccedilatildeo de commo-dities como por exemplo o cafeacute que na atualidade cede espaccedilo agrave soja

A Receita Federal do Brasil na Soluccedilatildeo de Consulta nordm 56 de 16 de junho de 2011 publicada no Diaacuterio Oficial da Uniatildeo de 17 de junho de 2011 definiu o instituto Trading Company como uma empresa comercial exportadora constituiacuteda sob a forma de socie-dade por accedilotildees dentre outros requisitos miacutenimos previstos no De-creto-Lei nordm 124872 (BRASIL 2009) Ou seja trading company eacute uma empresa comercial que realiza atividades como exportaccedilatildeo importaccedilatildeo e agenciamento das operaccedilotildees de compra e venda de mercadorias

O Decreto em voga veio para regulamentar alguns pon-tos especiacuteficos sobre a aquisiccedilatildeo de produtos no mercado interno visando agrave exportaccedilatildeo aleacutem de estatuir requisitos miacutenimos para a instituiccedilatildeo das tradings no Brasil

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De acordo com Pereira e Boavista (2010 p74)

Deve-se ressaltar que antes do advento dessa legis-laccedilatildeo jaacute existiam empresas comerciais exportadoras Logo a contribuiccedilatildeo da legislaccedilatildeo foi estabelecer uma categoria especiacutefica de comerciais exportado-ras ndash as que se enquadrassem no disposto no art 2ordm do referido Decreto-lei Este determinava exigecircncias quanto ao capital miacutenimo e agrave organizaccedilatildeo societaacuteria das tradings que pretendiam i) minimizar a proba-bilidade de as firmas natildeo honrarem seus compro-missos ii) influenciar esse mercado com a visatildeo de que a escala miacutenima eficiente para essas empresas deveria ser mais elevada (em linha com a experiecircn-cia japonesa) e iii) facilitar a fiscalizaccedilatildeo

Daiacute decorre a distinccedilatildeo entre trading company e comercial exportadora A primeira segue os ditames prescritos no art 2ordm do Decreto Lei nordm 1248 de 1979 quais sejam compor uma sociedade de accedilotildees accedilotildees essas nominativas e com direito a voto possuir ca-pital miacutenimo estabelecido pelo Conselho Monetaacuterio Federal e natildeo constar puniccedilotildees em decisatildeo administrativa final por infraccedilotildees relativas ao comeacutercio exterior

Hodiernamente a diferenciaccedilatildeo entre os dois citados insti-tutos se daacute no atinente ao porte em que as tradings desempenham maiores operaccedilotildees que as comerciais exportadoras

Insta ressaltar que Pereira e Boavista (Idem p 72-73) nota-ram essa mudanccedila Conforme os autores

[] os termos trading company e comercial exportado-ra tecircm no Brasil uma dimensatildeo conceitual maior do que quando foram estabelecidos Ou seja natildeo cabe mais a associaccedilatildeo do termo trading apenas agrave expor-taccedilatildeo indireta pois essas empresas atuam tanto na compra de mercadorias para exportaccedilatildeo quanto no auxiacutelio a outras empresas que pretendem exportar diretamente ndash oferecendo uma gama de serviccedilos de exportaccedilatildeo que ultrapassa em muito a simples ati-vidade de intermediaccedilatildeo comercial caracterizando-as como facilitadoras ou mesmo consultoras de

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exportaccedilatildeo Os serviccedilos oferecidos atualmente pelas tradings satildeo - Intermediaccedilatildeo comercial - Prospecccedilatildeo comercial estudos de mercado iden-tificaccedilatildeo de clientes canais de comercializaccedilatildeo etc - Accedilotildees de promoccedilatildeo comercial feiras material pro-mocional propaganda encontros de negoacutecios etc - Suporte logiacutestico preparaccedilatildeo de documentaccedilatildeo contrataccedilatildeo de transporte domeacutestico e internacional armazenagem serviccedilos alfandegaacuterios etc - Apoio agrave organizaccedilatildeo da produccedilatildeo e agrave adaptaccedilatildeo de produtos (regulamentos e normas teacutecnicas design etiquetagem embalagem etc) - Serviccedilos financeiros gerenciamento de risco e se-guros estruturaccedilatildeo de operaccedilatildeo de financiamento pagamento a fornecedores etc

Notam-se as grandes estruturas envolvendo as tradings ateacute mesmo pelo fato de a maior parte dessas manter relaccedilotildees dire-tas com paiacuteses de ilibada conduta no tocante ao mercado externo para o ecircxito de suas atividades

Natildeo se deve olvidar que ao se relacionar com os outros paiacuteses os contratos firmados com as tradings devem ser estipula-dos conforme a legislaccedilatildeo do paiacutes cliente Paiacutes cliente entende-se o Estado destinataacuterio da exportaccedilatildeo o qual fixaraacute o contrato res-peitando as regras de seu ordenamento juriacutedico A tiacutetulo de exem-plificaccedilatildeo se uma tranding nacional firmar contrato de exportaccedilatildeo com a China as claacuteusulas constantes nesse instrumento seguiratildeo as normativas do direito chinecircs Logo a depender do Estado clien-te as regras seratildeo modificadas

Aleacutem de se relacionar com outros Estados as tradings ne-gociam com os fornecedores internos de commodities que podem ser empresas ou pessoas fiacutesicas por meio de contratos que deveratildeo obedecer ao ordenamento paacutetrio

Eacute justamente frente aos fornecedores que as tradings vecircm importando a claacuteusula objeto de estudo e aplicando-as sobre os contratos firmados em domiacutenio nacional

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APLICACcedilAtildeO DO ldquoWASH OUTrdquo NO BRASIL

Internamente as tradings e os fornecedores de produtos agriacutecolas estabelecem contratos em sua maioria de compra e ven-da nos quais os fornecedores entregam na data aprazada a quan-tidade acordada do produto E para tanto em algum grande porto do Brasil jaacute existe um navio para exportar tais produtos

Por se tratar de relaccedilotildees comerciais de vultosas quantias os referidos instrumentos preveem claacuteusulas penalizadoras graves nos casos de inadimplemento contratual Eacute visando ao cumpri-mento total do acordado que se firma um ajuste entre as tradings e os paiacuteses-clientes no qual se estipula uma multa de elevado valor para cada dia que o mesmo navio ficar agrave espera da mercadoria Eacute o chamado demurrage ou sobre-estadia que segundo Gabardo (2011 p 2)

Nos contratos de transporte mariacutetimo de cargas o transportador se compromete mediante contrapres-taccedilatildeo do frete a transportar a mercadoria consigna-da pelo embarcador ao destino acordado Para que esta transaccedilatildeo possa ser efetuada normalmente o transportador concede ao usuaacuterio um determinado prazo de dias livres (estadia) para a realizaccedilatildeo das operaccedilotildees de carga e descarga das mercadorias Contudo havendo excesso ao periacuteodo estipulado tanto na utilizaccedilatildeo do navio quanto das unidades de cargas (contecirciner) o embarcador estaraacute incorrendo em sobre-estadia sobredemora ou demurrage como eacute internacionalmente conhecida

Batista (2011 p 2) ressalta que ldquopor dia extra cada navio gera entre US$ 15 mil e US$ 30 mil de penalidade ao embarcador ou seja agraves tradings exportadoras de commoditiesrdquo Logo a cada dia de atraso no embarque das commodities as tradings tecircm que arcar com essa excessiva penalidade

Nota-se a importacircncia dada ao princiacutepio do pacta sunt ser-vanda Por se tratar de comeacutercio internacional este princiacutepio deve ser respeitado para que a credibilidade e confiabilidade do paiacutes

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bem como das tradings natildeo sejam questionadasEntretanto visando minimizar as perdas eventualmente

tidas com a sobre-estadia as tradings estabelecem uma disposiccedilatildeo contratual aos produtores nacionais e por meio dela comerciali-zam no caso de inadimplemento Eacute a figura conhecida como ldquowash outrdquo termo derivado da liacutengua inglesa que significa ldquodesgastarrdquo

Salienta-se sua novidade no ordenamento juriacutedico interno fato que impossibilita maiores pesquisas e embasamento teoacutericos a seu respeito Primeiramente analisou-se o ordenamento da Aus-traacutelia paiacutes que possui o GTA (About Grain Trade Australia 2014) que significa Comeacutercio de Gratildeos da Austraacutelia o qual aleacutem de ou-tras funccedilotildees desempenha a arbitragem como forma de lidar com os conflitos derivados dos contratos agriacutecolas

O regramento estabelecido pelo GTA natildeo define o ldquowash outrdquo que usualmente eacute utilizado pelas induacutestrias nos casos de exe-cuccedilatildeo contratual em que uma das partes natildeo consegue adimplir suas obrigaccedilotildees Em natildeo havendo um acordo entre as partes no tocante ao valor do ldquowash outrdquo as induacutestrias podem socorrer do Serviccedilo de Resoluccedilatildeo de Disputas (Idem)

O ldquowash outrdquo em sua grande maioria implica o paga-mento de uma parte para outra havendo manifestaccedilatildeo de vontade de ambas Desse modo qualquer das partes entrevendo que natildeo conseguiraacute executar sua obrigaccedilatildeo pode utilizar-se do instituto em comento ateacute mesmo como forma de se resguardar quanto agraves osci-laccedilotildees de mercado (GTA 2011)

Nos casos de quebra de safra ou eminente quebra de safra os vendedores podem escolher pelo ldquowash outrdquo ou buscar gratildeos em substituiccedilatildeo no mercado Dessa forma o ldquowash outrdquo seraacute cal-culado pela diferenccedila entre o preccedilo fixado no contrato e o seu valor no comeacutercio no momento em que for estipulado podendo a ele agregar alguns outros encargos administrativos (Idem)

No Brasil o tema em comento ganhou outra roupagem Via de regra vem embutida nos contratos de compra e venda Pode tambeacutem ser objeto de um contrato autocircnomo habitualmente chamado de ldquoacordo de wash outrdquo Ambos satildeo constituiacutedos de ma-

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neira unilateral pelas tradings Assim como na Austraacutelia o ldquowash out brasileirordquo tem por

escopo a indenizaccedilatildeo sobre a valorizaccedilatildeo das commodities no mer-cado ou seja a diferenccedila entre o preccedilo no momento da celebra-ccedilatildeo do contrato e no instante em que o mesmo for descumprido e aquele comprador tiver que procurar no mercado do dia o produto que deseja

Isso se daacute quando os contratos agriacutecolas de compra e ven-da desses produtos satildeo ratificados meses antes da sua execuccedilatildeo A tiacutetulo de exemplo se o negoacutecio juriacutedico tiver por objeto a safra de soja eacute celebrado no dia em que o custo da saca de soja eacute de R$ 6000 (sessenta reais) o contrato teraacute por base esse valor poreacutem a execuccedilatildeo do contrato se daraacute alguns meses apoacutes Se na data apra-zada o contrato natildeo for cumprido e o valor da soja agrave eacutepoca for de R$ 7000 (setenta reais) o ldquowash outrdquo consistiraacute em R$ 1000 (dez reais) de diferenccedila por cada saca de soja

Poreacutem no ordenamento juriacutedico brasileiro o ldquowash outrdquo possui diferentes caracteriacutesticas Conforme anteriormente dito em territoacuterio nacional ele natildeo eacute estipulado conforme a vontade dos contratantes e sim de acordo com a conveniecircncia das tradings Ou-tro atributo se daacute ao fato de nos contratos originaacuterios envolvendo aquisiccedilatildeo de commodities ter presente alguma claacuteusula estipulando indenizaccedilotildees no caso de descumprimento da obrigaccedilatildeo ateacute mesmo porque no sistema paacutetrio vigente haacute mecanismo para tais casos Desse modo estabelecer o ldquowash outrdquo seria aplicar duplamente a penalizaccedilatildeo em virtude do inadimplemento

A propriedade que atinge diretamente o agricultor eacute o va-lor fixado a tiacutetulo de ldquowash outrdquo Ao inveacutes de seguir os paracircmetros convencionais do referido instituto estrangeiro e de o quantum ser aferido em razatildeo da diferenccedila existente entre o preccedilo da commodi-ty no momento da contrataccedilatildeo e no instante da inadimplecircncia no Brasil esse valor jaacute vem previamente ajustado de forma unilateral pelas tradings

Na grande maioria das vezes o custo do ldquowash outrdquo eacute tatildeo excessivo que pode atingir a integralidade do valor objeto do

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contrato Evidentemente natildeo se eacute averiguada a diferenccedila a qual o ldquowash outrdquo propotildee

Conceitualmente ldquowash outrdquo eacute uma claacuteusula existente nos contratos agraacuterios que estipulam uma indenizaccedilatildeo excessivamente onerosa para o contraente que natildeo cumprir suas obrigaccedilotildees in-denizaccedilatildeo essa que teoricamente consiste na diferenccedila valorativa das commodities existentes entre o dia da ratificaccedilatildeo do contrato e o da inadimplecircncia por conta de oscilaccedilotildees do mercado Eacute justa-mente nesse contexto que aleacutem de ferir uma seacuterie de normativas paacutetrias fere frontalmente os princiacutepios aqui em vigor dentre os quais alguns seratildeo adiante ponderados

Princiacutepios aplicaacuteveis ao ldquowash outrdquo

Ao adentrar o ordenamento paacutetrio o ldquowash outrdquo deveraacute obedecer aos princiacutepios aqui vigentes dentre eles os infratranscri-tos Como marca inicial tem-se a boa-feacute como sendo o princiacutepio fundamental das relaccedilotildees entre os seres humanos inclusive nas mediaccedilotildees contratuais

Para Vilaccedila (1995 p 98)

O princiacutepio da boa-feacute deve ser antes de tudo men-cionado pois ele assegura o acolhimento do que eacute liacutecito e a repulsa ao iliacutecito A contrataccedilatildeo de boa-feacute eacute a essecircncia do proacuteprio en-tendimento entre os homens e a presenccedila da eacutetica nos contratos Sim porque a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da boa-feacute traz para a ordem juriacutedica um elemento de Direito Natural que passa a integrar a norma de direito

Tal vetor permeia o ordenamento juriacutedico por inteiro Eacute interessante destacar o que o Coacutedigo Civil Portuguecircs assevera so-bre o assunto

Artigo 227(Culpa na formaccedilatildeo dos contratos)Quem negocia com outrem para conclusatildeo de um

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contrato deve tanto nos preliminares como na for-maccedilatildeo dele proceder segundo as regras da boa feacute sob pena de responder pelos danos que culposamen-te causar agrave outra parte (Portugal Lei 822014)

Nota-se que ao estipular o ldquowash outrdquo nos contratos haacute uma afronta direta ao princiacutepio em voga pois o contratante ao estipular a tal claacuteusula ao menos pode aferir se de fato haveraacute um efetivo dano na data aprazada

Por atuar como uma espeacutecie de indenizaccedilatildeo aos danos fu-turos e constituir uma claacuteusula com valor excessivo o ldquowash outrdquo evidentemente viola o princiacutepio da boa feacute O princiacutepio de liberda-de contratual se presta a defender aquela parte que nas relaccedilotildees contratuais natildeo possui livre-arbiacutetrio para dispor sobre seus inte-resses ficando atrelada agrave vontade da parte adversa

Isso ocorre por haver na relaccedilatildeo contratual uma parte mais vulneraacutevel que a outra a qual acaba por aceitar as imposiccedilotildees para natildeo perder o negoacutecio No caso em voga pelo fato de os produtores de commodities serem a parte mais fraca pois dependem direta-mente das atividades das tradings para exportaccedilatildeo surge um qua-se dever em aceitar os termos contratualmente ordenados Com isso lesotildees satildeo ocasionadas

Nesta senda Vilaccedila (1995 ano p 99-100) preceitua

Realizado o pacto sob essa pressatildeo a lesatildeo ocorre sendo difiacutecil e custosa a reparaccedilatildeo para repor certos valores destruiacutedos Se dermos forccedila demais agrave liberdade contratual fi-cando o homem livre na sociedade sem condiccedilotildees de discutir razoavelmente sobre suas convenccedilotildees seraacute ele o mesmo que um paacutessaro libertado de um a gaiola ao faacutecil alcance de um gaviatildeo pronto para atacaacute-lo Pouco duraria a liberdade daquele

Deste modo embora haja liberdade nos contratos certas limitaccedilotildees devem ser imanentes ao princiacutepio em comento em res-peito agrave sistemaacutetica do direito

Outro ponto que merece destaque eacute o princiacutepio da funccedilatildeo

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social dos contratos bem esclarecido por Vilaccedila (2011 p 100)

Por esse princiacutepio os contratos desempenham um relevante papel na sociedade nacional e internacio-nalmente considerada Pelos contratos os homens devem compreender-se e se respeitar para que encontrem um meio de enten-dimento e de negociaccedilatildeo sadia de seus interesses e natildeo um meio de opressatildeo

Assim sendo a real funccedilatildeo desempenhada pelo contrato de compra e venda entre produtores e tradings consiste no justo preccedilo da aquisiccedilatildeo das commodities e a entrega da mercadoria con-forme o convencionado pautando-se pela boa-feacute Menccedilotildees contra-tuais que contrariem esse postulado certamente causaratildeo danos a algumas das partes

Pela comutatividade princiacutepio imanente ao direito tem-se que as prestaccedilotildees e contraprestaccedilotildees devem ser equilibradas sendo impostas aos contratantes para terem ciecircncia desde o iniacutecio do negoacutecio juriacutedico de seus lucros e perdas

Um dos principais postulados estaacute estampado no princiacute-pio Rebus sic stantibus que pode ser traduzido pela expressatildeo ldquoas coisas estatildeo assimrdquo No direito moderno eacute conhecido como teoria da imprevisatildeo tendo por escopo relativizar o princiacutepio do pacta sunt servanda em relaccedilatildeo aos fatos que se alterarem notadamente no transcorrer do contrato

Para tanto nos moldes de Vilaccedila (2011 p 101-102)

Todavia essa claacuteusula considerada pela Doutrina e pela Jurisprudecircncia brasileiras como existente em todos os contratos ainda que natildeo expressamente contratada apresenta-se com trecircs pressupostos fun-damentais autorizadores de sua aplicaccedilatildeoDeve ocorrer primeiramente uma alteraccedilatildeo radical do contrato em razatildeo de circunstacircncias imprevistas e imprevisiacuteveis (aacutelea extraordinaacuteria) []Por outro lado eacute preciso que exista enriquecimento prejuiacutezo inesperado e injusto por um dos contratan-tes

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O terceiro pressuposto eacute a onerosidade excessiva que sofre um dos contratantes tornando-se para ele insuportaacutevel a execuccedilatildeo contratual Com o visto torna-se impossiacutevel a aplicaccedilatildeo da claacuteu-sula ldquorebus sic stantibusrdquo ante a natildeo-ocorrecircncia de um desses trecircs pressupostos

Diante do ldquowash outrdquo eacute evidente que por se tratar de pro-duto agriacutecola depende diretamente de vaacuterios fatores naturais os quais o ser humano natildeo pode influir os riscos da atividade satildeo maiores podendo ocorrer uma modificaccedilatildeo ao longo da vigecircncia contratual que impossibilita o cumprimento do mesmo Entra em cena o princiacutepio supracitado por nortear o operador do direito

Por fim destaca-se o princiacutepio da onerosidade excessiva no qual um dos contratantes estipula uma obrigaccedilatildeo exagerada ao outro

Aplicando-se ao ldquowash outrdquo os produtores ao negocia-rem com as tradings ou ateacute mesmo com outras empresas ficam res-ponsabilizados por no caso de inadimplecircncia ainda que parcial a indenizar uma grandiosa quantia monetaacuteria Tal fato causa seacuterias lesotildees aos produtores que natildeo possuem condiccedilotildees de arcar com esta claacuteusula abusiva

Vilaccedila (2011 p103) sabiamente leciona

Ao Direito repugna a atuaccedilatildeo iliacutecita e mesmo o en-riquecimento indevido pois a lesatildeo estaacute presente neles O fenocircmeno da lesatildeo no direito contratual moder-no deve ser encarado objetivamente Causado o prejuiacutezo ocorrendo o desequiliacutebrio nas prestaccedilotildees deve ser o reestabelecimento da igualdade entre os contratantes Isto porque o agravamento unilateral da prestaccedilatildeo de uma das partes contratantes torna excessivamente onerosa sua obrigaccedilatildeo e via de con-sequecircncia insuportaacutevel o cumprimento desta

Desse modo sendo o ldquowash outrdquo onerosamente excessivo acaba por violar natildeo soacute o princiacutepio em voga como todos os ante-

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riormente aduzidos

Implicaccedilotildees do ldquowash outrdquo no direito paacutetrio

Por ter adentrado o direito brasileiro o ldquowash outrdquo deve ser guiado pelos preceitos estatuiacutedos na Magna Carta e legislaccedilotildees infraconstitucionais

E ainda que a Secretaria de Comeacutercio Exterior tenha pu-blicado a Portaria nordm 15 de 17 de novembro de 2004 disciplinando alguns pontos no tocante ao ldquowash outrdquo natildeo houve eficaacutecia e apro-veitamento algum para o ordenamento juriacutedico brasileiro embora pudesse ser uacutetil uma vez que preleciona o seguinte

O SECRETAacuteRIO DE COMEacuteRCIO EXTERIOR DO MINISTEacuteRIO DO DESENVOLVIMENTO INDUacuteS-TRIA E COMEacuteRCIO EXTERIOR no exerciacutecio de suas atribuiccedilotildees com fundamento no art 15 do Ane-xo I ao Decreto nordm 4632 de 21 de marccedilo de 2003 vi-sando consolidar as disposiccedilotildees regulamentares das operaccedilotildees de exportaccedilatildeo resolvesect 8ordm Poderatildeo ser acolhidos pedidos de operaccedilotildees de recompra (wash out) desde que atendam aos seguin-tes requisitos preliminaresI - ganho cambial (preccediloprecircmio da recompra obri-gatoriamente inferior ao da venda) em cada RV a ser definido de acordo com as condiccedilotildees de mercado na eacutepoca do pedido de recompraII - ser submetido a exame na data de sua negocia-ccedilatildeo acompanhado de documentaccedilatildeo pertinenteIII - a empresa deveraacute comprovar o efetivo ingres-so das divisas no prazo de dez dias uacuteteis contados a partir da data da negociaccedilatildeo mediante apresentaccedilatildeo do contrato de cacircmbio relativo agrave operaccedilatildeo de recom-pra devidamente liquidado (BRASIL 2004)

Depreende-se da assertiva acima que foram estabelecidos alguns criteacuterios miacutenimos para aplicaccedilatildeo do ldquowash outrdquo elementos esses que poderiam servir de paracircmetros para delinear os contra-tos uma vez que traz preceitos importantes inclusive de acordo com o inciso I ao prever o pagamento do valor agrave eacutepoca da recom-pra

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Haacute tambeacutem o informe da Associaccedilatildeo de Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (APROSOJA) que conceitua o tema em voga

22 Claacuteusula de indenizaccedilatildeo (wash-out) Essa claacuteu-sula normalmente prevecirc a obrigaccedilatildeo de que aquele que der causa agrave rescisatildeo do contrato deve pagar agrave outra o valor do produto adquirido no dia da liqui-daccedilatildeo do contrato (no dia da entrega do produto) e normalmente possui a seguinte descriccedilatildeo a ser ve-rificada contrato por contrato ldquo[] sobre o produto natildeo entregue o produtor deveraacute arcar com perdas e danos que fica estipulada em 100 do preccedilo do pro-duto comercializado ao preccedilo do produto na data de entrega []rdquo (2016 p 3)

Contudo natildeo se mostra suficiente a conceituaccedilatildeo acima aleacutem de deixar em completo desequiliacutebrio as partes contratantes ao previamente fixar multa de 100 sobre o descumprimento con-tratual

O ordenamento juriacutedico brasileiro possui todas as ferra-mentas necessaacuterias para que a parte que descumprir o contrato arque com os prejuiacutezos causados Sendo assim o ldquowash outrdquo tal qual estaacute sendo aplicado no Brasil natildeo possui embasamento legal por desrespeitar aleacutem dos princiacutepios supramencionados as regras do Coacutedigo Civil Estando previsto em uma claacuteusula resta configu-rada sua abusividade sustentada pela onerosidade excessiva de que se reveste correspondendo a uma consideraacutevel porcentagem do valor da obrigaccedilatildeo originaacuteria

Considerando um negoacutecio juriacutedico o ldquowash outrdquo pode ser analisado sob a tricotomia deste No plano da existecircncia de fato os requisitos estatildeo preenchidos Na validade a manifestaccedilatildeo da vontade deve ser livre e como discorrido anteriormente pode ocorrer de o ldquowash outrdquo ser uma claacuteusula praticamente imposta para celebraccedilatildeo do acordo Nesse caso viciado estaria conduzindo agrave nulidade da claacuteusula

Atinente agrave eficaacutecia certamente o ldquowash outrdquo poderaacute surtir efeitos juriacutedicos Neste contexto se insere o papel acadecircmico vi-

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sando auxiliar a jurisprudecircncia na dinacircmica do tema por ser um assunto novo e complexo Como exemplo cito o Acoacuterdatildeo 1268606-7 do estado do Paranaacute no qual a douta Relatora entendeu pela legalidade da claacuteusula ldquowash outrdquo por natildeo julgaacute-la abusiva (BRA-SIL Acoacuterdatildeo na Apelaccedilatildeo 1268606-7)

Nesta senda papel de destaque possuem os trabalhos aca-decircmicos por fomentar o assunto e auxiliar os operadores do di-reito na compreensatildeo do tema em comento e por mais intrincado que seja necessaacuteria eacute essa construccedilatildeo pela real tendecircncia do ldquowash outrdquo ser mais utilizado acarretando disputas judiciais sobre sua incidecircncia

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Por ser algo novo no cenaacuterio brasileiro a escassez de ma-terial foi um grande obstaacuteculo na elaboraccedilatildeo do presente trabalho que se fundou basicamente em publicaccedilotildees dos primeiros advoga-dos a terem contato com o tema em anaacutelise

Enfatizaram-se os papeacuteis das tradings nesse contexto res-saltando-se as forccedilas de tais empresas nas relaccedilotildees comerciais e a influecircncia que as mesmas possuem ao estipular os termos contra-tuais nos quais os produtores acabam ratificando para natildeo perder o negoacutecio

Eacute justamente nesse contrato que se insere o ldquowash outrdquo uma claacuteusula que originariamente visa restituir a valorizaccedilatildeo da commodity entre o periacuteodo em que foi estabelecido o contrato e o momento em que o mesmo foi inadimplido Meses se passam en-tre esses fatos e havendo aumento de preccedilo das commodities eacute o ldquowash outrdquo que iraacute restauraacute-lo

No Brasil foram dados agrave referida claacuteusula contornos di-versos dos originalmente estabelecidos nos paiacuteses estrangeiros conforme o acima exposto Aqui o ldquowash outrdquo eacute uma claacuteusula por vezes abusiva que visa agrave reparaccedilatildeo de possiacutevel dano na maioria das vezes alcanccedilando valores exorbitantes

Reiterada estaacute se tornando tal praacutetica que eacute questatildeo de

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tempo ateacute chegar ao judiciaacuterio oacutergatildeo que deveraacute ter embasamento teoacuterico para realizar um julgamento de forma equacircnime visando compreender um instituto que natildeo eacute de faacutecil assimilaccedilatildeo aleacutem de afrontar princiacutepios e normas do direito interno

Postulados como boa-feacute liberdade contratual funccedilatildeo so-cial do contrato comutatividade rebus sic stantibus e onerosidade excessiva devem ser considerados quando o assunto eacute ldquowash outrdquo A depender do contexto em que eacute inserido e da sua quantificaccedilatildeo monetaacuteria poderaacute afrontar diretamente os princiacutepios supracita-dos

Aparentemente o ldquowash outrdquo como vem sendo posto possui linhas de ilegalidade justamente por ferir regras e princiacute-pios vigentes no ordenamento juriacutedico nacional Visto sobre o pla-no tricotocircmico dos negoacutecios juriacutedicos tambeacutem seraacute necessaacuterio um estudo casuiacutestico no tocante agrave validade e eficaacutecia

Nos moldes como foi introduzido no Brasil o ldquowash outrdquo eacute uma penalidade em repeticcedilatildeo por jaacute existirem no ordenamento paacutetrio mecanismos aptos a penalizar quem descumprir o contrato O ldquowash outrdquo teve sua forma originaacuteria totalmente desviada e por assim ser natildeo foi adaptado e inserido como uma ferramenta eficaz

Eacute importante dizer que por ser uma novidade estrangeira o ldquowash outrdquo pode ser adaptado ao direito paacutetrio obedecendo ao ordenamento aqui instituiacutedo ponderaccedilatildeo essa que seraacute realizada pelo poder judiciaacuterio o qual recorreraacute dos estudos acadecircmicos e doutrinaacuterios para o julgamento das lides

Destarte registra-se que o assunto em voga merece fo-mento e destaque por ser atual e de grande importacircncia para o sistema juriacutedico

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A FRONTEIRA JURIacuteDICO-POLIacuteTICA ENTRE OS SISTEMAS JURIacuteDICOS DA COMMON LAW E DA CIVIL LAW E SEUS IM-PACTOS NO DIREITO PAacuteTRIO

Ana Paula Soares de Souza1

Danilo Pires Atala2

RESUMO Este trabalho tem como objetivo apresentar as peculiaridades existentes entre os sistemas juriacutedicos da Common Law e da Civil Law com enfoque respectivamente nos ordenamentos juriacutedicos norte-americano e francecircs na perspectiva de Garapon e de outros estudiosos do direito E visa principalmente realccedilar as influecircncias que tais sistemas juriacutedicos realizaram no direito paacutetrio por meio de comparaccedilotildees mostrando que o direito brasileiro atual possui um sistema misto Para esse fim estruturou-se o trabalho em trecircs momentos distintos primeiramente fez-se uma abordagem geral apontando caracteriacutesticas que o Brasil positivou do Common Law para seu ordenamento juriacutedico Apoacutes demonstrou-se como o contexto histoacuterico influenciou sobremaneira a adoccedilatildeo deste ou daquele sistema juriacutedico E por fim explanou-se que a globalizaccedilatildeo e a tecnologia foram transformando o sistema juriacutedico brasileiro outrora extremamente arraigado na cultura Civil Law em um sistema juriacutedico misto que ora utiliza-se apenas da lei ora utiliza-se de um precedente para analisar um caso concreto

PALAVRAS-CHAVE Civil Law Common Law Sistema juriacutedico brasileiro

ABSTRACT This paper aims to present the peculiarities existing between the legal system of Common Law and Civil Law with a focus respectively on the North American and French legal systems from the perspective of Garapon and other scholars of

1 Acadecircmica do 8ordm periacuteodo do Curso de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT2 Professor Doutor do Departamento de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT

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law And purpose to highlight the influence of such legal systems on brasilian through comparisons showing that current brazilian legal system has a mixed system To this end the present work was structured in three distinct moments first a general approach was made pointing out characteristics that Brazil positived from Common Law to its legal order Afterwards it was demonstrated how the historical context greatly influenced the adoption of this or that legal system And finally it was explained that globalization and technology were transforming the Brazilian legal system once deeply rooted in a Civil Law culture to a mixed legal system that now uses only the law or a precedent is used to analyze a concrete case

KEYWORDS Civil Law Common Law Brazilian legal system

INTRODUCcedilAtildeO

O presente artigo tem por objeto caracterizar a diferenccedila entre os sistemas juriacutedicos Common Law e Civil Law tendo como fronteira juriacutedico-poliacutetica a Europa Continental a Inglaterra e os Estados Unidos da Ameacuterica Emprega-se o meacutetodo juriacutedico des-critivo que permite a decomposiccedilatildeo do problema em diferentes niacuteveiselementos e estabelece as interligaccedilotildees entre os mesmos para analisar e responder ao problema proposto

O sistema juriacutedico nacional embora seja tradicionalmen-te legislado aos poucos vai incorporando teorias e institutos do sistema da Common Law como por exemplo a suacutemula vinculante introduzida pela Emenda Constitucional 0452004 que acresceu o art 103-A Ainda tem-se os exemplos do que se convencionou chamar de direito jurisprudencial nos artigos 489 V-VI e 947 e 976 do Coacutedigo de Processo Civil de 2015 principalmente no art 926 que estabelece o dever dos tribunais de manter a jurisprudecircncia integra estaacutevel e coerente em evidente agasalhamento da Teoria do Direito com Integridade de Ronald Dworkin (1999) Ainda neste sentido destaca-se que no Brasil o reconhecimento da uniatildeo ho-moafetiva decorreu da construccedilatildeo ou criaccedilatildeo jurisprudencial no julgado do STF na ADI nordm 4277 e ADPF nordm 132 Assim entender as

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distinccedilotildees e as caracteriacutesticas destes dois sistemas proporcionaraacute uma melhor compreensatildeo do proacuteprio direito nacional

Breves apontamentos acerca dos Sistemas Juriacutedicos Common Law e Civil Law

O Sistema Civil Law tambeacutem usualmente apelidado de ldquoromano-germacircnicordquo diz respeito aos paiacuteses que cunharam a ciecircn-cia do direito tendo como base o direito romano cujo nascedouro se deu na Europa Nos dizeres de David (2002) os primoacuterdios do sistema Civil Law remontam aos seacuteculos XII e XIII Historicamente esse periacuteodo corresponde agrave fase em que as cidades e o comeacutercio comeccedilaram a se expandir fato que intensificou na sociedade da eacutepoca o ideal de que somente o direito pode assegurar a ordem e a segu-ranccedila necessaacuterias ao progresso (DAVID idem p 39) Com este vieacutes Medeiros (2009) diz que o ideal de uma sociedade cristatilde fundada na caridade eacute abandonado o que produz uma ruptura entre o di-reito e a religiatildeo tornando-se o direito autocircnomo

Aponta Cretella (1986) como jaacute foi dito na Roma Antiga que o direito passou a se constituir extraindo o preceito juriacutedico dos casos concretos cotidianos identificando sua classificaccedilatildeo e em seguida aplicando-se a novos casos Por isso muitos doutri-nadores apontam que o Estado Romano foi fundamental para a histoacuteria do direito constituindo-se em um divisor de aacuteguas nos processos de formaccedilatildeo dos sistemas de Civil Law e Common Law

A partir do momento em que a academia passou a se uti-lizar de textos romanos acabou por incorporar o conteuacutedo termi-noloacutegico e conceitual bem como a teacutecnica proacutepria de raciociacutenio juriacutedico para o desenvolvimento das regras juriacutedicas Tal entendi-mento juriacutedico se caracteriza mormente pelo fato de suas regras de direito serem concebidas como regras de conduta

Segundo Bobbio (1995 p 64-65) em seu livro O Positivis-mo Juriacutedico

[] a exigecircncia da codificaccedilatildeo nasceu de uma con-cepccedilatildeo francamente iluminista como demonstra

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o mote sapere aude citado por Thibaut tambeacutem na Franccedila (e na verdade com maior razatildeo visto ser este paiacutes a paacutetria maior do iluminismo) a ideacuteia de co-dificaccedilatildeo eacute fruto da cultura racionalista e se aiacute pocircde se tornar realidade eacute precisamente porque as ideacuteias iluministas se encarnaram em forccedilas histoacuterico-poliacuteti-cas dando lugar agrave Revoluccedilatildeo Francesardquo Eacute de fato propriamente durante o desenrolar da Revoluccedilatildeo Francesa (entre 1790 e 1800) que a ideacuteia de codificar o direito adquire consistecircncia poliacutetica

Diversos acontecimentos na Franccedila no seacuteculo XIX como a uniatildeo do monarca e da nobreza abusos excessivos de privileacutegios dos nobres do clero e tambeacutem dos magistrados conforme Sam-paio (2001) resultaram na Revoluccedilatildeo Francesa que foi o grande marco histoacuterico responsaacutevel pela consolidaccedilatildeo de um novo mode-lo juriacutedico riacutegido pois os revolucionaacuterios desse momento enxerga-ram a necessidade de conter a atuaccedilatildeo judicial que nos dizeres de Marinoni (2009 p 46)

[] para a Revoluccedilatildeo francesa a lei seria indispen-saacutevel para a realizaccedilatildeo da liberdade e da igualdade Por este motivo entendeu-se que a certeza juriacutedica seria indispensaacutevel diante das decisotildees judiciais uma vez que caso os juiacutezes pudessem produzir deci-sotildees destoantes da lei os propoacutesitos revolucionaacuterios estariam perdidos ou seriam inalcanccedilaacuteveis A cer-teza do direito estaria na impossibilidade de o juiz interpretar a lei ou melhor dizendo na proacutepria lei Lembre-se que com a revoluccedilatildeo francesa o poder foi transferido ao parlamento que natildeo podia confiar no judiciaacuterio

Do mesmo modo para Wambier (2010) a lei nesse pe-riacuteodo passou a ter o papel fundamental de representar um ideal de igualdade impossibilitando qualquer forma de interpretaccedilatildeo devendo nesse contexto histoacuterico ao magistrado restringir sua decisatildeo ao texto legal A concepccedilatildeo de igualdade no Civil Law era associada agrave rigorosa aplicaccedilatildeo da lei o que deu origem a um in-tenso processo de codificaccedilatildeo do direito cabendo ao juiz a funccedilatildeo

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de apenas aplicar as leis positivadas garantindo deste modo uma igualdade meramente formal

Assim aleacutem de restringir a aplicaccedilatildeo do direito pelo ma-gistrado fez com que o direito se transfigurasse na mera aplicaccedilatildeo do positivismo legislativo sem nenhuma anaacutelise das peculiarida-des do caso concreto Conforme Grossi (2006) todo o direito da eacutepoca iniciando-se com o direito civil foi aprisionado em milhares de artigos organicamente sistematizados e contidos em alguns li-vros chamados ldquocoacutedigosrdquo

Marinoni (2010) de forma brilhante aponta que natildeo eacute o fato de se ter coacutedigos ou natildeo que determina o modelo juriacutedico ado-tado a distinccedilatildeo eacute feita sobretudo a partir da concepccedilatildeo de coacutedigo que cada indiviacuteduo possui Na sua concepccedilatildeo no Common Law os coacutedigos natildeo pretendem coibir a interpretaccedilatildeo da lei razatildeo pela qual se houver um conflito entre uma lei codificada e uma empre-gada pela Common Law ficaraacute ao encargo do juiz interpretar qual das duas deveraacute ser aplicada

Dentre os vaacuterios paiacuteses que adotaram tal sistema cita-se o Brasil que por ter sido colocircnia de Portugal e nele predominar o sis-tema romano-germacircnico teve no nascedouro da ciecircncia do direito uma geraccedilatildeo de legisladores e juristas que procuravam codificar para deste modo reformular comportamentos Vejamos

[] em face de sua tradiccedilatildeo romanista o Direito Bra-sileiro tambeacutem eacute marcado pela sistematizaccedilatildeo e pela codificaccedilatildeo bem como por fazer uso de institutos originados no Direito Romano e revistados pelos doutrinadores da Europa Continental poacutes Idade Meacutedia [] O ensino do Direito no Brasil somente se iniciou em 1827 entretanto por conta da presenccedila dos jesuiacutetas e com a ida de jovens a Portugal para se tornarem bachareacuteis os estudos da Universidade de Coimbra acabaram cruzando o Atlacircntico ainda na eacutepoca colonial (SANTOS 2010 p 25)

A tiacutetulo de exemplo o Coacutedigo Civil de 1916 se encontra abarrotado de institutos oriundos do Direito Portuguecircs que por sua vez tem suas raiacutezes juriacutedicas provenientes do Direito Romano

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Em contraponto tem-se o sistema Common Law que tem suas raiacutezes nas estruturas judiciaacuterias da Inglaterra Paiacutes de Gales Irlanda do Norte e Escoacutecia e que embora tenham particularidades em razatildeo de vicissitudes histoacutericas todas elas satildeo baseadas no di-reito casuiacutestico ou case law segundo Oliveira (apud TUCCI 2010)

Diferentemente do sistema Civil Law que se deu precipu-amente mediante fases histoacutericas o sistema Common Law se deu de maneira ininterrupta baseado no cotidiano da sociedade ingle-sa ou seja ele foi se transformando no decorrer das relaccedilotildees esta-belecidas

Nas palavras de Wambier (2009 p 54)

O common law natildeo foi sempre como eacute hoje mas a sua principal caracteriacutestica sempre esteve presente casos concretos satildeo considerados fonte do direito O direito inglecircs berccedilo de todos os sistemas de common law nasceu e se desenvolveu de um modo que pode ser qualificado como ldquonaturalrdquo os casos iam sur-gindo iam sendo decididos Quando surgiam casos iguais ou semelhantes a decisatildeo tomada antes era repetida para o novo caso Mais ou menos como se dava no direito romano

Denota-se pelas palavras da autora que esse sistema juriacute-dico por ter dado mais autonomia aos juiacutezes permitiu-lhes que compusessem um sistema de precedentes para julgamento de ca-sos futuros e eacute dessa concepccedilatildeo de empregar julgamento de casos passados para vincular soluccedilotildees futuras que se extrai a concepccedilatildeo de precedente judicial

Jaacute o sistema do stare decisis se refere ao modo de opera-cionalizar o sistema da Common Law cominando certeza a essa praacutetica Eacute o denominado sistema de precedentes que nasceu tatildeo-somente no seacuteculo XVI Deste modo a teoria do stare decisis et non quieta movere que significa literalmente ldquomantenha-se a decisatildeo e natildeo mexa no que estaacute quietordquo (SABINO 2010 p 61) estaacute relacio-nada agrave ideia de que os juiacutezes estatildeo vinculados agraves decisotildees do pas-sado ou seja aos precedentes

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Entretanto Marinoni (2010) sabiamente explica que natildeo se deve confundir a doutrina de stare decisis com o proacuteprio sistema Common Law pois o Common Law foi desenvolvido pelos costumes gerais e como jaacute dito se desenvolveu no decorrer dos seacuteculos an-tes de surgir o stare decisis ou precedente vinculante Assim o stare decisis eacute tatildeo-somente um componente presente que se encontra in-cluso dentro do modelo juriacutedico baseado na Common Law

O realce da distinccedilatildeo entre stare decisis e Common Law natildeo obstante necessaacuterio para afastar uma banal confusatildeo centra-se na preocupaccedilatildeo deste trabalho em amparar o sistema de precedentes que pode constituir parte do sistema brasileiro Com efeito o sta-re decisis constitui apenas um elemento do moderno Common Law que tambeacutem natildeo se confunde com o Common Law de tempos remo-tos ou com os costumes gerais de natureza secular (MARINONI 2009)

Conforme Marinoni (Idem) o magistrado inglecircs teve fun-ccedilatildeo crucial na efetivaccedilatildeo do sistema juriacutedico Common Law pois nesse contexto histoacuterico o poder do juiz era o de afirmar o Common Law o qual se sobrepunha ao Legislativo que por isso deveria atuar de modo a complementaacute-lo Desta maneira na Inglaterra o juiz permaneceu ao lado do parlamento no combate agraves arbitrarie-dades empreendidas pelo monarca preocupando-se com a tutela dos direitos e das liberdades do cidadatildeo Por isso mesmo diferen-temente do que ocorreu na Revoluccedilatildeo Francesa natildeo houve justifi-cativa para desconfiar do Judiciaacuterio ou para desconfiar de que os juiacutezes se posicionariam em favor do rei ou do absolutismo

Nesta senda ao se referir que o juiz do Common Law cria o direito natildeo se estaacute fundamentalmente assegurando que a sua decisatildeo tem a mesma forccedila e qualidade do produto elaborado pelo Legislativo isto eacute da lei A decisatildeo neste contexto natildeo se equipara agrave lei pelo fato de ter forccedila obrigatoacuteria para os demais juiacutezes Poreacutem seria possiacutevel argumentar que a decisatildeo por ter forccedila obrigatoacuteria constitui direito

Para Marinoni (2009 p 190)

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O Common Law considera o precedente como fonte de direito Note-se contudo que quando um prece-dente interpreta a lei ou a Constituiccedilatildeo como acon-tece especialmente nos Estados Unidos haacute eviden-temente direito preexistente com forccedila normativa de modo que seria absurdo pensar que o juiz neste caso cria um direito novo

Assim como bem exposto por Marinoni (2009) o que per-mite assegurar que o juiz do Common Law cria o direito eacute a com-paraccedilatildeo do seu papel com a do juiz da tradiccedilatildeo do Civil Law cuja funccedilatildeo se atinha agrave mecacircnica aplicaccedilatildeo da lei No Civil Law quando se dizia que ao juiz cabia apenas expressar as palavras ditadas pelo legislador o direito era concebido exclusivamente como lei A ta-refa do Judiciaacuterio se resumia agrave aplicaccedilatildeo das normas gerais O juiz inglecircs natildeo apenas teve espaccedilo para densificar o Common Law como tambeacutem oportunidade de a partir dele controlar a legitimidade dos atos estatais

Para Villey (2009) em seu livro A Formaccedilatildeo do Pensamen-to Juriacutedico Moderno na formaccedilatildeo do Estado Moderno (fim da ida-de medieval e iniacutecio do iluminismo) existiu a luta pelo poder ou da legitimaccedilatildeo do poder Os ldquoDireitosrdquo existentes eram a) usos e costumes locais b) direito canocircnico (Igreja Catoacutelica) c) usos e costumes dos baacuterbarosgermacircnicos e) direito romana atraveacutes das compilaccedilotildees e gozadores da jurisprudecircncia romana

Nesse contexto o rei queria impor o seu poder atraveacutes de sua lei escrita baseado na teoria desenvolvida por Hobbes (2003) em Leviatatilde Os ingleses embora aceitassem o sistema monarca re-cusavam a lei do rei de impor seus usos e costumes com base na teoria criada por Locke (2002) em Segundo Tratado de Governo

Assim para Hobbes (Idem) naturalmente os homens natildeo satildeo justos piedosos bondosos mas ao contraacuterio os homens satildeo tendentes agrave parcialidade orgulho e vinganccedila Na realidade nes-sa condiccedilatildeo o homem estaacute em situaccedilatildeo de guerra de todos contra todos como dito em sua marcante frase o homem eacute lobo do homem Com esta ceacutelebre frase o filoacutesofo quer advertir que o Estado eacute um mal necessaacuterio ou seja o Estado sendo soberano faz com que os

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suacuteditos se submetam em absoluto ao soberano o detentor do po-der a fim de garantir seguranccedila e uma vida mais tranquila saltan-do da condiccedilatildeo de intranquilidade instabilidade e da constante e iminente medo da morte violenta que urge a todo o momento no estado de natureza

Assim para evitar que a sociedade se torne um caos e te-nha um fim traacutegico de todos contra todos faz-se necessaacuterio outor-gar o poder ao Estado de preferecircncia a um soacute homem o soberano Para Hobbes (2003) natildeo se deve pensar que a liberdade limitada seria uma condiccedilatildeo ruim pois nessa perspectiva seria muito me-lhor ter a liberdade diminuiacuteda pelo Estado do que regressar ao estado inicial o de guerra como jaacute dito de todos contra todos

Nos dizeres de Lopes (2012) o Estado enquanto titular de todos os poderes age buscando garantir a paz e todos os direitos baacutesicos dos cidadatildeos sem levar em consideraccedilatildeo qualquer base eacutetica e moral Hobbes nesse contexto observa que o contrato so-cial eacute a soluccedilatildeo para a superaccedilatildeo tanto da violecircncia como da inse-guranccedila coletiva existentes no estado de natureza e assim o Esta-do eacute a soluccedilatildeo agrave sobrevivecircncia do homem em sociedade

Desse modo o Estado obriga por seu poder soberano o cumprimento das leis civis que servem para dirigir as accedilotildees dos homens com o escopo de garantir a paz e a seguranccedila Assim para evitar que os homens voltem ao estado natural eacute imperioso um Estado civil com poder soberano capaz de obrigar os homens a cumprirem seus pactos mesmo que para tal se utilize da espada coerccedilatildeo do castigo ou da forccedila

Para Locke (2002) o ldquoestado de naturezardquo natildeo eacute caracte-rizado necessariamente por um ldquoestado de guerrardquo hobbesiano E embora concorde com a possibilidade de existecircncia de um ldquoestado de guerrardquo para o filoacutesofo o estado de guerra se daacute quando se usa a forccedila contra a pessoa de outrem e natildeo existe um superior comum a quem apelar

De acordo com o fundamento epistecircmico lockeano as ideias complexas de direito e dever pressupotildeem uma relaccedilatildeo con-sensual de caraacuteter empiacuterico-psicoloacutegico pela qual os indiviacuteduos

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criam normas ou regras que atribuem ao sujeito a faculdade cog-nitiva de fazer ou deixar de fazer determinadas coisas cabendo ao Estado garantir esse direito limitando-o atraveacutes do dever

Losurdo (apud SILVA 2011 p 126) vai dizer que

Os dois tratados sobre o governo podem ser consi-derados momentos essenciais da preparaccedilatildeo e con-sagraccedilatildeo ideoloacutegica desse acontecimento que marca o nascimento da Inglaterra liberal Estamos na pre-senccedila de textos perpassados pelo pathos da liberda-de pela condenaccedilatildeo do poder absoluto pelo apelo a se insurgir contra aqueles infelizes que quisessem privar o homem da sua liberdade e reduzi-lo agrave es-cravidatildeo Mas de vez em quando no acircmbito dessa celebraccedilatildeo da liberdade se abrem fendas assustado-ras pelas quais passa na realidade a legitimaccedilatildeo da escravidatildeo nas colocircnias

Para melhor compreender tais sistemas faz-se necessaacuterio mergulhar na histoacuteria de cada paiacutes e verificar como as experiecircn-cias cotidianas contribuiacuteram para um determinado paiacutes adotar de forma predominante este ou aquele sistema juriacutedico Mais do que isso eacute observar os rituais que satildeo utilizados e contrapocirc-los a outros utilizados

Nesse contexto eacute apropriado citar Garapon (1997) que em seu livro Bem Julgar de forma brilhante compara estrutura e expotildee como se organizam os sistemas judiciaacuterios dos Estados Uni-dos e Franccedila Vislumbra-se que Garapon busca demonstrar de que modo a sociedade e sua cultura afetam o modus operandi do Direito e por consequecircncia a adoccedilatildeo do sistema Civil Law ou do Common Law Em uma das passagens de seu livro o autor cita que nos Es-tados Unidos o juiz se comporta como aacuterbitro enquanto na Franccedila como um padre ou seja aquele garante as regras do jogo enquanto este eacute o ator da cerimocircnia

A principal caracteriacutestica deste sistema juriacutedico eacute a codifi-caccedilatildeo Segundo as precisas observaccedilotildees de Garapon e Papapoulus (2008 p 33)

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Nos sistemas de direito romano-germacircnico a lei eacute a fonte primaacuteria do direito A codificaccedilatildeo aumenta consideravelmente a forccedila da lei hierarquizando as suas disposiccedilotildees e as reagrupando em um conjun-to exaustivo e coerente em suma racional A co-dificaccedilatildeo eacute certamente a teacutecnica mais caracteriacutestica dos direitos da famiacutelia romanista Longe de ser uma simples coletacircnea de regras o coacutedigo eacute um edifiacutecio legislativo que pretende ser o espelho de uma polis harmoniosa Ele deve fornecer ao cidadatildeo um mate-rial legiacutevel ao qual seja sempre possiacutevel referir-se e ser para o juiz um guia precioso para perceber atraveacutes da disposiccedilatildeo dos princiacutepios e da classifica-ccedilatildeo das regras a intenccedilatildeo legisladora Aliaacutes somente a lei constitui o direito do qual os juiacutezes satildeo apenas os porta-vozes

Jaacute a formaccedilatildeo da Common Law deriva dos antigos costumes locais e nem as fases porvindouras que lhe afeiccediloaram o estilo que hoje ela possui foram capazes de modificar sua caracteriacutestica essencial Como na Common Law os statutory laws tecircm papel secun-daacuterio a basilar fonte do direito eacute o direito como posto pelo magis-trado no caso concreto O direito inglecircs foi intensamente caracteri-zado pela carecircncia durante o seu periacuteodo de formaccedilatildeo de poder legislativo real no seio do Parlamento e pelo poder das Cortes Re-ais de Justiccedila A Common Law designa a totalidade dessas regras suscetiacuteveis de serem subsumidas a partir de decisotildees particulares No fundamento da Common Law se encontra portanto a regra do precedente

Garapon (1997) ainda em seu livro Bem Julgar quis de-monstrar que nos Estados Unidos em que se prepondera o Com-mon Law o comportamento empregado pelo juiz eacute o comparado ao de um aacuterbitro visto que apenas intermedia o conflito existente entre as partes Diferentemente da Franccedila onde o magistrado com-porta-se como um padre ele seria a peccedila principal do julgamento ditando a forma como deveriam se comportar as partes Essa com-paraccedilatildeo metafoacuterica feita por Garapon (Idem) busca mostrar que os rituais utilizados no Judiciaacuterio nada mais satildeo do que a externali-zaccedilatildeo dos valores da repuacuteblica e da democracia de cada paiacutes e os

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representa na cena no espaccedilo no tempo nas vestimentas na lin-guagem nos papeacuteis assumidos pelos atores de modo a tornar efi-ciente a sua comunicaccedilatildeo natildeo racional A ecircnfase portanto eacute dada aos papeacuteis assumidos por quem dirige o ritual e pelos seus parti-cipantes buscando conhecer as relaccedilotildees estabelecidas entre eles

O que o direito brasileiro tem de legislado e o que tem da Common Law

Como jaacute explanado nos primoacuterdios de criaccedilatildeo do Direito brasileiro prevaleceu o sistema Civil Law todavia por ser o Direito uma ciecircncia dinacircmica e considerando a globalizaccedilatildeo hoje eacute plau-siacutevel asseverar que o Brasil possui um sistema misto com traccedilos caracteriacutesticos dos dois sistemas juriacutedicos

Vislumbra-se sobretudo que com o advento do Coacutedigo de Processo Civil de 2016 positivou-se de forma muito mais en-faacutetica o emprego dos precedentes judiciais que o anterior Obser-va-se por este paradoxo que por meio do Civil Law positivou-se a importacircncia do precedente judicial que eacute caracteriacutestica marcante do Common Law de caraacuteter vinculante no ordenamento juriacutedico brasileiro Vejamos

Art 985 Julgado o incidente a tese juriacutedica seraacute aplicadaI - a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idecircntica questatildeo de direito e que trami-tem na aacuterea de jurisdiccedilatildeo do respectivo tribunal in-clusive agravequeles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou regiatildeoII - aos casos futuros que versem idecircntica questatildeo de direito e que venham a tramitar no territoacuterio de com-petecircncia do tribunal salvo revisatildeo na forma do art 986sect 1o Natildeo observada a tese adotada no incidente ca-beraacute reclamaccedilatildeo

Denota-se pelo artigo supracitado que a tese juriacutedi-ca delineada vincularaacute os demais oacutergatildeos do Poder Judiciaacuterio sob

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pena de ajuizamento de reclamaccedilatildeo que nada mais eacute do que um remeacutedio constitucional empregado nos casos de julgamento em dissonacircncia com a tese jaacute firmada Denota-se ainda nitidamente uma valorizaccedilatildeo maior para a interpretaccedilatildeo judicial das normas positivas visando dar maior agilidade bem como impedir insegu-ranccedila juriacutedica existente no Coacutedigo Processual Civil de 1973

Ademais o advento da EC nordm 452004 trouxe ao ordenamento juriacutedico a ideia de o juiz ser um agente integrador entre o ordenamento juriacutedico e a justiccedila Todavia a ideia de uma interpretaccedilatildeo verticalizada do ordenamento juriacutedico natildeo pode ser absoluta sob pena de atividade judicante ficar condenada a uma vinculaccedilatildeo preacutevia

De fato havendo similaridade no caso concreto e precedente de caraacuteter vinculante deveraacute o juiz acompanhaacute-lo sob pena de desrespeitar o princiacutepio da igualdade todavia essa ativi-dade judicante monocraacutetica deve ser dotada de autonomia incum-bindo o juiz ao analisar o caso concreto deixar de aplicaacute-lo levan-do em conta fatores regionais situacionais que se tornaratildeo desse modo o caso singular e portanto tornando incabiacutevel a utilizaccedilatildeo do precedente vinculante

Na concepccedilatildeo de Schauer (2009) uma decisatildeo que siga os precedentes eacute melhor do que uma decisatildeo correta e que repetidamente eacute mais importante uma dada decisatildeo seguir os pre-cedentes do que ter as melhores consequecircncias

Em contraponto para Dworkin (1999) o direito seria um conceito interpretativo como a cortesia no exemplo imaginaacuterio ci-tado em seu livro O Impeacuterio do Direito Para ele caberia aos juiacutezes reconhecer o dever de continuar o desempenho da profissatildeo agrave qual aderiram em vez de rejeitaacute-la E os proacuteprios magistrados desen-volveriam em resposta as suas proacuteprias convicccedilotildees e tendecircncias teorias operacionais sobre a melhor interpretaccedilatildeo de suas respon-sabilidades nesse desempenho Nesta concepccedilatildeo a atividade inter-pretativa em grande parte seria a busca sobre a melhor interpreta-ccedilatildeo de algum aspecto pertinente ao exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo do caso concreto

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Dworkin (Idem p 110) exemplifica em que consiste a ati-vidade interpretativa do magistrado

Assim o destino de Eacutelmer vai depender das convic-ccedilotildees interpretativas do corpo de juiacutezes que julgaratildeo o caso Se um juiz acha que para alcanccedilar a melhor in-terpretaccedilatildeo daquilo que os juiacutezes geralmente fazem a propoacutesito da aplicaccedilatildeo de uma lei ele nunca deve levar em conta as intenccedilotildees dos legisladores poderaacute entatildeo tomar uma decisatildeo favoraacutevel a Eacutelmer Mas se ao contraacuterio acha que a melhor interpretaccedilatildeo exige que ele examine essas intenccedilotildees eacute provaacutevel que sua decisatildeo favoreccedila Goneril e Regan Se o caso Eacutelmer for apresentado a um juiz que ainda natildeo refletiu sobre a questatildeo da interpretaccedilatildeo ele deveraacute entatildeo fazecirc-lo e de ambos os lados encontraraacute advogados dispostos a ajudaacute-lo As interpretaccedilotildees lutam lado a lado com os litigantes diante do tribunal

Nesse conceito interpretativo o exerciacutecio do precedente na concepccedilatildeo de Dworkin natildeo poderia ser ignorado pelo juiz em sua interpretaccedilatildeo pois a atividade judicante incorpora aspectos de outras interpretaccedilotildees correntes na eacutepoca

Aleacutem disso para Dworkin (1999) os juiacutezes conjecturam sobre o direito no acircmbito da sociedade e natildeo fora dela o meio inte-lectual de modo geral assim como a linguagem comum que reflete e protege esse meio exerce restriccedilotildees praacuteticas sobre a idiossincra-sia e restriccedilotildees conceituais sobre a imaginaccedilatildeo

Todavia o proacuteprio autor critica o inevitaacutevel conservado-rismo do ensino juriacutedico formal ainda presente na academia e do processo de selecionar juristas para as tarefas judiciaacuterias e admi-nistrativas considerando a cultura juriacutedica existente O fato eacute que certas soluccedilotildees interpretativas incluindo pontos de vista sobre a natureza e a forccedila da legislaccedilatildeo e do precedente satildeo muito popula-res em determinada eacutepoca e sua popularidade ajudada pela ineacuter-cia intelectual normal estimula os juiacutezes a consideraacute-las estabele-cidas para todos os propoacutesitos praacuteticos Elas satildeo os paradigmas e quase-paradigmas de sua eacutepoca Mas ao mesmo tempo outras

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questotildees talvez igualmente fundamentais satildeo objeto de debates e controveacutersias

Assim na concepccedilatildeo de Dworkin (Idem) o precedente deve ser adotado como um princiacutepio e as teorias gerais do direito devem ser abstratas pois seu desiacutegnio eacute interpretar o ponto essen-cial e a estrutura da jurisdiccedilatildeo natildeo uma parte ou seccedilatildeo especiacutefica desta uacuteltima Para ele os filoacutesofos do direito discutem sobre o fun-damento interpretativo que qualquer argumento juriacutedico deve ter Desse modo o voto de qualquer juiz eacute em si uma peccedila de filosofia do direito mesmo quando a filosofia estaacute oculta e o argumento manifesto eacute dominado por citaccedilotildees e listas de fatos A doutrina eacute a parte geral da jurisdiccedilatildeo o proacutelogo silencioso de qualquer vere-dito

Percebe-se deste modo que se faz necessaacuterio partir do pressuposto de que nenhum caso eacute rigorosamente igual ao outro e por conta dessas peculiaridades faz-se necessaacuterio identificar as razotildees que fazem privilegiar as diferenccedilas ou semelhanccedilas de um caso Assim eacute necessaacuterio verificar a viabilidade da teacutecnica da dis-tinccedilatildeo que nada mais eacute do que observar a possibilidade da natildeo aplicaccedilatildeo de um precedente ao argumento racional e convincente pois o novo caso a ser julgado apresenta caracteriacutesticas especiais que exigem um tratamento diferenciado

Nesse contexto entra em accedilatildeo o distinguishing positivado por meio do art 489 e seguintes do Coacutedigo de Processo Civil (CPC) Esse termo teacutecnico para Didier Jr (apud LOURENCcedilO 2011) sig-nifica que o magistrado por meio de sua atividade judicante e de meacutetodos interpretativos do precedente invocado constata uma distinccedilatildeo entre o caso concreto em julgamento e o paradigma seja porque natildeo haacute coincidecircncia entre os fatos fundamentais debati-dos e aqueles que serviram de base a ratio decidendi (tese juriacutedica) constante do precedente seja porque a despeito de existir uma aproximaccedilatildeo entre eles determinada particularidade no caso em julgamento afasta a aplicaccedilatildeo do precedente E assim por haver dissonacircncia o magistrado restringe a aplicaccedilatildeo do precedente in-vocado

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No entanto caso o precedente encontre-se superado con-forme se denota pelo contido no art 297 sect3ordm do CPC estar-se-aacute diante de umas das teacutecnicas de superar um precedente denomina-do overruling que nos dizeres de Arauacutejo eacute uma superaccedilatildeo total do precedente tornando possiacutevel a revisatildeo de um precedente sempre que houver novos argumentos criando-se um novo precedente fazendo uma comparaccedilatildeo para aclarar o entendimento Tal insti-tuto se assemelha a uma revogaccedilatildeo total de uma lei pela outra Ocorre que natildeo se pode mudar do dia para noite um precedente sob pena de quebra de confianccedila sendo deste modo necessaacuteria uma fundamentaccedilatildeo abrangente para ocorrer o overruling com ar-gumentos ateacute entatildeo natildeo enfrentados bem como a necessidade de se superar o precedente

De igual maneira ainda demonstra aproximaccedilatildeo ao sis-tema da Common Law a utilizaccedilatildeo do instituto da Repercussatildeo Geral no Recurso Extraordinaacuterio estabelecido pelo art 102 sect 3ordm da Constituiccedilatildeo Federal de 88 (CF) introduzido tambeacutem pela EC 452004 e art 543-A do CPC73 (com alteraccedilotildees inseridas pela Lei nordm 114182006) Tambeacutem foram inseridas no ordenamento juriacute-dico brasileiro a suacutemula impeditiva de recurso (artigo 518 sect 1ordm CPC73 introduzido pela Lei nordm 112762006) a improcedecircncia liminar de demandas repetitivas (art 285-A CPC73 introduzida tambeacutem pela Lei nordm 112772006) e o julgamento de recursos por amostragem (art 543-B CPC73 introduzido atraveacutes da Lei nordm 114182006) dentre tantos outros exemplos

Jaacute o Coacutedigo de Processo Civil de 2016 trouxe ao ordena-mento juriacutedico a possibilidade de as partes de forma consensual estabelecer um calendaacuterio processual para um determinado pro-cesso que se aprovado de comum acordo vincula as partes in-clusive o juiz conforme se denota pelo art 191 CPC Percebe-se desse modo que as partes de comum acordo poderatildeo dilatar ou restringir prazos data em que seraacute realizada a produccedilatildeo de provas bem como a data em que seraacute a sentenccedila exarada jaacute tipicamente utilizada no direito processual estadunidense francecircs e recente-mente no italiano

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Outro ponto interessante trazido pelo Coacutedigo de Processo Civil de 2015 eacute o art 357 sectsect 2ordm e 3ordm CPC que possibilita agraves par-tes de forma consensual apresentarem decisatildeo saneadora ao juiz que poderaacute quando a causa for complexa designar audiecircncia para proferir decisatildeo de saneamento e organizaccedilatildeo do processo tendo deste modo de forma liacutempida desraigado com a antiga concepccedilatildeo eminentemente influenciada pelo direito portuguecircs em que a tal funccedilatildeo era exclusiva do magistrado

Nos dizeres de Porto (apud TRIGUEIRO 2014) eacute possiacutevel perceber que os institutos juriacutedicos da Common Law e da Civil Law estatildeo se sintonizando cada vez mais e criando um novo institu-to juriacutedico chamado commonlawlizaccedilatildeo em face das jaacute destacadas facilidades de comunicaccedilatildeo e pesquisa postas na atualidade e a disposiccedilatildeo da comunidade juriacutedica Realmente na chamada com-monlawlizaccedilatildeo do direito nacional se pode perceber que a partir da constataccedilatildeo da importacircncia da jurisprudecircncia as decisotildees jurisdi-cionais vecircm adquirindo no sistema paacutetrio por meio de normas po-sitivadas mormente por uma crescente funccedilatildeo interpretativa das normas pelo juiz

Ainda sobre a criatividade judicial Cappelletti (1993) em sua obra Juiacutezes Legisladores apoacutes discorrer sobre as altercaccedilotildees en-tre os sistemas supracitados conclui que eacute evidente o aumento da criatividade juriacutedica nos paiacuteses de Civil Law da mesma forma que ocorre no Common Law sendo as contendas cada vez mais abran-dadas entre ambos derivando do que o autor denomina ldquoconver-gecircncia evolutivardquo

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Vislumbra-se por tudo que foi exposto no decorrer deste trabalho que natildeo restam duacutevidas de que o direito brasileiro sofreu influecircncia direta e inicial do sistema juriacutedico romano-germacircnico sobretudo no nosso ordenamento juriacutedico que se encontra abar-rotado de leis regulamentos decretos resoluccedilotildees enfim a lei em sentido amplo eacute considerada no paiacutes fonte primaacuteria sendo deste

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modo o instrumento baacutesico que regula as relaccedilotildees sociais A tiacutetulo ilustrativo nota-se que se encontram positivados

direitos e deveres ainda quando nascituros e que tais garantias e deveres persistem para depois da morte Nada obstante agrave preva-lecircncia do direito legislado observa-se no que foi discutido que a lei natildeo tem a capacidade de esgotar todas as possibilidades pois ja-mais o constituinte de 1988 imaginaria os avanccedilos tecnoloacutegicos na aacuterea da informaacutetica que viriam a ocorrer ao proteger por exemplo o sigilo da correspondecircncia que hoje abrange as correspondecircncias encaminhadas por correio eletrocircnico que eacute fruto de interpretaccedilatildeo judicial O fato eacute que de laacute para caacute ocorreram inuacutemeras mudanccedilas e portanto natildeo pode uma pessoa ter seus direitos negados em ra-zatildeo da ausecircncia de norma legal que a ampare

Eacute pensamento arcaico apontar a lei como uacutenica soberana fonte primaacuteria e eacute aiacute que entra em campo a jurisprudecircncia que tem por escopo adequar a lei agraves mudanccedilas que ocorrem na sociedade Como jaacute demonstrado faz-se necessaacuterio uniformizar a jurispru-decircncia das normas dos nossos Tribunais sob pena de rechaccedilar o principio da igualdade material e ter aplicado aquele velho brocar-do ldquodois pesos e duas medidasrdquo Todavia longe de ser extremista e encobertando-se sob o principio da igualdade formal e da celeri-dade processual eacute deixar de analisar as peculiaridades e estagnar no tempo e no espaccedilo as intepretaccedilotildees judiciais que retroacutegadas natildeo teriam relaccedilatildeo com as mudanccedilas da sociedade

Desse modo faz-se necessaacuterio repensar que o sistema ju-riacutedico brasileiro jaacute natildeo mais eacute exclusivamente aderente ao sistema juriacutedico da Civil Law pois o Coacutedigo de Processo Civil de 2015 veio corroborar de forma positivada as ideias haacute tempos utilizadas nos tribunais e discutidas pelos doutrinadores de que o uso de prece-dente vinculante aleacutem de proporcionar uma nova concepccedilatildeo de que o Direito natildeo eacute soacute aquilo que estaacute posto instiga na mesma ocasiatildeo uma reflexatildeo sobre a conduta postada pelo Estado quando se ocupa de atribuir um aumento de poder aos Tribunais Paacutetrios e como estes utilizaratildeo os precedentes para fazer justiccedila

Pelo exposto eacute de clareza solar que as novas relaccedilotildees pro-

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cessuais deveratildeo observar natildeo apenas a letra da lei e tampouco observar de forma absoluta os precedentes fixados mas sim res-guardar e efetivar os Direitos previstos na Carta Magna

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VISIBILIZANDO A VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO PSICOLOacuteGICA COMO LESAtildeO Agrave SAUacuteDE DA VIacuteTIMA REVISITANDO O AR-TIGO 129 DO COacuteDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO Agrave LUZ DA LEI MARIA DA PENHA

Artenira da Silva e Silva 1

Joseacute Maacutercio Maia Alves2

RESUMO Este estudo tem o objetivo de demonstrar a possibilidade de criminalizaccedilatildeo da violecircncia psicoloacutegica pura como crime de lesatildeo corporal agrave sauacutede da viacutetima de violecircncia domeacutestica com base no caput e sect 9ordm do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro combinados com o art 7ordm II da Lei 113402006 O texto aborda apontamentos teoacutericos sobre a adequaccedilatildeo tiacutepica da lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica a partir de reflexotildees acerca da concepccedilatildeo de elemento normativo do tipo apresentando ainda uma proposta de anamnese para aferir a violecircncia psicoloacutegica e seus efeitos danosos ainda na fase de investigaccedilatildeo criminal na delegacia de poliacutecia

PALAVRAS-CHAVE Violecircncia psicoloacutegica Adequaccedilatildeo tiacutepica Anamnese

ABSTRACT This study aims to demonstrate the possibility to criminalize psychological violence as a crime of bodily injury which offends the health of the victim specially considering domestic violence victims based on the caput and on the sect9 of the article 129 of the Brazilian Penal Law combined with the article 7 II of the 113402006 Law The text presents theoretical notes about psychological health damage as well as reflections about the concept of the normative element type It also presents a general

1 Poacutes-doutora em Psicologia e Educaccedilatildeo e Doutora em Sauacutede Coletiva Docente e pesquisadora do Departamento de Sauacutede Puacuteblica e do Mestrado em Direito e Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila da Universidade Federal do Maranhatildeo Coordenadora de linha de pesquisa do Observatoacuterio Ibero Americano de Sauacutede e Cidadania e Coordenadora do Observatorium de Seguranccedila Puacuteblica (PPGDIRUFMACECGP) Email artenirassilvahotmailcom 2 Mestrando do PPGDIRUFMA (Direito e Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila) E-mail jose-marciompmampbr

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anamnesis proposal to assess psychological violence harmful effects since itacutes criminal investigation phase in the police station

KEYWORDS Psychological violence Typical adequacy Anamnesis

INTRODUCcedilAtildeO

Nos paiacuteses em que o direito tem tradiccedilatildeo romano-germacirc-nica e que sofreram a influecircncia do incremento do ideal positivista poacutes-revoluccedilatildeo francesa haacute uma resistecircncia endecircmica em se atri-buir alcance e significado agrave lei aleacutem do que seria a genuiacutena ldquointen-ccedilatildeo do legisladorrdquo As leis caducam com mais facilidade porque natildeo acompanham as mudanccedilas dos fatos sociais o contexto que elas pretenderam um dia prever passa a natildeo existir mais e em consequecircncia inauguram-se outras leis A pretexto da seguranccedila juriacutedica haacute uma necessidade de a ldquoregra legalrdquo (a lei) continua-mente esgotar a prodigiosidade da sua pretensatildeo de regulaccedilatildeo

Trata-se de uma postura equivocada que culmina por engessar a prestaccedilatildeo jurisdicional para que o Juiz cada vez mais ldquodiga o direitordquo como o legislador supostamente quis que ele fosse dito Poreacutem muito diferente de oferecer seguranccedila juriacutedica essa medida pode fomentar deficit de efetividade de direitos porque em razatildeo dela natildeo se desenvolve o haacutebito de usar-se da interpretaccedilatildeo para aplicar as normas aos casos concretos

Vecirc-se entatildeo uma sensiacutevel dicotomia quanto ao que ldquoeacute o direitordquo em paiacuteses originaacuterios da civil law e da common law de ori-gem inglesa Nos primeiros haacute um impeacuterio da norma em que a lei se esforccedila em prever qual desfecho juriacutedico se entende por apro-priado agraves situaccedilotildees nos uacuteltimos tem-se uma concentraccedilatildeo sobre a resoluccedilatildeo do litiacutegio no caso concreto e a lei eacute mero coadjuvan-te para se buscar uma soluccedilatildeo que corresponda ao melhor direito possiacutevel mediante decisotildees racionalmente fundamentadas

Esta premissa se faz importante por permitir dizer que no Brasil cujo direito tem origem romano-germacircnica a liberdade para extrair sentidos racionalmente construiacutedos acerca da norma

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ou para transitar por significados e conceitos extrajuriacutedicos que tenham forccedila para incidir diretamente nas decisotildees pode soar perigosa e por isso sofre resistecircncias que por vezes natildeo se justi-ficam Exemplo disso eacute a escasso exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de juiacutezos de valor ao elemento normativo ldquosauacutederdquo que se encontra no caput do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro mesmo depois de a Lei 113402006 ter traccedilado uma seacuterie de possibilidades de compro-metimento agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima aviltada por toda sorte de violecircncia domeacutestica sobretudo a psicoloacutegica

Este trabalho visa demonstrar que o paradigma da des-legitimaccedilatildeo da violecircncia domeacutestica que daacute suporte agrave defesa do gecircnero feminino com toda a extensatildeo hermenecircutica que a teoria de gecircnero possa alcanccedilar (direito agrave diversidade de identidade de gecircnero agrave homoafetividade agrave orientaccedilatildeo sexual e a um conceito de famiacutelia baseado na afetividade) exige uma nova abordagem ju-riacutedica do elemento normativo sauacutede que convirja para a agenda internacional que prima por coibir a violecircncia no acircmbito das rela-ccedilotildees familiares

A partir desse pano de fundo far-se-atildeo consideraccedilotildees acer-ca da teoria do tipo penal e das elementares normativas para se admitir a possibilidade de se configurarem os sintomas psiacutequicos resultantes da violecircncia domeacutestica como ofensa agrave sauacutede da viacutetima

Em seguida demonstrar-se-atildeo argumentos para funda-mentar a existecircncia do crime de ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo como consequecircncia da violecircncia de gecircnero para entatildeo se investigar como os profissionais do sistema de justiccedila sobretudo Delegados de Poliacutecia Promotores de Justiccedila e Juiacutezes estatildeo enfrentando essa temaacutetica na praacutetica e como poderiam direcionar suas atividades de forma a assumir uma postura profissional proacutexima de um po-sicionamento mais eficaz e com vista ao compromisso assumido pelo Estado brasileiro perante a comunidade internacional de coi-bir a violecircncia familiar

Por fim o trabalho sugeriraacute uma anamnese a ser aplicada agraves viacutetimas de violecircncia domeacutestica ainda nas delegacias de poliacute-cia de forma a fornecerem indiacutecios para a formulaccedilatildeo de denuacutencia

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pelo Ministeacuterio Puacuteblico por ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo com ofensa agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima sobretudo em razatildeo dos quadros cliacuteni-cos de Transtorno de Estresse Poacutes-traumaacutetico e da Siacutendrome da Mulher Espancada

Um Paradigma para o Conceito de Violecircncia Psicoloacutegica

Eacute no contexto mundial de luta pela deslegitimaccedilatildeo da vio-lecircncia contra a mulher que emergiu esse conceito sustentado pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) que considera como tal ldquoqualquer ato de violecircncia baseado no gecircnero que resulta ou que seja suscetiacutevel de resultar em dano fiacutesico sexual psicoloacutegico ou em sofrimentos agraves mulheres incluindo ameaccedilas de tais atos coaccedilatildeo ou privaccedilatildeo de liberdade ocorrendo tanto na vida puacuteblica quanto na privadardquo (ONU 1993) No Brasil a Lei Maria da Penha (LMP) ain-da especifica a agressatildeo pode resultar de qualquer relaccedilatildeo iacutentima de afeto e as relaccedilotildees pessoais independem de orientaccedilatildeo sexual (BRASIL 2006)

O que se percebe na LMP eacute que o legislador brasileiro na contramatildeo da sua tradiccedilatildeo romano-germacircnica apresentou agrave socie-dade uma lei em que natildeo haacute palavras inuacuteteis ou com efeitos de sen-tido rasos Ao contraacuterio trata-se de um texto que estaacute apto a sofrer conformaccedilotildees jurisprudenciais na medida em que sejam introjeta-das na comunidade percepccedilotildees feministas acerca das vicissitudes e da diversidade do direito deao gecircnero e agrave orientaccedilatildeo sexual

A Lei 113402006 diz bem mais do que o seu proacuteprio tex-to assim como colima por objetivos natildeo explicitamente revelados que reclamam abordagens menos simplistas eou reducionistas agrave luz de casos concretos

A reafirmaccedilatildeo da doutrina feminista o direito agrave diversida-de da identidade de gecircnero e a ressignificaccedilatildeo do conceito de famiacute-lia satildeo premissas sobre as quais estatildeo fundadas as bases da LMP A partir dessa concepccedilatildeo eacute que se sustentam os instrumentos legais de defesa dos direitos daquelas que ostentam o gecircnero feminino E isso remete ao esforccedilo necessaacuterio de se atribuir uma maacutexima efeti-

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vidade agrave extensatildeo desses remeacutedios sob pena de se transformar a lei e sua mudanccedila de paradigma em mera carta de intenccedilotildees

Induvidoso que a garantia dessa maacutexima efetividade pas-sa pela dotaccedilatildeo dos operadores do direito ndash sobretudo dos que es-tejam agrave frente das instituiccedilotildees do sistema de justiccedila ndash de conheci-mentos transdisciplinares que revelem a verdadeira mens legis da LMP como ferramenta insuflada pela rede feminista global acerca da violecircncia domeacutestica

Natildeo excluir os operadores do direito do acesso a esse deba-te em forma de qualificaccedilatildeo formal e continuada significa garantir uma mudanccedila de paradigma para o de deslegitimaccedilatildeo da violecircncia domeacutestica atraveacutes do recrudescimento do discurso socioloacutegico fe-minista no meio juriacutedico para que ele migre do abstrato agrave praacutetica das relaccedilotildees sociais geridas pelo Poder Judiciaacuterio

Daiacute dizer-se que cada signo presente na LMP deve ser sub-metido a um crivo de enfrentamento agrave luz da teoria feminista da proteccedilatildeo agrave vulnerabilidade do gecircnero feminino da reafirmaccedilatildeo da dignidade humana e do desejo de construccedilatildeo de uma sociedade mais justa solidaacuteria e livre de qualquer forma de discriminaccedilatildeo

No que toca agrave violecircncia psicoloacutegica eacute forte o entendimen-to de que a sua configuraccedilatildeo e reconhecimento no caso concreto serve apenas como vetor que projeta o tratamento da persecuccedilatildeo criminal por um injusto-tipo jaacute previsto na legislaccedilatildeo de sorte a submetecirc-lo agraves regras da Lei Maria da Penha Isso implicaria p ex subtrai-lo da competecircncia dos Juizados Especiais Criminais limi-tar a renuacutencia agrave representaccedilatildeo e ateacute mesmo atribuir aos crimes de lesatildeo corporal leve a natureza de accedilatildeo penal puacuteblica incondicio-nada (ADI nordm 44242012-STF) aleacutem de autorizar o deferimento de medidas protetivas especiacuteficas e geneacutericas em favor da viacutetima

Teoria do Tipo O Elemento Normativo ldquoSauacutederdquo

A legislaccedilatildeo brasileira adotou a teoria finalista da accedilatildeo para considerar uma conduta criminalmente tiacutepica Equivale dizer que o resultado produzido por uma conduta pode ser exigido dispen-

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saacutevel indiferente ou ateacute impossiacutevel de ocorrer (crimes materiais formais e de mera conduta) mas o inteacuterprete natildeo pode se furtar agrave anaacutelise do impacto do elemento subjetivo do injusto que permeou a conduta do agente Isso porque haacute crimes que soacute podem se confi-gurar se o agente quis se comportar de forma afrontosa a um sen-timento de justiccedila entronizado pela sociedade (dolo) outros haacute em que sob o influxo de uma indiferenccedila tocada pela assunccedilatildeo de um risco esse comportamento quebrou uma representaccedilatildeo mental de previsatildeo de um mal maior (dolo eventual) assim como haacute os que se revestiram de uma previsibilidade do mal maior mas que natildeo tangenciaram a assunccedilatildeo do risco produzindo-se o resultado por uma quebra de um dever objetivo de cuidado (culpa) Fora dessas hipoacuteteses a teoria finalista considera as condutas criminalmente atiacutepicas

Na composiccedilatildeo do injusto-tipo amalgamam-se ou natildeo trecircs espeacutecies de elementares objetiva subjetiva e normativa A primei-ra delas trata de signos ou expressotildees com significados escorreitos descritivos sobre os quais natildeo paira qualquer duacutevida A segunda corresponde agraves vontades especiacuteficas previstas no tipo geralmente sucedidas da expressatildeo ldquocom o fim derdquo ou algo que a ela equiva-lha Satildeo vontades anunciadas

Jaacute quanto agrave terceira espeacutecie de elementar ndash que interessa ao presente estudo ndash tem-se o elemento normativo do tipo Tratam-se de signos ou expressotildees que para colmatarem a adequaccedilatildeo tiacutepica e a aperfeiccediloarem requerem um esforccedilo de interpretaccedilatildeo valorativa juriacutedica ou teacutecnico-transdisciplinar extrajuriacutedica

A presenccedila dessa espeacutecie de elementar daacute azo aos chama-dos tipos abertos que dependem da interpretaccedilatildeo de quem conhece os seus significados (teacutecnicos) ou de quem os atribui de forma ra-cionalmente fundamentada (advogados membros do Ministeacuterio Puacuteblico e da Magistratura) Falam-se mesmo de tipos anormais que exigem uma aquilataccedilatildeo de significados que natildeo permitem fechar de antematildeo a adequaccedilatildeo tiacutepica e que interessaratildeo de forma crucial agrave conduta ldquoquer por conduzirem a um julgamento de valor quer por levarem agrave interpretaccedilatildeo de termos juriacutedicos ou extrajuriacutedicos

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quer por exigirem afericcedilatildeo do acircnimo ou no intuito do agente quan-do pratica a accedilatildeordquo (MIRABETE 2014 p 100)

A parte final do tipo encontrado no caput do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro eacute emblemaacutetica quanto agrave importacircncia da afericcedilatildeo do elemento normativo para se alcanccedilar uma adequaccedilatildeo tiacutepica coerente e para ateacute mesmo se visibilizar uma acepccedilatildeo de tipi-cidade que possa natildeo se apresentar recorrente na praacutetica

O tipo considera lesatildeo corporal ofender a integridade corpo-ral ou a sauacutede de outrem Agrave guisa de uma decodificaccedilatildeo que natildeo se pretende exaustiva dir-se-ia que se estaacute a tratar de uma accedilatildeo fi-naliacutestica que exige resultado naturaliacutestico e que admite condutas dolosas e culposas Daiacute extrair-se que ofender a integridade corporal corresponderia a causar dano na medida em que frustra a incolu-midade de algum componente fisioloacutegico da viacutetima que se fazia iacutentegro Jaacute na lesatildeo agrave sauacutede a extensatildeo dos efeitos da ofensa ultra-passa o dano fisioloacutegico Aqui o elemento normativo sauacutede reme-te a uma infinidade de interpretaccedilotildees atribuiacuteveis tecnicamente ou pela via da fundamentaccedilatildeo racional Estaacute a reclamar colmataccedilotildees que eclodem a partir de juiacutezos de valor que podem sofrer muta-ccedilotildees Afinal o que pode ser considerado sauacutede

Para Bitencourt (2001 p 176)

Ofensa agrave sauacutede compreende a alteraccedilatildeo de funccedilotildees fisioloacutegicas do organismo ou perturbaccedilatildeo psiacutequi-ca A simples perturbaccedilatildeo de acircnimo ou afliccedilatildeo natildeo eacute suficiente para caracterizar o crime de lesatildeo cor-poral por ofensa agrave sauacutede Mas configuraraacute o crime qualquer alteraccedilatildeo ao normal funcionamento do psiquismo mesmo que seja de duraccedilatildeo passageira Podem caracterizar essa ofensa agrave sauacutede os distuacuterbios de memoacuteria e natildeo apenas os distuacuterbios de ordem intelectiva ou volitiva

Quer-se dizer que o signo sauacutede pode permitir significados e extensotildees muacuteltiplos mas uma vez considerados deve-se obser-var se esta sauacutede restou maculada para que tenha ocorrido o crime de ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo Daiacute a importacircncia de se aferirem as

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perturbaccedilotildees do psiquismo para se considerar a adequaccedilatildeo tiacutepica oriunda de uma lesatildeo levada a efeito pela violecircncia psicoloacutegica Com efeito Aniacutebal Bruno (976 p184-185) considera que

Perturbaccedilotildees moacuterbidas do psiquismo produzidas por obra do agente tambeacutem entram na categoria de lesotildees corporais como dano agrave sauacutede da viacutetima aiacute in-cluindo-se do mesmo modo estados de inconsciecircncia ou insensibilidade determinados pelo uso de anes-teacutesicos ou inebriantes ou ainda casos de depressatildeo fiacutesica ou mental desmaios estados confusionais e outras manifestaccedilotildees de perturbaccedilatildeo nervosa ou psiacute-quica Se ocorre a alteraccedilatildeo da integridade do corpo ou da sauacutede eacute indiferente que haja ou natildeo produccedilatildeo de dor

Desse raciociacutenio extrai-se uma conclusatildeo preliminar eacute preciso introjetar nos profissionais do sistema de justiccedila a atitu-de de modular a elementar normativa sauacutede diante das condutas criminosas sob pena de se gerar um enorme deficit de efetividade na criminalizaccedilatildeo dessas praacuteticas que acabaraacute por invisibilizar o reconhecimento da violecircncia psicoloacutegica e de sua importacircncia

A ldquoLesatildeo agrave Sauacutede Psicoloacutegicardquo na Violecircncia de Gecircnero

Para atingir a justificaccedilatildeo da possibilidade do tipo de lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica tomam-se por referecircncia neste trabalho algumas consideraccedilotildees da pesquisa conduzida pela pesquisadora Isadora Vier Machado acerca de como vem sendo conduzido o manejo da violecircncia psicoloacutegica ndash prevista na Lei nordm 113402006 (Lei Maria da Penha) ndash na persecuccedilatildeo criminal preliminar perante as Dele-gacias de Poliacutecia e o Ministeacuterio Puacuteblico Algumas constataccedilotildees da pesquisa conduziratildeo agrave necessidade de uma mudanccedila teacutecnico-ju-riacutedica e estrutural na atuaccedilatildeo destas Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila no enfrentamento da violecircncia psicoloacutegica Pretende-se de-monstrar que esse novo olhar pode conduzir mesmo a uma maior efetividade do art 7ordm inciso II da LMP

Duas problematizaccedilotildees trabalhadas por MACHADO con-

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duziratildeo agraves impressotildees criacuteticas que se propotildee primeiramente tem-se a suposta barreira do princiacutepio da legalidade do qual a violecircn-cia psicoloacutegica se encontraria esvaziada no direito ordinaacuterio atual o que faria com que essa espeacutecie de violecircncia de gecircnero necessitas-se de outras figuras normativas tipificadas criminalmente para que pudesse aparecer no cenaacuterio juriacutedico ainda que eclipsada depois aponta-se a nota de imprescindibilidade de conhecimentos trans-disciplinares dos operadores do direito para que compreendam a extensatildeo do conceito de violecircncia psicoloacutegica com o objetivo de o acomodar nos injustos-tipos de que se serve no ordenamento juriacutedico

Quanto ao primeiro ponto Machado (2013) se ocupa da anaacutelise do efeito de sentido das elementares integridade corporal e sauacutede encontradas no tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal para sugerir que o bem juriacutedico tutelado nesse dispositivo trans-cenderia a mera integridade fiacutesica para alcanccedilar tambeacutem a integri-dade moral e psicoloacutegica da viacutetima

O efeito de sentido atribuiacutedo ao caput do art 129 que visa acomodar a criminalizaccedilatildeo da violecircncia psicoloacutegica por si mesma exsurgiria a partir da pretensatildeo de dissociaccedilatildeo do corpus delicti em um binocircmio fisioloacutegico-psiacutequico que revelasse um caraacuteter plurio-fensivo do crime de lesatildeo corporal

Embora a construccedilatildeo do argumento seja coerente Macha-do (Idem) natildeo o acolhe como pressuposto para as suas conclusotildees acerca das razotildees para o deficit de efetividade do reconhecimento da violecircncia psicoloacutegica no acircmbito das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila

Admitindo esses argumentos a pesquisadora faz coro agrave visatildeo de esvaziamento da violecircncia psicoloacutegica como tipo penal para alocaacute-la apenas como ldquoparacircmetro interpretativordquo para outros tipos penais existentes na lei tais como ameaccedila caluacutenia denun-ciaccedilatildeo caluniosa constrangimento ilegal e injuacuteria muito embora admita que esses injustos-tipos se afigurem apenas como ldquomeios pelos quais se possa produzir um resultado final de prejuiacutezo agrave in-tegridade psicoloacutegicardquo

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Entretanto natildeo parece coerente tatildeo somente acoplar as formas de violecircncia de gecircnero previstas no art 7ordm da lei a tipos pe-nais preexistentes com singelas cominaccedilotildees legais Fazer isso seria reduzir ou mesmo dissolver os discursos de luta pela dignidade das mulheres em vez de os inserir em um contexto que represente uma regulamentaccedilatildeo eficaz agrave norma programaacutetica do art 226 sect8ordm da Constituiccedilatildeo cuja finalidade eacute criar mecanismos para coibir a violecircncia no acircmbito das relaccedilotildees da famiacutelia

Da mesma forma tambeacutem natildeo eacute aceitaacutevel que o efeito de sentido que a norma constitucional tenha pretendido atribuir ao signo ldquocoibirrdquo implique como resposta em forma de prestaccedilatildeo ju-risdicional apenas tirar da competecircncia dos Juizados Especiais os crimes que envolvam violecircncia domeacutestica e possibilitar que a mu-lher tenha a garantia de medidas de proteccedilatildeo em escala assecura-toacuteria crescente em gravidade agrave medida que se acentue o perigo agrave sua incolumidade fiacutesica

A questatildeo eacute que nem sempre o princiacutepio da reserva legal se serve de tipos com condutas criminosas escorreitas Ao contraacuterio frequentemente os tipos se revelam plurais como resultado mesmo do esforccedilo interpretativo sobre normas de extensatildeo da figura tiacutepica e elementos normativos do tipo que permitem uma elasticidade toleraacutevel para que o texto da lei alcance adequaccedilotildees que natildeo foram sugeridas pela letra estrita da norma penal incriminadora

Quando o texto do caput do art 129 do Coacutedigo Penal criminaliza a ofensa agrave ldquointegridade corporalrdquo ou agrave ldquosauacutede de ou-tremrdquo oferece sucessivamente ao inteacuterprete uma elementar objetiva e outra normativa A primeira diz respeito agrave agressatildeo ao corpo da viacutetima enquanto mateacuteria sob o aspecto exclusivamente fisioloacutegico Trata-se de desfigurar o que se fazia iacutentegro que sugere que qual-quer alteraccedilatildeo fisioloacutegica que o agressor produza na viacutetima por menor que seja e que sequer lhe abale o seu cotidiano deve mere-cer a censura da lei Estaacute-se a tratar de resultados naturaliacutesticos cla-ros derivados de um ato comissivo ou omissivo sem se exigir que sejam aferidas outras repercussotildees que se tenham dado na vida da viacutetima Aqui o foco eacute a alteraccedilatildeo da integridade fiacutesica em si

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Jaacute o signo ldquosauacutederdquo revela-se como uma elementar nor-mativa que desafia um juiacutezo de valor ou teacutecnico que o inteacuterprete lhe deveraacute atribuir para chegar agrave adequaccedilatildeo tiacutepica em cada caso concreto E eacute nesse momento que eclode a indagaccedilatildeo proacutepria das elementares normativas que no caso do crime do art 129 pode remeter a uma possibilidade plural de adequaccedilatildeo tiacutepica o que se entende por sauacutede A partir de seu conceito o que pode ser consi-derado como conduta que a ofenda

A Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) conceitua sauacutede como a ausecircncia de doenccedila aliada a uma situaccedilatildeo de bem-estar fiacutesico mental e social Sem pretender enveredar por uma extensa miriacuteade teacutecnica a que o vocaacutebulo sauacutede possa remeter ou incursio-nar pelas subjetividades que o termo bem-estar possa sugerir (FER-RAZ SEGRE 1997) o homem meacutedio de que se serve o Direito Pe-nal responderia que se entende por sauacutede tatildeo somente um estado de boa disposiccedilatildeo fiacutesica e psiacutequica que proporcione bem-estar ao ser humano Eis o ponto de estrangulamento da discussatildeo que se propotildee

Falar em comprometimento agrave sauacutede de algueacutem natildeo sig-nifica simplesmente comprometer as suas aptidotildees fiacutesicas mas tambeacutem de alguma forma ou em algum grau desestabilizar seu equiliacutebrio psiacutequico entendendo-o aqui tambeacutem como equiliacutebrio psicoloacutegico Pensar o contraacuterio seria como a proacutepria Machado (2013) lembra incursionar equivocadamente pela tendecircncia cultu-ral ocidental de ver o corpo como um ente essencialmente bioloacutegi-co

Com efeito ver a violecircncia domeacutestica sob a perspectiva da mera violecircncia fiacutesica e lhe exigir um resultado naturaliacutestico de mero dano fisioloacutegico apequena a sua importacircncia e desvirtua o propoacutesito institucional de a coibir porque assim de fato a violecircn-cia psicoloacutegica na Lei Maria Penha natildeo passaria de um vieacutes infor-mativo uacutetil apenas e unicamente para atribuir um rito diferente agrave instruccedilatildeo de um processo por um ldquotipo penal guarda-chuvardquo3 que por sua natureza e pela pena que lhe eacute cominada seria de menor

3 Expressatildeo usada por Isadora Vier Machado em sua tese de doutoramento

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potencial ofensivoTalvez esse olhar que definitivamente natildeo converge com

a mens legis da Lei n 113402006 ocorra em razatildeo de um outro equiacutevoco afeito agrave interpretaccedilatildeo acerca da teacutecnica legislativa aplica-da agrave espeacutecie

Eacute que a rigor o legislador natildeo precisaria criar um tipo penal novo para criminalizar a violecircncia psicoloacutegica com todas as vicissitudes que a compotildeem Na verdade o caraacuteter de uma novatio legis in pejus que denota a coerecircncia do ordenamento juriacutedico em coibir eficazmente a violecircncia de gecircnero fez-se sentir apenas ndash e foi suficiente nesse sentido ndash com a inserccedilatildeo do sect9ordm do art 129 do Coacutedigo Penal que criou uma qualificadora do crime de lesatildeo cor-poral para a hipoacutetese de a agressatildeo se dar em um contexto em que o agente ldquose prevaleccedila das relaccedilotildees domeacutesticasrdquo

Mas atente-se o legislador majorou a pena do crime de lesatildeo corporal por razotildees circunstanciais acerca de como ele se puder dar notadamente em contextos que a lei achou por bem considerar mais gravosos O que natildeo quer dizer que se esqueceu de especificar que essa mesma majoraccedilatildeo se daria em caso de vio-lecircncia psicoloacutegica ateacute porque esta eacute uma das formas de ofensa agrave sauacutede cuja caracterizaccedilatildeo se extrairaacute na verdade do exerciacutecio in-terpretativo a ser deflagrado sobre o elemento normativo ldquosauacutederdquo compreendido aqui sob o vieacutes de equiliacutebrio psicoloacutegico emocional alheio a perturbaccedilotildees psicopatoloacutegicas agraves quais a viacutetima natildeo tenha dado causa

O que parece estar havendo eacute que o titular da accedilatildeo penal estaacute interpretando o caput do artigo 129 sob o paradigma da lesatildeo corporal enquanto violecircncia fiacutesica sem atentar que jaacute haacute o reco-nhecimento pelo ordenamento juriacutedico (e natildeo precisaria haver) de uma nova figura que modula o elemento normativo do tipo (sauacute-de) qual seja o conceito de violecircncia psicoloacutegica inserto no art 7ordm inciso II da Lei Maria da Penha A bem do coerente a violecircncia psicoloacutegica eacute que se encaixa no tipo do art 129 quando modula o seu elemento normativo

A outra problematizaccedilatildeo sugerida pela pesquisadora trata

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da deficiecircncia dos operadores do Direito em conhecimentos trans-disciplinares notadamente dos membros do Ministeacuterio Puacuteblico A seu sentir essa capacitaccedilatildeo eacute necessaacuteria para que a violecircncia psi-coloacutegica natildeo seja refeacutem de leituras subjetivas e passe a ser melhor reconhecida nos fatos criminosos a fim de servir de justificativa para que os tipos penais a que se agrega possam merecer uma per-secuccedilatildeo penal segundo o que prega a Lei Maria da Penha

Quanto aos crimes mais graves para a consecuccedilatildeo dos quais a violecircncia domeacutestica ndash natildeo necessariamente psicoloacutegica ndash te-nha sido apenas um meio ou conduta concomitante menos gravo-sa o reconhecimento dessa violecircncia seraacute importante apenas para habilitar o julgador a deferir as medidas de proteccedilatildeo previstas em lei inclusive a prisatildeo cautelar para os casos de crimes que em ra-zatildeo da sua pena natildeo admitam a prisatildeo preventiva Deveratildeo ser demonstrados para isso que haacute uma relaccedilatildeo de poder baseada no gecircnero que ocorreram os resultados previstos na lei em qualquer um dos planos de violecircncia seja fiacutesica psicoloacutegica patrimonial moral ou sexual que o fato se deu na unidade domeacutestica da famiacute-lia ou em razatildeo de qualquer relaccedilatildeo de afeto e que a violecircncia eacute considerada independente da orientaccedilatildeo sexual da viacutetima

Natildeo haacute duacutevidas de que a preocupaccedilatildeo com o conhecimen-to transdisciplinar se justifica com toda forccedila para a caracterizaccedilatildeo do que poderiacuteamos chamar de violecircncia psicoloacutegica pura Eacute que in-dependentemente de haver violecircncia fiacutesica como afirma Machado (2013 p 174) em outro contexto ldquoa identificaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo de violecircncia psicoloacutegica requer que o problema apresentado seja minuciosamente sondadordquo Isso porque os seus danos se apresen-tam como resultado de posturas sutis praticadas pelo agressor no dia a dia A mulher pode perfeitamente natildeo ter sofrido violecircncia fiacutesica mas ainda assim ter sido aviltada na sua integridade psiacute-quica em niacuteveis significativos

Frise-se que o comportamento insidioso do agressor pode desencadear uma seacuterie de asseacutedios psicoloacutegicos importantes que podem significar ofensas agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima Forte em es-tudos de Marie-France Hirigoyen Machado (2013) pontua os com-

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portamentos que mais comumente eclodem na relaccedilatildeo conjugal controle isolamento ciuacuteme patoloacutegico asseacutedio aviltamento (mi-nar a autoestima) humilhaccedilotildees intimidaccedilatildeo indiferenccedila a deman-das afetivas e ameaccedilas Eles podem causar diagnoacutesticos de com-prometimentos psicoloacutegicos importantes inclusive os de ordem psicossomaacutetica que requerem realmente conhecimentos teacutecnicos de cliacutenica meacutedica psicologia e ou psiquiatria para ser apontados em processos judiciais como provaacuteveis conteuacutedos do que a Lei Maria da Penha considera como resultados alcanccedilaacuteveis pela vio-lecircncia psicoloacutegica prejuiacutezo agrave autodeterminaccedilatildeo dano emocional diminuiccedilatildeo da autoestima prejuiacutezo ao pleno desenvolvimento de-gradaccedilatildeo e controle que podem definir prejuiacutezo intenso da sauacutede psicoloacutegica

Contudo eacute importante observar que pelo menos para a propositura da accedilatildeo penal em razatildeo de uma lesatildeo agrave sauacutede com base no art 129 do Coacutedigo Penal natildeo eacute imprescindiacutevel que o promotor de justiccedila labore em cogniccedilatildeo exauriente para demonstrar o juiacutezo de mera probabilidade criminosa exigido para a formulaccedilatildeo da de-nuacutencia que se traduz no texto da lei como ldquoindiacutecios suficientes de materialidade e autoriardquo aleacutem da demonstraccedilatildeo do elemento sub-jetivo da conduta exigido dolo ou culpa Jaacute para a prolataccedilatildeo da sentenccedila eacute de bom alvitre que a viacutetima seja submetida ao atendi-mento interdisciplinar a tiacutetulo de periacutecia para que sejam aferidos tecnicamente os resultados que a violecircncia psicoloacutegica provocou para daiacute restarem comprovados ou natildeo os elementos necessaacuterios agrave adequaccedilatildeo tiacutepica na fase de sentenccedila

A falta de percepccedilatildeo preacutevia da violecircncia psicoloacutegica nas delegacias de poliacutecia aliada agrave postura conservadora dos promoto-res de justiccedila de natildeo a considerar como espeacutecie autocircnoma de lesatildeo corporal que comprometa a sauacutede da viacutetima de fato faz com que essa espeacutecie de violecircncia embora relatada natildeo apareccedila nas esta-tiacutesticas do combate agrave violecircncia domeacutestica Menos aparecem ainda porque os crimes aos quais geralmente se acoplam para conduzir a persecuccedilatildeo criminal agrave luz da Lei Maria da Penha (ameaccedila injuacute-ria caluacutenia denunciaccedilatildeo caluniosa e ou constrangimento ilegal)

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tecircm pena cominada diminuta e na sua maioria tecircm natureza de accedilatildeo penal privada ou puacuteblica condicionada agrave representaccedilatildeo cuja disponibilidade que provoca na persecuccedilatildeo criminal eacute demasia-damente promovida por mulheres viacutetimas tambeacutem do asseacutedio do poder econocircmico dos agressores e de questotildees emocionais afetas aos filhos e ao casal que natildeo permitem o rompimento dos laccedilos conjugais e que geram na ofendida uma toleracircncia ciclicamente aprisionante agraves agressotildees

Assim do enfrentamento criacutetico das problemaacuteticas apon-tadas extraem-se quatro conclusotildees que se consideram importan-tes

1) quanto agrave primeira problemaacutetica sugerida o ordenamen-to juriacutedico admite a formulaccedilatildeo de accedilatildeo penal em razatildeo de vio-lecircncia psicoloacutegica autocircnoma como conteuacutedo da modulaccedilatildeo do ele-mento normativo ldquosauacutederdquo do tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal natildeo se servindo essa espeacutecie de violecircncia de gecircnero apenas para acoplar-se a outros tipos penais como paracircmetro interpreta-tivo para tatildeo somente conduzir a persecuccedilatildeo penal destes ao acircm-bito do rito penal ordinaacuterio e para garantir a aplicaccedilatildeo de medidas protetivas de urgecircncia

2) quanto agrave segunda embora natildeo se ignore que seja ne-cessaacuterio haver um incremento na formaccedilatildeo dos profissionais do Direito notadamente dos Defensores Delegados Promotores de Justiccedila e Magistrados quanto agraves questotildees de gecircnero e conhecimen-tos transdisciplinares correlatos esse diferencial intelectual natildeo indica que serviraacute apenas para identificar a violecircncia psicoloacutegica no suporte faacutetico que subjaz na adequaccedilatildeo a ldquotipos penais guarda-chuvasrdquo para que a partir daiacute as viacutetimas aufiram os benefiacutecios da Lei Maria da Penha Mais do que isso com base na premissa da existecircncia de reserva legal para o crime de lesatildeo agrave sauacutede psicoloacute-gica em razatildeo da modulaccedilatildeo do elemento normativo ldquosauacutederdquo en-contrado do injusto-tipo do caput do art 129 esses conhecimentos transdisciplinares ndash e ateacute mesmo o apoio de equipe interdisciplinar ndash seriam mais importantes para identificar a violecircncia psicoloacutegica nas sutilezas de que se reveste no dia a dia para de logo e antes

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de se associar a outras formas de violecircncia merecer uma postura das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila que convirja realmente com a norma programaacutetica constitucional de ldquocoibir a violecircncia no acircm-bito das relaccedilotildees da famiacuteliardquo

3) Dessas duas primeiras conclusotildees extrai-se mais uma quanto agrave necessidade de duas mudanccedilas de postura institucional no acircmbito do Ministeacuterio Puacuteblico uma teacutecnico-juriacutedica no sentido de repensar a interpretaccedilatildeo do tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal a partir do poder modulador que o conceito de violecircncia psicoloacutegica exerce sobre o elemento normativo ldquosauacutederdquo e outra quanto ao incremento intelectual e na estrutura de pessoal das pro-motorias de justiccedila no sentido de qualificar formalmente os pro-motores em questotildees de gecircnero e dotar as promotorias do serviccedilo interdisciplinar psicossocial para avaliar a incidecircncia de eventos de violecircncia psicoloacutegica nos casos que chegam para deliberaccedilatildeo acerca do que foi produzido nas investigaccedilotildees policiais

4) Por fim a necessidade de se desenvolverem fluxos nas delegacias de poliacutecia atraveacutes dos quais com a utilizaccedilatildeo de anam-neses na forma de entrevistas agraves ofendidas ficariam evidenciados desde o iniacutecio os indiacutecios da presenccedila da violecircncia psicoloacutegica e dos seus efeitos danosos agrave sauacutede das viacutetimas

Da Necessidade de Enfrentamento da Violecircncia Psicoloacutegica a partir do Mapa da Violecircncia

Observa-se que algumas anomalias no funcionamento das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila levam agrave invisibilidade da respos-ta da Justiccedila a violecircncia psicoloacutegica sofrida pelo gecircnero feminino mesmo apoacutes a vigecircncia da Lei Maria da Penha Mais ainda essas anomalias levam mesmo ateacute agrave exclusatildeo da consideraccedilatildeo desse tipo de violecircncia como evento provocador de uma persecuccedilatildeo penal independente

A obviedade da influecircncia dessas anomalias que se ma-terializam nessa invisibilidade aparece nos nuacutemeros do mapa da violecircncia contra a mulher Pesquisa mostra que em 2014 das no-

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tificaccedilotildees de violecircncia contra a mulher lanccediladas no Sistema de In-formaccedilatildeo de Agravos de Notificaccedilatildeo (SINAN) a partir de informaccedilotildees originaacuterias do atendimento do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) depois da violecircncia fiacutesica o tipo de violecircncia sofrida pelas mulheres mais relatado foi a psicoloacutegica Tomando-se como referecircncia o puacuteblico feminino de jovens e adultas em que eacute maior a incidecircncia de vio-lecircncia praticada por cocircnjuges e ex-cocircnjuges (WAISELFISZ 2015 p 49) vecirc-se que 589 das jovens e 571 das adultas atendidas pelo serviccedilo de sauacutede puacuteblica relataram ter sofrido violecircncia fiacute-sica A partir do mesmo nuacutemero absoluto do qual se aferiu essa porcentagem verifica-se que 245 das jovens e 266 das adultas relataram ter sofrido violecircncia psicoloacutegica aleacutem da violecircncia fiacutesica ou independente dela (WAISELFISZ 2015) Esse percentual cai sensivelmente quando se falam de outras formas de violecircncia

Pesquisa acerca do ano de 2014 da Central de Atendimen-to agrave Mulher (Ligue 180) natildeo destoa da verificaccedilatildeo de alta incidecircncia de informaccedilotildees acerca da violecircncia psicoloacutegica sofrida e relatada pelas ofendidas Naquele ano 3181 das mulheres atendidas re-lataram a violecircncia psicoloacutegica como uma das ou a espeacutecie exclusi-va de violecircncia sofrida atraacutes apenas da violecircncia fiacutesica que repre-sentou 5168 dos relatos (BRASIL 2015)

Percebe-se pois que os eventos de violecircncia psicoloacutegica

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existem e satildeo vultosos Aleacutem disso a pesquisa mostra que dos casos em que houve relatos de violecircncia contra a mulher no atendi-mento do SUS 462 dos que foram relatados por mulheres jovens foram encaminhados a instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila assim como 461 dos casos relatados por adultas Somando-se os en-caminhamentos agraves delegacias especializadas em defesa da mulher e agraves delegacias gerais tem-se 372 entre os 462 encaminhados agraves Instituiccedilotildees do sistema de defesa da mulher em se tratando de relatos de violecircncia feitos por mulheres jovens (805 dos casos) e 36 entre os 461 encaminhados agraves mesmas Instituiccedilotildees em se tratando de relatos feitos por mulheres adultas (78 dos casos) (WAISELFISZ 2015)

O que se pode concluir eacute que ou por deficit de remessa dos casos de violecircncia psicoloacutegica agraves delegacias ou por falta de inves-tigaccedilotildees concentradas tambeacutem nessa espeacutecie de violecircncia ou por um deficit de formulaccedilatildeo de denuacutencias que a tenham considerado como circunstacircncia moduladora do elemento normativo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal o que eacute sintomaacutetico eacute que a violecircncia psicoloacutegica natildeo aparece nos nuacutemeros de condenaccedilotildees da Justiccedila como delito autocircnomo Exemplo disso eacute o levantamento estatiacutes-tico da uacutenica Vara Especial de Violecircncia Domeacutestica e Familiar contra a Mulher de Satildeo Luiacutes capital do Estado do Maranhatildeo O lapso temporal da pesquisa refere-se aos meses de junho e de julho dos anos de 2012 e 2013

Os nuacutemeros referidos na pesquisa mostram que dos pro-cessos que tramitaram naquela Vara naquele periacuteodo e que se re-feriram a Medidas Protetivas de Urgecircncia 36 relataram violecircncia psicoloacutegica em 2012 e 35 em 2013 Mais ateacute do que os relatos de violecircncia fiacutesica que ocuparam 26 em 2012 e 29 em 2013 (MA-RANHAtildeO 2014)

Quanto aos nuacutemeros referentes agraves sentenccedilas vecirc-se que 91 delas foram ldquosentenccedilas inibitoacuteriasrdquo em 2012 e 92 em 2013 A pesquisa relata que essas sentenccedilas tecircm o ldquoobjetivo de coibir o ato violento praticado pelo requeridordquo contudo natildeo se tratam neces-sariamente de sentenccedilas de meacuterito em que se vejam condenaccedilotildees

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por violecircncia domeacutestica e muito menos em que se possam aferir nuacutemeros acerca das condenaccedilotildees por lesotildees corporais com ofensa agrave sauacutede psiacutequica das viacutetimas

Com pequena variaccedilatildeo nos nuacutemeros a tendecircncia se repete na pesquisa publicada em 2015 realizada pela mesma Vara espe-cializada e que teve os meses de janeiro a abril de 2014 como obje-to de anaacutelise (MARANHAtildeO 2015)

Esse cenaacuterio emerge em que pese o reconhecimento de que a violecircncia psicoloacutegica pura pode gerar um estado patoloacutegico em diversos niacuteveis tende a ser cronificada e extremamente destrui-dora porque geralmente eacute praticada por um agressor com quem a viacutetima manteve uma relaccedilatildeo de afeto e de quem espera algum niacutevel de respeito A vinculaccedilatildeo afetiva preteacuterita ou presente entre agressor e viacutetima comumente gera um sentimento de culpa da viacuteti-ma em relaccedilatildeo agrave violecircncia sofrida podendo contribuir para que ela questione inclusive sua sanidade mental Fecha-se assim um ciclo torturante e doloroso de comprometimento da sauacutede da viacutetima de violecircncia domeacutestica

Induvidoso que essa premissa conceitual faz emergirem discrepacircncias entre as adequaccedilotildees tiacutepicas dos crimes contra a hon-ra e ateacute dos de ameaccedila ndash que satildeo aferiacuteveis por evento e satildeo pontua-dos no tempo e no espaccedilo ndash e os de lesatildeo agrave sauacutede em razatildeo de violecircn-cia psicoloacutegica Eacute que nestes se tratam de resultados naturaliacutesticos aferiacuteveis no acircmbito do psiquismo mediante juiacutezos de valor ou teacutec-nicos Falam-se como relata a Psicoacuteloga Juriacutedica Sonia Rovinski de sintomas como choque negaccedilatildeo recolhimento confusatildeo entor-pecimento medo depressatildeo desesperanccedila baixa autoestima e ne-gaccedilatildeo sendo o transtorno de estresse poacutes-traumaacutetico um dos quadros cliacutenico-patoloacutegicos mais comuns (MACHADO 2013)

Portanto chega-se agrave conclusatildeo de que a mudanccedila insti-tucional para um enfrentamento mais eficaz desse estado de coi-sas soacute poderaacute ocorrer com o desenvolvimento de fluxos ainda na delegacia de poliacutecia que ofereccedilam elementos indiciaacuterios baacutesicos para que o oacutergatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico dotado de conhecimentos transdisciplinares afetos agrave teoria de gecircnero possa formular accedilotildees

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penais com adequaccedilotildees tiacutepicas que tratem de lesotildees corporais agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima de violecircncia domeacutestica

A Anamnese acerca da Violecircncia Psicoloacutegica na Persecuccedilatildeo Criminal Preliminar

Diante da dificuldade de se inaugurarem persecuccedilotildees pe-nais em razatildeo da violecircncia psicoloacutegica que caracterize a ofensa agrave sauacutede da viacutetima do gecircnero feminino eacute importante que se estabe-leccedilam fluxos baacutesicos para investigar indiacutecios dessas lesotildees ainda nas delegacias de poliacutecia de forma a proporcionar que o oacutergatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico munido de conhecimentos transdisciplinares possa posteriormente identificar a probabilidade de ocorrecircncia de algum transtorno ou sintoma psiacutequico em razatildeo da violecircncia para entatildeo formular accedilatildeo penal adequada e requerer a condenaccedilatildeo es-peciacutefica por lesatildeo agrave sauacutede psiacutequica da ofendida

Para esse fim eacute importante que se construa uma anamnese com alguns questionamentos agrave ofendida e que comporiam o cader-no policial Essa entrevista colimaria por evidenciar as posturas do agressor e consequecircncias delas referentes agraves violecircncias psicoloacutegicas que satildeo previstas na LMP e em seguida visaria perquirir caracte-riacutesticas que levassem aos sintomas das patologias mais comuns em razatildeo de violecircncia psicoloacutegica o Transtorno de Estresse Poacutes-Traumaacute-tico (TEPT) (CID 10 F 431) e Siacutendrome da Mulher Espancada (SME)

Quanto agrave primeira patologia trata-se de um distuacuterbio de ansiedade que faz com que pessoas que tenham presenciado ou sido viacutetimas de atos percebidos como intensamente violentos pas-siacuteveis de comprometerem sua seguranccedila ou de outrem revivam o episoacutedio pela representaccedilatildeo mental mas como se ele estivesse ocorrendo novamente revivendo-se as mesmas sensaccedilotildees dores e sofrimentos experimentados outrora mesmo diante de fatos novos potencialmente menos danosos Jaacute quando agrave segunda a siacutendrome se desenvolve em trecircs fases primeira o agressor assume postu-ras que criam tensotildees no relacionamento depois o estado de ten-satildeo migra para as agressotildees efetivas de qualquer espeacutecie por fim

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ocorre a fase da reconciliaccedilatildeo em que a mulher perdoa o agressor mas o ciclo de violecircncia recomeccedila e a viacutetima passa a atribuir a si a culpa dos atos do seu algoz assumindo a responsabilidade por eles ocorrerem Este estado mental continuado pode desencadear sintomas psicoloacutegicos e psicossomaacuteticos diversos alterando inclu-sive a percepccedilatildeo de realidade da viacutetima

A anamnese poderia ser composta de trecircs blocos de per-guntas semiestruturadas em cujas respostas a ofendida entrevista-da poderia desenvolver os detalhes acerca dos sintomas sem que percebesse que estaria falando deles

1ordf Fase Caracteriacutesticas gerais da violecircncia psicoloacutegica previstas na LMP

1) Vocecirc acha que por algum motivo o comportamento ou a atitude do seu namoradocompanheiromarido (NCM) compro-meteu ou compromete o sentimento de valor e seguranccedila que vocecirc tem de vocecirc mesma Relate os episoacutedios quando eles ocorrem e o que vocecirc sente quando eles acontecem (Esse quesito investiga a diminuiccedilatildeo de autoestima e seguranccedila da viacutetima)

2) Vocecirc acha que em razatildeo de algum comportamento ou atitude do seu NCM vocecirc se sentiu ou se sente controlada ou me-nosprezada com relaccedilatildeo ao que vocecirc acredita e quer para si no que se refere a comportamentos crenccedilas e decisotildees de vida Relate os episoacutedios e se eles ocorrem mediante algum desses elementos ameaccedila constrangimento humilhaccedilatildeo manipulaccedilatildeo isolamento vigilacircncia constante perseguiccedilatildeo frequente insulto chantagem ridicularizaccedilatildeo exploraccedilatildeo limitaccedilatildeo do seu desejo de se deslocar para onde queira ou outro natildeo especificado

2ordf Fase Caracteriacutesticas acerca do Transtorno de Estresse Poacutes-traumaacutetico

3) Relate que tipo de violecircncia vocecirc sofreu do seu NCM quando e com que frequecircncia ela(s) ocorreu(ram) ou ocorre(m)

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fiacutesica (lesatildeo ao corpo) psicoloacutegica (que a deixou desestabilizada emocionalmente por um periacuteodo de meacutedio a longo prazo) sexual (praacutetica de ato sexual natildeo consentido) tortura (sofreu lesotildees me-diante praacuteticas que vocecirc considerou abominaacuteveis ou especialmen-te ultrajantes) patrimonial (teve seus objetos pessoais e bens dani-ficados ou destruiacutedos) moral (sentiu-se atacada na sua honra ou quanto ao conceito que vocecirc tem de vocecirc mesma ou ainda quanto ao conceito que acredita que os outros tecircm de vocecirc)

4) Vocecirc tem lembranccedilas espontacircneas recorrentes (natildeo su-geridas por outrem) desse(s) episoacutedio(s) de violecircncia(s) Tem pe-sadelos com ele(s) Explique em que situaccedilotildees essas lembranccedilas (flashbacks) acontecem

5) Haacute objetos lugares pessoas comportamentos muacutesicas contatos atividades ou qualquer outra coisa que a remeta agrave lem-branccedila da(s) violecircncia(s) Vocecirc costuma usar da estrateacutegia de fuga ou desvio de quaisquer dessas coisaspessoascircunstacircncias que a possam rememorar a lembranccedila da agressatildeo sofrida Explique como vocecirc lida com essas lembranccedilas

6) Como vocecirc avalia o seu grau de interesse afetivo pelas pessoas que fazem parte de seu ciclo de vida (NCM pais filhos irmatildeos amigos colegas de escolafaculdade ou trabalho) Sente que essas relaccedilotildees jaacute foram mais prazerosas que mantecircm uma es-tabilidade quanto agrave sua satisfaccedilatildeo pessoal ou esse grau de satisfa-ccedilatildeo diminuiu Relate situaccedilotildees que possam respaldar os sentimen-tos relatados

7) Quando ocorrem fatos que lhe causam tensatildeo e que vocecirc considera anormais agrave sua rotina (fatos que causam excitaccedilatildeo emo-cional) vocecirc considera que tem um bom grau de autocontrole em relaccedilatildeo a eles ou se acha muito sensiacutevel a essas situaccedilotildees Vocecirc tem reaccedilotildees a esses fatos que considere repentinas eou instantacircneas que causam aceleraccedilatildeo de batimentos cardiacuteacos transpiraccedilatildeo ca-lor ou medo de morrer Apoacutes essas situaccedilotildees eacute comum vocecirc apre-sentar dificuldades para comeccedilar a dormir ou atingir sono profun-do dificuldade de concentraccedilatildeo facilidade de irritaccedilatildeo estado de alerta (hipervigilacircncia) ou alteraccedilatildeo de seu ciclo de fome deixando

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de sentir fome ou comendo demais por ansiedade8) Vocecirc se sente impotente em algum aspecto da sua vida

Acha-se incapaz de se proteger de perigos De alguma forma ou em algum grau natildeo tem esperanccedilas em relaccedilatildeo ao futuro ou tem sensaccedilatildeo de vazio A que vocecirc atribui essas sensaccedilotildees

3ordf Fase Caracteriacutesticas acerca da Siacutendrome da Mulher Espancada

9) Vocecirc considera que tem dependecircncia econocircmica em re-laccedilatildeo ao seu NCM Decirc detalhes da sua vida financeira e se souber do orccedilamento familiar (receitas e despesas)

10) Antes das agressotildees sofridas seu NCM criava situa-ccedilotildees que a deixavam embaraccedilada incomodada e que a faziam pen-sar que talvez ele natildeo fosse a melhor pessoa para vocecirc Relate os episoacutedios que lembre

11) Seu NCM costumava ou costuma pedir perdatildeo eou demonstrar arrependimento profundo apoacutes os episoacutedios de vio-lecircncia cometidos Vocecirc perdoou seu NCM das agressotildees que so-freu dele O que vocecirc levou em consideraccedilatildeo para perdoaacute-lo

12) Depois do perdatildeo agraves agressotildees o relacionamento cos-tuma ficar bem por certo tempo (em clima de lua de mel) Com que frequecircncia estes episoacutedios de arrependimento aconteciam ou acontecem Quanto tempo costuma transcorrer ateacute o proacuteximo epi-soacutedio de agressatildeo

13) Mesmo depois da(s) agressatildeo(otildees) sofrida(s) vocecirc con-sidera que conseguiraacute manter um clima de paz no relacionamento e que convenceraacute o seu NCM a fazer o mesmo Quais as estrateacute-gias que costuma usar Explique o que vocecirc acha que levaraacute a esse estado de paz

14) Por que vocecirc acha que essas agressotildees acontecem (A intenccedilatildeo da pergunta eacute avaliar se a viacutetima se sente culpada pelas agressotildees sofridas indicando seu grau de vulnerabilidade)

15) Vocecirc teme ser agredida de uma forma mais grave pelo seu NCM Houve ameaccedila dele nesse sentido Em caso afirmativo relate o que a leva a ter esse medo

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16) Seu NCM fez ou faz ameaccedilas de agredir a vocecirc ou a algueacutem que vocecirc ame caso de separeseparasse dele Relate epi-soacutedios

17) Vocecirc se sente impotente para tomar alguma atitude contra o seu NCM que possa resultar em puniccedilatildeo dele em razatildeo da(s) agressatildeo(ccedilotildees) sofrida(s) por vocecirc Por quecirc Explique

18) Vocecirc acredita ou acreditava que o contato com auto-ridades para tratar da violecircncia sofrida faraacute(ia) com que vocecirc so-fra(fesse) agressotildees mais graves por seu NCM Em caso positivo explique o que a leva a pensar assim

19) Vocecirc costuma ingerir bebidas alcooacutelicas usar drogas ou fazer uso de algum medicamento Considera que depois das agressotildees sofridas esses haacutebitos ficaram mais recorrentes no seu dia a dia

Importante destacar que essa anamnese tem a finalidade de o Delegado de Poliacutecia poder proceder a um relatoacuterio mais com-pleto em que aflorem caracteriacutesticas da lesatildeo agrave sauacutede da ofendida em razatildeo da violecircncia psicoloacutegica e para que a par dessa consta-taccedilatildeo o Ministeacuterio Puacuteblico possa denunciar o agressor com fulcro no caput do art 129 do Coacutedigo Penal combinado com o seu sect9ordm de sorte a atribuir agrave violecircncia psicoloacutegica uma razatildeo autocircnoma para a condenaccedilatildeo criminal por lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica ou havendo con-comitacircncia com outras formas de violecircncia para que seja conside-rada como motivaccedilatildeo para majoraccedilatildeo da dosimetria da pena em razatildeo do elevado grau de culpabilidade (intensidade de dolo) impu-tado ao agressor

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Diante do que se observou os fins colimados pela Lei Ma-ria da Penha na sua melhor extensatildeo dependem do desapego da praacutetica juriacutedica ndash sobretudo na fase de persecuccedilatildeo criminal preli-minar ndash a uma postura culturalmente positivista e ou reducionista de se esperar que a lei ofereccedila soluccedilotildees ostensivamente previstas para as demandas criminais que envolvam a violecircncia domeacutestica

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No que interessa agrave figura da violecircncia psicoloacutegica urge observar que a sua consideraccedilatildeo nos casos concretos se serve para bem mais do que funcionar como vetor de poliacutetica criminal que permita remeter os processos de violecircncia domeacutestica para a com-petecircncia das(dos) VarasJuizados de Violecircncia Domeacutestica e familiar contra a mulher imprimindo a esses casos a possibilidade de medi-das protetivas de urgecircncia em favor da ofendida e medidas restri-tivas mais duras contra o agressor que convirjam com a poliacutetica de coibiccedilatildeo da violecircncia contra a mulher

Mais do que isso a legislaccedilatildeo oferece alternativas para que os agressores se vejam condenados pela proacutepria violecircncia psico-loacutegica como resultado de uma tipificaccedilatildeo da ofensa agrave sauacutede (caput do art 129 do Coacutedigo Penal) ou como elemento que incremente a dosimetria penal em razatildeo da sua incidecircncia sobre o grau de culpa-bilidade enquanto intensidade do dolo na praacutetica do delito

Eacute preciso entretanto que os operadores do direito do sis-tema de justiccedila se deem agrave atribuiccedilatildeo de juiacutezo de valor ao elemento normativo sauacutede encontrado no tipo do art 129 para que a respos-ta judicial quanto agrave violecircncia psicoloacutegica apareccedila nos nuacutemeros do Judiciaacuterio Para isso fazem-se necessaacuterios incentivar a aquisiccedilatildeo de conhecimentos transdisciplinares pelos profissionais do Siste-ma de Justiccedila e a criaccedilatildeo de fluxos desde as delegacias de poliacutecia com formulaccedilatildeo de questionaacuterios agraves ofendidas agrave guisa de anamne-se para que haja indiacutecios fortes que possam fundar accedilotildees penais puacuteblicas que sejam aptas a provocar condenaccedilotildees por ldquolesatildeo agrave sauacute-de psicoloacutegicardquo

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

BITENCOURT Cezar Roberto Manual de direito penal parte especial Vol 2 Satildeo Paulo Saraiva 2001

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BRUNO Aniacutebal Crimes contra a pessoa 5 ed Rio de Janeiro Editora Rio 1976

FERRAZ Flaacutevio Carvalho SEGRE Marco O conceito de sauacutede Revista de Sauacutede Puacuteblica Vol 31 n 5 Satildeo Paulo 1997 Disponiacutevel em httpwwwscielobrscielophpscript=sci_arttextamppid=S0034-89101997000600016

MACHADO Isadora Vier Da dor no corpo agrave dor na alma uma leitura do conceito de violecircncia psicoloacutegica da Lei Maria da Penha Tese (Doutorado em Ciecircncias Humanas) Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo Interdisciplinar em Ciecircncias Humanas (PPGICH) Programa de Doutorado Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) 2013 282 p Disponiacutevel em httpsrepositorioufscbrbitstreamhandle123456789107617319119pdfsequence=1ampisAllowed=y

MARANHAtildeO Tribunal de Justiccedila do Estado do Maranhatildeo Apelaccedilatildeo Criminal nordm 0167822008 - Satildeo Joseacute de Ribamar 2009 Disponiacutevel em httptj-majusbrasilcombrjurisprudencia3638115apelacao-criminal-acr-167822008-mainteiro-teor-101505768

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______ Tribunal de Justiccedila do Estado do Maranhatildeo Violecircncia Domeacutestica contra a Mulher Dados Estatiacutesticos da Vara Especializada da Comarca de Satildeo Luiacutes 2015 Disponiacutevel em httpgerenciadortjmajusbrappwebrootfilespublicacao407035dados_estatosticos_da_vara_especializada_da_comarca_de_soo_luos_-_ano_2015_23102015_0848pdf

MIRABETE Julio Fabbrini Manual de direito penal Vol 1 30 ed Satildeo Paulo Atlas 2014

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WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da violecircncia 2015 Homiciacutedio de mulheres no Brasil Brasiacutelia 2015 Disponiacutevel em httpwwwmapadaviolenciaorgbrmapa2015_mulheresphp

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CIDADE SEM FRONTEIRAS FRONTEIRAS SEM CIDADES

Daniella S Dias1

RESUMO O presente artigo eacute um estudo bibliograacutefico e aponta processo de urbanizaccedilatildeo global a desigualdade planetaacuteria a periferizaccedilatildeo e a favelizaccedilatildeo mundiais como efeitos da globalizaccedilatildeo Apresenta reflexotildees sobre os efeitos da produccedilatildeo capitalista do espaccedilo sobre nossas cidades e sobre nossas vidas e como o atual modelo capitalista tem corroborado para que nossas cidades se tornem espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de atividades capitalistas produtivas Aponta a responsabilidade do Estado para o controle sobre o territoacuterio face agrave transformaccedilatildeo que o modelo capitalista produz nos espaccedilos urbanos e rurais e para a implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais para o enfrentamento da segregaccedilatildeo e da desigualdade social e analisa como as atuais poliacuteticas habitacionais implementadas pelo Estado brasileiro tem propiciado a segregaccedilatildeo socioespacial e a financeirizaccedilatildeo da moradia

PALAVRAS-CHAVE Globalizaccedilatildeo Direito agrave moradia Direito agrave cidade

ABSTRACT The present article is a bibliographic study that addresses the process of global urbanization the planet social inequality the peripheraization and the world phenomenon of shanty towns as effects of globalization It provides reflections on the effects of the capitalist space production in our cities and our lives as well as on how the current capitalist model has supported the fact that our cities have become essential spaces for the development of capitalist production activities It addresses the responsibilities of the State with the control over territorial space vis-a-vis the transformation that the capitalist model has caused in the urban and rural spaces as well as with the implementation of housing development policies for coping with the social segregation

1 Doutora em Direito Puacuteblico ndash UFPE Professora da Graduaccedilatildeo e Poacutes-graduaccedilatildeo UFPAUNIFESSPA e Promotora de Justiccedila

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and inequality Furthermore it analyzes how the current housing devepment policies as implemented by the Brazilian State has led to the socio-spatial segregation and the financialization of housing development

KEYWORDS Globalization Right to the city The right to housing

INTRODUCcedilAtildeO

Neste artigo pretendemos abordar alguns dos temas mais delicados a serem enfrentados pelos paiacuteses desenvolvidos e sub-desenvolvidos como o processo de urbanizaccedilatildeo global de perife-rizaccedilatildeo e de favelizaccedilatildeo mundiais a desigualdade planetaacuteria e o desafio de concretizaccedilatildeo do direito agrave cidade Contudo nenhuma reflexatildeo pode ser realizada de forma descontextualizada pois o processo de urbanizaccedilatildeo global tem intriacutenseca relaccedilatildeo com o de-senvolvimento do modelo capitalista transnacional e seus deleteacute-rios efeitos sobre a qualidade de vida nos espaccedilos urbanos e rurais

Eacute necessaacuterio refletir sobre os processos de diferenciaccedilatildeo espacial que seguem apartando camadas hipossuficientes das possibilidades de desenvolvimento humano e de exerciacutecio da cidadania culminando em segregaccedilatildeo histoacuterica cultural econocirc-mica tecnoloacutegica e digital Nesse sentido a mundializaccedilatildeo do ca-pital tem intriacutenseca relaccedilatildeo com a existecircncia e com a inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas habitacionais o que tem tornado nossas cida-des espaccedilos para a reproduccedilatildeo do capital

Uma das funccedilotildees do Estado para o controle sobre o terri-toacuterio face agrave transformaccedilatildeo que o modelo capitalista produz nos es-paccedilos urbanos e rurais eacute a de implementar poliacuteticas habitacionais como forma de enfrentamento da segregaccedilatildeo e da desigualdade social Refletir sobre o direito agrave moradia como bem social eacute tarefa imprescindiacutevel tarefa que natildeo se realiza sem anaacutelise criacutetica sobre as atuais poliacuteticas habitacionais implementadas pelo Estado brasi-leiro

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A Globalizaccedilatildeo o Processo de Urbanizaccedilatildeo Global e a Desigualdade Planetaacuteria

A globalizaccedilatildeo eacute uma nova ordem paradigmaacutetica (CUNHA 1998) que por meio das revoluccedilotildees teacutecnico-cientiacuteficas e das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas levou agrave compressatildeo das categorias tempo e espaccedilo (BECK 2000) Trata-se de uma nova forma de in-terconexatildeo entre Estado e sociedade interconexatildeo que se estabele-ce por meio de um novo marco econocircmico que gerou e tem pro-vocado profundas modificaccedilotildees nos acircmbitos econocircmico poliacutetico juriacutedico ambiental cultural e sobretudo territorial (DIAS 2010)

Para Julio-Campuzano (2003 p 19-20)

La globalizacioacuten representa como sostiene Octavio Ianni un nuevo ciclo de expansioacuten del capitalismo como modo de produccioacuten y proceso civilizatorio de alcance mundial un ciclo caracterizado por la integracioacuten de los mercados de forma avasalladora y por la intensificacioacuten de la circulacioacuten de bienes servicios tecnologiacuteas capitales e informaciones a niacutevel planetario De este modo la globalizacioacuten apa-rece concebida como la lsquointegracioacuten sisteacutemica de la economiacutea a nivel supranacional deflagrada por la creciente diferenciacioacuten estructural y funcional de los sistemas productivos y por la subsiguiente am-pliacioacuten de las redes empresariales comerciales y fi-nancieras a escala mundial actuando de modo cada vez maacutes independiente de los controles poliacuteticos y juriacutedicos a nivel nacionalrsquo Es lo que Wallerstein ha denominado lsquo economiacutea mundial capitalistarsquo un nuevo marco econocircmico mundial regido por el siste-ma capitalista cuya dinaacutemica expansiva alcanza asiacute su culminacioacuten De un extremo a otro del planeta el capitalismo se extiende y se ramifica en muacuteltiples derivaciones locales un uacutenico sistema cuyos des-doblamientos crean uma imagen de particularidad

O modelo capitalista global ou como apontam alguns au-tores o modelo capitalista transnacional tecnologicamente avan-ccedilado tem como consequecircncias o aumento do trabalho informal

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a precarizaccedilatildeo das relaccedilotildees trabalhistas a crise ecoloacutegica (BECK 2000) o aumento da desigualdade planetaacuteria cabendo destacar o processo de urbanizaccedilatildeo planetaacuteria que ocorre concomitantemen-te ao aumento da pobreza da periferizaccedilatildeo de enormes camadas populacionais e da inexistecircncia de condiccedilotildees de moradia digna (HARVEY 2014)

A desigualdade planetaacuteria se revela no crescimento ex-ponencial das favelas no processo de expansatildeo urbana ldquosem ci-dadesrdquo na falta de planejamento urbano e da prestaccedilatildeo de ser-viccedilos essenciais como saneamento baacutesico iluminaccedilatildeo seguranccedila puacuteblica entre outros serviccedilos Como bem ressalta Davis (2006) a expansatildeo urbana natildeo eacute a expressatildeo do desenvolvimento humano mas sim da reproduccedilatildeo da pobreza

Pobreza e favelizaccedilatildeo satildeo temas intrinsecamente rela-cionados Para Davis (2006) o crescimento populacional urbano no Terceiro Mundo nas proacuteximas deacutecadas dar-se-aacute nos espaccedilos destinados agraves comunidades informais

Os dados sugerem que os assentamentos precaacuterios seratildeo formas dominantes de ocupaccedilatildeo territorial Segundo pesquisa rea-lizada pela ONU 32 da populaccedilatildeo mundial vivem em favelas (COSTA e PORTO-GONCcedilALVES 2006) e os assentamentos precaacute-rios trazem consigo problemas de distintas ordens Contudo vale destacar de acordo com Castel (2008) dentre os efeitos nefastos do processo de periferizaccedilatildeo mundial a segregaccedilatildeo social cultural poliacutetica tecnoloacutegica ambiental e territorial

As periferias natildeo se caracterizam apenas por ser espaccedilos de vida que se produziram de forma espontacircnea por meio da au-toconstruccedilatildeo desprovidos de serviccedilos essenciais do planejamento e da intervenccedilatildeo do estado Os espaccedilos perifeacutericos satildeo para Castel (2008 p 24-25) ldquoespaccedilos de desterrordquo de falta de futuro espaccedilos fraacutegeis que revelam a total ruptura do tecido social

O espaccedilo como bem pontua Santos (2008) eacute relacional O espaccedilo eacute dinacircmico resultado da intriacutenseca relaccedilatildeo entre configura-ccedilatildeo territorial paisagem e sociedade eacute ldquoo resultado da geografi-zaccedilatildeo da sociedade sobre a configuraccedilatildeo territorialrdquo (Idem p 85)

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Para o autor satildeo as relaccedilotildees socioespaciais as estruturas sociais que sofrem profundas modificaccedilotildees com o capital Portanto eacute ne-cessaacuterio refletir sobre os processos de diferenciaccedilatildeo espacial que seguem apartando camadas hipossuficientes das possibilidades de desenvolvimento humano e de exerciacutecio da cidadania

No Brasil natildeo podemos deixar de destacar que o processo de segregaccedilatildeo socioespacial eacute histoacuterico e natildeo se trata tatildeo somente de uma segregaccedilatildeo territorial A segregaccedilatildeo territorial traz a rebo-que uma segregaccedilatildeo histoacuterica cultural e econocircmica tecnoloacutegica e digital (DIAS 2014)

Davis (2006 p 27) ao tratar sobre o crescimento das fave-las no Brasil afirma que

As favelas de Satildeo Paulo ndash meros 12 da populaccedilatildeo em 1973 mais 198 em 1993 ndash cresceram na deacuteca-da de 1990 no ritmo explosivo de 164 ao ano Na Amazocircnia uma das fronteiras urbanas que cres-cem com mais velocidade em todo mundo 80 do crescimento das cidades tecircm-se dado nas favelas privadas em sua maior parte de serviccedilos puacuteblicos e transporte municipal tornando assim sinocircnimos lsquourbanizaccedilatildeorsquo e lsquofavelizaccedilatildeorsquo

Vale salientar como bem sintetiza Herardi (2017) a mun-dializaccedilatildeo do capital trouxe como efeitos o deacuteficit de poliacuteticas puacute-blicas habitacionais deacuteficit que propiciou ldquoa produccedilatildeo ilegal do espaccedilo urbanordquo ( p 6) Para a autora ldquoo quadro atual representa a continuidade do processo histoacuterico iniciado com a industrializaccedilatildeo e desenvolvimento econocircmico do Estado brasileiro sempre marca-do pela exclusatildeo e desigualdade socialrdquo (Idem)

Precisamos portanto refletir sobre os efeitos da produccedilatildeo capitalista do espaccedilo sobre nossas cidades e sobre nossas vidas pois o modelo capitalista por meio de sua ldquodestruiccedilatildeo criativardquo transforma paulatinamente nossas cidades em puro espaccedilo de tro-cas isto eacute espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de ativida-des capitalistas produtivas

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O Mercado Existe para as Cidades Ou as Cidades Existem para o Mercado

Essas perguntas natildeo podem ser respondidas sem que nos debrucemos sobre a anaacutelise teoacuterica realizada por David Harvey

Para Harvey (2014 p 30)

Desde que passaram a existir as cidades surgiram da concentraccedilatildeo geograacutefica e social de um excedente de produccedilatildeo A urbanizaccedilatildeo sempre foi portanto al-gum tipo de fenocircmeno de classe uma vez que os ex-cedentes satildeo extraiacutedos de algum lugar ou de algueacutem enquanto o controle sobre o uso desse lucro acumu-lado costuma permanecer nas matildeos de poucos

Essa situaccedilatildeo geral persiste sob o capitalismo sem duacutevida mas nesse caso haacute uma dinacircmica bem di-ferente em atuaccedilatildeo O capitalismo fundamenta-se como nos diz Marx na eterna busca de mais valia (lucro) Contudo para produzir mais valia os ca-pitalistas tecircm de produzir excedentes de produccedilatildeo Isso significa que o capitalismo estaacute eternamente produzindo os excedentes de produccedilatildeo exigidos pela urbanizaccedilatildeo A relaccedilatildeo inversa tambeacutem se apli-ca O capitalismo precisa da urbanizaccedilatildeo para ab-sorver o excedente de produccedilatildeo que nunca deixa de produzir Dessa maneira surge uma ligaccedilatildeo iacutentima entre o desenvolvimento do capitalismo e a urbani-zaccedilatildeo (HARVEY 2014 p 30 grifo nosso)

[] A urbanizaccedilatildeo desempenha um papel particular-mente ativo (ao lado de outros fenocircmenos como os gastos militares) ao absorver as mercadorias exce-dentes que os capitalistas natildeo param de produzir em sua busca de mais-valia (Idem)

Se como leciona Harvey existe uma intriacutenseca relaccedilatildeo entre produccedilatildeo capitalista e urbanizaccedilatildeo atualmente o processo de urbanizaccedilatildeo se tornou global e a possibilidade de absorccedilatildeo do capital excedente tem provocado profundas modificaccedilotildees nos pro-cessos de expansatildeo urbana

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Eacute importante refletir sobre os efeitos da produccedilatildeo capita-lista sobre o espaccedilo para que possamos perceber que a apropriaccedilatildeo dos espaccedilos urbanos e rurais tem se dado de forma a beneficiar os interesses capitalistas viabilizando acumulaccedilatildeo e expansatildeo do proacuteprio sistema (DIAS 2014) Harvey chama a atenccedilatildeo para o fato de que as transformaccedilotildees espaciais provocadas pelo modelo capi-talista modificam natildeo somente os espaccedilos fiacutesicos mas sobretudo as relaccedilotildees sociais pois ldquoem razatildeo da eterna necessidade de encon-trar esferas rentaacuteveis para produccedilatildeo e absorccedilatildeo do excedente do capitalrdquo (Idem p 31) o capitalismo se apropria de novos recursos naturais produz novas tecnologias cria novos meios de produccedilatildeo utiliza-se da oferta de infraestrutura e da matildeo de obra organizan-do a sua proacutepria expansatildeo geograacutefica (Ibidem p 45) Essa reestru-turaccedilatildeo do capitalismo ocorre concomitantemente a uma transfor-maccedilatildeo do modelo de urbanizaccedilatildeo pois os espaccedilos urbanos passam a ser espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de atividades capitalistas lucrativas Por isso Harvey afirma que

A cidade tradicional foi morta pelo desenvolvi-mento capitalista descontrolado vitimada por sua interminaacutevel necessidade de dispor da acumulaccedilatildeo desenfreada de capital capaz de financiar a expan-satildeo interminaacutevel e desordenada do crescimento ur-bano sejam quais forem suas consequecircncias sociais ambientais ou poliacuteticasrdquo (HARVEY 2014 p 20 gri-fo nosso)

A necessidade interminaacutevel de expansatildeo urbana para ab-sorccedilatildeo dos excedentes do capital tem intriacutenseca relaccedilatildeo com a ex-pansatildeo do mercado imobiliaacuterio tornando quase tudo mercadoria Aliaacutes para Bensaiumld (2013 p 8)

Na realidade do mundo atual o capitalismo se aproxima de seu conceito teoacuterico Faz tudo virar mercadoria as coisas os serviccedilos o saber e a vida Generaliza a privatizaccedilatildeo dos bens comuns da humanidade Desencadeia a concorrecircncia de todos contra todos (Grifo nosso)

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Se o dinheiro eacute ldquoo verdadeiro poder e finalidade uacutenicardquo e como afirma Marx (apud BENSAIumlD 2013 p 33) ldquoeacute a verdadeira capacidaderdquo nossas cidades podem ser ldquopurardquo mercadoria O mercado existe para as cidades Ou as cidades existem para o mer-cado

Sandel (2012) chama a atenccedilatildeo para o fato de que os valo-res de mercado estatildeo dominando quase todos os aspectos da vida por consequecircncia quanto mais o dinheiro pode comprar maior desigualdade teremos na sociedade O dinheiro estaacute controlando nossas cidades e nossas fronteiras Estaacute ldquoimplodindordquo por meio da ldquodestruiccedilatildeo criativardquo (HARVEY 2014 p 49) nossas fronteiras e por consequecircncia nossas cidades

Quando o mercado passa a governar nossas cidades os efeitos da desigualdade social se agudizam e natildeo podemos des-cartar ndash de nossa anaacutelise sobre os desafios para o enfrentamento da exclusatildeo socioespacial do processo de favelizaccedilatildeo global e da periferizaccedilatildeo de nossas cidades ndash o fato de que a expansatildeo econocirc-mica capitalista estaacute transformando nossas cidades em mercado-rias subjacente a esses problemas estaacute a grande polarizaccedilatildeo social fruto da desigual distribuiccedilatildeo da riqueza (MENDES 2013)

O efeito nefasto da ldquomercantilizaccedilatildeordquo de nossos espaccedilos territoriais eacute a desumanizaccedilatildeo das nossas cidades registrada nas formas espaciais verdadeiro mosaico de desigualdades e de pri-vaccedilotildees

Os dados alarmantes revelam que o Estado por meio da inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas e de planejamento assistiu im-passiacutevel ao aumento das habitaccedilotildees informais e ao crescimento das favelas E segundo Davis ldquoas favelas apesar de serem funestas e inseguras tecircm um esplecircndido futurordquo (DAVIS 2006 p 155 grifo nosso)

Para Harvey (2014 p 59)

A urbanizaccedilatildeo desempenhou um papel crucial na absorccedilatildeo de excedentes de capital e o que tem feito em escala geograacutefica cada vez maior mas ao preccedilo de processos florescentes de destruiccedilatildeo criativa que

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implicam a desapropriaccedilatildeo das massas urbanas de todo e qualquer direito agrave cidade (HARVEY 2014 p 59)

Nossas cidades estatildeo cada dia mais desiguais mais vio-lentas mais poluiacutedas e insustentaacuteveis e muito pouco tem sido feito para transformar essa realidade Nossas cidades satildeo caras e insus-tentaacuteveis do ponto de vista social cultural poliacutetico e ambiental

A pobreza urbana as precaacuterias condiccedilotildees de vida nas fa-velas a inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas habitacionais consisten-tes a marginalidade econocircmica territorial poliacutetica e social a que satildeo submetidos milhares de cidadatildeos brasileiros a inexistecircncia de higiene e de condiccedilotildees sanitaacuterias a falta de acesso agrave aacutegua potaacutevel a inseguranccedila juriacutedica da posse tornam esses habitantes e seus ter-ritoacuterios invisiacuteveis

A desigualdade social poliacutetica territorial digital eacute o gran-de desafio para a sociedade e para o Estado De nada adianta teo-rizarmos sobre a necessidade de efetivaccedilatildeo dos Direitos Humanos sem considerarmos o cenaacuterio mundial marcado pela desigualda-de planetaacuteria pelo desemprego estrutural pelas cataacutestrofes am-bientais e pelo crescimento do crime organizado

Seraacute que o direito como instrumento de controle social poderaacute agregar conjunto valorativo transformador agrave implementa-ccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Seraacute que o direito pode ser ferramenta para a transformaccedilatildeo do quadro atual de desigualdade no que diz respeito ao acesso a poliacuteticas puacuteblicas habitacionais Ou a moradia virou ldquopura mercadoriardquo Essas indagaccedilotildees se fazem pertinentes porque o planejamento e ordenamento territorial satildeo ferramentas importantes para definiccedilatildeo de atividades e de funccedilotildees bem como para prover necessidades concretas dos que habitam os espaccedilos territoriais Nesse sentido indaga-se em que medida eacute possiacutevel que o Estado realize o controle sobre o territoacuterio face agrave transforma-ccedilatildeo que o capital propulsiona nos espaccedilos urbanos e rurais

Essas indagaccedilotildees estatildeo relacionadas agrave analise sobre a im-plementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais no Brasil para que possa-mos refletir criticamente sobre o processo de implementaccedilatildeo de

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poliacuteticas habitacionais e sobre a ldquocontinuidade do processo histoacute-ricordquo de produccedilatildeo espaccedilos urbanos marcados pela segregaccedilatildeo e desigualdade social

Moradia Bem Social ou Mercadoria

No Brasil a Emenda Constitucional nordm 26 inseriu o direito agrave moradia como direito social na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 no Capiacutetulo II artigo 6ordm em 14 de abril de 2000

Apesar de o texto constitucional determinar aos entes fe-derativos mesmo antes do reconhecimento do direito agrave moradia como direito social a responsabilidade de ldquopromover programas de construccedilatildeo de moradia e a melhoria das condiccedilotildees habitacionais e de saneamentordquo (Art 23 IX CF) apesar de o Estatuto da Cidade determinar em seu artigo 2deg inciso I que o municiacutepio tem por competecircncia realizar o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade bem como garantir o direito agrave cidade sustentaacutevel sendo esse o direito agrave terra urbana agrave moradia ao saneamento ambien-tal agrave infraestrutura urbana ao transporte e aos serviccedilos puacuteblicos ao trabalho e ao lazer para as presentes e futuras geraccedilotildees (artigo 2deg inciso I Lei nordm 102572001) apesar de referidas determinaccedilotildees serem normas cogentes determinando aos entes federados a reali-zaccedilatildeo de programas de poliacuteticas para que todos possam viver e ter acesso agrave moradia digna as poliacuteticas para garantir o direito agrave cidade e o direito agrave moradia satildeo fraacutegeis incipientes e passiacuteveis de criacuteticas

Saule Jr (1999 p 96) ao tratar do direito agrave moradia como um direito cuja aplicaccedilatildeo eacute imediata dotado de eficaacutecia plena aler-ta

Isto eacute de imediato o Estado Brasileiro tem a obriga-ccedilatildeo de adotar as poliacuteticas accedilotildees e demais medidas compreendidas e extraiacutedas do texto constitucional para assegurar e tornar efetivo esse direito em es-pecial aos que se encontram em estado de pobreza e miseacuteria

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Apesar de ser prioridade e obrigatoacuterio para o Estado criar poliacuteticas de desenvolvimento urbano que propiciem o direito agrave ci-dade sustentaacutevel e viabilizem o acesso agrave moradia digna segura adequada em um local livre de desastres e que o meio ambiente esteja protegido (SALDANHA 2016) apesar de diversas normas brasileiras tratarem da necessidade de estabelecimento de poliacuteti-cas puacuteblicas que propiciem o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade para garantir a qualidade de vida das presentes e futuras geraccedilotildees o que se constata eacute que grande parte dessas poliacuteticas natildeo priorizam a concretizaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana

No Brasil a falta de planejamento eacute a tocircnica o que po-tencializa a ocorrecircncia de conflitos relacionados agrave apropriaccedilatildeo dos espaccedilos territoriais

Apesar de ser responsabilidade dos entes da Federaccedilatildeo criar poliacuteticas puacuteblicas para o enfrentamento das desigualdades abissais de acesso agrave cultura agrave sauacutede agrave seguranccedila puacuteblica agrave qua-lidade de vida ao meio ambiente sadio agrave moradia a ocupaccedilatildeo do territoacuterio brasileiro continua a ser feita sem o planejamento democraacutetico e sem enfrentamento da exclusatildeo socioespacial Os efeitos deleteacuterios da falta de planejamento e da falta de intervenccedilatildeo do Estado na organizaccedilatildeo e no controle do processo de expansatildeo urbana estatildeo intrinsecamente relacionados agrave expansatildeo do merca-do agrave manipulaccedilatildeo do espaccedilo urbano caracterizando diferenccedilas sociais econocircmicas e poliacuteticas (SANTOS 2007) assim como o au-mento da violaccedilatildeo dos direitos humanos

O planejamento para o ordenamento territorial eacute a uacutenica possibilidade para o enfrentamento da polarizaccedilatildeo social pois a pobreza a desigualdade a exclusatildeo territorial poliacutetica e econocircmi-ca satildeo decorrentes das distintas formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Contudo os modelos de planejamento e os processos de decidibili-dade devem buscar a reestruturaccedilatildeo do proacuteprio processo decisoacuterio por meio da gestatildeo democraacutetica Eacute preciso que os cidadatildeos sejam ouvidos acerca das suas necessidades especiacuteficas como sauacutede mo-radia saneamento educaccedilatildeo trabalho Eacute preciso que haja um re-

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desenho do modelo de planejamento um redesenho a partir do processo decisoacuterio que deve possibilitar a ampla discussatildeo com a sociedade (SILVEIRA 1999)

Em suma o processo de planejamento urbano deve ter por finalidade o cumprimento das funccedilotildees sociais da cidade Haacute valores intangiacuteveis para garantir o direito agrave cidade e esses valores estatildeo intrinsecamente relacionados agrave possibilidade de que todos possam em igualdade de condiccedilotildees ter uma vida digna e acesso a uma moradia digna

E natildeo se trata de mera liberalidade do gestor puacuteblico O Estatuto da Cidade e o Texto constitucional propotildeem uma nova forma de compreensatildeo do exerciacutecio do direito de propriedade e do cumprimento da funccedilatildeo social da propriedade mudanccedila para-digmaacutetica que vincula a atuaccedilatildeo de legisladores administradores e operadores do direito

No que tange agrave obrigatoriedade de implementaccedilatildeo de po-liacuteticas habitacionais no Brasil constata-se que os assentamentos humanos informais satildeo locais onde eacute impossiacutevel se ter uma vida decente e tambeacutem iremos constatar a partir da leitura de textos de Rolnik (2015) que a atual poliacutetica habitacional para prover o di-reito agrave moradia sequer considera os requisitos para uma habitaccedilatildeo digna E vale aduzir que habitaccedilatildeo digna eacute uma das prioridades que a Uniatildeo definiu para a realizaccedilatildeo de programas e poliacuteticas para o desenvolvimento urbano Vale frisar que o Texto constitucional define como competecircncia de todos os entes da Federaccedilatildeo a promo-ccedilatildeo de programas de construccedilatildeo de moradia e de programas para melhoria das condiccedilotildees habitacionais e de saneamento baacutesico da populaccedilatildeo brasileira (artigo 23 inciso IX CF)

Para Agenda Habitat habitaccedilatildeo digna ou adequada eacute aquela que apresente condiccedilotildees de vida sadia com seguranccedila apresentando infraestrutura baacutesica como suprimento de aacutegua e saneamento baacutesico energia bem como a existecircncia da presta-ccedilatildeo eficiente de serviccedilos puacuteblicos urbanos como sauacutede educaccedilatildeo transporte coletivo coleta de lixo Pressupotildee-se a seguranccedila da ha-bitaccedilatildeo entendida como habitaccedilatildeo em que se faz possiacutevel ir e vir

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em seguranccedila bem como habitar locais que natildeo sejam suscetiacuteveis a desastres naturais Quanto agrave acessibilidade eacute preciso que a in-fraestrutura viaacuteria permita o acesso decente e seguro agrave habitaccedilatildeo2

Infelizmente o processo de financeirizaccedilatildeo da moradia e do solo urbano tem gerado sistemaacuteticas remoccedilotildees violentas de po-pulaccedilotildees hipossuficientes para o estabelecimento de projetos por meio de investimentos puacuteblicos que pouco ou quase nada refletem os interesses da populaccedilatildeo e a necessidade de garantir o direito agrave moradia digna (MENDES 2013)

Rolnik (2015) aponta com riqueza de detalhes os efeitos deleteacuterios dos avanccedilos do complexo imobiliaacuterio-financeiro sobre os territoacuterios populares avanccedilos que satildeo o reflexo da financeiriza-ccedilatildeo da moradia e do solo urbano sob o novo marco do pensamento e praacuteticas neoliberais

Como alerta Rolnik (2016 p01) no Brasil

Tivemos uma mudanccedila de paradigma da habitaccedilatildeo como um bem social para a moradia como uma mer-cadoria a ser produzida pelo setor privado e desem-penhando um papel importante como ativo financei-ro ou seja como uma das esferas onde um capital excedente financeiro global poderia aterrissar para multiplicar renda atraveacutes dos juros

Rolnik (2015) faz profunda anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e imple-mentaccedilatildeo do Programa Minha Casa Minha Vida apontando clara-mente que o programa teve por objetivo principal o salvamento de incorporadoras financeirizadas e tornou-se a poliacutetica habitacional que estabeleceu um uacutenico modelo de acesso agrave casa proacutepria por meio do mercado e do creacutedito hipotecaacuterio Vale ressaltar que essa poliacutetica habitacional manteacutem o padratildeo de segregaccedilatildeo socioespa-cial pois os grandes conjuntos habitacionais satildeo construiacutedos via de regra em aacutereas perifeacutericas onde a terra eacute mais barata Como o Programa daacute o poder de decisatildeo aos agentes privados sobre a loca-

2 In Declaracioacuten de Estambul sobre los Asentamientos Humanos Disponiacutevel em URL=unhabitatagendaespanolist-decshtml Acesso em 11 mai 2000

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lizaccedilatildeo e o desenho do projeto os empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida localizam-se nas franjas urbanas recru-descendo a divisatildeo territorial entre ricos e pobres (Idem 2015)

Segundo Rolnik (2015 p 314)

Apesar dos muitos bilhotildees de reais em subsiacutedios puacute-blicos o programa MCMV natildeo impacta a segregaccedilatildeo urbana existente Pelo contraacuterio apenas a reforccedila produzindo novas manchas urbanas monofuncio-nais ou aumentando a densidade populacional de zonas guetificadas jaacute existentes A intensa produccedilatildeo de moradia sem cidade ao longo das deacutecadas de ur-banizaccedilatildeo intensa acabou por gerar ampla segrega-ccedilatildeo e uma seacuterie de problemas sociais que trouxeram ocircnus significativos para o poder puacuteblico nas deacutecadas seguintes fenocircmeno que estaacute se repetindo nova-mente (ROLNIK 2015 p 314)

No Brasil nos uacuteltimos anos sob o discurso da efetivaccedilatildeo do direito agrave moradia estaacute ocorrendo a gentrificaccedilatildeo de nossas ci-dades e a exclusatildeo socioterritorial dos mais pobres (FERREIRA 2011) Esses processos de destruiccedilatildeo criativa (HARVEY 2014 p 49) ldquoacabam por atingir as camadas mais hipossuficientes da po-pulaccedilatildeo brasileirardquo

Nesse sentido Rolnik (2016 p 02) aborda a falta de efeti-vidade do direito agrave moradia

A ideia de implantar programas habitacionais mas-sivos de construccedilatildeo de moradias em nome da ideia de fazer moradias de interesse social foi implantada mundialmente nas uacuteltimas deacutecadas com resultados muito parecidos Se vocecirc for ao Meacutexico hoje na re-giatildeo metropolitana do Distrito Federal encontraraacute milhotildees de casas vazias Se vocecirc for a China encon-traraacute milhotildees de casas e apartamentos vazios Ao mesmo tempo encontraraacute muita gente sem um lu-gar para morar ou vivendo em assentamentos infor-mais construiacutedos pelas proacuteprias pessoas o que estaacute aumentando cada vez mais Esse eacute um fenocircmeno mundial especialmente nos paiacuteses do Sul global na

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Ameacuterica Latina na Aacutefrica e na Aacutesia Nestas regiotildees encontramos essa contradiccedilatildeo uma espeacutecie de des-colamento entre o processo de produccedilatildeo do espa-ccedilo construiacutedo e as necessidades das pessoas Essas duas dimensotildees tornaram-se coisas completamente independentes como se fazer cidades natildeo tivesse como objetivo principal satisfazer as necessidades das pessoas (Grifo nosso)

()Nosso problema no Brasil natildeo eacute deacuteficit de moradia Isso eacute uma falaacutecia Noacutes temos um problema de deacutefi-cit de cidade Natildeo temos produccedilatildeo de cidade sufi-ciente para acolher a totalidade das pessoas Quando vocecirc faz um programa de produccedilatildeo em massa de ca-sas sem ter a produccedilatildeo de cidade embaixo dela vocecirc acaba gerando os problemas que foram gerados no Chile e no Meacutexico por exemplo e que estatildeo come-ccedilando a ser gerados aqui no Brasil com a produccedilatildeo massiva do Minha Casa Minha Vida faixa um na extrema periferia ()Haacute muitos territoacuterios populares autoconstruiacutedos que tecircm plenas condiccedilotildees de permanecer onde es-tatildeo e melhorar infinitamente a condiccedilatildeo urbaniacutestica das pessoas que vivem ali Precisamos de um pro-grama para urbanizar esses assentamentos Estou falando de uma gama de programas Nenhum mo-delo uacutenico vai atender a quantidade diversificada de demandas que noacutes temos A soluccedilatildeo natildeo eacute uma soluccedilatildeo mas satildeo muitas (Grifo nosso)

A configuraccedilatildeo de nossas cidades reflete um padratildeo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano excludente e o Estado brasileiro tem grande responsabilidade pela forma de regulamentaccedilatildeo do uso e do acesso ao solo urbano Quanto menos democraacutetico o acesso ao solo urbano menor parcela da sociedade tem acesso ao direito agrave cidade

O que constatamos eacute que o Programa Minha Casa Minha Vida eacute um exemplo marcante dos efeitos do modelo de produ-ccedilatildeo capitalista em que a supervalorizaccedilatildeo da terra acaba por res-tringir o acesso agrave moradia digna para todos Com o crescimento

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econocircmico temos a reproduccedilatildeo da desigualdade social em nossas cidades e a manutenccedilatildeo da pobreza tendo o Estado um papel im-prescindiacutevel e condescendente para a manutenccedilatildeo da segregaccedilatildeo socioespacial

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Apesar de o Texto constitucional ter incorporado o princiacute-pio da funccedilatildeo social da propriedade e o princiacutepio da funccedilatildeo social da cidade apesar do reconhecimento do direito agrave moradia como um bem social a crise urbana brasileira revela o modelo predatoacuterio de implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais e por consequecircncia de produccedilatildeo de cidades Trata-se de um modelo excludente um modelo de expansatildeo urbana perverso que potencializa e consolida ainda mais a desigualdade em nosso paiacutes

Apesar de termos um conjunto normativo que viabiliza a implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais e de regularizaccedilatildeo fun-diaacuteria para que sejam asseguradas a posse e o direito agrave moradia infelizmente nem o direito agrave moradia nem o direito agrave cidade satildeo direitos que de fato estatildeo refletidos nas atuais poliacuteticas habitacio-nais

Acreditamos que as anaacutelises de Marx Harvey Bensaiumld Sandel e Rolnik satildeo fundamentais para o debate Decerto o capi-talismo faz tudo virar mercadoria

O dinheiro estaacute controlando nossas cidades e nossas fron-teiras Por meio da destruiccedilatildeo criativa o modelo capitalista eco-nocircmico transnacional estaacute implodindo nossas fronteiras e por consequecircncia nossas cidades Estamos assistindo a remoccedilotildees sis-temaacuteticas de assentamentos informais para dar lugar ao capital para dar lugar a grandes projetos a grandes empreendimentos imobiliaacuterios

Estamos assistindo ao processo global de financeirizaccedilatildeo da moradia por meio de uma poliacutetica puacuteblica estatal A moradia deixa de ser um direito esculpido na Carta constitucional e torna-se ldquomercadoriardquo acessiacutevel apenas agravequeles que possuem renda

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O Estado brasileiro de matildeos dadas com o capital sob o discurso da efetivaccedilatildeo do direito agrave moradia tem impulsionado a gentrificaccedilatildeo de nossas cidades e a exclusatildeo socioterritorial dos mais pobres

Os efeitos nefastos dessa poliacutetica que amputam o senti-do de cidadania e o verdadeiro valor do princiacutepio da igualdade satildeo diversos contudo apontamos a exclusatildeo do debate puacuteblico de questotildees que natildeo tecircm preccedilo vez que estamos assistindo agrave ldquoprecifi-caccedilatildeordquo de valores intangiacuteveis como centralidade habitaccedilotildees segu-ras e dignas mobilidade e acessibilidade em nossas cidades

O planejamento para o ordenamento territorial eacute a uacutenica possibilidade para o enfrentamento da polarizaccedilatildeo social pois a pobreza a desigualdade a exclusatildeo territorial poliacutetica e econocirc-mica satildeo decorrentes das distintas formas de apropriaccedilatildeo do es-paccedilo Precisamos nos apoderar dos instrumentos juriacutedicos e do planejamento urbano como ferramentas para pensar cidades mais sustentaacuteveis e conduzir criacutetica e urgentemente o planejamento ur-bano Precisamos nos apropriar dos instrumentos juriacutedicos para a transformaccedilatildeo qualitativa de nossos espaccedilos de vida

Precisamos urgente e criticamente conduzir o processo so-cial de ocupaccedilatildeo do territoacuterio por meio do planejamento democraacute-tico como forma de enfrentamento da exclusatildeo social E para isso o Estado precisa de transformaccedilatildeo de profunda mudanccedila nas praacute-ticas poliacuteticas que fortaleccedilam o modelo de produccedilatildeo e expansatildeo urbana desigual intolerante e violento de nossas cidades

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IMPACTO AMBIENTAL TRANSFRONTEIRICcedilO NA PERS-PECTIVA DO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL

Dimas Simotildees Franco Neto1

Oseias Amaral da Silva2

RESUMO A poluiccedilatildeo eacute um tema que dadas as suas caracteriacutesticas deve ser tratada pelo direito internacional puacuteblico O fato eacute que a poluiccedilatildeo como evento ambiental natildeo respeita os limites das soberanias nacionais avanccedilando para aleacutem das fronteiras da naccedilatildeo de sua origem Neste sentido uma regulamentaccedilatildeo juriacutedica que trate da poluiccedilatildeo deve necessariamente calcar-se nos instrumentos do direito internacional tornando o tema da poluiccedilatildeo fronteiriccedila uma questatildeo central do direito internacional ambiental Os sistemas juriacutedicos nacionais preveem a obrigaccedilatildeo do Estudo Preacutevio de Impacto Ambiental quando em face do licenciamento ambiental de atividade potencialmente causadora de significativo impacto ambiental Poreacutem essas normas nacionais nem sempre satildeo suficientes para solucionar a questatildeo da poluiccedilatildeo transfronteiriccedila ou do impacto ambiental trasnfronteiriccedilo que se daacute quando os efeitos de um empreendimento estendem-se para outros Estados Uma soluccedilatildeo seria interpretar as normas nacionais agrave luz dos princiacutepios de direito internacional do meio ambiente Dessa forma no presente trabalho vamos analisar os princiacutepios do direito internacional e ao final avaliar se existe uma eventual obrigaccedilatildeo juriacutedica de se efetuar um Estudo Preacutevio de Impacto Ambiental quando em face do potencial impacto ambiental vai aleacutem das fronteiras do paiacutes em que o empreendimento se localiza Para tanto utilizaremos principalmente os precedentes internacionais do Caso Fundiccedilatildeo Trail e o Caso das Papeleiras

PALAVRAS-CHAVE Poluiccedilatildeo transfronteiriccedila Direito internacional do meio ambiente Estudo preacutevio de impacto ambiental1 Professor Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT Campus de Barra do Bugres2 Professor Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT Campus de Barra do Bugres

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ABSTRACT Pollution is a subject which given its characteristics must be dealt with by public international law The fact is that pollution as an environmental event does not respect the limits of national sovereignties advancing beyond the borders of the nation of its origin In this sense legal regulation dealing with pollution must necessarily be based on the instruments of international law making the issue of border pollution a central issue in the international environmental law The national legal systems foresee the obligation of the Prior Environmental Impact Assessment when in face of the environmental licensing of activity potentially causing significant environmental impact However these national rules are not always sufficient to solve the issue of transboundary pollution or the transboundary environmental impact that occurs when the effects of an undertaking extend to other States One solution would be to interpret national rules in the light of the principles of international environmental law Thus in the present work we gol analyze the principles of international law and at the end evaluate if there is a possible legal obligation to carry out a Prior Environmental Impact Assessment when faced of the potential environmental impact goes beyond the borders of the country in which the Locates To do so we will mainly use the international precedents of the Trail Smelter Case and the Pulp Mills on the River Uruguay

KEYWORDS Transboundary pollution International environmental law Prior environmental impact assessment

INTRODUCcedilAtildeO

O tema da poluiccedilatildeo em geral eacute um tema que dadas as suas caracteriacutesticas bastante peculiares deve ser tratado incon-trolavelmente pelo direito internacional puacuteblico O fato eacute que a poluiccedilatildeo como evento ambiental natildeo respeita os limites das soberanias nacionais avanccedilando para aleacutem das fronteiras da naccedilatildeo de sua origem Neste sentido uma regulamentaccedilatildeo juriacutedica que trate da poluiccedilatildeo para que seja efetiva deve necessariamente cal-car-se nos instrumentos do Direito internacional tornando o tema da poluiccedilatildeo fronteiriccedila uma questatildeo central do Direito Internacio-

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nal AmbientalEacute justamente com a poluiccedilatildeo transfronteiriccedila que o direito

internacional do meio ambiente eacute inaugurado com suas linhas es-truturais integralmente presentes Se ateacute o caso da Fundiccedilatildeo Trail (trail smelter) haviam algumas manifestaccedilotildees de proteccedilatildeo interna-cional juriacutedica de questotildees ambientais foi somente apoacutes a arbitra-gem do referido caso que o Direito Internacional Ambiental teve seu ponto de partida

O caso da Fundiccedilatildeo Trail tratou de uma situaccedilatildeo de polui-ccedilatildeo transfronteiriccedila que acabou por gerar um conflito entre dois paiacuteses Basicamente o que se apresentou no caso da Fundiccedilatildeo Trail foi uma situaccedilatildeo de poluiccedilatildeo transfronteiriccedila em que um agente privado canadense causava danos agrave sauacutede e ao patrimocircnio de pes-soas localizadas para aleacutem das fronteiras do Canadaacute pois os efei-tos dessa poluiccedilatildeo chegavam ainda bastante nocivos em territoacuterio norte-americano

O tratado que constituiu a arbitragem estabeleceu algumas questotildees a serem respondidas pela corte arbitral sendo que a prin-cipal delas tratava da existecircncia ou natildeo da obrigaccedilatildeo de a Fundiccedilatildeo Trail alterar a sua atuaccedilatildeo para evitar danos no lado norte-ameri-cano da fronteira e em caso positivo quais seriam as normas que regeriam a conduta canadense bem como a conduta da Fundiccedilatildeo Trail Importante dizer que o tratado determinava a decisatildeo da ar-bitragem tendo como lei aplicaacutevel o Direito internacional puacuteblico e tambeacutem as leis norte-americanas

Esse tratado foi aceito pelo Canadaacute pois as suas leis eram mais prejudiciais aos empreendedores da Fundiccedilatildeo do que agraves leis norte-americanas e agraves do Direito internacional3 Sobre a decisatildeo do Tribunal Arbitral Stephens (2012 p 131) faz uma siacutentese nos se-guintes termos

Como questatildeo preliminar o tribunal decidiu que fosse a questatildeo regida pelo direito domeacutestico ou pelo direito internacional os mesmos princiacutepios de-veriam ser aplicados na medida em que ambos os

3 Ibidem

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sistemas de direito adotavam a mesma forma de abordagem O tribunal reconheceu as frequentes afirmaccedilotildees dos publicistas da existecircncia de um dever geral de respeitar os outros Estados e os seus terri-toacuterios Todavia a dificuldade aqui fora definir lsquoqual pro subject materiae eacute considerada constituinte de um ato nocivorsquo Neste ponto especiacutefico o tribunal notou que apesar de natildeo existir nenhuma decisatildeo preacutevia de um tribunal internacional referente agrave poluiccedilatildeo do ar haviam decisotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos referentes agrave questatildeo da poluiccedilatildeo entre fron-teiras federais

Tendo feito essas consideraccedilotildees sobre os fundamentos ju-riacutedicos da decisatildeo o Tribunal Arbitral resume as obrigaccedilotildees dos Estados para com a integridade de outro Estado limiacutetrofe da se-guinte maneira

[] dentro dos princiacutepios do estado de direito inter-nacional bem como do direito dos estados unidos nenhum [estado] possui o direito de usar ou permitir que se use o seu territoacuterio de tal maneira que cause prejuiacutezo por meio de fumaccedila no territoacuterio de outro Estado ou na propriedade ou pessoas que laacute se en-contrem quando houverem seacuterias consequecircncias e o dano seja estabelecido por uma evidecircncia clara e convincente4

Esse trecho da decisatildeo arbitral se tornou bastante impor-tante tendo sido considerado um marco essencial do Direito Inter-nacional Ambiental (SOARES 2003) criando um dever ao Estado para natildeo causar danos ao meio ambiente de outro Estado e que como veremos tratou de repercutir ateacute mesmo nos tratados inter-nacionais ambientais contemporacircneos

No caso especiacutefico da arbitragem da Fundiccedilatildeo Trail o Tribunal Arbitral julgou o Canadaacute responsaacutevel internacionalmen-te pela conduta da Fundiccedilatildeo Trail e determinou que a Fundiccedilatildeo parasse de causar danos ao Estado de Washington por meio da 4 TRAIL SMELTER ARBITRAL TRIBUNAL Decisioin reported on april 16 Washington 1938 p 1965 Traduccedilatildeo nossa

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fumaccedila exaladaO legado principal deste laudo arbitral eacute que pela primeira

vez ficou expresso em um julgamento internacional a obrigaccedilatildeo de o Estado natildeo atuar em seu territoacuterio de maneira a causar dano a outro Eacute certo que o caso tratou somente de poluiccedilatildeo atmosfeacuterica mas o princiacutepio que se cristalizou ali serviu como guia para futuras normas internacionais

Para o tema do EIA internacional esta decisatildeo possui re-levacircncia na medida em que o EIA internacional busca justamente prevenir a ocorrecircncia de eventual dano ecoloacutegico ao meio ambien-te do Estado limiacutetrofe ou proacuteximo ao Estado de origem do em-preendimento

Assim podemos dizer que uma eventual obrigaccedilatildeo de promover o EIA internacional deriva-se ao menos da parte do dever de os Estados natildeo prejudicarem o meio ambiente dos paiacuteses vizinhos que eacute exatamente o toacutepico sobre o qual inova o caso da Fundiccedilatildeo Trail

A influecircncia desta decisatildeo como dissemos acima pocircde ser sentida deacutecadas depois da Declaraccedilatildeo de Estocolmo de 1972 que faz uma ponderaccedilatildeo entre os limites da soberania em face agrave obriga-ccedilatildeo de natildeo causar danos a outros Estados de maneira claramente inspirada na decisatildeo do Tribunal Arbitral Vejamos o texto da De-claraccedilatildeo em seu princiacutepio 21

Em conformidade com a Carta das Naccedilotildees Unidas e com os princiacutepios de direito internacional os Es-tados tecircm o direito soberano de explorar seus proacute-prios recursos em aplicaccedilatildeo de sua proacutepria poliacutetica ambiental e a obrigaccedilatildeo de assegurar-se de que as atividades que se levem a cabo dentro de sua juris-diccedilatildeo ou sob seu controle natildeo prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda jurisdiccedilatildeo nacional

Aleacutem disso esta mesma influecircncia pocircde ser sentida duas deacutecadas apoacutes Estocolmo conforme o artigo 2deg da Declaraccedilatildeo do Rio em 1992 que tambeacutem vem no sentido de determinar aos Es-

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tados que atuam sobre o meio ambiente de suas jurisdiccedilotildees de maneira tal natildeo prejudiquem o meio ambiente de outros paiacuteses Ainda hoje eacute difiacutecil encontrar uma soluccedilatildeo para o conflito natural que existe entre a soberania nacional para a utilizaccedilatildeo de recursos naturais e o dever de natildeo causar danos ao meio ambiente de outros paiacuteses (SCHRIJVER 2008) problema para o qual o EIA interna-cional se apresenta como uma das formas de soluccedilatildeo possiacuteveis O precedente do caso Fundiccedilatildeo Trail representa uma primeira forma de tratamento e enfrentamento da questatildeo

A decisatildeo e principalmente o seu nuacutecleo transcrito acima se referem especificamente agrave poluiccedilatildeo atmosfeacuterica todavia a for-ma abrangente dos termos adotados pelo tribunal serviu para que o fundamento se prestasse a orientar o entendimento para outras formas de poluiccedilatildeo e impacto transfronteiriccedilo (STEPHENS 2009)

Como uma primeira linha de regulamentaccedilatildeo de impac-tos transfronteiriccedilos podemos perceber que o tribunal natildeo coibiu qualquer forma de impactos externos mas sim os impactos que possuiacutessem ldquoseacuterias consequecircnciasrdquo

Esta determinaccedilatildeo nos importa para a compreensatildeo do EIA internacional pois traz uma questatildeo importante sobre se o Estado estaacute proibido de causar ou permitir que se cause qualquer espeacutecie de dano ambiental internacional ou somente um dano sig-nificativo ou seja de uma magnitude maior ao meio ambiente de outro Estado trataremos disso mais adiante

O recente caso das papeleiras (Case concerning pulp Mills on the river uruguay) trouxe novamente essa discussatildeo A situaccedilatildeo faacutetica que deu iniacutecio ao conflito entre a Argentina e o Uruguai iniciou-se com a construccedilatildeo de uma usina de celulose na margem uruguaia do rio Uruguai Tal construccedilatildeo seria feita pela empresa Botnia SA

Em resumo sustentou a demandante (Argentina) que o Uruguai havia violado os termos do Estatuto do Rio Uruguai tra-tado firmado entre as partes no ano de 1975 A violaccedilatildeo seria pro-cedimental devido agrave falta de notificaccedilatildeo haacutebil nos termos do art 7deg do tratado agrave Comissatildeo Administradora do Rio Uruguai bem como agrave Argentina (paraacutegrafos 71 a 158 da sentenccedila de 20 de abril

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da CIJ) Aleacutem disso haveria ainda uma violaccedilatildeo substancial por

parte do Uruguai concernente agrave efetiva manutenccedilatildeo de um niacutevel adequado da qualidade da aacutegua do Rio Uruguai (paraacutegrafos 159 a 266 da sentenccedila)

Por fim a demandante tambeacutem questionava a eventual agressatildeo do demandado agrave qualidade ambiental do Rio Uruguai (artigo 41 do Tratado do Rio Uruguai de 1975) em face da constru-ccedilatildeo da faacutebrica (paraacutegrafos 190 a 202 da sentenccedila)

A sentenccedila bem como os memoriais e as manifestaccedilotildees das partes no caso podem ser analisados das mais diversas ma-neiras demonstrando as suas implicaccedilotildees nos variados institutos do Direito Internacional do Meio Ambiente (dever de informaccedilatildeo dever de prevenccedilatildeo dever de cooperaccedilatildeo responsabilidade por violaccedilatildeo de obrigaccedilatildeo internacional direito dos tratados dentre outros)

Inicialmente a Argentina requereu uma medida provisio-nal no sentido de suspender a construccedilatildeo da faacutebrica sustentando que

a construccedilatildeo e o funcionamento da usina de papel certamente causariam e seriam suscetiacuteveis de causar danos ao meio ambiente natural de maneira irre-versiacutevel por causa do impacto potencial sobre todo ecossistema do rio Uruguai e a qualidade de suas aacuteguas (CIJ 2006)

Em que pesem as argumentaccedilotildees expendidas a CIJ enten-deu que nada indicava que a construccedilatildeo da faacutebrica implicaria um risco iminente de dano irreparaacutevel (CIJ 2006) Nesta decisatildeo refe-rente agrave medida provisional o Juiz Vinuesa em dissonacircncia com a maioria demonstrou em seu voto-dissidente que agrave medida que a Argentina tivesse provado que a autorizaccedilatildeo de funcionamento da faacutebrica teria gerado um risco razoaacutevel de dano ao meio ambien-te era necessaacuterio a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo o qual na sua opiniatildeo ldquonatildeo se trata de uma abstraccedilatildeo acadecircmica ou um

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desejaacutevel elemento de soft law mas uma regra de direito dentro do direito internacional geral na maneira como ele eacute entendido atualmenterdquo (CIJ 2006)

Em seguida houve a apresentaccedilatildeo dos memoriais opor-tunidade na qual novamente a Argentina evoca o princiacutepio da precauccedilatildeo pelo qual se deve ldquolevar em conta os riscos incertos na concepccedilatildeo elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo de qualquer projeto ou qualquer uso relativo agraves aacuteguas do rio Uruguai e a sua zona de influecircnciardquo (CIJ 2007) Nos contra-memoriais o Uruguai indica que a Argen-tina natildeo teria comprovado a presenccedila de riscos ao meio ambiente a ponto de se aplicar o princiacutepio da precauccedilatildeo (Idem)

O princiacutepio eacute novamente invocado em nova manifestaccedilatildeo da demandante indicando a obrigaccedilatildeo de o Uruguai tecirc-la infor-mado antecipadamente sobre os riscos mesmo que em potencial da construccedilatildeo da usina Ademais sustentou-se ainda que agrave Cor-te caberia a leitura do Tratado do Rio Uruguai de 1975 agrave luz do Ddireito internacional atual ou seja incorporando-se ao princiacutepio da precauccedilatildeo (CIJ 2008) Na sua resposta o Uruguai novamente indica que natildeo se apresentou nenhuma evidecircncia concreta de ris-cos ao meio ambiente que justificasse a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo (CIJ 2008)

Destarte tendo as duas partes apresentados seus argu-mentos a CIJ finalmente proferiu uma sentenccedila em 20 de abril de 2010 Em suma a Corte entendeu que houve sim uma violaccedilatildeo ao Tratado do Rio Uruguai de 1975 mas tatildeo somente no seu aspecto processual ou seja no dever de o Uruguai informar e atuar con-juntamente com a Argentina na liberaccedilatildeo do projeto da usina de papel

A Corte indicou poreacutem que natildeo houve uma violaccedilatildeo substancial do tratado ou seja o Uruguai natildeo teria efetivamente atuado no sentido de prejudicar o uso das aacuteguas do Rio Uruguai isto eacute em nenhum momento teria prejudicado substancialmente as aacuteguas ou a possiacutevel utilizaccedilatildeo do Rio Uruguai para outros fins Finalizando a Corte considerou legiacutetima a atuaccedilatildeo do Uruguai no que tange agrave questatildeo ambiental sustentando natildeo ter havido por

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parte do Uruguai nenhuma agressatildeo efetiva ao ecossistema nem sequer ameaccedila

Cumpre dizer que a CIJ natildeo aplicou ao caso a despeito de ter sido objeto de farta e robusta argumentaccedilatildeo o princiacutepio da precauccedilatildeo A linguagem e os fundamentos utilizados na sentenccedila denotam um total afastamento do princiacutepio da precauccedilatildeo e dos seus efeitos sobre o caso concreto Todavia a CIJ tratou do dever de prevenir danos ambientais para aleacutem das fronteiras bem como tratou do EIA como instrumento para concretizar esse dever

Nota-se que quando a Corte in casu analisou os eventu-ais danos ambientais da construccedilatildeo da faacutebrica analisou questotildees como o impacto da descarga de diversas substacircncias toacutexicas (foacutesfo-ro substancias felocircnicas nonifenols e dioacutexidos) na oxigenaccedilatildeo da aacutegua e sua consequente poluiccedilatildeo bem como todos os efeitos sobre a diversidade bioloacutegica Natildeo obstante a demandante ter argumen-tado no sentido do risco de tais eventos ao meio ambiente do Rio Uruguai a CIJ ( 2010 p91) decidiu que

265 Se apreende do acima exposto que natildeo existe evidecircncias conclusivas nos autos que demonstrem que o Uruguai natildeo tenha agido com o grau de di-ligecircncia adequada ou que as descargas de efluentes da Orion (Botnia) usina possuam efeitos deleteacuterios ou causaram danos aos recursos vivos ou agrave qualida-de da aacutegua ou ao equiliacutebrio ecoloacutegico do rio desde o iniacutecio das operaccedilotildees em novembro de 2007

A Corte entende que a falta de ldquoevidecircncias conclusivasrdquo de um dano ambiental natildeo permite que a mesma determine a pa-ralisaccedilatildeo das atividades da faacutebrica Ocorre que uma interpretaccedilatildeo agrave luz do princiacutepio da precauccedilatildeo natildeo exige a evidecircncia conclusiva mas sim um indiacutecio de risco

Criticando a decisatildeo temos o voto do Juiz Canccedilado Trin-dade (CIJ 2010 p 166) para quem

113 Natildeo apenas a CIJ natildeo tomou conhecimento natildeo afirmou a existecircncia dos dois princiacutepios [prevenccedilatildeo

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e precauccedilatildeo] natildeo os elaborou deixando passar en-tatildeo uma ocasiatildeo uacutenica nesta seara do Direito Inter-nacional contemporacircneo O fato de que a Corte silen-ciou sobre eles natildeo significa que estes princiacutepios da prevenccedilatildeo e da precauccedilatildeo natildeo existam Eles existem sim e se aplicam e satildeo em minha opiniatildeo da maior importacircncia como parte do jus necessarium Dificil-mente nos podemos falar sobre o Direito Interna-cional do Meio Ambiente atualmente sem estes dois princiacutepios A Corte teve uma oportunidade uacutenica nas circunstacircncias do caso da Pulp Mills [papeleiras] para reclamar a aplicaccedilatildeo da prevenccedilatildeo bem como da precauccedilatildeo ela infelizmente preferiu natildeo fazecirc-lo por motivos que vatildeo aleacutem e escapam da minha com-preensatildeo

Em outro ponto da decisatildeo a CIJ resolve a questatildeo refe-rente agrave inversatildeo do ocircnus da prova requerida pela Argentina em funccedilatildeo da aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo (paraacutegrafos 160 agrave 168 da sentenccedila) A Corte novamente afasta a aplicaccedilatildeo do prin-ciacutepio da precauccedilatildeo e natildeo promove a inversatildeo do ocircnus de provar aplicando portanto a consagrada regra processual do onus proban-di incubit actori ou seja de que ao autor cabe a prova do alegado

A CIJ natildeo versando sobre o tema deixou agrave margem a questatildeo de definir se o princiacutepio da precauccedilatildeo possuiria o status de costume internacional ou de princiacutepio geral de direito natildeo pro-movendo avanccedilos nesta discussatildeo (ANTON 2010)

Essa ideia compreendida no seio do julgamento da ques-tatildeo arbitral qual seja a de que um Estado natildeo poderaacute atuar em seu territoacuterio de maneira a causar dano no meio ambiente de outro Estado influenciou decisivamente para o surgimento dos princiacute-pios do Direito Internacional do Meio Ambiente os quais veremos abaixo Poreacutem antes deles veremos um pouco sobre o estudo preacute-vio de impacto ambiental no Direito domeacutestico

O EIA no direito domeacutestico

As legislaccedilotildees dos paiacuteses preveem mecanismos de contro-

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le preacutevio do impacto de atividades potencialmente causadoras de dano ambiental No Brasil por exemplo o EIA eacute conceituado por Taldem Farias (FARIAS 2013 p 68) como

A avaliaccedilatildeo de impacto ambiental eacute um instrumen-to de defesa do meio ambiente constituiacutedo por um conjunto de procedimentos teacutecnicos e administra-tivos que visam agrave realizaccedilatildeo da anaacutelise sistemaacutetica dos impactos ambientais da instalaccedilatildeo ou operaccedilatildeo de uma atividade e suas diversas alternativas com a finalidade de embasar as decisotildees quanto ao seu licenciamento

Nesse sentido a norma que trata do assunto prevecirc que o EIA eacute entatildeo uma espeacutecie de licenciamento ambiental Em outras palavras natildeo eacute todo o licenciamento ambiental que seraacute sujeito agrave obrigatoriedade do EIA Vejamos o texto constitucional sobre o as-sunto

Art 225 Todos tecircm direito ao meio ambiente ecolo-gicamente equilibrado bem de uso comum do povo e essencial agrave sadia qualidade de vida impondo-se ao Poder Puacuteblico e agrave coletividade o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as presentes e futuras geraccedilotildees

IV - exigir na forma da lei para instalaccedilatildeo de obra ou atividade potencialmente causadora de significa-tiva degradaccedilatildeo do meio ambiente estudo preacutevio de impacto ambiental a que se daraacute publicidade

A principal norma infraconstitucional que versa o tema eacute a Resoluccedilatildeo nordm 0186 do Conama que trata da competecircncia para o licenciamento bem como traz alguns requisitos para o mesmo Pela clareza da norma vale a transcriccedilatildeo de alguns dos seus dis-positivos O artigo 6ordm por exemplo trata dos requisitos miacutenimos para o estudo

Artigo 6ordm - O estudo de impacto ambiental desenvol-veraacute no miacutenimo as seguintes atividades teacutecnicas

I - Diagnoacutestico ambiental da aacuterea de influecircncia do

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projeto completa descriccedilatildeo e anaacutelise dos recursos ambientais e suas interaccedilotildees tal como existem de modo a caracterizar a situaccedilatildeo ambiental da aacuterea antes da implantaccedilatildeo do projeto considerando

a) o meio fiacutesico - o subsolo as aacuteguas o ar e o clima destacando os recursos minerais a topografia os ti-pos e aptidotildees do solo os corpos drsquoaacutegua o regime hidroloacutegico as correntes marinhas as correntes at-mosfeacutericas

b) o meio bioloacutegico e os ecossistemas naturais - a fauna e a flora destacando as espeacutecies indicadoras da qualidade ambiental de valor cientiacutefico e econocirc-mico raras e ameaccediladas de extinccedilatildeo e as aacutereas de preservaccedilatildeo permanente

c) o meio soacutecio-econocircmico - o uso e ocupaccedilatildeo do solo os usos da aacutegua e a soacutecio-economia destacan-do os siacutetios e monumentos arqueoloacutegicos histoacutericos e culturais da comunidade as relaccedilotildees de dependecircn-cia entre a sociedade local os recursos ambientais e a potencial utilizaccedilatildeo futura desses recursos

II - Anaacutelise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas atraveacutes de identificaccedilatildeo previsatildeo da magnitude e interpretaccedilatildeo da importacircncia dos provaacuteveis impactos relevantes discriminando os impactos positivos e negativos (beneacuteficos e adver-sos) diretos e indiretos imediatos e a meacutedio e lon-go prazos temporaacuterios e permanentes seu grau de reversibilidade suas propriedades cumulativas e sineacutergicas a distribuiccedilatildeo dos ocircnus e benefiacutecios so-ciais

III - Definiccedilatildeo das medidas mitigadoras dos impac-tos negativos entre elas os equipamentos de contro-le e sistemas de tratamento de despejos avaliando a eficiecircncia de cada uma delas

lV - Elaboraccedilatildeo do programa de acompanhamento e monitoramento (os impactos positivos e negativos indicando os fatores e paracircmetros a serem conside-rados)

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Paraacutegrafo Uacutenico - Ao determinar a execuccedilatildeo do estu-do de impacto ambiental ao oacutergatildeo estadual compe-tente ou o IBAMA ou quando couber o Municiacutepio forneceraacute as instruccedilotildees adicionais que se fizerem ne-cessaacuterias pelas peculiaridades do projeto e caracte-riacutesticas ambientais da aacuterea

Tambeacutem o Direito francecircs exige dos empreendimentos que faccedilam o estudo preacutevio antes da sua operaccedilatildeo Explicando o sistema francecircs Yamaguchi e Souza (2011 p 17 ) pontuam que

Para Bessa (2008) a legislaccedilatildeo francesa adota o prin-ciacutepio de que toda obra deve ser previamente sub-metida a um estudo de impacto A Administraccedilatildeo em respeito ao princiacutepio estabelece uma lista nega-tiva (observe-se que o sistema francecircs de avaliaccedilatildeo de impactos ambientais funciona com uma lista po-sitiva ndash necessidade do EIA ndash e uma lista negativa ndash desnecessidade do EIA) isto eacute classifica algumas obras que natildeo precisaratildeo passar pelo preacutevio estudo de impacto

Tambeacutem o Direito norte-americano possui previsatildeo seme-lhante A norma norte- americana possui semelhanccedila com a nacio-nal em verdade a norma brasileira em certa medida se inspira nas regras do Estados Unidos Tratando do assunto vejamos a li-ccedilatildeo de Amoy (2006 p 607)

O Estudo de Impacto Ambiental ndash EIA ndash teve iniacutecio nos estudos do Prof Lynton Caldwell nos EUA onde foram expressos no National Environmental Police Act (NEPA) de 1969 que estabeleceu os ob-jetivos e princiacutepios da poliacutetica ambiental americana Aquela lei determinou ainda que todas as propostas de legislaccedilatildeo accedilotildees e projetos federais que afetassem significativamente a qualidade do meio ambien-te incluiacutessem uma detalhada avaliaccedilatildeo ambiental 44A NEPA eacute uma lei fundamental para o Direito Ambiental dos diversos Estados norte-americanos

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dos quais 18 jaacute adotam ldquominiNEPAsrdquo e de diversos paiacuteses pois tem servido de inspiraccedilatildeo para muitas legislaccedilotildees nacionais inclusive a brasileira

Vimos por meio dos exemplos acima que os estados na-cionais possuem normas mais ou menos rigorosas quanto agrave ne-cessidade de EIA Ocorre que natildeo tratam da eventualidade de o impacto ambiental avanccedilar para aleacutem das fronteiras nacionais

No proacuteximo toacutepico vamos analisar brevemente algumas interpretaccedilotildees das normas nacionais brasileiras agrave luz dos princiacute-pios do Direito Internacional do Meio Ambiente tendo em conta uma possiacutevel obrigaccedilatildeo de produzir-se EIA quando do impacto transfronteiriccedilo

A poluiccedilatildeo trasnfronteiriccedila e o dever de prevenir os impactos em acircmbito externo agrave luz dos princiacutepios do direito internacional do meio ambiente

A decisatildeo no Caso das Papeleiras tratou de maneira incon-clusiva o dever de efetivar o EIA nos casos de poluiccedilatildeo transfron-teiriccedila Vamos ao trecho da decisatildeo (CIJ 2010 p 83)

Nesse sentido a obrigaccedilatildeo de proteger e preservar nos termos do artigo 41 (a) Do Estatuto deve ser in-terpretado de acordo com uma praacutetica que nos uacutelti-mos anos ganhou tanta aceitaccedilatildeo entre os Estados que pode ser considerado um requisito5 do direito internacional geral de uma avaliaccedilatildeo de impacto am-biental sempre que exista o risco de a atividade in-dustrial proposta ter um impacto adverso significa-tivo em um contexto transfronteiriccedilo em particular sobre um recurso partilhado Aleacutem disso a devida diligecircncia e o dever de vigilacircncia e prevenccedilatildeo que implica natildeo seriam considerados como tendo sido

5 No original a expressatildeo eacute a seguinte ldquohas to be interpreted in accordance with a practice wich in recent years has gained so much acceptance among States tha it may now be consideres a require-ment under gereal international law to undertake an environmental impact assessment where ther is arisk that the proposed industrial activity may have a significant adverse impact in a transboundary context in particular on a shares resourcerdquo O termo ldquorequisiterdquo no original ldquoreuquerimentrdquo pode ser traduzido tambeacutem por ldquoexigecircnciardquo

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exercido se uma parte que as obras susceptiacuteveis de afectar o regime do rio ou a qualidade das suas aacuteguas natildeo procedeu a uma avaliaccedilatildeo do impacto ambiental do potencial efeito de tais obras 205 A Corte observa que nem o Estatuto de 1975 nem o Estatuto Direito internacional especificam o acircmbito e o conteuacutedo de um estudo preacutevio de impac-to ambiental Cumpre salientar aleacutem disso que a Argentina e o Uruguai natildeo satildeo partes na Convenccedilatildeo de Espoo Por uacuteltimo o Tribunal observa que o ou-tro instrumento a que a Argentina se refere em apoio dos seus argumentos nomeadamente os Objetivos e Princiacutepios do PNUA natildeo vinculam as Partes mas como diretrizes emitidas por um oacutergatildeo teacutecnico inter-nacional devem ser tomadas em consideraccedilatildeo pelas partes em conformidade com o artigo 41ordm aliacutenea a) na adopccedilatildeo de medidas no acircmbito do seu quadro re-gulamentar nacional Aleacutem disso este instrumento apenas prevecirc que os ldquoefeitos ambientais em um EIA devem ser avaliados com um grau de detalhe pro-porcional ao seu provaacutevel impacto ambientalrdquo (Prin-ciacutepio 5) sem dar qualquer indicaccedilatildeo dos componen-tes miacutenimos dessa avaliaccedilatildeo Consequentemente eacute a opiniatildeo da Corte de que compete a cada Estado determinar na sua legislaccedilatildeo nacional ou no pro-cesso de autorizaccedilatildeo do projeto o conteuacutedo da ava-liaccedilatildeo de impacto ambiental exigida em cada caso tendo em conta a natureza e a magnitude do projeto proposto bem como o possiacutevel impacto adverso no ambiente bem como a necessidade de efetuar nes-sa avaliaccedilatildeo toda a diligecircncia possiacutevel O tribunal considera tambeacutem que uma avaliaccedilatildeo do impacto ambiental deve ser conduzida antes da implemen-taccedilatildeo de um projeto Aleacutem disso uma vez iniciada e sempre que necessaacuterio durante toda a vida uacutetil do Projeto deve ser empreendido o contiacutenuo monitora-mento dos seus efeitos no ambiente

Sabemos que as fontes do Direito internacional satildeo aque-las discriminadas no artigo 38 do estatuto da CIJ quais sejam sim-plificadamente as convenccedilotildees os princiacutepios gerais de direito e o costume internacional

A decisatildeo da CIJ natildeo deixa claro se essa obrigaccedilatildeo seria

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oriunda de um princiacutepio (talvez princiacutepio da prevenccedilatildeo) ou de um costume Natildeo eacute possiacutevel avaliar pelo texto da decisatildeo o caraacuteter juriacutedico da obrigaccedilatildeo de promover o EIA no direito internacional

No Direito brasileiro tambeacutem natildeo temos nenhuma nor-ma que trate do assunto Poreacutem poderiacuteamos buscar fundamento normativo para essa obrigaccedilatildeo por exemplo no artigo 4 inciso X da Constituiccedilatildeo Fedral de 88 que prevecirc o princiacutepio das relaccedilotildees internacionais a ldquocooperaccedilatildeo entre os povos para o progresso da humanidaderdquo

Poreacutem se por um lado eacute possiacutevel falarmos de uma obri-gaccedilatildeo de evitar danos agrave naccedilatildeo estrangeira por causa ambiental em territoacuterio domeacutestico como sendo um princiacutepio de Direito Inter-nacional do Meio Ambiente qual seja o princiacutepio da prevenccedilatildeo (SANDS 2003) natildeo podemos avanccedilar para concluirmos que de-rivaria desse dever a obrigaccedilatildeo de efetuar o EIA

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

O caso das papeleiras demonstra que a questatildeo da polui-ccedilatildeo transfronteiriccedila e o dever de preveni-la continuam no centro dos conflitos ambientais internacionais Ainda que natildeo seja pos-siacutevel falarmos em uma obrigaccedilatildeo juriacutedica de promover o EIA em face da poluiccedilatildeo transfronteiriccedila tambeacutem jaacute natildeo se pode falar em uma total ausecircncia de responsabilidade do Estado quanto a danos para aleacutem de suas fronteiras

A questatildeo somente ficaraacute mais delineada em seus aspectos juriacutedicos com os avanccedilos dos casos e da doutrina especializada devendo o jurista ficar atento em especial aos desdobramentos relacionados agraves consequecircncias da decisatildeo da CIJ no caso Pulp Mils (papeleiras)

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JULGAMENTO INDIacuteGENA DE CONFLITOS INTERNOS RE-CONHECIDO PELO DIREITO ESTATAL NA PERSPECTIVA DO PLURALISMO JURIacuteDICO

Eliel Alves Camerini Silva1

Luciana Stephani Silva Iocca2

RESUMO O presente artigo explora a garantia legal constitucional do processo juriacutedico criminal indiacutegena concebida pela Constituiccedilatildeo Federal Brasileira e pela Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho e legislaccedilotildees afins e de seu reconhecimento pelo Estado por meio da Sentenccedila proferida pela Comarca de BonfimRO nos autos de nordm 009010000302-0 e mantida pela turma recursal Ao seguir os moldes do neoconstitucionalismo latino-americano aponta o direito indiacutegena como um direito autocircnomo dotado de alteridade e com jus puniendi proacuteprio sem grau de hierarquia com o jus puniendi do Estado-juiz Tal reconhecimento insurge tambeacutem na valorizaccedilatildeo de um Estado multicultural com diferentes sistemas juriacutedicos proacuteprios e vaacutelidos no respectivo acircmbito jurisdicional dentro do territoacuterio brasileiro tido como pluralismo juriacutedico capaz de influenciar o Direito Estatal seja na sua criaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo Compreender a existecircncia de pluralismo eacute conhecer o direito indiacutegena enquanto direito comparado surgindo a possibilidade de aprofundar o conhecimento dos sistemas juriacutedicos aprimorando o direito nacional e aproximando os povos atraveacutes do respeito de suas identidades culturais tema este pouco abordado pela doutrina juriacutedica brasileira e nas academias juriacutedicas

PALAVRAS-CHAVE Direito Indiacutegena Reconhecimento Estatal Multiculturalismo

1 Acadecircmico do Curso de Direito da UNEMAT CaacuteceresMTelielcamerinigmailcom 2 Professora Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT lucianaioc-cagmailcom

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ABSTRACT This article explores a Constitutional legal warranty of the indigenous criminal legal process conceived by the Brazilian Federal Constitution and by the International Labour Organization and related legislation and its recognition by the State by means of the judgment pronounced by the district of Bonfim Rondocircnia Brazil records number 009010000302-0 and maintained by the recursal class By following the molds of Latin American Neoconstitutionalism points to indigenous law as an autonomous right full of alterity and with own jus puniendi without degree of hierarchy with State-judgersquos jus puniendi Such recognition also insists on the appreciation of a multicultural State composed by different legal systems of their own and valid in the judicial sphere within the Brazilian territory understood as legal pluralism able to influencing State Law whether in its creation interpretation and application To understand the existence of pluralism is to know the Indigenous Law as protected right arising the possibility of deepening the knowledge of legal systems improving national law and approaching people through the respect of their cultural identities which is not usually addressed by Brazilian legal doctrine and in legal academies

KEYWORDS IndigenousLaws Staterecognition Multiculturalism

INTRODUCcedilAtildeO

A partir da Convenccedilatildeo 169 da OIT ndash Organizaccedilatildeo Inter-nacional do Trabalho ndash da qual o Brasil eacute signataacuterio e da proacutepria Constituiccedilatildeo Federal de 1988 mudanccedilas poliacuteticas e principalmen-te juriacutedicas surgiram no que diz respeito agraves relaccedilotildees do Estado e da sociedade brasileira com os povos indiacutegenas tendo em vista o reconhecimento aos povos indiacutegenas de sua organizaccedilatildeo social costumes liacutenguas crenccedilas tradiccedilotildees e autodeclaraccedilatildeo

Acerca do assunto o professor Rogeacuterio Geraldo Rocco (2015 online) tece o seguinte comentaacuterio

Sem duacutevida referida Convenccedilatildeo tem sido utilizada para a proteccedilatildeo de culturas tradicionais especial-mente de indiacutegenas e quilombolas na Amazocircnia Mas eacute um instrumento de consulta que se aplica

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quando eventuais projetos ou programas atingirem as suas terras e culturas Quanto a seus sistemas ju-riacutedicos o reconhecimento e respeito por parte da cultura hegemocircnica depende da formalizaccedilatildeo de um pluralismo juriacutedico (Grifo nosso)

Tais mudanccedilas se caracterizam pela positivaccedilatildeo de direitos pluralistas no acircmbito da etnicidade poliacutetica e cultura dos povos pautadas na concepccedilatildeo do neocostitucionalismo latino-americano

Nesse contexto tatildeo certo de que o direito de um paiacutes faz parte do patrimocircnio nacional o Tribunal de Justiccedila de Roraima decidiu em 18 de dezembro de 2015 a Apelaccedilatildeo Criminal nordm 009010000302-0 reconhecendo a jurisdiccedilatildeo indiacutegena criminal e portanto a materializaccedilatildeo do estado plurieacutetnico

Tratou-se do caso do crime de homiciacutedio praticado por Denilson Trindade Douglas que apoacutes ingerir bebida alcooacutelica desferiu facadas na viacutetima Alanderson Trindade Douglas ambos irmatildeos e membros da mesma tribo na comunidade indiacutegena do Manoaacute terra indiacutegena Manoaacute-Pium na Reserva Raposa Serra da Lua municiacutepio de Bonfim Estado de Roraima O Ministeacuterio Puacute-blico de Roraima ofereceu denuacutencia com base no art 121 sect 2ordm II do Coacutedigo Penal Brasileiro Na defesa a Procuradoria Federal responsaacutevel pela Seccedilatildeo de Indiacutegenas alegou a impossibilidade de punir o mesmo fato duas vezes bis in idem conforme o art 57 do Estatuto do Iacutendio haja vista que o crime foi punido conforme os usos e costumes da comunidade indiacutegena atraveacutes de decisatildeo das lideranccedilas das comunidades Anauaacute Manoaacute e WaiWai O Tribunal de Justiccedila de Roraima deixou de apreciar o meacuterito declarando a ausecircncia de in casu do direito de punir estatal

Entendimento do neoconstitucionalismo latino-americano

As profundas transformaccedilotildees ocorridas no cenaacuterio mun-dial na deacutecada de 90 no que diz respeito agraves relaccedilotildees econocircmicas poliacuteticas juriacutedicas e sociais entre os povos influenciaram (e in-fluenciam) na construccedilatildeo do neoconstitucionalismo latino-ameri-

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cano (DALMAU 2009)Tais mudanccedilas juriacutedicas se datildeo na esfera das relaccedilotildees in-

ternacionais concebidas atraveacutes de um sistema juriacutedico em forma de redes devido agraves muacuteltiplas cadeias normativas3 como tambeacutem no acircmbito interno de cada Estado atraveacutes do implemento de meca-nismos que visam efetivar o sistema poliacutetico adotado

O neoconstitucionalismo latino-americano surge como uma nova forma de organizaccedilatildeo juriacutedico-poliacutetica voltada para a construccedilatildeo de um ldquoEstado Democraacutetico de Direito Estado consti-tucional de direito Estado constitucional democraacuteticordquo ao institu-cionalizar no texto constitucional a dignidade da pessoa humana e normas de direitos fundamentais garantias de cunho social sob a proteccedilatildeo juriacutedica (BARROSO 2007)

A autora peruana Raquel Z Yrigoyen Fajardo (2008 p 16) identifica que o neoconstitucionalismo em linha temporal desen-volveu-se em trecircs ciclos

I - constitucionalismo multicultural (1982-1988) com a introduccedilatildeo do conceito de diversidade cultural e o reconhecimento de direitos indiacutegenas especiacuteficos II - constitucionalismo pluricultural (1988-2005) com a adoccedilatildeo do conceito de ldquonaccedilatildeo multieacutetnicardquo e o de-senvolvimento do pluralismo juriacutedico interno sendo incorporados vaacuterios direitos indiacutegenas ao cataacutelogo de direitos fundamentais III - constitucionalismo plurinacional (2006-2009) demanda pela criaccedilatildeo de um Estado plurinacional e de um pluralismo juriacutedi-co igualitaacuterio

Mais recentemente se vecirc a implantaccedilatildeo de um novo mo-delo fruto de reivindicaccedilotildees sociais de parcelas historicamente ex-cluiacutedas do processo decisoacuterio notadamente a populaccedilatildeo indiacutegena ndash como a promulgaccedilatildeo das Constituiccedilotildees do Equador (2008) e da Boliacutevia (2009) com praacuteticas de pluralismo igualitaacuterio jurisdicional em que haacute ldquoconvivecircncia de instacircncias legais diversas em igual hie-rarquia jurisdiccedilatildeo ordinaacuteria estatal e jurisdiccedilatildeo indiacutegenacampo-

3 FARIA Joseacute Eduardo Reforma constitucional em periacuteodo de globalizaccedilatildeo econocircmica 1997 p 5

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nesardquo (WOLKMER 2010 p 11)Em essecircncia um novo processo constitucional voltado

para o reconhecimento de um Estado plural ndash plurinacional ndash que segundo Dantas (2012) eacute ldquobaseado no pluralismo juriacutedico em que segue um novo regime poliacutetico pautado na democracia intercultural participaccedilatildeo popular resguardo a individualidades particulares ou coletivasrdquo

Nesse vieacutes a Constituiccedilatildeo Brasileira de 1988 investida da corrente neoconstitucionalista latino-americana com o caraacuteter de Constituiccedilatildeo Cidadatilde passa a reconhecer a identidade plurieacutetni-ca do Brasil Aos indiacutegenas satildeo reconhecidos direitos especiacuteficos bem como a garantia de direitos fundamentais enquanto cidadatildeos de direito presente no art 5ordm da Carta Magna Como resultado rompe-se a visatildeo integracionista ndash assimilacionista ndash agrave eacutepoca que entendia os indiacutegenas como categoria social transitoacuteria a ser incor-porada agrave comunhatildeo nacional E passa-se agrave perspectiva de sujeitos de direitos comuns e especiacuteficos como institucionaliza o Cap VIII intitulado ldquoDos Iacutendiosrdquo

Art 231 Satildeo reconhecidos aos iacutendios sua organiza-ccedilatildeo social costumes liacutenguas crenccedilas e tradiccedilotildees e os direitos originaacuterios sobre as terras que tradicio-nalmente ocupam competindo agrave Uniatildeo demarcaacute-las proteger e fazer respeitar todos os seus bens

sect 1ordm Satildeo terras tradicionalmente ocupadas pelos iacutendios as por eles habitadas em caraacuteter permanente as utilizadas para suas atividades produtivas as imprescindiacuteveis agrave preservaccedilatildeo dos recursos ambientais necessaacuterios a seu bem-estar e as necessaacuterias a sua reproduccedilatildeo fiacutesica e cultural segundo seus usos costumes e tradiccedilotildees

sect 2ordm As terras tradicionalmente ocupadas pelos iacutendios destinam-se a sua posse permanente cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo dos rios e dos lagos nelas existentes

sect 3ordm O aproveitamento dos recursos hiacutedricos incluiacutedos os potenciais energeacuteticos a pesquisa e a

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lavra das riquezas minerais em terras indiacutegenas soacute podem ser efetivados com autorizaccedilatildeo do Congresso Nacional ouvidas as comunidades afetadas ficando-lhes assegurada participaccedilatildeo nos resultados da lavra na forma da leisect 4ordm As terras de que trata este artigo satildeo inalienaacuteveis e indisponiacuteveis e os direitos sobre elas imprescritiacuteveis

sect 5ordm Eacute vedada a remoccedilatildeo dos grupos indiacutegenas de suas terras salvo laquoad referendumraquo do Congresso Nacional em caso de cataacutestrofe ou epidemia que ponha em risco sua populaccedilatildeo ou no interesse da soberania do Paiacutes apoacutes deliberaccedilatildeo do Congresso Nacional garantido em qualquer hipoacutetese o retorno imediato logo que cesse o risco

sect 6ordm Satildeo nulos e extintos natildeo produzindo efeitos juriacutedicos os atos que tenham por objeto a ocupaccedilatildeo o domiacutenio e a posse das terras a que se refere este artigo ou a exploraccedilatildeo das riquezas naturais do solo dos rios e dos lagos nelas existentes ressalvado relevante interesse puacuteblico da Uniatildeo segundo o que dispuser lei complementar natildeo gerando a nulidade e a extinccedilatildeo direito agrave indenizaccedilatildeo ou a accedilotildees contra a Uniatildeo salvo na forma da lei quanto agraves benfeitorias derivadas da ocupaccedilatildeo de boa feacute

sect 7ordm Natildeo se aplica agraves terras indiacutegenas o disposto no art 174 sect 3ordm e sect 4ordm

Art 232 Os iacutendios suas comunidades e organiza-ccedilotildees satildeo partes legiacutetimas para ingressar em juiacutezo em defesa de seus direitos e interesses intervindo o Mi-nisteacuterio Puacuteblico em todos os atos do processo

Acordantes no Cap III Seccedilatildeo II tiacutetulo ldquoDa Culturardquo os artigos 215 e 216 normatizam o reconhecimento e fortalecimento da identidade dos povos indiacutegenas assegurando o efetivo exerciacutecio dos direitos culturais e liberdade de manifestaccedilotildees culturais bem como a valorizaccedilatildeo das matrizes histoacutericas Tem-se entatildeo o direi-to indigenista um conjunto das normas positivas que tratam das

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questotildees indiacutegenas sejam leis princiacutepios ou demais atos normati-vos que regem as relaccedilotildees entre iacutendios e natildeo iacutendios

Por outro lado o direito indiacutegena ou direito consuetudinaacute-rio indiacutegena embora tenha garantia legal para sua manifestaccedilatildeo eacute tido como ldquoregras postas aos iacutendios nas aldeias vistas a reger as relaccedilotildees entre indiviacuteduos famiacutelias grupos e povosrdquo e integra a forma de organizaccedilatildeo e da cultura da comunidade indiacutegena atra-veacutes das relaccedilotildees ancestrais com carga moral e cultural (SILVA 2005 online)

Como bem explana Francisco das Chagas Lima Filho (2007) ao acrescentar que

[] nas relaccedilotildees de famiacutelia casamento propriedade sucessatildeo e mesmo na questatildeo criminal existe uma plenitude do direito indiacutegena que se revela atraveacutes de um sistema juriacutedico completo com direitos e de-veres normas e sanccedilotildees criadas de modo coletivo por toda a comunidade de acordo com as necessi-dades do grupo

A presenccedila de outras fontes de produccedilatildeo juriacutedica dentro de um Estado muitas vezes intituladas de direito natildeo-oficial direi-to marginal ou alternativo eacute a concepccedilatildeo do pluralismo juriacutedico O direito natildeo-oficial tem suas proacuteprias regras que satildeo seguidas e respeitadas por um nuacutemero consideraacutevel de habitantes que o reco-nhecem como tal aplicando-o na soluccedilatildeo de conflitos E por vezes acarretam modificaccedilotildees no direito oficial por via das decisotildees judi-ciaacuterias (TAVARES 2014)

Direito indiacutegena enquanto direito comparado

A presenccedila de variados sistemas juriacutedicos leva por vezes agrave necessidade de conhececirc-los para eventualmente aperfeiccediloar ou unificar o direito Certo eacute que os modelos juriacutedicos mudam ininterruptamente por lenta evoluccedilatildeo ou por sobreposiccedilatildeo global ocorrendo mutaccedilotildees ndash originais ou imitaccedilotildees (SACCO 2001)

Eis que se faz necessaacuterio o uso do direito comparado qual

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seja a contribuiccedilatildeo que ele oferece ao possibilitar a verificaccedilatildeo das vaacuterias maneiras de se organizar institutos juriacutedicos e de regular re-laccedilotildees juriacutedicas semelhantes instrumentalizando o funcionamento do ordenamento

O direito comparado por vezes eacute apresentado como a constataccedilatildeo dos pontos comuns e das divergecircncias existentes em dois ou vaacuterios direitos Contudo natildeo deve ser visto apenas como o apontamento das diferenccedilas e semelhanccedilas E sim na perspec-tiva de conhecer a natureza e evoluccedilatildeo histoacuterica das instituiccedilotildees do direito relacionando as notiacutecias e tradiccedilotildees do passado com o presente Assim como sua importacircncia na descoberta e formulaccedilatildeo dos princiacutepios comuns que regem as relaccedilotildees sociais bem como a possibilidade de enriquecimento reciacuteproco entre normas juriacutedicas e por fim o fornecimento de bases juriacutedicas e conclusotildees cientiacutefi-cas a partir da experiecircncia com o objetivo de aperfeiccediloar o sistema juriacutedico nacional (JIMENEZ SERRANO 2006)

Para explicar essas ldquomultiplicidadesrdquo no direito compara-do Ana Lucia de Lyra Tavares professora de Direito Constitucio-nal Comparado da PUC-Rio traz as seguintes consideraccedilotildees

Diversamente do que ocorreu por muito tempo em que os campos para a comparaccedilatildeo juriacutedica eram se-lecionados segundo afinidades geopoliacuteticas e ideoloacute-gicas dos Estados envolvidos ou de acordo como a similitude de graus de desenvolvimento econocircmico ou ainda em funccedilatildeo de raiacutezes culturais comuns em suma a comparaccedilatildeo do comparaacutevel em nossos dias a prefixaccedilatildeo desses campos passou a traduzir um in-teresse acadecircmico e teoacuterico Isso porque a realidade da globalizaccedilatildeo impocircs relaccedilotildees entre sistemas juriacute-dicos profundamente heterogecircneos aleacutem de extra-polarem as bases internacionais de relacionamento chegando-se a patamares supranacionais e ateacute mes-mo universais Assim se a urgecircncia da compreensatildeo entre os oriundos desses sistemas eacute ditada a curto prazo por interesses de natureza econocircmica a longo prazo satildeo exigecircncias mais profundas de compreen-satildeo intercultural que devem ser consideradas para que se alcance um entendimento mais vasto (TA-VARES 2014 online)

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Em concordacircncia nota-se que ldquoa ideia de comparaccedilatildeo au-menta a compreensatildeo entre os povos e contribui para a coexistecircn-cia das naccedilotildeesrdquo uma vez que gera aproximaccedilatildeo dos povos pelo respeito de suas identidades culturais (SACCO 2001 p 27)

Na visatildeo do professor Rogeacuterio Geraldo Rocco (2005 onli-ne)

Entretanto essa definiccedilatildeo de grandes sistemas juriacute-dicos caracteriza uma visatildeo hegemocircnica sobre gru-pos sociais que por certo satildeo diversos distintos e plurais num mesmo territoacuterio Eacute algo proacuteximo do monismo juriacutedico referido por Lins Mesquita (2012 p 157) segundo o qual os direitos dos povos tradi-cionais natildeo seriam senatildeo especificaccedilotildees histoacutericas Eacute certo que as comunidades indiacutegenas possuem seus sistemas juriacutedicos e que natildeo guardam muitas seme-lhanccedilas com os sistemas hegemocircnicos na proporccedilatildeo de seu distanciamento da cultura dominante E que o grande dilema contemporacircneo reside no desafio de harmonizar os distintos sistemas juriacutedicos eis que coincide sua incidecircncia no tempo e no espaccedilo

De fato o direito comparado pode gerar efeitos influen-ciar na mudanccedila de institutos como na criaccedilatildeo da norma juriacutedica ou no campo da hermenecircutica atraveacutes da interpretaccedilatildeo das nor-mas juriacutedicas

A conjuntura do direito comparado pode produzir mu-danccedilas no acircmbito juriacutedico no entanto atentam ao direito criado mediante um procedimento artificial o direito estatal Em contra-posto o direito tradicional como o direito indiacutegena por vezes eacute ignorado (SACCO 2001)

Jurisdiccedilatildeo equiparada

Na praacutetica o direito estatal vem imperando sobre o direito indiacutegena ao aplicar o direito positivo aos indiacutegenas negando o di-reito consuetudinaacuterio que adveacutem das praacuteticas sociais e da tradiccedilatildeo dos povos indiacutegenas pondo-o como fonte secundaacuteria do direito

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Exigindo que seja compatiacutevel com o sistema juriacutedico nacionalParalelo agrave concepccedilatildeo dogmaacutetica no sistema juriacutedico esta-

tal o Tribunal de Justiccedila de Roraima em decisatildeo ineacutedita no siste-ma juriacutedico brasileiro determinou que o Estado natildeo pode aplicar pena prevista no Coacutedigo Penal a indiacutegena que jaacute foi punido pela proacutepria comunidade

Ao declarar a ausecircncia de jus puniendi o juiz de primeiro grau suscitou a titularidade dos dois entes ndash Estado e comunidade indiacutegena ndash do direito de punir denominando de duplo jus puniendi garantindo autonomia ao Conselho Indiacutegena agrave luz do art 57 do Estatuto do Iacutendio ldquoSeraacute tolerada a aplicaccedilatildeo pelos grupos tribais de acordo com as instituiccedilotildees proacuteprias de sanccedilotildees penais ou disci-plinares contra os seus membros desde que natildeo revistam caraacuteter cruel ou infamante proibida em qualquer caso a pena de morterdquo (1973 np)

Em entrelinhas atraveacutes dessa interpretaccedilatildeo reconhece que o Estado natildeo eacute uacutenico detentor do poder de julgar e aplicar pu-niccedilatildeo colocando ambas as jurisdiccedilotildees em igual status hieraacuterquico como acontece em outras Repuacuteblicas latinas como Boliacutevia (2009) e Equador (2008)

Conforme documentos acostado agraves f 185-187 dos autos do processo em anaacutelise o Conselho Indiacutegena atraveacutes de seus usos e costumes impocircs ao indiacutegena as seguintes penalidades

ldquo1) O iacutendio Denilson deveraacute sair da Comunidade do Ma-noaacute e cumprir pena na Regiatildeo WaiWai por mais 5 (cinco) anos com possibilidade de reduccedilatildeo conforme seu comportamento

2) Cumprir o Regimento Interno do Povo WaiWai res-peitando a convivecircncia o costume a tradiccedilatildeo e moradia junto ao povo WaiWai

3) Participar de trabalho comunitaacuterio4) Participar de reuniotildees e demais eventos desenvolvido

pela comunidade5) Natildeo comercializar nenhum tipo de produto peixe ou

coisas existentes na comunidade sem permissatildeo da comunidade juntamente com tuxaua

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6) Natildeo desautorizar o tuxaua cometendo coisas agraves escon-didas sem conhecimento do tuxaua

7) Ter terra para trabalhar sempre com conhecimento e na companhia do tuxaua

8) Aprender a cultura e a liacutengua WaiWai9) Se natildeo cumprir o regimento seraacute feita outra reuniatildeo e

tomar outra decisatildeordquo (2013 p 224)Importante destacar alguns trechos da Sentenccedila dos autos

nordm 009010000302-0 TJRR proferida pelo Juiz de Direito Aluiacutezio Ferreira Vieira em 03 de setembro de 2013

[] Cabe acentuar que todo o procedimento su-pramencionado foi realizado sem mencionar em momento algum a legislaccedilatildeo estatal tendo apenas como norte a autoridade que seus usos e costumes lhes confere[] Vecirc-se portanto a potencial condenaccedilatildeo e exe-cuccedilatildeo de pena por mais de 2 (dois) entes em tese titulares do direito de punir o mesmo fato Insta ob-servar que natildeo se trata de bis in idem pois os entes detentores do direito de punir satildeo distintos e natildeo apenas o Estado mas de instituto novo que poderiacute-amos denominar de ldquoDuplo Jus Puniendirdquo Em razatildeo da situaccedilatildeo supramencionada a Defesa alccedilou a existecircncia do no bis in idem ou seja a im-possibilidade do acusado ser sancionado duas vezes pelo mesmo fato logo este Juiacutezo deveria declarar-se incompetente em razatildeo da mateacuteria haja vista o ante-rior julgamento do fato pela comunidade indiacutegena a que pertence o acusadoPois bem rechaccedilo em parte o argumento da ilustre Defesa A uma pois tenho que o imbroacuteglio natildeo se trata de bis in idem mas de ldquoDuplo jus Puniendirdquo em face do que dispotildee o art 57 da Lei 600173 (Es-tatuto do Iacutendio)[] Ora natildeo se estaacute aqui alccedilando qualquer alegaccedilatildeo de incompetecircncia do Tribunal do Juacuteri pois se trata de algo acima disso que a ausecircncia in casu do direito de punir do Estado-Juiz Logo seria uma discussatildeo esteacuteril em face da inaplicabilidade dos institutos do processo estatal Ademais ainda que se considerasse o niacutevel constitucional do prescrito no art 5ordm inciso

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XXXVIII da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica como direito fundamental a ser observado o contraponto estaria no art 231 da mesma Constituiccedilatildeo que tambeacutem eacute direito fundamental logo com a necessaacuteria obser-vacircncia aos costumes e tradiccedilotildees dos povos indiacutege-nasConveacutem advertir que a esmagadora maioria da doutrina entende que a previsatildeo art 57 do Estatuto do Iacutendio seria uma exceccedilatildeo ao direito de punir esta-tal Com base nisso poderia se concluir que o Esta-do natildeo poderia atuar de forma alguma nos casos de crimes ocorridos nas comunidades indiacutegenas o que natildeo traduz a finalidade da legislaccedilatildeo e tatildeo pouco o que acontece na realidadeVejo pois que essa natildeo eacute a melhor conclusatildeo uma vez que o Estado teraacute ampla autonomia para inves-tigar processar e julgar o indiacutegena nos casos em que a comunidade indiacutegena natildeo julgaacute-lo logo o Estado em casos tais atuaraacute de forma subsidiaacuteria[] Em outras palavras o Estado deve apenas pro-nunciar a sua ausecircncia de poder de punir uma vez que o acusado jaacute foi julgado e condenado por quem deteacutem o direito Muito maior que o reconhecimento do direito de pu-nir seus pares as comunidades indiacutegenas sentiratildeo muito mais fortalecidas em seus usos e costumes fa-tor de integraccedilatildeo e preservaccedilatildeo de sua cultura haja vista que o Estado estaraacute sinalizando o respeito ao seu modo de viver e lhe dar com as tensotildees da vida dentro da comunidadeHaacute quem pense e diga que haja o temor da repercus-satildeo social da fragilizaccedilatildeo do Estado ou o potencial recrudescimento da violecircncia dentro das comunida-des indiacutegenasDigo o inverso o Estado natildeo estaraacute fragilizado pois caso as comunidades indiacutegenas natildeo julguem seus pares manteacutem-se o Direito de Punir Estatal de for-ma subsidiaacuteriaEnfim natildeo se enfraquece de forma alguma o Poder Estatal mas ao inverso fortalece-se a atividade juris-dicional ao se reconhecer uma excepcionalidade que deve ser tratada de forma distinta afinal o Estado natildeo eacute absolutista[] Ante ao exposto deixo de apreciar o meacuterito da denuacutencia do Oacutergatildeo Ministerial representante do Es-

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tado para DECLARAR A AUSEcircNCIA IN CASU DO DIREITO DE PUNIR ESTATAL em face do julga-mento do fato por comunidade indiacutegena relativo ao acusado DENILSON TRINDADE DOUGLAS brasi-leiro solteiro agricultor nascido aos 130389 filho de Alan Douglas e Demilza da Silva Trindade com fundamento no art 57 da Lei nordm 600173 e art 231 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica (VIEIRA 2013)

Ainda como fundamentaccedilatildeo o juiacutezo levantou uma deci-satildeo do Conselho de Sentenccedila do Tribunal do Juacuteri Popular da Jus-ticcedila Federal em Roraima presidido pelo juiz federal Helder Giratildeo Barreto que entendeu pela absolviccedilatildeo do indiacutegena Basiacutelio Alves Salomatildeo por falta de culpabilidade tendo em vista que o reacuteu cum-priu sua pena imposta pela comunidade indiacutegena Vejamos o tre-cho proferido pelo titular

Pois bem apoacutes cometer o crime o acusado foi pre-so e julgado pela proacutepria Comunidade Indiacutegena agrave qual pertencia recebendo as seguintes penas cavar a cova e enterrar o corpo da viacutetima e ficar em degre-do de sua comunidade e de sua famiacutelia pelo tempo que a comunidade achasse conveniente No dia do julgamento o acusado estava haacute quase catorze anos sem poder retornar ao conviacutevio da Comunidade Indiacutegena do Maturuca Ao ser interrogado em ple-naacuterio o acusado declarou quando um iacutendio comete um crime eacute costume ele ser julgado pelos proacuteprios companheiros Tuxauas e que isso eacute um costume que vem antes do tempo dos seus avoacutes As testemunhas confirmaram os fatos Em plenaacuterio foi ouvida a an-tropoacuteloga Alesandra Albert que assegurou que na tradiccedilatildeo da etnia Macuxi um iacutendio que mata outro eacute submetido a um Conselho escolhido pela proacutepria comunidade e reconhecido como detentor de auto-ridade que a maior pena aplicada pelo Conselho eacute o banimento que tanto o julgamento quanto a pena satildeo modos como eles encaram a Justiccedila e conclui para a pessoa que sofreu banimento o julgamento e a pena tecircm o sentido da perda da convivecircncia e da di-minuiccedilatildeo do conceito perante a Comunidade coisas que satildeo muito importantes (BARRETO 2000)

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Muito embora o juiz Aluiacutezio Ferreira Vieira tenha discor-dado quanto agrave ldquoabsolviccedilatildeordquo pois absolviccedilatildeo entende-se pelo julga-mento da mateacuteria e para aquele o Estado in casu que natildeo detinha o direito de punir em virtude do que se concluiria pela competecircn-cia do jus puniendi indiacutegena

Dessa maneira entendeu-se pela inaplicabilidade dos ins-titutos do processo estatal uma vez que o Estado seria incompeten-te em razatildeo da mateacuteria diante da pena jaacute aplicada pelo Conselho Indiacutegena dando iniacutecio ao reconhecimento do Estado Plurinacio-nal com visibilidade agraves experiecircncias indiacutegenas com novas e criati-vas possibilidades de se pensar o direito

Em suma na praacutetica seraacute aplicado da seguinte maneira

a) Nos casos em que autor e viacutetima satildeo iacutendios fato ocorre em terra indiacutegena e natildeo haacute julgamen-to do fato pela comunidade indiacutegena o Estado deteraacute o direito de punir e atuaraacute apenas de forma subsidiaacuteria Logo seratildeo aplicaacuteveis todas as regras penais e processuais penais

b) nos casos em que autor e viacutetima satildeo iacutendios o fato ocorre em terra indiacutegena e haacute julgamento do fato pela comunidade indiacutegena o Estado natildeo teraacute o di-reito de punir Assim torna-se evidente a impossibi-lidade de se aplicar regras estatais procedimentais a fatos tais que natildeo podem ser julgados pelo Estado Eacute o que aconteceu neste caso (Grifo nosso)

Em apelaccedilatildeo a turma recursal atraveacutes do Relator Des Mauro Campello em 18 de dezembro de 2015 manteve a senten-ccedila como se nota

[] Firme na Convenccedilatildeo 169 da OIT bem assim no conhecido art 231 da Constituiccedilatildeo Federal e toman-do por base a experiecircncia comparada (conforme o permite o art 4ordm da LINDB) entendo como correta a decisatildeo em 1ordf instacircncia ressalvadas as consideraccedilotildees sobre parte da justificativa nela adotada como ano-tei o que em todo caso nos leva agrave mesma conclusatildeo Ante ao exposto considerando afastada a jurisdiccedilatildeo

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estatal com o julgamento do fato pela comunidade indiacutegena concernida sob pena de se acarretar bis in idem voto pelo desprovimento do recurso de ape-laccedilatildeo ministerial mantendo inalterada a sentenccedila (CAMPELLO 2015)

Por outro lado o Relator fez algumas reflexotildees colocando o caso em questatildeo como violaccedilatildeo ao princiacutepio non bis in idem dis-cordando do termo duplo jus puniendi utilizado pelo juiz senten-ciante

[] Se o que denomina o Juiz sentenciante de ldquoDu-plo Jus Puniendirdquo significa que haacute dois entes juridi-camente legitimados a punir uma infraccedilatildeo penal e julgando um deles um certo crime natildeo poderaacute se imiscuir o outro no mesmo fato arrogando para si o direito de examinar a culpabilidade do agente e eventualmente responsabilizaacute-lo tambeacutem por isto seria se outro modo justamente aquilo que veda o brocardo ldquoNemo debet bis vexari pro uma et eadem causardquo (Ningueacutem deve ser sancionado mais de uma vez por um e mesmo fato) cuja contraccedilatildeo correspon-de ao non bis in idem Este princiacutepio natildeo implica (apenas) que um mesmo ente natildeo pode punir duas vezes o mesmo fato e sim como garantia processual penal ampla do indiviacuteduo que este natildeo pode ser pu-nido duas vezes por umpelo mesmo fato qualquer se seja o ente que o puneTenho que a compreensatildeo para o caso deve ser a que percebe violado o principio non bis in idem no presente caso natildeo porque seja refrataacuterio a novos institutos que possam ser reconhecidos na casuiacutes-tica judicial mas apenas porque me parece que o ldquoDuplo Jus Puniendirdquo poderia acender um debate paralelo acerca do conflito de jurisdiccedilotildees e que esse novel instituto natildeo suplantaria adequadamente o argumento da acusaccedilatildeo de que haveria violado na espeacutecie principio da inafastabilidade da jurisdiccedilatildeo (CAMPELLO 2015)

Em suma a decisatildeo corresponde agrave realidade latino-ameri-cana reconhecendo a jurisdiccedilatildeo indiacutegena quebrando o monopoacutelio

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estatal ao conceber a utilizaccedilatildeo de meacutetodos tradicionais dos po-vos indiacutegenas para soluccedilatildeo de conflitos mesmo em mateacuteria penal Decisatildeo essa que eacute reflexo do neoconstitucionalismo latino-ame-ricano uma vez que efetiva os direitos fundamentais dos povos indiacutegenas valida e reforccedila o pluralismo existente no paiacutes Capaz de influenciar numa nova concepccedilatildeo de valores ou ideologias no que concerne a outras fontes de jurisdiccedilatildeo

Segundo dados do IBGE de 2010 a populaccedilatildeo indiacutegena brasileira eacute representada por 305 diferentes etnias conhecidas cada qual com costumes e regras proacuteprias com 274 liacutenguas indiacute-genas sendo que 175 da populaccedilatildeo indiacutegena natildeo falam a liacutengua portuguesa Mostra-se claramente um Estado composto por uma sociedade multicultural e multiliacutengue que possui seu reconheci-mento sob respaldo constitucional

Neste cenaacuterio reconhecer o jus puniendi indiacutegena em grau de paridade com o jus puniendi do Estado-juiz natildeo torna incompe-tente a atuaccedilatildeo do Estado mas sim descentraliza a efetividade do poder vez que restringe a sua atuaccedilatildeo ao caraacuteter subsidiaacuterio se o indiacutegena assim o quiser nem mesmo se teraacute uma sanccedilatildeo desfavo-raacutevel isso porque se viabiliza a aplicabilidade de outras fontes do direito nacional condizente com a realidade social indiacutegena

Atuaccedilatildeo semelhante acontece com as Constituiccedilotildees Boli-viana e Equatoriana paiacuteses em que a populaccedilatildeo eacute composta signi-ficativamente por povos originaacuterios que atraveacutes de ampla parti-cipaccedilatildeo da populaccedilatildeo durante a elaboraccedilatildeo dos respectivos textos constitucionais traccedilaram o objetivo de humanizaccedilatildeo dos povos e comunidades tradicionais sobretudo quanto ao tratamento dado agraves tradiccedilotildees e praacuteticas indiacutegenas e assim legitimaram a atuaccedilatildeo das autoridades indiacutegenas no exerciacutecio da administraccedilatildeo da justi-ccedila em seus espaccedilos territoriais com seu proacuteprio direito e procedi-mentos

O Artigo 1ordm da Constituiccedilatildeo boliviana preconiza

Boliacutevia se constituye em um Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario libre In-dependiente soberano democraacutetico intercultural

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descentralizado y com autonomias Boliacutevia se funda em lapluralidad y el pluralismo poliacutetico econocircmico juriacutedico cultural y linguiacutestico dentro Del processo integrador del paiacutes

De fato a Constituiccedilatildeo brasileira jaacute reconhece os direitos dos povos indiacutegenas e comunidades tradicionais entretanto as di-ficuldades que encontram estatildeo na efetivaccedilatildeo de tais direitos vez que versam principalmente sobre direitos de caraacuteter coletivo Na Constituiccedilatildeo boliviana por exemplo para materializar a perspec-tiva de um Estado Plurinacional houve uma transformaccedilatildeo insti-tucional Sobretudo com a composiccedilatildeo do Tribunal Constitucional Plurinacional Boliviano que em sua composiccedilatildeo aleacutem da presenccedila de representantes da jurisdiccedilatildeo estatal conta com a presenccedila obri-gatoacuteria de indiacutegenas eleitos pelo povo para um melhor diaacutelogo intercultural atraveacutes da participaccedilatildeo popular e da percepccedilatildeo in-diacutegena

Com perspectiva semelhante a Constituiccedilatildeo do Equador traz a criaccedilatildeo da Corte Constitucional Equatoriana composta com paridade entre homens e mulheres atraveacutes de um pluralismo juriacute-dico igualitaacuterio Traz ainda na essecircncia do Texto constitucional o rompimento do antropocentrismo atraveacutes da percepccedilatildeo indiacutegena da integraccedilatildeo do homem com o meio em que vive com a vida de modo geral

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Na concepccedilatildeo indiacutegena devido ao princiacutepio da solidarie-dade os interesses da comunidade satildeo mais importantes e se so-brepotildeem aos interesses ou direitos individuais de tal maneira que o direito indiacutegena se origina da proacutepria comunidade por isso a legitimidade das normas e da puniccedilatildeo natildeo satildeo questionadas

Essa visatildeo eacute diversa da empregada pelo direito comum (que se utiliza de outros meios para criaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo) mas pos-sui garantias no acircmbito constitucional e internacional

Embora presentes alguns dispositivos legais a Constitui-

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ccedilatildeo Federal vigente natildeo positiva expressamente a jurisdiccedilatildeo indiacute-gena com grau de paridade com a jurisdiccedilatildeo estatal limitando-se agrave aplicaccedilatildeo dos usos e costumes nas relaccedilotildees entre indiacutegenas salvo quando contrariar o sistema juriacutedico nacional ou direitos humanos internacionais

A Constituiccedilatildeo da Boliacutevia por sua vez elenca um rol sig-nificativo de artigos com direitos indiacutegenas Desse modo determi-na equivalecircncia entre a justiccedila indiacutegena e a justiccedila comum aleacutem de abrir espaccedilo para a participaccedilatildeo poliacutetica Assim reafirma a coexis-tecircncia de ldquonaccedilotildeesrdquo dentro do territoacuterio boliviano

Compreender a existecircncia de pluralismo eacute conhecer o di-reito indiacutegena enquanto direito comparado surgindo a possibili-dade de aprofundar o conhecimento dos sistemas juriacutedicos apri-morando o direito nacional e aproximando os povos atraveacutes do respeito de suas identidades culturais

Graccedilas agrave sentenccedila em anaacutelise o Brasil inova e abre frente para novas interpretaccedilotildees e aplicaccedilotildees do direito convalidando di-retrizes da ONU OIT e da proacutepria Constituiccedilatildeo Federal

Na concepccedilatildeo indiacutegena o reconhecimento da aplicaccedilatildeo de seus usos e costumes traz a integraccedilatildeo de povos que coexistem num mesmo espaccedilo fiacutesico

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A TEORIA DO PREJUIacuteZO NAS NULIDADES RELATIVAS O COROLAacuteRIO DA DISCRICIONARIEDADE NO PROCESSO PENAL

Evandro Monezi Benevides1

Felipe Teles Tourounoglou2

RESUMO Com a superaccedilatildeo do Estado Liberal desenvolveu-se que se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito expressatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo agrave luz do poacutes-positivismo No Brasil com a Constituiccedilatildeo Cidadatilde e a experiecircncia da ditadura militar inaugurou-se uma nova ordem juriacutedico-constitucional ensejando terreno feacutertil na efetivaccedilatildeo de direitos e garantias constitucionais Em contrapartida os paradigmas juriacutedicos erigidos com a democracia mormente tecircm sido alvo de levantes vez que o sistema normativo paacutetrio ainda continua vinculado agraves leis que natildeo mais expressam os valores constitucionais Somado a isso o Judiciaacuterio diante de sua progressiva autonomizaccedilatildeo vivencia uma era regada pela discricionariedade hermenecircutica colocando em risco inclusive a supremacia da Constituiccedilatildeo Assim o presente trabalho tem por objetivo analisar como tem se dado a atuaccedilatildeo do Judiciaacuterio na aplicaccedilatildeo da teoria do prejuiacutezo nas nulidades processuais penais e a sua imbricaccedilatildeo com a discricionariedade tatildeo bem recepcionada atualmente por juiacutezes e tribunais bem como apontar possiacuteveis saiacutedas Para tanto lanccedilaremos matildeo da teoria criacutetica do direito como forma de anaacutelise da temaacutetica proposta apresentando posicionamentos que coadunam com o tema a partir de pesquisas bibliograacuteficas Tal estudo demonstra-se fundamental viabilizando discussotildees acadecircmicas sobre a necessidade de se combater comportamentos antidemocraacuteticos que resvalam as necessidades do atual constitucionalismo

PALAVRAS-CHAVE Constitucionalismo Contemporacircneo Poacutes-positivismo Interpretaccedilatildeo 1 Graduando do curso de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail evandromonezzihotmailcom2 Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado do Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail felipetelesadvgmailcom

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ABSTRACT With an overcoming of the Liberal State what has now been understood by the Constitutional State of Law the expression of Contemporary Constitutionalism has been developed in the light of post-positivism In Brazil with the Citizen Constitution and an experience of the military dictatorship a new juridical-constitutional order was inaugurated providing fertile ground for the realization of constitutional rights and guarantees On the other hand legal paradigms erected with democracy have usually been the target of uprisings which the countryrsquos normative system remains bound by laws that no longer express constitutional values Added to this the Judiciary faced with its progressive autonomization experienced an era ruled by hermeneutical arbitrariness even putting at risk the supremacy of the Constitution The purpose of this study has to analyze how the activity of the Judiciary has been applied in the application of the theory of injury in criminal proceedings and its connection with arbitrariness currently received by judges and courts pointing out possible exits Finally we will use the critical theory of law as a way of analyzing the proposed theme presenting positions that fit the theme using bibliographical research This study proves to be fundamental since it makes it possible to vocalize academic discussions about the need to combat undemocratic behaviors that go against the needs of the current constitutionalism

KEYWORDS Contemporary Constitutionalism Post-positivism Interpretation

INTRODUCcedilAtildeO

Com o agravamento das tensotildees poliacuteticas provocadas em parte pela desmoralizaccedilatildeo dos gestores puacuteblicos legitimamente constituiacutedos pelo voto em funccedilatildeo de escacircndalos de corrupccedilatildeo bem como do descompasso de suas accedilotildees face agraves necessidades sociais o Direito tem alcanccedilado um grau de autonomia cada vez mais elevado Isso se deve ao fato de que o Direito passa a ter um caraacuteter cada vez mais progressista no sentido de ser transformador potencializando as esperanccedilas sociais de verem concretizados os

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direitos fundamentais assumidos nos textos constitucionais Nes-se novo cenaacuterio paradigmaacutetico a poliacutetica (leia-se Executivo e Le-gislativo) em todas as suas conjecturas acaba ficando em deacuteficit com os direitos fundamentais Tais circunstacircncias possibilitaram a construccedilatildeo de um novo modelo de Direito e de Estado uma vez que a Constituiccedilatildeo passa a ser uma verdadeira forma de concreti-zaccedilatildeo de direitos

Por outro lado aquilo que poderia ser beneacutefico tem de-monstrado progressivamente seu lado funesto A autonomia do Direito construiacuteda pela afirmaccedilatildeo e materializaccedilatildeo de direitos e garantias constitucionais tem produzido um indesejaacutevel ldquoefeito colateralrdquo a discricionariedade jurisdicional Tal discricionariedade encontra-se fundamentada no fato de que dentro da dogmaacutetica juriacutedica (tradicional) seria (e tem sido) impossiacutevel ao inteacuterprete (juiz) se desvencilhar da sua subjetividade bem como da objetivi-dade do texto e lanccedilar matildeo de uma interpretaccedilatildeo do fato social a partir de uma concepccedilatildeo histoacuterico-ontoloacutegica do direito Isso sig-nifica dizer que a discricionariedade esvazia-se de quaisquer in-fluecircncias concreto-reais e mergulha na abstratalidade do Direito Se a liberdade portanto do legislador foi restringida em funccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo constitucional deve-se buscar caminhos que impe-ccedilam a discricionariedade do inteacuterprete em detrimento dos direitos e garantias fundamentais mormente solapados pelo decisionismo jurisdicional

Diante disso e como prova dos efeitos nocivos da discri-cionariedadearbitrariedade do inteacuterprete o ponto fulcral o qual o presente trabalho pretende abordar trata-se da teoria do prejuiacutezo amplamente debatida pela doutrina processual penal a qual se situa no instituto das nulidades relativas poreacutem muito mal apli-cada em decisotildees judiciais as quais em vez de concretizarem o respeito aos direitos fundamentais acabam se tornando a expres-satildeo maacutexima dessa discricionariedade violando direitos e garantias fundamentais e anulando e pondo agrave prova o que se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito Pior que isso colocando em risco a autonomia do Direito e inevitavelmente a supremacia da Constituiccedilatildeo

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O Estado Constitucional de Direito e a Autonomia do Direito

Trecircs foram as referecircncias inaugurais do constitucionalis-mo moderno a norte-americana a francesa e a inglesa as quais impulsionaram a construccedilatildeo do cenaacuterio juriacutedico-constitucional e poliacutetico do final do seacuteculo XVIII bem como os contornos do Estado Constitucional de Direito expressatildeo clara da limitaccedilatildeo do poder estatal

Sarlet (2013 p 52) aponta que ldquoo processo de afirmaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do Estado (Constitucional) de Direito que nasceu como um Estado Liberal de Direito revela que se trata de uma trajetoacuteria gradualrdquo pois outras experiecircncias constitucionais fo-ram sendo delineadas ao longo da histoacuteria3 Assim alerta o autor que sob o manto de Estados Constitucionais modelos distintos de constitucionalismos podem ser identificados como o Estado Cons-titucional Liberal o Estado Constitucional Social e o Estado Cons-titucional de Direito os quais se manifestam a partir de perspecti-vas ideoloacutegicas distintas mas que contribuiacuteram para a edificaccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo

Leciona Barroso (2010) que o marco do constitucionalis-mo que hoje se conhece como ldquogarantistardquo e ldquoprogramaacuteticordquo teve como marco histoacuterico o poacutes Segunda Guerra na Europa especial-mente na Alemanha e Itaacutelia4 com suas Constituiccedilotildees escritas No Brasil o marco foi a redemocratizaccedilatildeo poacutes Ditadura Militar em 1988 com a Constituiccedilatildeo Cidadatilde que possibilitou a travessia de um regime autoritaacuterio para o democraacutetico solidificado ateacute entatildeo Todos esses ldquomarcosrdquo a partir de suas contribuiccedilotildees histoacuterias de

3 Muito comum encontrar juristas que buscam estabelecer distinccedilotildees entre Estado Liberal e Estado Social apontado um ou outro como possivelmente mais adequado Logo necessaacuterio e oportuno eacute o esclarecimento de Streck (2014 p 138) ao afirmar que ldquonatildeo parece adequada portanto a tese da contraposiccedilatildeo do modelo de direito do Estado Social ao modelo de direito do Estado Liberal Isso seria ignorar os dois pilares sobre as quais estaacute assentado o terceiro modelo o Estado Democraacutetico de Direito a proteccedilatildeo dos direitos social-fundamentais e o respeito agrave democraciardquo 4 Duas satildeo as referecircncias de constitucionalismo a Constituiccedilatildeo alematilde denominada ldquoLei funda-mental de Bonnrdquo promulgada em 1949 erigindo uma sustentaacutevel tradiccedilatildeo constitucional no acircmbito dos paiacuteses de tradiccedilatildeo romano-germacircnica e a Constituiccedilatildeo italiana de 1947 Ambas auxiliaram para a aproximaccedilatildeo de ideais de democracia e constitucionalismo produzindo uma nova configuraccedilatildeo poliacutetica (BARROSO 2010)

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fato possibilitaram uma transformaccedilatildeo na compreensatildeo do Direi-to e mais que isso na compreensatildeo de validade das normas infra-constitucionais e das instituiccedilotildees pertencentes ao Estado

A redemocratizaccedilatildeo no Brasil apoacutes mais de duas deacutecadas do regime militar e a superaccedilatildeo do Positivismo Juriacutedico5 tiveram papel decisivo na estruturaccedilatildeo de um direito constitucional para aleacutem da compreensatildeo de uma Constituiccedilatildeo meramente poliacutetica e vinculada aos interesses legislativos e administrativos A Consti-tuiccedilatildeo aleacutem de exigir uma efetiva compatibilidade das leis estabe-lece limites ao legislador ao administrador e tambeacutem ao inteacuterprete da lei impondo-lhes deveres e limites inexoraacuteveis de atuaccedilatildeo

O marco do poacutes-positivismo6 reintroduziu as ideias (e os ideais) de justiccedila e legitimidade nos diversos niacuteveis do poder es-tatal Isso significa dizer que o Direito antes compreendido como uma ciecircncia ldquopurardquo e isolada de outros conhecimentos passa a comungar com a realidade histoacuterico-social propiciando um senti-mento constitucional Mais que isso passa a proporcionar instru-mentos que possibilitam as mudanccedilas reivindicadas pela socieda-de e de direitos expressamente garantidos no texto constitucional Quer dizer no Estado Constitucional de Direito a lei passa a ser um instrumento de realizaccedilatildeo do Estado oportunizando mecanis-mos de promoccedilatildeoconcretizaccedilatildeo das reivindicaccedilotildees sociais peran-te a ineacutercia do Executivo eou do Legislativo como por exemplo o mandado de injunccedilatildeo o mandado de seguranccedila coletivo a accedilatildeo civil puacuteblica para citar alguns

Ao passo dessas transformaccedilotildees e como forma clara de efetivaccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo consolidou-se a compreensatildeo de Supremacia da Constituiccedilatildeo a dizer a ldquoseguranccedilardquo de que os poderes constituiacutedos natildeo poderatildeo dispor (tatildeo facilmente)

5 A doutrina sofreu muitas influecircncias de pensadores que buscavam professar um direito natildeo mais refeacutem dos pensamentos ultrapassados ou seja de um direito com perspectivas individualista-dogmaacute-tica teacutecnico-burocraacutetica e assim por diante mas buscava agora compatibilizar-se com perspectivas democraacuteticas em direccedilatildeo a um constitucionalismo garantista e programaacutetico 6 Importante ressaltar que o conceito de ldquopoacutes-positivismordquo deve ser compreendido aqui como a superaccedilatildeo da dogmaacutetica juriacutedica regado por concepccedilotildees solipsistas de um direito autocircnomo e in-dividualista trata-se de forma clara da superaccedilatildeo do positivismo normativista poacutes-kelseniano ou simplesmente positivismo primitivo

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das previsotildees constitucionais estabelecidas pelo Poder Constituinte muito menos contrariar tais disposiccedilotildees sob pena de serem repe-lidos do ordenamento juriacutedico Essa ldquoseguranccedilardquo por outro lado acaba sendo abalada sempre que uma (nova) ordem constitucional natildeo seja capaz de se desvencilhar de leis ordinaacuterias visivelmen-te conflitantes com essa (nova) ordem Isso porque ao contraacuterio do que pensam alguns juristas a Constituiccedilatildeo natildeo se funda ldquodo nadardquo seja com a primeira Constituiccedilatildeo de um Estado ou mesmo com a elaboraccedilatildeo de uma nova a qual substituiraacute outra Natildeo se pode tentar ldquopurificarrdquo um Poder Constituinte (como tentou fazer Kelsen) Nenhuma Constituiccedilatildeo eacute livre de influecircncias sociais poliacute-ticas culturais e religiosas Ainda mais se diante da fragilidade do monismo estatal reconhece-se a existecircncia de um direito natildeo esta-tal paralelo ao direito oficial o que certamente nos levaraacute agrave con-clusatildeo de que nenhum constituinte eacute totalmente imune agraves influecircn-cias de um direito preacute-existente quiccedilaacute das efervescecircncias sociais

Ao lado dessa inseguranccedila provocada por um sistema normativo que em muitos casos vai de encontro aos preceitos constitucionais o ponto fulcral da discussatildeo que envolve o Esta-do Democraacutetico de Direito diz respeito agrave autonomia que o Direito alcanccedilou e tem alcanccedilado Eacute preciso ter em mente que hoje no Es-tado Democraacutetico de Direito o foco de toda a atenccedilatildeo se volta ao Judiciaacuterio e isso se daacute aponta Streck (2014 p 138) em funccedilatildeo da perda da ldquoliberdade da conformaccedilatildeo do legislador em favor do controle contramajoritaacuterio feito pela jurisdiccedilatildeo constitucionalrdquo ou seja haacute uma niacutetida diminuiccedilatildeo do ldquopoderrdquo da vontade geral (Legislativo) e um aumento do espaccedilo da jurisdiccedilatildeo e o principal motivo dessa diminuiccedilatildeo de poder recai sobre a ineacutercia do Legis-lativo e do Executivo diante das garantias constitucionais que por eles satildeo negligenciadas permitindo que o Judiciaacuterio assuma uma postura mais ativa7 com o propoacutesito de concretizar os reclames da sociedade

7 Aqui a palavra ldquoativardquo (que remete ao termo ldquoativismo juriacutedicordquo) deve ser compreendida nas pa-lavras de Barroso (2012 p 1-50) como ldquouma participaccedilatildeo mais ampla e intensa do Judiciaacuterio na con-cretizaccedilatildeo dos valores e fins constitucionais com maior interferecircncia no espaccedilo de atuaccedilatildeo dos outros dois Poderes Em muitas situaccedilotildees sequer haacute confronto mas mera ocupaccedilatildeo de espaccedilos vaziosrdquo

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Diante dessa autonomizaccedilatildeo do direito do fortalecimen-to da atividade jurisdicional e da consequente diminuiccedilatildeo da in-fluecircncia dos demais poderes bem como diante da incompletude da lei que por vezes natildeo consegue abranger todas as situaccedilotildees possiacuteveis evidencia-se como defende Streck (2010) a necessidade de se encontrar mecanismos de controle do epicentro da tensatildeo entre jurisdiccedilatildeo e legislaccedilatildeo as decisotildees judiciais Isto eacute com essa au-tonomizaccedilatildeo do Direito adquirida no Estado Constitucional juiacute-zes e tribunais (e mais do que nunca os Tribunais Constitucionais) tecircm encontrado dificuldade em impedir que as suas decisotildees sejam solapadas pela discricionariedadearbitrariedade Quer dizer o que ateacute entatildeo representa(ria) um avanccedilo para o Direito agora tem sido seu principal entrave vez que natildeo tem sido usada de forma a exprimir o ldquoespiacuteritordquo do Constitucionalismo Contemporacircneo mas passa a exprimir interesses outros que natildeo se consubstanciam com a nova ordem vigente

Partindo dessa reflexatildeo pergunta-se como seraacute possiacutevel lidar com a dicotomia ldquoautonomiardquo versus ldquodiscricionariedaderdquo que hoje paira sobre o Direito muitas vezes chancelado pelos in-teacuterpretes da lei E eacute justamente no Processo Penal locus em que se deveria materializar o respeito aos direitos fundamentais que ilogicamente se tem encontrado a expressatildeo maacutexima dessa discri-cionariedade Natildeo raro chegam-se ao conhecimento puacuteblico de-cisotildees teratoloacutegicas que agrave luz da consciecircncia do julgador passam por cima da Constituiccedilatildeo violam direitos e garantias fundamen-tais e anulam a base do que agraves duras penas se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito isto eacute colocando em risco a autonomia do Direito e o pior a supremacia da Constituiccedilatildeo Como bem analisa Lopes Jr (2014 p 1176)

o sistema de garantias da Constituiccedilatildeo eacute o nuacutecleo imantador e legitimador de todas as atividades de-senvolvidas naquilo que concebemos como instru-mentalidade do processo penal eacute dizer um instru-mento a serviccedilo da maacutexima eficaacutecia do sistema de garantias da Constituiccedilatildeo

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Para tanto eacute preciso que se compreenda o Processo Penal agrave luz do sistema de garantias constitucionais a fim de efetivar a finalidade pela qual existem tais garantias limitaccedilatildeo do poder estatal face aos direitos fundamentais do reacuteu Posto isso eacute impossiacutevel negar que com a queda do regime totalitaacuterio e a promulgaccedilatildeo da Cons-tituiccedilatildeo de 1988 surgiu uma nova era constitucional advinda de um regime democraacutetico e que resvala da compreensatildeo dogmaacuteti-co-normativa do direito Todavia aleacutem do ordenamento juriacutedico vigente continuar ainda em sua grande maioria umbilicado com leis fascistas de outrora criando uma verdadeira instabilidade le-gal constitucional os inteacuterpretes do direito tambeacutem continuam os mesmos

A partir dessa problemaacutetica pode-se identificar dois pos-siacuteveis comportamentos igualmente nocivos a essa nova legalida-de constitucional ou os inteacuterpretes continuam aplicando o direito com o pressuposto da loacutegica positivista (primitiva) criando situa-ccedilotildees absurdas e desconexas com a nova ordem constitucional ou ao contraacuterio disso natildeo aceitando aplicar um Direito que natildeo mais coaduna com a nova ordem passam de meros ldquobocas da leirdquo a ldquocriacute-ticos da leirdquo proferindo decisotildees discricionaacuterias contraacuterias agrave Cons-tituiccedilatildeo que em nome de um neoconstitucionalismo natildeo abrem matildeo das raiacutezes solipsistas Como se veraacute a partir de agora o segundo comportamento tem se intensificado na seara processual penal

Teoria do ldquoVale-tudordquo

O instituto das nulidades em Processo Penal eacute um dos terremos mais arenosos no Direito atualmente Seja na juris-prudecircncia ou na doutrina raramente encontram-se opiniotildees con-vergentes sobre o assunto Todavia aleacutem das inuacutemeras discussotildees possiacuteveis que o instituto proporciona o que chama atenccedilatildeo eacute a denominada teoria do prejuiacutezo que atrelada agraves nulidades relativas transformou-se em mais um tumor do Processo Penal que volta e meia fere o sistema de garantias constitucionais

Extraiacuteda da dicccedilatildeo do artigo 563 do Coacutedigo de Processo

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Penal8 a teoria do prejuiacutezo tem finalidade uacuteltima de servir agrave apli-caccedilatildeo da nulidade relativa (que eacute uma classificaccedilatildeo doutrinaria das nulidades no sistema processual penal) O dispositivo explicita o famoso princiacutepio pas de nulliteacute sans grief (natildeo haacute nulidade sem pre-juiacutezo) isto eacute para que determinado ato seja declarado nulo seraacute necessaacuteria a comprovaccedilatildeo do prejuiacutezo pela parte que alega salvo se o ato natildeo viole norma cogente situaccedilatildeo em que o juiz poderaacute reconhececirc-la de ofiacutecio Entretanto nas palavras de Lopes Jr (2014) o ldquoprejuiacutezordquo como distinccedilatildeo entre nulidades relativas e absolutas9 possibilita espaccedilos de manipulaccedilatildeo interpretativa e a aplicaccedilatildeo inadequada das nulidades processuais penais nos casos concretos

O primeiro ponto a ser analisado entatildeo eacute a inapropriada influecircncia do processo civil exercida sobre o processo penal quanto ao tema das nulidades processuais Pois o ldquoprejuiacutezordquo ateacute entatildeo soacute era aplicado nos casos de nulidade relativa e desde que devida-mente comprovada a lesatildeo que o ato causou agravequele que alegou Todavia haacute muito nos tribunais tem-se aceitado o fenocircmeno da relativizaccedilatildeo das nulidades absolutas do processo civil em processo penal exigindo da parte que alega a nulidade absoluta a compro-vaccedilatildeo efetiva do prejuiacutezo o que implica em consequecircncias danosas ao suporte faacutetico dos direitos e garantias do imputado Nota-se portanto uma tendecircncia em evitar a decretaccedilatildeo de nulidade pro-cessual (seja ela relativa ou absoluta) sob o argumento de que a nulificaccedilatildeo natildeo condiz com os objetivos de celeridade e de precau-ccedilatildeo contra dilaccedilotildees processuais indevidas Daiacute se justificaria por exemplo a violaccedilatildeo do devido processo legal ()

8 Art 563 Nenhum ato seraacute declarado nulo se da nulidade natildeo resultar prejuiacutezo para a acusaccedilatildeo ou para a defesa (BRASIL 2016) 9 Considera-se como nulidade relativa o viacutecio que embora grave decorre de violaccedilatildeo de normas de interesse privado (ou normas infraconstitucionais) sem qualquer repercussatildeo constitucional Seu reconhecimento depende de provocaccedilatildeo do interessado com a demonstraccedilatildeo do efetivo ldquoprejuiacutezordquo sujeito a prazo preclusivo podendo se convalidar A nulidade absoluta por sua vez eacute o viacutecio de gra-vidade manifesta pois decorre de violaccedilatildeo de norma cogente ou seja que viola norma de interesse puacuteblico (e de ordem constitucional) e por isso o juiz deve alegaacute-la de ofiacutecio decretando sua inva-lidade A doutrina majoritaacuteria aponta que o prejuiacutezo nesse caso eacute presumido mas o STF e STJ tecircm relativizado as nulidades absolutas as quais nesse entendimento precisam gerar prejuiacutezo agraves partes a fim de que sejam declaradas ineficazes Nesse sentido ver STF ndash Segunda Turma ndash HC 406648 ndash Rel Min Teori Zavascki ndash Dje 26112013 e STJ ndash Quinta Turma ndash RMS 35180 ndash Rel Min Laurita Vaz ndash Dje 05112013

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Trata-se portanto de verdadeira metaacutestase vez que a re-cepccedilatildeo de categorias do processo civil para o processo penal (no caso a relativizaccedilatildeo das nulidades absolutas) como explica Lopes Jr (2014) tem produzido verdadeiro atropelamento de direitos e garantias fundamentais embasado em uma postura utilitarista e sob o manto da manipulaccedilatildeo discursivo-interpretativa Reiterando esse posicionamento Fernandes e Fernandes (2002 p 41) afirmam por outro lado que mais grave que os inconvenientes da decla-raccedilatildeo de nulidade processual ldquoseraacute a condenaccedilatildeo de um acusado com proscriccedilatildeo das garantias fundamentais do contraditoacuterio da ampla defesa da liberdade plena de produccedilatildeo de provardquo

Como consequecircncia dessa lesatildeo inicial (leia-se da inade-quada influecircncia do processo civil em processo penal) as ceacutelulas canceriacutegenas da discricionariedade do inteacuterprete acabaram se dis-seminando por todo o sistema de garantias constitucionais do reacuteu conquistado agraves duras penas frisa-se De mais a mais a pergunta que se faz eacute afinal a serviccedilo de quem estaacute o sistema de garantias constitucionais quanto agraves nulidades processuais penais Nas pala-vras de Binder (2000 p 58)

En los siglos XVIII y XIX a la par del desarrollo del pensamiento liberal (Beccaria Montesquieu Fi-lan-gieri Pagano luego Carrara etc) con los materiales del formalismo propio del sistema inquisitivo co-mienza a gestarse una nueva ingenieriacutea institucio-nal del proceso penal orientada a la contencioacuten de la violencia y la arbitrariedad del poder penal de la cual deriva lo que hoy desde Ferrajoli llamamos sis-tema de garantios

Natildeo se pode perder de vista o que jaacute fora discutido ante-riormente isto eacute que as normas bem como todas as instituiccedilotildees sujeitas ao Estado Constitucional de Direito estatildeo vinculadas a uma nova dogmaacutetica juriacutedico-constitucional que apresenta caracteriacutes-ticas dotadas de especial importacircncia na realizaccedilatildeo normativa dos direitos e garantias da Constituiccedilatildeo Logo natildeo eacute (e natildeo seraacute) pos-siacutevel compreender a teoria do prejuiacutezo e as nulidades em processo

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penal como um todo desvinculadas da compreensatildeo de Constitu-cionalismo Contemporacircneo Nessa linha arremata Binder (2000 p 59)

Formas procesales verdad proceso cognitivo prin-cipios del proceso sistema de garantiacuteas y liacutemites al poder penal son un conjunto de conceptos ligados entre siacute en un nivel de fundamento Quien no se si-tuacutee en el universo conformado por esos conceptos y su relacioacuten mutua difiacutecilmente pueda comprender el reacutegimen de las nulidades en el proceso penal

Nesta senda forma no Estado Constitucional de Direito e mais do que nunca dentro da seara processual penal eacute sinocircnimo de garantia Adequada eacute a afirmaccedilatildeo de Lopes Jr (2014 p 1175) de que o ldquoprocesso penal eacute um instrumento de limitaccedilatildeo do poder punitivo do Estado impondo severos limites desse poder e tam-beacutem regras formais para o seu exerciacutecio Eacute a forma um limite ao poder estatalrdquo e mais ldquoa forma eacute uma garantia para o imputado em situaccedilatildeo similar ao princiacutepio da legalidade do direito penalrdquo Co-mungando com essa visatildeo Streck (2010 p 170) pontua que ldquosalta-mos de um legalismo rasteiro que reduzia o elemento central do direito ora a um conceito estrito de lei [] para uma concepccedilatildeo de legalidade que soacute se constitui sob o manto da constitucionali-daderdquo Deduz-se portanto que todo o sistema de garantias e por consequecircncia de limitaccedilatildeo do puniendi estatal deve estar voltado para o reacuteu No entanto essa natildeo eacute a realidade

Nessa perspectiva e ao contraacuterio do que se imaginava a forma tem evitado que garantias constitucionais sejam colocadas em praacutetica e o pior tudo engendrado justamente por aqueles que deveriam garanti-la o inteacuterprete Diante disso introduz-se aqui o segundo ponto a ser analisado a discricionariedade travestida de le-galidade constitucional mas que na verdade tangencia qualquer noccedilatildeo de constitucionalidade Exemplo claro disso eacute o julgamento do habeas corpus nordm 148723SC em que o Superior Tribunal de Jus-ticcedila (STJ 2010 p 9) denegou a ordem de habeas corpus ao paciente que alegava nulidade absoluta em funccedilatildeo de o processo tramitar

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em segredo de justiccedila sem motivaccedilatildeo violando o princiacutepio consti-tucional da publicidade sob o seguinte fundamento

O simples fato de o feito ter tramitado em sigilo com a impliacutecita concordacircncia da Defesa natildeo gera qual-quer nulidade Poderia se cogitar eventual viacutecio em situaccedilatildeo oposta ou seja se natildeo tivesse sido obser-vado o sigilo determinado pela lei No caso contu-do natildeo haacute qualquer maacutecula processual [] natildeo se demonstrou qualquer prejuiacutezo () em decorrecircncia da providecircncia adotada A magistrada esclareceu que a Defesa teve o devido acesso aos autos e o impetrante natildeo alega o contraacuterio (Grifo nosso)

Percebe-se que sob o fundamento da preclusatildeo () a in-devida tramitaccedilatildeo em segredo de justiccedila da Accedilatildeo Penal in casu violando frontalmente ditame constitucional estampado no art 93 IX da CF88 natildeo constitui ldquoqualquer maacutecula processualrdquo Ora eacute sabido que no caso de nulidade absoluta natildeo haacute falar em conva-lidaccedilatildeo tatildeo pouco em preclusatildeo do ato eis que a invalidade pro-cessual pode ser arguida a qualquer tempo enquanto perdurar o processo penal aleacutem disso para que seja reconhecida a nulidade absoluta natildeo eacute necessaacuteria a provocaccedilatildeo da parte interessada po-dendo ser declarada de ofiacutecio pelo juiz e inclusive ser alegada em sede de revisatildeo criminal ou habeas corpus ainda que formada a coisa julgada

Outra questatildeo que toca o objeto do presente trabalho eacute que natildeo haacute falar em demonstraccedilatildeo de prejuiacutezo em nulidades ab-solutas vez que o prejuiacutezo eacute presumido E mais se se entende que ldquoformardquo eacute garantia uma vez violada a ldquoformardquo eacute obvio que tal atipicidade produza dano Apesar disso verifica-se que no exem-plo operou-se a relativizaccedilatildeo da nulidade absoluta e consequen-temente a aplicaccedilatildeo do princiacutepio pas nilliteacute sans grife mesmo sendo caso de nulidade insanaacutevel (absoluta)

Natildeo precisa ser especialista para notar a influecircncia ainda muito presente nos tribunais do animus inquisitivo Nas palavras de Lopes Jr (2014 p 1) ldquopara reconhecer uma nulidade o juiz

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precisa ser lsquoinvocadorsquo mas para ir atraacutes da prova decretar prisatildeo busca e apreensatildeo etc pode e deve atuar de ofiacutecio Olhem o ab-surdordquo E vai aleacutem o autor ao afirmar que determinado ato soacute seraacute declarado nulo ldquoquando o tribunal quiser para quem ele quiser e com o alcance que ele quiser Essa eacute a verdadeira ditadura judicial vivenciada hojerdquo (Idem) Agrave vista disto lanccedila-se mais uma pergun-ta haveria entatildeo soluccedilatildeo para o problema da discricionariedade quanto agrave aplicaccedilatildeo da teoria do prejuiacutezo em processo penal

Lopes Jr (Ibidem) em sua obra Direito Processual Penal apresenta uma possiacutevel saiacuteda O autor propotildee o que ele denomina de ldquoinversatildeo de sinaisrdquo ou seja natildeo seraacute a parte que alega o prejuiacute-zo que deveraacute demonstraacute-lo mas o proacuteprio juiz que para manter a eficaacutecia do ato deveraacute fundamentaacute-lo demonstrando que o ato alcanccedilou sua finalidade ou foi regularmente sanado Este tambeacutem eacute o posicionamento de Badaroacute (2007) para o qual deveraacute ocorrer uma liberaccedilatildeo da carga probatoacuteria por parte da defesa restando ao juiz tal incumbecircncia Isso se justifica uma vez que a defesa dificil-mente conseguiria demonstrar o prejuiacutezo por exemplo em casos de violaccedilatildeo do princiacutepio da publicidade como no caso em anaacutelise Quer dizer qual foi o prejuiacutezo nesse caso se o paciente teve opor-tunidade de alegar o defeito mas natildeo o fez oportunamente Qual foi o prejuiacutezo se o paciente sequer apontou um Ora o prejuiacutezo eacute nada mais que a violaccedilatildeo de uma norma constitucional Ou em outros casos a inobservacircncia de direitos fundamentais

Frisa-se entretanto que por mais que a medida adotada por Lopes Jr seja um grande passo para evitar a violaccedilatildeo de di-reitos e garantias constitucionais soacute ela natildeo satisfaz Afinal nada impediria que o juiz ou o tribunal continuassem tendo atitudes discricionaacuterias e violadoras bastasse apresentar razotildees que para sua consciecircncia legitimariam a inobservacircncia da Constituiccedilatildeo ou de determinada formalidade prevista no processo penal Mais que isso eacute imperioso um conjunto de accedilotildees o que inclui fundamental-mente que juiacutezes e tribunais tenham a correta compreensatildeo do processo penal natildeo mais como um sistema inquisitoacuterio mas como um sistema inexoravelmente inserido em uma nova ordem juriacutedi-

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co-constitucional na qual a forma eacute a maacutexima expressatildeo de garantiaDentro desse conjunto de accedilotildees por sua vez deve perpas-

sar tambeacutem uma maior importacircncia agrave hermenecircutica juriacutedica natildeo como ldquomais um meacutetodordquo ou como ldquoum saber operacionalrdquo mas como um instrumento a fim de se alcanccedilar interpretaccedilotildees fundi-das com a Constituiccedilatildeo Natildeo se pode mais permitir como aponta Streck (2010 p 162) que ldquolsquoo processoprocedimento interpretati-vorsquo possibilit[e]a que o sujeito [] alcance o sentido que mais lhe conveacutem lsquoo real sentido da regra juriacutedicarsquo etcrdquo Natildeo restam duacutevi-das de que no acircmbito da hermenecircutica juriacutedica haacute uma verdadei-ra banalizaccedilatildeo do processo interpretativo pois natildeo se sabe mais o que se deve seguir se ldquoa vontade da leirdquo ou ldquoa vontade do legisla-dorrdquo10 Quando nenhuma delas ldquoresolverdquo aplica-se a ldquovontade do inteacuterpreterdquo e assim em termos de nulidades em processo penal estaacute montada a torre de Babel Como explica Streck (Idem)

o resultado disso eacute que aquilo que comeccedila com (um)a subjetividade ldquocriadorardquo de sentidos (afinal quem pode controlar a ldquovontade do inteacuterpreterdquo pergun-tariam os juristas) acaba em decisionismos e arbi-trariedades interpretativas isto eacute em um ldquomundo juriacutedicordquo em que cada um interpreta como (melhor) lhe conveacutem Enfim o triunfo do sujeito solipsista o Selbstsuumlchtiger

Este portanto eacute justamente o resultado que natildeo se pode esperar quer dizer a subjetividade a discricionariedadearbitra-riedade o decisionismo Nenhum desses comportamentos har-moniza-se com o Estado Constitucional de Direito e deve ser du-ramente combatido por aqueles que acreditam na supremacia da Constituiccedilatildeo Natildeo se pode mais admitir que garantias fundamen-tais sejam violadas a fim de se satisfazer a consciecircncia do inteacuterpre-

10 Streck (2010 p 162) ensina que ldquoalguns autores colocam na consciecircncia do sujeito-juiz o locus da atribuiccedilatildeo de sentido (solipsista) Nesse contexto lsquofilosofia da consciecircnciarsquo e lsquodiscricionariedade judicialrsquo satildeo faces da mesma moeda Haacute ainda juristas filiados agraves antigas teses formalistas propalando que a interpretaccedilatildeo deve buscar a vontade da lei desconsiderando de quem a fez ndash sic ndash e que a lei lsquoterminadarsquo independe de seu passado importando apenas o que estaacute contido em seus preceitos (o texto teria um sentido lsquoem sirsquo)rdquo

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te e pior que isso que tais ilegalidades sejam chanceladas pelos tribunais

Atualmente o decisionismo no acircmbito do processo penal em especial no que diz respeito agraves nulidades processuais estaacute ri-gorosamente arraigado sendo legitimado pela doutrina diga-se de passagem Eacute preciso como jaacute dito um conjunto de accedilotildees dentre as quais a primordial eacute a compreensatildeo do sistema juriacutedico inevita-velmente inseparaacutevel da Constituiccedilatildeo e da ordem juriacutedica por ela estabelecida Compreendido isso chegar-se-aacute agrave conclusatildeo de que a formalidade de fato natildeo pode ser utilizada como um fim em si mesma assim como natildeo pode ser utilizada ao bel prazer de seus inteacuterpretes

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao fim e ao cabo com a construccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo o Direito deve se apresentar justaposto agrave nova dogmaacutetica juriacutedica implantada pelo Estado Constitucional de Di-reito mas natildeo soacute ele Tal exigecircncia deve-se estender peremptoria-mente aos seus ldquooperadoresrdquo quer dizer juiacutezes e tribunais preci-sam ter uma compreensatildeo cada vez mais consubstanciada com a nova ordem juriacutedica tendo em vista a progressiva autonomizaccedilatildeo do Direito que somada agrave incompreensatildeo dos inteacuterpretes da lei na aplicaccedilatildeo do saber tem provocado avalanches de criacuteticas as quais reprovam toda e qualquer atividade discricionaacuteria das autorida-des judiciaacuterias

A tendecircncia do Judiciaacuterio impulsionada por uma maior li-berdade de conformaccedilatildeo do sistema contramajoritaacuterio dos direitos fundamentais e em muitos casos lastreada por um falacioso dis-curso neoconstitucional por violar garantias constitucionais tem sido totalmente questionaacutevel especialmente quando tais violaccedilotildees ocorrem no acircmbito do Direito Penal e Processual Penal conside-rando seu caraacuteter subsidiaacuterio (ultima ratio) Como analisado ante-riormente evidencia-se que o grande desafio entatildeo eacute construir condiccedilotildees que evitem que a atividade jurisdicional (ou a atividade

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dos juiacutezes) se sobreponha ao proacuteprio Direito agrave proacutepria Constitui-ccedilatildeo afinal natildeo eacute em todos os casos que o Direito seraacute o que os tribunais dizem que ele eacute (e como de fato natildeo tem sido)

Esse descompasso entre a atuaccedilatildeo do judiciaacuterio e os ideais constitucionais tem se tornado nocivo para o processual penal vez que muito facilmente se tem subtraiacutedo direitos do reacuteu em prol da consciecircncia do julgador Isso fica muito claro como jaacute visto quan-do o judiciaacuterio passa a relativizar todas as nulidades no acircmbito do processo penal Sem sombra de duacutevidas tal entendimento que tem sido amplamente recepcionado por juiacutezes e tribunais nasceu em funccedilatildeo de uma equivocada recepccedilatildeo de categorias do processo civil a qual diferencia as nulidades absolutas das relativas a partir na natureza da norma ndash norma de interesse puacuteblico ou de interes-se privado Essa equivocada recepccedilatildeo insiste-se tem provocado a violaccedilatildeo dos direitos do reacuteu Primeiro porque no processo penal a forma deve ser vislumbrada como garantia isto eacute garantia contra a arbitrariedade do poder estatal Natildeo eacute por acaso que no processo inquisitivo a informalidade eacute tatildeo apreciada vez que ali o poder eacute melhor distribuiacutedo natildeo existindo limites definidos para a sua atuaccedilatildeo Essa realidade repete-se agrave exaustatildeo eacute altamente noci-va quando aplicada no processo penal levando-se em conta que a proteccedilatildeo do reacuteu eacute puacuteblica da mesma forma que puacuteblicos satildeo os direitos constitucionais que o tutelam

Diante da necessidade de proteccedilatildeo e defesa dos direitos e garantias fundamentais fazem-se essenciais algumas readequa-ccedilotildees procedimentais quanto agrave aplicaccedilatildeo das nulidades no processo penal Nesse passo a denominada ldquoinversatildeo de sinaisrdquo proposta pelo doutrinador Aury Lopes Jr (2014) apresenta-se uma possibi-lidade vez que defende que o ocircnus na demonstraccedilatildeo do prejuiacutezo natildeo ficaraacute mais com a parte que a alega (e que em muitos casos recai sobre o proacuteprio reacuteu) Tal encargo entretanto seraacute direcio-nado ao proacuteprio juiz que para manter a eficaacutecia do ato deveraacute fundamentaacute-lo demonstrando que o ato alcanccedilou sua finalidade ou foi regularmente sanado Por outro lado como apontado por mais que a medida adotada por Lopes Jr seja de grade valia para

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o sistema de garantias constitucionais ela por si soacute natildeo eacute sufi-ciente Em conjunto com essa proposta torna-se fundamental uma tomada de consciecircncia por parte do inteacuterprete quanto agrave relaccedilatildeo entre o sistema de nulidade processual penal e as garantias previs-tas na Constituiccedilatildeo Eacute preciso compreender que tais garantias (no caso as nulidades processuais) foram elaboradas a favor daquele sobre o qual recai o poder do Estado o imputado Seguindo esse raciociacutenio o inteacuterprete natildeo pode sacrificar regras e princiacutepios esta-belecidos constitucionalmente a fim de dar lugar as suas proacuteprias convicccedilotildees aos seus proacuteprios interesses

Nota-se enfim a importacircncia da hermenecircutica juriacutedica no processo de compreensatildeo do Direito como um todo o qual pro-duziraacute reflexos quando da sua aplicaccedilatildeo A superaccedilatildeo da crise de efetividade da Constituiccedilatildeo no acircmbito do Judiciaacuterio (e que haacute mui-to assola o Poder Legislativo e Executivo) em especial quanto ao tema das nulidades no processo penal estaacute inteiramente imbrica-da na retomada de uma legalidade que soacute se fundamenta por meio da constitucionalidade do respeito agrave Constituiccedilatildeo Legalidade esta que natildeo se confunde com o retorno a pensamentos positivistas mas de uma legalidade atraveacutes da qual obedecer agrave Constituiccedilatildeo simboliza um progresso consideraacutevel na defesa de direitos funda-mentais conferidos ao cidadatildeo em especial ao reacuteu

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CAacuteCERES E O DEacuteFICIT DE MORADIAS O CASO DA OCUPACcedilAtildeO DO BAIRRO EMPA

Evely Bocardi de Miranda Saldanha1

Richard Rodrigues da Silva2

RESUMO O presente trabalho analisa a ocupaccedilatildeo irregular ocorrida no bairro Jardim das Oliveiras conhecido popularmente como EMPA em CaacuteceresMT bem como verifica a situaccedilatildeo do acesso agrave moradia dos habitantes no que diz respeito agrave referida aacuterea Cabe destacar que em razatildeo do deacuteficit habitacional existente no municiacutepio a populaccedilatildeo de baixa renda se viu obrigada a ocupar irregularmente o local onde vive e sobrevive sem miacutenimas condiccedilotildees de saneamento infraestrutura baacutesica e qualquer planejamento urbano por parte do Poder Puacuteblico O municiacutepio de Caacuteceres atualmente tem uma populaccedilatildeo de 87942 habitantes segundo Censo do IBGE-2010 o qual estimou que em 2016 estaria com uma populaccedilatildeo de 90881 habitantes sendo que 8707 da populaccedilatildeo de Caacuteceres vivem na aacuterea urbana com incidecircncia de pobreza de 3902 (IBGE 2016) O Programa Minha Casa Minha Vida que atende ao municiacutepio foi criado pelo governo federal para fomentar a produccedilatildeo habitacional para populaccedilatildeo de baixa renda concentrando seus recursos nas accedilotildees de urbanizaccedilatildeo e desenvolvimento de assentamentos precaacuterios como mecanismo de reduccedilatildeo das desigualdades socioespaciais contudo natildeo consegue suprir a necessidade habitacional do municiacutepio

PALAVRAS-CHAVE Direito agrave moradia Deacuteficit habitacional Caacuteceres EMPA

ABSTRACT The present study analyzes the irregular occupation that occurres in the Jardim das Oliveiras neighborhood popularly

1 Profa Mestra em Direitos Humanos do Departamento de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail evelysaldanhagmailcom2 Acadecircmico do 10ordm Semestre do Curso de Direito de CaacuteceresMT da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT E-mail richardsilva1995hotmailcom

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known as EMPA in Caacuteceres MT as well as verify the situation of access to the dwelling of the inhabitants in what pertains to said area Was forced to occupy the place irregularly where it lives and survives without minimum sanitation conditions basic infrastructure and any urban planning by the Public Power The municipality of Caacuteceres currently has a population of 87942 inhabitants according to IBGE-2010 Census which estimated that in 2016 it would have a population of 90881 inhabitants 8707 of the population of Caacuteceres living in the urban area with incidence of poverty of 3902 (IBGE 2016) The My Home My Life Program that serves the municipality was created by the federal government to foster housing production for the low-income population concentrating its resources on urbanization and precarious settlement development as a mechanism to reduce socio-spatial inequalities Cannot meet the housing needs of the municipality

KEYWORDS Right to housing Housing deficit Caacuteceres EMPA

INTRODUCcedilAtildeO

A cidade de CaacuteceresMT assim como a maioria das cida-des brasileiras eacute marcada pela ocupaccedilatildeo espontacircnea ou irregular normalmente pela populaccedilatildeo mais pobre que vive em lugares mais perifeacutericos menos valorizados da cidade e sobrevive sem as miacutenimas condiccedilotildees de infraestrutura e saneamento baacutesico nas aacutereas marginais da cidade sem qualquer planejamento urbano

A proliferaccedilatildeo de processos informais de desenvolvimen-to urbano tem sido uma das principais caracteriacutesticas do processo de urbanizaccedilatildeo no Brasil ldquoAo longo das deacutecadas de crescimen-to urbano mas sobretudo nas uacuteltimas deacutecadas dezenas de mi-lhotildees de brasileiros natildeo tecircm tido acesso ao solo urbano e agrave moradia senatildeo atraveacutes de processos e mecanismos informais ndash e ilegaisrdquo (FERNANDES 2002 p 440)

As principais formas de habitaccedilatildeo produzidas diariamen-te nas cidades brasileiras satildeo loteamentos e conjunto habitacionais irregulares eou clandestinos favelas corticcedilos casa dos fundos ocupaccedilotildees de aacutereas puacuteblicas nas beiras de rios

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O crescimento desordenado das cidades e o processo de favelizaccedilatildeo tecircm avivado grande atenccedilatildeo e discussatildeo acerca dos instrumentos de proteccedilatildeo e defesa do bem-estar dos seus habi-tantes uma vez que a ocupaccedilatildeo desenfreada daacute-se normalmente em aacutereas de risco aacutereas de preservaccedilatildeo ambiental lugares menos valorizados e mais afastados da cidade sem infraestrutura neces-saacuteria como saneamento baacutesico escolas assistecircncia agrave sauacutede trans-porte e lazer para uma vida digna

Normalmente as aacutereas ocupadas irregularmente transfor-maram-se em bairros nos quais predomina a falta de higiene colo-cando os seus moradores sujeitos agraves doenccedilas degradaccedilatildeo social e moradia indigna sem infraestrutura no meio da poeira e da lama

Cabe destacar que a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 traz em seu bojo um marco da ordem urbaniacutestica e prevecirc a poliacutetica de desenvolvimento urbano que ldquotem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantesrdquo (BRASIL on line) conforme dispotildee o seu artigo 182

Em 2001 foi aprovado o Estatuto da Cidade (Lei nordm 102572001) que regulamenta a poliacutetica urbana no Brasil (artigos 182 e 183 da Constituiccedilatildeo Federal) e apresenta-se ldquocomo suporte juriacutedico para a realizaccedilatildeo do planejamento urbano e para a accedilatildeo dos governos municipais traccedilando as diretrizes necessaacuterias para o planejamento e para a conduccedilatildeo do processo de gestatildeo das cida-desrdquo (DIAS 2012 p 43) garantindo qualidade de vida aos habi-tantes e sustentabilidade agrave existecircncia da cidade

O papel do Poder Puacuteblico eacute de grande importacircncia por as-sumir a responsabilidade de criar acesso agrave moradia da populaccedilatildeo de baixa renda e natildeo permitir a criaccedilatildeo de novos loteamentos ir-regulares os quais natildeo tecircm os padrotildees miacutenimos exigidos por lei com a implantaccedilatildeo de serviccedilos baacutesicos e toda infraestrutura como ruas e sistema de drenagem aacutegua encanada serviccedilos de esgoto e coleta de lixo creches e escolas hospitais e etc

Desse modo eacute necessaacuterio que o Poder Puacuteblico elabore poliacuteticas de desenvolvimento urbano que facilitem o acesso agrave mo-

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radia digna e adequada num meio ambiente urbano equilibrado e preservado para as presentes e futuras geraccedilotildees garantindo o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade o bem-estar e a sadia qualidade de vida de seus habitantes

Contudo em que pesem as legislaccedilotildees que garantem o acesso agrave moradia digna em Caacuteceres nos anos 90 ocorreu a ocupa-ccedilatildeo irregular da aacuterea da Empresa Mato-grossense de Pesquisa As-sistecircncia e Extensatildeo Rural - SA (EMPAER-MT)3 instituiacuteda como bairro Jardim das Oliveiras e conhecido popularmente por EMPA pela populaccedilatildeo de baixa renda cacerense que se deu em razatildeo do deacuteficit de moradias existentes no municiacutepio ou seja pela falta de acesso agrave moradia Com a invasatildeo do local houve a construccedilatildeo de moradias precaacuterias pelos ocupantes da aacuterea

Assim o nosso objetivo neste trabalho eacute analisar a ocu-paccedilatildeo irregular ocorrida no bairro Jardim das Oliveiras antigo EMPA no municiacutepio de CaacuteceresMT bem como verificar a situa-ccedilatildeo do direito e acesso agrave moradia dos habitantes

O direito agrave moradia como direitos humanos

O direito agrave moradia eacute um dos nuacutecleos que permite o alcan-ce da dignidade da pessoa humana razatildeo pela qual foi inserido no rol dos direitos humanos desde a proclamaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos em 1948 inaugurando uma nova dimensatildeo de direitos sociais em prol de uma vida digna essenciais ao pleno reconhecimento de sua importacircncia como direito baacutesico e essencial agrave vida humana

Em 1966 foi aprovado o principal documento de proteccedilatildeo aos direitos sociais no acircmbito das Naccedilotildees Unidas o Pacto Interna-cional de Direitos Econocircmicos Sociais e Culturais ldquoquando pela primeira vez o termo moradia surgiurdquo (SOUZA 2013 p 56)

O Pacto Internacional de Direitos Econocircmicos Sociais e

3 Empresa Mato-Grossense de Pesquisa Assistecircncia e Extensatildeo Rural - SA eacute uma socie-dade de economia mista vinculada agrave Secretaria de Agricultura e Assuntos Fundiaacuterios do Estado de Mato Grosso dotada de personalidade juriacutedica de direito privado com patrimocirc-nio proacuteprio e autonomia administrativa e financeira estabelecida em Cuiabaacute-MT

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Culturais de 1966 em seu artigo 11 prevecirc que ldquoos Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um niacutevel de vida adequado para si proacuteprio e para sua famiacutelia inclusive agrave alimentaccedilatildeo vestimenta e moradia adequadas assim como uma melhoria contiacutenua de suas condiccedilotildees de vidardquo (ONU 1966)

Jaacute em 1976 foi realizada em Vancouver no Canadaacute a pri-meira Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Assentamentos Urba-nos que adotou a Declaraccedilatildeo sobre Assentamentos Humanos de Vancouver na qual o olhar sobre a habitaccedilatildeo e a moradia foi feito na perspectiva dos assentamentos humanos (human settlements)

As razotildees que motivaram a realizaccedilatildeo da Conferecircncia es-tatildeo expressas na Declaraccedilatildeo de Vancouver sobre os Assentamen-tos Humanos que apresenta os princiacutepios gerais e propostas para accedilotildees efetivas no sentido de melhorar a qualidade de vida dos in-diviacuteduos nos assentamentos humanos e ainda refere-se agraves peacutessi-mas condiccedilotildees de vida e agraves dificuldades em satisfazer as necessi-dades baacutesicas dos indiviacuteduos como emprego moradia serviccedilos de sauacutede educaccedilatildeo e recreaccedilatildeo e as aspiraccedilotildees condizentes com os princiacutepios da dignidade humana (GOMES 2005)

A Declaraccedilatildeo de Vancouver detalha os assentamentos hu-manos e destaca o problema para melhorar a qualidade de vida dos indiviacuteduos e traz a moradia como elemento indispensaacutevel do programa de accedilatildeo e poliacutetica dos Estados para uma vida digna de seus indiviacuteduos

Merece destaque a Agenda 21 adotada na Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento rea-lizada no Rio de Janeiro em 1992 que em seu capiacutetulo VII item 6 prevecirc o direito de ldquoacesso a uma habitaccedilatildeo sadia e segura eacute es-sencial para o bem-estar econocircmico social psicoloacutegico e fiacutesico da pessoa humana e deve ser parte fundamental das accedilotildees de acircmbito nacional e internacionalrdquo (SAULE JUNIOR 1999 p 82)

Em 1996 um importante instrumento internacional so-bre o direito agrave moradia foi inaugurado e adotado na Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Assentamentos Humanos ndash Habitat II realizada em Istambul a Agenda Habitat ldquoque teve como temas

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globais a Adequada Habitaccedilatildeo para Todos e o Desenvolvimento de Assentamentos Humanos Sustentaacuteveis em um Mundo em Ur-banizaccedilatildeordquo (Idem)

A Agenda Habitat estabelece que o direito agrave moradia com-preenda a habitaccedilatildeo adequada sadia acessiacutevel e disponiacutevel segu-ra protegida com a inclusatildeo de serviccedilos baacutesicos como aacutegua ener-gia saneamento baacutesico coleta de lixo e etc baseada no bem-estar e melhor qualidade de vida para seus habitantes

Assim o direito agrave moradia foi expressamente reconheci-do como um direito humano incluiacutedo no rol dos direitos sociais e que tem por finalidade garantir um niacutevel de vida adequado ao ser humano e sua famiacutelia assim como uma melhoria contiacutenua das condiccedilotildees de vida

O Brasil reconheceu a importacircncia do direito de acesso agrave moradia quando inseriu o direito agrave moradia na Constituiccedilatildeo Fe-deral com a Emenda Constitucional nordm 262000 como direito so-cial fundamental E ainda o Estatuto da Cidade ndash Lei Federal nordm 102572001 ndash que prevecirc o direito agrave moradia como sendo um dos objetivos da poliacutetica urbana

Do mesmo modo no acircmbito do municiacutepio de CaacuteceresMT as diretrizes e os objetivos previstos na Constituiccedilatildeo Federal e no Estatuto da Cidade foram contemplados no Plano Diretor do Municiacutepio ndash Lei Complementar Municipal nordm 902010 que em seu art 81 inciso VI garante ldquoo acesso agrave moradia digna com a amplia-ccedilatildeo da oferta de habitaccedilatildeo para as faixas de renda meacutedia e baixardquo (CAacuteCERES Lei complementar nordm 90 2010)

No entanto diante da realidade brasileira e cacerense haacute um descompasso uma vez que eacute assegurado o direito agrave moradia como sendo indispensaacutevel agrave vida humana poreacutem a populaccedilatildeo estaacute longe de gozaacute-lo e de ter acesso agrave moradia digna o que vere-mos a seguir

O deacuteficit de moradias e a realidade cacerense

O Brasil enfrenta um dos seus maiores problemas sociais

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o deacuteficit habitacional que hoje estaacute estimado em 6 milhotildees de mo-radias (CBIC 2014) Caacuteceres assim como os demais municiacutepios brasileiros tambeacutem enfrenta seacuterios problemas na aacuterea de habita-ccedilatildeo Em 2011 havia um deacuteficit habitacional em Caacuteceres que chega-va a 8 mil casas (CAacuteCERES 2014)

O municiacutepio de Caacuteceres atualmente tem uma populaccedilatildeo de 87942 habitantes segundo Censo do IBGE-2010 o qual esti-mou que em 2016 estaria com uma populaccedilatildeo de 90881 habitantes sendo que 8707 da populaccedilatildeo de Caacuteceres vivem na aacuterea urbana com incidecircncia de pobreza de 3902 (IBGE estimativa de popu-laccedilatildeo 2016)

O Programa Minha Casa Minha Vida do governo federal instituiacutedo haacute aproximadamente 7 anos tem ofertado aos habitan-tes cacerenses com renda ateacute R$ 160000 o acesso agrave moradia no entanto essa oferta natildeo tem sido suficiente para suprir o deacuteficit habitacional no municiacutepio e segundo o secretaacuterio de Accedilatildeo Social Claudio Henrique Donatoni em 2016 ldquoCaacuteceres ainda possui um deacuteficit habitacional para famiacutelias de baixa renda de aproximada-mente 7 mil moradiasrdquo (TEIXEIRA 2016)

A poliacutetica habitacional no Brasil enfrenta seacuterios proble-mas desde a extinccedilatildeo do Banco Nacional de Habitaccedilatildeo (BNH) em 1986 em razatildeo da descontinuidade do enfrentamento do deacuteficit de moradia pela perda de capacidade de formulaccedilatildeo de poliacuteticas em niacutevel federal e do encolhimento de recursos destinados agraves poliacuteti-cas urbanas A partir de 1988 com a redemocratizaccedilatildeo promovida pela Constituiccedilatildeo Federal o setor habitacional passou a depender da iniciativa municipal (CARDOSO et al 2011)

Segundo Cardoso et al (Idem) ldquoentre 1986 e 2003 a poliacute-tica habitacional em niacutevel federal mostrou fragilidade institucional e descontinuidade administrativa com reduzido grau de planeja-mento e baixa integraccedilatildeo agraves outras poliacuteticas urbanasrdquo

Em Caacuteceres entre os anos 1986 e 2003 natildeo se tem notiacutecias de programas habitacionais com ofertas de moradia agrave populaccedilatildeo de baixa renda tanto que na deacutecada de 90 ocorreram a invasatildeo e a ocupaccedilatildeo da aacuterea da Empresa Mato-grossense de Pesquisa Assis-

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tecircncia e Extensatildeo Rural - SA - EMPAER-MTO bairro Jardim das Oliveiras conhecido popularmente

como EMPA estaacute localizado agrave margem esquerda do Rio Paraguai e nasceu a partir de uma ocupaccedilatildeo irregular em terras doadas pelo Municiacutepio de Caacuteceres-MT agrave Empresa Mato-grossense de Pesquisa Assistecircncia e Extensatildeo Rural - SA - EMPAER-MT mediante escri-tura puacuteblica de doaccedilatildeo de uma aacuterea de 1301873 ha sob matriacutecula nordm 42654 do 1ordm Ofiacutecio - Serviccedilos Notariais e Registrais da Comarca de CaacuteceresMT Todavia apoacutes alguns anos de funcionamento a empresa deixou de realizar suas pesquisas abandonando o local e as instalaccedilotildees o que favoreceu a invasatildeo da aacuterea em razatildeo da falta de oferta de acesso agrave moradia no municiacutepio O bairro EMPA estaacute localizado na periferia do municiacutepio de Caacuteceres e a sua ocupaccedilatildeo inicial foi realizada pela populaccedilatildeo de baixa renda por se tratar de aacuterea abandonada por empresa do Estado situada longe da centra-lidade da cidade

Cabe destacar que somente a partir de 2003 no Brasil ini-ciou ldquoum movimento mais sistemaacutetico para a construccedilatildeo de uma poliacutetica habitacional mais estaacutevelrdquo (CARDOSO et al 2011) Foi criada a Secretaria Nacional de Habitaccedilatildeo no acircmbito do Minis-teacuterio das Cidades com o objetivo de dar sequecircncia ao projeto de moradia com o propoacutesito de reforccedilar o papel estrateacutegico das admi-nistraccedilotildees locais (municipais) articular institucional e financeira-mente com outros niacuteveis de governo a partir do Sistema Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social (Ibidem)

Para se integrar ao novo Sistema Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social os estados e municiacutepios deveriam ldquoaderir agrave es-trutura de criaccedilatildeo de fundos conselhos e planos locais de Habita-ccedilatildeo de Interesse Social (HIS) de forma a garantir sustentabilidade racionalidade e sobretudo a participaccedilatildeo democraacutetica na defini-ccedilatildeo e implementaccedilatildeo dos programas e projetosrdquo (CARDOSO et al 2011 p 2) E a partir da criaccedilatildeo do Fundo Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social ndash FNHIS a possibilidade de repasse de recursos aos municiacutepios e estados para implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo das po-liacuteticas habitacionais

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Segundo Cardoso et al (2011 p 2) ldquoentre 2006 e 2009 fo-ram alocados no FNHIS recursos da ordem de 44 bilhotildees de reais beneficiando mais de 4400 projetosrdquo para investimento habitacio-nal No ano de 2007 foi lanccedilado pelo governo federal o Plano de Aceleraccedilatildeo do Crescimento - PAC com o objetivo de promover o crescimento econocircmico e investimentos em infraestrutura no qual houve previsatildeo de investimentos em habitaccedilatildeo e saneamento ur-bano

No ano de 2008 mesmo com a crise mundial o governo brasileiro sustentou os investimentos puacuteblicos na aacuterea de infraes-trutura com destaque na aacuterea de habitaccedilatildeo em razatildeo do PAC E em marccedilo de 2009 anunciou o Programa Minha Casa Minha Vida com o objetivo de ampliaccedilatildeo do mercado habitacional para aten-dimento familiar com renda de ateacute 10 salaacuterios miacutenimos no qual estabeleceu um patamar de subsiacutedio direto e proporcional agrave renda das famiacutelias (CARDOSO et al 2011)

Assim o Programa Minha Casa Minha Vida foi criado para fomentar a produccedilatildeo habitacional no Brasil para populaccedilatildeo de baixa renda com auxiacutelio e participaccedilatildeo do setor privado con-centrando seus recursos nas accedilotildees de urbanizaccedilatildeo e desenvolvi-mento de assentamentos precaacuterios por orientaccedilatildeo do Ministeacuterio das Cidades como mecanismo de reduccedilatildeo das desigualdades so-cioespaciais

Em Caacuteceres a partir de 2009 iniciou-se uma poliacutetica habi-tacional com oferta de moradia agrave populaccedilatildeo de baixa renda com a implementaccedilatildeo do Programa Minha Casa Minha Vida no entanto a demanda por moradia estaacute longe de ser suprida uma vez que ainda haacute um deacuteficit habitacional de 7 mil moradias (TEIXEIRA 2016)

Vale ressaltar que a moradia compreendida aleacutem de mero teto deve ser digna e abarcar a integraccedilatildeo com a cidade em seu en-torno com disponibilidade de infraestrutura urbana e acesso aos serviccedilos puacuteblicos como oportunidades de emprego profissionali-zaccedilatildeoeducaccedilatildeo seguranccedila transporte acesso agrave justiccedila a existecircn-cia de aacutereas de lazer e outros que se caracterizam como inclusatildeo

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ao direito agrave cidade e ao exerciacutecio de cidadaniaA partir do estudo realizado observou-se que no Bairro

EMPA natildeo uma haacute integraccedilatildeo do bairro com a cidade os mora-dores satildeo privados de diversos serviccedilos puacuteblicos e infraestrutura baacutesica como coleta de lixo aacutegua tratada ldquono bairro existe apenas uma escola municipal que fornece o ensino fundamental sendo assim apoacutes terminar o ensino fundamental o estudante tem que procurar outra escola que fica distante para terminar o ensino meacute-diordquo (COSTA et al 2014) e natildeo houve uma preocupaccedilatildeo do Poder Puacuteblico em realizar a regularizaccedilatildeo fundiaacuteria da aacuterea

Segundo Coy et al (1994 p 91) em Caacuteceres nos depara-mos com

Um desenvolvimento completamente desordenado no contexto urbano causado pelo processo migratoacute-rio e pela expulsatildeo do homem do campo para a ci-dade E assim grandes aacutereas urbanizadas surgiram de invasotildees e de grilagem e mais de 50 dos lotes urbanos particulares em Caacuteceres natildeo tem documen-tos nenhum tiacutetulo somente posse

De acordo com Dan (2010 p 94) ldquoa urbanizaccedilatildeo reflete determinadas relaccedilotildees sociais assim como as contradiccedilotildees da eco-nomia de mercado e tambeacutem as desigualdades sociais marcadas pela estratificaccedilatildeo e pela produccedilatildeo setorizada do espaccedilo urbanordquo

Verifica-se que o espaccedilo urbano cacerense eacute fragmentado e explorado com contradiccedilotildees entre abundacircncia e escassez ricos e pobres centralidade e periferia havendo portanto uma enorme desigualdade social e falta de acesso agrave moradia digna

Para Santin e Mattia (2007 p 2)

A ocupaccedilatildeo veloz e desordenada das cidades gerou entre outros problemas como a deterioraccedilatildeo do am-biente urbano desorganizaccedilatildeo social falta de habi-taccedilatildeo desemprego loteamentos clandestinos sem saneamento baacutesico muitos em aacutereas de preservaccedilatildeo ambiental construccedilotildees em desacordo com as nor-mas municipais atividades comerciais invadindo

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aacutereas residenciais sem respeito agraves regras de zonea-mento traacutefego intenso falta de ruas pavimentadas inviabilizando o acesso da poliacutecia de ambulacircncias da coleta de lixo ausecircncia de iluminaccedilatildeo puacuteblica Enfim uma cadeia de problemas que se constituem em consequecircncia da urbanizaccedilatildeo desordenada

Deste modo eacute necessaacuterio que o Poder Puacuteblico crie poliacuteti-cas puacuteblicas que estabeleccedilam nos dizeres de Milton Santos (2007 p 41) ldquoos alicerces de um espaccedilo verdadeiramente humano de um espaccedilo que possa unir os homens para e por seu trabalho mas natildeo para em seguida dividi-los em classes em exploradores e ex-ploradosrdquo

Emergem assim a necessidade de integraccedilatildeo e a conver-gecircncia das poliacuteticas puacuteblicas e planejamento urbano a partir de atividades e responsabilidades sociais voltadas agrave moradia e agrave cons-truccedilatildeo da qualidade de vida urbana nas periferias como eacute o caso do EMPA para a promoccedilatildeo da sustentabilidade do espaccedilo urbano e na construccedilatildeo de uma cidade mais justa

CONCLUSAtildeO

O Poder Puacuteblico deve buscar a implementaccedilatildeo das dimen-sotildees fundamentais propostas pelo Estatuto da Cidade para a con-solidaccedilatildeo da ordem constitucional de desenvolvimento urbano na elaboraccedilatildeo de uma poliacutetica urbana que ordene e discipline a ocu-paccedilatildeo do espaccedilo a partir de uma gestatildeo democraacutetica e de acesso agrave moradia contribuindo para a qualidade de vida dos habitantes da cidade

Eacute preciso investimento puacuteblico no acesso agrave moradia digna na regularizaccedilatildeo fundiaacuteria urbana na infraestrutura entre outros para evitar as mazelas sociais e conflitos relacionados ao planeja-mento gestatildeo propriedade apropriaccedilatildeo e uso do solo nas aacutereas urbanas como ocorreu no caso do bairro EMPA

Deste modo o desafio maior para a soluccedilatildeo dos problemas urbanos enfrentados em Caacuteceres natildeo se refere somente agrave legisla-

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ccedilatildeo mas agrave formulaccedilatildeo de estrateacutegias e elaboraccedilatildeo de poliacuteticas puacute-blicas mais eficazes que garantam o acesso de todos ao mercado habitacional constituindo planos e programas habitacionais que atendam agrave populaccedilatildeo de baixa renda que natildeo tem acesso agrave mora-dia e vive em condiccedilotildees precaacuterias de habitabilidade

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PROVA NO HOMICIacuteDIO SEM CADAacuteVER

Gabrielle Vidrago de Souza Machado1

Solange Teresinha Carvalho Pissolato2

RESUMO Este estudo objetiva demonstrar a possibilidade do pronunciamento e condenaccedilatildeo do agente pela praacutetica do crime de homiciacutedio sua materialidade e quais provas poderatildeo ser utilizadas no decorrer do processo mesmo tendo a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo real do fato e abordar a importacircncia das provas no decorrer do processo penal pois satildeo elas que levaratildeo agrave descoberta da verdade real Foi realizada pesquisa bibliograacutefica leitura da legislaccedilatildeo de doutrinas artigos e jurisprudecircncias Destacou-se ainda o estudo de dois julgados de crime de homiciacutedio sem que o cadaacutever fosse encontrado O que estaacute em questatildeo eacute o modo de provar que o crime realmente aconteceu pois quando natildeo haacute o corpo da viacutetima que no caso do homiciacutedio eacute a materialidade do crime impossibilitando a realizaccedilatildeo do exame de corpo de delito direto surge entatildeo a possibilidade da utilizaccedilatildeo de outros meios de prova ou seja a realizaccedilatildeo do exame de corpo de delito indireto que eacute obtido atraveacutes de testemunhas somadas aos vestiacutegios deixados pelo crime Conclui-se que a inexistecircncia do cadaacutever natildeo poderaacute deixar o reacuteu impune podendo ele ser denunciado pronunciado e posteriormente condenado pela praacutetica do crime

PALAVRAS-CHAVE Provas Crime material Exame de corpo de delito

ABSTRACT This study aimes to demonstrate the possibility of pronouncing and condemning the perpetrator for the homicide crime its materiality and which evidence may be used during the process even though the absence of the corpse for actual evidence of the fact and addresse the importance of evidence during the course of criminal proceedings since they are the ones that will lead

1 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Diamantino-MT2 Professora Mestranda do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Diamantino-MT

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to the discovery of the real truth A bibliographical research was carried out the reading of doctrines articles and jurisprudence It was also highlighted the study of two felony murder trials without the corpse being found What is at issue is the way of proving that the crime really happened because when there is not the body of the victim that in the case of the murder is the materiality of the crime making it impossible to carry out the examination of a direct crime body then the possibility of The use of other means of proof that is the conduct of the examination of an indirect offense that is obtained through witnesses added to the traces left by the crime It is concluded that the non-existence of the corpse cannot leave the defendant unpunished being able to be denounced pronounced and later condemned by the practice of the crime

KEYWORDS Evidence Crime material Examination of corps of crime

INTRODUCcedilAtildeO

A preocupaccedilatildeo deste trabalho centrou-se na possibilidade de deixar algueacutem impune de responsabilizaccedilatildeo no crime de homi-ciacutedio diante da ausecircncia do corpo da viacutetima para comprovar a ma-terialidade do crime Nesse cenaacuterio surgem as chamadas provas do crime A prova material do homiciacutedio se mostra relevante para que haja a condenaccedilatildeo do agente e ainda para comprovaccedilatildeo do de-lito Quando nos referimos ao crime de homiciacutedio haacute uma grande repercussatildeo na sociedade visto que eacute o delito que desperta maior interesse na populaccedilatildeo pois se trata do bem mais precioso que o homem possui a vida

As discussotildees surgem devido agrave ausecircncia do cadaacutever pois o crime de homiciacutedio se consubstancia no exame de corpo de delito direto e por consequecircncia no respectivo laudo que o atesta

O presente artigo tem por escopo analisar com breves consideraccedilotildees tal situaccedilatildeo visto que de um lado temos os prin-ciacutepios do Estado Democraacutetico de Direito que satildeo abalados diante da incerteza de uma condenaccedilatildeo por outro lado surge o receio de

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deixar impune o agente que comete um crime tatildeo grave No caso em questatildeo questiona-se se eacute possiacutevel juridicamente processar o reacuteu sem o cadaacutever pois o delito qual seja o homiciacutedio exige dois aspectos para a denuacutencia indiacutecio de autoria e a materialidade A materialidade seria no caso o cadaacutever mas eis que surge a duacutevida como condenar algueacutem por homiciacutedio sem o corpo da viacutetima A pergunta que se faz eacute seria possiacutevel ficar um acusado impune pela inexistecircncia de cadaacutever em um crime de homiciacutedio

Importante destacar que muitas pessoas leigas na aacuterea juriacutedica natildeo concordam com o fato de um cidadatildeo ser condena-do por um crime em que natildeo haacute prova concreta da sua existecircncia Poreacutem a importacircncia do presente estudo eacute justamente demons-trar que se natildeo houvesse a possibilidade de condenaccedilatildeo em nosso ordenamento juriacutedico em muito facilitaria para o agente planejar e praticar o delito de forma que o corpo natildeo aparecesse para com-provaccedilatildeo do crime Contudo a robustez das provas pode levar o culpado agrave condenaccedilatildeo

O estudo teve como aporte a realizaccedilatildeo de uma pesquisa bibliograacutefica leitura de doutrinas artigos e jurisprudecircncias Des-tacou-se ainda o estudo de dois julgados brasileiros de crime de homiciacutedio sem que o cadaacutever fosse encontrado objetivando assim descrever a importacircncia das provas no decorrer do processo penal pois satildeo elas os meios de se descobrir a verdade real do crime O que eacute relevante destacar eacute o modo de provar que o crime realmente ocorreu independentemente da existecircncia do cadaacutever oportuni-zando assim a condenaccedilatildeo do agente delituoso

DA PROVA NO PROCESSO PENAL

Conceito

Processualmente falando a prova eacute o meio eficaz para se chegar agrave verdade sendo tambeacutem a forma de o juiz formar sua con-vicccedilatildeo a respeito da existecircncia ou inexistecircncia de um fato para que se possa assim decidir e prolatar a sentenccedila mais justa possiacutevel

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Nucci (2007 p 335) menciona sobre o tema

O termo prova origina-se do latim ndash probatio ndash que significa ensaio verificaccedilatildeo inspeccedilatildeo exame argu-mento razatildeo aprovaccedilatildeo ou confirmaccedilatildeo Dele deri-va o verbo provar ndash probare ndash significando ensaiar verificar examinar reconhecer por experiecircncia aprovar estar satisfeito com algo persuadir algueacutem a alguma coisa ou demonstrar

Assim o termo ldquoprovardquo trata de todos os elementos capa-zes de demonstrar a existecircncia ou natildeo de determinado fato Ressal-ta-se ainda seu valor por ser o meio de formaccedilatildeo da convicccedilatildeo do juiz que iraacute utilizar todas as provas encontradas como base para fundamentaccedilatildeo da sentenccedila Em consonacircncia com a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 todas as decisotildees judiciais devem ser fundamen-tadas conforme a disposiccedilatildeo do artigo 93 inciso IX

Objeto da prova

A finalidade da prova no direito processual como jaacute ex-posto acima eacute a formaccedilatildeo da convicccedilatildeo do juiz Conceitua-se como objeto da prova todos os fatos acontecimentos que devem ser re-velados no processo a fim de que o juiz possa utilizaacute-los como ins-trumento de autenticidade para resolver o litiacutegio e atribuir valor a cada fato

Ocircnus da prova

A regra do Coacutedigo de Processo Penal (CPP) eacute a de que o ocircnus da prova incumbe a quem o alega O Art 156 desse Coacutedigo assim dispotildee ldquoA prova da alegaccedilatildeo incumbiraacute a quem a fizer mas o Juiz poderaacute no curso da instruccedilatildeo ou antes de proferir sentenccedila determinar de ofiacutecio diligecircncias para dirimir duacutevidas sobre o pon-to relevanterdquo

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Sujeitos da prova

No que se refere ao sujeito a prova poderaacute ser real (coisa) ou pessoal Diz que se refere ao pessoal quando a prova resultar da vontade racional do indiviacuteduo Nesse caso necessitaraacute de uma declaraccedilatildeo da pessoa com o propoacutesito de estampar a verdadeira realidade dos fatos A prova real equivale agrave atestaccedilatildeo que adveacutem da proacutepria coisa constitutiva da prova como ferimento o projeacutetil baliacutestico (LIMA 2013)

Do valor da prova

No tocante aos efeitos e valor da prova esta poderaacute ser plena (quando se tratar daquelas provas sem sombra de duacutevida que o magistrado ao deparar com tais provas teraacute certeza de sua veracidade) ou natildeo plena e tambeacutem chamada de indiciaacuteria (quan-do o juiz ao apreciaacute-las verifica que tem a possibilidade de ser uma prova veriacutedica mas natildeo haacute uma certeza) Para Taacutevora (2013 p 348) ldquoeacute o grau de certeza gerado pela apreciaccedilatildeo da provardquo

a) Plena - Prova convincente e verossiacutemilb) Indiciaacuteria ou natildeo plena ndash Natildeo haacute certeza sobre o fato e

satildeo tratadas como indiacutecios Podemos ver que haacute uma ligaccedilatildeo desses efeitos da prova

com os dois princiacutepios o princiacutepio do in dubio pro reo e o in duacutebio pro societate

Quando por meio de uma prova o juiz natildeo conseguir ob-ter um juiacutezo real sobre o fato ser veriacutedico ou natildeo prevalecendo a incerteza ele deveraacute absolver o reacuteu e nesse caso surge o princiacutepio do in duacutebio pro reo Todavia se o juiz ao averiguar as provas tiver um juiacutezo de esperanccedila e a hipoacutetese dela ser veriacutedica ele poderaacute usar o princiacutepio do in duacutebio pro societate podendo por exemplo decretar a prisatildeo preventiva de algueacutem para proteger os interesses da sociedade em razatildeo da hipoacutetese de o fato ser verdadeiro

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Sistema de valoraccedilatildeo das provas

A apreciaccedilatildeo das provas foi evoluindo conforme o costu-me e o regime poliacutetico de cada povo Importante salientar que esse sistema se formou e se amoldou conforme os anos (DINAMAR-CO 2001)

Nucci (2015 p 345) esclarece sobre os trecircs sistemasa) livre convicccedilatildeo que eacute o meacutetodo concernente agrave va-loraccedilatildeo livre ou agrave intima convicccedilatildeo do magistrado natildeo haacute necessidade de motivaccedilatildeo para as decisotildees sistema adotado no Tribunal do Juacuteri b) prova legal cujo meacutetodo eacute ligado agrave valoraccedilatildeo taxada ou tarifa-da da prova c) persuasatildeo racional que eacute o meacutetodo misto tambeacutem chamado de convencimento racional livre motivado apreciaccedilatildeo fundamentada ou prova fundamentada

Trata-se do sistema adotado majoritariamente pelo pro-cesso penal brasileiro com fundamento na Constituiccedilatildeo Federal (art 93 inciso IX)

Princiacutepios que norteiam a prova

Dispotildee Nucci (2007 p76) nesse sentido ldquoPrinciacutepio juriacute-dico quer dizer um postulado que se irradia por todo o sistema de normas fornecendo um padratildeo de interpretaccedilatildeo integraccedilatildeo conhecimento e aplicaccedilatildeo do direito positivo estabelecendo uma meta maior a seguirrdquo Dentre os princiacutepios estatildeo Iniciativa das Partes Contraditoacuterio e Ampla Defesa Juiz Natural Verdade Real Publicidade Presunccedilatildeo de Inocecircncia Duplo Grau de Jurisdiccedilatildeo

Lima (2013) faz menccedilatildeo ao princiacutepio da proporcionalida-de da comunhatildeo da prova da autorresponsabilidade das partes da oralidade e liberdade probatoacuteria

OS MEIOS DE PROVA

Os meios de prova satildeo todas as provas que podem ser em-

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pregadas dentro do processo excetuando-se as natildeo permitidas por lei Logo a prova iliacutecita natildeo pode ingressar nos autos do processo A sanccedilatildeo prevista na Constituiccedilatildeo para a prova reconhecida iliacutecita eacute a sua inadmissibilidade devendo ser desentranhada dos autos (LIMA 2013)

Taacutevora (2013 p 349) descreve que ldquoOs meios de prova satildeo os recursos de percepccedilatildeo da realidade e formaccedilatildeo do convenci-mento Eacute tudo aquilo que pode ser utilizado direta ou indireta-mente para demonstrar o que se alega no processordquo

As provas que evidenciam o fato arrolado no Coacutedigo de Processo Penal natildeo satildeo taxativas e sim exemplificativas se fossem taxativas poderiam conter o culpado de trazer ao processo con-cretas provas que teriam um valor relevante em seu julgamento ademais poderia prejudicar justamente os princiacutepios da verdade real o princiacutepio do contraditoacuterio ampla defesa e o princiacutepio da liberdade das provas

Deste modo esclarece Mirabete (2006 p 252)

Como no processo penal brasileiro vige o princiacutepio da verdade real natildeo haacute limitaccedilatildeo dos meios de pro-va A busca da verdade material ou real que preside a atividade probatoacuteria do juiz exige que os requi-sitos da prova em sentido objetivo se reduzam ao miacutenimo de modo que as partes possam utilizar-se dos meios de prova com ampla liberdade Visando o processo penal o interesse puacuteblico ou social de re-pressatildeo ao crime qualquer limitaccedilatildeo agrave prova preju-dica a obtenccedilatildeo da verdade real e portanto a justa aplicaccedilatildeo da lei

Costuma-se relatar que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto aos meios de prova quando se pretende alcanccedilar a verdade real visto que a investigaccedilatildeo tem a necessidade de ser a mais vasta possiacutevel visan-do como propoacutesito principal conseguir a veracidade do fato da autoria e das circunstacircncias do crime Contudo a liberdade proba-toacuteria natildeo eacute absoluta uma vez que vamos nos deparar com restri-ccedilotildees prescritas pela lei para determinados casos

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Para que ocorra a condenaccedilatildeo eacute necessaacuterio ter a certeza quanto agrave materialidade do crime e sua autoria Desta forma o ma-gistrado busca saber o que realmente ocorreu de que forma ocor-reu quem incorreu para a infraccedilatildeo e todas as suas circunstacircncias Vigora assim no processo penal o princiacutepio da verdade real

Defende Tourinho Filho (2011 p 62)

Melhor seria falar de ldquoverdade processualrdquo ou ldquover-dade forenserdquo ateacute porque por mais que o Juiz pro-cure fazer a reconstruccedilatildeo histoacuterica do fato objeto do processo muitas e muitas vezes o material de que ele se vale poderaacute conduzi-lo a uma ldquofalsa verdade realrdquo

Em suma o ldquoprinciacutepio da verdade real significa pois que o magistrado deve buscar provas tanto quanto as partes natildeo se contentando com o que lhe eacute apresentado simplesmenterdquo (NUC-CI 2008 p 105)

Espeacutecies de provas liacutecitas

Possuiacutemos em nosso ordenamento juriacutedico as provas que natildeo contrariam o que a lei estabelece e nem mesmo os bons cos-tumes Abaixo veremos as provas que poderatildeo ser produzidas e posteriormente aceitas

Da declaraccedilatildeo do ofendido

Ofendido eacute o sujeito passivo do crime o titular do direito ofendido Somente participaraacute e teraacute o direito de depor no proces-so penal se for pessoa fiacutesica

O artigo 201 do Coacutedigo de Processo Penal preceitua ldquoSem-pre que possiacutevel o ofendido seraacute qualificado e perguntado sobre as circunstacircncias da infraccedilatildeo quem seja ou presuma ser o seu au-tor as provas que possa indicar tomando-se por termo as suas declaraccedilotildeesrdquo

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Das testemunhas

A prova testemunhal tem sua previsatildeo expressa no artigo 202 do Coacutedigo de Processo Penal

Segundo o ilustre doutrinador Norberto Avena (2011 p 319) ldquo[] Pode testemunhar em juiacutezo qualquer indiviacuteduo que tenha condiccedilotildees de perceber os acontecimentos ao seu redor e narrar o resultado destas suas percepccedilotildees independente de sua integridade mental idade e condiccedilotildees fiacutesicasrdquo

Como regra contida no artigo 342 do CP e 206 do CPP as pessoas tecircm o dever de testemunhar Quando a testemunha for intimada e natildeo comparecer sem motivo justificaacutevel o artigo 218 do CPP autoriza a sua conduccedilatildeo de forma coercitiva conforme deter-minaccedilatildeo do juiz e se sujeita a um processo-crime por desobediecircn-cia

O Artigo 206 do aludido Coacutedigo de Processo Penal precei-tua as pessoas que estatildeo dispensadas de depor tais como os pa-rentes mais proacuteximos como ascendente ou descendente o afim em linha reta o cocircnjuge ainda que desquitado o irmatildeo e o pai a matildee ou o filho adotivo do acusado natildeo satildeo obrigados a depor mas se natildeo for possiacutevel solucionar o crime por outro meio de prova eles poderatildeo prestar depoimento contudo seratildeo ouvidos como meros informantes do juiacutezo ou declarantes sendo ainda dispensados de prestar compromisso da verdade real dos fatos

Jaacute o art 207 do CPP nos remete agraves pessoas que satildeo proi-bidas de depor se refere agraves pessoas que devem guardar sigilo em razatildeo de funccedilatildeo ministeacuterio oficio ou profissatildeo assim dispotildee ldquoSatildeo proibidas de depor as pessoas que em razatildeo de funccedilatildeo ministeacuterio ofiacutecio ou profissatildeo devam guardar segredo salvo se desobrigadas pela parte interessada quiserem dar o seu testemunhordquo

Periacutecia

A Prova Pericial estaacute prevista nos artigos 158 a 184 do Coacute-digo de Processo Penal Compreende-se por periacutecia o exame con-duzido por pessoa que possua certos entendimentos teacutecnicos cien-

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tiacuteficos artiacutesticos ou praacuteticos sobre ocorrecircncias eventualidades ou condiccedilotildees pessoais ligados ao fato condenaacutevel com o propoacutesito de provaacute-los

Na hipoacutetese do exame do corpo de delito assim como em outras periacutecias a lei prevecirc no artigo 159 do Coacutedigo de Processo Penal que as regras satildeo as mesmas e deveratildeo ser realizadas por um perito oficial ldquoexame de corpo de delito e outras periacutecias seratildeo realizados por perito oficial portador de diploma de curso supe-riorrdquo

Exame de corpo de delito

No Sistema Juriacutedico Brasileiro possuiacutemos duas espeacutecies de crimes aqueles que deixam vestiacutegios tambeacutem chamados de fa-tos permanentes e os delitos que natildeo deixam vestiacutegios chamados de fatos transeuntes

Como bem preceitua Gomes (1978 p31) ldquoas infraccedilotildees penais podem deixar vestiacutegios (delicta facti permanentis) como o homiciacutedio a lesatildeo corporal e natildeo deixar vestiacutegios (delicta facti tran-seuntes) como as injuacuterias verbais o desacatordquo

Quando se fala em prova pericial importante lembrar-se de uma prova que possui grande valor no processo penal que eacute a prova conhecida como exame de corpo de delito Esse exame estaacute previsto no artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal e trata- se do conjunto de vestiacutegios deixados pelo crime

Quando o crime deixar vestiacutegios materialmente compro-vados deveraacute ser realizado o exame de corpo de delito Essa pro-va eacute obrigatoacuteria e indispensaacutevel e sua realizaccedilatildeo eacute imposta pela lei

Taacutevora e Alencar (2013 p417) conceituam corpo de delito como

o conjunto de vestiacutegios materiais deixados pela in-fraccedilatildeo penal seus elementos sensiacuteveis a proacutepria materialidade em suma aquilo que pode ser exami-nado atraveacutes dos sentidos Ex a mancha de sangue deixado no local da infraccedilatildeo as lesotildees corporais a janela arrombada no crime de furto etc Jaacute o exame

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de corpo de delito eacute a periacutecia que tem por objeto o proacuteprio corpo de delito

Imprescindiacutevel destacar que o exame de corpo de delito deveraacute ser efetuado por um perito o mais raacutepido possiacutevel para que natildeo desapareccedilam os vestiacutegios deixados pelo ato criminoso

Nesse sentido preceitua Gomes (1978 p 32) que ldquoo corpo de delito deve realizar-se o mais rapidamente possiacutevel logo que se tenha conhecimento da existecircncia do fatordquo

Mirabete (2006 p 265) diz que exame de corpo de delito eacute ldquoo conjunto de vestiacutegios materiais deixados pela infraccedilatildeo penal a materialidade do crime aquilo que se vecirc apalpa sente em suma aquilo que pode ser examinado atraveacutes dos sentidosrdquo

Quando o crime deixar vestiacutegios materialmente compro-vados deveraacute ser realizado o exame de corpo de delito Essa pro-va eacute obrigatoacuteria e indispensaacutevel e sua realizaccedilatildeo eacute imposta pela lei

Prescreve o artigo 158 do Coacutedigo Penal ldquoquando a infra-ccedilatildeo deixar vestiacutegios seraacute indispensaacutevel o exame de corpo de delito direto ou indireto natildeo podendo supri-lo a confissatildeo do acusadordquo

A ausecircncia do exame de corpo de delito ao ser decretada a sentenccedila poderaacute ocasionar nulidade natildeo sendo nem a confis-satildeo do acusado suscetiacutevel de substituiccedilatildeo O Coacutedigo de Processo Penal todavia conteacutem uma observaccedilatildeo em seu artigo 167 sendo a ausecircncia do exame supriacutevel pela prova testemunhal O que ocor-re neste caso eacute o exame de corpo de delito indireto Sendo assim podemos concluir que a confissatildeo natildeo poderaacute suprir o exame de corpo de delito

O artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal nos remete a duas modalidades de exame do corpo de delito o exame direto e o indireto Eacute conceituado direto quando os peritos examinam os vestiacutegios deixados materialmente pelo crime Seraacute indireto aque-le realizado com base nas informaccedilotildees deixadas por testemunhas documentos entre outros referentes ao fato

Em relaccedilatildeo ao artigo 167 do Coacutedigo de Processo Penal quando os vestiacutegios sumirem e natildeo puder ser realizado o exame

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de corpo de delito poderaacute a prova testemunhal suprir-lhe a falta isto eacute o exame indireto poderaacute suprir o direto quando natildeo existir mais vestiacutegios

O artigo 167 do Coacutedigo de Processo Penal existe para im-pedir uma inesperada impunidade pois se natildeo houvesse essa res-salva qualquer pessoa que praticasse um crime poderia fazer com que os vestiacutegios desaparecessem e assim ficar impune

Da acareaccedilatildeo

A acareaccedilatildeo tem sua previsatildeo legal nos artigos 229 e 230 do Coacutedigo de Processo Penal

No processo poderaacute ocorrer o caso de duas ou mais pesso-as narrarem o ato criminoso de forma distinta Em virtude disso o artigo 229 do CPP permite a realizaccedilatildeo da acareaccedilatildeo que eacute ato de colocar frente a frente as pessoas que deram versotildees diferentes a fim de desvendar tal desarmonia

Reconhecimento de pessoas e coisas

O reconhecimento de pessoas e coisas estaacute previsto no arti-go 226 e inserido no tiacutetulo reservado agraves provas do processo penal e tem por finalidade a identificaccedilatildeo de um suspeito ou de um objeto atraveacutes da palavra da viacutetima ou das testemunhas

Interrogatoacuterio do reacuteu

O interrogatoacuterio do reacuteu estaacute previsto nos artigos 185 a 196 do CPP sendo caracterizado como o ato em que o juiz procede agrave oitiva do reacuteu O julgador realiza perguntas ao reacuteu com base na acusaccedilatildeo a ele dirigida

Interrogatoacuterio pode ser definido como um ato persona-liacutessimo em razatildeo de que apenas o indiciado pode ser interrogado ademais eacute ato privativo pois soacute o juiz pode interrogaacute-lo em con-cordacircncia com o art 187 do Coacutedigo de Processo Penal A oralidade do interrogatoacuterio aproxima o acusado do juiz

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Tornaghi (1997 p 365) afirma que

O interrogatoacuterio eacute a grande oportunidade que tem o juiz para num contato direto com o acusado formar juiacutezo a respeito de sua personalidade da sincerida-de de suas desculpas ou de sua confissatildeo do estado drsquoalma em que se encontra da maliacutecia ou da negli-gecircncia com que agiu da sua frieza e perversidade ou de sua nobreza e elevaccedilatildeo eacute ocasiatildeo propiacutecia para estudar- lhe as reaccedilotildees para ver numa primeira ob-servaccedilatildeo se ele entende o carter criminoso do fato e para verificar tudo mais que estaacute ligado ao seu psi-quismo e agrave sua formaccedilatildeo moral

Conforme o artigo 185 do CPP in verbis ldquoO acusado que comparecer perante autoridade judiciaacuteria no curso do processo penal seraacute qualificado e interrogado na presenccedila de seu defensor constituiacutedo ou nomeadordquo

Da confissatildeo

Confissatildeo eacute ato efetuado pelo suposto culpado de consen-tir como veriacutedica a imputaccedilatildeo que lhe foi feita na denuacutencia ou na queixa-crime Ou seja eacute dizer que foi o causador do crime relatado na exordial acusatoacuteria A previsatildeo desta espeacutecie de prova e os dis-positivos que os compotildeem estatildeo previstos nos artigos 197 a 200 do Coacutedigo de Processo Penal

Dos documentos

A prova documental estaacute prevista nos artigos 231 a 238 do Coacutedigo de Processo Penal

Conforme o art 232 do CPP ldquoConsideram-se documentos quaisquer escritos instrumentos ou papeacuteis puacuteblicos ou particula-resrdquo

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Indiacutecios

Os indiacutecios estatildeo previstos no artigo 239 do Coacutedigo de Processo Penal e natildeo satildeo considerados essencialmente como um meio de prova e sim parte de um raciociacutenio

Assim eacute o entendimento de Oliveira (2009 p382)

Na verdade o indicio mencionado no art 239 do CPP natildeo chega a ser propriamente um meio de pro-va Trata-se antes disso da utilizaccedilatildeo de um raciociacute-nio dedutivo para a partir da valoraccedilatildeo da prova de um fato ou de uma circunstacircncia chega-se agrave conclu-satildeo da existecircncia de outro ou de outra

Os indiacutecios natildeo podem ser comparados com as presunccedilotildees conforme os ensinamentos de Nucci (2007 p 468) ldquoas presunccedilotildees natildeo satildeo consideradas como meios de prova pois as presunccedilotildees constituem apenas mera opiniatildeo com base em algo suspeito ou ateacute mesmo algo suposto eacute um processo considerado como dedutivordquo Jaacute atraveacutes de indiacutecios o magistrado poderaacute alcanccedilar um estado de certeza

HOMICIacuteDIO

O crime de homiciacutedio previsto no Coacutedigo Penal tem como finalidade a salvaguarda do bem mais precioso ou seja a vida

A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 ao revelar o perfil poliacutetico constitucional do Brasil (art 1ordm) instituiu o Estado Democraacutetico de Direito que conteacutem os Direitos e as Garantias Fundamentais in-clusive o direito agrave vida que eacute assegurado no artigo 5ordm caput e inciso X no qual se diz que o direito agrave vida eacute inviolaacutevel em razatildeo de sua importacircncia pois sem a vida natildeo haacute o que se falar em dignidade humana e todos os direitos dela decorrentes

O homiciacutedio eacute previsto na parte Especial do Coacutedigo Penal em seu artigo 121 sob a expressatildeo tiacutepica ldquomatar algueacutemrdquo

Considerando a vida o bem juriacutedico mais valioso e o crime que desperta maior interesse da sociedade iremos analisar as suas

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peculiaridades

Do homiciacutedio sem cadaacutever

Haacute muito que se discutir sobre a possibilidade do acusado ser processado e condenado pelo crime de homiciacutedio mesmo com a ausecircncia do corpo para comprovaccedilatildeo real do fato por se tratar o homiciacutedio de um crime material

No caso em questatildeo eacute possiacutevel juridicamente processar o reacuteu sem o corpo pois o delito qual seja o homiciacutedio exige dois aspectos para a denuacutencia indiacutecio de autoria e a materialidade A materialidade seria no caso o cadaacutever mas eis que surge a duacutevida como condenar algueacutem por homiciacutedio sem o corpo da viacutetima

De acordo com o artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal ldquoQuando a infraccedilatildeo deixar vestiacutegios seraacute indispensaacutevel o exame de corpo de delito direto ou indireto natildeo podendo supri-lo a confis-satildeo do acusadordquo Em contrapartida temos o artigo 167 do mesmo Coacutedigo que prevecirc ldquoNatildeo sendo possiacutevel o exame de corpo de de-lito por haverem desaparecido os vestiacutegios a prova testemunhal poderaacute suprir-lhe a faltardquo

Ainda nessa direccedilatildeo possuiacutemos outro inciso contido no artigo 564 do CPP mais especificadamente o inciso III aliacutenea ldquobrdquo que declara ldquohaveraacute nulidade pela falta do exame de corpo de de-lito nos crimes que deixam vestiacutegiosrdquo poreacutem ressaltando o dispos-to no artigo 167 do CPP o qual diz que a testemunha poderaacute suprir a falta do exame direto

Portanto os trecircs artigos acima devem ser interpretados conjuntamente para que natildeo se faccedila uma interpretaccedilatildeo errocircnea no procedimento de qualquer inqueacuterito

O corpo de delito trata-se de um mero meio de prova que poderaacute ser suprido por outros meios de prova visto que natildeo haacute uma hierarquia entre as provas e o que se preza eacute a procura da verdade real ou seja deve-se recorrer aos outros meios passiacuteveis para formar o convencimento sobre o crime

O recebimento da denuacutencia leva em consideraccedilatildeo a prova

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da materialidade mesmo que essa prova seja por um exame do corpo de delito indireto e indiacutecios de autoria ou seja indiacutecios de que a pessoa que estaacute sendo acusada e que apoacutes o recebimento da denuacutencia seraacute reacuteu tem indiacutecios de sua participaccedilatildeo no desapareci-mento daquela pessoa

ESTUDO DE CASOS

Buscou-se analisar dois casos acerca da possibilidade de condenaccedilatildeo pelo crime de homiciacutedio ante a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo do caso O primeiro caso ocorrido em Aragua-ri em MG no ano de 1937 ficou conhecido como o ldquoCaso dos Irmatildeos Navesrdquo e o segundo ocorrido no ano de 2010 com rele-vante repercussatildeo midiaacutetica ficou conhecido como o ldquoCaso do Goleiro Brunordquo

Conforme informaccedilotildees do livro do autor Joatildeo Alamy Fi-lho (1990) o caso dos Irmatildeos Naves trata-se do maior erro judici-aacuterio no qual houve uma condenaccedilatildeo injusta com lastro na rainha das provas que foi uma confissatildeo conseguida mediante tortura dos irmatildeos Sebastiatildeo e Joaquim Naves acusados do homiciacutedio de Benedito o qual decidiu desaparecer do paiacutes por encontrar-se em dificuldades financeiras agravadas pela crise econocircmica da eacutepoca Durante vaacuterios meses os irmatildeos Naves foram submetidos pelo delegado da eacutepoca a vaacuterias torturas e privados de condiccedilotildees miacutenimas de higiene e alimentaccedilatildeo a fim de que confessassem o crime destacando-se que natildeo havia nem corpo nem indiacutecios nem outros meios de prova do homiciacutedio

Diante dessa situaccedilatildeo eles se viram obrigados a assinar o termo que o delegado tanto desejava a confissatildeo Ainda natildeo con-tente o delegado mandou prender os familiares dos acusados que tambeacutem passaram a sofrer torturas constantes

Os irmatildeos passaram por dois julgamentos tendo sempre como acusaccedilatildeo o temido delegado que sempre recorreu da deci-satildeo com recursos diversos Passados 8 anos e 3 meses apoacutes o jul-gamento devido ao bom comportamento dos irmatildeos na prisatildeo

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finalmente foram colocados em liberdade condicionalAnos mais tarde em 1952 a viacutetima aparece viva pois ha-

via decidido desaparecer agrave eacutepoca porque estava endividado e natildeo conseguira adimplir as diacutevidas Em 1953 os irmatildeos foram inocen-tados e entraram com um pedido de indenizaccedilatildeo que soacute foi conse-guido apoacutes 7 anos em 1960

Atualmente deve ser superado o erro judiciaacuterio que teve agrave eacutepoca do caso dos Irmatildeos Naves atraveacutes da busca da materia-lidade indireta O ordenamento juriacutedico admite provas periciais documentais e testemunhais desde que liacutecitas e legiacutetimas

No segundo caso o Caso do Goleiro Bruno as informa-ccedilotildees foram obtidas atraveacutes da Denuacutencia-Processo 0356249-62010 oferecida no ano de 2010 em Contagem-MG envolvendo o go-leiro Bruno do Flamengo um dos iacutedolos das maiores torcidas de futebol do paiacutes Trata-se de um assassinato no qual a viacutetima Eliza Samuacutedio foi executada cruelmente Consta na Denuacutencia que Eliza Samuacutedio iniciou um envolvimento amoroso com o goleiro e apoacutes algum tempo desse episoacutedio revelou estar graacutevida A gravidez levada a termo contrariou as expectativas de Bruno e a viacutetima mediante constantes ameaccedilas do entatildeo goleiro para que realizas-se aborto foi assassinada em 2010

A materialidade formou-se com base na soma de todas as provas um conjunto de indiacutecios especialmente as provas pe-riciais documentais e testemunhais entre elas o depoimentorelato da prova oral que configurou suficiente demonstraccedilatildeo de materialidade do crime de homiciacutedio No inqueacuterito haacute provas teacutec-nicas obtidas atraveacutes de rastreamento de carros e telefonemas do registro do uso de celulares pelas antenas instaladas ao longo do percurso realizado pelos acusados e tambeacutem do que diz respei-to agraves ligaccedilotildees telefocircnicas as quais natildeo deixaram duacutevidas de uma accedilatildeo coordenada Atraveacutes da triangulaccedilatildeo do sinal dos aparelhos celulares foi possiacutevel para os peritos estabelecerem com precisatildeo endereccedilos e horaacuterios dos lugares identificados em cada aparelho de telefone usado e por consequecircncia seu portador quanto agraves provas testemunhais haacute seis depoimentos que indicam que Bruno

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e Eliza estiveram juntos no siacutetio do goleiro nos dias que antecede-ram o crime No que tange agraves provas materiais o sangue encontra-do nos vidros e no banco da picape Range Rover de propriedade do goleiro era da jovem Eliza comprovado pela periacutecia por meio de exames de DNA

Outra peccedila fundamental para a poliacutecia foi o bebecirc Bruni-nho filho de Eliza ter permanecido sem a matildee e que sob os cui-dados da mulher do goleiro teve o seu nome trocado para Ryan Yuri objetivando dificultar sua identificaccedilatildeo e localizaccedilatildeo e foi encontrado posteriormente em posse de estranhos Ainda no que se refere agraves provas documentais foi encontrada uma carta escrita pelo ex-goleiro Bruno detalhando um Plano B no caso de o cerco se fechar sobre ele prescrevendo que o amigo Macarratildeo deveria assumir toda a culpa pelo crime

Entre os indiacutecios mais fortes de que o goleiro comandou uma espeacutecie de ldquooperaccedilatildeordquo para matar Eliza estaacute o sangue en-contrado na Land Rover do goleiro apreendida com um de seus amigos aleacutem de infraccedilotildees de tracircnsito cometidas no Rio de Janeiro e Minas Gerais e o horaacuterio das ligaccedilotildees telefocircnicas de todos os acusados Por meio do cruzamento das informaccedilotildees e das provas periciais a poliacutecia diz ter conseguido remontar o que aconteceu

As evidecircncias mais importantes no entanto satildeo os depoi-mentos contraditoacuterios As duas principais testemunhas que foram o ponto de partida para a prisatildeo dos demais acusados os primos de Bruno Seacutergio Rosa Sales e o adolescente apreendido J muda-ram suas versotildees ao longo das investigaccedilotildees

No caso do ex-goleiro Bruno sabia-se que Eliza estava desaparecida que natildeo fez contato pessoal telefocircnico e-mail natildeo usou cartatildeo de creacutedito nem conta bancaacuteria haacute um viacutedeo em que Eliza diz que sofreu violecircncia para abortar e que se algo lhe acon-tecesse o responsaacutevel seria Bruno comprovou-se que Eliza foi obrigada a tomar comprimidos de origem desconhecida ou seja foi submetida agrave tentativa de aborto haacute prova de que esteve no siacutetio do suspeito com o filho somente a crianccedila apareceu haacute sangue da viacutetima no carro haacute um depoimento do menor Jorge primo de

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Bruno que conta detalhes sobre a morte e o vilipecircndio a confir-maccedilatildeo desse depoimento se deu pela anaacutelise do GPS do carro e pela comprovaccedilatildeo de que Bruno deslocou-se de aviatildeo para Minas Gerais no periacuteodo

Quando natildeo se localiza o corpo da viacutetima o que se utiliza eacute a ldquocerteza moral do crimerdquo e essa se daacute quando todas as circuns-tacircncias demonstram a morte sob pena de ficarmos agrave mercecirc dos criminosos mais perigosos que satildeo aqueles que matam e depois consomem com o corpo apostando na impunidade Vale ressaltar que as provas no Caso do goleiro Bruno foram obtidas atendendo agrave previsatildeo do ordenamento juriacutedico

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

O presente trabalho buscou analisar a possibilidade de pronunciamento e condenaccedilatildeo do agente que comete o crime de homiciacutedio e natildeo se encontra a prova material do crime o cadaacutever

No decorrer do trabalho fez-se estudo dos meios proba-toacuterios permitidos em nosso ordenamento juriacutedico no que concerne aos crimes materiais ou seja aqueles que deixam vestiacutegios

Destacou-se ainda no presente estudo a possibilidade no crime de homiciacutedio de admitir a substituiccedilatildeo da prova direta pelo prova indireta visto que o proacuteprio ordenamento juriacutedico prevecirc essa possiblidade ante a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo do crime poderaacute utilizar-se das provas testemunhais somadas a outros indiacutecios visto que seria injusto deixar algueacutem impune

Socorreu-se do caso do maior erro Judiciaacuterio ou seja o caso dos Irmatildeos Naves que ficou conhecido nacionalmente e que ateacute hoje assombra a decisatildeo dos juiacutezes em casos semelhantes Po-reacutem destaca-se se que a uacutenica prova utilizada no referido caso foi a confissatildeo obtida mediante tortura

Tivemos caso recente que causou grande repercussatildeo na miacutedia o Cso do ex-goleiro Bruno no qual se constatou a existecircncia de vaacuterias provas indiretas que possuiacuteam o condatildeo de conduzir a um desfecho do crime ocorrido mesmo ante a ausecircncia do corpo

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da viacutetima para comprovaccedilatildeo do fatoCertifica-se que a prova testemunhal se somada a outras

provas poderaacute substituir o cadaacutever se for suficiente para compro-var o delito mesmo com a ausecircncia material do corpo

Atraveacutes dos estudos realizados pode-se constatar que a inexistecircncia do corpo da viacutetima natildeo deixa o reacuteu impune podendo ele ser denunciado pronunciado e posteriormente condenado pela praacutetica do crime

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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______ Coacutedigo Penal Decreto-Lei nordm 2848 de 7 de dezembro de 1940 Satildeo Paulo Saraiva 2014

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LIMA Renato Brasileiro de Manual de processo penal 2 ed Niteroacutei Impetus 2013

MIRABETE Julio Fabbrini Processo penal 18 ed rev e atual Renato N Fabbrini Satildeo Paulo Atlas 2006

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______ Manual de processo penal e execuccedilatildeo penal 12 ed rev ampl Rio de Janeiro Forense 2015

OLIVEIRA Eugecircnio Pacelli de Curso de processo penal 11 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2009

TAacuteVORA Nestor ALENCAR Rosmar Antonini Rodrigues Cavalcanti de Curso de direito processual penal 8 ed rev ampl e atual Salvador JusPODIVM 2013

TORNAGHI Heacutelio Curso de processo penal 10 ed atual Satildeo Paulo Saraiva v1 1997

TOURINHO FILHO Fernando da Costa Processo penal 33 ed Satildeo Paulo Saraiva v 1 2011

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OS MEIOS CONSENSUAIS DE SOLUCcedilAtildeO DE CONFLITOS NA COMARCA DE CAacuteCERESMT

Sandrely Ugulino Cardoso1

Geovanna Gabriela Sandri2

Andreacute Trapani Costa Possignolo3

RESUMO Pesquisa realizada na aacuterea do Direito Processual Civil sobre os institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo e sua eficaacutecia na comarca de CaacuteceresMT como meios alternativos na resoluccedilatildeo de conflitos Aleacutem de apresentar as principais caracteriacutesticas e objetivos dos institutos o trabalho aborda tambeacutem a perspectiva da mediaccedilatildeo para a resoluccedilatildeo de conflitos na esfera familiar ressaltando seus benefiacutecios em relaccedilatildeo aos meios judiciais A anaacutelise realizada tem como base legal a Resoluccedilatildeo 12510 do Conselho Nacional de Justiccedila que disciplina tais institutos frente ao Poder Judiciaacuterio bem como ordena aos tribunais a criaccedilatildeo de Centros Judiciaacuterios de Resoluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica de autores que disciplinam os meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos o presente trabalho faz um levantamento de dados das audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo realizadas no Centro Judiciaacuterio do Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT analisando no caso concreto se os objetivos e benefiacutecios desses institutos consensuais tecircm realmente sido alcanccedilados bem como se tecircm trazido resultados satisfatoacuterios ao Poder Judiciaacuterio e agrave sociedade do municiacutepio de CaacuteceresMT

PALAVRAS-CHAVE Mediaccedilatildeo Conciliaccedilatildeo CEJUSC

1 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT san-drelyugulinogmailcom2 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT geovan-nasandrigmailcom3 Professor do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT andre-tpossiggmailcom

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ABSTRACT Research carried out in Civil Procedural Law area on the institutes of mediation and conciliation and its effectiveness in the county of CaacuteceresMT as alternative means in the resolution of conflicts Besides presenting the main features and goals this work also approaches the perspective of mediation for conflict resolution in the Family Law sphere highlighting its benefits over judicial means The analysis is based on Resolution 12510 of the Conselho Nacional de Justiccedila which disciplines such institutes in Judiciary as well as order the courts to create Centros Judiciaacuterios de Resoluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania In addition to the bibliographic research on consensual means of conflict resolution this paper will also collect data from the conciliation and mediation hearings held at the Centro Judiciaacuterio of the CaceresMT County Forum analyzing in concrete case if the goals and benefits of these consensual institutes have actually been achieved as well as whether they have brought satisfactory results to the Judiciary and to the society of CaceresMT

KEYWORDS Mediation Conciliation CEJUSC

INTRODUCcedilAtildeO

Um dos principais objetivos buscados pelo Direito eacute a paz social de modo a tornar as relaccedilotildees mais estaacuteveis dirimindo os conflitos bem como as desigualdades sociais aleacutem de promover o desenvolvimento da sociedade (SANTOS 2004)

No entanto eacute visiacutevel que o Direito ainda natildeo conseguiu alcanccedilar a almejada pacificaccedilatildeo social hajam vista os numerosos processos que se encontram sob a eacutegide do Poder Judiciaacuterio agrave es-pera de uma soluccedilatildeo para o conflito Sabe-se que o Poder Judiciaacuterio possui muitas falhas em seu modo de atuar tais como tecnicismo proacuteprio e exacerbado inerente ao processo judicial que por exem-plo possui vernaacuteculo especiacutefico e de difiacutecil compreensatildeo para as proacuteprias partes litigantes tornando o processo judicial ainda mais formal aleacutem das altas custas processuais e a demora para a solu-ccedilatildeo do litiacutegio fatores esses que afastam cada vez mais o Judiciaacuterio da sociedade (ALVES 2015)

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Primando pelo princiacutepio constitucional da inafastabilida-de da jurisdiccedilatildeo a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 apresenta em seu art 5ordm inciso XXXV ldquoa lei natildeo excluiraacute da apreciaccedilatildeo do Poder Judiciaacuterio lesatildeo ou ameaccedila a direitordquo (BRASIL 1988) Sendo as-sim eacute garantido a toda pessoa o poder de buscar no Judiciaacuterio a efetividade dos seus direitos violados

O Poder Judiciaacuterio tendo a obrigaccedilatildeo de abranger toda demanda da sociedade passou a enfrentar uma crise gerando o abarrotamento de processos Deste modo o Judiciaacuterio comeccedilou a natildeo suportar tamanha procura para a soluccedilatildeo de conflitos haja vista que natildeo consegue respeitar sequer alguns princiacutepios proces-suais como a celeridade processual tornando-se moroso na reso-luccedilatildeo dos litiacutegios (ALVES 2015)

Para os motivos de tal morosidade existem diversos fa-tores Alguns destes estatildeo ora relacionados agrave estrutura e funcio-namento do Poder Judiciaacuterio ora agraves partes litigantes e seu modo de agir Em suma os fatores mais citados satildeo sucateamento dos equipamentos do Judiciaacuterio escassez de funcionaacuterios modo de agir das partes complexidade e burocracia do processo brasileiro (GESTEIRA 2014)

Atentando-se aos princiacutepios norteadores do Direito visto que o Poder Judiciaacuterio encontra-se em crise comeccedilaram a ser dis-cutidos outros meios alternativos de soluccedilatildeo de conflitos Surgiu assim a Resoluccedilatildeo 12510 do Conselho Nacional de Justiccedila (CNJ) disciplinando dois meios de suma importacircncia ao Direito brasilei-ro quais sejam mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo

Diante disso a presente pesquisa busca estudar esses meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos analisando se satildeo uacuteteis agrave so-ciedade como forma de dirimir litiacutegios ajudando na promoccedilatildeo da paz social prezada pelo Direito De outro modo aborda-se se estes meios de soluccedilatildeo de conflitos realmente trazem benefiacutecios se satildeo eficazes ao Judiciaacuterio diante da mencionada crise de abarrotamen-to de processos pela qual o mesmo enfrenta

Outro vieacutes a ser analisado trata-se da contribuiccedilatildeo das uni-versidades e dos acadecircmicos principalmente do curso de Direito

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na promoccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo bem como os benefiacutecios trazidos aos estudantes diante da aplicaccedilatildeo dos conhecimentos teoacutericos apreendidos nas salas de aula em casos praacuteticos

Tem-se ainda como objetivo mostrar a importacircncia do Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) no Foacuterum da Comarca do Municiacutepio de CaacuteceresMT bem como sua efetividade na resoluccedilatildeo de conflitos por meio da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Busca-se ainda expor alguns aspectos negativos le-vantados com relaccedilatildeo aos institutos de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo

Aleacutem disso realiza-se um levantamento de dados quan-titativos de audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo na Comarca do Foacuterum de CaacuteceresMT no Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Con-flitos e Cidadania para testar a aplicaccedilatildeo praacutetica dos resultados obtidos analisando concretamente se essas audiecircncias tecircm trazido resultados satisfatoacuterios ao Poder Judiciaacuterio na resoluccedilatildeo de con-flitos por meio da feitura de acordos entre as partes bem como se vecircm cumprindo com seu papel de assistecircncia agrave sociedade

Para isso utiliza-se como metodologia a pesquisa biblio-graacutefica de autores que trabalham a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como meios de resoluccedilatildeo de conflitos A partir da anaacutelise criacutetica das in-formaccedilotildees expostas visa-se trazer argumentos proacuteprios sobre o tema

Meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos

A pacificaccedilatildeo social como um dos objetivos primados pelo Direito se realiza por meio da resoluccedilatildeo dos conflitos Buscando se adequar a este objetivo os institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo tambeacutem tecircm almejado a paz social das partes litigantes que ami-gavelmente procuram dirimir os conflitos existentes Nesse senti-do o processualista Daniel Amorim Assumpccedilatildeo Neves (2016 p 32) admite que ldquoa pacificaccedilatildeo social (soluccedilatildeo da lide socioloacutegica) pode ser mais facilmente obtida por uma soluccedilatildeo do conflito deri-vada da vontade das partes do que pela imposiccedilatildeo de uma decisatildeo judicialrdquo

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Essa pacificaccedilatildeo social pode ser alcanccedilada mais facilmente nas formas consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos haja vista que o diaacutelogo entre as partes estaacute presente constantemente pois nessas as partes apresentam propostas capazes de dirimir as desavenccedilas com base em seus interesses pessoais e uma vez satisfeita a vonta-de de ambas o conflito existente eacute solucionado

O Poder Judiciaacuterio no uso de suas atribuiccedilotildees utiliza como principal ferramenta para a resoluccedilatildeo de conflitos a hetero-composiccedilatildeo que ldquoconsiste em meios onde a soluccedilatildeo dos litiacutegios eacute estabelecida por um terceiro sem interferecircncia das partesrdquo (MER-LO 2016 on line)

A partir da crise que afligiu o Judiciaacuterio novas teacutecnicas de dirimir os litiacutegios foram sendo amplamente discutidas surgindo a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como teacutecnicas de autocomposiccedilatildeo em que ao contraacuterio da heterocomposiccedilatildeo a soluccedilatildeo do problema natildeo eacute determinada por um terceiro distante do caso mas pelas proacuteprias partes litigantes que decidem como solucionar os conflitos pelos quais estatildeo passando Nesses meios autocompositivos prevalece a vontade das partes (Idem)

Assim como nos meios de heterocomposiccedilatildeo a mediaccedilatildeo e a conciliaccedilatildeo primam pela real soluccedilatildeo das desavenccedilas No entan-to a heterocomposiccedilatildeo em razatildeo de a soluccedilatildeo do conflito ser dada de acordo com o entendimento de um terceiro imparcial e distante do caso nem sempre possui forccedila capaz de satisfazer as vontades das partes jaacute que na maioria das vezes o decidido pelo magistra-do natildeo coincide com o querer das partes Desta forma ao contraacuterio dos meios consensuais os meios heterocompositivos nem sempre solucionam o conflito em sua essecircncia uma vez que natildeo atendem agrave real vontade das partes fazendo com que em muitos casos as desavenccedilas persistam mesmo apoacutes a suposta resoluccedilatildeo do conflito (ROSA apud GONCcedilALVES 2015)

A mediaccedilatildeo e a conciliaccedilatildeo por serem meacutetodos de auto-composiccedilatildeo possuem muitas semelhanccedilas distinguindo-se ape-nas quanto ao modo de atuaccedilatildeo do mediador e do conciliador

O instituto da mediaccedilatildeo eacute aconselhado para a resoluccedilatildeo de

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conflitos nos casos em que as partes conflitantes jaacute se conheciam e possuiacuteam algum viacutenculo O papel do mediador eacute caracterizado como de um facilitador do diaacutelogo entre as partes que auxilia as partes a visualizarem a melhor maneira de dirimir o conflito exis-tente natildeo podendo agir de forma imperativa no caso nem propor formas de solucionar o conflito mas tatildeo somente encaminhar as partes deixando a livre escolha dessas agrave feitura ou natildeo de um acor-do (DIDIER JR 2015)

Diferentemente da mediaccedilatildeo os casos que envolvem a resoluccedilatildeo de conflitos pela conciliaccedilatildeo segundo entendimento de Didier Jr (2015) satildeo aqueles em que as partes natildeo se conheciam ou seja natildeo possuiacuteam viacutenculos Nesses casos o conciliador tem maior autonomia para interferir no problema haja vista que pode propor soluccedilotildees para dirimir o conflito

Uma das principais caracteriacutesticas destes meios de auto-composiccedilatildeo eacute a maior atuaccedilatildeo das partes na soluccedilatildeo do conflito que satildeo os protagonistas da resoluccedilatildeo do litiacutegio o que eacute interes-sante uma vez que o conflito concerne somente a elas (MERLO 2016)

Vaacutelido ressaltar que esses mecanismos de autocompo-siccedilatildeo ao contraacuterio da heterocomposiccedilatildeo natildeo apresentam todo o tecnicismo proacuteprio de um processo judicial como o seu formalis-mo e utilizaccedilatildeo de vernaacuteculos especiacuteficos e robustos cuja ausecircncia permite que as partes possuam maior liberdade de se expressar visto que se baseiam mais na oralidade e na informalidade aleacutem de serem mais ceacuteleres baratos e justos (GONCcedilALVES 2015)

Entende-se que os acordos feitos por intermeacutedio desses meios alternativos de soluccedilatildeo de conflitos possuem a mesma forccedila de uma sentenccedila dada pelo magistrado por meio das vias comuns entretanto por serem meacutetodos que ainda podem ser considerados recentes diversas vezes natildeo satildeo efetivados pela visatildeo de que os acordos e decisotildees tomadas natildeo teriam o mesmo valor que uma decisatildeo judicial comum (MERLO 2016)

Aleacutem disso outra fragilidade que envolve os meios au-tocompositivos diz respeito agrave atuaccedilatildeo do mediador quanto agrave pos-

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sibilidade de que haja pressatildeo para que as partes cheguem a um acordo e que segundo o Manual de Mediaccedilatildeo Judicial (2015) preo-cupa os advogados por tratar-se de um receio legiacutetimo mas que quando notada deve ser comunicada agrave Secretaacuteria do Serviccedilo de Mediaccedilatildeo Forense

Resoluccedilatildeo n 12510 CNJ

O Conselho Nacional de Justiccedila editou a Resoluccedilatildeo nordm 125 de 29 de novembro de 2010 que em suma tem como objetivo a re-gulamentaccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Assim o CNJ por meio dessa Resoluccedilatildeo incentivou a soluccedilatildeo de controveacutersias por meio da autocomposiccedilatildeo (BRASIL 2010)

Para a criaccedilatildeo dessa Resoluccedilatildeo foram considerados vaacuterios pontos tais como a prestaccedilatildeo judicial de forma justa e efetiva a pacificaccedilatildeo social bem como a regulamentaccedilatildeo e uniformizaccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo (Idem) Assim um dos mais importantes artigos dessa Resoluccedilatildeo na qual se baseia todo o presente trabalho eacute o

Art 8ordm Os tribunais deveratildeo criar os Centros Judiciaacute-rios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (Centros ou Cejuscs) unidades do Poder Judiciaacuterio preferencial-mente responsaacuteveis pela realizaccedilatildeo ou gestatildeo das sessotildees e audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo que estejam a cargo de conciliadores e mediadores bem como pelo atendimento e orientaccedilatildeo ao cidadatildeo (BRASIL 2010)

Eacute com base nesse artigo que os atuais Centros Judiciaacuterios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) existem e realizam as audiecircncias de mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo sejam elas processuais (realizadas durante o tracircmite de processo judicial) ou preacute-proces-suais (que antecedem a propositura da accedilatildeo judicial)

Ademais aleacutem do caraacuteter de soluccedilatildeo de conflitos estes centros possuem uma funccedilatildeo de cidadania uma vez que atendem ao puacuteblico orientando e auxiliando os indiviacuteduos na busca por

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seus direitos (BRASIL 2015)A implantaccedilatildeo desses centros de soluccedilatildeo de conflitos a

partir da Resoluccedilatildeo nordm 12510 do CNJ que aleacutem de seu objetivo principal de incentivar que os litiacutegios sejam resolvidos de forma consensual reconheceu esses institutos como meios de acesso agrave justiccedila respeitando o princiacutepio constitucional de acesso agrave justiccedila Ademais em decorrecircncia da grande quantidade de demandas di-rigidas ao Poder Judiciaacuterio busca-se tambeacutem com as audiecircncias de mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo a diminuiccedilatildeo do abarrotamento de proces-sos uma vez que esses institutos satildeo mais ceacuteleres na soluccedilatildeo dos conflitos e a feitura de um acordo evita que novos casos resultan-tes de conflitos mal resolvidos fiquem pendentes da anaacutelise do Poder Judiciaacuterio (GONCcedilALVES 2015)

Aleacutem disso eacute importante compreender a atuaccedilatildeo dos con-ciliadores e mediadores bem como os princiacutepios e obrigaccedilotildees que os regem para que se quebre o paradigma de que um meio de resoluccedilatildeo de conflitos que envolva um terceiro que natildeo seja o ma-gistrado tambeacutem pode ser confiaacutevel e eficaz Por esta razatildeo a re-soluccedilatildeo prevecirc em seu artigo 1deg do Anexo III oito princiacutepios funda-mentais que devem ser seguidos para que se respeite o Coacutedigo de Eacutetica dos Mediadores e Conciliadores Satildeo eles confidencialidade decisatildeo informada competecircncia imparcialidade independecircncia e autonomia respeito agrave ordem puacuteblica e agraves leis vigentes empodera-mento e validaccedilatildeo (BRASIL 2010)

Os princiacutepios fundamentais previstos na resoluccedilatildeo satildeo de grande importacircncia para a conduccedilatildeo e o bom desenvolvimento dos procedimentos dos institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo

mediaccedilatildeo na resoluccedilatildeo de conflitos familiares

Pelo fato de a mediaccedilatildeo ser utilizada principalmente nos conflitos em que as partes jaacute se conheciam ela possui grande im-portacircncia na soluccedilatildeo de conflitos familiares mais ainda por se ba-sear principalmente no diaacutelogo entre as partes Tendo em vista as peculiaridades dos problemas familiares o instituto da mediaccedilatildeo

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tem sido cada vez mais empregado na resoluccedilatildeo desses conflitos Eacute evidente que as desavenccedilas familiares possuem aspectos mais delicados uma vez que envolvem laccedilos afetivos e por isso neces-sitam de guarida de forma especial comparados com outros confli-tos sociais (GONCcedilALVES 2015 GARBO 2015)

Para que natildeo haja desgaste emocional entre os familiares que se encontram em litiacutegio faz-se necessaacuterio a presenccedila da media-ccedilatildeo como meio consensual de resoluccedilatildeo de conflitos instrumento capaz de trazer a paz para as famiacutelias em desavenccedilas (TOALDO OLIVEIRA 2011)

Em decorrecircncia de o Poder Judiciaacuterio se encontrar abar-rotado de causas para serem solucionadas os conflitos sob a sua eacutegide demoram muito tempo ateacute sua resoluccedilatildeo Assim sendo a mediaccedilatildeo familiar um meio alternativo para a resoluccedilatildeo de con-flitos as demandas seratildeo solucionadas por este meio com mais rapidez fato esse de suma importacircncia nos desentendimentos fa-miliares uma vez que envolvem assuntos de natureza de urgecircncia perdurando o conflito por um periacuteodo bem menor se comparado aos meios judiciais tradicionais (PRUDENTE 2008)

Os principais casos resolvidos por meio da mediaccedilatildeo fa-miliar abrangem conflitos referentes a divoacutercio separaccedilatildeo de bens guarda fixaccedilatildeo e revisatildeo de alimentos Tais casos por se tratarem de assuntos pertinentes tatildeo apenas agraves proacuteprias partes satildeo resolvi-dos por meio da mediaccedilatildeo com grande aprovaccedilatildeo tendo em vista que a partir do diaacutelogo entre as partes pode surgir um acordo que satisfaccedila as vontades destas (GARBO 2015)

O meio heterocompositivo frente a um magistrado por natildeo possibilitar maior diaacutelogo entre as partes nem sempre per-mite que a vontade seja plenamente satisfeita inclusive porque a soluccedilatildeo do conflito viraacute de acordo com o entendimento de um terceiro distante do caso Assim diante da insatisfaccedilatildeo em rela-ccedilatildeo agrave decisatildeo tomada e da natildeo soluccedilatildeo dos conflitos ocultos novos impasses podem surgir resultando em novos processos judiciais contribuindo para o abarrotamento de processos e intensificando a crise do Poder Judiciaacuterio

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A mediaccedilatildeo familiar eacute sim uma alternativa viaacutevel para a superaccedilatildeo de conflitos familiares na socieda-de atual pois atraveacutes de mediadores capacitados e com conhecimentos especiacuteficos fazendo com que as partes cheguem uma melhor soluccedilatildeo que possa satisfazer a ambos sem a imposiccedilatildeo de uma deci-satildeo como ocorre no atual sistema juriacutedico brasileiro (TOALDO OLIVEIRA 2011 on line)

Aleacutem da insatisfaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave decisatildeo proferida por meio heterocompositivo o sentimento de conflito natildeo resolvido pode acarretar traumas emocionais aos filhos portanto quando se tem uma participaccedilatildeo muacutetua da famiacutelia para que se resolvam as questotildees familiares pendentes de forma amigaacutevel e respeitosa a decisatildeo natildeo traraacute apenas benefiacutecios processuais (custas celerida-de) como tambeacutem emocionais e psicoloacutegicos conforme menciona Parkinson (2016 p xxi)

Devemos ter em mente que longas batalhas pela guarda dos filhos satildeo extremamente prejudiciais agrave crianccedila aleacutem de apresentarem altos custos emocio-nais e financeiros ao passo que a mediaccedilatildeo incenti-va uma melhor comunicaccedilatildeo e cooperaccedilatildeo entre os pais podendo trazer benefiacutecios duradouros para a famiacutelia como um todo

Percebe-se assim que os conflitos familiares dependem grandemente do diaacutelogo para a sua soluccedilatildeo uma vez que apoacutes alguns desentendimentos os familiares se encontram receosos e abalados emocionalmente diante dos laccedilos afetivos envolvidos necessitando apenas que um terceiro no caso o mediador inter-venha no conflito para facilitar o diaacutelogo entre as partes fazendo com que as mesmas encontrem um acordo satisfatoacuterio fato esse que pode ser facilmente presenciado na mediaccedilatildeo diferentemente do que ocorre na heterocomposiccedilatildeo em que natildeo haacute tantas oportu-nidades de diaacutelogos entre as partes

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Contribuiccedilatildeo das Universidades aos CEJUSCrsquos

Tendo em vista que a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo abordam as-suntos pertinentes ao curso de Direito as universidades podem e devem contribuir na promoccedilatildeo desses institutos uma vez que ainda satildeo desconhecidos por grande parcela da sociedade Aleacutem de as universidades contribuiacuterem no incentivo e divulgaccedilatildeo dos meacutetodos consensuais de soluccedilatildeo de conflitos os acadecircmicos tam-beacutem satildeo beneficiados uma vez que poderatildeo colocar em praacutetica os aprendizados teoacutericos das aulas contribuindo para seu crescimen-to profissional futuro

O CNJ mesmo apoacutes ter criado a Resoluccedilatildeo 12510 incen-tiva ainda a pacificaccedilatildeo dos litiacutegios pela mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo por meio do Precircmio Conciliar eacute Legal de iniciativa do Comitecirc Gestor Nacional da Conciliaccedilatildeo A quinta ediccedilatildeo desse precircmio teve como uma das praacuteticas vencedoras a promoccedilatildeo de soluccedilotildees paciacuteficas de conflitos por meio do envolvimento de alunos e docentes do cur-so de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNE-MAT) Campus Francisco Ferreira Mendes em DiamantinoMT em trabalho conjunto com o Centro Judiciaacuterio da Comarca de Dia-mantinoMT (ARAUacuteJO 2015)

O projeto realizou-se por intermeacutedio da UNEMAT no Nuacute-cleo Permanente de Meacutetodos Consensuais de Soluccedilatildeo de Conflitos do Mato Grosso e do CEJUSC do TJMT e envolveu estudantes e professores que se propuseram a averiguar os processos submeti-dos ao Centro Judiciaacuterio na Comarca de DiamantinoMT (Idem)

Assim sendo fica claro que essa atitude serviu para tes-tificar os acadecircmicos envolvidos no projeto considerando que jaacute saem com capacitaccedilatildeo em conciliaccedilatildeo tornando-se uma verdadei-ra contribuiccedilatildeo acadecircmica para a sociedade o que exemplifica cla-ramente a proposta acessiacutevel da soluccedilatildeo de conflitos

Levantamento de dados realizados no CEJUSC de CAacuteCERESMT

Com base no levantamento bibliograacutefico apresentado foi

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realizada uma pesquisa quantitativa de levantamento de dados no Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT

Com a entrada em vigor da Resoluccedilatildeo 12510 do CNJ o Tribunal de Justiccedila do Mato Grosso buscou adequar-se a essa nor-ma tendo em vista que assim como apresentado no art 8ordf da refe-rida Resoluccedilatildeo foi imposta aos Tribunais de Justiccedila a criaccedilatildeo dos Centros Judiciaacuterios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania

Assim sendo foi instalado no dia 11 de julho de 2014 em CaacuteceresMT um Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cida-dania (CEJUSC) por meio da Portaria 0062014-NPMCSC-PRES (MATO GROSSO 2014)

Os dados a seguir foram informados pela gestora do CE-JUSC do Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT por meio dos rela-toacuterios que satildeo encaminhados ao CNJ Assim seratildeo apresentados os dados a respeito das conciliaccedilotildees e mediaccedilotildees realizadas tatildeo somente neste Centro expondo ainda os nuacutemeros das audiecircncias que restaram frutiacuteferas

Insta esclarecer que os dados da quantidade de audiecircncias realizadas referem-se tanto agraves audiecircncias na fase preacute-processual quanto processual Outrossim os dados apresentados satildeo apenas das audiecircncias realizadas no CEJUSC E os acordos que satildeo forma-lizados no decorrer dos processos natildeo estatildeo contidos nestes dados mas somente os formalizados em audiecircncias realizadas no Centro

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Quadro 01 minus Nuacutemero de audiecircncias realizadas no CEJUSC durante 2014 ndash 2016

Fonte Mato Grosso (2014)

A partir dos dados apresentados nota-se que a populaccedilatildeo de CaacuteceresMT tem buscado realizar tentativas de acordos para resoluccedilatildeo de conflitos mesmo sendo a heterocomposiccedilatildeo no Bra-sil a forma mais difundida e aceita para a soluccedilatildeo de conflitos O graacutefico reforccedila a tese de que os meios de autocomposiccedilatildeo tambeacutem estatildeo aos poucos ganhando mais espaccedilo e sendo utilizados fren-te aos benefiacutecios que estes meios proporcionam como celeridade menor custo econocircmico e resoluccedilatildeo do conflito por meio da satis-faccedilatildeo da vontade de ambas as partes

A tabela a seguir apresenta o nuacutemero de acordos formali-zados dentre a quantidade de audiecircncias realizadas no CEJUSC de Caacuteceres segundo apresentado no quadro 01 acima

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Quadro 02 minus Nuacutemero de audiecircncias com acordos

Fonte Mato Grosso (2014)

Por meio da anaacutelise dos dados acima descritos pode-se perceber que entre os meses em que foi realizada a pesquisa julho de 2014 a agosto de 2016 num total de 26 meses foram realizadas 1954 (mil novecentos e cinquenta e quatro) audiecircncias de conci-liaccedilatildeo e mediaccedilatildeo no Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania da Comarca de CaacuteceresMT Desse total de audiecircncias realizadas 1679 (mil seiscentos e setenta e nove) restaram frutiacute-feras ou seja obtiveram acordo correspondendo a aproximada-mente 86 de acordos do total de audiecircncias

Desta forma nota-se que estes meios alternativos de solu-ccedilatildeo de controveacutersias estatildeo sendo de suma importacircncia para a so-ciedade da comarca de Caacuteceres bem como para o Poder Judiciaacuterio local uma vez que os resultados obtidos tecircm sido satisfatoacuterios

Tais resultados corroboram com o entendimento defendi-do por Alves (2015 on line) ldquoConclui-se que a conciliaccedilatildeo eacute sem-pre a melhor opccedilatildeo para as partes em litiacutegio desde que o instituto seja aplicado corretamente em consonacircncia com os seus objetivos e por terceiros realmente imparciais e capacitadosrdquo

Para Warat (apud MERLO 2016 on line) estes institutos

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satildeo muito importantes para a sociedade visto que

As praacuteticas sociais de mediaccedilatildeo se configuram num instrumento ao exerciacutecio da cidadania na medida em que educam facilitam e ajudam a produzir dife-renccedilas e a realizar tomadas de decisotildees sem a inter-venccedilatildeo de terceiros que decidem pelos afetados por um conflito[] O acordo decorrente de uma mediaccedilatildeo satisfaz em melhores condiccedilotildees as necessidades e os desejos das partes jaacute que estas podem reclamar o que ver-dadeiramente precisam e natildeo o que a lei lhes reco-nheceria

Nota-se que a conciliaccedilatildeo e a mediaccedilatildeo realizadas no Cen-tro Judiciaacuterio de CaacuteceresMT diante dos resultados apresentados tecircm sido realmente uma alternativa eficaz para resoluccedilatildeo de con-flitos na comarca uma vez que ao produzir acordos entre as par-tes as desavenccedilas satildeo solucionadas proporcionando a paz social Aleacutem do mais pelo fato de o acordo ser realizado a partir da von-tade das partes sem a intervenccedilatildeo de um terceiro como o magis-trado os meios autocompositivos diminuem e por consequecircncia os casos a serem solucionados diretamente pelo Poder Judiciaacuterio atenuando a crise de abarrotamento de processos judiciais

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A partir das pesquisas realizadas foi possiacutevel perceber que o Poder Judiciaacuterio passa por um momento criacutetico pois se encontra abarrotado de processos e sem nenhuma condiccedilatildeo de acolher cor-retamente toda esta demanda de modo que precisou implementar outras alternativas que ajudassem a alterar esse cenaacuterio

Buscando sair deste momento de crise alguns mecanis-mos foram implementados atraveacutes da Resoluccedilatildeo nordm 12510 do CNJ quais sejam a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Percebe-se entatildeo que estes institutos foram e satildeo de fundamental importacircncia para o Ju-diciaacuterio visto que ao mesmo tempo que diminuem a grande pro-

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cura direta ao Judiciaacuterio para a resoluccedilatildeo de conflitos tambeacutem se baseiam em meacutetodos autocompositivos por meio dos quais todas as decisotildees tomadas partem tatildeo somente das proacuteprias partes liti-gantes resultando em uma justiccedila em conformidade com as neces-sidades almejadas pelas partes

Com relaccedilatildeo aos pontos positivos e negativos desses ins-titutos nota-se que os aspectos positivos prevalecem sobre os ne-gativos haja vista que estes decorrem do pouco conhecimento da sociedade de que os meios consensuais de soluccedilatildeo de conflitos satildeo eficazes e gozam dos mesmos efeitos de uma decisatildeo judicial Esse desconhecimento da sociedade deve-se ao fato de o meio ju-dicial tradicional ser utilizado haacute muito mais tempo necessitando assim que o Poder Judiciaacuterio incentive e divulgue a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como meios eficazes corroborando por consequecircncia com a diminuiccedilatildeo da crise judiciaacuteria As universidades conjun-tamente com os acadecircmicos do curso de Direito tecircm contribuiacutedo nesse aspecto de divulgaccedilatildeo e incentivo da sociedade para soluccedilatildeo dos litiacutegios por meio da autocomposiccedilatildeo atraveacutes de projetos reali-zados em parceria com os Centros Judiciaacuterios

Os meios consensuais tecircm apresentado resultados satis-fatoacuterios perante o ordenamento juriacutedico brasileiro haja vista que tecircm sido efetivamente utilizados para a soluccedilatildeo de conflitos sendo de grande valia ao Poder Judiciaacuterio e agrave sociedade principalmente agrave Comarca de Caacuteceres ora analisada

Quanto agraves resoluccedilotildees de conflitos por meio do Centro Ju-diciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania de Caacuteceres pode-se observar que apesar da autocomposiccedilatildeo como meio de resoluccedilatildeo de conflitos ainda natildeo ser amplamente difundida como acontece com os meios heterocompositivos a Comarca de Caacuteceres vem ob-tendo resultados satisfatoacuterios e natildeo soacute pela quantidade de acordos mas tambeacutem em relaccedilatildeo agrave procura deste meio

Percebe-se assim que a autocomposiccedilatildeo por meio da me-diaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo vem apresentando aos juristas aspectos po-sitivos como a diminuiccedilatildeo do abarrotamento de processos bem como esses institutos tecircm cumprido com seus objetivos sendo

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realmente eficazes na resoluccedilatildeo de conflitos

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ALVES Gabriela Pellegrina A conciliaccedilatildeo como meio de efetivaccedilatildeo do princiacutepio do acesso agrave justiccedila Disponiacutevel em httpwwwconteudojuridicocombrartigoa-conciliacao-como-meio-de-efetivacao-do-principio-do-acesso-a-justica51986html Acesso em jun 2016

ARAUacuteJO Elizacircngela Unemat recebe precircmio do CNJ por incentivar conciliaccedilatildeo entre estudantes Disponiacutevel em httpwwwcnjjusbrnoticiascnj79617-unemat-recebe-premio-do-cnj-por-incentivar-conciliacao-entre-estudantes Acesso em jan 2017

BRASIL Conselho Nacional de Justiccedila 2015 Guia de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo judicial orientaccedilatildeo para instalaccedilatildeo de CEJUSC Brasiacutelia Conselho Nacional de Justiccedila

______ Conselho Nacional de Justiccedila Resoluccedilatildeo n 125 29 de novembro de 2010 Dispotildee sobre a poliacutetica judiciaacuteria nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no acircmbito do poder judiciaacuterio e daacute outras providecircncias Disponiacutevel em httpwwwcnjjusbrbusca-atos-admdocumento=2579 Acesso em set 2016

DIDIER JR Fredie Curso de direito processual civil introduccedilatildeo ao direito processual civil parte geral e processo de conhecimento 17 ed Salvador Jus Podivm 2015

GARBO Maria Carolina Silva Mediaccedilatildeo familiar como alternativa agrave soluccedilatildeo de conflitos familiares resultantes de separaccedilatildeo eou divoacutercio Disponiacutevel em httpwwwambito-juridicocombrsiten_link=revista_artigos_leituraampartigo_id=15704amprevista_caderno=14 Acesso em set 2016

GESTEIRA Wander Joseacute Barroso Provaacuteveis causas da morosidade da justiccedila brasileira Disponiacutevel em httpswwwportaleducacaocombrdireitoartigos56733provaveis-causas-da-morosidade-da-justica-brasileira Acesso em dez 2016

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GONCcedilALVES Amanda Passos A mediaccedilatildeo como meio de resoluccedilatildeo de conflitos familiares Rio Grande do Sul Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul - PUCRS 2015

MERLO Ana Karina Franccedila Mediaccedilatildeo conciliaccedilatildeo e celeridade processual Disponiacutevel em lthttpwwwambito-juridicocombrsiteindexphpn_link=revista_artigos_leituraamp artigo_id=12349amprevista_caderno=21gt Acesso em mai de 2016

NEVES Daniel Amorim Assumpccedilatildeo Novo coacutedigo de processo civil ndash Leis 131052015 e 132562016 3 ed Satildeo Paulo Meacutetodo 2016

PARKINSON Lisa Mediaccedilatildeo familiar 2 ed Belo Horizonte Del Rey 2016

SANTOS Marcos Andreacute Couto O direito como meio de pacificaccedilatildeo social em busca do equiliacutebrio das relaccedilotildees sociais Disponiacutevel em httpsjuscombrartigos4732o-direito-como-meio-de-pacificacao-socialgt Acesso em mai 2016

TOALDO Adriane Medianeira OLIVEIRA Fernanda Rech de Mediaccedilatildeo familiar novo desafio do direito de famiacutelia contemporacircneo Disponiacutevel em httpwwwambitojuridicocombrsi ten_l ink=revis ta_ar t igos_le i turaampart igo_id=10860amprevista_cadero=21gt Acesso em set 2016

sobre como certas questotildees juriacutedicas que estatildeo sendo pensadas analisadas e interpretadas pelos autores agrave luz dos procedimentos teoacuterico-metodoloacutegicos da aacuterea mesmo quando divergem de deter-minados ordenamentos legais

Agradecemos o apoio da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT Campus de CaacuteceresMT e da Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do Estado de Mato Grosso ndash FAPEMAT que tornou possiacutevel a publicaccedilatildeo desta obra

Esperamos que esta coletacircnea possa dar visibilidade agraves pesquisas realizadas pelos Cursos de Direito e que instigue os lei-tores da comunidade acadecircmica da UNEMAT e de outras IES a realizar novos projetos e investigaccedilotildees que consolidem cada vez mais a produccedilatildeo cientiacutefica na aacuterea do Direito

Danielle Cevallos SoaresMa Evely Bocardi de Miranda Saldanha

Me Murilo Oliveira Souza(Organizadores)

SUMAacuteRIO

APRESENTACcedilAtildeO2Danielle Cevallos SoaresEvely Bocardi de Miranda SaldanhaMurilo Oliveira Souza

ldquoWASH OUTrdquo FRENTE AO ORDENAMENTO JURIacuteDICO BRA-SILEIRO7Ana Flaacutevia Trevizan

A FRONTEIRA JURIacuteDICO-POLIacuteTICA ENTRE OS SISTEMAS JU-RIacuteDICOS DA COMMON LAW E DA CIVIL LAW E SEUS IMPAC-TOS NO DIREITO PAacuteTRIO27Ana Paula Soares de Souza e Danilo Pires Atala

VISIBILIZANDO A VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO PSICOLOacuteGICA COMO LESAtildeO Agrave SAUacuteDE DA VIacuteTIMA Revisitando o artigo 129 do Coacutedigo de Processo Penal brasileiro agrave luz da Lei Maria da Pe-nha49Artenira da Silva e SilvaJoseacute Maacutercio Maia Alves CIDADE SEM FRONTEIRAS FRONTEIRAS SEM CIDA-DES77Daniella S Dias

IMPACTO AMBIENTAL TRANSFRONTEIRICcedilO NA PERSPEC-TIVA DO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL97Dimas Simotildees Franco NetoOseias Amaral da Silva

JULGAMENTO INDIacuteGENA DE CONFLITOS INTERNOS RECO-NHECIDO PELO DIREITO ESTATAL NA PERSPECTIVA DO PLURALISMO JURIacuteDICO117Eliel Alves Camerini SilvaLuciana Stephani Silva Iocca

A TEORIA DO PREJUIacuteZO NAS NULIDADES RELATIVAS O COROLAacuteRIO DA DISCRICIONARIEDADE NO PROCESSO PE-NAL137Evandro Monezi BenevidesFelipe Teles Tourounoglou

CAacuteCERES E O DEacuteFICIT DE MORADIAS O CASO DA OCUPA-CcedilAtildeO DO BAIRRO EMPA 155Evely Bocardi de Miranda Saldanha Richard Rodrigues da Silva

PROVA NO HOMICIacuteDIO SEM CADAacuteVER169Gabrielle Vidrago de Souza Machado Solange Teresinha Carvalho Pissolato

OS MEIOS CONSENSUAIS DE SOLUCcedilAtildeO DE CONFLITOS NA COMARCA DE CAacuteCERESMT191Sandrely Ugulino CardosoGeovanna Gabriela Sandri Andreacute Trapani Costa Possignolo

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ldquoWASH OUTrdquo FRENTE AO ORDENAMENTO JURIacuteDICO BRASILEIRO

Ana Flaacutevia Trevizan1

RESUMO O presente artigo tem por escopo apresentar alguns apontamentos baacutesicos no tocante ao ldquowash outrdquo e sua incidecircncia nos contratos agraacuterios e observar de que maneira o direito paacutetrio tem se portado perante tal instituto Ressalta-se a estima em realizar esse paralelo por se tratar de algo que foi importado e por estar se difundindo entre os contratos que versam sobre commodities deveraacute atender aos princiacutepios e normas internamente estabelecidos Por ser inovador o pretenso assunto ocasionaraacute grandes debates nos quais seratildeo impresciacutendiveis as construccedilotildees doutrinaacuterias e jursiprudecircnciais sobre a mateacuteria uma vez que os impactos advindos do ldquowash outrdquo satildeo de excessiva monta Passando pela escassa jurisprudecircncia interna ao referido assunto seratildeo dadas delimitaccedilotildees e uma roupagem ante o ordenamento juriacutedico nacional

PALAVRAS-CHAVE ldquoWash outrdquo Contrato agraacuterio Commodities Direito brasileiro

ABSTRACT The purpose of this article is to present some basic notes on the ldquowash outrdquo and its incidence on agrarian contracts and to observe how the countryrsquos law has behaved before such an institute Emphasis is placed on making this parallel because it is something that has been imported and because it is spreading among contracts that deal with commodities should comply with the principles and standards internally established Being innovative the alleged subject will cause great debates in which the doctrinal and jursiprudecircncia constructions on the matter will be essential since the impacts arising from the ldquowash outrdquo are of excessive amount Turning to the scarce internal jurisprudence on the subject will be given delimitations and a drapery before the national legal order1 Mestranda em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Professora do Departmento de Direito da UFMT Bolsista CAPES-FAPEMAT E-mail aftre-vizangmailcom

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KEYWORDS ldquoWash outrdquo Agrarian contract Commodities Brazilian law

INTRODUCcedilAtildeO

Com a abertura do mercado interno principalmente no fi-nal da deacutecada de 80 o Brasil comeccedilou a dar maior notoriedade agrave exportaccedilatildeo comercial Algumas medidas como a diminuiccedilatildeo das aliacutequotas sobre a importaccedilatildeo e a extirpaccedilatildeo da maioria das restri-ccedilotildees natildeo-tarifaacuterias colocaram em ascensatildeo o mercado exportador

Nessa conjuntura globalizada merecem papel de desta-que as tradings companies que em simples linhas satildeo empresas comerciais que promovem a exportaccedilatildeo por meio da compra de produtos circulantes no mercado interno Seu marco legislativo se deu em novembro de 1972 com o advento do Decreto-Lei nordm 1248 futuramente inovado pelo Decreto nordm 45432002 O primeiro tu-tela os tributos incidentes em relaccedilatildeo aos produtos exportados e o uacuteltimo disciplina requisitos essenciais agraves tradings

Em virtude da dinacircmica presente no mercado internacio-nal torna-se comum a estipulaccedilatildeo de claacuteusulas em contratos inter-nacionais firmados entre as tradings e o paiacutes para o qual se exporta que impotildeem multas envolvendo alta quantia monetaacuteria no caso de descumprimento Um exemplo eacute a sobre-estadia a qual se refere ao pagamento feito pela restituiccedilatildeo atrasada do contecirciner do titu-lar mas que na maioria das vezes recai sobre as tradings

Todavia as tradings visando amortizar os gastos advindos de multas importaram para o direito paacutetrio um instituto chamado ldquowash outrdquo que objetiva a indenizaccedilatildeo de excessivo valor mone-taacuterio no caso de descumprimento da empresa ou pessoa fiacutesica que vende produtos agriacutecolas agraves tradings

Imperiosa eacute a anaacutelise do ldquowash outrdquo sobre o enfoque do direito brasileiro levando em consideraccedilatildeo os princiacutepios e normas tanto do direito civil como do direito constitucional Eis a finalida-de deste artigo

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Apontamentos baacutesicos sobre as Tradings Companies

As Tradings Companies em atividades no Brasil des-de 1970 ganharam destaque no cenaacuterio nacional no iniacutecio da deacutecada de 90 Foi em 1990 com o estabelecimento da Poliacutetica Industrial e de Comeacutercio Exterior que o Brasil fortalece suas relaccedilotildees mercantis com paiacuteses exteriores

Nas palavras de Anna Carolina Euclides Santos Bruno Henrique Felipe Gomes e Juliana Lima Credendio (2007 p 29)

Com a abertura da economia brasileira no governo do presidente Fernando Collor de Melo as empre-sas de grande porte sentiram-se motivadas a desen-volver suas atividades no mercado externo Com a elevada demanda essas empresas natildeo conseguiam atender agraves necessidades do mercado e iniciaram parcerias com as tradings pois perceberam as van-tagens e benefiacutecios de sua utilizaccedilatildeo ou ateacute mesmo criando a sua proacutepria Trading Company

Eacute nesse mesmo periacuteodo que as tradings ganham destaque e no primeiro momento optam pela comercializaccedilatildeo de commo-dities como por exemplo o cafeacute que na atualidade cede espaccedilo agrave soja

A Receita Federal do Brasil na Soluccedilatildeo de Consulta nordm 56 de 16 de junho de 2011 publicada no Diaacuterio Oficial da Uniatildeo de 17 de junho de 2011 definiu o instituto Trading Company como uma empresa comercial exportadora constituiacuteda sob a forma de socie-dade por accedilotildees dentre outros requisitos miacutenimos previstos no De-creto-Lei nordm 124872 (BRASIL 2009) Ou seja trading company eacute uma empresa comercial que realiza atividades como exportaccedilatildeo importaccedilatildeo e agenciamento das operaccedilotildees de compra e venda de mercadorias

O Decreto em voga veio para regulamentar alguns pon-tos especiacuteficos sobre a aquisiccedilatildeo de produtos no mercado interno visando agrave exportaccedilatildeo aleacutem de estatuir requisitos miacutenimos para a instituiccedilatildeo das tradings no Brasil

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De acordo com Pereira e Boavista (2010 p74)

Deve-se ressaltar que antes do advento dessa legis-laccedilatildeo jaacute existiam empresas comerciais exportadoras Logo a contribuiccedilatildeo da legislaccedilatildeo foi estabelecer uma categoria especiacutefica de comerciais exportado-ras ndash as que se enquadrassem no disposto no art 2ordm do referido Decreto-lei Este determinava exigecircncias quanto ao capital miacutenimo e agrave organizaccedilatildeo societaacuteria das tradings que pretendiam i) minimizar a proba-bilidade de as firmas natildeo honrarem seus compro-missos ii) influenciar esse mercado com a visatildeo de que a escala miacutenima eficiente para essas empresas deveria ser mais elevada (em linha com a experiecircn-cia japonesa) e iii) facilitar a fiscalizaccedilatildeo

Daiacute decorre a distinccedilatildeo entre trading company e comercial exportadora A primeira segue os ditames prescritos no art 2ordm do Decreto Lei nordm 1248 de 1979 quais sejam compor uma sociedade de accedilotildees accedilotildees essas nominativas e com direito a voto possuir ca-pital miacutenimo estabelecido pelo Conselho Monetaacuterio Federal e natildeo constar puniccedilotildees em decisatildeo administrativa final por infraccedilotildees relativas ao comeacutercio exterior

Hodiernamente a diferenciaccedilatildeo entre os dois citados insti-tutos se daacute no atinente ao porte em que as tradings desempenham maiores operaccedilotildees que as comerciais exportadoras

Insta ressaltar que Pereira e Boavista (Idem p 72-73) nota-ram essa mudanccedila Conforme os autores

[] os termos trading company e comercial exportado-ra tecircm no Brasil uma dimensatildeo conceitual maior do que quando foram estabelecidos Ou seja natildeo cabe mais a associaccedilatildeo do termo trading apenas agrave expor-taccedilatildeo indireta pois essas empresas atuam tanto na compra de mercadorias para exportaccedilatildeo quanto no auxiacutelio a outras empresas que pretendem exportar diretamente ndash oferecendo uma gama de serviccedilos de exportaccedilatildeo que ultrapassa em muito a simples ati-vidade de intermediaccedilatildeo comercial caracterizando-as como facilitadoras ou mesmo consultoras de

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exportaccedilatildeo Os serviccedilos oferecidos atualmente pelas tradings satildeo - Intermediaccedilatildeo comercial - Prospecccedilatildeo comercial estudos de mercado iden-tificaccedilatildeo de clientes canais de comercializaccedilatildeo etc - Accedilotildees de promoccedilatildeo comercial feiras material pro-mocional propaganda encontros de negoacutecios etc - Suporte logiacutestico preparaccedilatildeo de documentaccedilatildeo contrataccedilatildeo de transporte domeacutestico e internacional armazenagem serviccedilos alfandegaacuterios etc - Apoio agrave organizaccedilatildeo da produccedilatildeo e agrave adaptaccedilatildeo de produtos (regulamentos e normas teacutecnicas design etiquetagem embalagem etc) - Serviccedilos financeiros gerenciamento de risco e se-guros estruturaccedilatildeo de operaccedilatildeo de financiamento pagamento a fornecedores etc

Notam-se as grandes estruturas envolvendo as tradings ateacute mesmo pelo fato de a maior parte dessas manter relaccedilotildees dire-tas com paiacuteses de ilibada conduta no tocante ao mercado externo para o ecircxito de suas atividades

Natildeo se deve olvidar que ao se relacionar com os outros paiacuteses os contratos firmados com as tradings devem ser estipula-dos conforme a legislaccedilatildeo do paiacutes cliente Paiacutes cliente entende-se o Estado destinataacuterio da exportaccedilatildeo o qual fixaraacute o contrato res-peitando as regras de seu ordenamento juriacutedico A tiacutetulo de exem-plificaccedilatildeo se uma tranding nacional firmar contrato de exportaccedilatildeo com a China as claacuteusulas constantes nesse instrumento seguiratildeo as normativas do direito chinecircs Logo a depender do Estado clien-te as regras seratildeo modificadas

Aleacutem de se relacionar com outros Estados as tradings ne-gociam com os fornecedores internos de commodities que podem ser empresas ou pessoas fiacutesicas por meio de contratos que deveratildeo obedecer ao ordenamento paacutetrio

Eacute justamente frente aos fornecedores que as tradings vecircm importando a claacuteusula objeto de estudo e aplicando-as sobre os contratos firmados em domiacutenio nacional

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APLICACcedilAtildeO DO ldquoWASH OUTrdquo NO BRASIL

Internamente as tradings e os fornecedores de produtos agriacutecolas estabelecem contratos em sua maioria de compra e ven-da nos quais os fornecedores entregam na data aprazada a quan-tidade acordada do produto E para tanto em algum grande porto do Brasil jaacute existe um navio para exportar tais produtos

Por se tratar de relaccedilotildees comerciais de vultosas quantias os referidos instrumentos preveem claacuteusulas penalizadoras graves nos casos de inadimplemento contratual Eacute visando ao cumpri-mento total do acordado que se firma um ajuste entre as tradings e os paiacuteses-clientes no qual se estipula uma multa de elevado valor para cada dia que o mesmo navio ficar agrave espera da mercadoria Eacute o chamado demurrage ou sobre-estadia que segundo Gabardo (2011 p 2)

Nos contratos de transporte mariacutetimo de cargas o transportador se compromete mediante contrapres-taccedilatildeo do frete a transportar a mercadoria consigna-da pelo embarcador ao destino acordado Para que esta transaccedilatildeo possa ser efetuada normalmente o transportador concede ao usuaacuterio um determinado prazo de dias livres (estadia) para a realizaccedilatildeo das operaccedilotildees de carga e descarga das mercadorias Contudo havendo excesso ao periacuteodo estipulado tanto na utilizaccedilatildeo do navio quanto das unidades de cargas (contecirciner) o embarcador estaraacute incorrendo em sobre-estadia sobredemora ou demurrage como eacute internacionalmente conhecida

Batista (2011 p 2) ressalta que ldquopor dia extra cada navio gera entre US$ 15 mil e US$ 30 mil de penalidade ao embarcador ou seja agraves tradings exportadoras de commoditiesrdquo Logo a cada dia de atraso no embarque das commodities as tradings tecircm que arcar com essa excessiva penalidade

Nota-se a importacircncia dada ao princiacutepio do pacta sunt ser-vanda Por se tratar de comeacutercio internacional este princiacutepio deve ser respeitado para que a credibilidade e confiabilidade do paiacutes

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bem como das tradings natildeo sejam questionadasEntretanto visando minimizar as perdas eventualmente

tidas com a sobre-estadia as tradings estabelecem uma disposiccedilatildeo contratual aos produtores nacionais e por meio dela comerciali-zam no caso de inadimplemento Eacute a figura conhecida como ldquowash outrdquo termo derivado da liacutengua inglesa que significa ldquodesgastarrdquo

Salienta-se sua novidade no ordenamento juriacutedico interno fato que impossibilita maiores pesquisas e embasamento teoacutericos a seu respeito Primeiramente analisou-se o ordenamento da Aus-traacutelia paiacutes que possui o GTA (About Grain Trade Australia 2014) que significa Comeacutercio de Gratildeos da Austraacutelia o qual aleacutem de ou-tras funccedilotildees desempenha a arbitragem como forma de lidar com os conflitos derivados dos contratos agriacutecolas

O regramento estabelecido pelo GTA natildeo define o ldquowash outrdquo que usualmente eacute utilizado pelas induacutestrias nos casos de exe-cuccedilatildeo contratual em que uma das partes natildeo consegue adimplir suas obrigaccedilotildees Em natildeo havendo um acordo entre as partes no tocante ao valor do ldquowash outrdquo as induacutestrias podem socorrer do Serviccedilo de Resoluccedilatildeo de Disputas (Idem)

O ldquowash outrdquo em sua grande maioria implica o paga-mento de uma parte para outra havendo manifestaccedilatildeo de vontade de ambas Desse modo qualquer das partes entrevendo que natildeo conseguiraacute executar sua obrigaccedilatildeo pode utilizar-se do instituto em comento ateacute mesmo como forma de se resguardar quanto agraves osci-laccedilotildees de mercado (GTA 2011)

Nos casos de quebra de safra ou eminente quebra de safra os vendedores podem escolher pelo ldquowash outrdquo ou buscar gratildeos em substituiccedilatildeo no mercado Dessa forma o ldquowash outrdquo seraacute cal-culado pela diferenccedila entre o preccedilo fixado no contrato e o seu valor no comeacutercio no momento em que for estipulado podendo a ele agregar alguns outros encargos administrativos (Idem)

No Brasil o tema em comento ganhou outra roupagem Via de regra vem embutida nos contratos de compra e venda Pode tambeacutem ser objeto de um contrato autocircnomo habitualmente chamado de ldquoacordo de wash outrdquo Ambos satildeo constituiacutedos de ma-

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neira unilateral pelas tradings Assim como na Austraacutelia o ldquowash out brasileirordquo tem por

escopo a indenizaccedilatildeo sobre a valorizaccedilatildeo das commodities no mer-cado ou seja a diferenccedila entre o preccedilo no momento da celebra-ccedilatildeo do contrato e no instante em que o mesmo for descumprido e aquele comprador tiver que procurar no mercado do dia o produto que deseja

Isso se daacute quando os contratos agriacutecolas de compra e ven-da desses produtos satildeo ratificados meses antes da sua execuccedilatildeo A tiacutetulo de exemplo se o negoacutecio juriacutedico tiver por objeto a safra de soja eacute celebrado no dia em que o custo da saca de soja eacute de R$ 6000 (sessenta reais) o contrato teraacute por base esse valor poreacutem a execuccedilatildeo do contrato se daraacute alguns meses apoacutes Se na data apra-zada o contrato natildeo for cumprido e o valor da soja agrave eacutepoca for de R$ 7000 (setenta reais) o ldquowash outrdquo consistiraacute em R$ 1000 (dez reais) de diferenccedila por cada saca de soja

Poreacutem no ordenamento juriacutedico brasileiro o ldquowash outrdquo possui diferentes caracteriacutesticas Conforme anteriormente dito em territoacuterio nacional ele natildeo eacute estipulado conforme a vontade dos contratantes e sim de acordo com a conveniecircncia das tradings Ou-tro atributo se daacute ao fato de nos contratos originaacuterios envolvendo aquisiccedilatildeo de commodities ter presente alguma claacuteusula estipulando indenizaccedilotildees no caso de descumprimento da obrigaccedilatildeo ateacute mesmo porque no sistema paacutetrio vigente haacute mecanismo para tais casos Desse modo estabelecer o ldquowash outrdquo seria aplicar duplamente a penalizaccedilatildeo em virtude do inadimplemento

A propriedade que atinge diretamente o agricultor eacute o va-lor fixado a tiacutetulo de ldquowash outrdquo Ao inveacutes de seguir os paracircmetros convencionais do referido instituto estrangeiro e de o quantum ser aferido em razatildeo da diferenccedila existente entre o preccedilo da commodi-ty no momento da contrataccedilatildeo e no instante da inadimplecircncia no Brasil esse valor jaacute vem previamente ajustado de forma unilateral pelas tradings

Na grande maioria das vezes o custo do ldquowash outrdquo eacute tatildeo excessivo que pode atingir a integralidade do valor objeto do

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contrato Evidentemente natildeo se eacute averiguada a diferenccedila a qual o ldquowash outrdquo propotildee

Conceitualmente ldquowash outrdquo eacute uma claacuteusula existente nos contratos agraacuterios que estipulam uma indenizaccedilatildeo excessivamente onerosa para o contraente que natildeo cumprir suas obrigaccedilotildees in-denizaccedilatildeo essa que teoricamente consiste na diferenccedila valorativa das commodities existentes entre o dia da ratificaccedilatildeo do contrato e o da inadimplecircncia por conta de oscilaccedilotildees do mercado Eacute justa-mente nesse contexto que aleacutem de ferir uma seacuterie de normativas paacutetrias fere frontalmente os princiacutepios aqui em vigor dentre os quais alguns seratildeo adiante ponderados

Princiacutepios aplicaacuteveis ao ldquowash outrdquo

Ao adentrar o ordenamento paacutetrio o ldquowash outrdquo deveraacute obedecer aos princiacutepios aqui vigentes dentre eles os infratranscri-tos Como marca inicial tem-se a boa-feacute como sendo o princiacutepio fundamental das relaccedilotildees entre os seres humanos inclusive nas mediaccedilotildees contratuais

Para Vilaccedila (1995 p 98)

O princiacutepio da boa-feacute deve ser antes de tudo men-cionado pois ele assegura o acolhimento do que eacute liacutecito e a repulsa ao iliacutecito A contrataccedilatildeo de boa-feacute eacute a essecircncia do proacuteprio en-tendimento entre os homens e a presenccedila da eacutetica nos contratos Sim porque a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da boa-feacute traz para a ordem juriacutedica um elemento de Direito Natural que passa a integrar a norma de direito

Tal vetor permeia o ordenamento juriacutedico por inteiro Eacute interessante destacar o que o Coacutedigo Civil Portuguecircs assevera so-bre o assunto

Artigo 227(Culpa na formaccedilatildeo dos contratos)Quem negocia com outrem para conclusatildeo de um

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contrato deve tanto nos preliminares como na for-maccedilatildeo dele proceder segundo as regras da boa feacute sob pena de responder pelos danos que culposamen-te causar agrave outra parte (Portugal Lei 822014)

Nota-se que ao estipular o ldquowash outrdquo nos contratos haacute uma afronta direta ao princiacutepio em voga pois o contratante ao estipular a tal claacuteusula ao menos pode aferir se de fato haveraacute um efetivo dano na data aprazada

Por atuar como uma espeacutecie de indenizaccedilatildeo aos danos fu-turos e constituir uma claacuteusula com valor excessivo o ldquowash outrdquo evidentemente viola o princiacutepio da boa feacute O princiacutepio de liberda-de contratual se presta a defender aquela parte que nas relaccedilotildees contratuais natildeo possui livre-arbiacutetrio para dispor sobre seus inte-resses ficando atrelada agrave vontade da parte adversa

Isso ocorre por haver na relaccedilatildeo contratual uma parte mais vulneraacutevel que a outra a qual acaba por aceitar as imposiccedilotildees para natildeo perder o negoacutecio No caso em voga pelo fato de os produtores de commodities serem a parte mais fraca pois dependem direta-mente das atividades das tradings para exportaccedilatildeo surge um qua-se dever em aceitar os termos contratualmente ordenados Com isso lesotildees satildeo ocasionadas

Nesta senda Vilaccedila (1995 ano p 99-100) preceitua

Realizado o pacto sob essa pressatildeo a lesatildeo ocorre sendo difiacutecil e custosa a reparaccedilatildeo para repor certos valores destruiacutedos Se dermos forccedila demais agrave liberdade contratual fi-cando o homem livre na sociedade sem condiccedilotildees de discutir razoavelmente sobre suas convenccedilotildees seraacute ele o mesmo que um paacutessaro libertado de um a gaiola ao faacutecil alcance de um gaviatildeo pronto para atacaacute-lo Pouco duraria a liberdade daquele

Deste modo embora haja liberdade nos contratos certas limitaccedilotildees devem ser imanentes ao princiacutepio em comento em res-peito agrave sistemaacutetica do direito

Outro ponto que merece destaque eacute o princiacutepio da funccedilatildeo

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social dos contratos bem esclarecido por Vilaccedila (2011 p 100)

Por esse princiacutepio os contratos desempenham um relevante papel na sociedade nacional e internacio-nalmente considerada Pelos contratos os homens devem compreender-se e se respeitar para que encontrem um meio de enten-dimento e de negociaccedilatildeo sadia de seus interesses e natildeo um meio de opressatildeo

Assim sendo a real funccedilatildeo desempenhada pelo contrato de compra e venda entre produtores e tradings consiste no justo preccedilo da aquisiccedilatildeo das commodities e a entrega da mercadoria con-forme o convencionado pautando-se pela boa-feacute Menccedilotildees contra-tuais que contrariem esse postulado certamente causaratildeo danos a algumas das partes

Pela comutatividade princiacutepio imanente ao direito tem-se que as prestaccedilotildees e contraprestaccedilotildees devem ser equilibradas sendo impostas aos contratantes para terem ciecircncia desde o iniacutecio do negoacutecio juriacutedico de seus lucros e perdas

Um dos principais postulados estaacute estampado no princiacute-pio Rebus sic stantibus que pode ser traduzido pela expressatildeo ldquoas coisas estatildeo assimrdquo No direito moderno eacute conhecido como teoria da imprevisatildeo tendo por escopo relativizar o princiacutepio do pacta sunt servanda em relaccedilatildeo aos fatos que se alterarem notadamente no transcorrer do contrato

Para tanto nos moldes de Vilaccedila (2011 p 101-102)

Todavia essa claacuteusula considerada pela Doutrina e pela Jurisprudecircncia brasileiras como existente em todos os contratos ainda que natildeo expressamente contratada apresenta-se com trecircs pressupostos fun-damentais autorizadores de sua aplicaccedilatildeoDeve ocorrer primeiramente uma alteraccedilatildeo radical do contrato em razatildeo de circunstacircncias imprevistas e imprevisiacuteveis (aacutelea extraordinaacuteria) []Por outro lado eacute preciso que exista enriquecimento prejuiacutezo inesperado e injusto por um dos contratan-tes

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O terceiro pressuposto eacute a onerosidade excessiva que sofre um dos contratantes tornando-se para ele insuportaacutevel a execuccedilatildeo contratual Com o visto torna-se impossiacutevel a aplicaccedilatildeo da claacuteu-sula ldquorebus sic stantibusrdquo ante a natildeo-ocorrecircncia de um desses trecircs pressupostos

Diante do ldquowash outrdquo eacute evidente que por se tratar de pro-duto agriacutecola depende diretamente de vaacuterios fatores naturais os quais o ser humano natildeo pode influir os riscos da atividade satildeo maiores podendo ocorrer uma modificaccedilatildeo ao longo da vigecircncia contratual que impossibilita o cumprimento do mesmo Entra em cena o princiacutepio supracitado por nortear o operador do direito

Por fim destaca-se o princiacutepio da onerosidade excessiva no qual um dos contratantes estipula uma obrigaccedilatildeo exagerada ao outro

Aplicando-se ao ldquowash outrdquo os produtores ao negocia-rem com as tradings ou ateacute mesmo com outras empresas ficam res-ponsabilizados por no caso de inadimplecircncia ainda que parcial a indenizar uma grandiosa quantia monetaacuteria Tal fato causa seacuterias lesotildees aos produtores que natildeo possuem condiccedilotildees de arcar com esta claacuteusula abusiva

Vilaccedila (2011 p103) sabiamente leciona

Ao Direito repugna a atuaccedilatildeo iliacutecita e mesmo o en-riquecimento indevido pois a lesatildeo estaacute presente neles O fenocircmeno da lesatildeo no direito contratual moder-no deve ser encarado objetivamente Causado o prejuiacutezo ocorrendo o desequiliacutebrio nas prestaccedilotildees deve ser o reestabelecimento da igualdade entre os contratantes Isto porque o agravamento unilateral da prestaccedilatildeo de uma das partes contratantes torna excessivamente onerosa sua obrigaccedilatildeo e via de con-sequecircncia insuportaacutevel o cumprimento desta

Desse modo sendo o ldquowash outrdquo onerosamente excessivo acaba por violar natildeo soacute o princiacutepio em voga como todos os ante-

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riormente aduzidos

Implicaccedilotildees do ldquowash outrdquo no direito paacutetrio

Por ter adentrado o direito brasileiro o ldquowash outrdquo deve ser guiado pelos preceitos estatuiacutedos na Magna Carta e legislaccedilotildees infraconstitucionais

E ainda que a Secretaria de Comeacutercio Exterior tenha pu-blicado a Portaria nordm 15 de 17 de novembro de 2004 disciplinando alguns pontos no tocante ao ldquowash outrdquo natildeo houve eficaacutecia e apro-veitamento algum para o ordenamento juriacutedico brasileiro embora pudesse ser uacutetil uma vez que preleciona o seguinte

O SECRETAacuteRIO DE COMEacuteRCIO EXTERIOR DO MINISTEacuteRIO DO DESENVOLVIMENTO INDUacuteS-TRIA E COMEacuteRCIO EXTERIOR no exerciacutecio de suas atribuiccedilotildees com fundamento no art 15 do Ane-xo I ao Decreto nordm 4632 de 21 de marccedilo de 2003 vi-sando consolidar as disposiccedilotildees regulamentares das operaccedilotildees de exportaccedilatildeo resolvesect 8ordm Poderatildeo ser acolhidos pedidos de operaccedilotildees de recompra (wash out) desde que atendam aos seguin-tes requisitos preliminaresI - ganho cambial (preccediloprecircmio da recompra obri-gatoriamente inferior ao da venda) em cada RV a ser definido de acordo com as condiccedilotildees de mercado na eacutepoca do pedido de recompraII - ser submetido a exame na data de sua negocia-ccedilatildeo acompanhado de documentaccedilatildeo pertinenteIII - a empresa deveraacute comprovar o efetivo ingres-so das divisas no prazo de dez dias uacuteteis contados a partir da data da negociaccedilatildeo mediante apresentaccedilatildeo do contrato de cacircmbio relativo agrave operaccedilatildeo de recom-pra devidamente liquidado (BRASIL 2004)

Depreende-se da assertiva acima que foram estabelecidos alguns criteacuterios miacutenimos para aplicaccedilatildeo do ldquowash outrdquo elementos esses que poderiam servir de paracircmetros para delinear os contra-tos uma vez que traz preceitos importantes inclusive de acordo com o inciso I ao prever o pagamento do valor agrave eacutepoca da recom-pra

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Haacute tambeacutem o informe da Associaccedilatildeo de Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (APROSOJA) que conceitua o tema em voga

22 Claacuteusula de indenizaccedilatildeo (wash-out) Essa claacuteu-sula normalmente prevecirc a obrigaccedilatildeo de que aquele que der causa agrave rescisatildeo do contrato deve pagar agrave outra o valor do produto adquirido no dia da liqui-daccedilatildeo do contrato (no dia da entrega do produto) e normalmente possui a seguinte descriccedilatildeo a ser ve-rificada contrato por contrato ldquo[] sobre o produto natildeo entregue o produtor deveraacute arcar com perdas e danos que fica estipulada em 100 do preccedilo do pro-duto comercializado ao preccedilo do produto na data de entrega []rdquo (2016 p 3)

Contudo natildeo se mostra suficiente a conceituaccedilatildeo acima aleacutem de deixar em completo desequiliacutebrio as partes contratantes ao previamente fixar multa de 100 sobre o descumprimento con-tratual

O ordenamento juriacutedico brasileiro possui todas as ferra-mentas necessaacuterias para que a parte que descumprir o contrato arque com os prejuiacutezos causados Sendo assim o ldquowash outrdquo tal qual estaacute sendo aplicado no Brasil natildeo possui embasamento legal por desrespeitar aleacutem dos princiacutepios supramencionados as regras do Coacutedigo Civil Estando previsto em uma claacuteusula resta configu-rada sua abusividade sustentada pela onerosidade excessiva de que se reveste correspondendo a uma consideraacutevel porcentagem do valor da obrigaccedilatildeo originaacuteria

Considerando um negoacutecio juriacutedico o ldquowash outrdquo pode ser analisado sob a tricotomia deste No plano da existecircncia de fato os requisitos estatildeo preenchidos Na validade a manifestaccedilatildeo da vontade deve ser livre e como discorrido anteriormente pode ocorrer de o ldquowash outrdquo ser uma claacuteusula praticamente imposta para celebraccedilatildeo do acordo Nesse caso viciado estaria conduzindo agrave nulidade da claacuteusula

Atinente agrave eficaacutecia certamente o ldquowash outrdquo poderaacute surtir efeitos juriacutedicos Neste contexto se insere o papel acadecircmico vi-

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sando auxiliar a jurisprudecircncia na dinacircmica do tema por ser um assunto novo e complexo Como exemplo cito o Acoacuterdatildeo 1268606-7 do estado do Paranaacute no qual a douta Relatora entendeu pela legalidade da claacuteusula ldquowash outrdquo por natildeo julgaacute-la abusiva (BRA-SIL Acoacuterdatildeo na Apelaccedilatildeo 1268606-7)

Nesta senda papel de destaque possuem os trabalhos aca-decircmicos por fomentar o assunto e auxiliar os operadores do di-reito na compreensatildeo do tema em comento e por mais intrincado que seja necessaacuteria eacute essa construccedilatildeo pela real tendecircncia do ldquowash outrdquo ser mais utilizado acarretando disputas judiciais sobre sua incidecircncia

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Por ser algo novo no cenaacuterio brasileiro a escassez de ma-terial foi um grande obstaacuteculo na elaboraccedilatildeo do presente trabalho que se fundou basicamente em publicaccedilotildees dos primeiros advoga-dos a terem contato com o tema em anaacutelise

Enfatizaram-se os papeacuteis das tradings nesse contexto res-saltando-se as forccedilas de tais empresas nas relaccedilotildees comerciais e a influecircncia que as mesmas possuem ao estipular os termos contra-tuais nos quais os produtores acabam ratificando para natildeo perder o negoacutecio

Eacute justamente nesse contrato que se insere o ldquowash outrdquo uma claacuteusula que originariamente visa restituir a valorizaccedilatildeo da commodity entre o periacuteodo em que foi estabelecido o contrato e o momento em que o mesmo foi inadimplido Meses se passam en-tre esses fatos e havendo aumento de preccedilo das commodities eacute o ldquowash outrdquo que iraacute restauraacute-lo

No Brasil foram dados agrave referida claacuteusula contornos di-versos dos originalmente estabelecidos nos paiacuteses estrangeiros conforme o acima exposto Aqui o ldquowash outrdquo eacute uma claacuteusula por vezes abusiva que visa agrave reparaccedilatildeo de possiacutevel dano na maioria das vezes alcanccedilando valores exorbitantes

Reiterada estaacute se tornando tal praacutetica que eacute questatildeo de

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tempo ateacute chegar ao judiciaacuterio oacutergatildeo que deveraacute ter embasamento teoacuterico para realizar um julgamento de forma equacircnime visando compreender um instituto que natildeo eacute de faacutecil assimilaccedilatildeo aleacutem de afrontar princiacutepios e normas do direito interno

Postulados como boa-feacute liberdade contratual funccedilatildeo so-cial do contrato comutatividade rebus sic stantibus e onerosidade excessiva devem ser considerados quando o assunto eacute ldquowash outrdquo A depender do contexto em que eacute inserido e da sua quantificaccedilatildeo monetaacuteria poderaacute afrontar diretamente os princiacutepios supracita-dos

Aparentemente o ldquowash outrdquo como vem sendo posto possui linhas de ilegalidade justamente por ferir regras e princiacute-pios vigentes no ordenamento juriacutedico nacional Visto sobre o pla-no tricotocircmico dos negoacutecios juriacutedicos tambeacutem seraacute necessaacuterio um estudo casuiacutestico no tocante agrave validade e eficaacutecia

Nos moldes como foi introduzido no Brasil o ldquowash outrdquo eacute uma penalidade em repeticcedilatildeo por jaacute existirem no ordenamento paacutetrio mecanismos aptos a penalizar quem descumprir o contrato O ldquowash outrdquo teve sua forma originaacuteria totalmente desviada e por assim ser natildeo foi adaptado e inserido como uma ferramenta eficaz

Eacute importante dizer que por ser uma novidade estrangeira o ldquowash outrdquo pode ser adaptado ao direito paacutetrio obedecendo ao ordenamento aqui instituiacutedo ponderaccedilatildeo essa que seraacute realizada pelo poder judiciaacuterio o qual recorreraacute dos estudos acadecircmicos e doutrinaacuterios para o julgamento das lides

Destarte registra-se que o assunto em voga merece fo-mento e destaque por ser atual e de grande importacircncia para o sistema juriacutedico

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A FRONTEIRA JURIacuteDICO-POLIacuteTICA ENTRE OS SISTEMAS JURIacuteDICOS DA COMMON LAW E DA CIVIL LAW E SEUS IM-PACTOS NO DIREITO PAacuteTRIO

Ana Paula Soares de Souza1

Danilo Pires Atala2

RESUMO Este trabalho tem como objetivo apresentar as peculiaridades existentes entre os sistemas juriacutedicos da Common Law e da Civil Law com enfoque respectivamente nos ordenamentos juriacutedicos norte-americano e francecircs na perspectiva de Garapon e de outros estudiosos do direito E visa principalmente realccedilar as influecircncias que tais sistemas juriacutedicos realizaram no direito paacutetrio por meio de comparaccedilotildees mostrando que o direito brasileiro atual possui um sistema misto Para esse fim estruturou-se o trabalho em trecircs momentos distintos primeiramente fez-se uma abordagem geral apontando caracteriacutesticas que o Brasil positivou do Common Law para seu ordenamento juriacutedico Apoacutes demonstrou-se como o contexto histoacuterico influenciou sobremaneira a adoccedilatildeo deste ou daquele sistema juriacutedico E por fim explanou-se que a globalizaccedilatildeo e a tecnologia foram transformando o sistema juriacutedico brasileiro outrora extremamente arraigado na cultura Civil Law em um sistema juriacutedico misto que ora utiliza-se apenas da lei ora utiliza-se de um precedente para analisar um caso concreto

PALAVRAS-CHAVE Civil Law Common Law Sistema juriacutedico brasileiro

ABSTRACT This paper aims to present the peculiarities existing between the legal system of Common Law and Civil Law with a focus respectively on the North American and French legal systems from the perspective of Garapon and other scholars of

1 Acadecircmica do 8ordm periacuteodo do Curso de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT2 Professor Doutor do Departamento de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT

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law And purpose to highlight the influence of such legal systems on brasilian through comparisons showing that current brazilian legal system has a mixed system To this end the present work was structured in three distinct moments first a general approach was made pointing out characteristics that Brazil positived from Common Law to its legal order Afterwards it was demonstrated how the historical context greatly influenced the adoption of this or that legal system And finally it was explained that globalization and technology were transforming the Brazilian legal system once deeply rooted in a Civil Law culture to a mixed legal system that now uses only the law or a precedent is used to analyze a concrete case

KEYWORDS Civil Law Common Law Brazilian legal system

INTRODUCcedilAtildeO

O presente artigo tem por objeto caracterizar a diferenccedila entre os sistemas juriacutedicos Common Law e Civil Law tendo como fronteira juriacutedico-poliacutetica a Europa Continental a Inglaterra e os Estados Unidos da Ameacuterica Emprega-se o meacutetodo juriacutedico des-critivo que permite a decomposiccedilatildeo do problema em diferentes niacuteveiselementos e estabelece as interligaccedilotildees entre os mesmos para analisar e responder ao problema proposto

O sistema juriacutedico nacional embora seja tradicionalmen-te legislado aos poucos vai incorporando teorias e institutos do sistema da Common Law como por exemplo a suacutemula vinculante introduzida pela Emenda Constitucional 0452004 que acresceu o art 103-A Ainda tem-se os exemplos do que se convencionou chamar de direito jurisprudencial nos artigos 489 V-VI e 947 e 976 do Coacutedigo de Processo Civil de 2015 principalmente no art 926 que estabelece o dever dos tribunais de manter a jurisprudecircncia integra estaacutevel e coerente em evidente agasalhamento da Teoria do Direito com Integridade de Ronald Dworkin (1999) Ainda neste sentido destaca-se que no Brasil o reconhecimento da uniatildeo ho-moafetiva decorreu da construccedilatildeo ou criaccedilatildeo jurisprudencial no julgado do STF na ADI nordm 4277 e ADPF nordm 132 Assim entender as

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distinccedilotildees e as caracteriacutesticas destes dois sistemas proporcionaraacute uma melhor compreensatildeo do proacuteprio direito nacional

Breves apontamentos acerca dos Sistemas Juriacutedicos Common Law e Civil Law

O Sistema Civil Law tambeacutem usualmente apelidado de ldquoromano-germacircnicordquo diz respeito aos paiacuteses que cunharam a ciecircn-cia do direito tendo como base o direito romano cujo nascedouro se deu na Europa Nos dizeres de David (2002) os primoacuterdios do sistema Civil Law remontam aos seacuteculos XII e XIII Historicamente esse periacuteodo corresponde agrave fase em que as cidades e o comeacutercio comeccedilaram a se expandir fato que intensificou na sociedade da eacutepoca o ideal de que somente o direito pode assegurar a ordem e a segu-ranccedila necessaacuterias ao progresso (DAVID idem p 39) Com este vieacutes Medeiros (2009) diz que o ideal de uma sociedade cristatilde fundada na caridade eacute abandonado o que produz uma ruptura entre o di-reito e a religiatildeo tornando-se o direito autocircnomo

Aponta Cretella (1986) como jaacute foi dito na Roma Antiga que o direito passou a se constituir extraindo o preceito juriacutedico dos casos concretos cotidianos identificando sua classificaccedilatildeo e em seguida aplicando-se a novos casos Por isso muitos doutri-nadores apontam que o Estado Romano foi fundamental para a histoacuteria do direito constituindo-se em um divisor de aacuteguas nos processos de formaccedilatildeo dos sistemas de Civil Law e Common Law

A partir do momento em que a academia passou a se uti-lizar de textos romanos acabou por incorporar o conteuacutedo termi-noloacutegico e conceitual bem como a teacutecnica proacutepria de raciociacutenio juriacutedico para o desenvolvimento das regras juriacutedicas Tal entendi-mento juriacutedico se caracteriza mormente pelo fato de suas regras de direito serem concebidas como regras de conduta

Segundo Bobbio (1995 p 64-65) em seu livro O Positivis-mo Juriacutedico

[] a exigecircncia da codificaccedilatildeo nasceu de uma con-cepccedilatildeo francamente iluminista como demonstra

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o mote sapere aude citado por Thibaut tambeacutem na Franccedila (e na verdade com maior razatildeo visto ser este paiacutes a paacutetria maior do iluminismo) a ideacuteia de co-dificaccedilatildeo eacute fruto da cultura racionalista e se aiacute pocircde se tornar realidade eacute precisamente porque as ideacuteias iluministas se encarnaram em forccedilas histoacuterico-poliacuteti-cas dando lugar agrave Revoluccedilatildeo Francesardquo Eacute de fato propriamente durante o desenrolar da Revoluccedilatildeo Francesa (entre 1790 e 1800) que a ideacuteia de codificar o direito adquire consistecircncia poliacutetica

Diversos acontecimentos na Franccedila no seacuteculo XIX como a uniatildeo do monarca e da nobreza abusos excessivos de privileacutegios dos nobres do clero e tambeacutem dos magistrados conforme Sam-paio (2001) resultaram na Revoluccedilatildeo Francesa que foi o grande marco histoacuterico responsaacutevel pela consolidaccedilatildeo de um novo mode-lo juriacutedico riacutegido pois os revolucionaacuterios desse momento enxerga-ram a necessidade de conter a atuaccedilatildeo judicial que nos dizeres de Marinoni (2009 p 46)

[] para a Revoluccedilatildeo francesa a lei seria indispen-saacutevel para a realizaccedilatildeo da liberdade e da igualdade Por este motivo entendeu-se que a certeza juriacutedica seria indispensaacutevel diante das decisotildees judiciais uma vez que caso os juiacutezes pudessem produzir deci-sotildees destoantes da lei os propoacutesitos revolucionaacuterios estariam perdidos ou seriam inalcanccedilaacuteveis A cer-teza do direito estaria na impossibilidade de o juiz interpretar a lei ou melhor dizendo na proacutepria lei Lembre-se que com a revoluccedilatildeo francesa o poder foi transferido ao parlamento que natildeo podia confiar no judiciaacuterio

Do mesmo modo para Wambier (2010) a lei nesse pe-riacuteodo passou a ter o papel fundamental de representar um ideal de igualdade impossibilitando qualquer forma de interpretaccedilatildeo devendo nesse contexto histoacuterico ao magistrado restringir sua decisatildeo ao texto legal A concepccedilatildeo de igualdade no Civil Law era associada agrave rigorosa aplicaccedilatildeo da lei o que deu origem a um in-tenso processo de codificaccedilatildeo do direito cabendo ao juiz a funccedilatildeo

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de apenas aplicar as leis positivadas garantindo deste modo uma igualdade meramente formal

Assim aleacutem de restringir a aplicaccedilatildeo do direito pelo ma-gistrado fez com que o direito se transfigurasse na mera aplicaccedilatildeo do positivismo legislativo sem nenhuma anaacutelise das peculiarida-des do caso concreto Conforme Grossi (2006) todo o direito da eacutepoca iniciando-se com o direito civil foi aprisionado em milhares de artigos organicamente sistematizados e contidos em alguns li-vros chamados ldquocoacutedigosrdquo

Marinoni (2010) de forma brilhante aponta que natildeo eacute o fato de se ter coacutedigos ou natildeo que determina o modelo juriacutedico ado-tado a distinccedilatildeo eacute feita sobretudo a partir da concepccedilatildeo de coacutedigo que cada indiviacuteduo possui Na sua concepccedilatildeo no Common Law os coacutedigos natildeo pretendem coibir a interpretaccedilatildeo da lei razatildeo pela qual se houver um conflito entre uma lei codificada e uma empre-gada pela Common Law ficaraacute ao encargo do juiz interpretar qual das duas deveraacute ser aplicada

Dentre os vaacuterios paiacuteses que adotaram tal sistema cita-se o Brasil que por ter sido colocircnia de Portugal e nele predominar o sis-tema romano-germacircnico teve no nascedouro da ciecircncia do direito uma geraccedilatildeo de legisladores e juristas que procuravam codificar para deste modo reformular comportamentos Vejamos

[] em face de sua tradiccedilatildeo romanista o Direito Bra-sileiro tambeacutem eacute marcado pela sistematizaccedilatildeo e pela codificaccedilatildeo bem como por fazer uso de institutos originados no Direito Romano e revistados pelos doutrinadores da Europa Continental poacutes Idade Meacutedia [] O ensino do Direito no Brasil somente se iniciou em 1827 entretanto por conta da presenccedila dos jesuiacutetas e com a ida de jovens a Portugal para se tornarem bachareacuteis os estudos da Universidade de Coimbra acabaram cruzando o Atlacircntico ainda na eacutepoca colonial (SANTOS 2010 p 25)

A tiacutetulo de exemplo o Coacutedigo Civil de 1916 se encontra abarrotado de institutos oriundos do Direito Portuguecircs que por sua vez tem suas raiacutezes juriacutedicas provenientes do Direito Romano

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Em contraponto tem-se o sistema Common Law que tem suas raiacutezes nas estruturas judiciaacuterias da Inglaterra Paiacutes de Gales Irlanda do Norte e Escoacutecia e que embora tenham particularidades em razatildeo de vicissitudes histoacutericas todas elas satildeo baseadas no di-reito casuiacutestico ou case law segundo Oliveira (apud TUCCI 2010)

Diferentemente do sistema Civil Law que se deu precipu-amente mediante fases histoacutericas o sistema Common Law se deu de maneira ininterrupta baseado no cotidiano da sociedade ingle-sa ou seja ele foi se transformando no decorrer das relaccedilotildees esta-belecidas

Nas palavras de Wambier (2009 p 54)

O common law natildeo foi sempre como eacute hoje mas a sua principal caracteriacutestica sempre esteve presente casos concretos satildeo considerados fonte do direito O direito inglecircs berccedilo de todos os sistemas de common law nasceu e se desenvolveu de um modo que pode ser qualificado como ldquonaturalrdquo os casos iam sur-gindo iam sendo decididos Quando surgiam casos iguais ou semelhantes a decisatildeo tomada antes era repetida para o novo caso Mais ou menos como se dava no direito romano

Denota-se pelas palavras da autora que esse sistema juriacute-dico por ter dado mais autonomia aos juiacutezes permitiu-lhes que compusessem um sistema de precedentes para julgamento de ca-sos futuros e eacute dessa concepccedilatildeo de empregar julgamento de casos passados para vincular soluccedilotildees futuras que se extrai a concepccedilatildeo de precedente judicial

Jaacute o sistema do stare decisis se refere ao modo de opera-cionalizar o sistema da Common Law cominando certeza a essa praacutetica Eacute o denominado sistema de precedentes que nasceu tatildeo-somente no seacuteculo XVI Deste modo a teoria do stare decisis et non quieta movere que significa literalmente ldquomantenha-se a decisatildeo e natildeo mexa no que estaacute quietordquo (SABINO 2010 p 61) estaacute relacio-nada agrave ideia de que os juiacutezes estatildeo vinculados agraves decisotildees do pas-sado ou seja aos precedentes

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Entretanto Marinoni (2010) sabiamente explica que natildeo se deve confundir a doutrina de stare decisis com o proacuteprio sistema Common Law pois o Common Law foi desenvolvido pelos costumes gerais e como jaacute dito se desenvolveu no decorrer dos seacuteculos an-tes de surgir o stare decisis ou precedente vinculante Assim o stare decisis eacute tatildeo-somente um componente presente que se encontra in-cluso dentro do modelo juriacutedico baseado na Common Law

O realce da distinccedilatildeo entre stare decisis e Common Law natildeo obstante necessaacuterio para afastar uma banal confusatildeo centra-se na preocupaccedilatildeo deste trabalho em amparar o sistema de precedentes que pode constituir parte do sistema brasileiro Com efeito o sta-re decisis constitui apenas um elemento do moderno Common Law que tambeacutem natildeo se confunde com o Common Law de tempos remo-tos ou com os costumes gerais de natureza secular (MARINONI 2009)

Conforme Marinoni (Idem) o magistrado inglecircs teve fun-ccedilatildeo crucial na efetivaccedilatildeo do sistema juriacutedico Common Law pois nesse contexto histoacuterico o poder do juiz era o de afirmar o Common Law o qual se sobrepunha ao Legislativo que por isso deveria atuar de modo a complementaacute-lo Desta maneira na Inglaterra o juiz permaneceu ao lado do parlamento no combate agraves arbitrarie-dades empreendidas pelo monarca preocupando-se com a tutela dos direitos e das liberdades do cidadatildeo Por isso mesmo diferen-temente do que ocorreu na Revoluccedilatildeo Francesa natildeo houve justifi-cativa para desconfiar do Judiciaacuterio ou para desconfiar de que os juiacutezes se posicionariam em favor do rei ou do absolutismo

Nesta senda ao se referir que o juiz do Common Law cria o direito natildeo se estaacute fundamentalmente assegurando que a sua decisatildeo tem a mesma forccedila e qualidade do produto elaborado pelo Legislativo isto eacute da lei A decisatildeo neste contexto natildeo se equipara agrave lei pelo fato de ter forccedila obrigatoacuteria para os demais juiacutezes Poreacutem seria possiacutevel argumentar que a decisatildeo por ter forccedila obrigatoacuteria constitui direito

Para Marinoni (2009 p 190)

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O Common Law considera o precedente como fonte de direito Note-se contudo que quando um prece-dente interpreta a lei ou a Constituiccedilatildeo como acon-tece especialmente nos Estados Unidos haacute eviden-temente direito preexistente com forccedila normativa de modo que seria absurdo pensar que o juiz neste caso cria um direito novo

Assim como bem exposto por Marinoni (2009) o que per-mite assegurar que o juiz do Common Law cria o direito eacute a com-paraccedilatildeo do seu papel com a do juiz da tradiccedilatildeo do Civil Law cuja funccedilatildeo se atinha agrave mecacircnica aplicaccedilatildeo da lei No Civil Law quando se dizia que ao juiz cabia apenas expressar as palavras ditadas pelo legislador o direito era concebido exclusivamente como lei A ta-refa do Judiciaacuterio se resumia agrave aplicaccedilatildeo das normas gerais O juiz inglecircs natildeo apenas teve espaccedilo para densificar o Common Law como tambeacutem oportunidade de a partir dele controlar a legitimidade dos atos estatais

Para Villey (2009) em seu livro A Formaccedilatildeo do Pensamen-to Juriacutedico Moderno na formaccedilatildeo do Estado Moderno (fim da ida-de medieval e iniacutecio do iluminismo) existiu a luta pelo poder ou da legitimaccedilatildeo do poder Os ldquoDireitosrdquo existentes eram a) usos e costumes locais b) direito canocircnico (Igreja Catoacutelica) c) usos e costumes dos baacuterbarosgermacircnicos e) direito romana atraveacutes das compilaccedilotildees e gozadores da jurisprudecircncia romana

Nesse contexto o rei queria impor o seu poder atraveacutes de sua lei escrita baseado na teoria desenvolvida por Hobbes (2003) em Leviatatilde Os ingleses embora aceitassem o sistema monarca re-cusavam a lei do rei de impor seus usos e costumes com base na teoria criada por Locke (2002) em Segundo Tratado de Governo

Assim para Hobbes (Idem) naturalmente os homens natildeo satildeo justos piedosos bondosos mas ao contraacuterio os homens satildeo tendentes agrave parcialidade orgulho e vinganccedila Na realidade nes-sa condiccedilatildeo o homem estaacute em situaccedilatildeo de guerra de todos contra todos como dito em sua marcante frase o homem eacute lobo do homem Com esta ceacutelebre frase o filoacutesofo quer advertir que o Estado eacute um mal necessaacuterio ou seja o Estado sendo soberano faz com que os

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suacuteditos se submetam em absoluto ao soberano o detentor do po-der a fim de garantir seguranccedila e uma vida mais tranquila saltan-do da condiccedilatildeo de intranquilidade instabilidade e da constante e iminente medo da morte violenta que urge a todo o momento no estado de natureza

Assim para evitar que a sociedade se torne um caos e te-nha um fim traacutegico de todos contra todos faz-se necessaacuterio outor-gar o poder ao Estado de preferecircncia a um soacute homem o soberano Para Hobbes (2003) natildeo se deve pensar que a liberdade limitada seria uma condiccedilatildeo ruim pois nessa perspectiva seria muito me-lhor ter a liberdade diminuiacuteda pelo Estado do que regressar ao estado inicial o de guerra como jaacute dito de todos contra todos

Nos dizeres de Lopes (2012) o Estado enquanto titular de todos os poderes age buscando garantir a paz e todos os direitos baacutesicos dos cidadatildeos sem levar em consideraccedilatildeo qualquer base eacutetica e moral Hobbes nesse contexto observa que o contrato so-cial eacute a soluccedilatildeo para a superaccedilatildeo tanto da violecircncia como da inse-guranccedila coletiva existentes no estado de natureza e assim o Esta-do eacute a soluccedilatildeo agrave sobrevivecircncia do homem em sociedade

Desse modo o Estado obriga por seu poder soberano o cumprimento das leis civis que servem para dirigir as accedilotildees dos homens com o escopo de garantir a paz e a seguranccedila Assim para evitar que os homens voltem ao estado natural eacute imperioso um Estado civil com poder soberano capaz de obrigar os homens a cumprirem seus pactos mesmo que para tal se utilize da espada coerccedilatildeo do castigo ou da forccedila

Para Locke (2002) o ldquoestado de naturezardquo natildeo eacute caracte-rizado necessariamente por um ldquoestado de guerrardquo hobbesiano E embora concorde com a possibilidade de existecircncia de um ldquoestado de guerrardquo para o filoacutesofo o estado de guerra se daacute quando se usa a forccedila contra a pessoa de outrem e natildeo existe um superior comum a quem apelar

De acordo com o fundamento epistecircmico lockeano as ideias complexas de direito e dever pressupotildeem uma relaccedilatildeo con-sensual de caraacuteter empiacuterico-psicoloacutegico pela qual os indiviacuteduos

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criam normas ou regras que atribuem ao sujeito a faculdade cog-nitiva de fazer ou deixar de fazer determinadas coisas cabendo ao Estado garantir esse direito limitando-o atraveacutes do dever

Losurdo (apud SILVA 2011 p 126) vai dizer que

Os dois tratados sobre o governo podem ser consi-derados momentos essenciais da preparaccedilatildeo e con-sagraccedilatildeo ideoloacutegica desse acontecimento que marca o nascimento da Inglaterra liberal Estamos na pre-senccedila de textos perpassados pelo pathos da liberda-de pela condenaccedilatildeo do poder absoluto pelo apelo a se insurgir contra aqueles infelizes que quisessem privar o homem da sua liberdade e reduzi-lo agrave es-cravidatildeo Mas de vez em quando no acircmbito dessa celebraccedilatildeo da liberdade se abrem fendas assustado-ras pelas quais passa na realidade a legitimaccedilatildeo da escravidatildeo nas colocircnias

Para melhor compreender tais sistemas faz-se necessaacuterio mergulhar na histoacuteria de cada paiacutes e verificar como as experiecircn-cias cotidianas contribuiacuteram para um determinado paiacutes adotar de forma predominante este ou aquele sistema juriacutedico Mais do que isso eacute observar os rituais que satildeo utilizados e contrapocirc-los a outros utilizados

Nesse contexto eacute apropriado citar Garapon (1997) que em seu livro Bem Julgar de forma brilhante compara estrutura e expotildee como se organizam os sistemas judiciaacuterios dos Estados Uni-dos e Franccedila Vislumbra-se que Garapon busca demonstrar de que modo a sociedade e sua cultura afetam o modus operandi do Direito e por consequecircncia a adoccedilatildeo do sistema Civil Law ou do Common Law Em uma das passagens de seu livro o autor cita que nos Es-tados Unidos o juiz se comporta como aacuterbitro enquanto na Franccedila como um padre ou seja aquele garante as regras do jogo enquanto este eacute o ator da cerimocircnia

A principal caracteriacutestica deste sistema juriacutedico eacute a codifi-caccedilatildeo Segundo as precisas observaccedilotildees de Garapon e Papapoulus (2008 p 33)

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Nos sistemas de direito romano-germacircnico a lei eacute a fonte primaacuteria do direito A codificaccedilatildeo aumenta consideravelmente a forccedila da lei hierarquizando as suas disposiccedilotildees e as reagrupando em um conjun-to exaustivo e coerente em suma racional A co-dificaccedilatildeo eacute certamente a teacutecnica mais caracteriacutestica dos direitos da famiacutelia romanista Longe de ser uma simples coletacircnea de regras o coacutedigo eacute um edifiacutecio legislativo que pretende ser o espelho de uma polis harmoniosa Ele deve fornecer ao cidadatildeo um mate-rial legiacutevel ao qual seja sempre possiacutevel referir-se e ser para o juiz um guia precioso para perceber atraveacutes da disposiccedilatildeo dos princiacutepios e da classifica-ccedilatildeo das regras a intenccedilatildeo legisladora Aliaacutes somente a lei constitui o direito do qual os juiacutezes satildeo apenas os porta-vozes

Jaacute a formaccedilatildeo da Common Law deriva dos antigos costumes locais e nem as fases porvindouras que lhe afeiccediloaram o estilo que hoje ela possui foram capazes de modificar sua caracteriacutestica essencial Como na Common Law os statutory laws tecircm papel secun-daacuterio a basilar fonte do direito eacute o direito como posto pelo magis-trado no caso concreto O direito inglecircs foi intensamente caracteri-zado pela carecircncia durante o seu periacuteodo de formaccedilatildeo de poder legislativo real no seio do Parlamento e pelo poder das Cortes Re-ais de Justiccedila A Common Law designa a totalidade dessas regras suscetiacuteveis de serem subsumidas a partir de decisotildees particulares No fundamento da Common Law se encontra portanto a regra do precedente

Garapon (1997) ainda em seu livro Bem Julgar quis de-monstrar que nos Estados Unidos em que se prepondera o Com-mon Law o comportamento empregado pelo juiz eacute o comparado ao de um aacuterbitro visto que apenas intermedia o conflito existente entre as partes Diferentemente da Franccedila onde o magistrado com-porta-se como um padre ele seria a peccedila principal do julgamento ditando a forma como deveriam se comportar as partes Essa com-paraccedilatildeo metafoacuterica feita por Garapon (Idem) busca mostrar que os rituais utilizados no Judiciaacuterio nada mais satildeo do que a externali-zaccedilatildeo dos valores da repuacuteblica e da democracia de cada paiacutes e os

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representa na cena no espaccedilo no tempo nas vestimentas na lin-guagem nos papeacuteis assumidos pelos atores de modo a tornar efi-ciente a sua comunicaccedilatildeo natildeo racional A ecircnfase portanto eacute dada aos papeacuteis assumidos por quem dirige o ritual e pelos seus parti-cipantes buscando conhecer as relaccedilotildees estabelecidas entre eles

O que o direito brasileiro tem de legislado e o que tem da Common Law

Como jaacute explanado nos primoacuterdios de criaccedilatildeo do Direito brasileiro prevaleceu o sistema Civil Law todavia por ser o Direito uma ciecircncia dinacircmica e considerando a globalizaccedilatildeo hoje eacute plau-siacutevel asseverar que o Brasil possui um sistema misto com traccedilos caracteriacutesticos dos dois sistemas juriacutedicos

Vislumbra-se sobretudo que com o advento do Coacutedigo de Processo Civil de 2016 positivou-se de forma muito mais en-faacutetica o emprego dos precedentes judiciais que o anterior Obser-va-se por este paradoxo que por meio do Civil Law positivou-se a importacircncia do precedente judicial que eacute caracteriacutestica marcante do Common Law de caraacuteter vinculante no ordenamento juriacutedico brasileiro Vejamos

Art 985 Julgado o incidente a tese juriacutedica seraacute aplicadaI - a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idecircntica questatildeo de direito e que trami-tem na aacuterea de jurisdiccedilatildeo do respectivo tribunal in-clusive agravequeles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou regiatildeoII - aos casos futuros que versem idecircntica questatildeo de direito e que venham a tramitar no territoacuterio de com-petecircncia do tribunal salvo revisatildeo na forma do art 986sect 1o Natildeo observada a tese adotada no incidente ca-beraacute reclamaccedilatildeo

Denota-se pelo artigo supracitado que a tese juriacutedi-ca delineada vincularaacute os demais oacutergatildeos do Poder Judiciaacuterio sob

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pena de ajuizamento de reclamaccedilatildeo que nada mais eacute do que um remeacutedio constitucional empregado nos casos de julgamento em dissonacircncia com a tese jaacute firmada Denota-se ainda nitidamente uma valorizaccedilatildeo maior para a interpretaccedilatildeo judicial das normas positivas visando dar maior agilidade bem como impedir insegu-ranccedila juriacutedica existente no Coacutedigo Processual Civil de 1973

Ademais o advento da EC nordm 452004 trouxe ao ordenamento juriacutedico a ideia de o juiz ser um agente integrador entre o ordenamento juriacutedico e a justiccedila Todavia a ideia de uma interpretaccedilatildeo verticalizada do ordenamento juriacutedico natildeo pode ser absoluta sob pena de atividade judicante ficar condenada a uma vinculaccedilatildeo preacutevia

De fato havendo similaridade no caso concreto e precedente de caraacuteter vinculante deveraacute o juiz acompanhaacute-lo sob pena de desrespeitar o princiacutepio da igualdade todavia essa ativi-dade judicante monocraacutetica deve ser dotada de autonomia incum-bindo o juiz ao analisar o caso concreto deixar de aplicaacute-lo levan-do em conta fatores regionais situacionais que se tornaratildeo desse modo o caso singular e portanto tornando incabiacutevel a utilizaccedilatildeo do precedente vinculante

Na concepccedilatildeo de Schauer (2009) uma decisatildeo que siga os precedentes eacute melhor do que uma decisatildeo correta e que repetidamente eacute mais importante uma dada decisatildeo seguir os pre-cedentes do que ter as melhores consequecircncias

Em contraponto para Dworkin (1999) o direito seria um conceito interpretativo como a cortesia no exemplo imaginaacuterio ci-tado em seu livro O Impeacuterio do Direito Para ele caberia aos juiacutezes reconhecer o dever de continuar o desempenho da profissatildeo agrave qual aderiram em vez de rejeitaacute-la E os proacuteprios magistrados desen-volveriam em resposta as suas proacuteprias convicccedilotildees e tendecircncias teorias operacionais sobre a melhor interpretaccedilatildeo de suas respon-sabilidades nesse desempenho Nesta concepccedilatildeo a atividade inter-pretativa em grande parte seria a busca sobre a melhor interpreta-ccedilatildeo de algum aspecto pertinente ao exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo do caso concreto

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Dworkin (Idem p 110) exemplifica em que consiste a ati-vidade interpretativa do magistrado

Assim o destino de Eacutelmer vai depender das convic-ccedilotildees interpretativas do corpo de juiacutezes que julgaratildeo o caso Se um juiz acha que para alcanccedilar a melhor in-terpretaccedilatildeo daquilo que os juiacutezes geralmente fazem a propoacutesito da aplicaccedilatildeo de uma lei ele nunca deve levar em conta as intenccedilotildees dos legisladores poderaacute entatildeo tomar uma decisatildeo favoraacutevel a Eacutelmer Mas se ao contraacuterio acha que a melhor interpretaccedilatildeo exige que ele examine essas intenccedilotildees eacute provaacutevel que sua decisatildeo favoreccedila Goneril e Regan Se o caso Eacutelmer for apresentado a um juiz que ainda natildeo refletiu sobre a questatildeo da interpretaccedilatildeo ele deveraacute entatildeo fazecirc-lo e de ambos os lados encontraraacute advogados dispostos a ajudaacute-lo As interpretaccedilotildees lutam lado a lado com os litigantes diante do tribunal

Nesse conceito interpretativo o exerciacutecio do precedente na concepccedilatildeo de Dworkin natildeo poderia ser ignorado pelo juiz em sua interpretaccedilatildeo pois a atividade judicante incorpora aspectos de outras interpretaccedilotildees correntes na eacutepoca

Aleacutem disso para Dworkin (1999) os juiacutezes conjecturam sobre o direito no acircmbito da sociedade e natildeo fora dela o meio inte-lectual de modo geral assim como a linguagem comum que reflete e protege esse meio exerce restriccedilotildees praacuteticas sobre a idiossincra-sia e restriccedilotildees conceituais sobre a imaginaccedilatildeo

Todavia o proacuteprio autor critica o inevitaacutevel conservado-rismo do ensino juriacutedico formal ainda presente na academia e do processo de selecionar juristas para as tarefas judiciaacuterias e admi-nistrativas considerando a cultura juriacutedica existente O fato eacute que certas soluccedilotildees interpretativas incluindo pontos de vista sobre a natureza e a forccedila da legislaccedilatildeo e do precedente satildeo muito popula-res em determinada eacutepoca e sua popularidade ajudada pela ineacuter-cia intelectual normal estimula os juiacutezes a consideraacute-las estabele-cidas para todos os propoacutesitos praacuteticos Elas satildeo os paradigmas e quase-paradigmas de sua eacutepoca Mas ao mesmo tempo outras

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questotildees talvez igualmente fundamentais satildeo objeto de debates e controveacutersias

Assim na concepccedilatildeo de Dworkin (Idem) o precedente deve ser adotado como um princiacutepio e as teorias gerais do direito devem ser abstratas pois seu desiacutegnio eacute interpretar o ponto essen-cial e a estrutura da jurisdiccedilatildeo natildeo uma parte ou seccedilatildeo especiacutefica desta uacuteltima Para ele os filoacutesofos do direito discutem sobre o fun-damento interpretativo que qualquer argumento juriacutedico deve ter Desse modo o voto de qualquer juiz eacute em si uma peccedila de filosofia do direito mesmo quando a filosofia estaacute oculta e o argumento manifesto eacute dominado por citaccedilotildees e listas de fatos A doutrina eacute a parte geral da jurisdiccedilatildeo o proacutelogo silencioso de qualquer vere-dito

Percebe-se deste modo que se faz necessaacuterio partir do pressuposto de que nenhum caso eacute rigorosamente igual ao outro e por conta dessas peculiaridades faz-se necessaacuterio identificar as razotildees que fazem privilegiar as diferenccedilas ou semelhanccedilas de um caso Assim eacute necessaacuterio verificar a viabilidade da teacutecnica da dis-tinccedilatildeo que nada mais eacute do que observar a possibilidade da natildeo aplicaccedilatildeo de um precedente ao argumento racional e convincente pois o novo caso a ser julgado apresenta caracteriacutesticas especiais que exigem um tratamento diferenciado

Nesse contexto entra em accedilatildeo o distinguishing positivado por meio do art 489 e seguintes do Coacutedigo de Processo Civil (CPC) Esse termo teacutecnico para Didier Jr (apud LOURENCcedilO 2011) sig-nifica que o magistrado por meio de sua atividade judicante e de meacutetodos interpretativos do precedente invocado constata uma distinccedilatildeo entre o caso concreto em julgamento e o paradigma seja porque natildeo haacute coincidecircncia entre os fatos fundamentais debati-dos e aqueles que serviram de base a ratio decidendi (tese juriacutedica) constante do precedente seja porque a despeito de existir uma aproximaccedilatildeo entre eles determinada particularidade no caso em julgamento afasta a aplicaccedilatildeo do precedente E assim por haver dissonacircncia o magistrado restringe a aplicaccedilatildeo do precedente in-vocado

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No entanto caso o precedente encontre-se superado con-forme se denota pelo contido no art 297 sect3ordm do CPC estar-se-aacute diante de umas das teacutecnicas de superar um precedente denomina-do overruling que nos dizeres de Arauacutejo eacute uma superaccedilatildeo total do precedente tornando possiacutevel a revisatildeo de um precedente sempre que houver novos argumentos criando-se um novo precedente fazendo uma comparaccedilatildeo para aclarar o entendimento Tal insti-tuto se assemelha a uma revogaccedilatildeo total de uma lei pela outra Ocorre que natildeo se pode mudar do dia para noite um precedente sob pena de quebra de confianccedila sendo deste modo necessaacuteria uma fundamentaccedilatildeo abrangente para ocorrer o overruling com ar-gumentos ateacute entatildeo natildeo enfrentados bem como a necessidade de se superar o precedente

De igual maneira ainda demonstra aproximaccedilatildeo ao sis-tema da Common Law a utilizaccedilatildeo do instituto da Repercussatildeo Geral no Recurso Extraordinaacuterio estabelecido pelo art 102 sect 3ordm da Constituiccedilatildeo Federal de 88 (CF) introduzido tambeacutem pela EC 452004 e art 543-A do CPC73 (com alteraccedilotildees inseridas pela Lei nordm 114182006) Tambeacutem foram inseridas no ordenamento juriacute-dico brasileiro a suacutemula impeditiva de recurso (artigo 518 sect 1ordm CPC73 introduzido pela Lei nordm 112762006) a improcedecircncia liminar de demandas repetitivas (art 285-A CPC73 introduzida tambeacutem pela Lei nordm 112772006) e o julgamento de recursos por amostragem (art 543-B CPC73 introduzido atraveacutes da Lei nordm 114182006) dentre tantos outros exemplos

Jaacute o Coacutedigo de Processo Civil de 2016 trouxe ao ordena-mento juriacutedico a possibilidade de as partes de forma consensual estabelecer um calendaacuterio processual para um determinado pro-cesso que se aprovado de comum acordo vincula as partes in-clusive o juiz conforme se denota pelo art 191 CPC Percebe-se desse modo que as partes de comum acordo poderatildeo dilatar ou restringir prazos data em que seraacute realizada a produccedilatildeo de provas bem como a data em que seraacute a sentenccedila exarada jaacute tipicamente utilizada no direito processual estadunidense francecircs e recente-mente no italiano

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Outro ponto interessante trazido pelo Coacutedigo de Processo Civil de 2015 eacute o art 357 sectsect 2ordm e 3ordm CPC que possibilita agraves par-tes de forma consensual apresentarem decisatildeo saneadora ao juiz que poderaacute quando a causa for complexa designar audiecircncia para proferir decisatildeo de saneamento e organizaccedilatildeo do processo tendo deste modo de forma liacutempida desraigado com a antiga concepccedilatildeo eminentemente influenciada pelo direito portuguecircs em que a tal funccedilatildeo era exclusiva do magistrado

Nos dizeres de Porto (apud TRIGUEIRO 2014) eacute possiacutevel perceber que os institutos juriacutedicos da Common Law e da Civil Law estatildeo se sintonizando cada vez mais e criando um novo institu-to juriacutedico chamado commonlawlizaccedilatildeo em face das jaacute destacadas facilidades de comunicaccedilatildeo e pesquisa postas na atualidade e a disposiccedilatildeo da comunidade juriacutedica Realmente na chamada com-monlawlizaccedilatildeo do direito nacional se pode perceber que a partir da constataccedilatildeo da importacircncia da jurisprudecircncia as decisotildees jurisdi-cionais vecircm adquirindo no sistema paacutetrio por meio de normas po-sitivadas mormente por uma crescente funccedilatildeo interpretativa das normas pelo juiz

Ainda sobre a criatividade judicial Cappelletti (1993) em sua obra Juiacutezes Legisladores apoacutes discorrer sobre as altercaccedilotildees en-tre os sistemas supracitados conclui que eacute evidente o aumento da criatividade juriacutedica nos paiacuteses de Civil Law da mesma forma que ocorre no Common Law sendo as contendas cada vez mais abran-dadas entre ambos derivando do que o autor denomina ldquoconver-gecircncia evolutivardquo

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Vislumbra-se por tudo que foi exposto no decorrer deste trabalho que natildeo restam duacutevidas de que o direito brasileiro sofreu influecircncia direta e inicial do sistema juriacutedico romano-germacircnico sobretudo no nosso ordenamento juriacutedico que se encontra abar-rotado de leis regulamentos decretos resoluccedilotildees enfim a lei em sentido amplo eacute considerada no paiacutes fonte primaacuteria sendo deste

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modo o instrumento baacutesico que regula as relaccedilotildees sociais A tiacutetulo ilustrativo nota-se que se encontram positivados

direitos e deveres ainda quando nascituros e que tais garantias e deveres persistem para depois da morte Nada obstante agrave preva-lecircncia do direito legislado observa-se no que foi discutido que a lei natildeo tem a capacidade de esgotar todas as possibilidades pois ja-mais o constituinte de 1988 imaginaria os avanccedilos tecnoloacutegicos na aacuterea da informaacutetica que viriam a ocorrer ao proteger por exemplo o sigilo da correspondecircncia que hoje abrange as correspondecircncias encaminhadas por correio eletrocircnico que eacute fruto de interpretaccedilatildeo judicial O fato eacute que de laacute para caacute ocorreram inuacutemeras mudanccedilas e portanto natildeo pode uma pessoa ter seus direitos negados em ra-zatildeo da ausecircncia de norma legal que a ampare

Eacute pensamento arcaico apontar a lei como uacutenica soberana fonte primaacuteria e eacute aiacute que entra em campo a jurisprudecircncia que tem por escopo adequar a lei agraves mudanccedilas que ocorrem na sociedade Como jaacute demonstrado faz-se necessaacuterio uniformizar a jurispru-decircncia das normas dos nossos Tribunais sob pena de rechaccedilar o principio da igualdade material e ter aplicado aquele velho brocar-do ldquodois pesos e duas medidasrdquo Todavia longe de ser extremista e encobertando-se sob o principio da igualdade formal e da celeri-dade processual eacute deixar de analisar as peculiaridades e estagnar no tempo e no espaccedilo as intepretaccedilotildees judiciais que retroacutegadas natildeo teriam relaccedilatildeo com as mudanccedilas da sociedade

Desse modo faz-se necessaacuterio repensar que o sistema ju-riacutedico brasileiro jaacute natildeo mais eacute exclusivamente aderente ao sistema juriacutedico da Civil Law pois o Coacutedigo de Processo Civil de 2015 veio corroborar de forma positivada as ideias haacute tempos utilizadas nos tribunais e discutidas pelos doutrinadores de que o uso de prece-dente vinculante aleacutem de proporcionar uma nova concepccedilatildeo de que o Direito natildeo eacute soacute aquilo que estaacute posto instiga na mesma ocasiatildeo uma reflexatildeo sobre a conduta postada pelo Estado quando se ocupa de atribuir um aumento de poder aos Tribunais Paacutetrios e como estes utilizaratildeo os precedentes para fazer justiccedila

Pelo exposto eacute de clareza solar que as novas relaccedilotildees pro-

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cessuais deveratildeo observar natildeo apenas a letra da lei e tampouco observar de forma absoluta os precedentes fixados mas sim res-guardar e efetivar os Direitos previstos na Carta Magna

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VISIBILIZANDO A VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO PSICOLOacuteGICA COMO LESAtildeO Agrave SAUacuteDE DA VIacuteTIMA REVISITANDO O AR-TIGO 129 DO COacuteDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO Agrave LUZ DA LEI MARIA DA PENHA

Artenira da Silva e Silva 1

Joseacute Maacutercio Maia Alves2

RESUMO Este estudo tem o objetivo de demonstrar a possibilidade de criminalizaccedilatildeo da violecircncia psicoloacutegica pura como crime de lesatildeo corporal agrave sauacutede da viacutetima de violecircncia domeacutestica com base no caput e sect 9ordm do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro combinados com o art 7ordm II da Lei 113402006 O texto aborda apontamentos teoacutericos sobre a adequaccedilatildeo tiacutepica da lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica a partir de reflexotildees acerca da concepccedilatildeo de elemento normativo do tipo apresentando ainda uma proposta de anamnese para aferir a violecircncia psicoloacutegica e seus efeitos danosos ainda na fase de investigaccedilatildeo criminal na delegacia de poliacutecia

PALAVRAS-CHAVE Violecircncia psicoloacutegica Adequaccedilatildeo tiacutepica Anamnese

ABSTRACT This study aims to demonstrate the possibility to criminalize psychological violence as a crime of bodily injury which offends the health of the victim specially considering domestic violence victims based on the caput and on the sect9 of the article 129 of the Brazilian Penal Law combined with the article 7 II of the 113402006 Law The text presents theoretical notes about psychological health damage as well as reflections about the concept of the normative element type It also presents a general

1 Poacutes-doutora em Psicologia e Educaccedilatildeo e Doutora em Sauacutede Coletiva Docente e pesquisadora do Departamento de Sauacutede Puacuteblica e do Mestrado em Direito e Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila da Universidade Federal do Maranhatildeo Coordenadora de linha de pesquisa do Observatoacuterio Ibero Americano de Sauacutede e Cidadania e Coordenadora do Observatorium de Seguranccedila Puacuteblica (PPGDIRUFMACECGP) Email artenirassilvahotmailcom 2 Mestrando do PPGDIRUFMA (Direito e Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila) E-mail jose-marciompmampbr

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anamnesis proposal to assess psychological violence harmful effects since itacutes criminal investigation phase in the police station

KEYWORDS Psychological violence Typical adequacy Anamnesis

INTRODUCcedilAtildeO

Nos paiacuteses em que o direito tem tradiccedilatildeo romano-germacirc-nica e que sofreram a influecircncia do incremento do ideal positivista poacutes-revoluccedilatildeo francesa haacute uma resistecircncia endecircmica em se atri-buir alcance e significado agrave lei aleacutem do que seria a genuiacutena ldquointen-ccedilatildeo do legisladorrdquo As leis caducam com mais facilidade porque natildeo acompanham as mudanccedilas dos fatos sociais o contexto que elas pretenderam um dia prever passa a natildeo existir mais e em consequecircncia inauguram-se outras leis A pretexto da seguranccedila juriacutedica haacute uma necessidade de a ldquoregra legalrdquo (a lei) continua-mente esgotar a prodigiosidade da sua pretensatildeo de regulaccedilatildeo

Trata-se de uma postura equivocada que culmina por engessar a prestaccedilatildeo jurisdicional para que o Juiz cada vez mais ldquodiga o direitordquo como o legislador supostamente quis que ele fosse dito Poreacutem muito diferente de oferecer seguranccedila juriacutedica essa medida pode fomentar deficit de efetividade de direitos porque em razatildeo dela natildeo se desenvolve o haacutebito de usar-se da interpretaccedilatildeo para aplicar as normas aos casos concretos

Vecirc-se entatildeo uma sensiacutevel dicotomia quanto ao que ldquoeacute o direitordquo em paiacuteses originaacuterios da civil law e da common law de ori-gem inglesa Nos primeiros haacute um impeacuterio da norma em que a lei se esforccedila em prever qual desfecho juriacutedico se entende por apro-priado agraves situaccedilotildees nos uacuteltimos tem-se uma concentraccedilatildeo sobre a resoluccedilatildeo do litiacutegio no caso concreto e a lei eacute mero coadjuvan-te para se buscar uma soluccedilatildeo que corresponda ao melhor direito possiacutevel mediante decisotildees racionalmente fundamentadas

Esta premissa se faz importante por permitir dizer que no Brasil cujo direito tem origem romano-germacircnica a liberdade para extrair sentidos racionalmente construiacutedos acerca da norma

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ou para transitar por significados e conceitos extrajuriacutedicos que tenham forccedila para incidir diretamente nas decisotildees pode soar perigosa e por isso sofre resistecircncias que por vezes natildeo se justi-ficam Exemplo disso eacute a escasso exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de juiacutezos de valor ao elemento normativo ldquosauacutederdquo que se encontra no caput do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro mesmo depois de a Lei 113402006 ter traccedilado uma seacuterie de possibilidades de compro-metimento agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima aviltada por toda sorte de violecircncia domeacutestica sobretudo a psicoloacutegica

Este trabalho visa demonstrar que o paradigma da des-legitimaccedilatildeo da violecircncia domeacutestica que daacute suporte agrave defesa do gecircnero feminino com toda a extensatildeo hermenecircutica que a teoria de gecircnero possa alcanccedilar (direito agrave diversidade de identidade de gecircnero agrave homoafetividade agrave orientaccedilatildeo sexual e a um conceito de famiacutelia baseado na afetividade) exige uma nova abordagem ju-riacutedica do elemento normativo sauacutede que convirja para a agenda internacional que prima por coibir a violecircncia no acircmbito das rela-ccedilotildees familiares

A partir desse pano de fundo far-se-atildeo consideraccedilotildees acer-ca da teoria do tipo penal e das elementares normativas para se admitir a possibilidade de se configurarem os sintomas psiacutequicos resultantes da violecircncia domeacutestica como ofensa agrave sauacutede da viacutetima

Em seguida demonstrar-se-atildeo argumentos para funda-mentar a existecircncia do crime de ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo como consequecircncia da violecircncia de gecircnero para entatildeo se investigar como os profissionais do sistema de justiccedila sobretudo Delegados de Poliacutecia Promotores de Justiccedila e Juiacutezes estatildeo enfrentando essa temaacutetica na praacutetica e como poderiam direcionar suas atividades de forma a assumir uma postura profissional proacutexima de um po-sicionamento mais eficaz e com vista ao compromisso assumido pelo Estado brasileiro perante a comunidade internacional de coi-bir a violecircncia familiar

Por fim o trabalho sugeriraacute uma anamnese a ser aplicada agraves viacutetimas de violecircncia domeacutestica ainda nas delegacias de poliacute-cia de forma a fornecerem indiacutecios para a formulaccedilatildeo de denuacutencia

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pelo Ministeacuterio Puacuteblico por ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo com ofensa agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima sobretudo em razatildeo dos quadros cliacuteni-cos de Transtorno de Estresse Poacutes-traumaacutetico e da Siacutendrome da Mulher Espancada

Um Paradigma para o Conceito de Violecircncia Psicoloacutegica

Eacute no contexto mundial de luta pela deslegitimaccedilatildeo da vio-lecircncia contra a mulher que emergiu esse conceito sustentado pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) que considera como tal ldquoqualquer ato de violecircncia baseado no gecircnero que resulta ou que seja suscetiacutevel de resultar em dano fiacutesico sexual psicoloacutegico ou em sofrimentos agraves mulheres incluindo ameaccedilas de tais atos coaccedilatildeo ou privaccedilatildeo de liberdade ocorrendo tanto na vida puacuteblica quanto na privadardquo (ONU 1993) No Brasil a Lei Maria da Penha (LMP) ain-da especifica a agressatildeo pode resultar de qualquer relaccedilatildeo iacutentima de afeto e as relaccedilotildees pessoais independem de orientaccedilatildeo sexual (BRASIL 2006)

O que se percebe na LMP eacute que o legislador brasileiro na contramatildeo da sua tradiccedilatildeo romano-germacircnica apresentou agrave socie-dade uma lei em que natildeo haacute palavras inuacuteteis ou com efeitos de sen-tido rasos Ao contraacuterio trata-se de um texto que estaacute apto a sofrer conformaccedilotildees jurisprudenciais na medida em que sejam introjeta-das na comunidade percepccedilotildees feministas acerca das vicissitudes e da diversidade do direito deao gecircnero e agrave orientaccedilatildeo sexual

A Lei 113402006 diz bem mais do que o seu proacuteprio tex-to assim como colima por objetivos natildeo explicitamente revelados que reclamam abordagens menos simplistas eou reducionistas agrave luz de casos concretos

A reafirmaccedilatildeo da doutrina feminista o direito agrave diversida-de da identidade de gecircnero e a ressignificaccedilatildeo do conceito de famiacute-lia satildeo premissas sobre as quais estatildeo fundadas as bases da LMP A partir dessa concepccedilatildeo eacute que se sustentam os instrumentos legais de defesa dos direitos daquelas que ostentam o gecircnero feminino E isso remete ao esforccedilo necessaacuterio de se atribuir uma maacutexima efeti-

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vidade agrave extensatildeo desses remeacutedios sob pena de se transformar a lei e sua mudanccedila de paradigma em mera carta de intenccedilotildees

Induvidoso que a garantia dessa maacutexima efetividade pas-sa pela dotaccedilatildeo dos operadores do direito ndash sobretudo dos que es-tejam agrave frente das instituiccedilotildees do sistema de justiccedila ndash de conheci-mentos transdisciplinares que revelem a verdadeira mens legis da LMP como ferramenta insuflada pela rede feminista global acerca da violecircncia domeacutestica

Natildeo excluir os operadores do direito do acesso a esse deba-te em forma de qualificaccedilatildeo formal e continuada significa garantir uma mudanccedila de paradigma para o de deslegitimaccedilatildeo da violecircncia domeacutestica atraveacutes do recrudescimento do discurso socioloacutegico fe-minista no meio juriacutedico para que ele migre do abstrato agrave praacutetica das relaccedilotildees sociais geridas pelo Poder Judiciaacuterio

Daiacute dizer-se que cada signo presente na LMP deve ser sub-metido a um crivo de enfrentamento agrave luz da teoria feminista da proteccedilatildeo agrave vulnerabilidade do gecircnero feminino da reafirmaccedilatildeo da dignidade humana e do desejo de construccedilatildeo de uma sociedade mais justa solidaacuteria e livre de qualquer forma de discriminaccedilatildeo

No que toca agrave violecircncia psicoloacutegica eacute forte o entendimen-to de que a sua configuraccedilatildeo e reconhecimento no caso concreto serve apenas como vetor que projeta o tratamento da persecuccedilatildeo criminal por um injusto-tipo jaacute previsto na legislaccedilatildeo de sorte a submetecirc-lo agraves regras da Lei Maria da Penha Isso implicaria p ex subtrai-lo da competecircncia dos Juizados Especiais Criminais limi-tar a renuacutencia agrave representaccedilatildeo e ateacute mesmo atribuir aos crimes de lesatildeo corporal leve a natureza de accedilatildeo penal puacuteblica incondicio-nada (ADI nordm 44242012-STF) aleacutem de autorizar o deferimento de medidas protetivas especiacuteficas e geneacutericas em favor da viacutetima

Teoria do Tipo O Elemento Normativo ldquoSauacutederdquo

A legislaccedilatildeo brasileira adotou a teoria finalista da accedilatildeo para considerar uma conduta criminalmente tiacutepica Equivale dizer que o resultado produzido por uma conduta pode ser exigido dispen-

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saacutevel indiferente ou ateacute impossiacutevel de ocorrer (crimes materiais formais e de mera conduta) mas o inteacuterprete natildeo pode se furtar agrave anaacutelise do impacto do elemento subjetivo do injusto que permeou a conduta do agente Isso porque haacute crimes que soacute podem se confi-gurar se o agente quis se comportar de forma afrontosa a um sen-timento de justiccedila entronizado pela sociedade (dolo) outros haacute em que sob o influxo de uma indiferenccedila tocada pela assunccedilatildeo de um risco esse comportamento quebrou uma representaccedilatildeo mental de previsatildeo de um mal maior (dolo eventual) assim como haacute os que se revestiram de uma previsibilidade do mal maior mas que natildeo tangenciaram a assunccedilatildeo do risco produzindo-se o resultado por uma quebra de um dever objetivo de cuidado (culpa) Fora dessas hipoacuteteses a teoria finalista considera as condutas criminalmente atiacutepicas

Na composiccedilatildeo do injusto-tipo amalgamam-se ou natildeo trecircs espeacutecies de elementares objetiva subjetiva e normativa A primei-ra delas trata de signos ou expressotildees com significados escorreitos descritivos sobre os quais natildeo paira qualquer duacutevida A segunda corresponde agraves vontades especiacuteficas previstas no tipo geralmente sucedidas da expressatildeo ldquocom o fim derdquo ou algo que a ela equiva-lha Satildeo vontades anunciadas

Jaacute quanto agrave terceira espeacutecie de elementar ndash que interessa ao presente estudo ndash tem-se o elemento normativo do tipo Tratam-se de signos ou expressotildees que para colmatarem a adequaccedilatildeo tiacutepica e a aperfeiccediloarem requerem um esforccedilo de interpretaccedilatildeo valorativa juriacutedica ou teacutecnico-transdisciplinar extrajuriacutedica

A presenccedila dessa espeacutecie de elementar daacute azo aos chama-dos tipos abertos que dependem da interpretaccedilatildeo de quem conhece os seus significados (teacutecnicos) ou de quem os atribui de forma ra-cionalmente fundamentada (advogados membros do Ministeacuterio Puacuteblico e da Magistratura) Falam-se mesmo de tipos anormais que exigem uma aquilataccedilatildeo de significados que natildeo permitem fechar de antematildeo a adequaccedilatildeo tiacutepica e que interessaratildeo de forma crucial agrave conduta ldquoquer por conduzirem a um julgamento de valor quer por levarem agrave interpretaccedilatildeo de termos juriacutedicos ou extrajuriacutedicos

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quer por exigirem afericcedilatildeo do acircnimo ou no intuito do agente quan-do pratica a accedilatildeordquo (MIRABETE 2014 p 100)

A parte final do tipo encontrado no caput do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro eacute emblemaacutetica quanto agrave importacircncia da afericcedilatildeo do elemento normativo para se alcanccedilar uma adequaccedilatildeo tiacutepica coerente e para ateacute mesmo se visibilizar uma acepccedilatildeo de tipi-cidade que possa natildeo se apresentar recorrente na praacutetica

O tipo considera lesatildeo corporal ofender a integridade corpo-ral ou a sauacutede de outrem Agrave guisa de uma decodificaccedilatildeo que natildeo se pretende exaustiva dir-se-ia que se estaacute a tratar de uma accedilatildeo fi-naliacutestica que exige resultado naturaliacutestico e que admite condutas dolosas e culposas Daiacute extrair-se que ofender a integridade corporal corresponderia a causar dano na medida em que frustra a incolu-midade de algum componente fisioloacutegico da viacutetima que se fazia iacutentegro Jaacute na lesatildeo agrave sauacutede a extensatildeo dos efeitos da ofensa ultra-passa o dano fisioloacutegico Aqui o elemento normativo sauacutede reme-te a uma infinidade de interpretaccedilotildees atribuiacuteveis tecnicamente ou pela via da fundamentaccedilatildeo racional Estaacute a reclamar colmataccedilotildees que eclodem a partir de juiacutezos de valor que podem sofrer muta-ccedilotildees Afinal o que pode ser considerado sauacutede

Para Bitencourt (2001 p 176)

Ofensa agrave sauacutede compreende a alteraccedilatildeo de funccedilotildees fisioloacutegicas do organismo ou perturbaccedilatildeo psiacutequi-ca A simples perturbaccedilatildeo de acircnimo ou afliccedilatildeo natildeo eacute suficiente para caracterizar o crime de lesatildeo cor-poral por ofensa agrave sauacutede Mas configuraraacute o crime qualquer alteraccedilatildeo ao normal funcionamento do psiquismo mesmo que seja de duraccedilatildeo passageira Podem caracterizar essa ofensa agrave sauacutede os distuacuterbios de memoacuteria e natildeo apenas os distuacuterbios de ordem intelectiva ou volitiva

Quer-se dizer que o signo sauacutede pode permitir significados e extensotildees muacuteltiplos mas uma vez considerados deve-se obser-var se esta sauacutede restou maculada para que tenha ocorrido o crime de ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo Daiacute a importacircncia de se aferirem as

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perturbaccedilotildees do psiquismo para se considerar a adequaccedilatildeo tiacutepica oriunda de uma lesatildeo levada a efeito pela violecircncia psicoloacutegica Com efeito Aniacutebal Bruno (976 p184-185) considera que

Perturbaccedilotildees moacuterbidas do psiquismo produzidas por obra do agente tambeacutem entram na categoria de lesotildees corporais como dano agrave sauacutede da viacutetima aiacute in-cluindo-se do mesmo modo estados de inconsciecircncia ou insensibilidade determinados pelo uso de anes-teacutesicos ou inebriantes ou ainda casos de depressatildeo fiacutesica ou mental desmaios estados confusionais e outras manifestaccedilotildees de perturbaccedilatildeo nervosa ou psiacute-quica Se ocorre a alteraccedilatildeo da integridade do corpo ou da sauacutede eacute indiferente que haja ou natildeo produccedilatildeo de dor

Desse raciociacutenio extrai-se uma conclusatildeo preliminar eacute preciso introjetar nos profissionais do sistema de justiccedila a atitu-de de modular a elementar normativa sauacutede diante das condutas criminosas sob pena de se gerar um enorme deficit de efetividade na criminalizaccedilatildeo dessas praacuteticas que acabaraacute por invisibilizar o reconhecimento da violecircncia psicoloacutegica e de sua importacircncia

A ldquoLesatildeo agrave Sauacutede Psicoloacutegicardquo na Violecircncia de Gecircnero

Para atingir a justificaccedilatildeo da possibilidade do tipo de lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica tomam-se por referecircncia neste trabalho algumas consideraccedilotildees da pesquisa conduzida pela pesquisadora Isadora Vier Machado acerca de como vem sendo conduzido o manejo da violecircncia psicoloacutegica ndash prevista na Lei nordm 113402006 (Lei Maria da Penha) ndash na persecuccedilatildeo criminal preliminar perante as Dele-gacias de Poliacutecia e o Ministeacuterio Puacuteblico Algumas constataccedilotildees da pesquisa conduziratildeo agrave necessidade de uma mudanccedila teacutecnico-ju-riacutedica e estrutural na atuaccedilatildeo destas Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila no enfrentamento da violecircncia psicoloacutegica Pretende-se de-monstrar que esse novo olhar pode conduzir mesmo a uma maior efetividade do art 7ordm inciso II da LMP

Duas problematizaccedilotildees trabalhadas por MACHADO con-

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duziratildeo agraves impressotildees criacuteticas que se propotildee primeiramente tem-se a suposta barreira do princiacutepio da legalidade do qual a violecircn-cia psicoloacutegica se encontraria esvaziada no direito ordinaacuterio atual o que faria com que essa espeacutecie de violecircncia de gecircnero necessitas-se de outras figuras normativas tipificadas criminalmente para que pudesse aparecer no cenaacuterio juriacutedico ainda que eclipsada depois aponta-se a nota de imprescindibilidade de conhecimentos trans-disciplinares dos operadores do direito para que compreendam a extensatildeo do conceito de violecircncia psicoloacutegica com o objetivo de o acomodar nos injustos-tipos de que se serve no ordenamento juriacutedico

Quanto ao primeiro ponto Machado (2013) se ocupa da anaacutelise do efeito de sentido das elementares integridade corporal e sauacutede encontradas no tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal para sugerir que o bem juriacutedico tutelado nesse dispositivo trans-cenderia a mera integridade fiacutesica para alcanccedilar tambeacutem a integri-dade moral e psicoloacutegica da viacutetima

O efeito de sentido atribuiacutedo ao caput do art 129 que visa acomodar a criminalizaccedilatildeo da violecircncia psicoloacutegica por si mesma exsurgiria a partir da pretensatildeo de dissociaccedilatildeo do corpus delicti em um binocircmio fisioloacutegico-psiacutequico que revelasse um caraacuteter plurio-fensivo do crime de lesatildeo corporal

Embora a construccedilatildeo do argumento seja coerente Macha-do (Idem) natildeo o acolhe como pressuposto para as suas conclusotildees acerca das razotildees para o deficit de efetividade do reconhecimento da violecircncia psicoloacutegica no acircmbito das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila

Admitindo esses argumentos a pesquisadora faz coro agrave visatildeo de esvaziamento da violecircncia psicoloacutegica como tipo penal para alocaacute-la apenas como ldquoparacircmetro interpretativordquo para outros tipos penais existentes na lei tais como ameaccedila caluacutenia denun-ciaccedilatildeo caluniosa constrangimento ilegal e injuacuteria muito embora admita que esses injustos-tipos se afigurem apenas como ldquomeios pelos quais se possa produzir um resultado final de prejuiacutezo agrave in-tegridade psicoloacutegicardquo

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Entretanto natildeo parece coerente tatildeo somente acoplar as formas de violecircncia de gecircnero previstas no art 7ordm da lei a tipos pe-nais preexistentes com singelas cominaccedilotildees legais Fazer isso seria reduzir ou mesmo dissolver os discursos de luta pela dignidade das mulheres em vez de os inserir em um contexto que represente uma regulamentaccedilatildeo eficaz agrave norma programaacutetica do art 226 sect8ordm da Constituiccedilatildeo cuja finalidade eacute criar mecanismos para coibir a violecircncia no acircmbito das relaccedilotildees da famiacutelia

Da mesma forma tambeacutem natildeo eacute aceitaacutevel que o efeito de sentido que a norma constitucional tenha pretendido atribuir ao signo ldquocoibirrdquo implique como resposta em forma de prestaccedilatildeo ju-risdicional apenas tirar da competecircncia dos Juizados Especiais os crimes que envolvam violecircncia domeacutestica e possibilitar que a mu-lher tenha a garantia de medidas de proteccedilatildeo em escala assecura-toacuteria crescente em gravidade agrave medida que se acentue o perigo agrave sua incolumidade fiacutesica

A questatildeo eacute que nem sempre o princiacutepio da reserva legal se serve de tipos com condutas criminosas escorreitas Ao contraacuterio frequentemente os tipos se revelam plurais como resultado mesmo do esforccedilo interpretativo sobre normas de extensatildeo da figura tiacutepica e elementos normativos do tipo que permitem uma elasticidade toleraacutevel para que o texto da lei alcance adequaccedilotildees que natildeo foram sugeridas pela letra estrita da norma penal incriminadora

Quando o texto do caput do art 129 do Coacutedigo Penal criminaliza a ofensa agrave ldquointegridade corporalrdquo ou agrave ldquosauacutede de ou-tremrdquo oferece sucessivamente ao inteacuterprete uma elementar objetiva e outra normativa A primeira diz respeito agrave agressatildeo ao corpo da viacutetima enquanto mateacuteria sob o aspecto exclusivamente fisioloacutegico Trata-se de desfigurar o que se fazia iacutentegro que sugere que qual-quer alteraccedilatildeo fisioloacutegica que o agressor produza na viacutetima por menor que seja e que sequer lhe abale o seu cotidiano deve mere-cer a censura da lei Estaacute-se a tratar de resultados naturaliacutesticos cla-ros derivados de um ato comissivo ou omissivo sem se exigir que sejam aferidas outras repercussotildees que se tenham dado na vida da viacutetima Aqui o foco eacute a alteraccedilatildeo da integridade fiacutesica em si

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Jaacute o signo ldquosauacutederdquo revela-se como uma elementar nor-mativa que desafia um juiacutezo de valor ou teacutecnico que o inteacuterprete lhe deveraacute atribuir para chegar agrave adequaccedilatildeo tiacutepica em cada caso concreto E eacute nesse momento que eclode a indagaccedilatildeo proacutepria das elementares normativas que no caso do crime do art 129 pode remeter a uma possibilidade plural de adequaccedilatildeo tiacutepica o que se entende por sauacutede A partir de seu conceito o que pode ser consi-derado como conduta que a ofenda

A Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) conceitua sauacutede como a ausecircncia de doenccedila aliada a uma situaccedilatildeo de bem-estar fiacutesico mental e social Sem pretender enveredar por uma extensa miriacuteade teacutecnica a que o vocaacutebulo sauacutede possa remeter ou incursio-nar pelas subjetividades que o termo bem-estar possa sugerir (FER-RAZ SEGRE 1997) o homem meacutedio de que se serve o Direito Pe-nal responderia que se entende por sauacutede tatildeo somente um estado de boa disposiccedilatildeo fiacutesica e psiacutequica que proporcione bem-estar ao ser humano Eis o ponto de estrangulamento da discussatildeo que se propotildee

Falar em comprometimento agrave sauacutede de algueacutem natildeo sig-nifica simplesmente comprometer as suas aptidotildees fiacutesicas mas tambeacutem de alguma forma ou em algum grau desestabilizar seu equiliacutebrio psiacutequico entendendo-o aqui tambeacutem como equiliacutebrio psicoloacutegico Pensar o contraacuterio seria como a proacutepria Machado (2013) lembra incursionar equivocadamente pela tendecircncia cultu-ral ocidental de ver o corpo como um ente essencialmente bioloacutegi-co

Com efeito ver a violecircncia domeacutestica sob a perspectiva da mera violecircncia fiacutesica e lhe exigir um resultado naturaliacutestico de mero dano fisioloacutegico apequena a sua importacircncia e desvirtua o propoacutesito institucional de a coibir porque assim de fato a violecircn-cia psicoloacutegica na Lei Maria Penha natildeo passaria de um vieacutes infor-mativo uacutetil apenas e unicamente para atribuir um rito diferente agrave instruccedilatildeo de um processo por um ldquotipo penal guarda-chuvardquo3 que por sua natureza e pela pena que lhe eacute cominada seria de menor

3 Expressatildeo usada por Isadora Vier Machado em sua tese de doutoramento

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potencial ofensivoTalvez esse olhar que definitivamente natildeo converge com

a mens legis da Lei n 113402006 ocorra em razatildeo de um outro equiacutevoco afeito agrave interpretaccedilatildeo acerca da teacutecnica legislativa aplica-da agrave espeacutecie

Eacute que a rigor o legislador natildeo precisaria criar um tipo penal novo para criminalizar a violecircncia psicoloacutegica com todas as vicissitudes que a compotildeem Na verdade o caraacuteter de uma novatio legis in pejus que denota a coerecircncia do ordenamento juriacutedico em coibir eficazmente a violecircncia de gecircnero fez-se sentir apenas ndash e foi suficiente nesse sentido ndash com a inserccedilatildeo do sect9ordm do art 129 do Coacutedigo Penal que criou uma qualificadora do crime de lesatildeo cor-poral para a hipoacutetese de a agressatildeo se dar em um contexto em que o agente ldquose prevaleccedila das relaccedilotildees domeacutesticasrdquo

Mas atente-se o legislador majorou a pena do crime de lesatildeo corporal por razotildees circunstanciais acerca de como ele se puder dar notadamente em contextos que a lei achou por bem considerar mais gravosos O que natildeo quer dizer que se esqueceu de especificar que essa mesma majoraccedilatildeo se daria em caso de vio-lecircncia psicoloacutegica ateacute porque esta eacute uma das formas de ofensa agrave sauacutede cuja caracterizaccedilatildeo se extrairaacute na verdade do exerciacutecio in-terpretativo a ser deflagrado sobre o elemento normativo ldquosauacutederdquo compreendido aqui sob o vieacutes de equiliacutebrio psicoloacutegico emocional alheio a perturbaccedilotildees psicopatoloacutegicas agraves quais a viacutetima natildeo tenha dado causa

O que parece estar havendo eacute que o titular da accedilatildeo penal estaacute interpretando o caput do artigo 129 sob o paradigma da lesatildeo corporal enquanto violecircncia fiacutesica sem atentar que jaacute haacute o reco-nhecimento pelo ordenamento juriacutedico (e natildeo precisaria haver) de uma nova figura que modula o elemento normativo do tipo (sauacute-de) qual seja o conceito de violecircncia psicoloacutegica inserto no art 7ordm inciso II da Lei Maria da Penha A bem do coerente a violecircncia psicoloacutegica eacute que se encaixa no tipo do art 129 quando modula o seu elemento normativo

A outra problematizaccedilatildeo sugerida pela pesquisadora trata

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da deficiecircncia dos operadores do Direito em conhecimentos trans-disciplinares notadamente dos membros do Ministeacuterio Puacuteblico A seu sentir essa capacitaccedilatildeo eacute necessaacuteria para que a violecircncia psi-coloacutegica natildeo seja refeacutem de leituras subjetivas e passe a ser melhor reconhecida nos fatos criminosos a fim de servir de justificativa para que os tipos penais a que se agrega possam merecer uma per-secuccedilatildeo penal segundo o que prega a Lei Maria da Penha

Quanto aos crimes mais graves para a consecuccedilatildeo dos quais a violecircncia domeacutestica ndash natildeo necessariamente psicoloacutegica ndash te-nha sido apenas um meio ou conduta concomitante menos gravo-sa o reconhecimento dessa violecircncia seraacute importante apenas para habilitar o julgador a deferir as medidas de proteccedilatildeo previstas em lei inclusive a prisatildeo cautelar para os casos de crimes que em ra-zatildeo da sua pena natildeo admitam a prisatildeo preventiva Deveratildeo ser demonstrados para isso que haacute uma relaccedilatildeo de poder baseada no gecircnero que ocorreram os resultados previstos na lei em qualquer um dos planos de violecircncia seja fiacutesica psicoloacutegica patrimonial moral ou sexual que o fato se deu na unidade domeacutestica da famiacute-lia ou em razatildeo de qualquer relaccedilatildeo de afeto e que a violecircncia eacute considerada independente da orientaccedilatildeo sexual da viacutetima

Natildeo haacute duacutevidas de que a preocupaccedilatildeo com o conhecimen-to transdisciplinar se justifica com toda forccedila para a caracterizaccedilatildeo do que poderiacuteamos chamar de violecircncia psicoloacutegica pura Eacute que in-dependentemente de haver violecircncia fiacutesica como afirma Machado (2013 p 174) em outro contexto ldquoa identificaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo de violecircncia psicoloacutegica requer que o problema apresentado seja minuciosamente sondadordquo Isso porque os seus danos se apresen-tam como resultado de posturas sutis praticadas pelo agressor no dia a dia A mulher pode perfeitamente natildeo ter sofrido violecircncia fiacutesica mas ainda assim ter sido aviltada na sua integridade psiacute-quica em niacuteveis significativos

Frise-se que o comportamento insidioso do agressor pode desencadear uma seacuterie de asseacutedios psicoloacutegicos importantes que podem significar ofensas agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima Forte em es-tudos de Marie-France Hirigoyen Machado (2013) pontua os com-

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portamentos que mais comumente eclodem na relaccedilatildeo conjugal controle isolamento ciuacuteme patoloacutegico asseacutedio aviltamento (mi-nar a autoestima) humilhaccedilotildees intimidaccedilatildeo indiferenccedila a deman-das afetivas e ameaccedilas Eles podem causar diagnoacutesticos de com-prometimentos psicoloacutegicos importantes inclusive os de ordem psicossomaacutetica que requerem realmente conhecimentos teacutecnicos de cliacutenica meacutedica psicologia e ou psiquiatria para ser apontados em processos judiciais como provaacuteveis conteuacutedos do que a Lei Maria da Penha considera como resultados alcanccedilaacuteveis pela vio-lecircncia psicoloacutegica prejuiacutezo agrave autodeterminaccedilatildeo dano emocional diminuiccedilatildeo da autoestima prejuiacutezo ao pleno desenvolvimento de-gradaccedilatildeo e controle que podem definir prejuiacutezo intenso da sauacutede psicoloacutegica

Contudo eacute importante observar que pelo menos para a propositura da accedilatildeo penal em razatildeo de uma lesatildeo agrave sauacutede com base no art 129 do Coacutedigo Penal natildeo eacute imprescindiacutevel que o promotor de justiccedila labore em cogniccedilatildeo exauriente para demonstrar o juiacutezo de mera probabilidade criminosa exigido para a formulaccedilatildeo da de-nuacutencia que se traduz no texto da lei como ldquoindiacutecios suficientes de materialidade e autoriardquo aleacutem da demonstraccedilatildeo do elemento sub-jetivo da conduta exigido dolo ou culpa Jaacute para a prolataccedilatildeo da sentenccedila eacute de bom alvitre que a viacutetima seja submetida ao atendi-mento interdisciplinar a tiacutetulo de periacutecia para que sejam aferidos tecnicamente os resultados que a violecircncia psicoloacutegica provocou para daiacute restarem comprovados ou natildeo os elementos necessaacuterios agrave adequaccedilatildeo tiacutepica na fase de sentenccedila

A falta de percepccedilatildeo preacutevia da violecircncia psicoloacutegica nas delegacias de poliacutecia aliada agrave postura conservadora dos promoto-res de justiccedila de natildeo a considerar como espeacutecie autocircnoma de lesatildeo corporal que comprometa a sauacutede da viacutetima de fato faz com que essa espeacutecie de violecircncia embora relatada natildeo apareccedila nas esta-tiacutesticas do combate agrave violecircncia domeacutestica Menos aparecem ainda porque os crimes aos quais geralmente se acoplam para conduzir a persecuccedilatildeo criminal agrave luz da Lei Maria da Penha (ameaccedila injuacute-ria caluacutenia denunciaccedilatildeo caluniosa e ou constrangimento ilegal)

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tecircm pena cominada diminuta e na sua maioria tecircm natureza de accedilatildeo penal privada ou puacuteblica condicionada agrave representaccedilatildeo cuja disponibilidade que provoca na persecuccedilatildeo criminal eacute demasia-damente promovida por mulheres viacutetimas tambeacutem do asseacutedio do poder econocircmico dos agressores e de questotildees emocionais afetas aos filhos e ao casal que natildeo permitem o rompimento dos laccedilos conjugais e que geram na ofendida uma toleracircncia ciclicamente aprisionante agraves agressotildees

Assim do enfrentamento criacutetico das problemaacuteticas apon-tadas extraem-se quatro conclusotildees que se consideram importan-tes

1) quanto agrave primeira problemaacutetica sugerida o ordenamen-to juriacutedico admite a formulaccedilatildeo de accedilatildeo penal em razatildeo de vio-lecircncia psicoloacutegica autocircnoma como conteuacutedo da modulaccedilatildeo do ele-mento normativo ldquosauacutederdquo do tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal natildeo se servindo essa espeacutecie de violecircncia de gecircnero apenas para acoplar-se a outros tipos penais como paracircmetro interpreta-tivo para tatildeo somente conduzir a persecuccedilatildeo penal destes ao acircm-bito do rito penal ordinaacuterio e para garantir a aplicaccedilatildeo de medidas protetivas de urgecircncia

2) quanto agrave segunda embora natildeo se ignore que seja ne-cessaacuterio haver um incremento na formaccedilatildeo dos profissionais do Direito notadamente dos Defensores Delegados Promotores de Justiccedila e Magistrados quanto agraves questotildees de gecircnero e conhecimen-tos transdisciplinares correlatos esse diferencial intelectual natildeo indica que serviraacute apenas para identificar a violecircncia psicoloacutegica no suporte faacutetico que subjaz na adequaccedilatildeo a ldquotipos penais guarda-chuvasrdquo para que a partir daiacute as viacutetimas aufiram os benefiacutecios da Lei Maria da Penha Mais do que isso com base na premissa da existecircncia de reserva legal para o crime de lesatildeo agrave sauacutede psicoloacute-gica em razatildeo da modulaccedilatildeo do elemento normativo ldquosauacutederdquo en-contrado do injusto-tipo do caput do art 129 esses conhecimentos transdisciplinares ndash e ateacute mesmo o apoio de equipe interdisciplinar ndash seriam mais importantes para identificar a violecircncia psicoloacutegica nas sutilezas de que se reveste no dia a dia para de logo e antes

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de se associar a outras formas de violecircncia merecer uma postura das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila que convirja realmente com a norma programaacutetica constitucional de ldquocoibir a violecircncia no acircm-bito das relaccedilotildees da famiacuteliardquo

3) Dessas duas primeiras conclusotildees extrai-se mais uma quanto agrave necessidade de duas mudanccedilas de postura institucional no acircmbito do Ministeacuterio Puacuteblico uma teacutecnico-juriacutedica no sentido de repensar a interpretaccedilatildeo do tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal a partir do poder modulador que o conceito de violecircncia psicoloacutegica exerce sobre o elemento normativo ldquosauacutederdquo e outra quanto ao incremento intelectual e na estrutura de pessoal das pro-motorias de justiccedila no sentido de qualificar formalmente os pro-motores em questotildees de gecircnero e dotar as promotorias do serviccedilo interdisciplinar psicossocial para avaliar a incidecircncia de eventos de violecircncia psicoloacutegica nos casos que chegam para deliberaccedilatildeo acerca do que foi produzido nas investigaccedilotildees policiais

4) Por fim a necessidade de se desenvolverem fluxos nas delegacias de poliacutecia atraveacutes dos quais com a utilizaccedilatildeo de anam-neses na forma de entrevistas agraves ofendidas ficariam evidenciados desde o iniacutecio os indiacutecios da presenccedila da violecircncia psicoloacutegica e dos seus efeitos danosos agrave sauacutede das viacutetimas

Da Necessidade de Enfrentamento da Violecircncia Psicoloacutegica a partir do Mapa da Violecircncia

Observa-se que algumas anomalias no funcionamento das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila levam agrave invisibilidade da respos-ta da Justiccedila a violecircncia psicoloacutegica sofrida pelo gecircnero feminino mesmo apoacutes a vigecircncia da Lei Maria da Penha Mais ainda essas anomalias levam mesmo ateacute agrave exclusatildeo da consideraccedilatildeo desse tipo de violecircncia como evento provocador de uma persecuccedilatildeo penal independente

A obviedade da influecircncia dessas anomalias que se ma-terializam nessa invisibilidade aparece nos nuacutemeros do mapa da violecircncia contra a mulher Pesquisa mostra que em 2014 das no-

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tificaccedilotildees de violecircncia contra a mulher lanccediladas no Sistema de In-formaccedilatildeo de Agravos de Notificaccedilatildeo (SINAN) a partir de informaccedilotildees originaacuterias do atendimento do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) depois da violecircncia fiacutesica o tipo de violecircncia sofrida pelas mulheres mais relatado foi a psicoloacutegica Tomando-se como referecircncia o puacuteblico feminino de jovens e adultas em que eacute maior a incidecircncia de vio-lecircncia praticada por cocircnjuges e ex-cocircnjuges (WAISELFISZ 2015 p 49) vecirc-se que 589 das jovens e 571 das adultas atendidas pelo serviccedilo de sauacutede puacuteblica relataram ter sofrido violecircncia fiacute-sica A partir do mesmo nuacutemero absoluto do qual se aferiu essa porcentagem verifica-se que 245 das jovens e 266 das adultas relataram ter sofrido violecircncia psicoloacutegica aleacutem da violecircncia fiacutesica ou independente dela (WAISELFISZ 2015) Esse percentual cai sensivelmente quando se falam de outras formas de violecircncia

Pesquisa acerca do ano de 2014 da Central de Atendimen-to agrave Mulher (Ligue 180) natildeo destoa da verificaccedilatildeo de alta incidecircncia de informaccedilotildees acerca da violecircncia psicoloacutegica sofrida e relatada pelas ofendidas Naquele ano 3181 das mulheres atendidas re-lataram a violecircncia psicoloacutegica como uma das ou a espeacutecie exclusi-va de violecircncia sofrida atraacutes apenas da violecircncia fiacutesica que repre-sentou 5168 dos relatos (BRASIL 2015)

Percebe-se pois que os eventos de violecircncia psicoloacutegica

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existem e satildeo vultosos Aleacutem disso a pesquisa mostra que dos casos em que houve relatos de violecircncia contra a mulher no atendi-mento do SUS 462 dos que foram relatados por mulheres jovens foram encaminhados a instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila assim como 461 dos casos relatados por adultas Somando-se os en-caminhamentos agraves delegacias especializadas em defesa da mulher e agraves delegacias gerais tem-se 372 entre os 462 encaminhados agraves Instituiccedilotildees do sistema de defesa da mulher em se tratando de relatos de violecircncia feitos por mulheres jovens (805 dos casos) e 36 entre os 461 encaminhados agraves mesmas Instituiccedilotildees em se tratando de relatos feitos por mulheres adultas (78 dos casos) (WAISELFISZ 2015)

O que se pode concluir eacute que ou por deficit de remessa dos casos de violecircncia psicoloacutegica agraves delegacias ou por falta de inves-tigaccedilotildees concentradas tambeacutem nessa espeacutecie de violecircncia ou por um deficit de formulaccedilatildeo de denuacutencias que a tenham considerado como circunstacircncia moduladora do elemento normativo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal o que eacute sintomaacutetico eacute que a violecircncia psicoloacutegica natildeo aparece nos nuacutemeros de condenaccedilotildees da Justiccedila como delito autocircnomo Exemplo disso eacute o levantamento estatiacutes-tico da uacutenica Vara Especial de Violecircncia Domeacutestica e Familiar contra a Mulher de Satildeo Luiacutes capital do Estado do Maranhatildeo O lapso temporal da pesquisa refere-se aos meses de junho e de julho dos anos de 2012 e 2013

Os nuacutemeros referidos na pesquisa mostram que dos pro-cessos que tramitaram naquela Vara naquele periacuteodo e que se re-feriram a Medidas Protetivas de Urgecircncia 36 relataram violecircncia psicoloacutegica em 2012 e 35 em 2013 Mais ateacute do que os relatos de violecircncia fiacutesica que ocuparam 26 em 2012 e 29 em 2013 (MA-RANHAtildeO 2014)

Quanto aos nuacutemeros referentes agraves sentenccedilas vecirc-se que 91 delas foram ldquosentenccedilas inibitoacuteriasrdquo em 2012 e 92 em 2013 A pesquisa relata que essas sentenccedilas tecircm o ldquoobjetivo de coibir o ato violento praticado pelo requeridordquo contudo natildeo se tratam neces-sariamente de sentenccedilas de meacuterito em que se vejam condenaccedilotildees

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por violecircncia domeacutestica e muito menos em que se possam aferir nuacutemeros acerca das condenaccedilotildees por lesotildees corporais com ofensa agrave sauacutede psiacutequica das viacutetimas

Com pequena variaccedilatildeo nos nuacutemeros a tendecircncia se repete na pesquisa publicada em 2015 realizada pela mesma Vara espe-cializada e que teve os meses de janeiro a abril de 2014 como obje-to de anaacutelise (MARANHAtildeO 2015)

Esse cenaacuterio emerge em que pese o reconhecimento de que a violecircncia psicoloacutegica pura pode gerar um estado patoloacutegico em diversos niacuteveis tende a ser cronificada e extremamente destrui-dora porque geralmente eacute praticada por um agressor com quem a viacutetima manteve uma relaccedilatildeo de afeto e de quem espera algum niacutevel de respeito A vinculaccedilatildeo afetiva preteacuterita ou presente entre agressor e viacutetima comumente gera um sentimento de culpa da viacuteti-ma em relaccedilatildeo agrave violecircncia sofrida podendo contribuir para que ela questione inclusive sua sanidade mental Fecha-se assim um ciclo torturante e doloroso de comprometimento da sauacutede da viacutetima de violecircncia domeacutestica

Induvidoso que essa premissa conceitual faz emergirem discrepacircncias entre as adequaccedilotildees tiacutepicas dos crimes contra a hon-ra e ateacute dos de ameaccedila ndash que satildeo aferiacuteveis por evento e satildeo pontua-dos no tempo e no espaccedilo ndash e os de lesatildeo agrave sauacutede em razatildeo de violecircn-cia psicoloacutegica Eacute que nestes se tratam de resultados naturaliacutesticos aferiacuteveis no acircmbito do psiquismo mediante juiacutezos de valor ou teacutec-nicos Falam-se como relata a Psicoacuteloga Juriacutedica Sonia Rovinski de sintomas como choque negaccedilatildeo recolhimento confusatildeo entor-pecimento medo depressatildeo desesperanccedila baixa autoestima e ne-gaccedilatildeo sendo o transtorno de estresse poacutes-traumaacutetico um dos quadros cliacutenico-patoloacutegicos mais comuns (MACHADO 2013)

Portanto chega-se agrave conclusatildeo de que a mudanccedila insti-tucional para um enfrentamento mais eficaz desse estado de coi-sas soacute poderaacute ocorrer com o desenvolvimento de fluxos ainda na delegacia de poliacutecia que ofereccedilam elementos indiciaacuterios baacutesicos para que o oacutergatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico dotado de conhecimentos transdisciplinares afetos agrave teoria de gecircnero possa formular accedilotildees

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penais com adequaccedilotildees tiacutepicas que tratem de lesotildees corporais agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima de violecircncia domeacutestica

A Anamnese acerca da Violecircncia Psicoloacutegica na Persecuccedilatildeo Criminal Preliminar

Diante da dificuldade de se inaugurarem persecuccedilotildees pe-nais em razatildeo da violecircncia psicoloacutegica que caracterize a ofensa agrave sauacutede da viacutetima do gecircnero feminino eacute importante que se estabe-leccedilam fluxos baacutesicos para investigar indiacutecios dessas lesotildees ainda nas delegacias de poliacutecia de forma a proporcionar que o oacutergatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico munido de conhecimentos transdisciplinares possa posteriormente identificar a probabilidade de ocorrecircncia de algum transtorno ou sintoma psiacutequico em razatildeo da violecircncia para entatildeo formular accedilatildeo penal adequada e requerer a condenaccedilatildeo es-peciacutefica por lesatildeo agrave sauacutede psiacutequica da ofendida

Para esse fim eacute importante que se construa uma anamnese com alguns questionamentos agrave ofendida e que comporiam o cader-no policial Essa entrevista colimaria por evidenciar as posturas do agressor e consequecircncias delas referentes agraves violecircncias psicoloacutegicas que satildeo previstas na LMP e em seguida visaria perquirir caracte-riacutesticas que levassem aos sintomas das patologias mais comuns em razatildeo de violecircncia psicoloacutegica o Transtorno de Estresse Poacutes-Traumaacute-tico (TEPT) (CID 10 F 431) e Siacutendrome da Mulher Espancada (SME)

Quanto agrave primeira patologia trata-se de um distuacuterbio de ansiedade que faz com que pessoas que tenham presenciado ou sido viacutetimas de atos percebidos como intensamente violentos pas-siacuteveis de comprometerem sua seguranccedila ou de outrem revivam o episoacutedio pela representaccedilatildeo mental mas como se ele estivesse ocorrendo novamente revivendo-se as mesmas sensaccedilotildees dores e sofrimentos experimentados outrora mesmo diante de fatos novos potencialmente menos danosos Jaacute quando agrave segunda a siacutendrome se desenvolve em trecircs fases primeira o agressor assume postu-ras que criam tensotildees no relacionamento depois o estado de ten-satildeo migra para as agressotildees efetivas de qualquer espeacutecie por fim

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ocorre a fase da reconciliaccedilatildeo em que a mulher perdoa o agressor mas o ciclo de violecircncia recomeccedila e a viacutetima passa a atribuir a si a culpa dos atos do seu algoz assumindo a responsabilidade por eles ocorrerem Este estado mental continuado pode desencadear sintomas psicoloacutegicos e psicossomaacuteticos diversos alterando inclu-sive a percepccedilatildeo de realidade da viacutetima

A anamnese poderia ser composta de trecircs blocos de per-guntas semiestruturadas em cujas respostas a ofendida entrevista-da poderia desenvolver os detalhes acerca dos sintomas sem que percebesse que estaria falando deles

1ordf Fase Caracteriacutesticas gerais da violecircncia psicoloacutegica previstas na LMP

1) Vocecirc acha que por algum motivo o comportamento ou a atitude do seu namoradocompanheiromarido (NCM) compro-meteu ou compromete o sentimento de valor e seguranccedila que vocecirc tem de vocecirc mesma Relate os episoacutedios quando eles ocorrem e o que vocecirc sente quando eles acontecem (Esse quesito investiga a diminuiccedilatildeo de autoestima e seguranccedila da viacutetima)

2) Vocecirc acha que em razatildeo de algum comportamento ou atitude do seu NCM vocecirc se sentiu ou se sente controlada ou me-nosprezada com relaccedilatildeo ao que vocecirc acredita e quer para si no que se refere a comportamentos crenccedilas e decisotildees de vida Relate os episoacutedios e se eles ocorrem mediante algum desses elementos ameaccedila constrangimento humilhaccedilatildeo manipulaccedilatildeo isolamento vigilacircncia constante perseguiccedilatildeo frequente insulto chantagem ridicularizaccedilatildeo exploraccedilatildeo limitaccedilatildeo do seu desejo de se deslocar para onde queira ou outro natildeo especificado

2ordf Fase Caracteriacutesticas acerca do Transtorno de Estresse Poacutes-traumaacutetico

3) Relate que tipo de violecircncia vocecirc sofreu do seu NCM quando e com que frequecircncia ela(s) ocorreu(ram) ou ocorre(m)

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fiacutesica (lesatildeo ao corpo) psicoloacutegica (que a deixou desestabilizada emocionalmente por um periacuteodo de meacutedio a longo prazo) sexual (praacutetica de ato sexual natildeo consentido) tortura (sofreu lesotildees me-diante praacuteticas que vocecirc considerou abominaacuteveis ou especialmen-te ultrajantes) patrimonial (teve seus objetos pessoais e bens dani-ficados ou destruiacutedos) moral (sentiu-se atacada na sua honra ou quanto ao conceito que vocecirc tem de vocecirc mesma ou ainda quanto ao conceito que acredita que os outros tecircm de vocecirc)

4) Vocecirc tem lembranccedilas espontacircneas recorrentes (natildeo su-geridas por outrem) desse(s) episoacutedio(s) de violecircncia(s) Tem pe-sadelos com ele(s) Explique em que situaccedilotildees essas lembranccedilas (flashbacks) acontecem

5) Haacute objetos lugares pessoas comportamentos muacutesicas contatos atividades ou qualquer outra coisa que a remeta agrave lem-branccedila da(s) violecircncia(s) Vocecirc costuma usar da estrateacutegia de fuga ou desvio de quaisquer dessas coisaspessoascircunstacircncias que a possam rememorar a lembranccedila da agressatildeo sofrida Explique como vocecirc lida com essas lembranccedilas

6) Como vocecirc avalia o seu grau de interesse afetivo pelas pessoas que fazem parte de seu ciclo de vida (NCM pais filhos irmatildeos amigos colegas de escolafaculdade ou trabalho) Sente que essas relaccedilotildees jaacute foram mais prazerosas que mantecircm uma es-tabilidade quanto agrave sua satisfaccedilatildeo pessoal ou esse grau de satisfa-ccedilatildeo diminuiu Relate situaccedilotildees que possam respaldar os sentimen-tos relatados

7) Quando ocorrem fatos que lhe causam tensatildeo e que vocecirc considera anormais agrave sua rotina (fatos que causam excitaccedilatildeo emo-cional) vocecirc considera que tem um bom grau de autocontrole em relaccedilatildeo a eles ou se acha muito sensiacutevel a essas situaccedilotildees Vocecirc tem reaccedilotildees a esses fatos que considere repentinas eou instantacircneas que causam aceleraccedilatildeo de batimentos cardiacuteacos transpiraccedilatildeo ca-lor ou medo de morrer Apoacutes essas situaccedilotildees eacute comum vocecirc apre-sentar dificuldades para comeccedilar a dormir ou atingir sono profun-do dificuldade de concentraccedilatildeo facilidade de irritaccedilatildeo estado de alerta (hipervigilacircncia) ou alteraccedilatildeo de seu ciclo de fome deixando

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de sentir fome ou comendo demais por ansiedade8) Vocecirc se sente impotente em algum aspecto da sua vida

Acha-se incapaz de se proteger de perigos De alguma forma ou em algum grau natildeo tem esperanccedilas em relaccedilatildeo ao futuro ou tem sensaccedilatildeo de vazio A que vocecirc atribui essas sensaccedilotildees

3ordf Fase Caracteriacutesticas acerca da Siacutendrome da Mulher Espancada

9) Vocecirc considera que tem dependecircncia econocircmica em re-laccedilatildeo ao seu NCM Decirc detalhes da sua vida financeira e se souber do orccedilamento familiar (receitas e despesas)

10) Antes das agressotildees sofridas seu NCM criava situa-ccedilotildees que a deixavam embaraccedilada incomodada e que a faziam pen-sar que talvez ele natildeo fosse a melhor pessoa para vocecirc Relate os episoacutedios que lembre

11) Seu NCM costumava ou costuma pedir perdatildeo eou demonstrar arrependimento profundo apoacutes os episoacutedios de vio-lecircncia cometidos Vocecirc perdoou seu NCM das agressotildees que so-freu dele O que vocecirc levou em consideraccedilatildeo para perdoaacute-lo

12) Depois do perdatildeo agraves agressotildees o relacionamento cos-tuma ficar bem por certo tempo (em clima de lua de mel) Com que frequecircncia estes episoacutedios de arrependimento aconteciam ou acontecem Quanto tempo costuma transcorrer ateacute o proacuteximo epi-soacutedio de agressatildeo

13) Mesmo depois da(s) agressatildeo(otildees) sofrida(s) vocecirc con-sidera que conseguiraacute manter um clima de paz no relacionamento e que convenceraacute o seu NCM a fazer o mesmo Quais as estrateacute-gias que costuma usar Explique o que vocecirc acha que levaraacute a esse estado de paz

14) Por que vocecirc acha que essas agressotildees acontecem (A intenccedilatildeo da pergunta eacute avaliar se a viacutetima se sente culpada pelas agressotildees sofridas indicando seu grau de vulnerabilidade)

15) Vocecirc teme ser agredida de uma forma mais grave pelo seu NCM Houve ameaccedila dele nesse sentido Em caso afirmativo relate o que a leva a ter esse medo

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16) Seu NCM fez ou faz ameaccedilas de agredir a vocecirc ou a algueacutem que vocecirc ame caso de separeseparasse dele Relate epi-soacutedios

17) Vocecirc se sente impotente para tomar alguma atitude contra o seu NCM que possa resultar em puniccedilatildeo dele em razatildeo da(s) agressatildeo(ccedilotildees) sofrida(s) por vocecirc Por quecirc Explique

18) Vocecirc acredita ou acreditava que o contato com auto-ridades para tratar da violecircncia sofrida faraacute(ia) com que vocecirc so-fra(fesse) agressotildees mais graves por seu NCM Em caso positivo explique o que a leva a pensar assim

19) Vocecirc costuma ingerir bebidas alcooacutelicas usar drogas ou fazer uso de algum medicamento Considera que depois das agressotildees sofridas esses haacutebitos ficaram mais recorrentes no seu dia a dia

Importante destacar que essa anamnese tem a finalidade de o Delegado de Poliacutecia poder proceder a um relatoacuterio mais com-pleto em que aflorem caracteriacutesticas da lesatildeo agrave sauacutede da ofendida em razatildeo da violecircncia psicoloacutegica e para que a par dessa consta-taccedilatildeo o Ministeacuterio Puacuteblico possa denunciar o agressor com fulcro no caput do art 129 do Coacutedigo Penal combinado com o seu sect9ordm de sorte a atribuir agrave violecircncia psicoloacutegica uma razatildeo autocircnoma para a condenaccedilatildeo criminal por lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica ou havendo con-comitacircncia com outras formas de violecircncia para que seja conside-rada como motivaccedilatildeo para majoraccedilatildeo da dosimetria da pena em razatildeo do elevado grau de culpabilidade (intensidade de dolo) impu-tado ao agressor

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Diante do que se observou os fins colimados pela Lei Ma-ria da Penha na sua melhor extensatildeo dependem do desapego da praacutetica juriacutedica ndash sobretudo na fase de persecuccedilatildeo criminal preli-minar ndash a uma postura culturalmente positivista e ou reducionista de se esperar que a lei ofereccedila soluccedilotildees ostensivamente previstas para as demandas criminais que envolvam a violecircncia domeacutestica

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No que interessa agrave figura da violecircncia psicoloacutegica urge observar que a sua consideraccedilatildeo nos casos concretos se serve para bem mais do que funcionar como vetor de poliacutetica criminal que permita remeter os processos de violecircncia domeacutestica para a com-petecircncia das(dos) VarasJuizados de Violecircncia Domeacutestica e familiar contra a mulher imprimindo a esses casos a possibilidade de medi-das protetivas de urgecircncia em favor da ofendida e medidas restri-tivas mais duras contra o agressor que convirjam com a poliacutetica de coibiccedilatildeo da violecircncia contra a mulher

Mais do que isso a legislaccedilatildeo oferece alternativas para que os agressores se vejam condenados pela proacutepria violecircncia psico-loacutegica como resultado de uma tipificaccedilatildeo da ofensa agrave sauacutede (caput do art 129 do Coacutedigo Penal) ou como elemento que incremente a dosimetria penal em razatildeo da sua incidecircncia sobre o grau de culpa-bilidade enquanto intensidade do dolo na praacutetica do delito

Eacute preciso entretanto que os operadores do direito do sis-tema de justiccedila se deem agrave atribuiccedilatildeo de juiacutezo de valor ao elemento normativo sauacutede encontrado no tipo do art 129 para que a respos-ta judicial quanto agrave violecircncia psicoloacutegica apareccedila nos nuacutemeros do Judiciaacuterio Para isso fazem-se necessaacuterios incentivar a aquisiccedilatildeo de conhecimentos transdisciplinares pelos profissionais do Siste-ma de Justiccedila e a criaccedilatildeo de fluxos desde as delegacias de poliacutecia com formulaccedilatildeo de questionaacuterios agraves ofendidas agrave guisa de anamne-se para que haja indiacutecios fortes que possam fundar accedilotildees penais puacuteblicas que sejam aptas a provocar condenaccedilotildees por ldquolesatildeo agrave sauacute-de psicoloacutegicardquo

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

BITENCOURT Cezar Roberto Manual de direito penal parte especial Vol 2 Satildeo Paulo Saraiva 2001

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BRUNO Aniacutebal Crimes contra a pessoa 5 ed Rio de Janeiro Editora Rio 1976

FERRAZ Flaacutevio Carvalho SEGRE Marco O conceito de sauacutede Revista de Sauacutede Puacuteblica Vol 31 n 5 Satildeo Paulo 1997 Disponiacutevel em httpwwwscielobrscielophpscript=sci_arttextamppid=S0034-89101997000600016

MACHADO Isadora Vier Da dor no corpo agrave dor na alma uma leitura do conceito de violecircncia psicoloacutegica da Lei Maria da Penha Tese (Doutorado em Ciecircncias Humanas) Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo Interdisciplinar em Ciecircncias Humanas (PPGICH) Programa de Doutorado Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) 2013 282 p Disponiacutevel em httpsrepositorioufscbrbitstreamhandle123456789107617319119pdfsequence=1ampisAllowed=y

MARANHAtildeO Tribunal de Justiccedila do Estado do Maranhatildeo Apelaccedilatildeo Criminal nordm 0167822008 - Satildeo Joseacute de Ribamar 2009 Disponiacutevel em httptj-majusbrasilcombrjurisprudencia3638115apelacao-criminal-acr-167822008-mainteiro-teor-101505768

______ Tribunal de Justiccedila do Estado do Maranhatildeo Violecircncia Domeacutestica contra a Mulher Dados Estatiacutesticos da Vara Especializada da Comarca de Satildeo Luiacutes 2014 Disponiacutevel em httpgerenciadortjmajusbrappwebrootfilespublicacao407035dados_estatosticos_da_vara_especializada_da_comarca_de_soo_luos_-_ano_2014_23102015_0846pdf

______ Tribunal de Justiccedila do Estado do Maranhatildeo Violecircncia Domeacutestica contra a Mulher Dados Estatiacutesticos da Vara Especializada da Comarca de Satildeo Luiacutes 2015 Disponiacutevel em httpgerenciadortjmajusbrappwebrootfilespublicacao407035dados_estatosticos_da_vara_especializada_da_comarca_de_soo_luos_-_ano_2015_23102015_0848pdf

MIRABETE Julio Fabbrini Manual de direito penal Vol 1 30 ed Satildeo Paulo Atlas 2014

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UNITED NATIONS Declaration on the elimination of violence against women 1993 Disponiacutevel em httpwwwunorgdocumentsgares48a48r104htm

WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da violecircncia 2015 Homiciacutedio de mulheres no Brasil Brasiacutelia 2015 Disponiacutevel em httpwwwmapadaviolenciaorgbrmapa2015_mulheresphp

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CIDADE SEM FRONTEIRAS FRONTEIRAS SEM CIDADES

Daniella S Dias1

RESUMO O presente artigo eacute um estudo bibliograacutefico e aponta processo de urbanizaccedilatildeo global a desigualdade planetaacuteria a periferizaccedilatildeo e a favelizaccedilatildeo mundiais como efeitos da globalizaccedilatildeo Apresenta reflexotildees sobre os efeitos da produccedilatildeo capitalista do espaccedilo sobre nossas cidades e sobre nossas vidas e como o atual modelo capitalista tem corroborado para que nossas cidades se tornem espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de atividades capitalistas produtivas Aponta a responsabilidade do Estado para o controle sobre o territoacuterio face agrave transformaccedilatildeo que o modelo capitalista produz nos espaccedilos urbanos e rurais e para a implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais para o enfrentamento da segregaccedilatildeo e da desigualdade social e analisa como as atuais poliacuteticas habitacionais implementadas pelo Estado brasileiro tem propiciado a segregaccedilatildeo socioespacial e a financeirizaccedilatildeo da moradia

PALAVRAS-CHAVE Globalizaccedilatildeo Direito agrave moradia Direito agrave cidade

ABSTRACT The present article is a bibliographic study that addresses the process of global urbanization the planet social inequality the peripheraization and the world phenomenon of shanty towns as effects of globalization It provides reflections on the effects of the capitalist space production in our cities and our lives as well as on how the current capitalist model has supported the fact that our cities have become essential spaces for the development of capitalist production activities It addresses the responsibilities of the State with the control over territorial space vis-a-vis the transformation that the capitalist model has caused in the urban and rural spaces as well as with the implementation of housing development policies for coping with the social segregation

1 Doutora em Direito Puacuteblico ndash UFPE Professora da Graduaccedilatildeo e Poacutes-graduaccedilatildeo UFPAUNIFESSPA e Promotora de Justiccedila

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and inequality Furthermore it analyzes how the current housing devepment policies as implemented by the Brazilian State has led to the socio-spatial segregation and the financialization of housing development

KEYWORDS Globalization Right to the city The right to housing

INTRODUCcedilAtildeO

Neste artigo pretendemos abordar alguns dos temas mais delicados a serem enfrentados pelos paiacuteses desenvolvidos e sub-desenvolvidos como o processo de urbanizaccedilatildeo global de perife-rizaccedilatildeo e de favelizaccedilatildeo mundiais a desigualdade planetaacuteria e o desafio de concretizaccedilatildeo do direito agrave cidade Contudo nenhuma reflexatildeo pode ser realizada de forma descontextualizada pois o processo de urbanizaccedilatildeo global tem intriacutenseca relaccedilatildeo com o de-senvolvimento do modelo capitalista transnacional e seus deleteacute-rios efeitos sobre a qualidade de vida nos espaccedilos urbanos e rurais

Eacute necessaacuterio refletir sobre os processos de diferenciaccedilatildeo espacial que seguem apartando camadas hipossuficientes das possibilidades de desenvolvimento humano e de exerciacutecio da cidadania culminando em segregaccedilatildeo histoacuterica cultural econocirc-mica tecnoloacutegica e digital Nesse sentido a mundializaccedilatildeo do ca-pital tem intriacutenseca relaccedilatildeo com a existecircncia e com a inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas habitacionais o que tem tornado nossas cida-des espaccedilos para a reproduccedilatildeo do capital

Uma das funccedilotildees do Estado para o controle sobre o terri-toacuterio face agrave transformaccedilatildeo que o modelo capitalista produz nos es-paccedilos urbanos e rurais eacute a de implementar poliacuteticas habitacionais como forma de enfrentamento da segregaccedilatildeo e da desigualdade social Refletir sobre o direito agrave moradia como bem social eacute tarefa imprescindiacutevel tarefa que natildeo se realiza sem anaacutelise criacutetica sobre as atuais poliacuteticas habitacionais implementadas pelo Estado brasi-leiro

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A Globalizaccedilatildeo o Processo de Urbanizaccedilatildeo Global e a Desigualdade Planetaacuteria

A globalizaccedilatildeo eacute uma nova ordem paradigmaacutetica (CUNHA 1998) que por meio das revoluccedilotildees teacutecnico-cientiacuteficas e das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas levou agrave compressatildeo das categorias tempo e espaccedilo (BECK 2000) Trata-se de uma nova forma de in-terconexatildeo entre Estado e sociedade interconexatildeo que se estabele-ce por meio de um novo marco econocircmico que gerou e tem pro-vocado profundas modificaccedilotildees nos acircmbitos econocircmico poliacutetico juriacutedico ambiental cultural e sobretudo territorial (DIAS 2010)

Para Julio-Campuzano (2003 p 19-20)

La globalizacioacuten representa como sostiene Octavio Ianni un nuevo ciclo de expansioacuten del capitalismo como modo de produccioacuten y proceso civilizatorio de alcance mundial un ciclo caracterizado por la integracioacuten de los mercados de forma avasalladora y por la intensificacioacuten de la circulacioacuten de bienes servicios tecnologiacuteas capitales e informaciones a niacutevel planetario De este modo la globalizacioacuten apa-rece concebida como la lsquointegracioacuten sisteacutemica de la economiacutea a nivel supranacional deflagrada por la creciente diferenciacioacuten estructural y funcional de los sistemas productivos y por la subsiguiente am-pliacioacuten de las redes empresariales comerciales y fi-nancieras a escala mundial actuando de modo cada vez maacutes independiente de los controles poliacuteticos y juriacutedicos a nivel nacionalrsquo Es lo que Wallerstein ha denominado lsquo economiacutea mundial capitalistarsquo un nuevo marco econocircmico mundial regido por el siste-ma capitalista cuya dinaacutemica expansiva alcanza asiacute su culminacioacuten De un extremo a otro del planeta el capitalismo se extiende y se ramifica en muacuteltiples derivaciones locales un uacutenico sistema cuyos des-doblamientos crean uma imagen de particularidad

O modelo capitalista global ou como apontam alguns au-tores o modelo capitalista transnacional tecnologicamente avan-ccedilado tem como consequecircncias o aumento do trabalho informal

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a precarizaccedilatildeo das relaccedilotildees trabalhistas a crise ecoloacutegica (BECK 2000) o aumento da desigualdade planetaacuteria cabendo destacar o processo de urbanizaccedilatildeo planetaacuteria que ocorre concomitantemen-te ao aumento da pobreza da periferizaccedilatildeo de enormes camadas populacionais e da inexistecircncia de condiccedilotildees de moradia digna (HARVEY 2014)

A desigualdade planetaacuteria se revela no crescimento ex-ponencial das favelas no processo de expansatildeo urbana ldquosem ci-dadesrdquo na falta de planejamento urbano e da prestaccedilatildeo de ser-viccedilos essenciais como saneamento baacutesico iluminaccedilatildeo seguranccedila puacuteblica entre outros serviccedilos Como bem ressalta Davis (2006) a expansatildeo urbana natildeo eacute a expressatildeo do desenvolvimento humano mas sim da reproduccedilatildeo da pobreza

Pobreza e favelizaccedilatildeo satildeo temas intrinsecamente rela-cionados Para Davis (2006) o crescimento populacional urbano no Terceiro Mundo nas proacuteximas deacutecadas dar-se-aacute nos espaccedilos destinados agraves comunidades informais

Os dados sugerem que os assentamentos precaacuterios seratildeo formas dominantes de ocupaccedilatildeo territorial Segundo pesquisa rea-lizada pela ONU 32 da populaccedilatildeo mundial vivem em favelas (COSTA e PORTO-GONCcedilALVES 2006) e os assentamentos precaacute-rios trazem consigo problemas de distintas ordens Contudo vale destacar de acordo com Castel (2008) dentre os efeitos nefastos do processo de periferizaccedilatildeo mundial a segregaccedilatildeo social cultural poliacutetica tecnoloacutegica ambiental e territorial

As periferias natildeo se caracterizam apenas por ser espaccedilos de vida que se produziram de forma espontacircnea por meio da au-toconstruccedilatildeo desprovidos de serviccedilos essenciais do planejamento e da intervenccedilatildeo do estado Os espaccedilos perifeacutericos satildeo para Castel (2008 p 24-25) ldquoespaccedilos de desterrordquo de falta de futuro espaccedilos fraacutegeis que revelam a total ruptura do tecido social

O espaccedilo como bem pontua Santos (2008) eacute relacional O espaccedilo eacute dinacircmico resultado da intriacutenseca relaccedilatildeo entre configura-ccedilatildeo territorial paisagem e sociedade eacute ldquoo resultado da geografi-zaccedilatildeo da sociedade sobre a configuraccedilatildeo territorialrdquo (Idem p 85)

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Para o autor satildeo as relaccedilotildees socioespaciais as estruturas sociais que sofrem profundas modificaccedilotildees com o capital Portanto eacute ne-cessaacuterio refletir sobre os processos de diferenciaccedilatildeo espacial que seguem apartando camadas hipossuficientes das possibilidades de desenvolvimento humano e de exerciacutecio da cidadania

No Brasil natildeo podemos deixar de destacar que o processo de segregaccedilatildeo socioespacial eacute histoacuterico e natildeo se trata tatildeo somente de uma segregaccedilatildeo territorial A segregaccedilatildeo territorial traz a rebo-que uma segregaccedilatildeo histoacuterica cultural e econocircmica tecnoloacutegica e digital (DIAS 2014)

Davis (2006 p 27) ao tratar sobre o crescimento das fave-las no Brasil afirma que

As favelas de Satildeo Paulo ndash meros 12 da populaccedilatildeo em 1973 mais 198 em 1993 ndash cresceram na deacuteca-da de 1990 no ritmo explosivo de 164 ao ano Na Amazocircnia uma das fronteiras urbanas que cres-cem com mais velocidade em todo mundo 80 do crescimento das cidades tecircm-se dado nas favelas privadas em sua maior parte de serviccedilos puacuteblicos e transporte municipal tornando assim sinocircnimos lsquourbanizaccedilatildeorsquo e lsquofavelizaccedilatildeorsquo

Vale salientar como bem sintetiza Herardi (2017) a mun-dializaccedilatildeo do capital trouxe como efeitos o deacuteficit de poliacuteticas puacute-blicas habitacionais deacuteficit que propiciou ldquoa produccedilatildeo ilegal do espaccedilo urbanordquo ( p 6) Para a autora ldquoo quadro atual representa a continuidade do processo histoacuterico iniciado com a industrializaccedilatildeo e desenvolvimento econocircmico do Estado brasileiro sempre marca-do pela exclusatildeo e desigualdade socialrdquo (Idem)

Precisamos portanto refletir sobre os efeitos da produccedilatildeo capitalista do espaccedilo sobre nossas cidades e sobre nossas vidas pois o modelo capitalista por meio de sua ldquodestruiccedilatildeo criativardquo transforma paulatinamente nossas cidades em puro espaccedilo de tro-cas isto eacute espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de ativida-des capitalistas produtivas

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O Mercado Existe para as Cidades Ou as Cidades Existem para o Mercado

Essas perguntas natildeo podem ser respondidas sem que nos debrucemos sobre a anaacutelise teoacuterica realizada por David Harvey

Para Harvey (2014 p 30)

Desde que passaram a existir as cidades surgiram da concentraccedilatildeo geograacutefica e social de um excedente de produccedilatildeo A urbanizaccedilatildeo sempre foi portanto al-gum tipo de fenocircmeno de classe uma vez que os ex-cedentes satildeo extraiacutedos de algum lugar ou de algueacutem enquanto o controle sobre o uso desse lucro acumu-lado costuma permanecer nas matildeos de poucos

Essa situaccedilatildeo geral persiste sob o capitalismo sem duacutevida mas nesse caso haacute uma dinacircmica bem di-ferente em atuaccedilatildeo O capitalismo fundamenta-se como nos diz Marx na eterna busca de mais valia (lucro) Contudo para produzir mais valia os ca-pitalistas tecircm de produzir excedentes de produccedilatildeo Isso significa que o capitalismo estaacute eternamente produzindo os excedentes de produccedilatildeo exigidos pela urbanizaccedilatildeo A relaccedilatildeo inversa tambeacutem se apli-ca O capitalismo precisa da urbanizaccedilatildeo para ab-sorver o excedente de produccedilatildeo que nunca deixa de produzir Dessa maneira surge uma ligaccedilatildeo iacutentima entre o desenvolvimento do capitalismo e a urbani-zaccedilatildeo (HARVEY 2014 p 30 grifo nosso)

[] A urbanizaccedilatildeo desempenha um papel particular-mente ativo (ao lado de outros fenocircmenos como os gastos militares) ao absorver as mercadorias exce-dentes que os capitalistas natildeo param de produzir em sua busca de mais-valia (Idem)

Se como leciona Harvey existe uma intriacutenseca relaccedilatildeo entre produccedilatildeo capitalista e urbanizaccedilatildeo atualmente o processo de urbanizaccedilatildeo se tornou global e a possibilidade de absorccedilatildeo do capital excedente tem provocado profundas modificaccedilotildees nos pro-cessos de expansatildeo urbana

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Eacute importante refletir sobre os efeitos da produccedilatildeo capita-lista sobre o espaccedilo para que possamos perceber que a apropriaccedilatildeo dos espaccedilos urbanos e rurais tem se dado de forma a beneficiar os interesses capitalistas viabilizando acumulaccedilatildeo e expansatildeo do proacuteprio sistema (DIAS 2014) Harvey chama a atenccedilatildeo para o fato de que as transformaccedilotildees espaciais provocadas pelo modelo capi-talista modificam natildeo somente os espaccedilos fiacutesicos mas sobretudo as relaccedilotildees sociais pois ldquoem razatildeo da eterna necessidade de encon-trar esferas rentaacuteveis para produccedilatildeo e absorccedilatildeo do excedente do capitalrdquo (Idem p 31) o capitalismo se apropria de novos recursos naturais produz novas tecnologias cria novos meios de produccedilatildeo utiliza-se da oferta de infraestrutura e da matildeo de obra organizan-do a sua proacutepria expansatildeo geograacutefica (Ibidem p 45) Essa reestru-turaccedilatildeo do capitalismo ocorre concomitantemente a uma transfor-maccedilatildeo do modelo de urbanizaccedilatildeo pois os espaccedilos urbanos passam a ser espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de atividades capitalistas lucrativas Por isso Harvey afirma que

A cidade tradicional foi morta pelo desenvolvi-mento capitalista descontrolado vitimada por sua interminaacutevel necessidade de dispor da acumulaccedilatildeo desenfreada de capital capaz de financiar a expan-satildeo interminaacutevel e desordenada do crescimento ur-bano sejam quais forem suas consequecircncias sociais ambientais ou poliacuteticasrdquo (HARVEY 2014 p 20 gri-fo nosso)

A necessidade interminaacutevel de expansatildeo urbana para ab-sorccedilatildeo dos excedentes do capital tem intriacutenseca relaccedilatildeo com a ex-pansatildeo do mercado imobiliaacuterio tornando quase tudo mercadoria Aliaacutes para Bensaiumld (2013 p 8)

Na realidade do mundo atual o capitalismo se aproxima de seu conceito teoacuterico Faz tudo virar mercadoria as coisas os serviccedilos o saber e a vida Generaliza a privatizaccedilatildeo dos bens comuns da humanidade Desencadeia a concorrecircncia de todos contra todos (Grifo nosso)

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Se o dinheiro eacute ldquoo verdadeiro poder e finalidade uacutenicardquo e como afirma Marx (apud BENSAIumlD 2013 p 33) ldquoeacute a verdadeira capacidaderdquo nossas cidades podem ser ldquopurardquo mercadoria O mercado existe para as cidades Ou as cidades existem para o mer-cado

Sandel (2012) chama a atenccedilatildeo para o fato de que os valo-res de mercado estatildeo dominando quase todos os aspectos da vida por consequecircncia quanto mais o dinheiro pode comprar maior desigualdade teremos na sociedade O dinheiro estaacute controlando nossas cidades e nossas fronteiras Estaacute ldquoimplodindordquo por meio da ldquodestruiccedilatildeo criativardquo (HARVEY 2014 p 49) nossas fronteiras e por consequecircncia nossas cidades

Quando o mercado passa a governar nossas cidades os efeitos da desigualdade social se agudizam e natildeo podemos des-cartar ndash de nossa anaacutelise sobre os desafios para o enfrentamento da exclusatildeo socioespacial do processo de favelizaccedilatildeo global e da periferizaccedilatildeo de nossas cidades ndash o fato de que a expansatildeo econocirc-mica capitalista estaacute transformando nossas cidades em mercado-rias subjacente a esses problemas estaacute a grande polarizaccedilatildeo social fruto da desigual distribuiccedilatildeo da riqueza (MENDES 2013)

O efeito nefasto da ldquomercantilizaccedilatildeordquo de nossos espaccedilos territoriais eacute a desumanizaccedilatildeo das nossas cidades registrada nas formas espaciais verdadeiro mosaico de desigualdades e de pri-vaccedilotildees

Os dados alarmantes revelam que o Estado por meio da inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas e de planejamento assistiu im-passiacutevel ao aumento das habitaccedilotildees informais e ao crescimento das favelas E segundo Davis ldquoas favelas apesar de serem funestas e inseguras tecircm um esplecircndido futurordquo (DAVIS 2006 p 155 grifo nosso)

Para Harvey (2014 p 59)

A urbanizaccedilatildeo desempenhou um papel crucial na absorccedilatildeo de excedentes de capital e o que tem feito em escala geograacutefica cada vez maior mas ao preccedilo de processos florescentes de destruiccedilatildeo criativa que

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implicam a desapropriaccedilatildeo das massas urbanas de todo e qualquer direito agrave cidade (HARVEY 2014 p 59)

Nossas cidades estatildeo cada dia mais desiguais mais vio-lentas mais poluiacutedas e insustentaacuteveis e muito pouco tem sido feito para transformar essa realidade Nossas cidades satildeo caras e insus-tentaacuteveis do ponto de vista social cultural poliacutetico e ambiental

A pobreza urbana as precaacuterias condiccedilotildees de vida nas fa-velas a inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas habitacionais consisten-tes a marginalidade econocircmica territorial poliacutetica e social a que satildeo submetidos milhares de cidadatildeos brasileiros a inexistecircncia de higiene e de condiccedilotildees sanitaacuterias a falta de acesso agrave aacutegua potaacutevel a inseguranccedila juriacutedica da posse tornam esses habitantes e seus ter-ritoacuterios invisiacuteveis

A desigualdade social poliacutetica territorial digital eacute o gran-de desafio para a sociedade e para o Estado De nada adianta teo-rizarmos sobre a necessidade de efetivaccedilatildeo dos Direitos Humanos sem considerarmos o cenaacuterio mundial marcado pela desigualda-de planetaacuteria pelo desemprego estrutural pelas cataacutestrofes am-bientais e pelo crescimento do crime organizado

Seraacute que o direito como instrumento de controle social poderaacute agregar conjunto valorativo transformador agrave implementa-ccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Seraacute que o direito pode ser ferramenta para a transformaccedilatildeo do quadro atual de desigualdade no que diz respeito ao acesso a poliacuteticas puacuteblicas habitacionais Ou a moradia virou ldquopura mercadoriardquo Essas indagaccedilotildees se fazem pertinentes porque o planejamento e ordenamento territorial satildeo ferramentas importantes para definiccedilatildeo de atividades e de funccedilotildees bem como para prover necessidades concretas dos que habitam os espaccedilos territoriais Nesse sentido indaga-se em que medida eacute possiacutevel que o Estado realize o controle sobre o territoacuterio face agrave transforma-ccedilatildeo que o capital propulsiona nos espaccedilos urbanos e rurais

Essas indagaccedilotildees estatildeo relacionadas agrave analise sobre a im-plementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais no Brasil para que possa-mos refletir criticamente sobre o processo de implementaccedilatildeo de

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poliacuteticas habitacionais e sobre a ldquocontinuidade do processo histoacute-ricordquo de produccedilatildeo espaccedilos urbanos marcados pela segregaccedilatildeo e desigualdade social

Moradia Bem Social ou Mercadoria

No Brasil a Emenda Constitucional nordm 26 inseriu o direito agrave moradia como direito social na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 no Capiacutetulo II artigo 6ordm em 14 de abril de 2000

Apesar de o texto constitucional determinar aos entes fe-derativos mesmo antes do reconhecimento do direito agrave moradia como direito social a responsabilidade de ldquopromover programas de construccedilatildeo de moradia e a melhoria das condiccedilotildees habitacionais e de saneamentordquo (Art 23 IX CF) apesar de o Estatuto da Cidade determinar em seu artigo 2deg inciso I que o municiacutepio tem por competecircncia realizar o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade bem como garantir o direito agrave cidade sustentaacutevel sendo esse o direito agrave terra urbana agrave moradia ao saneamento ambien-tal agrave infraestrutura urbana ao transporte e aos serviccedilos puacuteblicos ao trabalho e ao lazer para as presentes e futuras geraccedilotildees (artigo 2deg inciso I Lei nordm 102572001) apesar de referidas determinaccedilotildees serem normas cogentes determinando aos entes federados a reali-zaccedilatildeo de programas de poliacuteticas para que todos possam viver e ter acesso agrave moradia digna as poliacuteticas para garantir o direito agrave cidade e o direito agrave moradia satildeo fraacutegeis incipientes e passiacuteveis de criacuteticas

Saule Jr (1999 p 96) ao tratar do direito agrave moradia como um direito cuja aplicaccedilatildeo eacute imediata dotado de eficaacutecia plena aler-ta

Isto eacute de imediato o Estado Brasileiro tem a obriga-ccedilatildeo de adotar as poliacuteticas accedilotildees e demais medidas compreendidas e extraiacutedas do texto constitucional para assegurar e tornar efetivo esse direito em es-pecial aos que se encontram em estado de pobreza e miseacuteria

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Apesar de ser prioridade e obrigatoacuterio para o Estado criar poliacuteticas de desenvolvimento urbano que propiciem o direito agrave ci-dade sustentaacutevel e viabilizem o acesso agrave moradia digna segura adequada em um local livre de desastres e que o meio ambiente esteja protegido (SALDANHA 2016) apesar de diversas normas brasileiras tratarem da necessidade de estabelecimento de poliacuteti-cas puacuteblicas que propiciem o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade para garantir a qualidade de vida das presentes e futuras geraccedilotildees o que se constata eacute que grande parte dessas poliacuteticas natildeo priorizam a concretizaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana

No Brasil a falta de planejamento eacute a tocircnica o que po-tencializa a ocorrecircncia de conflitos relacionados agrave apropriaccedilatildeo dos espaccedilos territoriais

Apesar de ser responsabilidade dos entes da Federaccedilatildeo criar poliacuteticas puacuteblicas para o enfrentamento das desigualdades abissais de acesso agrave cultura agrave sauacutede agrave seguranccedila puacuteblica agrave qua-lidade de vida ao meio ambiente sadio agrave moradia a ocupaccedilatildeo do territoacuterio brasileiro continua a ser feita sem o planejamento democraacutetico e sem enfrentamento da exclusatildeo socioespacial Os efeitos deleteacuterios da falta de planejamento e da falta de intervenccedilatildeo do Estado na organizaccedilatildeo e no controle do processo de expansatildeo urbana estatildeo intrinsecamente relacionados agrave expansatildeo do merca-do agrave manipulaccedilatildeo do espaccedilo urbano caracterizando diferenccedilas sociais econocircmicas e poliacuteticas (SANTOS 2007) assim como o au-mento da violaccedilatildeo dos direitos humanos

O planejamento para o ordenamento territorial eacute a uacutenica possibilidade para o enfrentamento da polarizaccedilatildeo social pois a pobreza a desigualdade a exclusatildeo territorial poliacutetica e econocircmi-ca satildeo decorrentes das distintas formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Contudo os modelos de planejamento e os processos de decidibili-dade devem buscar a reestruturaccedilatildeo do proacuteprio processo decisoacuterio por meio da gestatildeo democraacutetica Eacute preciso que os cidadatildeos sejam ouvidos acerca das suas necessidades especiacuteficas como sauacutede mo-radia saneamento educaccedilatildeo trabalho Eacute preciso que haja um re-

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desenho do modelo de planejamento um redesenho a partir do processo decisoacuterio que deve possibilitar a ampla discussatildeo com a sociedade (SILVEIRA 1999)

Em suma o processo de planejamento urbano deve ter por finalidade o cumprimento das funccedilotildees sociais da cidade Haacute valores intangiacuteveis para garantir o direito agrave cidade e esses valores estatildeo intrinsecamente relacionados agrave possibilidade de que todos possam em igualdade de condiccedilotildees ter uma vida digna e acesso a uma moradia digna

E natildeo se trata de mera liberalidade do gestor puacuteblico O Estatuto da Cidade e o Texto constitucional propotildeem uma nova forma de compreensatildeo do exerciacutecio do direito de propriedade e do cumprimento da funccedilatildeo social da propriedade mudanccedila para-digmaacutetica que vincula a atuaccedilatildeo de legisladores administradores e operadores do direito

No que tange agrave obrigatoriedade de implementaccedilatildeo de po-liacuteticas habitacionais no Brasil constata-se que os assentamentos humanos informais satildeo locais onde eacute impossiacutevel se ter uma vida decente e tambeacutem iremos constatar a partir da leitura de textos de Rolnik (2015) que a atual poliacutetica habitacional para prover o di-reito agrave moradia sequer considera os requisitos para uma habitaccedilatildeo digna E vale aduzir que habitaccedilatildeo digna eacute uma das prioridades que a Uniatildeo definiu para a realizaccedilatildeo de programas e poliacuteticas para o desenvolvimento urbano Vale frisar que o Texto constitucional define como competecircncia de todos os entes da Federaccedilatildeo a promo-ccedilatildeo de programas de construccedilatildeo de moradia e de programas para melhoria das condiccedilotildees habitacionais e de saneamento baacutesico da populaccedilatildeo brasileira (artigo 23 inciso IX CF)

Para Agenda Habitat habitaccedilatildeo digna ou adequada eacute aquela que apresente condiccedilotildees de vida sadia com seguranccedila apresentando infraestrutura baacutesica como suprimento de aacutegua e saneamento baacutesico energia bem como a existecircncia da presta-ccedilatildeo eficiente de serviccedilos puacuteblicos urbanos como sauacutede educaccedilatildeo transporte coletivo coleta de lixo Pressupotildee-se a seguranccedila da ha-bitaccedilatildeo entendida como habitaccedilatildeo em que se faz possiacutevel ir e vir

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em seguranccedila bem como habitar locais que natildeo sejam suscetiacuteveis a desastres naturais Quanto agrave acessibilidade eacute preciso que a in-fraestrutura viaacuteria permita o acesso decente e seguro agrave habitaccedilatildeo2

Infelizmente o processo de financeirizaccedilatildeo da moradia e do solo urbano tem gerado sistemaacuteticas remoccedilotildees violentas de po-pulaccedilotildees hipossuficientes para o estabelecimento de projetos por meio de investimentos puacuteblicos que pouco ou quase nada refletem os interesses da populaccedilatildeo e a necessidade de garantir o direito agrave moradia digna (MENDES 2013)

Rolnik (2015) aponta com riqueza de detalhes os efeitos deleteacuterios dos avanccedilos do complexo imobiliaacuterio-financeiro sobre os territoacuterios populares avanccedilos que satildeo o reflexo da financeiriza-ccedilatildeo da moradia e do solo urbano sob o novo marco do pensamento e praacuteticas neoliberais

Como alerta Rolnik (2016 p01) no Brasil

Tivemos uma mudanccedila de paradigma da habitaccedilatildeo como um bem social para a moradia como uma mer-cadoria a ser produzida pelo setor privado e desem-penhando um papel importante como ativo financei-ro ou seja como uma das esferas onde um capital excedente financeiro global poderia aterrissar para multiplicar renda atraveacutes dos juros

Rolnik (2015) faz profunda anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e imple-mentaccedilatildeo do Programa Minha Casa Minha Vida apontando clara-mente que o programa teve por objetivo principal o salvamento de incorporadoras financeirizadas e tornou-se a poliacutetica habitacional que estabeleceu um uacutenico modelo de acesso agrave casa proacutepria por meio do mercado e do creacutedito hipotecaacuterio Vale ressaltar que essa poliacutetica habitacional manteacutem o padratildeo de segregaccedilatildeo socioespa-cial pois os grandes conjuntos habitacionais satildeo construiacutedos via de regra em aacutereas perifeacutericas onde a terra eacute mais barata Como o Programa daacute o poder de decisatildeo aos agentes privados sobre a loca-

2 In Declaracioacuten de Estambul sobre los Asentamientos Humanos Disponiacutevel em URL=unhabitatagendaespanolist-decshtml Acesso em 11 mai 2000

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lizaccedilatildeo e o desenho do projeto os empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida localizam-se nas franjas urbanas recru-descendo a divisatildeo territorial entre ricos e pobres (Idem 2015)

Segundo Rolnik (2015 p 314)

Apesar dos muitos bilhotildees de reais em subsiacutedios puacute-blicos o programa MCMV natildeo impacta a segregaccedilatildeo urbana existente Pelo contraacuterio apenas a reforccedila produzindo novas manchas urbanas monofuncio-nais ou aumentando a densidade populacional de zonas guetificadas jaacute existentes A intensa produccedilatildeo de moradia sem cidade ao longo das deacutecadas de ur-banizaccedilatildeo intensa acabou por gerar ampla segrega-ccedilatildeo e uma seacuterie de problemas sociais que trouxeram ocircnus significativos para o poder puacuteblico nas deacutecadas seguintes fenocircmeno que estaacute se repetindo nova-mente (ROLNIK 2015 p 314)

No Brasil nos uacuteltimos anos sob o discurso da efetivaccedilatildeo do direito agrave moradia estaacute ocorrendo a gentrificaccedilatildeo de nossas ci-dades e a exclusatildeo socioterritorial dos mais pobres (FERREIRA 2011) Esses processos de destruiccedilatildeo criativa (HARVEY 2014 p 49) ldquoacabam por atingir as camadas mais hipossuficientes da po-pulaccedilatildeo brasileirardquo

Nesse sentido Rolnik (2016 p 02) aborda a falta de efeti-vidade do direito agrave moradia

A ideia de implantar programas habitacionais mas-sivos de construccedilatildeo de moradias em nome da ideia de fazer moradias de interesse social foi implantada mundialmente nas uacuteltimas deacutecadas com resultados muito parecidos Se vocecirc for ao Meacutexico hoje na re-giatildeo metropolitana do Distrito Federal encontraraacute milhotildees de casas vazias Se vocecirc for a China encon-traraacute milhotildees de casas e apartamentos vazios Ao mesmo tempo encontraraacute muita gente sem um lu-gar para morar ou vivendo em assentamentos infor-mais construiacutedos pelas proacuteprias pessoas o que estaacute aumentando cada vez mais Esse eacute um fenocircmeno mundial especialmente nos paiacuteses do Sul global na

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Ameacuterica Latina na Aacutefrica e na Aacutesia Nestas regiotildees encontramos essa contradiccedilatildeo uma espeacutecie de des-colamento entre o processo de produccedilatildeo do espa-ccedilo construiacutedo e as necessidades das pessoas Essas duas dimensotildees tornaram-se coisas completamente independentes como se fazer cidades natildeo tivesse como objetivo principal satisfazer as necessidades das pessoas (Grifo nosso)

()Nosso problema no Brasil natildeo eacute deacuteficit de moradia Isso eacute uma falaacutecia Noacutes temos um problema de deacutefi-cit de cidade Natildeo temos produccedilatildeo de cidade sufi-ciente para acolher a totalidade das pessoas Quando vocecirc faz um programa de produccedilatildeo em massa de ca-sas sem ter a produccedilatildeo de cidade embaixo dela vocecirc acaba gerando os problemas que foram gerados no Chile e no Meacutexico por exemplo e que estatildeo come-ccedilando a ser gerados aqui no Brasil com a produccedilatildeo massiva do Minha Casa Minha Vida faixa um na extrema periferia ()Haacute muitos territoacuterios populares autoconstruiacutedos que tecircm plenas condiccedilotildees de permanecer onde es-tatildeo e melhorar infinitamente a condiccedilatildeo urbaniacutestica das pessoas que vivem ali Precisamos de um pro-grama para urbanizar esses assentamentos Estou falando de uma gama de programas Nenhum mo-delo uacutenico vai atender a quantidade diversificada de demandas que noacutes temos A soluccedilatildeo natildeo eacute uma soluccedilatildeo mas satildeo muitas (Grifo nosso)

A configuraccedilatildeo de nossas cidades reflete um padratildeo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano excludente e o Estado brasileiro tem grande responsabilidade pela forma de regulamentaccedilatildeo do uso e do acesso ao solo urbano Quanto menos democraacutetico o acesso ao solo urbano menor parcela da sociedade tem acesso ao direito agrave cidade

O que constatamos eacute que o Programa Minha Casa Minha Vida eacute um exemplo marcante dos efeitos do modelo de produ-ccedilatildeo capitalista em que a supervalorizaccedilatildeo da terra acaba por res-tringir o acesso agrave moradia digna para todos Com o crescimento

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econocircmico temos a reproduccedilatildeo da desigualdade social em nossas cidades e a manutenccedilatildeo da pobreza tendo o Estado um papel im-prescindiacutevel e condescendente para a manutenccedilatildeo da segregaccedilatildeo socioespacial

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Apesar de o Texto constitucional ter incorporado o princiacute-pio da funccedilatildeo social da propriedade e o princiacutepio da funccedilatildeo social da cidade apesar do reconhecimento do direito agrave moradia como um bem social a crise urbana brasileira revela o modelo predatoacuterio de implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais e por consequecircncia de produccedilatildeo de cidades Trata-se de um modelo excludente um modelo de expansatildeo urbana perverso que potencializa e consolida ainda mais a desigualdade em nosso paiacutes

Apesar de termos um conjunto normativo que viabiliza a implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais e de regularizaccedilatildeo fun-diaacuteria para que sejam asseguradas a posse e o direito agrave moradia infelizmente nem o direito agrave moradia nem o direito agrave cidade satildeo direitos que de fato estatildeo refletidos nas atuais poliacuteticas habitacio-nais

Acreditamos que as anaacutelises de Marx Harvey Bensaiumld Sandel e Rolnik satildeo fundamentais para o debate Decerto o capi-talismo faz tudo virar mercadoria

O dinheiro estaacute controlando nossas cidades e nossas fron-teiras Por meio da destruiccedilatildeo criativa o modelo capitalista eco-nocircmico transnacional estaacute implodindo nossas fronteiras e por consequecircncia nossas cidades Estamos assistindo a remoccedilotildees sis-temaacuteticas de assentamentos informais para dar lugar ao capital para dar lugar a grandes projetos a grandes empreendimentos imobiliaacuterios

Estamos assistindo ao processo global de financeirizaccedilatildeo da moradia por meio de uma poliacutetica puacuteblica estatal A moradia deixa de ser um direito esculpido na Carta constitucional e torna-se ldquomercadoriardquo acessiacutevel apenas agravequeles que possuem renda

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O Estado brasileiro de matildeos dadas com o capital sob o discurso da efetivaccedilatildeo do direito agrave moradia tem impulsionado a gentrificaccedilatildeo de nossas cidades e a exclusatildeo socioterritorial dos mais pobres

Os efeitos nefastos dessa poliacutetica que amputam o senti-do de cidadania e o verdadeiro valor do princiacutepio da igualdade satildeo diversos contudo apontamos a exclusatildeo do debate puacuteblico de questotildees que natildeo tecircm preccedilo vez que estamos assistindo agrave ldquoprecifi-caccedilatildeordquo de valores intangiacuteveis como centralidade habitaccedilotildees segu-ras e dignas mobilidade e acessibilidade em nossas cidades

O planejamento para o ordenamento territorial eacute a uacutenica possibilidade para o enfrentamento da polarizaccedilatildeo social pois a pobreza a desigualdade a exclusatildeo territorial poliacutetica e econocirc-mica satildeo decorrentes das distintas formas de apropriaccedilatildeo do es-paccedilo Precisamos nos apoderar dos instrumentos juriacutedicos e do planejamento urbano como ferramentas para pensar cidades mais sustentaacuteveis e conduzir criacutetica e urgentemente o planejamento ur-bano Precisamos nos apropriar dos instrumentos juriacutedicos para a transformaccedilatildeo qualitativa de nossos espaccedilos de vida

Precisamos urgente e criticamente conduzir o processo so-cial de ocupaccedilatildeo do territoacuterio por meio do planejamento democraacute-tico como forma de enfrentamento da exclusatildeo social E para isso o Estado precisa de transformaccedilatildeo de profunda mudanccedila nas praacute-ticas poliacuteticas que fortaleccedilam o modelo de produccedilatildeo e expansatildeo urbana desigual intolerante e violento de nossas cidades

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Dimas Simotildees Franco Neto1

Oseias Amaral da Silva2

RESUMO A poluiccedilatildeo eacute um tema que dadas as suas caracteriacutesticas deve ser tratada pelo direito internacional puacuteblico O fato eacute que a poluiccedilatildeo como evento ambiental natildeo respeita os limites das soberanias nacionais avanccedilando para aleacutem das fronteiras da naccedilatildeo de sua origem Neste sentido uma regulamentaccedilatildeo juriacutedica que trate da poluiccedilatildeo deve necessariamente calcar-se nos instrumentos do direito internacional tornando o tema da poluiccedilatildeo fronteiriccedila uma questatildeo central do direito internacional ambiental Os sistemas juriacutedicos nacionais preveem a obrigaccedilatildeo do Estudo Preacutevio de Impacto Ambiental quando em face do licenciamento ambiental de atividade potencialmente causadora de significativo impacto ambiental Poreacutem essas normas nacionais nem sempre satildeo suficientes para solucionar a questatildeo da poluiccedilatildeo transfronteiriccedila ou do impacto ambiental trasnfronteiriccedilo que se daacute quando os efeitos de um empreendimento estendem-se para outros Estados Uma soluccedilatildeo seria interpretar as normas nacionais agrave luz dos princiacutepios de direito internacional do meio ambiente Dessa forma no presente trabalho vamos analisar os princiacutepios do direito internacional e ao final avaliar se existe uma eventual obrigaccedilatildeo juriacutedica de se efetuar um Estudo Preacutevio de Impacto Ambiental quando em face do potencial impacto ambiental vai aleacutem das fronteiras do paiacutes em que o empreendimento se localiza Para tanto utilizaremos principalmente os precedentes internacionais do Caso Fundiccedilatildeo Trail e o Caso das Papeleiras

PALAVRAS-CHAVE Poluiccedilatildeo transfronteiriccedila Direito internacional do meio ambiente Estudo preacutevio de impacto ambiental1 Professor Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT Campus de Barra do Bugres2 Professor Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT Campus de Barra do Bugres

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ABSTRACT Pollution is a subject which given its characteristics must be dealt with by public international law The fact is that pollution as an environmental event does not respect the limits of national sovereignties advancing beyond the borders of the nation of its origin In this sense legal regulation dealing with pollution must necessarily be based on the instruments of international law making the issue of border pollution a central issue in the international environmental law The national legal systems foresee the obligation of the Prior Environmental Impact Assessment when in face of the environmental licensing of activity potentially causing significant environmental impact However these national rules are not always sufficient to solve the issue of transboundary pollution or the transboundary environmental impact that occurs when the effects of an undertaking extend to other States One solution would be to interpret national rules in the light of the principles of international environmental law Thus in the present work we gol analyze the principles of international law and at the end evaluate if there is a possible legal obligation to carry out a Prior Environmental Impact Assessment when faced of the potential environmental impact goes beyond the borders of the country in which the Locates To do so we will mainly use the international precedents of the Trail Smelter Case and the Pulp Mills on the River Uruguay

KEYWORDS Transboundary pollution International environmental law Prior environmental impact assessment

INTRODUCcedilAtildeO

O tema da poluiccedilatildeo em geral eacute um tema que dadas as suas caracteriacutesticas bastante peculiares deve ser tratado incon-trolavelmente pelo direito internacional puacuteblico O fato eacute que a poluiccedilatildeo como evento ambiental natildeo respeita os limites das soberanias nacionais avanccedilando para aleacutem das fronteiras da naccedilatildeo de sua origem Neste sentido uma regulamentaccedilatildeo juriacutedica que trate da poluiccedilatildeo para que seja efetiva deve necessariamente cal-car-se nos instrumentos do Direito internacional tornando o tema da poluiccedilatildeo fronteiriccedila uma questatildeo central do Direito Internacio-

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nal AmbientalEacute justamente com a poluiccedilatildeo transfronteiriccedila que o direito

internacional do meio ambiente eacute inaugurado com suas linhas es-truturais integralmente presentes Se ateacute o caso da Fundiccedilatildeo Trail (trail smelter) haviam algumas manifestaccedilotildees de proteccedilatildeo interna-cional juriacutedica de questotildees ambientais foi somente apoacutes a arbitra-gem do referido caso que o Direito Internacional Ambiental teve seu ponto de partida

O caso da Fundiccedilatildeo Trail tratou de uma situaccedilatildeo de polui-ccedilatildeo transfronteiriccedila que acabou por gerar um conflito entre dois paiacuteses Basicamente o que se apresentou no caso da Fundiccedilatildeo Trail foi uma situaccedilatildeo de poluiccedilatildeo transfronteiriccedila em que um agente privado canadense causava danos agrave sauacutede e ao patrimocircnio de pes-soas localizadas para aleacutem das fronteiras do Canadaacute pois os efei-tos dessa poluiccedilatildeo chegavam ainda bastante nocivos em territoacuterio norte-americano

O tratado que constituiu a arbitragem estabeleceu algumas questotildees a serem respondidas pela corte arbitral sendo que a prin-cipal delas tratava da existecircncia ou natildeo da obrigaccedilatildeo de a Fundiccedilatildeo Trail alterar a sua atuaccedilatildeo para evitar danos no lado norte-ameri-cano da fronteira e em caso positivo quais seriam as normas que regeriam a conduta canadense bem como a conduta da Fundiccedilatildeo Trail Importante dizer que o tratado determinava a decisatildeo da ar-bitragem tendo como lei aplicaacutevel o Direito internacional puacuteblico e tambeacutem as leis norte-americanas

Esse tratado foi aceito pelo Canadaacute pois as suas leis eram mais prejudiciais aos empreendedores da Fundiccedilatildeo do que agraves leis norte-americanas e agraves do Direito internacional3 Sobre a decisatildeo do Tribunal Arbitral Stephens (2012 p 131) faz uma siacutentese nos se-guintes termos

Como questatildeo preliminar o tribunal decidiu que fosse a questatildeo regida pelo direito domeacutestico ou pelo direito internacional os mesmos princiacutepios de-veriam ser aplicados na medida em que ambos os

3 Ibidem

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sistemas de direito adotavam a mesma forma de abordagem O tribunal reconheceu as frequentes afirmaccedilotildees dos publicistas da existecircncia de um dever geral de respeitar os outros Estados e os seus terri-toacuterios Todavia a dificuldade aqui fora definir lsquoqual pro subject materiae eacute considerada constituinte de um ato nocivorsquo Neste ponto especiacutefico o tribunal notou que apesar de natildeo existir nenhuma decisatildeo preacutevia de um tribunal internacional referente agrave poluiccedilatildeo do ar haviam decisotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos referentes agrave questatildeo da poluiccedilatildeo entre fron-teiras federais

Tendo feito essas consideraccedilotildees sobre os fundamentos ju-riacutedicos da decisatildeo o Tribunal Arbitral resume as obrigaccedilotildees dos Estados para com a integridade de outro Estado limiacutetrofe da se-guinte maneira

[] dentro dos princiacutepios do estado de direito inter-nacional bem como do direito dos estados unidos nenhum [estado] possui o direito de usar ou permitir que se use o seu territoacuterio de tal maneira que cause prejuiacutezo por meio de fumaccedila no territoacuterio de outro Estado ou na propriedade ou pessoas que laacute se en-contrem quando houverem seacuterias consequecircncias e o dano seja estabelecido por uma evidecircncia clara e convincente4

Esse trecho da decisatildeo arbitral se tornou bastante impor-tante tendo sido considerado um marco essencial do Direito Inter-nacional Ambiental (SOARES 2003) criando um dever ao Estado para natildeo causar danos ao meio ambiente de outro Estado e que como veremos tratou de repercutir ateacute mesmo nos tratados inter-nacionais ambientais contemporacircneos

No caso especiacutefico da arbitragem da Fundiccedilatildeo Trail o Tribunal Arbitral julgou o Canadaacute responsaacutevel internacionalmen-te pela conduta da Fundiccedilatildeo Trail e determinou que a Fundiccedilatildeo parasse de causar danos ao Estado de Washington por meio da 4 TRAIL SMELTER ARBITRAL TRIBUNAL Decisioin reported on april 16 Washington 1938 p 1965 Traduccedilatildeo nossa

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fumaccedila exaladaO legado principal deste laudo arbitral eacute que pela primeira

vez ficou expresso em um julgamento internacional a obrigaccedilatildeo de o Estado natildeo atuar em seu territoacuterio de maneira a causar dano a outro Eacute certo que o caso tratou somente de poluiccedilatildeo atmosfeacuterica mas o princiacutepio que se cristalizou ali serviu como guia para futuras normas internacionais

Para o tema do EIA internacional esta decisatildeo possui re-levacircncia na medida em que o EIA internacional busca justamente prevenir a ocorrecircncia de eventual dano ecoloacutegico ao meio ambien-te do Estado limiacutetrofe ou proacuteximo ao Estado de origem do em-preendimento

Assim podemos dizer que uma eventual obrigaccedilatildeo de promover o EIA internacional deriva-se ao menos da parte do dever de os Estados natildeo prejudicarem o meio ambiente dos paiacuteses vizinhos que eacute exatamente o toacutepico sobre o qual inova o caso da Fundiccedilatildeo Trail

A influecircncia desta decisatildeo como dissemos acima pocircde ser sentida deacutecadas depois da Declaraccedilatildeo de Estocolmo de 1972 que faz uma ponderaccedilatildeo entre os limites da soberania em face agrave obriga-ccedilatildeo de natildeo causar danos a outros Estados de maneira claramente inspirada na decisatildeo do Tribunal Arbitral Vejamos o texto da De-claraccedilatildeo em seu princiacutepio 21

Em conformidade com a Carta das Naccedilotildees Unidas e com os princiacutepios de direito internacional os Es-tados tecircm o direito soberano de explorar seus proacute-prios recursos em aplicaccedilatildeo de sua proacutepria poliacutetica ambiental e a obrigaccedilatildeo de assegurar-se de que as atividades que se levem a cabo dentro de sua juris-diccedilatildeo ou sob seu controle natildeo prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda jurisdiccedilatildeo nacional

Aleacutem disso esta mesma influecircncia pocircde ser sentida duas deacutecadas apoacutes Estocolmo conforme o artigo 2deg da Declaraccedilatildeo do Rio em 1992 que tambeacutem vem no sentido de determinar aos Es-

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tados que atuam sobre o meio ambiente de suas jurisdiccedilotildees de maneira tal natildeo prejudiquem o meio ambiente de outros paiacuteses Ainda hoje eacute difiacutecil encontrar uma soluccedilatildeo para o conflito natural que existe entre a soberania nacional para a utilizaccedilatildeo de recursos naturais e o dever de natildeo causar danos ao meio ambiente de outros paiacuteses (SCHRIJVER 2008) problema para o qual o EIA interna-cional se apresenta como uma das formas de soluccedilatildeo possiacuteveis O precedente do caso Fundiccedilatildeo Trail representa uma primeira forma de tratamento e enfrentamento da questatildeo

A decisatildeo e principalmente o seu nuacutecleo transcrito acima se referem especificamente agrave poluiccedilatildeo atmosfeacuterica todavia a for-ma abrangente dos termos adotados pelo tribunal serviu para que o fundamento se prestasse a orientar o entendimento para outras formas de poluiccedilatildeo e impacto transfronteiriccedilo (STEPHENS 2009)

Como uma primeira linha de regulamentaccedilatildeo de impac-tos transfronteiriccedilos podemos perceber que o tribunal natildeo coibiu qualquer forma de impactos externos mas sim os impactos que possuiacutessem ldquoseacuterias consequecircnciasrdquo

Esta determinaccedilatildeo nos importa para a compreensatildeo do EIA internacional pois traz uma questatildeo importante sobre se o Estado estaacute proibido de causar ou permitir que se cause qualquer espeacutecie de dano ambiental internacional ou somente um dano sig-nificativo ou seja de uma magnitude maior ao meio ambiente de outro Estado trataremos disso mais adiante

O recente caso das papeleiras (Case concerning pulp Mills on the river uruguay) trouxe novamente essa discussatildeo A situaccedilatildeo faacutetica que deu iniacutecio ao conflito entre a Argentina e o Uruguai iniciou-se com a construccedilatildeo de uma usina de celulose na margem uruguaia do rio Uruguai Tal construccedilatildeo seria feita pela empresa Botnia SA

Em resumo sustentou a demandante (Argentina) que o Uruguai havia violado os termos do Estatuto do Rio Uruguai tra-tado firmado entre as partes no ano de 1975 A violaccedilatildeo seria pro-cedimental devido agrave falta de notificaccedilatildeo haacutebil nos termos do art 7deg do tratado agrave Comissatildeo Administradora do Rio Uruguai bem como agrave Argentina (paraacutegrafos 71 a 158 da sentenccedila de 20 de abril

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da CIJ) Aleacutem disso haveria ainda uma violaccedilatildeo substancial por

parte do Uruguai concernente agrave efetiva manutenccedilatildeo de um niacutevel adequado da qualidade da aacutegua do Rio Uruguai (paraacutegrafos 159 a 266 da sentenccedila)

Por fim a demandante tambeacutem questionava a eventual agressatildeo do demandado agrave qualidade ambiental do Rio Uruguai (artigo 41 do Tratado do Rio Uruguai de 1975) em face da constru-ccedilatildeo da faacutebrica (paraacutegrafos 190 a 202 da sentenccedila)

A sentenccedila bem como os memoriais e as manifestaccedilotildees das partes no caso podem ser analisados das mais diversas ma-neiras demonstrando as suas implicaccedilotildees nos variados institutos do Direito Internacional do Meio Ambiente (dever de informaccedilatildeo dever de prevenccedilatildeo dever de cooperaccedilatildeo responsabilidade por violaccedilatildeo de obrigaccedilatildeo internacional direito dos tratados dentre outros)

Inicialmente a Argentina requereu uma medida provisio-nal no sentido de suspender a construccedilatildeo da faacutebrica sustentando que

a construccedilatildeo e o funcionamento da usina de papel certamente causariam e seriam suscetiacuteveis de causar danos ao meio ambiente natural de maneira irre-versiacutevel por causa do impacto potencial sobre todo ecossistema do rio Uruguai e a qualidade de suas aacuteguas (CIJ 2006)

Em que pesem as argumentaccedilotildees expendidas a CIJ enten-deu que nada indicava que a construccedilatildeo da faacutebrica implicaria um risco iminente de dano irreparaacutevel (CIJ 2006) Nesta decisatildeo refe-rente agrave medida provisional o Juiz Vinuesa em dissonacircncia com a maioria demonstrou em seu voto-dissidente que agrave medida que a Argentina tivesse provado que a autorizaccedilatildeo de funcionamento da faacutebrica teria gerado um risco razoaacutevel de dano ao meio ambien-te era necessaacuterio a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo o qual na sua opiniatildeo ldquonatildeo se trata de uma abstraccedilatildeo acadecircmica ou um

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desejaacutevel elemento de soft law mas uma regra de direito dentro do direito internacional geral na maneira como ele eacute entendido atualmenterdquo (CIJ 2006)

Em seguida houve a apresentaccedilatildeo dos memoriais opor-tunidade na qual novamente a Argentina evoca o princiacutepio da precauccedilatildeo pelo qual se deve ldquolevar em conta os riscos incertos na concepccedilatildeo elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo de qualquer projeto ou qualquer uso relativo agraves aacuteguas do rio Uruguai e a sua zona de influecircnciardquo (CIJ 2007) Nos contra-memoriais o Uruguai indica que a Argen-tina natildeo teria comprovado a presenccedila de riscos ao meio ambiente a ponto de se aplicar o princiacutepio da precauccedilatildeo (Idem)

O princiacutepio eacute novamente invocado em nova manifestaccedilatildeo da demandante indicando a obrigaccedilatildeo de o Uruguai tecirc-la infor-mado antecipadamente sobre os riscos mesmo que em potencial da construccedilatildeo da usina Ademais sustentou-se ainda que agrave Cor-te caberia a leitura do Tratado do Rio Uruguai de 1975 agrave luz do Ddireito internacional atual ou seja incorporando-se ao princiacutepio da precauccedilatildeo (CIJ 2008) Na sua resposta o Uruguai novamente indica que natildeo se apresentou nenhuma evidecircncia concreta de ris-cos ao meio ambiente que justificasse a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo (CIJ 2008)

Destarte tendo as duas partes apresentados seus argu-mentos a CIJ finalmente proferiu uma sentenccedila em 20 de abril de 2010 Em suma a Corte entendeu que houve sim uma violaccedilatildeo ao Tratado do Rio Uruguai de 1975 mas tatildeo somente no seu aspecto processual ou seja no dever de o Uruguai informar e atuar con-juntamente com a Argentina na liberaccedilatildeo do projeto da usina de papel

A Corte indicou poreacutem que natildeo houve uma violaccedilatildeo substancial do tratado ou seja o Uruguai natildeo teria efetivamente atuado no sentido de prejudicar o uso das aacuteguas do Rio Uruguai isto eacute em nenhum momento teria prejudicado substancialmente as aacuteguas ou a possiacutevel utilizaccedilatildeo do Rio Uruguai para outros fins Finalizando a Corte considerou legiacutetima a atuaccedilatildeo do Uruguai no que tange agrave questatildeo ambiental sustentando natildeo ter havido por

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parte do Uruguai nenhuma agressatildeo efetiva ao ecossistema nem sequer ameaccedila

Cumpre dizer que a CIJ natildeo aplicou ao caso a despeito de ter sido objeto de farta e robusta argumentaccedilatildeo o princiacutepio da precauccedilatildeo A linguagem e os fundamentos utilizados na sentenccedila denotam um total afastamento do princiacutepio da precauccedilatildeo e dos seus efeitos sobre o caso concreto Todavia a CIJ tratou do dever de prevenir danos ambientais para aleacutem das fronteiras bem como tratou do EIA como instrumento para concretizar esse dever

Nota-se que quando a Corte in casu analisou os eventu-ais danos ambientais da construccedilatildeo da faacutebrica analisou questotildees como o impacto da descarga de diversas substacircncias toacutexicas (foacutesfo-ro substancias felocircnicas nonifenols e dioacutexidos) na oxigenaccedilatildeo da aacutegua e sua consequente poluiccedilatildeo bem como todos os efeitos sobre a diversidade bioloacutegica Natildeo obstante a demandante ter argumen-tado no sentido do risco de tais eventos ao meio ambiente do Rio Uruguai a CIJ ( 2010 p91) decidiu que

265 Se apreende do acima exposto que natildeo existe evidecircncias conclusivas nos autos que demonstrem que o Uruguai natildeo tenha agido com o grau de di-ligecircncia adequada ou que as descargas de efluentes da Orion (Botnia) usina possuam efeitos deleteacuterios ou causaram danos aos recursos vivos ou agrave qualida-de da aacutegua ou ao equiliacutebrio ecoloacutegico do rio desde o iniacutecio das operaccedilotildees em novembro de 2007

A Corte entende que a falta de ldquoevidecircncias conclusivasrdquo de um dano ambiental natildeo permite que a mesma determine a pa-ralisaccedilatildeo das atividades da faacutebrica Ocorre que uma interpretaccedilatildeo agrave luz do princiacutepio da precauccedilatildeo natildeo exige a evidecircncia conclusiva mas sim um indiacutecio de risco

Criticando a decisatildeo temos o voto do Juiz Canccedilado Trin-dade (CIJ 2010 p 166) para quem

113 Natildeo apenas a CIJ natildeo tomou conhecimento natildeo afirmou a existecircncia dos dois princiacutepios [prevenccedilatildeo

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e precauccedilatildeo] natildeo os elaborou deixando passar en-tatildeo uma ocasiatildeo uacutenica nesta seara do Direito Inter-nacional contemporacircneo O fato de que a Corte silen-ciou sobre eles natildeo significa que estes princiacutepios da prevenccedilatildeo e da precauccedilatildeo natildeo existam Eles existem sim e se aplicam e satildeo em minha opiniatildeo da maior importacircncia como parte do jus necessarium Dificil-mente nos podemos falar sobre o Direito Interna-cional do Meio Ambiente atualmente sem estes dois princiacutepios A Corte teve uma oportunidade uacutenica nas circunstacircncias do caso da Pulp Mills [papeleiras] para reclamar a aplicaccedilatildeo da prevenccedilatildeo bem como da precauccedilatildeo ela infelizmente preferiu natildeo fazecirc-lo por motivos que vatildeo aleacutem e escapam da minha com-preensatildeo

Em outro ponto da decisatildeo a CIJ resolve a questatildeo refe-rente agrave inversatildeo do ocircnus da prova requerida pela Argentina em funccedilatildeo da aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo (paraacutegrafos 160 agrave 168 da sentenccedila) A Corte novamente afasta a aplicaccedilatildeo do prin-ciacutepio da precauccedilatildeo e natildeo promove a inversatildeo do ocircnus de provar aplicando portanto a consagrada regra processual do onus proban-di incubit actori ou seja de que ao autor cabe a prova do alegado

A CIJ natildeo versando sobre o tema deixou agrave margem a questatildeo de definir se o princiacutepio da precauccedilatildeo possuiria o status de costume internacional ou de princiacutepio geral de direito natildeo pro-movendo avanccedilos nesta discussatildeo (ANTON 2010)

Essa ideia compreendida no seio do julgamento da ques-tatildeo arbitral qual seja a de que um Estado natildeo poderaacute atuar em seu territoacuterio de maneira a causar dano no meio ambiente de outro Estado influenciou decisivamente para o surgimento dos princiacute-pios do Direito Internacional do Meio Ambiente os quais veremos abaixo Poreacutem antes deles veremos um pouco sobre o estudo preacute-vio de impacto ambiental no Direito domeacutestico

O EIA no direito domeacutestico

As legislaccedilotildees dos paiacuteses preveem mecanismos de contro-

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le preacutevio do impacto de atividades potencialmente causadoras de dano ambiental No Brasil por exemplo o EIA eacute conceituado por Taldem Farias (FARIAS 2013 p 68) como

A avaliaccedilatildeo de impacto ambiental eacute um instrumen-to de defesa do meio ambiente constituiacutedo por um conjunto de procedimentos teacutecnicos e administra-tivos que visam agrave realizaccedilatildeo da anaacutelise sistemaacutetica dos impactos ambientais da instalaccedilatildeo ou operaccedilatildeo de uma atividade e suas diversas alternativas com a finalidade de embasar as decisotildees quanto ao seu licenciamento

Nesse sentido a norma que trata do assunto prevecirc que o EIA eacute entatildeo uma espeacutecie de licenciamento ambiental Em outras palavras natildeo eacute todo o licenciamento ambiental que seraacute sujeito agrave obrigatoriedade do EIA Vejamos o texto constitucional sobre o as-sunto

Art 225 Todos tecircm direito ao meio ambiente ecolo-gicamente equilibrado bem de uso comum do povo e essencial agrave sadia qualidade de vida impondo-se ao Poder Puacuteblico e agrave coletividade o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as presentes e futuras geraccedilotildees

IV - exigir na forma da lei para instalaccedilatildeo de obra ou atividade potencialmente causadora de significa-tiva degradaccedilatildeo do meio ambiente estudo preacutevio de impacto ambiental a que se daraacute publicidade

A principal norma infraconstitucional que versa o tema eacute a Resoluccedilatildeo nordm 0186 do Conama que trata da competecircncia para o licenciamento bem como traz alguns requisitos para o mesmo Pela clareza da norma vale a transcriccedilatildeo de alguns dos seus dis-positivos O artigo 6ordm por exemplo trata dos requisitos miacutenimos para o estudo

Artigo 6ordm - O estudo de impacto ambiental desenvol-veraacute no miacutenimo as seguintes atividades teacutecnicas

I - Diagnoacutestico ambiental da aacuterea de influecircncia do

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projeto completa descriccedilatildeo e anaacutelise dos recursos ambientais e suas interaccedilotildees tal como existem de modo a caracterizar a situaccedilatildeo ambiental da aacuterea antes da implantaccedilatildeo do projeto considerando

a) o meio fiacutesico - o subsolo as aacuteguas o ar e o clima destacando os recursos minerais a topografia os ti-pos e aptidotildees do solo os corpos drsquoaacutegua o regime hidroloacutegico as correntes marinhas as correntes at-mosfeacutericas

b) o meio bioloacutegico e os ecossistemas naturais - a fauna e a flora destacando as espeacutecies indicadoras da qualidade ambiental de valor cientiacutefico e econocirc-mico raras e ameaccediladas de extinccedilatildeo e as aacutereas de preservaccedilatildeo permanente

c) o meio soacutecio-econocircmico - o uso e ocupaccedilatildeo do solo os usos da aacutegua e a soacutecio-economia destacan-do os siacutetios e monumentos arqueoloacutegicos histoacutericos e culturais da comunidade as relaccedilotildees de dependecircn-cia entre a sociedade local os recursos ambientais e a potencial utilizaccedilatildeo futura desses recursos

II - Anaacutelise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas atraveacutes de identificaccedilatildeo previsatildeo da magnitude e interpretaccedilatildeo da importacircncia dos provaacuteveis impactos relevantes discriminando os impactos positivos e negativos (beneacuteficos e adver-sos) diretos e indiretos imediatos e a meacutedio e lon-go prazos temporaacuterios e permanentes seu grau de reversibilidade suas propriedades cumulativas e sineacutergicas a distribuiccedilatildeo dos ocircnus e benefiacutecios so-ciais

III - Definiccedilatildeo das medidas mitigadoras dos impac-tos negativos entre elas os equipamentos de contro-le e sistemas de tratamento de despejos avaliando a eficiecircncia de cada uma delas

lV - Elaboraccedilatildeo do programa de acompanhamento e monitoramento (os impactos positivos e negativos indicando os fatores e paracircmetros a serem conside-rados)

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Paraacutegrafo Uacutenico - Ao determinar a execuccedilatildeo do estu-do de impacto ambiental ao oacutergatildeo estadual compe-tente ou o IBAMA ou quando couber o Municiacutepio forneceraacute as instruccedilotildees adicionais que se fizerem ne-cessaacuterias pelas peculiaridades do projeto e caracte-riacutesticas ambientais da aacuterea

Tambeacutem o Direito francecircs exige dos empreendimentos que faccedilam o estudo preacutevio antes da sua operaccedilatildeo Explicando o sistema francecircs Yamaguchi e Souza (2011 p 17 ) pontuam que

Para Bessa (2008) a legislaccedilatildeo francesa adota o prin-ciacutepio de que toda obra deve ser previamente sub-metida a um estudo de impacto A Administraccedilatildeo em respeito ao princiacutepio estabelece uma lista nega-tiva (observe-se que o sistema francecircs de avaliaccedilatildeo de impactos ambientais funciona com uma lista po-sitiva ndash necessidade do EIA ndash e uma lista negativa ndash desnecessidade do EIA) isto eacute classifica algumas obras que natildeo precisaratildeo passar pelo preacutevio estudo de impacto

Tambeacutem o Direito norte-americano possui previsatildeo seme-lhante A norma norte- americana possui semelhanccedila com a nacio-nal em verdade a norma brasileira em certa medida se inspira nas regras do Estados Unidos Tratando do assunto vejamos a li-ccedilatildeo de Amoy (2006 p 607)

O Estudo de Impacto Ambiental ndash EIA ndash teve iniacutecio nos estudos do Prof Lynton Caldwell nos EUA onde foram expressos no National Environmental Police Act (NEPA) de 1969 que estabeleceu os ob-jetivos e princiacutepios da poliacutetica ambiental americana Aquela lei determinou ainda que todas as propostas de legislaccedilatildeo accedilotildees e projetos federais que afetassem significativamente a qualidade do meio ambien-te incluiacutessem uma detalhada avaliaccedilatildeo ambiental 44A NEPA eacute uma lei fundamental para o Direito Ambiental dos diversos Estados norte-americanos

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dos quais 18 jaacute adotam ldquominiNEPAsrdquo e de diversos paiacuteses pois tem servido de inspiraccedilatildeo para muitas legislaccedilotildees nacionais inclusive a brasileira

Vimos por meio dos exemplos acima que os estados na-cionais possuem normas mais ou menos rigorosas quanto agrave ne-cessidade de EIA Ocorre que natildeo tratam da eventualidade de o impacto ambiental avanccedilar para aleacutem das fronteiras nacionais

No proacuteximo toacutepico vamos analisar brevemente algumas interpretaccedilotildees das normas nacionais brasileiras agrave luz dos princiacute-pios do Direito Internacional do Meio Ambiente tendo em conta uma possiacutevel obrigaccedilatildeo de produzir-se EIA quando do impacto transfronteiriccedilo

A poluiccedilatildeo trasnfronteiriccedila e o dever de prevenir os impactos em acircmbito externo agrave luz dos princiacutepios do direito internacional do meio ambiente

A decisatildeo no Caso das Papeleiras tratou de maneira incon-clusiva o dever de efetivar o EIA nos casos de poluiccedilatildeo transfron-teiriccedila Vamos ao trecho da decisatildeo (CIJ 2010 p 83)

Nesse sentido a obrigaccedilatildeo de proteger e preservar nos termos do artigo 41 (a) Do Estatuto deve ser in-terpretado de acordo com uma praacutetica que nos uacutelti-mos anos ganhou tanta aceitaccedilatildeo entre os Estados que pode ser considerado um requisito5 do direito internacional geral de uma avaliaccedilatildeo de impacto am-biental sempre que exista o risco de a atividade in-dustrial proposta ter um impacto adverso significa-tivo em um contexto transfronteiriccedilo em particular sobre um recurso partilhado Aleacutem disso a devida diligecircncia e o dever de vigilacircncia e prevenccedilatildeo que implica natildeo seriam considerados como tendo sido

5 No original a expressatildeo eacute a seguinte ldquohas to be interpreted in accordance with a practice wich in recent years has gained so much acceptance among States tha it may now be consideres a require-ment under gereal international law to undertake an environmental impact assessment where ther is arisk that the proposed industrial activity may have a significant adverse impact in a transboundary context in particular on a shares resourcerdquo O termo ldquorequisiterdquo no original ldquoreuquerimentrdquo pode ser traduzido tambeacutem por ldquoexigecircnciardquo

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exercido se uma parte que as obras susceptiacuteveis de afectar o regime do rio ou a qualidade das suas aacuteguas natildeo procedeu a uma avaliaccedilatildeo do impacto ambiental do potencial efeito de tais obras 205 A Corte observa que nem o Estatuto de 1975 nem o Estatuto Direito internacional especificam o acircmbito e o conteuacutedo de um estudo preacutevio de impac-to ambiental Cumpre salientar aleacutem disso que a Argentina e o Uruguai natildeo satildeo partes na Convenccedilatildeo de Espoo Por uacuteltimo o Tribunal observa que o ou-tro instrumento a que a Argentina se refere em apoio dos seus argumentos nomeadamente os Objetivos e Princiacutepios do PNUA natildeo vinculam as Partes mas como diretrizes emitidas por um oacutergatildeo teacutecnico inter-nacional devem ser tomadas em consideraccedilatildeo pelas partes em conformidade com o artigo 41ordm aliacutenea a) na adopccedilatildeo de medidas no acircmbito do seu quadro re-gulamentar nacional Aleacutem disso este instrumento apenas prevecirc que os ldquoefeitos ambientais em um EIA devem ser avaliados com um grau de detalhe pro-porcional ao seu provaacutevel impacto ambientalrdquo (Prin-ciacutepio 5) sem dar qualquer indicaccedilatildeo dos componen-tes miacutenimos dessa avaliaccedilatildeo Consequentemente eacute a opiniatildeo da Corte de que compete a cada Estado determinar na sua legislaccedilatildeo nacional ou no pro-cesso de autorizaccedilatildeo do projeto o conteuacutedo da ava-liaccedilatildeo de impacto ambiental exigida em cada caso tendo em conta a natureza e a magnitude do projeto proposto bem como o possiacutevel impacto adverso no ambiente bem como a necessidade de efetuar nes-sa avaliaccedilatildeo toda a diligecircncia possiacutevel O tribunal considera tambeacutem que uma avaliaccedilatildeo do impacto ambiental deve ser conduzida antes da implemen-taccedilatildeo de um projeto Aleacutem disso uma vez iniciada e sempre que necessaacuterio durante toda a vida uacutetil do Projeto deve ser empreendido o contiacutenuo monitora-mento dos seus efeitos no ambiente

Sabemos que as fontes do Direito internacional satildeo aque-las discriminadas no artigo 38 do estatuto da CIJ quais sejam sim-plificadamente as convenccedilotildees os princiacutepios gerais de direito e o costume internacional

A decisatildeo da CIJ natildeo deixa claro se essa obrigaccedilatildeo seria

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oriunda de um princiacutepio (talvez princiacutepio da prevenccedilatildeo) ou de um costume Natildeo eacute possiacutevel avaliar pelo texto da decisatildeo o caraacuteter juriacutedico da obrigaccedilatildeo de promover o EIA no direito internacional

No Direito brasileiro tambeacutem natildeo temos nenhuma nor-ma que trate do assunto Poreacutem poderiacuteamos buscar fundamento normativo para essa obrigaccedilatildeo por exemplo no artigo 4 inciso X da Constituiccedilatildeo Fedral de 88 que prevecirc o princiacutepio das relaccedilotildees internacionais a ldquocooperaccedilatildeo entre os povos para o progresso da humanidaderdquo

Poreacutem se por um lado eacute possiacutevel falarmos de uma obri-gaccedilatildeo de evitar danos agrave naccedilatildeo estrangeira por causa ambiental em territoacuterio domeacutestico como sendo um princiacutepio de Direito Inter-nacional do Meio Ambiente qual seja o princiacutepio da prevenccedilatildeo (SANDS 2003) natildeo podemos avanccedilar para concluirmos que de-rivaria desse dever a obrigaccedilatildeo de efetuar o EIA

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

O caso das papeleiras demonstra que a questatildeo da polui-ccedilatildeo transfronteiriccedila e o dever de preveni-la continuam no centro dos conflitos ambientais internacionais Ainda que natildeo seja pos-siacutevel falarmos em uma obrigaccedilatildeo juriacutedica de promover o EIA em face da poluiccedilatildeo transfronteiriccedila tambeacutem jaacute natildeo se pode falar em uma total ausecircncia de responsabilidade do Estado quanto a danos para aleacutem de suas fronteiras

A questatildeo somente ficaraacute mais delineada em seus aspectos juriacutedicos com os avanccedilos dos casos e da doutrina especializada devendo o jurista ficar atento em especial aos desdobramentos relacionados agraves consequecircncias da decisatildeo da CIJ no caso Pulp Mils (papeleiras)

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JULGAMENTO INDIacuteGENA DE CONFLITOS INTERNOS RE-CONHECIDO PELO DIREITO ESTATAL NA PERSPECTIVA DO PLURALISMO JURIacuteDICO

Eliel Alves Camerini Silva1

Luciana Stephani Silva Iocca2

RESUMO O presente artigo explora a garantia legal constitucional do processo juriacutedico criminal indiacutegena concebida pela Constituiccedilatildeo Federal Brasileira e pela Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho e legislaccedilotildees afins e de seu reconhecimento pelo Estado por meio da Sentenccedila proferida pela Comarca de BonfimRO nos autos de nordm 009010000302-0 e mantida pela turma recursal Ao seguir os moldes do neoconstitucionalismo latino-americano aponta o direito indiacutegena como um direito autocircnomo dotado de alteridade e com jus puniendi proacuteprio sem grau de hierarquia com o jus puniendi do Estado-juiz Tal reconhecimento insurge tambeacutem na valorizaccedilatildeo de um Estado multicultural com diferentes sistemas juriacutedicos proacuteprios e vaacutelidos no respectivo acircmbito jurisdicional dentro do territoacuterio brasileiro tido como pluralismo juriacutedico capaz de influenciar o Direito Estatal seja na sua criaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo Compreender a existecircncia de pluralismo eacute conhecer o direito indiacutegena enquanto direito comparado surgindo a possibilidade de aprofundar o conhecimento dos sistemas juriacutedicos aprimorando o direito nacional e aproximando os povos atraveacutes do respeito de suas identidades culturais tema este pouco abordado pela doutrina juriacutedica brasileira e nas academias juriacutedicas

PALAVRAS-CHAVE Direito Indiacutegena Reconhecimento Estatal Multiculturalismo

1 Acadecircmico do Curso de Direito da UNEMAT CaacuteceresMTelielcamerinigmailcom 2 Professora Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT lucianaioc-cagmailcom

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ABSTRACT This article explores a Constitutional legal warranty of the indigenous criminal legal process conceived by the Brazilian Federal Constitution and by the International Labour Organization and related legislation and its recognition by the State by means of the judgment pronounced by the district of Bonfim Rondocircnia Brazil records number 009010000302-0 and maintained by the recursal class By following the molds of Latin American Neoconstitutionalism points to indigenous law as an autonomous right full of alterity and with own jus puniendi without degree of hierarchy with State-judgersquos jus puniendi Such recognition also insists on the appreciation of a multicultural State composed by different legal systems of their own and valid in the judicial sphere within the Brazilian territory understood as legal pluralism able to influencing State Law whether in its creation interpretation and application To understand the existence of pluralism is to know the Indigenous Law as protected right arising the possibility of deepening the knowledge of legal systems improving national law and approaching people through the respect of their cultural identities which is not usually addressed by Brazilian legal doctrine and in legal academies

KEYWORDS IndigenousLaws Staterecognition Multiculturalism

INTRODUCcedilAtildeO

A partir da Convenccedilatildeo 169 da OIT ndash Organizaccedilatildeo Inter-nacional do Trabalho ndash da qual o Brasil eacute signataacuterio e da proacutepria Constituiccedilatildeo Federal de 1988 mudanccedilas poliacuteticas e principalmen-te juriacutedicas surgiram no que diz respeito agraves relaccedilotildees do Estado e da sociedade brasileira com os povos indiacutegenas tendo em vista o reconhecimento aos povos indiacutegenas de sua organizaccedilatildeo social costumes liacutenguas crenccedilas tradiccedilotildees e autodeclaraccedilatildeo

Acerca do assunto o professor Rogeacuterio Geraldo Rocco (2015 online) tece o seguinte comentaacuterio

Sem duacutevida referida Convenccedilatildeo tem sido utilizada para a proteccedilatildeo de culturas tradicionais especial-mente de indiacutegenas e quilombolas na Amazocircnia Mas eacute um instrumento de consulta que se aplica

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quando eventuais projetos ou programas atingirem as suas terras e culturas Quanto a seus sistemas ju-riacutedicos o reconhecimento e respeito por parte da cultura hegemocircnica depende da formalizaccedilatildeo de um pluralismo juriacutedico (Grifo nosso)

Tais mudanccedilas se caracterizam pela positivaccedilatildeo de direitos pluralistas no acircmbito da etnicidade poliacutetica e cultura dos povos pautadas na concepccedilatildeo do neocostitucionalismo latino-americano

Nesse contexto tatildeo certo de que o direito de um paiacutes faz parte do patrimocircnio nacional o Tribunal de Justiccedila de Roraima decidiu em 18 de dezembro de 2015 a Apelaccedilatildeo Criminal nordm 009010000302-0 reconhecendo a jurisdiccedilatildeo indiacutegena criminal e portanto a materializaccedilatildeo do estado plurieacutetnico

Tratou-se do caso do crime de homiciacutedio praticado por Denilson Trindade Douglas que apoacutes ingerir bebida alcooacutelica desferiu facadas na viacutetima Alanderson Trindade Douglas ambos irmatildeos e membros da mesma tribo na comunidade indiacutegena do Manoaacute terra indiacutegena Manoaacute-Pium na Reserva Raposa Serra da Lua municiacutepio de Bonfim Estado de Roraima O Ministeacuterio Puacute-blico de Roraima ofereceu denuacutencia com base no art 121 sect 2ordm II do Coacutedigo Penal Brasileiro Na defesa a Procuradoria Federal responsaacutevel pela Seccedilatildeo de Indiacutegenas alegou a impossibilidade de punir o mesmo fato duas vezes bis in idem conforme o art 57 do Estatuto do Iacutendio haja vista que o crime foi punido conforme os usos e costumes da comunidade indiacutegena atraveacutes de decisatildeo das lideranccedilas das comunidades Anauaacute Manoaacute e WaiWai O Tribunal de Justiccedila de Roraima deixou de apreciar o meacuterito declarando a ausecircncia de in casu do direito de punir estatal

Entendimento do neoconstitucionalismo latino-americano

As profundas transformaccedilotildees ocorridas no cenaacuterio mun-dial na deacutecada de 90 no que diz respeito agraves relaccedilotildees econocircmicas poliacuteticas juriacutedicas e sociais entre os povos influenciaram (e in-fluenciam) na construccedilatildeo do neoconstitucionalismo latino-ameri-

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cano (DALMAU 2009)Tais mudanccedilas juriacutedicas se datildeo na esfera das relaccedilotildees in-

ternacionais concebidas atraveacutes de um sistema juriacutedico em forma de redes devido agraves muacuteltiplas cadeias normativas3 como tambeacutem no acircmbito interno de cada Estado atraveacutes do implemento de meca-nismos que visam efetivar o sistema poliacutetico adotado

O neoconstitucionalismo latino-americano surge como uma nova forma de organizaccedilatildeo juriacutedico-poliacutetica voltada para a construccedilatildeo de um ldquoEstado Democraacutetico de Direito Estado consti-tucional de direito Estado constitucional democraacuteticordquo ao institu-cionalizar no texto constitucional a dignidade da pessoa humana e normas de direitos fundamentais garantias de cunho social sob a proteccedilatildeo juriacutedica (BARROSO 2007)

A autora peruana Raquel Z Yrigoyen Fajardo (2008 p 16) identifica que o neoconstitucionalismo em linha temporal desen-volveu-se em trecircs ciclos

I - constitucionalismo multicultural (1982-1988) com a introduccedilatildeo do conceito de diversidade cultural e o reconhecimento de direitos indiacutegenas especiacuteficos II - constitucionalismo pluricultural (1988-2005) com a adoccedilatildeo do conceito de ldquonaccedilatildeo multieacutetnicardquo e o de-senvolvimento do pluralismo juriacutedico interno sendo incorporados vaacuterios direitos indiacutegenas ao cataacutelogo de direitos fundamentais III - constitucionalismo plurinacional (2006-2009) demanda pela criaccedilatildeo de um Estado plurinacional e de um pluralismo juriacutedi-co igualitaacuterio

Mais recentemente se vecirc a implantaccedilatildeo de um novo mo-delo fruto de reivindicaccedilotildees sociais de parcelas historicamente ex-cluiacutedas do processo decisoacuterio notadamente a populaccedilatildeo indiacutegena ndash como a promulgaccedilatildeo das Constituiccedilotildees do Equador (2008) e da Boliacutevia (2009) com praacuteticas de pluralismo igualitaacuterio jurisdicional em que haacute ldquoconvivecircncia de instacircncias legais diversas em igual hie-rarquia jurisdiccedilatildeo ordinaacuteria estatal e jurisdiccedilatildeo indiacutegenacampo-

3 FARIA Joseacute Eduardo Reforma constitucional em periacuteodo de globalizaccedilatildeo econocircmica 1997 p 5

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nesardquo (WOLKMER 2010 p 11)Em essecircncia um novo processo constitucional voltado

para o reconhecimento de um Estado plural ndash plurinacional ndash que segundo Dantas (2012) eacute ldquobaseado no pluralismo juriacutedico em que segue um novo regime poliacutetico pautado na democracia intercultural participaccedilatildeo popular resguardo a individualidades particulares ou coletivasrdquo

Nesse vieacutes a Constituiccedilatildeo Brasileira de 1988 investida da corrente neoconstitucionalista latino-americana com o caraacuteter de Constituiccedilatildeo Cidadatilde passa a reconhecer a identidade plurieacutetni-ca do Brasil Aos indiacutegenas satildeo reconhecidos direitos especiacuteficos bem como a garantia de direitos fundamentais enquanto cidadatildeos de direito presente no art 5ordm da Carta Magna Como resultado rompe-se a visatildeo integracionista ndash assimilacionista ndash agrave eacutepoca que entendia os indiacutegenas como categoria social transitoacuteria a ser incor-porada agrave comunhatildeo nacional E passa-se agrave perspectiva de sujeitos de direitos comuns e especiacuteficos como institucionaliza o Cap VIII intitulado ldquoDos Iacutendiosrdquo

Art 231 Satildeo reconhecidos aos iacutendios sua organiza-ccedilatildeo social costumes liacutenguas crenccedilas e tradiccedilotildees e os direitos originaacuterios sobre as terras que tradicio-nalmente ocupam competindo agrave Uniatildeo demarcaacute-las proteger e fazer respeitar todos os seus bens

sect 1ordm Satildeo terras tradicionalmente ocupadas pelos iacutendios as por eles habitadas em caraacuteter permanente as utilizadas para suas atividades produtivas as imprescindiacuteveis agrave preservaccedilatildeo dos recursos ambientais necessaacuterios a seu bem-estar e as necessaacuterias a sua reproduccedilatildeo fiacutesica e cultural segundo seus usos costumes e tradiccedilotildees

sect 2ordm As terras tradicionalmente ocupadas pelos iacutendios destinam-se a sua posse permanente cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo dos rios e dos lagos nelas existentes

sect 3ordm O aproveitamento dos recursos hiacutedricos incluiacutedos os potenciais energeacuteticos a pesquisa e a

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lavra das riquezas minerais em terras indiacutegenas soacute podem ser efetivados com autorizaccedilatildeo do Congresso Nacional ouvidas as comunidades afetadas ficando-lhes assegurada participaccedilatildeo nos resultados da lavra na forma da leisect 4ordm As terras de que trata este artigo satildeo inalienaacuteveis e indisponiacuteveis e os direitos sobre elas imprescritiacuteveis

sect 5ordm Eacute vedada a remoccedilatildeo dos grupos indiacutegenas de suas terras salvo laquoad referendumraquo do Congresso Nacional em caso de cataacutestrofe ou epidemia que ponha em risco sua populaccedilatildeo ou no interesse da soberania do Paiacutes apoacutes deliberaccedilatildeo do Congresso Nacional garantido em qualquer hipoacutetese o retorno imediato logo que cesse o risco

sect 6ordm Satildeo nulos e extintos natildeo produzindo efeitos juriacutedicos os atos que tenham por objeto a ocupaccedilatildeo o domiacutenio e a posse das terras a que se refere este artigo ou a exploraccedilatildeo das riquezas naturais do solo dos rios e dos lagos nelas existentes ressalvado relevante interesse puacuteblico da Uniatildeo segundo o que dispuser lei complementar natildeo gerando a nulidade e a extinccedilatildeo direito agrave indenizaccedilatildeo ou a accedilotildees contra a Uniatildeo salvo na forma da lei quanto agraves benfeitorias derivadas da ocupaccedilatildeo de boa feacute

sect 7ordm Natildeo se aplica agraves terras indiacutegenas o disposto no art 174 sect 3ordm e sect 4ordm

Art 232 Os iacutendios suas comunidades e organiza-ccedilotildees satildeo partes legiacutetimas para ingressar em juiacutezo em defesa de seus direitos e interesses intervindo o Mi-nisteacuterio Puacuteblico em todos os atos do processo

Acordantes no Cap III Seccedilatildeo II tiacutetulo ldquoDa Culturardquo os artigos 215 e 216 normatizam o reconhecimento e fortalecimento da identidade dos povos indiacutegenas assegurando o efetivo exerciacutecio dos direitos culturais e liberdade de manifestaccedilotildees culturais bem como a valorizaccedilatildeo das matrizes histoacutericas Tem-se entatildeo o direi-to indigenista um conjunto das normas positivas que tratam das

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questotildees indiacutegenas sejam leis princiacutepios ou demais atos normati-vos que regem as relaccedilotildees entre iacutendios e natildeo iacutendios

Por outro lado o direito indiacutegena ou direito consuetudinaacute-rio indiacutegena embora tenha garantia legal para sua manifestaccedilatildeo eacute tido como ldquoregras postas aos iacutendios nas aldeias vistas a reger as relaccedilotildees entre indiviacuteduos famiacutelias grupos e povosrdquo e integra a forma de organizaccedilatildeo e da cultura da comunidade indiacutegena atra-veacutes das relaccedilotildees ancestrais com carga moral e cultural (SILVA 2005 online)

Como bem explana Francisco das Chagas Lima Filho (2007) ao acrescentar que

[] nas relaccedilotildees de famiacutelia casamento propriedade sucessatildeo e mesmo na questatildeo criminal existe uma plenitude do direito indiacutegena que se revela atraveacutes de um sistema juriacutedico completo com direitos e de-veres normas e sanccedilotildees criadas de modo coletivo por toda a comunidade de acordo com as necessi-dades do grupo

A presenccedila de outras fontes de produccedilatildeo juriacutedica dentro de um Estado muitas vezes intituladas de direito natildeo-oficial direi-to marginal ou alternativo eacute a concepccedilatildeo do pluralismo juriacutedico O direito natildeo-oficial tem suas proacuteprias regras que satildeo seguidas e respeitadas por um nuacutemero consideraacutevel de habitantes que o reco-nhecem como tal aplicando-o na soluccedilatildeo de conflitos E por vezes acarretam modificaccedilotildees no direito oficial por via das decisotildees judi-ciaacuterias (TAVARES 2014)

Direito indiacutegena enquanto direito comparado

A presenccedila de variados sistemas juriacutedicos leva por vezes agrave necessidade de conhececirc-los para eventualmente aperfeiccediloar ou unificar o direito Certo eacute que os modelos juriacutedicos mudam ininterruptamente por lenta evoluccedilatildeo ou por sobreposiccedilatildeo global ocorrendo mutaccedilotildees ndash originais ou imitaccedilotildees (SACCO 2001)

Eis que se faz necessaacuterio o uso do direito comparado qual

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seja a contribuiccedilatildeo que ele oferece ao possibilitar a verificaccedilatildeo das vaacuterias maneiras de se organizar institutos juriacutedicos e de regular re-laccedilotildees juriacutedicas semelhantes instrumentalizando o funcionamento do ordenamento

O direito comparado por vezes eacute apresentado como a constataccedilatildeo dos pontos comuns e das divergecircncias existentes em dois ou vaacuterios direitos Contudo natildeo deve ser visto apenas como o apontamento das diferenccedilas e semelhanccedilas E sim na perspec-tiva de conhecer a natureza e evoluccedilatildeo histoacuterica das instituiccedilotildees do direito relacionando as notiacutecias e tradiccedilotildees do passado com o presente Assim como sua importacircncia na descoberta e formulaccedilatildeo dos princiacutepios comuns que regem as relaccedilotildees sociais bem como a possibilidade de enriquecimento reciacuteproco entre normas juriacutedicas e por fim o fornecimento de bases juriacutedicas e conclusotildees cientiacutefi-cas a partir da experiecircncia com o objetivo de aperfeiccediloar o sistema juriacutedico nacional (JIMENEZ SERRANO 2006)

Para explicar essas ldquomultiplicidadesrdquo no direito compara-do Ana Lucia de Lyra Tavares professora de Direito Constitucio-nal Comparado da PUC-Rio traz as seguintes consideraccedilotildees

Diversamente do que ocorreu por muito tempo em que os campos para a comparaccedilatildeo juriacutedica eram se-lecionados segundo afinidades geopoliacuteticas e ideoloacute-gicas dos Estados envolvidos ou de acordo como a similitude de graus de desenvolvimento econocircmico ou ainda em funccedilatildeo de raiacutezes culturais comuns em suma a comparaccedilatildeo do comparaacutevel em nossos dias a prefixaccedilatildeo desses campos passou a traduzir um in-teresse acadecircmico e teoacuterico Isso porque a realidade da globalizaccedilatildeo impocircs relaccedilotildees entre sistemas juriacute-dicos profundamente heterogecircneos aleacutem de extra-polarem as bases internacionais de relacionamento chegando-se a patamares supranacionais e ateacute mes-mo universais Assim se a urgecircncia da compreensatildeo entre os oriundos desses sistemas eacute ditada a curto prazo por interesses de natureza econocircmica a longo prazo satildeo exigecircncias mais profundas de compreen-satildeo intercultural que devem ser consideradas para que se alcance um entendimento mais vasto (TA-VARES 2014 online)

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Em concordacircncia nota-se que ldquoa ideia de comparaccedilatildeo au-menta a compreensatildeo entre os povos e contribui para a coexistecircn-cia das naccedilotildeesrdquo uma vez que gera aproximaccedilatildeo dos povos pelo respeito de suas identidades culturais (SACCO 2001 p 27)

Na visatildeo do professor Rogeacuterio Geraldo Rocco (2005 onli-ne)

Entretanto essa definiccedilatildeo de grandes sistemas juriacute-dicos caracteriza uma visatildeo hegemocircnica sobre gru-pos sociais que por certo satildeo diversos distintos e plurais num mesmo territoacuterio Eacute algo proacuteximo do monismo juriacutedico referido por Lins Mesquita (2012 p 157) segundo o qual os direitos dos povos tradi-cionais natildeo seriam senatildeo especificaccedilotildees histoacutericas Eacute certo que as comunidades indiacutegenas possuem seus sistemas juriacutedicos e que natildeo guardam muitas seme-lhanccedilas com os sistemas hegemocircnicos na proporccedilatildeo de seu distanciamento da cultura dominante E que o grande dilema contemporacircneo reside no desafio de harmonizar os distintos sistemas juriacutedicos eis que coincide sua incidecircncia no tempo e no espaccedilo

De fato o direito comparado pode gerar efeitos influen-ciar na mudanccedila de institutos como na criaccedilatildeo da norma juriacutedica ou no campo da hermenecircutica atraveacutes da interpretaccedilatildeo das nor-mas juriacutedicas

A conjuntura do direito comparado pode produzir mu-danccedilas no acircmbito juriacutedico no entanto atentam ao direito criado mediante um procedimento artificial o direito estatal Em contra-posto o direito tradicional como o direito indiacutegena por vezes eacute ignorado (SACCO 2001)

Jurisdiccedilatildeo equiparada

Na praacutetica o direito estatal vem imperando sobre o direito indiacutegena ao aplicar o direito positivo aos indiacutegenas negando o di-reito consuetudinaacuterio que adveacutem das praacuteticas sociais e da tradiccedilatildeo dos povos indiacutegenas pondo-o como fonte secundaacuteria do direito

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Exigindo que seja compatiacutevel com o sistema juriacutedico nacionalParalelo agrave concepccedilatildeo dogmaacutetica no sistema juriacutedico esta-

tal o Tribunal de Justiccedila de Roraima em decisatildeo ineacutedita no siste-ma juriacutedico brasileiro determinou que o Estado natildeo pode aplicar pena prevista no Coacutedigo Penal a indiacutegena que jaacute foi punido pela proacutepria comunidade

Ao declarar a ausecircncia de jus puniendi o juiz de primeiro grau suscitou a titularidade dos dois entes ndash Estado e comunidade indiacutegena ndash do direito de punir denominando de duplo jus puniendi garantindo autonomia ao Conselho Indiacutegena agrave luz do art 57 do Estatuto do Iacutendio ldquoSeraacute tolerada a aplicaccedilatildeo pelos grupos tribais de acordo com as instituiccedilotildees proacuteprias de sanccedilotildees penais ou disci-plinares contra os seus membros desde que natildeo revistam caraacuteter cruel ou infamante proibida em qualquer caso a pena de morterdquo (1973 np)

Em entrelinhas atraveacutes dessa interpretaccedilatildeo reconhece que o Estado natildeo eacute uacutenico detentor do poder de julgar e aplicar pu-niccedilatildeo colocando ambas as jurisdiccedilotildees em igual status hieraacuterquico como acontece em outras Repuacuteblicas latinas como Boliacutevia (2009) e Equador (2008)

Conforme documentos acostado agraves f 185-187 dos autos do processo em anaacutelise o Conselho Indiacutegena atraveacutes de seus usos e costumes impocircs ao indiacutegena as seguintes penalidades

ldquo1) O iacutendio Denilson deveraacute sair da Comunidade do Ma-noaacute e cumprir pena na Regiatildeo WaiWai por mais 5 (cinco) anos com possibilidade de reduccedilatildeo conforme seu comportamento

2) Cumprir o Regimento Interno do Povo WaiWai res-peitando a convivecircncia o costume a tradiccedilatildeo e moradia junto ao povo WaiWai

3) Participar de trabalho comunitaacuterio4) Participar de reuniotildees e demais eventos desenvolvido

pela comunidade5) Natildeo comercializar nenhum tipo de produto peixe ou

coisas existentes na comunidade sem permissatildeo da comunidade juntamente com tuxaua

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6) Natildeo desautorizar o tuxaua cometendo coisas agraves escon-didas sem conhecimento do tuxaua

7) Ter terra para trabalhar sempre com conhecimento e na companhia do tuxaua

8) Aprender a cultura e a liacutengua WaiWai9) Se natildeo cumprir o regimento seraacute feita outra reuniatildeo e

tomar outra decisatildeordquo (2013 p 224)Importante destacar alguns trechos da Sentenccedila dos autos

nordm 009010000302-0 TJRR proferida pelo Juiz de Direito Aluiacutezio Ferreira Vieira em 03 de setembro de 2013

[] Cabe acentuar que todo o procedimento su-pramencionado foi realizado sem mencionar em momento algum a legislaccedilatildeo estatal tendo apenas como norte a autoridade que seus usos e costumes lhes confere[] Vecirc-se portanto a potencial condenaccedilatildeo e exe-cuccedilatildeo de pena por mais de 2 (dois) entes em tese titulares do direito de punir o mesmo fato Insta ob-servar que natildeo se trata de bis in idem pois os entes detentores do direito de punir satildeo distintos e natildeo apenas o Estado mas de instituto novo que poderiacute-amos denominar de ldquoDuplo Jus Puniendirdquo Em razatildeo da situaccedilatildeo supramencionada a Defesa alccedilou a existecircncia do no bis in idem ou seja a im-possibilidade do acusado ser sancionado duas vezes pelo mesmo fato logo este Juiacutezo deveria declarar-se incompetente em razatildeo da mateacuteria haja vista o ante-rior julgamento do fato pela comunidade indiacutegena a que pertence o acusadoPois bem rechaccedilo em parte o argumento da ilustre Defesa A uma pois tenho que o imbroacuteglio natildeo se trata de bis in idem mas de ldquoDuplo jus Puniendirdquo em face do que dispotildee o art 57 da Lei 600173 (Es-tatuto do Iacutendio)[] Ora natildeo se estaacute aqui alccedilando qualquer alegaccedilatildeo de incompetecircncia do Tribunal do Juacuteri pois se trata de algo acima disso que a ausecircncia in casu do direito de punir do Estado-Juiz Logo seria uma discussatildeo esteacuteril em face da inaplicabilidade dos institutos do processo estatal Ademais ainda que se considerasse o niacutevel constitucional do prescrito no art 5ordm inciso

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XXXVIII da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica como direito fundamental a ser observado o contraponto estaria no art 231 da mesma Constituiccedilatildeo que tambeacutem eacute direito fundamental logo com a necessaacuteria obser-vacircncia aos costumes e tradiccedilotildees dos povos indiacutege-nasConveacutem advertir que a esmagadora maioria da doutrina entende que a previsatildeo art 57 do Estatuto do Iacutendio seria uma exceccedilatildeo ao direito de punir esta-tal Com base nisso poderia se concluir que o Esta-do natildeo poderia atuar de forma alguma nos casos de crimes ocorridos nas comunidades indiacutegenas o que natildeo traduz a finalidade da legislaccedilatildeo e tatildeo pouco o que acontece na realidadeVejo pois que essa natildeo eacute a melhor conclusatildeo uma vez que o Estado teraacute ampla autonomia para inves-tigar processar e julgar o indiacutegena nos casos em que a comunidade indiacutegena natildeo julgaacute-lo logo o Estado em casos tais atuaraacute de forma subsidiaacuteria[] Em outras palavras o Estado deve apenas pro-nunciar a sua ausecircncia de poder de punir uma vez que o acusado jaacute foi julgado e condenado por quem deteacutem o direito Muito maior que o reconhecimento do direito de pu-nir seus pares as comunidades indiacutegenas sentiratildeo muito mais fortalecidas em seus usos e costumes fa-tor de integraccedilatildeo e preservaccedilatildeo de sua cultura haja vista que o Estado estaraacute sinalizando o respeito ao seu modo de viver e lhe dar com as tensotildees da vida dentro da comunidadeHaacute quem pense e diga que haja o temor da repercus-satildeo social da fragilizaccedilatildeo do Estado ou o potencial recrudescimento da violecircncia dentro das comunida-des indiacutegenasDigo o inverso o Estado natildeo estaraacute fragilizado pois caso as comunidades indiacutegenas natildeo julguem seus pares manteacutem-se o Direito de Punir Estatal de for-ma subsidiaacuteriaEnfim natildeo se enfraquece de forma alguma o Poder Estatal mas ao inverso fortalece-se a atividade juris-dicional ao se reconhecer uma excepcionalidade que deve ser tratada de forma distinta afinal o Estado natildeo eacute absolutista[] Ante ao exposto deixo de apreciar o meacuterito da denuacutencia do Oacutergatildeo Ministerial representante do Es-

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tado para DECLARAR A AUSEcircNCIA IN CASU DO DIREITO DE PUNIR ESTATAL em face do julga-mento do fato por comunidade indiacutegena relativo ao acusado DENILSON TRINDADE DOUGLAS brasi-leiro solteiro agricultor nascido aos 130389 filho de Alan Douglas e Demilza da Silva Trindade com fundamento no art 57 da Lei nordm 600173 e art 231 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica (VIEIRA 2013)

Ainda como fundamentaccedilatildeo o juiacutezo levantou uma deci-satildeo do Conselho de Sentenccedila do Tribunal do Juacuteri Popular da Jus-ticcedila Federal em Roraima presidido pelo juiz federal Helder Giratildeo Barreto que entendeu pela absolviccedilatildeo do indiacutegena Basiacutelio Alves Salomatildeo por falta de culpabilidade tendo em vista que o reacuteu cum-priu sua pena imposta pela comunidade indiacutegena Vejamos o tre-cho proferido pelo titular

Pois bem apoacutes cometer o crime o acusado foi pre-so e julgado pela proacutepria Comunidade Indiacutegena agrave qual pertencia recebendo as seguintes penas cavar a cova e enterrar o corpo da viacutetima e ficar em degre-do de sua comunidade e de sua famiacutelia pelo tempo que a comunidade achasse conveniente No dia do julgamento o acusado estava haacute quase catorze anos sem poder retornar ao conviacutevio da Comunidade Indiacutegena do Maturuca Ao ser interrogado em ple-naacuterio o acusado declarou quando um iacutendio comete um crime eacute costume ele ser julgado pelos proacuteprios companheiros Tuxauas e que isso eacute um costume que vem antes do tempo dos seus avoacutes As testemunhas confirmaram os fatos Em plenaacuterio foi ouvida a an-tropoacuteloga Alesandra Albert que assegurou que na tradiccedilatildeo da etnia Macuxi um iacutendio que mata outro eacute submetido a um Conselho escolhido pela proacutepria comunidade e reconhecido como detentor de auto-ridade que a maior pena aplicada pelo Conselho eacute o banimento que tanto o julgamento quanto a pena satildeo modos como eles encaram a Justiccedila e conclui para a pessoa que sofreu banimento o julgamento e a pena tecircm o sentido da perda da convivecircncia e da di-minuiccedilatildeo do conceito perante a Comunidade coisas que satildeo muito importantes (BARRETO 2000)

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Muito embora o juiz Aluiacutezio Ferreira Vieira tenha discor-dado quanto agrave ldquoabsolviccedilatildeordquo pois absolviccedilatildeo entende-se pelo julga-mento da mateacuteria e para aquele o Estado in casu que natildeo detinha o direito de punir em virtude do que se concluiria pela competecircn-cia do jus puniendi indiacutegena

Dessa maneira entendeu-se pela inaplicabilidade dos ins-titutos do processo estatal uma vez que o Estado seria incompeten-te em razatildeo da mateacuteria diante da pena jaacute aplicada pelo Conselho Indiacutegena dando iniacutecio ao reconhecimento do Estado Plurinacio-nal com visibilidade agraves experiecircncias indiacutegenas com novas e criati-vas possibilidades de se pensar o direito

Em suma na praacutetica seraacute aplicado da seguinte maneira

a) Nos casos em que autor e viacutetima satildeo iacutendios fato ocorre em terra indiacutegena e natildeo haacute julgamen-to do fato pela comunidade indiacutegena o Estado deteraacute o direito de punir e atuaraacute apenas de forma subsidiaacuteria Logo seratildeo aplicaacuteveis todas as regras penais e processuais penais

b) nos casos em que autor e viacutetima satildeo iacutendios o fato ocorre em terra indiacutegena e haacute julgamento do fato pela comunidade indiacutegena o Estado natildeo teraacute o di-reito de punir Assim torna-se evidente a impossibi-lidade de se aplicar regras estatais procedimentais a fatos tais que natildeo podem ser julgados pelo Estado Eacute o que aconteceu neste caso (Grifo nosso)

Em apelaccedilatildeo a turma recursal atraveacutes do Relator Des Mauro Campello em 18 de dezembro de 2015 manteve a senten-ccedila como se nota

[] Firme na Convenccedilatildeo 169 da OIT bem assim no conhecido art 231 da Constituiccedilatildeo Federal e toman-do por base a experiecircncia comparada (conforme o permite o art 4ordm da LINDB) entendo como correta a decisatildeo em 1ordf instacircncia ressalvadas as consideraccedilotildees sobre parte da justificativa nela adotada como ano-tei o que em todo caso nos leva agrave mesma conclusatildeo Ante ao exposto considerando afastada a jurisdiccedilatildeo

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estatal com o julgamento do fato pela comunidade indiacutegena concernida sob pena de se acarretar bis in idem voto pelo desprovimento do recurso de ape-laccedilatildeo ministerial mantendo inalterada a sentenccedila (CAMPELLO 2015)

Por outro lado o Relator fez algumas reflexotildees colocando o caso em questatildeo como violaccedilatildeo ao princiacutepio non bis in idem dis-cordando do termo duplo jus puniendi utilizado pelo juiz senten-ciante

[] Se o que denomina o Juiz sentenciante de ldquoDu-plo Jus Puniendirdquo significa que haacute dois entes juridi-camente legitimados a punir uma infraccedilatildeo penal e julgando um deles um certo crime natildeo poderaacute se imiscuir o outro no mesmo fato arrogando para si o direito de examinar a culpabilidade do agente e eventualmente responsabilizaacute-lo tambeacutem por isto seria se outro modo justamente aquilo que veda o brocardo ldquoNemo debet bis vexari pro uma et eadem causardquo (Ningueacutem deve ser sancionado mais de uma vez por um e mesmo fato) cuja contraccedilatildeo correspon-de ao non bis in idem Este princiacutepio natildeo implica (apenas) que um mesmo ente natildeo pode punir duas vezes o mesmo fato e sim como garantia processual penal ampla do indiviacuteduo que este natildeo pode ser pu-nido duas vezes por umpelo mesmo fato qualquer se seja o ente que o puneTenho que a compreensatildeo para o caso deve ser a que percebe violado o principio non bis in idem no presente caso natildeo porque seja refrataacuterio a novos institutos que possam ser reconhecidos na casuiacutes-tica judicial mas apenas porque me parece que o ldquoDuplo Jus Puniendirdquo poderia acender um debate paralelo acerca do conflito de jurisdiccedilotildees e que esse novel instituto natildeo suplantaria adequadamente o argumento da acusaccedilatildeo de que haveria violado na espeacutecie principio da inafastabilidade da jurisdiccedilatildeo (CAMPELLO 2015)

Em suma a decisatildeo corresponde agrave realidade latino-ameri-cana reconhecendo a jurisdiccedilatildeo indiacutegena quebrando o monopoacutelio

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estatal ao conceber a utilizaccedilatildeo de meacutetodos tradicionais dos po-vos indiacutegenas para soluccedilatildeo de conflitos mesmo em mateacuteria penal Decisatildeo essa que eacute reflexo do neoconstitucionalismo latino-ame-ricano uma vez que efetiva os direitos fundamentais dos povos indiacutegenas valida e reforccedila o pluralismo existente no paiacutes Capaz de influenciar numa nova concepccedilatildeo de valores ou ideologias no que concerne a outras fontes de jurisdiccedilatildeo

Segundo dados do IBGE de 2010 a populaccedilatildeo indiacutegena brasileira eacute representada por 305 diferentes etnias conhecidas cada qual com costumes e regras proacuteprias com 274 liacutenguas indiacute-genas sendo que 175 da populaccedilatildeo indiacutegena natildeo falam a liacutengua portuguesa Mostra-se claramente um Estado composto por uma sociedade multicultural e multiliacutengue que possui seu reconheci-mento sob respaldo constitucional

Neste cenaacuterio reconhecer o jus puniendi indiacutegena em grau de paridade com o jus puniendi do Estado-juiz natildeo torna incompe-tente a atuaccedilatildeo do Estado mas sim descentraliza a efetividade do poder vez que restringe a sua atuaccedilatildeo ao caraacuteter subsidiaacuterio se o indiacutegena assim o quiser nem mesmo se teraacute uma sanccedilatildeo desfavo-raacutevel isso porque se viabiliza a aplicabilidade de outras fontes do direito nacional condizente com a realidade social indiacutegena

Atuaccedilatildeo semelhante acontece com as Constituiccedilotildees Boli-viana e Equatoriana paiacuteses em que a populaccedilatildeo eacute composta signi-ficativamente por povos originaacuterios que atraveacutes de ampla parti-cipaccedilatildeo da populaccedilatildeo durante a elaboraccedilatildeo dos respectivos textos constitucionais traccedilaram o objetivo de humanizaccedilatildeo dos povos e comunidades tradicionais sobretudo quanto ao tratamento dado agraves tradiccedilotildees e praacuteticas indiacutegenas e assim legitimaram a atuaccedilatildeo das autoridades indiacutegenas no exerciacutecio da administraccedilatildeo da justi-ccedila em seus espaccedilos territoriais com seu proacuteprio direito e procedi-mentos

O Artigo 1ordm da Constituiccedilatildeo boliviana preconiza

Boliacutevia se constituye em um Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario libre In-dependiente soberano democraacutetico intercultural

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descentralizado y com autonomias Boliacutevia se funda em lapluralidad y el pluralismo poliacutetico econocircmico juriacutedico cultural y linguiacutestico dentro Del processo integrador del paiacutes

De fato a Constituiccedilatildeo brasileira jaacute reconhece os direitos dos povos indiacutegenas e comunidades tradicionais entretanto as di-ficuldades que encontram estatildeo na efetivaccedilatildeo de tais direitos vez que versam principalmente sobre direitos de caraacuteter coletivo Na Constituiccedilatildeo boliviana por exemplo para materializar a perspec-tiva de um Estado Plurinacional houve uma transformaccedilatildeo insti-tucional Sobretudo com a composiccedilatildeo do Tribunal Constitucional Plurinacional Boliviano que em sua composiccedilatildeo aleacutem da presenccedila de representantes da jurisdiccedilatildeo estatal conta com a presenccedila obri-gatoacuteria de indiacutegenas eleitos pelo povo para um melhor diaacutelogo intercultural atraveacutes da participaccedilatildeo popular e da percepccedilatildeo in-diacutegena

Com perspectiva semelhante a Constituiccedilatildeo do Equador traz a criaccedilatildeo da Corte Constitucional Equatoriana composta com paridade entre homens e mulheres atraveacutes de um pluralismo juriacute-dico igualitaacuterio Traz ainda na essecircncia do Texto constitucional o rompimento do antropocentrismo atraveacutes da percepccedilatildeo indiacutegena da integraccedilatildeo do homem com o meio em que vive com a vida de modo geral

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Na concepccedilatildeo indiacutegena devido ao princiacutepio da solidarie-dade os interesses da comunidade satildeo mais importantes e se so-brepotildeem aos interesses ou direitos individuais de tal maneira que o direito indiacutegena se origina da proacutepria comunidade por isso a legitimidade das normas e da puniccedilatildeo natildeo satildeo questionadas

Essa visatildeo eacute diversa da empregada pelo direito comum (que se utiliza de outros meios para criaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo) mas pos-sui garantias no acircmbito constitucional e internacional

Embora presentes alguns dispositivos legais a Constitui-

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ccedilatildeo Federal vigente natildeo positiva expressamente a jurisdiccedilatildeo indiacute-gena com grau de paridade com a jurisdiccedilatildeo estatal limitando-se agrave aplicaccedilatildeo dos usos e costumes nas relaccedilotildees entre indiacutegenas salvo quando contrariar o sistema juriacutedico nacional ou direitos humanos internacionais

A Constituiccedilatildeo da Boliacutevia por sua vez elenca um rol sig-nificativo de artigos com direitos indiacutegenas Desse modo determi-na equivalecircncia entre a justiccedila indiacutegena e a justiccedila comum aleacutem de abrir espaccedilo para a participaccedilatildeo poliacutetica Assim reafirma a coexis-tecircncia de ldquonaccedilotildeesrdquo dentro do territoacuterio boliviano

Compreender a existecircncia de pluralismo eacute conhecer o di-reito indiacutegena enquanto direito comparado surgindo a possibili-dade de aprofundar o conhecimento dos sistemas juriacutedicos apri-morando o direito nacional e aproximando os povos atraveacutes do respeito de suas identidades culturais

Graccedilas agrave sentenccedila em anaacutelise o Brasil inova e abre frente para novas interpretaccedilotildees e aplicaccedilotildees do direito convalidando di-retrizes da ONU OIT e da proacutepria Constituiccedilatildeo Federal

Na concepccedilatildeo indiacutegena o reconhecimento da aplicaccedilatildeo de seus usos e costumes traz a integraccedilatildeo de povos que coexistem num mesmo espaccedilo fiacutesico

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A TEORIA DO PREJUIacuteZO NAS NULIDADES RELATIVAS O COROLAacuteRIO DA DISCRICIONARIEDADE NO PROCESSO PENAL

Evandro Monezi Benevides1

Felipe Teles Tourounoglou2

RESUMO Com a superaccedilatildeo do Estado Liberal desenvolveu-se que se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito expressatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo agrave luz do poacutes-positivismo No Brasil com a Constituiccedilatildeo Cidadatilde e a experiecircncia da ditadura militar inaugurou-se uma nova ordem juriacutedico-constitucional ensejando terreno feacutertil na efetivaccedilatildeo de direitos e garantias constitucionais Em contrapartida os paradigmas juriacutedicos erigidos com a democracia mormente tecircm sido alvo de levantes vez que o sistema normativo paacutetrio ainda continua vinculado agraves leis que natildeo mais expressam os valores constitucionais Somado a isso o Judiciaacuterio diante de sua progressiva autonomizaccedilatildeo vivencia uma era regada pela discricionariedade hermenecircutica colocando em risco inclusive a supremacia da Constituiccedilatildeo Assim o presente trabalho tem por objetivo analisar como tem se dado a atuaccedilatildeo do Judiciaacuterio na aplicaccedilatildeo da teoria do prejuiacutezo nas nulidades processuais penais e a sua imbricaccedilatildeo com a discricionariedade tatildeo bem recepcionada atualmente por juiacutezes e tribunais bem como apontar possiacuteveis saiacutedas Para tanto lanccedilaremos matildeo da teoria criacutetica do direito como forma de anaacutelise da temaacutetica proposta apresentando posicionamentos que coadunam com o tema a partir de pesquisas bibliograacuteficas Tal estudo demonstra-se fundamental viabilizando discussotildees acadecircmicas sobre a necessidade de se combater comportamentos antidemocraacuteticos que resvalam as necessidades do atual constitucionalismo

PALAVRAS-CHAVE Constitucionalismo Contemporacircneo Poacutes-positivismo Interpretaccedilatildeo 1 Graduando do curso de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail evandromonezzihotmailcom2 Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado do Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail felipetelesadvgmailcom

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ABSTRACT With an overcoming of the Liberal State what has now been understood by the Constitutional State of Law the expression of Contemporary Constitutionalism has been developed in the light of post-positivism In Brazil with the Citizen Constitution and an experience of the military dictatorship a new juridical-constitutional order was inaugurated providing fertile ground for the realization of constitutional rights and guarantees On the other hand legal paradigms erected with democracy have usually been the target of uprisings which the countryrsquos normative system remains bound by laws that no longer express constitutional values Added to this the Judiciary faced with its progressive autonomization experienced an era ruled by hermeneutical arbitrariness even putting at risk the supremacy of the Constitution The purpose of this study has to analyze how the activity of the Judiciary has been applied in the application of the theory of injury in criminal proceedings and its connection with arbitrariness currently received by judges and courts pointing out possible exits Finally we will use the critical theory of law as a way of analyzing the proposed theme presenting positions that fit the theme using bibliographical research This study proves to be fundamental since it makes it possible to vocalize academic discussions about the need to combat undemocratic behaviors that go against the needs of the current constitutionalism

KEYWORDS Contemporary Constitutionalism Post-positivism Interpretation

INTRODUCcedilAtildeO

Com o agravamento das tensotildees poliacuteticas provocadas em parte pela desmoralizaccedilatildeo dos gestores puacuteblicos legitimamente constituiacutedos pelo voto em funccedilatildeo de escacircndalos de corrupccedilatildeo bem como do descompasso de suas accedilotildees face agraves necessidades sociais o Direito tem alcanccedilado um grau de autonomia cada vez mais elevado Isso se deve ao fato de que o Direito passa a ter um caraacuteter cada vez mais progressista no sentido de ser transformador potencializando as esperanccedilas sociais de verem concretizados os

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direitos fundamentais assumidos nos textos constitucionais Nes-se novo cenaacuterio paradigmaacutetico a poliacutetica (leia-se Executivo e Le-gislativo) em todas as suas conjecturas acaba ficando em deacuteficit com os direitos fundamentais Tais circunstacircncias possibilitaram a construccedilatildeo de um novo modelo de Direito e de Estado uma vez que a Constituiccedilatildeo passa a ser uma verdadeira forma de concreti-zaccedilatildeo de direitos

Por outro lado aquilo que poderia ser beneacutefico tem de-monstrado progressivamente seu lado funesto A autonomia do Direito construiacuteda pela afirmaccedilatildeo e materializaccedilatildeo de direitos e garantias constitucionais tem produzido um indesejaacutevel ldquoefeito colateralrdquo a discricionariedade jurisdicional Tal discricionariedade encontra-se fundamentada no fato de que dentro da dogmaacutetica juriacutedica (tradicional) seria (e tem sido) impossiacutevel ao inteacuterprete (juiz) se desvencilhar da sua subjetividade bem como da objetivi-dade do texto e lanccedilar matildeo de uma interpretaccedilatildeo do fato social a partir de uma concepccedilatildeo histoacuterico-ontoloacutegica do direito Isso sig-nifica dizer que a discricionariedade esvazia-se de quaisquer in-fluecircncias concreto-reais e mergulha na abstratalidade do Direito Se a liberdade portanto do legislador foi restringida em funccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo constitucional deve-se buscar caminhos que impe-ccedilam a discricionariedade do inteacuterprete em detrimento dos direitos e garantias fundamentais mormente solapados pelo decisionismo jurisdicional

Diante disso e como prova dos efeitos nocivos da discri-cionariedadearbitrariedade do inteacuterprete o ponto fulcral o qual o presente trabalho pretende abordar trata-se da teoria do prejuiacutezo amplamente debatida pela doutrina processual penal a qual se situa no instituto das nulidades relativas poreacutem muito mal apli-cada em decisotildees judiciais as quais em vez de concretizarem o respeito aos direitos fundamentais acabam se tornando a expres-satildeo maacutexima dessa discricionariedade violando direitos e garantias fundamentais e anulando e pondo agrave prova o que se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito Pior que isso colocando em risco a autonomia do Direito e inevitavelmente a supremacia da Constituiccedilatildeo

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O Estado Constitucional de Direito e a Autonomia do Direito

Trecircs foram as referecircncias inaugurais do constitucionalis-mo moderno a norte-americana a francesa e a inglesa as quais impulsionaram a construccedilatildeo do cenaacuterio juriacutedico-constitucional e poliacutetico do final do seacuteculo XVIII bem como os contornos do Estado Constitucional de Direito expressatildeo clara da limitaccedilatildeo do poder estatal

Sarlet (2013 p 52) aponta que ldquoo processo de afirmaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do Estado (Constitucional) de Direito que nasceu como um Estado Liberal de Direito revela que se trata de uma trajetoacuteria gradualrdquo pois outras experiecircncias constitucionais fo-ram sendo delineadas ao longo da histoacuteria3 Assim alerta o autor que sob o manto de Estados Constitucionais modelos distintos de constitucionalismos podem ser identificados como o Estado Cons-titucional Liberal o Estado Constitucional Social e o Estado Cons-titucional de Direito os quais se manifestam a partir de perspecti-vas ideoloacutegicas distintas mas que contribuiacuteram para a edificaccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo

Leciona Barroso (2010) que o marco do constitucionalis-mo que hoje se conhece como ldquogarantistardquo e ldquoprogramaacuteticordquo teve como marco histoacuterico o poacutes Segunda Guerra na Europa especial-mente na Alemanha e Itaacutelia4 com suas Constituiccedilotildees escritas No Brasil o marco foi a redemocratizaccedilatildeo poacutes Ditadura Militar em 1988 com a Constituiccedilatildeo Cidadatilde que possibilitou a travessia de um regime autoritaacuterio para o democraacutetico solidificado ateacute entatildeo Todos esses ldquomarcosrdquo a partir de suas contribuiccedilotildees histoacuterias de

3 Muito comum encontrar juristas que buscam estabelecer distinccedilotildees entre Estado Liberal e Estado Social apontado um ou outro como possivelmente mais adequado Logo necessaacuterio e oportuno eacute o esclarecimento de Streck (2014 p 138) ao afirmar que ldquonatildeo parece adequada portanto a tese da contraposiccedilatildeo do modelo de direito do Estado Social ao modelo de direito do Estado Liberal Isso seria ignorar os dois pilares sobre as quais estaacute assentado o terceiro modelo o Estado Democraacutetico de Direito a proteccedilatildeo dos direitos social-fundamentais e o respeito agrave democraciardquo 4 Duas satildeo as referecircncias de constitucionalismo a Constituiccedilatildeo alematilde denominada ldquoLei funda-mental de Bonnrdquo promulgada em 1949 erigindo uma sustentaacutevel tradiccedilatildeo constitucional no acircmbito dos paiacuteses de tradiccedilatildeo romano-germacircnica e a Constituiccedilatildeo italiana de 1947 Ambas auxiliaram para a aproximaccedilatildeo de ideais de democracia e constitucionalismo produzindo uma nova configuraccedilatildeo poliacutetica (BARROSO 2010)

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fato possibilitaram uma transformaccedilatildeo na compreensatildeo do Direi-to e mais que isso na compreensatildeo de validade das normas infra-constitucionais e das instituiccedilotildees pertencentes ao Estado

A redemocratizaccedilatildeo no Brasil apoacutes mais de duas deacutecadas do regime militar e a superaccedilatildeo do Positivismo Juriacutedico5 tiveram papel decisivo na estruturaccedilatildeo de um direito constitucional para aleacutem da compreensatildeo de uma Constituiccedilatildeo meramente poliacutetica e vinculada aos interesses legislativos e administrativos A Consti-tuiccedilatildeo aleacutem de exigir uma efetiva compatibilidade das leis estabe-lece limites ao legislador ao administrador e tambeacutem ao inteacuterprete da lei impondo-lhes deveres e limites inexoraacuteveis de atuaccedilatildeo

O marco do poacutes-positivismo6 reintroduziu as ideias (e os ideais) de justiccedila e legitimidade nos diversos niacuteveis do poder es-tatal Isso significa dizer que o Direito antes compreendido como uma ciecircncia ldquopurardquo e isolada de outros conhecimentos passa a comungar com a realidade histoacuterico-social propiciando um senti-mento constitucional Mais que isso passa a proporcionar instru-mentos que possibilitam as mudanccedilas reivindicadas pela socieda-de e de direitos expressamente garantidos no texto constitucional Quer dizer no Estado Constitucional de Direito a lei passa a ser um instrumento de realizaccedilatildeo do Estado oportunizando mecanis-mos de promoccedilatildeoconcretizaccedilatildeo das reivindicaccedilotildees sociais peran-te a ineacutercia do Executivo eou do Legislativo como por exemplo o mandado de injunccedilatildeo o mandado de seguranccedila coletivo a accedilatildeo civil puacuteblica para citar alguns

Ao passo dessas transformaccedilotildees e como forma clara de efetivaccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo consolidou-se a compreensatildeo de Supremacia da Constituiccedilatildeo a dizer a ldquoseguranccedilardquo de que os poderes constituiacutedos natildeo poderatildeo dispor (tatildeo facilmente)

5 A doutrina sofreu muitas influecircncias de pensadores que buscavam professar um direito natildeo mais refeacutem dos pensamentos ultrapassados ou seja de um direito com perspectivas individualista-dogmaacute-tica teacutecnico-burocraacutetica e assim por diante mas buscava agora compatibilizar-se com perspectivas democraacuteticas em direccedilatildeo a um constitucionalismo garantista e programaacutetico 6 Importante ressaltar que o conceito de ldquopoacutes-positivismordquo deve ser compreendido aqui como a superaccedilatildeo da dogmaacutetica juriacutedica regado por concepccedilotildees solipsistas de um direito autocircnomo e in-dividualista trata-se de forma clara da superaccedilatildeo do positivismo normativista poacutes-kelseniano ou simplesmente positivismo primitivo

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das previsotildees constitucionais estabelecidas pelo Poder Constituinte muito menos contrariar tais disposiccedilotildees sob pena de serem repe-lidos do ordenamento juriacutedico Essa ldquoseguranccedilardquo por outro lado acaba sendo abalada sempre que uma (nova) ordem constitucional natildeo seja capaz de se desvencilhar de leis ordinaacuterias visivelmen-te conflitantes com essa (nova) ordem Isso porque ao contraacuterio do que pensam alguns juristas a Constituiccedilatildeo natildeo se funda ldquodo nadardquo seja com a primeira Constituiccedilatildeo de um Estado ou mesmo com a elaboraccedilatildeo de uma nova a qual substituiraacute outra Natildeo se pode tentar ldquopurificarrdquo um Poder Constituinte (como tentou fazer Kelsen) Nenhuma Constituiccedilatildeo eacute livre de influecircncias sociais poliacute-ticas culturais e religiosas Ainda mais se diante da fragilidade do monismo estatal reconhece-se a existecircncia de um direito natildeo esta-tal paralelo ao direito oficial o que certamente nos levaraacute agrave con-clusatildeo de que nenhum constituinte eacute totalmente imune agraves influecircn-cias de um direito preacute-existente quiccedilaacute das efervescecircncias sociais

Ao lado dessa inseguranccedila provocada por um sistema normativo que em muitos casos vai de encontro aos preceitos constitucionais o ponto fulcral da discussatildeo que envolve o Esta-do Democraacutetico de Direito diz respeito agrave autonomia que o Direito alcanccedilou e tem alcanccedilado Eacute preciso ter em mente que hoje no Es-tado Democraacutetico de Direito o foco de toda a atenccedilatildeo se volta ao Judiciaacuterio e isso se daacute aponta Streck (2014 p 138) em funccedilatildeo da perda da ldquoliberdade da conformaccedilatildeo do legislador em favor do controle contramajoritaacuterio feito pela jurisdiccedilatildeo constitucionalrdquo ou seja haacute uma niacutetida diminuiccedilatildeo do ldquopoderrdquo da vontade geral (Legislativo) e um aumento do espaccedilo da jurisdiccedilatildeo e o principal motivo dessa diminuiccedilatildeo de poder recai sobre a ineacutercia do Legis-lativo e do Executivo diante das garantias constitucionais que por eles satildeo negligenciadas permitindo que o Judiciaacuterio assuma uma postura mais ativa7 com o propoacutesito de concretizar os reclames da sociedade

7 Aqui a palavra ldquoativardquo (que remete ao termo ldquoativismo juriacutedicordquo) deve ser compreendida nas pa-lavras de Barroso (2012 p 1-50) como ldquouma participaccedilatildeo mais ampla e intensa do Judiciaacuterio na con-cretizaccedilatildeo dos valores e fins constitucionais com maior interferecircncia no espaccedilo de atuaccedilatildeo dos outros dois Poderes Em muitas situaccedilotildees sequer haacute confronto mas mera ocupaccedilatildeo de espaccedilos vaziosrdquo

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Diante dessa autonomizaccedilatildeo do direito do fortalecimen-to da atividade jurisdicional e da consequente diminuiccedilatildeo da in-fluecircncia dos demais poderes bem como diante da incompletude da lei que por vezes natildeo consegue abranger todas as situaccedilotildees possiacuteveis evidencia-se como defende Streck (2010) a necessidade de se encontrar mecanismos de controle do epicentro da tensatildeo entre jurisdiccedilatildeo e legislaccedilatildeo as decisotildees judiciais Isto eacute com essa au-tonomizaccedilatildeo do Direito adquirida no Estado Constitucional juiacute-zes e tribunais (e mais do que nunca os Tribunais Constitucionais) tecircm encontrado dificuldade em impedir que as suas decisotildees sejam solapadas pela discricionariedadearbitrariedade Quer dizer o que ateacute entatildeo representa(ria) um avanccedilo para o Direito agora tem sido seu principal entrave vez que natildeo tem sido usada de forma a exprimir o ldquoespiacuteritordquo do Constitucionalismo Contemporacircneo mas passa a exprimir interesses outros que natildeo se consubstanciam com a nova ordem vigente

Partindo dessa reflexatildeo pergunta-se como seraacute possiacutevel lidar com a dicotomia ldquoautonomiardquo versus ldquodiscricionariedaderdquo que hoje paira sobre o Direito muitas vezes chancelado pelos in-teacuterpretes da lei E eacute justamente no Processo Penal locus em que se deveria materializar o respeito aos direitos fundamentais que ilogicamente se tem encontrado a expressatildeo maacutexima dessa discri-cionariedade Natildeo raro chegam-se ao conhecimento puacuteblico de-cisotildees teratoloacutegicas que agrave luz da consciecircncia do julgador passam por cima da Constituiccedilatildeo violam direitos e garantias fundamen-tais e anulam a base do que agraves duras penas se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito isto eacute colocando em risco a autonomia do Direito e o pior a supremacia da Constituiccedilatildeo Como bem analisa Lopes Jr (2014 p 1176)

o sistema de garantias da Constituiccedilatildeo eacute o nuacutecleo imantador e legitimador de todas as atividades de-senvolvidas naquilo que concebemos como instru-mentalidade do processo penal eacute dizer um instru-mento a serviccedilo da maacutexima eficaacutecia do sistema de garantias da Constituiccedilatildeo

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Para tanto eacute preciso que se compreenda o Processo Penal agrave luz do sistema de garantias constitucionais a fim de efetivar a finalidade pela qual existem tais garantias limitaccedilatildeo do poder estatal face aos direitos fundamentais do reacuteu Posto isso eacute impossiacutevel negar que com a queda do regime totalitaacuterio e a promulgaccedilatildeo da Cons-tituiccedilatildeo de 1988 surgiu uma nova era constitucional advinda de um regime democraacutetico e que resvala da compreensatildeo dogmaacuteti-co-normativa do direito Todavia aleacutem do ordenamento juriacutedico vigente continuar ainda em sua grande maioria umbilicado com leis fascistas de outrora criando uma verdadeira instabilidade le-gal constitucional os inteacuterpretes do direito tambeacutem continuam os mesmos

A partir dessa problemaacutetica pode-se identificar dois pos-siacuteveis comportamentos igualmente nocivos a essa nova legalida-de constitucional ou os inteacuterpretes continuam aplicando o direito com o pressuposto da loacutegica positivista (primitiva) criando situa-ccedilotildees absurdas e desconexas com a nova ordem constitucional ou ao contraacuterio disso natildeo aceitando aplicar um Direito que natildeo mais coaduna com a nova ordem passam de meros ldquobocas da leirdquo a ldquocriacute-ticos da leirdquo proferindo decisotildees discricionaacuterias contraacuterias agrave Cons-tituiccedilatildeo que em nome de um neoconstitucionalismo natildeo abrem matildeo das raiacutezes solipsistas Como se veraacute a partir de agora o segundo comportamento tem se intensificado na seara processual penal

Teoria do ldquoVale-tudordquo

O instituto das nulidades em Processo Penal eacute um dos terremos mais arenosos no Direito atualmente Seja na juris-prudecircncia ou na doutrina raramente encontram-se opiniotildees con-vergentes sobre o assunto Todavia aleacutem das inuacutemeras discussotildees possiacuteveis que o instituto proporciona o que chama atenccedilatildeo eacute a denominada teoria do prejuiacutezo que atrelada agraves nulidades relativas transformou-se em mais um tumor do Processo Penal que volta e meia fere o sistema de garantias constitucionais

Extraiacuteda da dicccedilatildeo do artigo 563 do Coacutedigo de Processo

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Penal8 a teoria do prejuiacutezo tem finalidade uacuteltima de servir agrave apli-caccedilatildeo da nulidade relativa (que eacute uma classificaccedilatildeo doutrinaria das nulidades no sistema processual penal) O dispositivo explicita o famoso princiacutepio pas de nulliteacute sans grief (natildeo haacute nulidade sem pre-juiacutezo) isto eacute para que determinado ato seja declarado nulo seraacute necessaacuteria a comprovaccedilatildeo do prejuiacutezo pela parte que alega salvo se o ato natildeo viole norma cogente situaccedilatildeo em que o juiz poderaacute reconhececirc-la de ofiacutecio Entretanto nas palavras de Lopes Jr (2014) o ldquoprejuiacutezordquo como distinccedilatildeo entre nulidades relativas e absolutas9 possibilita espaccedilos de manipulaccedilatildeo interpretativa e a aplicaccedilatildeo inadequada das nulidades processuais penais nos casos concretos

O primeiro ponto a ser analisado entatildeo eacute a inapropriada influecircncia do processo civil exercida sobre o processo penal quanto ao tema das nulidades processuais Pois o ldquoprejuiacutezordquo ateacute entatildeo soacute era aplicado nos casos de nulidade relativa e desde que devida-mente comprovada a lesatildeo que o ato causou agravequele que alegou Todavia haacute muito nos tribunais tem-se aceitado o fenocircmeno da relativizaccedilatildeo das nulidades absolutas do processo civil em processo penal exigindo da parte que alega a nulidade absoluta a compro-vaccedilatildeo efetiva do prejuiacutezo o que implica em consequecircncias danosas ao suporte faacutetico dos direitos e garantias do imputado Nota-se portanto uma tendecircncia em evitar a decretaccedilatildeo de nulidade pro-cessual (seja ela relativa ou absoluta) sob o argumento de que a nulificaccedilatildeo natildeo condiz com os objetivos de celeridade e de precau-ccedilatildeo contra dilaccedilotildees processuais indevidas Daiacute se justificaria por exemplo a violaccedilatildeo do devido processo legal ()

8 Art 563 Nenhum ato seraacute declarado nulo se da nulidade natildeo resultar prejuiacutezo para a acusaccedilatildeo ou para a defesa (BRASIL 2016) 9 Considera-se como nulidade relativa o viacutecio que embora grave decorre de violaccedilatildeo de normas de interesse privado (ou normas infraconstitucionais) sem qualquer repercussatildeo constitucional Seu reconhecimento depende de provocaccedilatildeo do interessado com a demonstraccedilatildeo do efetivo ldquoprejuiacutezordquo sujeito a prazo preclusivo podendo se convalidar A nulidade absoluta por sua vez eacute o viacutecio de gra-vidade manifesta pois decorre de violaccedilatildeo de norma cogente ou seja que viola norma de interesse puacuteblico (e de ordem constitucional) e por isso o juiz deve alegaacute-la de ofiacutecio decretando sua inva-lidade A doutrina majoritaacuteria aponta que o prejuiacutezo nesse caso eacute presumido mas o STF e STJ tecircm relativizado as nulidades absolutas as quais nesse entendimento precisam gerar prejuiacutezo agraves partes a fim de que sejam declaradas ineficazes Nesse sentido ver STF ndash Segunda Turma ndash HC 406648 ndash Rel Min Teori Zavascki ndash Dje 26112013 e STJ ndash Quinta Turma ndash RMS 35180 ndash Rel Min Laurita Vaz ndash Dje 05112013

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Trata-se portanto de verdadeira metaacutestase vez que a re-cepccedilatildeo de categorias do processo civil para o processo penal (no caso a relativizaccedilatildeo das nulidades absolutas) como explica Lopes Jr (2014) tem produzido verdadeiro atropelamento de direitos e garantias fundamentais embasado em uma postura utilitarista e sob o manto da manipulaccedilatildeo discursivo-interpretativa Reiterando esse posicionamento Fernandes e Fernandes (2002 p 41) afirmam por outro lado que mais grave que os inconvenientes da decla-raccedilatildeo de nulidade processual ldquoseraacute a condenaccedilatildeo de um acusado com proscriccedilatildeo das garantias fundamentais do contraditoacuterio da ampla defesa da liberdade plena de produccedilatildeo de provardquo

Como consequecircncia dessa lesatildeo inicial (leia-se da inade-quada influecircncia do processo civil em processo penal) as ceacutelulas canceriacutegenas da discricionariedade do inteacuterprete acabaram se dis-seminando por todo o sistema de garantias constitucionais do reacuteu conquistado agraves duras penas frisa-se De mais a mais a pergunta que se faz eacute afinal a serviccedilo de quem estaacute o sistema de garantias constitucionais quanto agraves nulidades processuais penais Nas pala-vras de Binder (2000 p 58)

En los siglos XVIII y XIX a la par del desarrollo del pensamiento liberal (Beccaria Montesquieu Fi-lan-gieri Pagano luego Carrara etc) con los materiales del formalismo propio del sistema inquisitivo co-mienza a gestarse una nueva ingenieriacutea institucio-nal del proceso penal orientada a la contencioacuten de la violencia y la arbitrariedad del poder penal de la cual deriva lo que hoy desde Ferrajoli llamamos sis-tema de garantios

Natildeo se pode perder de vista o que jaacute fora discutido ante-riormente isto eacute que as normas bem como todas as instituiccedilotildees sujeitas ao Estado Constitucional de Direito estatildeo vinculadas a uma nova dogmaacutetica juriacutedico-constitucional que apresenta caracteriacutes-ticas dotadas de especial importacircncia na realizaccedilatildeo normativa dos direitos e garantias da Constituiccedilatildeo Logo natildeo eacute (e natildeo seraacute) pos-siacutevel compreender a teoria do prejuiacutezo e as nulidades em processo

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penal como um todo desvinculadas da compreensatildeo de Constitu-cionalismo Contemporacircneo Nessa linha arremata Binder (2000 p 59)

Formas procesales verdad proceso cognitivo prin-cipios del proceso sistema de garantiacuteas y liacutemites al poder penal son un conjunto de conceptos ligados entre siacute en un nivel de fundamento Quien no se si-tuacutee en el universo conformado por esos conceptos y su relacioacuten mutua difiacutecilmente pueda comprender el reacutegimen de las nulidades en el proceso penal

Nesta senda forma no Estado Constitucional de Direito e mais do que nunca dentro da seara processual penal eacute sinocircnimo de garantia Adequada eacute a afirmaccedilatildeo de Lopes Jr (2014 p 1175) de que o ldquoprocesso penal eacute um instrumento de limitaccedilatildeo do poder punitivo do Estado impondo severos limites desse poder e tam-beacutem regras formais para o seu exerciacutecio Eacute a forma um limite ao poder estatalrdquo e mais ldquoa forma eacute uma garantia para o imputado em situaccedilatildeo similar ao princiacutepio da legalidade do direito penalrdquo Co-mungando com essa visatildeo Streck (2010 p 170) pontua que ldquosalta-mos de um legalismo rasteiro que reduzia o elemento central do direito ora a um conceito estrito de lei [] para uma concepccedilatildeo de legalidade que soacute se constitui sob o manto da constitucionali-daderdquo Deduz-se portanto que todo o sistema de garantias e por consequecircncia de limitaccedilatildeo do puniendi estatal deve estar voltado para o reacuteu No entanto essa natildeo eacute a realidade

Nessa perspectiva e ao contraacuterio do que se imaginava a forma tem evitado que garantias constitucionais sejam colocadas em praacutetica e o pior tudo engendrado justamente por aqueles que deveriam garanti-la o inteacuterprete Diante disso introduz-se aqui o segundo ponto a ser analisado a discricionariedade travestida de le-galidade constitucional mas que na verdade tangencia qualquer noccedilatildeo de constitucionalidade Exemplo claro disso eacute o julgamento do habeas corpus nordm 148723SC em que o Superior Tribunal de Jus-ticcedila (STJ 2010 p 9) denegou a ordem de habeas corpus ao paciente que alegava nulidade absoluta em funccedilatildeo de o processo tramitar

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em segredo de justiccedila sem motivaccedilatildeo violando o princiacutepio consti-tucional da publicidade sob o seguinte fundamento

O simples fato de o feito ter tramitado em sigilo com a impliacutecita concordacircncia da Defesa natildeo gera qual-quer nulidade Poderia se cogitar eventual viacutecio em situaccedilatildeo oposta ou seja se natildeo tivesse sido obser-vado o sigilo determinado pela lei No caso contu-do natildeo haacute qualquer maacutecula processual [] natildeo se demonstrou qualquer prejuiacutezo () em decorrecircncia da providecircncia adotada A magistrada esclareceu que a Defesa teve o devido acesso aos autos e o impetrante natildeo alega o contraacuterio (Grifo nosso)

Percebe-se que sob o fundamento da preclusatildeo () a in-devida tramitaccedilatildeo em segredo de justiccedila da Accedilatildeo Penal in casu violando frontalmente ditame constitucional estampado no art 93 IX da CF88 natildeo constitui ldquoqualquer maacutecula processualrdquo Ora eacute sabido que no caso de nulidade absoluta natildeo haacute falar em conva-lidaccedilatildeo tatildeo pouco em preclusatildeo do ato eis que a invalidade pro-cessual pode ser arguida a qualquer tempo enquanto perdurar o processo penal aleacutem disso para que seja reconhecida a nulidade absoluta natildeo eacute necessaacuteria a provocaccedilatildeo da parte interessada po-dendo ser declarada de ofiacutecio pelo juiz e inclusive ser alegada em sede de revisatildeo criminal ou habeas corpus ainda que formada a coisa julgada

Outra questatildeo que toca o objeto do presente trabalho eacute que natildeo haacute falar em demonstraccedilatildeo de prejuiacutezo em nulidades ab-solutas vez que o prejuiacutezo eacute presumido E mais se se entende que ldquoformardquo eacute garantia uma vez violada a ldquoformardquo eacute obvio que tal atipicidade produza dano Apesar disso verifica-se que no exem-plo operou-se a relativizaccedilatildeo da nulidade absoluta e consequen-temente a aplicaccedilatildeo do princiacutepio pas nilliteacute sans grife mesmo sendo caso de nulidade insanaacutevel (absoluta)

Natildeo precisa ser especialista para notar a influecircncia ainda muito presente nos tribunais do animus inquisitivo Nas palavras de Lopes Jr (2014 p 1) ldquopara reconhecer uma nulidade o juiz

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precisa ser lsquoinvocadorsquo mas para ir atraacutes da prova decretar prisatildeo busca e apreensatildeo etc pode e deve atuar de ofiacutecio Olhem o ab-surdordquo E vai aleacutem o autor ao afirmar que determinado ato soacute seraacute declarado nulo ldquoquando o tribunal quiser para quem ele quiser e com o alcance que ele quiser Essa eacute a verdadeira ditadura judicial vivenciada hojerdquo (Idem) Agrave vista disto lanccedila-se mais uma pergun-ta haveria entatildeo soluccedilatildeo para o problema da discricionariedade quanto agrave aplicaccedilatildeo da teoria do prejuiacutezo em processo penal

Lopes Jr (Ibidem) em sua obra Direito Processual Penal apresenta uma possiacutevel saiacuteda O autor propotildee o que ele denomina de ldquoinversatildeo de sinaisrdquo ou seja natildeo seraacute a parte que alega o prejuiacute-zo que deveraacute demonstraacute-lo mas o proacuteprio juiz que para manter a eficaacutecia do ato deveraacute fundamentaacute-lo demonstrando que o ato alcanccedilou sua finalidade ou foi regularmente sanado Este tambeacutem eacute o posicionamento de Badaroacute (2007) para o qual deveraacute ocorrer uma liberaccedilatildeo da carga probatoacuteria por parte da defesa restando ao juiz tal incumbecircncia Isso se justifica uma vez que a defesa dificil-mente conseguiria demonstrar o prejuiacutezo por exemplo em casos de violaccedilatildeo do princiacutepio da publicidade como no caso em anaacutelise Quer dizer qual foi o prejuiacutezo nesse caso se o paciente teve opor-tunidade de alegar o defeito mas natildeo o fez oportunamente Qual foi o prejuiacutezo se o paciente sequer apontou um Ora o prejuiacutezo eacute nada mais que a violaccedilatildeo de uma norma constitucional Ou em outros casos a inobservacircncia de direitos fundamentais

Frisa-se entretanto que por mais que a medida adotada por Lopes Jr seja um grande passo para evitar a violaccedilatildeo de di-reitos e garantias constitucionais soacute ela natildeo satisfaz Afinal nada impediria que o juiz ou o tribunal continuassem tendo atitudes discricionaacuterias e violadoras bastasse apresentar razotildees que para sua consciecircncia legitimariam a inobservacircncia da Constituiccedilatildeo ou de determinada formalidade prevista no processo penal Mais que isso eacute imperioso um conjunto de accedilotildees o que inclui fundamental-mente que juiacutezes e tribunais tenham a correta compreensatildeo do processo penal natildeo mais como um sistema inquisitoacuterio mas como um sistema inexoravelmente inserido em uma nova ordem juriacutedi-

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co-constitucional na qual a forma eacute a maacutexima expressatildeo de garantiaDentro desse conjunto de accedilotildees por sua vez deve perpas-

sar tambeacutem uma maior importacircncia agrave hermenecircutica juriacutedica natildeo como ldquomais um meacutetodordquo ou como ldquoum saber operacionalrdquo mas como um instrumento a fim de se alcanccedilar interpretaccedilotildees fundi-das com a Constituiccedilatildeo Natildeo se pode mais permitir como aponta Streck (2010 p 162) que ldquolsquoo processoprocedimento interpretati-vorsquo possibilit[e]a que o sujeito [] alcance o sentido que mais lhe conveacutem lsquoo real sentido da regra juriacutedicarsquo etcrdquo Natildeo restam duacutevi-das de que no acircmbito da hermenecircutica juriacutedica haacute uma verdadei-ra banalizaccedilatildeo do processo interpretativo pois natildeo se sabe mais o que se deve seguir se ldquoa vontade da leirdquo ou ldquoa vontade do legisla-dorrdquo10 Quando nenhuma delas ldquoresolverdquo aplica-se a ldquovontade do inteacuterpreterdquo e assim em termos de nulidades em processo penal estaacute montada a torre de Babel Como explica Streck (Idem)

o resultado disso eacute que aquilo que comeccedila com (um)a subjetividade ldquocriadorardquo de sentidos (afinal quem pode controlar a ldquovontade do inteacuterpreterdquo pergun-tariam os juristas) acaba em decisionismos e arbi-trariedades interpretativas isto eacute em um ldquomundo juriacutedicordquo em que cada um interpreta como (melhor) lhe conveacutem Enfim o triunfo do sujeito solipsista o Selbstsuumlchtiger

Este portanto eacute justamente o resultado que natildeo se pode esperar quer dizer a subjetividade a discricionariedadearbitra-riedade o decisionismo Nenhum desses comportamentos har-moniza-se com o Estado Constitucional de Direito e deve ser du-ramente combatido por aqueles que acreditam na supremacia da Constituiccedilatildeo Natildeo se pode mais admitir que garantias fundamen-tais sejam violadas a fim de se satisfazer a consciecircncia do inteacuterpre-

10 Streck (2010 p 162) ensina que ldquoalguns autores colocam na consciecircncia do sujeito-juiz o locus da atribuiccedilatildeo de sentido (solipsista) Nesse contexto lsquofilosofia da consciecircnciarsquo e lsquodiscricionariedade judicialrsquo satildeo faces da mesma moeda Haacute ainda juristas filiados agraves antigas teses formalistas propalando que a interpretaccedilatildeo deve buscar a vontade da lei desconsiderando de quem a fez ndash sic ndash e que a lei lsquoterminadarsquo independe de seu passado importando apenas o que estaacute contido em seus preceitos (o texto teria um sentido lsquoem sirsquo)rdquo

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te e pior que isso que tais ilegalidades sejam chanceladas pelos tribunais

Atualmente o decisionismo no acircmbito do processo penal em especial no que diz respeito agraves nulidades processuais estaacute ri-gorosamente arraigado sendo legitimado pela doutrina diga-se de passagem Eacute preciso como jaacute dito um conjunto de accedilotildees dentre as quais a primordial eacute a compreensatildeo do sistema juriacutedico inevita-velmente inseparaacutevel da Constituiccedilatildeo e da ordem juriacutedica por ela estabelecida Compreendido isso chegar-se-aacute agrave conclusatildeo de que a formalidade de fato natildeo pode ser utilizada como um fim em si mesma assim como natildeo pode ser utilizada ao bel prazer de seus inteacuterpretes

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao fim e ao cabo com a construccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo o Direito deve se apresentar justaposto agrave nova dogmaacutetica juriacutedica implantada pelo Estado Constitucional de Di-reito mas natildeo soacute ele Tal exigecircncia deve-se estender peremptoria-mente aos seus ldquooperadoresrdquo quer dizer juiacutezes e tribunais preci-sam ter uma compreensatildeo cada vez mais consubstanciada com a nova ordem juriacutedica tendo em vista a progressiva autonomizaccedilatildeo do Direito que somada agrave incompreensatildeo dos inteacuterpretes da lei na aplicaccedilatildeo do saber tem provocado avalanches de criacuteticas as quais reprovam toda e qualquer atividade discricionaacuteria das autorida-des judiciaacuterias

A tendecircncia do Judiciaacuterio impulsionada por uma maior li-berdade de conformaccedilatildeo do sistema contramajoritaacuterio dos direitos fundamentais e em muitos casos lastreada por um falacioso dis-curso neoconstitucional por violar garantias constitucionais tem sido totalmente questionaacutevel especialmente quando tais violaccedilotildees ocorrem no acircmbito do Direito Penal e Processual Penal conside-rando seu caraacuteter subsidiaacuterio (ultima ratio) Como analisado ante-riormente evidencia-se que o grande desafio entatildeo eacute construir condiccedilotildees que evitem que a atividade jurisdicional (ou a atividade

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dos juiacutezes) se sobreponha ao proacuteprio Direito agrave proacutepria Constitui-ccedilatildeo afinal natildeo eacute em todos os casos que o Direito seraacute o que os tribunais dizem que ele eacute (e como de fato natildeo tem sido)

Esse descompasso entre a atuaccedilatildeo do judiciaacuterio e os ideais constitucionais tem se tornado nocivo para o processual penal vez que muito facilmente se tem subtraiacutedo direitos do reacuteu em prol da consciecircncia do julgador Isso fica muito claro como jaacute visto quan-do o judiciaacuterio passa a relativizar todas as nulidades no acircmbito do processo penal Sem sombra de duacutevidas tal entendimento que tem sido amplamente recepcionado por juiacutezes e tribunais nasceu em funccedilatildeo de uma equivocada recepccedilatildeo de categorias do processo civil a qual diferencia as nulidades absolutas das relativas a partir na natureza da norma ndash norma de interesse puacuteblico ou de interes-se privado Essa equivocada recepccedilatildeo insiste-se tem provocado a violaccedilatildeo dos direitos do reacuteu Primeiro porque no processo penal a forma deve ser vislumbrada como garantia isto eacute garantia contra a arbitrariedade do poder estatal Natildeo eacute por acaso que no processo inquisitivo a informalidade eacute tatildeo apreciada vez que ali o poder eacute melhor distribuiacutedo natildeo existindo limites definidos para a sua atuaccedilatildeo Essa realidade repete-se agrave exaustatildeo eacute altamente noci-va quando aplicada no processo penal levando-se em conta que a proteccedilatildeo do reacuteu eacute puacuteblica da mesma forma que puacuteblicos satildeo os direitos constitucionais que o tutelam

Diante da necessidade de proteccedilatildeo e defesa dos direitos e garantias fundamentais fazem-se essenciais algumas readequa-ccedilotildees procedimentais quanto agrave aplicaccedilatildeo das nulidades no processo penal Nesse passo a denominada ldquoinversatildeo de sinaisrdquo proposta pelo doutrinador Aury Lopes Jr (2014) apresenta-se uma possibi-lidade vez que defende que o ocircnus na demonstraccedilatildeo do prejuiacutezo natildeo ficaraacute mais com a parte que a alega (e que em muitos casos recai sobre o proacuteprio reacuteu) Tal encargo entretanto seraacute direcio-nado ao proacuteprio juiz que para manter a eficaacutecia do ato deveraacute fundamentaacute-lo demonstrando que o ato alcanccedilou sua finalidade ou foi regularmente sanado Por outro lado como apontado por mais que a medida adotada por Lopes Jr seja de grade valia para

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o sistema de garantias constitucionais ela por si soacute natildeo eacute sufi-ciente Em conjunto com essa proposta torna-se fundamental uma tomada de consciecircncia por parte do inteacuterprete quanto agrave relaccedilatildeo entre o sistema de nulidade processual penal e as garantias previs-tas na Constituiccedilatildeo Eacute preciso compreender que tais garantias (no caso as nulidades processuais) foram elaboradas a favor daquele sobre o qual recai o poder do Estado o imputado Seguindo esse raciociacutenio o inteacuterprete natildeo pode sacrificar regras e princiacutepios esta-belecidos constitucionalmente a fim de dar lugar as suas proacuteprias convicccedilotildees aos seus proacuteprios interesses

Nota-se enfim a importacircncia da hermenecircutica juriacutedica no processo de compreensatildeo do Direito como um todo o qual pro-duziraacute reflexos quando da sua aplicaccedilatildeo A superaccedilatildeo da crise de efetividade da Constituiccedilatildeo no acircmbito do Judiciaacuterio (e que haacute mui-to assola o Poder Legislativo e Executivo) em especial quanto ao tema das nulidades no processo penal estaacute inteiramente imbrica-da na retomada de uma legalidade que soacute se fundamenta por meio da constitucionalidade do respeito agrave Constituiccedilatildeo Legalidade esta que natildeo se confunde com o retorno a pensamentos positivistas mas de uma legalidade atraveacutes da qual obedecer agrave Constituiccedilatildeo simboliza um progresso consideraacutevel na defesa de direitos funda-mentais conferidos ao cidadatildeo em especial ao reacuteu

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CAacuteCERES E O DEacuteFICIT DE MORADIAS O CASO DA OCUPACcedilAtildeO DO BAIRRO EMPA

Evely Bocardi de Miranda Saldanha1

Richard Rodrigues da Silva2

RESUMO O presente trabalho analisa a ocupaccedilatildeo irregular ocorrida no bairro Jardim das Oliveiras conhecido popularmente como EMPA em CaacuteceresMT bem como verifica a situaccedilatildeo do acesso agrave moradia dos habitantes no que diz respeito agrave referida aacuterea Cabe destacar que em razatildeo do deacuteficit habitacional existente no municiacutepio a populaccedilatildeo de baixa renda se viu obrigada a ocupar irregularmente o local onde vive e sobrevive sem miacutenimas condiccedilotildees de saneamento infraestrutura baacutesica e qualquer planejamento urbano por parte do Poder Puacuteblico O municiacutepio de Caacuteceres atualmente tem uma populaccedilatildeo de 87942 habitantes segundo Censo do IBGE-2010 o qual estimou que em 2016 estaria com uma populaccedilatildeo de 90881 habitantes sendo que 8707 da populaccedilatildeo de Caacuteceres vivem na aacuterea urbana com incidecircncia de pobreza de 3902 (IBGE 2016) O Programa Minha Casa Minha Vida que atende ao municiacutepio foi criado pelo governo federal para fomentar a produccedilatildeo habitacional para populaccedilatildeo de baixa renda concentrando seus recursos nas accedilotildees de urbanizaccedilatildeo e desenvolvimento de assentamentos precaacuterios como mecanismo de reduccedilatildeo das desigualdades socioespaciais contudo natildeo consegue suprir a necessidade habitacional do municiacutepio

PALAVRAS-CHAVE Direito agrave moradia Deacuteficit habitacional Caacuteceres EMPA

ABSTRACT The present study analyzes the irregular occupation that occurres in the Jardim das Oliveiras neighborhood popularly

1 Profa Mestra em Direitos Humanos do Departamento de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail evelysaldanhagmailcom2 Acadecircmico do 10ordm Semestre do Curso de Direito de CaacuteceresMT da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT E-mail richardsilva1995hotmailcom

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known as EMPA in Caacuteceres MT as well as verify the situation of access to the dwelling of the inhabitants in what pertains to said area Was forced to occupy the place irregularly where it lives and survives without minimum sanitation conditions basic infrastructure and any urban planning by the Public Power The municipality of Caacuteceres currently has a population of 87942 inhabitants according to IBGE-2010 Census which estimated that in 2016 it would have a population of 90881 inhabitants 8707 of the population of Caacuteceres living in the urban area with incidence of poverty of 3902 (IBGE 2016) The My Home My Life Program that serves the municipality was created by the federal government to foster housing production for the low-income population concentrating its resources on urbanization and precarious settlement development as a mechanism to reduce socio-spatial inequalities Cannot meet the housing needs of the municipality

KEYWORDS Right to housing Housing deficit Caacuteceres EMPA

INTRODUCcedilAtildeO

A cidade de CaacuteceresMT assim como a maioria das cida-des brasileiras eacute marcada pela ocupaccedilatildeo espontacircnea ou irregular normalmente pela populaccedilatildeo mais pobre que vive em lugares mais perifeacutericos menos valorizados da cidade e sobrevive sem as miacutenimas condiccedilotildees de infraestrutura e saneamento baacutesico nas aacutereas marginais da cidade sem qualquer planejamento urbano

A proliferaccedilatildeo de processos informais de desenvolvimen-to urbano tem sido uma das principais caracteriacutesticas do processo de urbanizaccedilatildeo no Brasil ldquoAo longo das deacutecadas de crescimen-to urbano mas sobretudo nas uacuteltimas deacutecadas dezenas de mi-lhotildees de brasileiros natildeo tecircm tido acesso ao solo urbano e agrave moradia senatildeo atraveacutes de processos e mecanismos informais ndash e ilegaisrdquo (FERNANDES 2002 p 440)

As principais formas de habitaccedilatildeo produzidas diariamen-te nas cidades brasileiras satildeo loteamentos e conjunto habitacionais irregulares eou clandestinos favelas corticcedilos casa dos fundos ocupaccedilotildees de aacutereas puacuteblicas nas beiras de rios

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O crescimento desordenado das cidades e o processo de favelizaccedilatildeo tecircm avivado grande atenccedilatildeo e discussatildeo acerca dos instrumentos de proteccedilatildeo e defesa do bem-estar dos seus habi-tantes uma vez que a ocupaccedilatildeo desenfreada daacute-se normalmente em aacutereas de risco aacutereas de preservaccedilatildeo ambiental lugares menos valorizados e mais afastados da cidade sem infraestrutura neces-saacuteria como saneamento baacutesico escolas assistecircncia agrave sauacutede trans-porte e lazer para uma vida digna

Normalmente as aacutereas ocupadas irregularmente transfor-maram-se em bairros nos quais predomina a falta de higiene colo-cando os seus moradores sujeitos agraves doenccedilas degradaccedilatildeo social e moradia indigna sem infraestrutura no meio da poeira e da lama

Cabe destacar que a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 traz em seu bojo um marco da ordem urbaniacutestica e prevecirc a poliacutetica de desenvolvimento urbano que ldquotem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantesrdquo (BRASIL on line) conforme dispotildee o seu artigo 182

Em 2001 foi aprovado o Estatuto da Cidade (Lei nordm 102572001) que regulamenta a poliacutetica urbana no Brasil (artigos 182 e 183 da Constituiccedilatildeo Federal) e apresenta-se ldquocomo suporte juriacutedico para a realizaccedilatildeo do planejamento urbano e para a accedilatildeo dos governos municipais traccedilando as diretrizes necessaacuterias para o planejamento e para a conduccedilatildeo do processo de gestatildeo das cida-desrdquo (DIAS 2012 p 43) garantindo qualidade de vida aos habi-tantes e sustentabilidade agrave existecircncia da cidade

O papel do Poder Puacuteblico eacute de grande importacircncia por as-sumir a responsabilidade de criar acesso agrave moradia da populaccedilatildeo de baixa renda e natildeo permitir a criaccedilatildeo de novos loteamentos ir-regulares os quais natildeo tecircm os padrotildees miacutenimos exigidos por lei com a implantaccedilatildeo de serviccedilos baacutesicos e toda infraestrutura como ruas e sistema de drenagem aacutegua encanada serviccedilos de esgoto e coleta de lixo creches e escolas hospitais e etc

Desse modo eacute necessaacuterio que o Poder Puacuteblico elabore poliacuteticas de desenvolvimento urbano que facilitem o acesso agrave mo-

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radia digna e adequada num meio ambiente urbano equilibrado e preservado para as presentes e futuras geraccedilotildees garantindo o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade o bem-estar e a sadia qualidade de vida de seus habitantes

Contudo em que pesem as legislaccedilotildees que garantem o acesso agrave moradia digna em Caacuteceres nos anos 90 ocorreu a ocupa-ccedilatildeo irregular da aacuterea da Empresa Mato-grossense de Pesquisa As-sistecircncia e Extensatildeo Rural - SA (EMPAER-MT)3 instituiacuteda como bairro Jardim das Oliveiras e conhecido popularmente por EMPA pela populaccedilatildeo de baixa renda cacerense que se deu em razatildeo do deacuteficit de moradias existentes no municiacutepio ou seja pela falta de acesso agrave moradia Com a invasatildeo do local houve a construccedilatildeo de moradias precaacuterias pelos ocupantes da aacuterea

Assim o nosso objetivo neste trabalho eacute analisar a ocu-paccedilatildeo irregular ocorrida no bairro Jardim das Oliveiras antigo EMPA no municiacutepio de CaacuteceresMT bem como verificar a situa-ccedilatildeo do direito e acesso agrave moradia dos habitantes

O direito agrave moradia como direitos humanos

O direito agrave moradia eacute um dos nuacutecleos que permite o alcan-ce da dignidade da pessoa humana razatildeo pela qual foi inserido no rol dos direitos humanos desde a proclamaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos em 1948 inaugurando uma nova dimensatildeo de direitos sociais em prol de uma vida digna essenciais ao pleno reconhecimento de sua importacircncia como direito baacutesico e essencial agrave vida humana

Em 1966 foi aprovado o principal documento de proteccedilatildeo aos direitos sociais no acircmbito das Naccedilotildees Unidas o Pacto Interna-cional de Direitos Econocircmicos Sociais e Culturais ldquoquando pela primeira vez o termo moradia surgiurdquo (SOUZA 2013 p 56)

O Pacto Internacional de Direitos Econocircmicos Sociais e

3 Empresa Mato-Grossense de Pesquisa Assistecircncia e Extensatildeo Rural - SA eacute uma socie-dade de economia mista vinculada agrave Secretaria de Agricultura e Assuntos Fundiaacuterios do Estado de Mato Grosso dotada de personalidade juriacutedica de direito privado com patrimocirc-nio proacuteprio e autonomia administrativa e financeira estabelecida em Cuiabaacute-MT

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Culturais de 1966 em seu artigo 11 prevecirc que ldquoos Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um niacutevel de vida adequado para si proacuteprio e para sua famiacutelia inclusive agrave alimentaccedilatildeo vestimenta e moradia adequadas assim como uma melhoria contiacutenua de suas condiccedilotildees de vidardquo (ONU 1966)

Jaacute em 1976 foi realizada em Vancouver no Canadaacute a pri-meira Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Assentamentos Urba-nos que adotou a Declaraccedilatildeo sobre Assentamentos Humanos de Vancouver na qual o olhar sobre a habitaccedilatildeo e a moradia foi feito na perspectiva dos assentamentos humanos (human settlements)

As razotildees que motivaram a realizaccedilatildeo da Conferecircncia es-tatildeo expressas na Declaraccedilatildeo de Vancouver sobre os Assentamen-tos Humanos que apresenta os princiacutepios gerais e propostas para accedilotildees efetivas no sentido de melhorar a qualidade de vida dos in-diviacuteduos nos assentamentos humanos e ainda refere-se agraves peacutessi-mas condiccedilotildees de vida e agraves dificuldades em satisfazer as necessi-dades baacutesicas dos indiviacuteduos como emprego moradia serviccedilos de sauacutede educaccedilatildeo e recreaccedilatildeo e as aspiraccedilotildees condizentes com os princiacutepios da dignidade humana (GOMES 2005)

A Declaraccedilatildeo de Vancouver detalha os assentamentos hu-manos e destaca o problema para melhorar a qualidade de vida dos indiviacuteduos e traz a moradia como elemento indispensaacutevel do programa de accedilatildeo e poliacutetica dos Estados para uma vida digna de seus indiviacuteduos

Merece destaque a Agenda 21 adotada na Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento rea-lizada no Rio de Janeiro em 1992 que em seu capiacutetulo VII item 6 prevecirc o direito de ldquoacesso a uma habitaccedilatildeo sadia e segura eacute es-sencial para o bem-estar econocircmico social psicoloacutegico e fiacutesico da pessoa humana e deve ser parte fundamental das accedilotildees de acircmbito nacional e internacionalrdquo (SAULE JUNIOR 1999 p 82)

Em 1996 um importante instrumento internacional so-bre o direito agrave moradia foi inaugurado e adotado na Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Assentamentos Humanos ndash Habitat II realizada em Istambul a Agenda Habitat ldquoque teve como temas

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globais a Adequada Habitaccedilatildeo para Todos e o Desenvolvimento de Assentamentos Humanos Sustentaacuteveis em um Mundo em Ur-banizaccedilatildeordquo (Idem)

A Agenda Habitat estabelece que o direito agrave moradia com-preenda a habitaccedilatildeo adequada sadia acessiacutevel e disponiacutevel segu-ra protegida com a inclusatildeo de serviccedilos baacutesicos como aacutegua ener-gia saneamento baacutesico coleta de lixo e etc baseada no bem-estar e melhor qualidade de vida para seus habitantes

Assim o direito agrave moradia foi expressamente reconheci-do como um direito humano incluiacutedo no rol dos direitos sociais e que tem por finalidade garantir um niacutevel de vida adequado ao ser humano e sua famiacutelia assim como uma melhoria contiacutenua das condiccedilotildees de vida

O Brasil reconheceu a importacircncia do direito de acesso agrave moradia quando inseriu o direito agrave moradia na Constituiccedilatildeo Fe-deral com a Emenda Constitucional nordm 262000 como direito so-cial fundamental E ainda o Estatuto da Cidade ndash Lei Federal nordm 102572001 ndash que prevecirc o direito agrave moradia como sendo um dos objetivos da poliacutetica urbana

Do mesmo modo no acircmbito do municiacutepio de CaacuteceresMT as diretrizes e os objetivos previstos na Constituiccedilatildeo Federal e no Estatuto da Cidade foram contemplados no Plano Diretor do Municiacutepio ndash Lei Complementar Municipal nordm 902010 que em seu art 81 inciso VI garante ldquoo acesso agrave moradia digna com a amplia-ccedilatildeo da oferta de habitaccedilatildeo para as faixas de renda meacutedia e baixardquo (CAacuteCERES Lei complementar nordm 90 2010)

No entanto diante da realidade brasileira e cacerense haacute um descompasso uma vez que eacute assegurado o direito agrave moradia como sendo indispensaacutevel agrave vida humana poreacutem a populaccedilatildeo estaacute longe de gozaacute-lo e de ter acesso agrave moradia digna o que vere-mos a seguir

O deacuteficit de moradias e a realidade cacerense

O Brasil enfrenta um dos seus maiores problemas sociais

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o deacuteficit habitacional que hoje estaacute estimado em 6 milhotildees de mo-radias (CBIC 2014) Caacuteceres assim como os demais municiacutepios brasileiros tambeacutem enfrenta seacuterios problemas na aacuterea de habita-ccedilatildeo Em 2011 havia um deacuteficit habitacional em Caacuteceres que chega-va a 8 mil casas (CAacuteCERES 2014)

O municiacutepio de Caacuteceres atualmente tem uma populaccedilatildeo de 87942 habitantes segundo Censo do IBGE-2010 o qual esti-mou que em 2016 estaria com uma populaccedilatildeo de 90881 habitantes sendo que 8707 da populaccedilatildeo de Caacuteceres vivem na aacuterea urbana com incidecircncia de pobreza de 3902 (IBGE estimativa de popu-laccedilatildeo 2016)

O Programa Minha Casa Minha Vida do governo federal instituiacutedo haacute aproximadamente 7 anos tem ofertado aos habitan-tes cacerenses com renda ateacute R$ 160000 o acesso agrave moradia no entanto essa oferta natildeo tem sido suficiente para suprir o deacuteficit habitacional no municiacutepio e segundo o secretaacuterio de Accedilatildeo Social Claudio Henrique Donatoni em 2016 ldquoCaacuteceres ainda possui um deacuteficit habitacional para famiacutelias de baixa renda de aproximada-mente 7 mil moradiasrdquo (TEIXEIRA 2016)

A poliacutetica habitacional no Brasil enfrenta seacuterios proble-mas desde a extinccedilatildeo do Banco Nacional de Habitaccedilatildeo (BNH) em 1986 em razatildeo da descontinuidade do enfrentamento do deacuteficit de moradia pela perda de capacidade de formulaccedilatildeo de poliacuteticas em niacutevel federal e do encolhimento de recursos destinados agraves poliacuteti-cas urbanas A partir de 1988 com a redemocratizaccedilatildeo promovida pela Constituiccedilatildeo Federal o setor habitacional passou a depender da iniciativa municipal (CARDOSO et al 2011)

Segundo Cardoso et al (Idem) ldquoentre 1986 e 2003 a poliacute-tica habitacional em niacutevel federal mostrou fragilidade institucional e descontinuidade administrativa com reduzido grau de planeja-mento e baixa integraccedilatildeo agraves outras poliacuteticas urbanasrdquo

Em Caacuteceres entre os anos 1986 e 2003 natildeo se tem notiacutecias de programas habitacionais com ofertas de moradia agrave populaccedilatildeo de baixa renda tanto que na deacutecada de 90 ocorreram a invasatildeo e a ocupaccedilatildeo da aacuterea da Empresa Mato-grossense de Pesquisa Assis-

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tecircncia e Extensatildeo Rural - SA - EMPAER-MTO bairro Jardim das Oliveiras conhecido popularmente

como EMPA estaacute localizado agrave margem esquerda do Rio Paraguai e nasceu a partir de uma ocupaccedilatildeo irregular em terras doadas pelo Municiacutepio de Caacuteceres-MT agrave Empresa Mato-grossense de Pesquisa Assistecircncia e Extensatildeo Rural - SA - EMPAER-MT mediante escri-tura puacuteblica de doaccedilatildeo de uma aacuterea de 1301873 ha sob matriacutecula nordm 42654 do 1ordm Ofiacutecio - Serviccedilos Notariais e Registrais da Comarca de CaacuteceresMT Todavia apoacutes alguns anos de funcionamento a empresa deixou de realizar suas pesquisas abandonando o local e as instalaccedilotildees o que favoreceu a invasatildeo da aacuterea em razatildeo da falta de oferta de acesso agrave moradia no municiacutepio O bairro EMPA estaacute localizado na periferia do municiacutepio de Caacuteceres e a sua ocupaccedilatildeo inicial foi realizada pela populaccedilatildeo de baixa renda por se tratar de aacuterea abandonada por empresa do Estado situada longe da centra-lidade da cidade

Cabe destacar que somente a partir de 2003 no Brasil ini-ciou ldquoum movimento mais sistemaacutetico para a construccedilatildeo de uma poliacutetica habitacional mais estaacutevelrdquo (CARDOSO et al 2011) Foi criada a Secretaria Nacional de Habitaccedilatildeo no acircmbito do Minis-teacuterio das Cidades com o objetivo de dar sequecircncia ao projeto de moradia com o propoacutesito de reforccedilar o papel estrateacutegico das admi-nistraccedilotildees locais (municipais) articular institucional e financeira-mente com outros niacuteveis de governo a partir do Sistema Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social (Ibidem)

Para se integrar ao novo Sistema Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social os estados e municiacutepios deveriam ldquoaderir agrave es-trutura de criaccedilatildeo de fundos conselhos e planos locais de Habita-ccedilatildeo de Interesse Social (HIS) de forma a garantir sustentabilidade racionalidade e sobretudo a participaccedilatildeo democraacutetica na defini-ccedilatildeo e implementaccedilatildeo dos programas e projetosrdquo (CARDOSO et al 2011 p 2) E a partir da criaccedilatildeo do Fundo Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social ndash FNHIS a possibilidade de repasse de recursos aos municiacutepios e estados para implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo das po-liacuteticas habitacionais

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Segundo Cardoso et al (2011 p 2) ldquoentre 2006 e 2009 fo-ram alocados no FNHIS recursos da ordem de 44 bilhotildees de reais beneficiando mais de 4400 projetosrdquo para investimento habitacio-nal No ano de 2007 foi lanccedilado pelo governo federal o Plano de Aceleraccedilatildeo do Crescimento - PAC com o objetivo de promover o crescimento econocircmico e investimentos em infraestrutura no qual houve previsatildeo de investimentos em habitaccedilatildeo e saneamento ur-bano

No ano de 2008 mesmo com a crise mundial o governo brasileiro sustentou os investimentos puacuteblicos na aacuterea de infraes-trutura com destaque na aacuterea de habitaccedilatildeo em razatildeo do PAC E em marccedilo de 2009 anunciou o Programa Minha Casa Minha Vida com o objetivo de ampliaccedilatildeo do mercado habitacional para aten-dimento familiar com renda de ateacute 10 salaacuterios miacutenimos no qual estabeleceu um patamar de subsiacutedio direto e proporcional agrave renda das famiacutelias (CARDOSO et al 2011)

Assim o Programa Minha Casa Minha Vida foi criado para fomentar a produccedilatildeo habitacional no Brasil para populaccedilatildeo de baixa renda com auxiacutelio e participaccedilatildeo do setor privado con-centrando seus recursos nas accedilotildees de urbanizaccedilatildeo e desenvolvi-mento de assentamentos precaacuterios por orientaccedilatildeo do Ministeacuterio das Cidades como mecanismo de reduccedilatildeo das desigualdades so-cioespaciais

Em Caacuteceres a partir de 2009 iniciou-se uma poliacutetica habi-tacional com oferta de moradia agrave populaccedilatildeo de baixa renda com a implementaccedilatildeo do Programa Minha Casa Minha Vida no entanto a demanda por moradia estaacute longe de ser suprida uma vez que ainda haacute um deacuteficit habitacional de 7 mil moradias (TEIXEIRA 2016)

Vale ressaltar que a moradia compreendida aleacutem de mero teto deve ser digna e abarcar a integraccedilatildeo com a cidade em seu en-torno com disponibilidade de infraestrutura urbana e acesso aos serviccedilos puacuteblicos como oportunidades de emprego profissionali-zaccedilatildeoeducaccedilatildeo seguranccedila transporte acesso agrave justiccedila a existecircn-cia de aacutereas de lazer e outros que se caracterizam como inclusatildeo

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ao direito agrave cidade e ao exerciacutecio de cidadaniaA partir do estudo realizado observou-se que no Bairro

EMPA natildeo uma haacute integraccedilatildeo do bairro com a cidade os mora-dores satildeo privados de diversos serviccedilos puacuteblicos e infraestrutura baacutesica como coleta de lixo aacutegua tratada ldquono bairro existe apenas uma escola municipal que fornece o ensino fundamental sendo assim apoacutes terminar o ensino fundamental o estudante tem que procurar outra escola que fica distante para terminar o ensino meacute-diordquo (COSTA et al 2014) e natildeo houve uma preocupaccedilatildeo do Poder Puacuteblico em realizar a regularizaccedilatildeo fundiaacuteria da aacuterea

Segundo Coy et al (1994 p 91) em Caacuteceres nos depara-mos com

Um desenvolvimento completamente desordenado no contexto urbano causado pelo processo migratoacute-rio e pela expulsatildeo do homem do campo para a ci-dade E assim grandes aacutereas urbanizadas surgiram de invasotildees e de grilagem e mais de 50 dos lotes urbanos particulares em Caacuteceres natildeo tem documen-tos nenhum tiacutetulo somente posse

De acordo com Dan (2010 p 94) ldquoa urbanizaccedilatildeo reflete determinadas relaccedilotildees sociais assim como as contradiccedilotildees da eco-nomia de mercado e tambeacutem as desigualdades sociais marcadas pela estratificaccedilatildeo e pela produccedilatildeo setorizada do espaccedilo urbanordquo

Verifica-se que o espaccedilo urbano cacerense eacute fragmentado e explorado com contradiccedilotildees entre abundacircncia e escassez ricos e pobres centralidade e periferia havendo portanto uma enorme desigualdade social e falta de acesso agrave moradia digna

Para Santin e Mattia (2007 p 2)

A ocupaccedilatildeo veloz e desordenada das cidades gerou entre outros problemas como a deterioraccedilatildeo do am-biente urbano desorganizaccedilatildeo social falta de habi-taccedilatildeo desemprego loteamentos clandestinos sem saneamento baacutesico muitos em aacutereas de preservaccedilatildeo ambiental construccedilotildees em desacordo com as nor-mas municipais atividades comerciais invadindo

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aacutereas residenciais sem respeito agraves regras de zonea-mento traacutefego intenso falta de ruas pavimentadas inviabilizando o acesso da poliacutecia de ambulacircncias da coleta de lixo ausecircncia de iluminaccedilatildeo puacuteblica Enfim uma cadeia de problemas que se constituem em consequecircncia da urbanizaccedilatildeo desordenada

Deste modo eacute necessaacuterio que o Poder Puacuteblico crie poliacuteti-cas puacuteblicas que estabeleccedilam nos dizeres de Milton Santos (2007 p 41) ldquoos alicerces de um espaccedilo verdadeiramente humano de um espaccedilo que possa unir os homens para e por seu trabalho mas natildeo para em seguida dividi-los em classes em exploradores e ex-ploradosrdquo

Emergem assim a necessidade de integraccedilatildeo e a conver-gecircncia das poliacuteticas puacuteblicas e planejamento urbano a partir de atividades e responsabilidades sociais voltadas agrave moradia e agrave cons-truccedilatildeo da qualidade de vida urbana nas periferias como eacute o caso do EMPA para a promoccedilatildeo da sustentabilidade do espaccedilo urbano e na construccedilatildeo de uma cidade mais justa

CONCLUSAtildeO

O Poder Puacuteblico deve buscar a implementaccedilatildeo das dimen-sotildees fundamentais propostas pelo Estatuto da Cidade para a con-solidaccedilatildeo da ordem constitucional de desenvolvimento urbano na elaboraccedilatildeo de uma poliacutetica urbana que ordene e discipline a ocu-paccedilatildeo do espaccedilo a partir de uma gestatildeo democraacutetica e de acesso agrave moradia contribuindo para a qualidade de vida dos habitantes da cidade

Eacute preciso investimento puacuteblico no acesso agrave moradia digna na regularizaccedilatildeo fundiaacuteria urbana na infraestrutura entre outros para evitar as mazelas sociais e conflitos relacionados ao planeja-mento gestatildeo propriedade apropriaccedilatildeo e uso do solo nas aacutereas urbanas como ocorreu no caso do bairro EMPA

Deste modo o desafio maior para a soluccedilatildeo dos problemas urbanos enfrentados em Caacuteceres natildeo se refere somente agrave legisla-

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ccedilatildeo mas agrave formulaccedilatildeo de estrateacutegias e elaboraccedilatildeo de poliacuteticas puacute-blicas mais eficazes que garantam o acesso de todos ao mercado habitacional constituindo planos e programas habitacionais que atendam agrave populaccedilatildeo de baixa renda que natildeo tem acesso agrave mora-dia e vive em condiccedilotildees precaacuterias de habitabilidade

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TEIXEIRA Joseacute Carlos Mais de 3 mil jaacute fizeram inscriccedilotildees pra casas populares em Caacuteceres In Jornal Oeste publicado em 08012016 Disponiacutevel em lt httpwwwjornaloestecombrnoticiasexibiraspid=36595ampnoticia=mais_de_3_mil_ja_fizeram_inscricoes_para_casas_populares_em_caceresgt Acesso em 19 abr 2016

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PROVA NO HOMICIacuteDIO SEM CADAacuteVER

Gabrielle Vidrago de Souza Machado1

Solange Teresinha Carvalho Pissolato2

RESUMO Este estudo objetiva demonstrar a possibilidade do pronunciamento e condenaccedilatildeo do agente pela praacutetica do crime de homiciacutedio sua materialidade e quais provas poderatildeo ser utilizadas no decorrer do processo mesmo tendo a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo real do fato e abordar a importacircncia das provas no decorrer do processo penal pois satildeo elas que levaratildeo agrave descoberta da verdade real Foi realizada pesquisa bibliograacutefica leitura da legislaccedilatildeo de doutrinas artigos e jurisprudecircncias Destacou-se ainda o estudo de dois julgados de crime de homiciacutedio sem que o cadaacutever fosse encontrado O que estaacute em questatildeo eacute o modo de provar que o crime realmente aconteceu pois quando natildeo haacute o corpo da viacutetima que no caso do homiciacutedio eacute a materialidade do crime impossibilitando a realizaccedilatildeo do exame de corpo de delito direto surge entatildeo a possibilidade da utilizaccedilatildeo de outros meios de prova ou seja a realizaccedilatildeo do exame de corpo de delito indireto que eacute obtido atraveacutes de testemunhas somadas aos vestiacutegios deixados pelo crime Conclui-se que a inexistecircncia do cadaacutever natildeo poderaacute deixar o reacuteu impune podendo ele ser denunciado pronunciado e posteriormente condenado pela praacutetica do crime

PALAVRAS-CHAVE Provas Crime material Exame de corpo de delito

ABSTRACT This study aimes to demonstrate the possibility of pronouncing and condemning the perpetrator for the homicide crime its materiality and which evidence may be used during the process even though the absence of the corpse for actual evidence of the fact and addresse the importance of evidence during the course of criminal proceedings since they are the ones that will lead

1 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Diamantino-MT2 Professora Mestranda do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Diamantino-MT

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to the discovery of the real truth A bibliographical research was carried out the reading of doctrines articles and jurisprudence It was also highlighted the study of two felony murder trials without the corpse being found What is at issue is the way of proving that the crime really happened because when there is not the body of the victim that in the case of the murder is the materiality of the crime making it impossible to carry out the examination of a direct crime body then the possibility of The use of other means of proof that is the conduct of the examination of an indirect offense that is obtained through witnesses added to the traces left by the crime It is concluded that the non-existence of the corpse cannot leave the defendant unpunished being able to be denounced pronounced and later condemned by the practice of the crime

KEYWORDS Evidence Crime material Examination of corps of crime

INTRODUCcedilAtildeO

A preocupaccedilatildeo deste trabalho centrou-se na possibilidade de deixar algueacutem impune de responsabilizaccedilatildeo no crime de homi-ciacutedio diante da ausecircncia do corpo da viacutetima para comprovar a ma-terialidade do crime Nesse cenaacuterio surgem as chamadas provas do crime A prova material do homiciacutedio se mostra relevante para que haja a condenaccedilatildeo do agente e ainda para comprovaccedilatildeo do de-lito Quando nos referimos ao crime de homiciacutedio haacute uma grande repercussatildeo na sociedade visto que eacute o delito que desperta maior interesse na populaccedilatildeo pois se trata do bem mais precioso que o homem possui a vida

As discussotildees surgem devido agrave ausecircncia do cadaacutever pois o crime de homiciacutedio se consubstancia no exame de corpo de delito direto e por consequecircncia no respectivo laudo que o atesta

O presente artigo tem por escopo analisar com breves consideraccedilotildees tal situaccedilatildeo visto que de um lado temos os prin-ciacutepios do Estado Democraacutetico de Direito que satildeo abalados diante da incerteza de uma condenaccedilatildeo por outro lado surge o receio de

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deixar impune o agente que comete um crime tatildeo grave No caso em questatildeo questiona-se se eacute possiacutevel juridicamente processar o reacuteu sem o cadaacutever pois o delito qual seja o homiciacutedio exige dois aspectos para a denuacutencia indiacutecio de autoria e a materialidade A materialidade seria no caso o cadaacutever mas eis que surge a duacutevida como condenar algueacutem por homiciacutedio sem o corpo da viacutetima A pergunta que se faz eacute seria possiacutevel ficar um acusado impune pela inexistecircncia de cadaacutever em um crime de homiciacutedio

Importante destacar que muitas pessoas leigas na aacuterea juriacutedica natildeo concordam com o fato de um cidadatildeo ser condena-do por um crime em que natildeo haacute prova concreta da sua existecircncia Poreacutem a importacircncia do presente estudo eacute justamente demons-trar que se natildeo houvesse a possibilidade de condenaccedilatildeo em nosso ordenamento juriacutedico em muito facilitaria para o agente planejar e praticar o delito de forma que o corpo natildeo aparecesse para com-provaccedilatildeo do crime Contudo a robustez das provas pode levar o culpado agrave condenaccedilatildeo

O estudo teve como aporte a realizaccedilatildeo de uma pesquisa bibliograacutefica leitura de doutrinas artigos e jurisprudecircncias Des-tacou-se ainda o estudo de dois julgados brasileiros de crime de homiciacutedio sem que o cadaacutever fosse encontrado objetivando assim descrever a importacircncia das provas no decorrer do processo penal pois satildeo elas os meios de se descobrir a verdade real do crime O que eacute relevante destacar eacute o modo de provar que o crime realmente ocorreu independentemente da existecircncia do cadaacutever oportuni-zando assim a condenaccedilatildeo do agente delituoso

DA PROVA NO PROCESSO PENAL

Conceito

Processualmente falando a prova eacute o meio eficaz para se chegar agrave verdade sendo tambeacutem a forma de o juiz formar sua con-vicccedilatildeo a respeito da existecircncia ou inexistecircncia de um fato para que se possa assim decidir e prolatar a sentenccedila mais justa possiacutevel

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Nucci (2007 p 335) menciona sobre o tema

O termo prova origina-se do latim ndash probatio ndash que significa ensaio verificaccedilatildeo inspeccedilatildeo exame argu-mento razatildeo aprovaccedilatildeo ou confirmaccedilatildeo Dele deri-va o verbo provar ndash probare ndash significando ensaiar verificar examinar reconhecer por experiecircncia aprovar estar satisfeito com algo persuadir algueacutem a alguma coisa ou demonstrar

Assim o termo ldquoprovardquo trata de todos os elementos capa-zes de demonstrar a existecircncia ou natildeo de determinado fato Ressal-ta-se ainda seu valor por ser o meio de formaccedilatildeo da convicccedilatildeo do juiz que iraacute utilizar todas as provas encontradas como base para fundamentaccedilatildeo da sentenccedila Em consonacircncia com a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 todas as decisotildees judiciais devem ser fundamen-tadas conforme a disposiccedilatildeo do artigo 93 inciso IX

Objeto da prova

A finalidade da prova no direito processual como jaacute ex-posto acima eacute a formaccedilatildeo da convicccedilatildeo do juiz Conceitua-se como objeto da prova todos os fatos acontecimentos que devem ser re-velados no processo a fim de que o juiz possa utilizaacute-los como ins-trumento de autenticidade para resolver o litiacutegio e atribuir valor a cada fato

Ocircnus da prova

A regra do Coacutedigo de Processo Penal (CPP) eacute a de que o ocircnus da prova incumbe a quem o alega O Art 156 desse Coacutedigo assim dispotildee ldquoA prova da alegaccedilatildeo incumbiraacute a quem a fizer mas o Juiz poderaacute no curso da instruccedilatildeo ou antes de proferir sentenccedila determinar de ofiacutecio diligecircncias para dirimir duacutevidas sobre o pon-to relevanterdquo

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Sujeitos da prova

No que se refere ao sujeito a prova poderaacute ser real (coisa) ou pessoal Diz que se refere ao pessoal quando a prova resultar da vontade racional do indiviacuteduo Nesse caso necessitaraacute de uma declaraccedilatildeo da pessoa com o propoacutesito de estampar a verdadeira realidade dos fatos A prova real equivale agrave atestaccedilatildeo que adveacutem da proacutepria coisa constitutiva da prova como ferimento o projeacutetil baliacutestico (LIMA 2013)

Do valor da prova

No tocante aos efeitos e valor da prova esta poderaacute ser plena (quando se tratar daquelas provas sem sombra de duacutevida que o magistrado ao deparar com tais provas teraacute certeza de sua veracidade) ou natildeo plena e tambeacutem chamada de indiciaacuteria (quan-do o juiz ao apreciaacute-las verifica que tem a possibilidade de ser uma prova veriacutedica mas natildeo haacute uma certeza) Para Taacutevora (2013 p 348) ldquoeacute o grau de certeza gerado pela apreciaccedilatildeo da provardquo

a) Plena - Prova convincente e verossiacutemilb) Indiciaacuteria ou natildeo plena ndash Natildeo haacute certeza sobre o fato e

satildeo tratadas como indiacutecios Podemos ver que haacute uma ligaccedilatildeo desses efeitos da prova

com os dois princiacutepios o princiacutepio do in dubio pro reo e o in duacutebio pro societate

Quando por meio de uma prova o juiz natildeo conseguir ob-ter um juiacutezo real sobre o fato ser veriacutedico ou natildeo prevalecendo a incerteza ele deveraacute absolver o reacuteu e nesse caso surge o princiacutepio do in duacutebio pro reo Todavia se o juiz ao averiguar as provas tiver um juiacutezo de esperanccedila e a hipoacutetese dela ser veriacutedica ele poderaacute usar o princiacutepio do in duacutebio pro societate podendo por exemplo decretar a prisatildeo preventiva de algueacutem para proteger os interesses da sociedade em razatildeo da hipoacutetese de o fato ser verdadeiro

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Sistema de valoraccedilatildeo das provas

A apreciaccedilatildeo das provas foi evoluindo conforme o costu-me e o regime poliacutetico de cada povo Importante salientar que esse sistema se formou e se amoldou conforme os anos (DINAMAR-CO 2001)

Nucci (2015 p 345) esclarece sobre os trecircs sistemasa) livre convicccedilatildeo que eacute o meacutetodo concernente agrave va-loraccedilatildeo livre ou agrave intima convicccedilatildeo do magistrado natildeo haacute necessidade de motivaccedilatildeo para as decisotildees sistema adotado no Tribunal do Juacuteri b) prova legal cujo meacutetodo eacute ligado agrave valoraccedilatildeo taxada ou tarifa-da da prova c) persuasatildeo racional que eacute o meacutetodo misto tambeacutem chamado de convencimento racional livre motivado apreciaccedilatildeo fundamentada ou prova fundamentada

Trata-se do sistema adotado majoritariamente pelo pro-cesso penal brasileiro com fundamento na Constituiccedilatildeo Federal (art 93 inciso IX)

Princiacutepios que norteiam a prova

Dispotildee Nucci (2007 p76) nesse sentido ldquoPrinciacutepio juriacute-dico quer dizer um postulado que se irradia por todo o sistema de normas fornecendo um padratildeo de interpretaccedilatildeo integraccedilatildeo conhecimento e aplicaccedilatildeo do direito positivo estabelecendo uma meta maior a seguirrdquo Dentre os princiacutepios estatildeo Iniciativa das Partes Contraditoacuterio e Ampla Defesa Juiz Natural Verdade Real Publicidade Presunccedilatildeo de Inocecircncia Duplo Grau de Jurisdiccedilatildeo

Lima (2013) faz menccedilatildeo ao princiacutepio da proporcionalida-de da comunhatildeo da prova da autorresponsabilidade das partes da oralidade e liberdade probatoacuteria

OS MEIOS DE PROVA

Os meios de prova satildeo todas as provas que podem ser em-

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pregadas dentro do processo excetuando-se as natildeo permitidas por lei Logo a prova iliacutecita natildeo pode ingressar nos autos do processo A sanccedilatildeo prevista na Constituiccedilatildeo para a prova reconhecida iliacutecita eacute a sua inadmissibilidade devendo ser desentranhada dos autos (LIMA 2013)

Taacutevora (2013 p 349) descreve que ldquoOs meios de prova satildeo os recursos de percepccedilatildeo da realidade e formaccedilatildeo do convenci-mento Eacute tudo aquilo que pode ser utilizado direta ou indireta-mente para demonstrar o que se alega no processordquo

As provas que evidenciam o fato arrolado no Coacutedigo de Processo Penal natildeo satildeo taxativas e sim exemplificativas se fossem taxativas poderiam conter o culpado de trazer ao processo con-cretas provas que teriam um valor relevante em seu julgamento ademais poderia prejudicar justamente os princiacutepios da verdade real o princiacutepio do contraditoacuterio ampla defesa e o princiacutepio da liberdade das provas

Deste modo esclarece Mirabete (2006 p 252)

Como no processo penal brasileiro vige o princiacutepio da verdade real natildeo haacute limitaccedilatildeo dos meios de pro-va A busca da verdade material ou real que preside a atividade probatoacuteria do juiz exige que os requi-sitos da prova em sentido objetivo se reduzam ao miacutenimo de modo que as partes possam utilizar-se dos meios de prova com ampla liberdade Visando o processo penal o interesse puacuteblico ou social de re-pressatildeo ao crime qualquer limitaccedilatildeo agrave prova preju-dica a obtenccedilatildeo da verdade real e portanto a justa aplicaccedilatildeo da lei

Costuma-se relatar que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto aos meios de prova quando se pretende alcanccedilar a verdade real visto que a investigaccedilatildeo tem a necessidade de ser a mais vasta possiacutevel visan-do como propoacutesito principal conseguir a veracidade do fato da autoria e das circunstacircncias do crime Contudo a liberdade proba-toacuteria natildeo eacute absoluta uma vez que vamos nos deparar com restri-ccedilotildees prescritas pela lei para determinados casos

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Para que ocorra a condenaccedilatildeo eacute necessaacuterio ter a certeza quanto agrave materialidade do crime e sua autoria Desta forma o ma-gistrado busca saber o que realmente ocorreu de que forma ocor-reu quem incorreu para a infraccedilatildeo e todas as suas circunstacircncias Vigora assim no processo penal o princiacutepio da verdade real

Defende Tourinho Filho (2011 p 62)

Melhor seria falar de ldquoverdade processualrdquo ou ldquover-dade forenserdquo ateacute porque por mais que o Juiz pro-cure fazer a reconstruccedilatildeo histoacuterica do fato objeto do processo muitas e muitas vezes o material de que ele se vale poderaacute conduzi-lo a uma ldquofalsa verdade realrdquo

Em suma o ldquoprinciacutepio da verdade real significa pois que o magistrado deve buscar provas tanto quanto as partes natildeo se contentando com o que lhe eacute apresentado simplesmenterdquo (NUC-CI 2008 p 105)

Espeacutecies de provas liacutecitas

Possuiacutemos em nosso ordenamento juriacutedico as provas que natildeo contrariam o que a lei estabelece e nem mesmo os bons cos-tumes Abaixo veremos as provas que poderatildeo ser produzidas e posteriormente aceitas

Da declaraccedilatildeo do ofendido

Ofendido eacute o sujeito passivo do crime o titular do direito ofendido Somente participaraacute e teraacute o direito de depor no proces-so penal se for pessoa fiacutesica

O artigo 201 do Coacutedigo de Processo Penal preceitua ldquoSem-pre que possiacutevel o ofendido seraacute qualificado e perguntado sobre as circunstacircncias da infraccedilatildeo quem seja ou presuma ser o seu au-tor as provas que possa indicar tomando-se por termo as suas declaraccedilotildeesrdquo

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Das testemunhas

A prova testemunhal tem sua previsatildeo expressa no artigo 202 do Coacutedigo de Processo Penal

Segundo o ilustre doutrinador Norberto Avena (2011 p 319) ldquo[] Pode testemunhar em juiacutezo qualquer indiviacuteduo que tenha condiccedilotildees de perceber os acontecimentos ao seu redor e narrar o resultado destas suas percepccedilotildees independente de sua integridade mental idade e condiccedilotildees fiacutesicasrdquo

Como regra contida no artigo 342 do CP e 206 do CPP as pessoas tecircm o dever de testemunhar Quando a testemunha for intimada e natildeo comparecer sem motivo justificaacutevel o artigo 218 do CPP autoriza a sua conduccedilatildeo de forma coercitiva conforme deter-minaccedilatildeo do juiz e se sujeita a um processo-crime por desobediecircn-cia

O Artigo 206 do aludido Coacutedigo de Processo Penal precei-tua as pessoas que estatildeo dispensadas de depor tais como os pa-rentes mais proacuteximos como ascendente ou descendente o afim em linha reta o cocircnjuge ainda que desquitado o irmatildeo e o pai a matildee ou o filho adotivo do acusado natildeo satildeo obrigados a depor mas se natildeo for possiacutevel solucionar o crime por outro meio de prova eles poderatildeo prestar depoimento contudo seratildeo ouvidos como meros informantes do juiacutezo ou declarantes sendo ainda dispensados de prestar compromisso da verdade real dos fatos

Jaacute o art 207 do CPP nos remete agraves pessoas que satildeo proi-bidas de depor se refere agraves pessoas que devem guardar sigilo em razatildeo de funccedilatildeo ministeacuterio oficio ou profissatildeo assim dispotildee ldquoSatildeo proibidas de depor as pessoas que em razatildeo de funccedilatildeo ministeacuterio ofiacutecio ou profissatildeo devam guardar segredo salvo se desobrigadas pela parte interessada quiserem dar o seu testemunhordquo

Periacutecia

A Prova Pericial estaacute prevista nos artigos 158 a 184 do Coacute-digo de Processo Penal Compreende-se por periacutecia o exame con-duzido por pessoa que possua certos entendimentos teacutecnicos cien-

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tiacuteficos artiacutesticos ou praacuteticos sobre ocorrecircncias eventualidades ou condiccedilotildees pessoais ligados ao fato condenaacutevel com o propoacutesito de provaacute-los

Na hipoacutetese do exame do corpo de delito assim como em outras periacutecias a lei prevecirc no artigo 159 do Coacutedigo de Processo Penal que as regras satildeo as mesmas e deveratildeo ser realizadas por um perito oficial ldquoexame de corpo de delito e outras periacutecias seratildeo realizados por perito oficial portador de diploma de curso supe-riorrdquo

Exame de corpo de delito

No Sistema Juriacutedico Brasileiro possuiacutemos duas espeacutecies de crimes aqueles que deixam vestiacutegios tambeacutem chamados de fa-tos permanentes e os delitos que natildeo deixam vestiacutegios chamados de fatos transeuntes

Como bem preceitua Gomes (1978 p31) ldquoas infraccedilotildees penais podem deixar vestiacutegios (delicta facti permanentis) como o homiciacutedio a lesatildeo corporal e natildeo deixar vestiacutegios (delicta facti tran-seuntes) como as injuacuterias verbais o desacatordquo

Quando se fala em prova pericial importante lembrar-se de uma prova que possui grande valor no processo penal que eacute a prova conhecida como exame de corpo de delito Esse exame estaacute previsto no artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal e trata- se do conjunto de vestiacutegios deixados pelo crime

Quando o crime deixar vestiacutegios materialmente compro-vados deveraacute ser realizado o exame de corpo de delito Essa pro-va eacute obrigatoacuteria e indispensaacutevel e sua realizaccedilatildeo eacute imposta pela lei

Taacutevora e Alencar (2013 p417) conceituam corpo de delito como

o conjunto de vestiacutegios materiais deixados pela in-fraccedilatildeo penal seus elementos sensiacuteveis a proacutepria materialidade em suma aquilo que pode ser exami-nado atraveacutes dos sentidos Ex a mancha de sangue deixado no local da infraccedilatildeo as lesotildees corporais a janela arrombada no crime de furto etc Jaacute o exame

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de corpo de delito eacute a periacutecia que tem por objeto o proacuteprio corpo de delito

Imprescindiacutevel destacar que o exame de corpo de delito deveraacute ser efetuado por um perito o mais raacutepido possiacutevel para que natildeo desapareccedilam os vestiacutegios deixados pelo ato criminoso

Nesse sentido preceitua Gomes (1978 p 32) que ldquoo corpo de delito deve realizar-se o mais rapidamente possiacutevel logo que se tenha conhecimento da existecircncia do fatordquo

Mirabete (2006 p 265) diz que exame de corpo de delito eacute ldquoo conjunto de vestiacutegios materiais deixados pela infraccedilatildeo penal a materialidade do crime aquilo que se vecirc apalpa sente em suma aquilo que pode ser examinado atraveacutes dos sentidosrdquo

Quando o crime deixar vestiacutegios materialmente compro-vados deveraacute ser realizado o exame de corpo de delito Essa pro-va eacute obrigatoacuteria e indispensaacutevel e sua realizaccedilatildeo eacute imposta pela lei

Prescreve o artigo 158 do Coacutedigo Penal ldquoquando a infra-ccedilatildeo deixar vestiacutegios seraacute indispensaacutevel o exame de corpo de delito direto ou indireto natildeo podendo supri-lo a confissatildeo do acusadordquo

A ausecircncia do exame de corpo de delito ao ser decretada a sentenccedila poderaacute ocasionar nulidade natildeo sendo nem a confis-satildeo do acusado suscetiacutevel de substituiccedilatildeo O Coacutedigo de Processo Penal todavia conteacutem uma observaccedilatildeo em seu artigo 167 sendo a ausecircncia do exame supriacutevel pela prova testemunhal O que ocor-re neste caso eacute o exame de corpo de delito indireto Sendo assim podemos concluir que a confissatildeo natildeo poderaacute suprir o exame de corpo de delito

O artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal nos remete a duas modalidades de exame do corpo de delito o exame direto e o indireto Eacute conceituado direto quando os peritos examinam os vestiacutegios deixados materialmente pelo crime Seraacute indireto aque-le realizado com base nas informaccedilotildees deixadas por testemunhas documentos entre outros referentes ao fato

Em relaccedilatildeo ao artigo 167 do Coacutedigo de Processo Penal quando os vestiacutegios sumirem e natildeo puder ser realizado o exame

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de corpo de delito poderaacute a prova testemunhal suprir-lhe a falta isto eacute o exame indireto poderaacute suprir o direto quando natildeo existir mais vestiacutegios

O artigo 167 do Coacutedigo de Processo Penal existe para im-pedir uma inesperada impunidade pois se natildeo houvesse essa res-salva qualquer pessoa que praticasse um crime poderia fazer com que os vestiacutegios desaparecessem e assim ficar impune

Da acareaccedilatildeo

A acareaccedilatildeo tem sua previsatildeo legal nos artigos 229 e 230 do Coacutedigo de Processo Penal

No processo poderaacute ocorrer o caso de duas ou mais pesso-as narrarem o ato criminoso de forma distinta Em virtude disso o artigo 229 do CPP permite a realizaccedilatildeo da acareaccedilatildeo que eacute ato de colocar frente a frente as pessoas que deram versotildees diferentes a fim de desvendar tal desarmonia

Reconhecimento de pessoas e coisas

O reconhecimento de pessoas e coisas estaacute previsto no arti-go 226 e inserido no tiacutetulo reservado agraves provas do processo penal e tem por finalidade a identificaccedilatildeo de um suspeito ou de um objeto atraveacutes da palavra da viacutetima ou das testemunhas

Interrogatoacuterio do reacuteu

O interrogatoacuterio do reacuteu estaacute previsto nos artigos 185 a 196 do CPP sendo caracterizado como o ato em que o juiz procede agrave oitiva do reacuteu O julgador realiza perguntas ao reacuteu com base na acusaccedilatildeo a ele dirigida

Interrogatoacuterio pode ser definido como um ato persona-liacutessimo em razatildeo de que apenas o indiciado pode ser interrogado ademais eacute ato privativo pois soacute o juiz pode interrogaacute-lo em con-cordacircncia com o art 187 do Coacutedigo de Processo Penal A oralidade do interrogatoacuterio aproxima o acusado do juiz

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Tornaghi (1997 p 365) afirma que

O interrogatoacuterio eacute a grande oportunidade que tem o juiz para num contato direto com o acusado formar juiacutezo a respeito de sua personalidade da sincerida-de de suas desculpas ou de sua confissatildeo do estado drsquoalma em que se encontra da maliacutecia ou da negli-gecircncia com que agiu da sua frieza e perversidade ou de sua nobreza e elevaccedilatildeo eacute ocasiatildeo propiacutecia para estudar- lhe as reaccedilotildees para ver numa primeira ob-servaccedilatildeo se ele entende o carter criminoso do fato e para verificar tudo mais que estaacute ligado ao seu psi-quismo e agrave sua formaccedilatildeo moral

Conforme o artigo 185 do CPP in verbis ldquoO acusado que comparecer perante autoridade judiciaacuteria no curso do processo penal seraacute qualificado e interrogado na presenccedila de seu defensor constituiacutedo ou nomeadordquo

Da confissatildeo

Confissatildeo eacute ato efetuado pelo suposto culpado de consen-tir como veriacutedica a imputaccedilatildeo que lhe foi feita na denuacutencia ou na queixa-crime Ou seja eacute dizer que foi o causador do crime relatado na exordial acusatoacuteria A previsatildeo desta espeacutecie de prova e os dis-positivos que os compotildeem estatildeo previstos nos artigos 197 a 200 do Coacutedigo de Processo Penal

Dos documentos

A prova documental estaacute prevista nos artigos 231 a 238 do Coacutedigo de Processo Penal

Conforme o art 232 do CPP ldquoConsideram-se documentos quaisquer escritos instrumentos ou papeacuteis puacuteblicos ou particula-resrdquo

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Indiacutecios

Os indiacutecios estatildeo previstos no artigo 239 do Coacutedigo de Processo Penal e natildeo satildeo considerados essencialmente como um meio de prova e sim parte de um raciociacutenio

Assim eacute o entendimento de Oliveira (2009 p382)

Na verdade o indicio mencionado no art 239 do CPP natildeo chega a ser propriamente um meio de pro-va Trata-se antes disso da utilizaccedilatildeo de um raciociacute-nio dedutivo para a partir da valoraccedilatildeo da prova de um fato ou de uma circunstacircncia chega-se agrave conclu-satildeo da existecircncia de outro ou de outra

Os indiacutecios natildeo podem ser comparados com as presunccedilotildees conforme os ensinamentos de Nucci (2007 p 468) ldquoas presunccedilotildees natildeo satildeo consideradas como meios de prova pois as presunccedilotildees constituem apenas mera opiniatildeo com base em algo suspeito ou ateacute mesmo algo suposto eacute um processo considerado como dedutivordquo Jaacute atraveacutes de indiacutecios o magistrado poderaacute alcanccedilar um estado de certeza

HOMICIacuteDIO

O crime de homiciacutedio previsto no Coacutedigo Penal tem como finalidade a salvaguarda do bem mais precioso ou seja a vida

A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 ao revelar o perfil poliacutetico constitucional do Brasil (art 1ordm) instituiu o Estado Democraacutetico de Direito que conteacutem os Direitos e as Garantias Fundamentais in-clusive o direito agrave vida que eacute assegurado no artigo 5ordm caput e inciso X no qual se diz que o direito agrave vida eacute inviolaacutevel em razatildeo de sua importacircncia pois sem a vida natildeo haacute o que se falar em dignidade humana e todos os direitos dela decorrentes

O homiciacutedio eacute previsto na parte Especial do Coacutedigo Penal em seu artigo 121 sob a expressatildeo tiacutepica ldquomatar algueacutemrdquo

Considerando a vida o bem juriacutedico mais valioso e o crime que desperta maior interesse da sociedade iremos analisar as suas

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peculiaridades

Do homiciacutedio sem cadaacutever

Haacute muito que se discutir sobre a possibilidade do acusado ser processado e condenado pelo crime de homiciacutedio mesmo com a ausecircncia do corpo para comprovaccedilatildeo real do fato por se tratar o homiciacutedio de um crime material

No caso em questatildeo eacute possiacutevel juridicamente processar o reacuteu sem o corpo pois o delito qual seja o homiciacutedio exige dois aspectos para a denuacutencia indiacutecio de autoria e a materialidade A materialidade seria no caso o cadaacutever mas eis que surge a duacutevida como condenar algueacutem por homiciacutedio sem o corpo da viacutetima

De acordo com o artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal ldquoQuando a infraccedilatildeo deixar vestiacutegios seraacute indispensaacutevel o exame de corpo de delito direto ou indireto natildeo podendo supri-lo a confis-satildeo do acusadordquo Em contrapartida temos o artigo 167 do mesmo Coacutedigo que prevecirc ldquoNatildeo sendo possiacutevel o exame de corpo de de-lito por haverem desaparecido os vestiacutegios a prova testemunhal poderaacute suprir-lhe a faltardquo

Ainda nessa direccedilatildeo possuiacutemos outro inciso contido no artigo 564 do CPP mais especificadamente o inciso III aliacutenea ldquobrdquo que declara ldquohaveraacute nulidade pela falta do exame de corpo de de-lito nos crimes que deixam vestiacutegiosrdquo poreacutem ressaltando o dispos-to no artigo 167 do CPP o qual diz que a testemunha poderaacute suprir a falta do exame direto

Portanto os trecircs artigos acima devem ser interpretados conjuntamente para que natildeo se faccedila uma interpretaccedilatildeo errocircnea no procedimento de qualquer inqueacuterito

O corpo de delito trata-se de um mero meio de prova que poderaacute ser suprido por outros meios de prova visto que natildeo haacute uma hierarquia entre as provas e o que se preza eacute a procura da verdade real ou seja deve-se recorrer aos outros meios passiacuteveis para formar o convencimento sobre o crime

O recebimento da denuacutencia leva em consideraccedilatildeo a prova

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da materialidade mesmo que essa prova seja por um exame do corpo de delito indireto e indiacutecios de autoria ou seja indiacutecios de que a pessoa que estaacute sendo acusada e que apoacutes o recebimento da denuacutencia seraacute reacuteu tem indiacutecios de sua participaccedilatildeo no desapareci-mento daquela pessoa

ESTUDO DE CASOS

Buscou-se analisar dois casos acerca da possibilidade de condenaccedilatildeo pelo crime de homiciacutedio ante a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo do caso O primeiro caso ocorrido em Aragua-ri em MG no ano de 1937 ficou conhecido como o ldquoCaso dos Irmatildeos Navesrdquo e o segundo ocorrido no ano de 2010 com rele-vante repercussatildeo midiaacutetica ficou conhecido como o ldquoCaso do Goleiro Brunordquo

Conforme informaccedilotildees do livro do autor Joatildeo Alamy Fi-lho (1990) o caso dos Irmatildeos Naves trata-se do maior erro judici-aacuterio no qual houve uma condenaccedilatildeo injusta com lastro na rainha das provas que foi uma confissatildeo conseguida mediante tortura dos irmatildeos Sebastiatildeo e Joaquim Naves acusados do homiciacutedio de Benedito o qual decidiu desaparecer do paiacutes por encontrar-se em dificuldades financeiras agravadas pela crise econocircmica da eacutepoca Durante vaacuterios meses os irmatildeos Naves foram submetidos pelo delegado da eacutepoca a vaacuterias torturas e privados de condiccedilotildees miacutenimas de higiene e alimentaccedilatildeo a fim de que confessassem o crime destacando-se que natildeo havia nem corpo nem indiacutecios nem outros meios de prova do homiciacutedio

Diante dessa situaccedilatildeo eles se viram obrigados a assinar o termo que o delegado tanto desejava a confissatildeo Ainda natildeo con-tente o delegado mandou prender os familiares dos acusados que tambeacutem passaram a sofrer torturas constantes

Os irmatildeos passaram por dois julgamentos tendo sempre como acusaccedilatildeo o temido delegado que sempre recorreu da deci-satildeo com recursos diversos Passados 8 anos e 3 meses apoacutes o jul-gamento devido ao bom comportamento dos irmatildeos na prisatildeo

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finalmente foram colocados em liberdade condicionalAnos mais tarde em 1952 a viacutetima aparece viva pois ha-

via decidido desaparecer agrave eacutepoca porque estava endividado e natildeo conseguira adimplir as diacutevidas Em 1953 os irmatildeos foram inocen-tados e entraram com um pedido de indenizaccedilatildeo que soacute foi conse-guido apoacutes 7 anos em 1960

Atualmente deve ser superado o erro judiciaacuterio que teve agrave eacutepoca do caso dos Irmatildeos Naves atraveacutes da busca da materia-lidade indireta O ordenamento juriacutedico admite provas periciais documentais e testemunhais desde que liacutecitas e legiacutetimas

No segundo caso o Caso do Goleiro Bruno as informa-ccedilotildees foram obtidas atraveacutes da Denuacutencia-Processo 0356249-62010 oferecida no ano de 2010 em Contagem-MG envolvendo o go-leiro Bruno do Flamengo um dos iacutedolos das maiores torcidas de futebol do paiacutes Trata-se de um assassinato no qual a viacutetima Eliza Samuacutedio foi executada cruelmente Consta na Denuacutencia que Eliza Samuacutedio iniciou um envolvimento amoroso com o goleiro e apoacutes algum tempo desse episoacutedio revelou estar graacutevida A gravidez levada a termo contrariou as expectativas de Bruno e a viacutetima mediante constantes ameaccedilas do entatildeo goleiro para que realizas-se aborto foi assassinada em 2010

A materialidade formou-se com base na soma de todas as provas um conjunto de indiacutecios especialmente as provas pe-riciais documentais e testemunhais entre elas o depoimentorelato da prova oral que configurou suficiente demonstraccedilatildeo de materialidade do crime de homiciacutedio No inqueacuterito haacute provas teacutec-nicas obtidas atraveacutes de rastreamento de carros e telefonemas do registro do uso de celulares pelas antenas instaladas ao longo do percurso realizado pelos acusados e tambeacutem do que diz respei-to agraves ligaccedilotildees telefocircnicas as quais natildeo deixaram duacutevidas de uma accedilatildeo coordenada Atraveacutes da triangulaccedilatildeo do sinal dos aparelhos celulares foi possiacutevel para os peritos estabelecerem com precisatildeo endereccedilos e horaacuterios dos lugares identificados em cada aparelho de telefone usado e por consequecircncia seu portador quanto agraves provas testemunhais haacute seis depoimentos que indicam que Bruno

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e Eliza estiveram juntos no siacutetio do goleiro nos dias que antecede-ram o crime No que tange agraves provas materiais o sangue encontra-do nos vidros e no banco da picape Range Rover de propriedade do goleiro era da jovem Eliza comprovado pela periacutecia por meio de exames de DNA

Outra peccedila fundamental para a poliacutecia foi o bebecirc Bruni-nho filho de Eliza ter permanecido sem a matildee e que sob os cui-dados da mulher do goleiro teve o seu nome trocado para Ryan Yuri objetivando dificultar sua identificaccedilatildeo e localizaccedilatildeo e foi encontrado posteriormente em posse de estranhos Ainda no que se refere agraves provas documentais foi encontrada uma carta escrita pelo ex-goleiro Bruno detalhando um Plano B no caso de o cerco se fechar sobre ele prescrevendo que o amigo Macarratildeo deveria assumir toda a culpa pelo crime

Entre os indiacutecios mais fortes de que o goleiro comandou uma espeacutecie de ldquooperaccedilatildeordquo para matar Eliza estaacute o sangue en-contrado na Land Rover do goleiro apreendida com um de seus amigos aleacutem de infraccedilotildees de tracircnsito cometidas no Rio de Janeiro e Minas Gerais e o horaacuterio das ligaccedilotildees telefocircnicas de todos os acusados Por meio do cruzamento das informaccedilotildees e das provas periciais a poliacutecia diz ter conseguido remontar o que aconteceu

As evidecircncias mais importantes no entanto satildeo os depoi-mentos contraditoacuterios As duas principais testemunhas que foram o ponto de partida para a prisatildeo dos demais acusados os primos de Bruno Seacutergio Rosa Sales e o adolescente apreendido J muda-ram suas versotildees ao longo das investigaccedilotildees

No caso do ex-goleiro Bruno sabia-se que Eliza estava desaparecida que natildeo fez contato pessoal telefocircnico e-mail natildeo usou cartatildeo de creacutedito nem conta bancaacuteria haacute um viacutedeo em que Eliza diz que sofreu violecircncia para abortar e que se algo lhe acon-tecesse o responsaacutevel seria Bruno comprovou-se que Eliza foi obrigada a tomar comprimidos de origem desconhecida ou seja foi submetida agrave tentativa de aborto haacute prova de que esteve no siacutetio do suspeito com o filho somente a crianccedila apareceu haacute sangue da viacutetima no carro haacute um depoimento do menor Jorge primo de

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Bruno que conta detalhes sobre a morte e o vilipecircndio a confir-maccedilatildeo desse depoimento se deu pela anaacutelise do GPS do carro e pela comprovaccedilatildeo de que Bruno deslocou-se de aviatildeo para Minas Gerais no periacuteodo

Quando natildeo se localiza o corpo da viacutetima o que se utiliza eacute a ldquocerteza moral do crimerdquo e essa se daacute quando todas as circuns-tacircncias demonstram a morte sob pena de ficarmos agrave mercecirc dos criminosos mais perigosos que satildeo aqueles que matam e depois consomem com o corpo apostando na impunidade Vale ressaltar que as provas no Caso do goleiro Bruno foram obtidas atendendo agrave previsatildeo do ordenamento juriacutedico

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

O presente trabalho buscou analisar a possibilidade de pronunciamento e condenaccedilatildeo do agente que comete o crime de homiciacutedio e natildeo se encontra a prova material do crime o cadaacutever

No decorrer do trabalho fez-se estudo dos meios proba-toacuterios permitidos em nosso ordenamento juriacutedico no que concerne aos crimes materiais ou seja aqueles que deixam vestiacutegios

Destacou-se ainda no presente estudo a possibilidade no crime de homiciacutedio de admitir a substituiccedilatildeo da prova direta pelo prova indireta visto que o proacuteprio ordenamento juriacutedico prevecirc essa possiblidade ante a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo do crime poderaacute utilizar-se das provas testemunhais somadas a outros indiacutecios visto que seria injusto deixar algueacutem impune

Socorreu-se do caso do maior erro Judiciaacuterio ou seja o caso dos Irmatildeos Naves que ficou conhecido nacionalmente e que ateacute hoje assombra a decisatildeo dos juiacutezes em casos semelhantes Po-reacutem destaca-se se que a uacutenica prova utilizada no referido caso foi a confissatildeo obtida mediante tortura

Tivemos caso recente que causou grande repercussatildeo na miacutedia o Cso do ex-goleiro Bruno no qual se constatou a existecircncia de vaacuterias provas indiretas que possuiacuteam o condatildeo de conduzir a um desfecho do crime ocorrido mesmo ante a ausecircncia do corpo

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da viacutetima para comprovaccedilatildeo do fatoCertifica-se que a prova testemunhal se somada a outras

provas poderaacute substituir o cadaacutever se for suficiente para compro-var o delito mesmo com a ausecircncia material do corpo

Atraveacutes dos estudos realizados pode-se constatar que a inexistecircncia do corpo da viacutetima natildeo deixa o reacuteu impune podendo ele ser denunciado pronunciado e posteriormente condenado pela praacutetica do crime

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ALAMY Joatildeo O caso dos irmatildeos Naves o erro judiciaacuterio de Araguari Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro 1990

AVENA Norberto Processo penal esquematizado 2 ed Rio de Janeiro Forense Satildeo Paulo Meacutetodo 2010

BRASIL Coacutedigo de processo penal (1941) In ANGHER Anne Joyce Vade mecum universitaacuterio de direito RIDEEL 8 ed Satildeo Paulo RIDEEL 2010 p 351 - 395

______ Coacutedigo Penal Decreto-Lei nordm 2848 de 7 de dezembro de 1940 Satildeo Paulo Saraiva 2014

______ Constituiccedilatildeo (1988) Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil Brasiacutelia DF Senado 1988

DINAMARCO Cacircndido Rangel Instituiccedilotildees de direito processual civil Satildeo Paulo Malheiros v 3 2001

GOMES Heacutelio Medicina legal 19 ed Rio de Janeiro Freitas Bastos 1978

LIMA Renato Brasileiro de Manual de processo penal 2 ed Niteroacutei Impetus 2013

MIRABETE Julio Fabbrini Processo penal 18 ed rev e atual Renato N Fabbrini Satildeo Paulo Atlas 2006

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NUCCI Guilherme de Souza Manual de processo penal e execuccedilatildeo penal 3 ed Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2007

______ Manual de processo penal e execuccedilatildeo penal 5 ed rev atual e ampl 4 Tir Satildeo Paulo Revista dos Tribunais 2008 p 393

______ Manual de processo penal e execuccedilatildeo penal 12 ed rev ampl Rio de Janeiro Forense 2015

OLIVEIRA Eugecircnio Pacelli de Curso de processo penal 11 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2009

TAacuteVORA Nestor ALENCAR Rosmar Antonini Rodrigues Cavalcanti de Curso de direito processual penal 8 ed rev ampl e atual Salvador JusPODIVM 2013

TORNAGHI Heacutelio Curso de processo penal 10 ed atual Satildeo Paulo Saraiva v1 1997

TOURINHO FILHO Fernando da Costa Processo penal 33 ed Satildeo Paulo Saraiva v 1 2011

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OS MEIOS CONSENSUAIS DE SOLUCcedilAtildeO DE CONFLITOS NA COMARCA DE CAacuteCERESMT

Sandrely Ugulino Cardoso1

Geovanna Gabriela Sandri2

Andreacute Trapani Costa Possignolo3

RESUMO Pesquisa realizada na aacuterea do Direito Processual Civil sobre os institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo e sua eficaacutecia na comarca de CaacuteceresMT como meios alternativos na resoluccedilatildeo de conflitos Aleacutem de apresentar as principais caracteriacutesticas e objetivos dos institutos o trabalho aborda tambeacutem a perspectiva da mediaccedilatildeo para a resoluccedilatildeo de conflitos na esfera familiar ressaltando seus benefiacutecios em relaccedilatildeo aos meios judiciais A anaacutelise realizada tem como base legal a Resoluccedilatildeo 12510 do Conselho Nacional de Justiccedila que disciplina tais institutos frente ao Poder Judiciaacuterio bem como ordena aos tribunais a criaccedilatildeo de Centros Judiciaacuterios de Resoluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica de autores que disciplinam os meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos o presente trabalho faz um levantamento de dados das audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo realizadas no Centro Judiciaacuterio do Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT analisando no caso concreto se os objetivos e benefiacutecios desses institutos consensuais tecircm realmente sido alcanccedilados bem como se tecircm trazido resultados satisfatoacuterios ao Poder Judiciaacuterio e agrave sociedade do municiacutepio de CaacuteceresMT

PALAVRAS-CHAVE Mediaccedilatildeo Conciliaccedilatildeo CEJUSC

1 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT san-drelyugulinogmailcom2 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT geovan-nasandrigmailcom3 Professor do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT andre-tpossiggmailcom

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ABSTRACT Research carried out in Civil Procedural Law area on the institutes of mediation and conciliation and its effectiveness in the county of CaacuteceresMT as alternative means in the resolution of conflicts Besides presenting the main features and goals this work also approaches the perspective of mediation for conflict resolution in the Family Law sphere highlighting its benefits over judicial means The analysis is based on Resolution 12510 of the Conselho Nacional de Justiccedila which disciplines such institutes in Judiciary as well as order the courts to create Centros Judiciaacuterios de Resoluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania In addition to the bibliographic research on consensual means of conflict resolution this paper will also collect data from the conciliation and mediation hearings held at the Centro Judiciaacuterio of the CaceresMT County Forum analyzing in concrete case if the goals and benefits of these consensual institutes have actually been achieved as well as whether they have brought satisfactory results to the Judiciary and to the society of CaceresMT

KEYWORDS Mediation Conciliation CEJUSC

INTRODUCcedilAtildeO

Um dos principais objetivos buscados pelo Direito eacute a paz social de modo a tornar as relaccedilotildees mais estaacuteveis dirimindo os conflitos bem como as desigualdades sociais aleacutem de promover o desenvolvimento da sociedade (SANTOS 2004)

No entanto eacute visiacutevel que o Direito ainda natildeo conseguiu alcanccedilar a almejada pacificaccedilatildeo social hajam vista os numerosos processos que se encontram sob a eacutegide do Poder Judiciaacuterio agrave es-pera de uma soluccedilatildeo para o conflito Sabe-se que o Poder Judiciaacuterio possui muitas falhas em seu modo de atuar tais como tecnicismo proacuteprio e exacerbado inerente ao processo judicial que por exem-plo possui vernaacuteculo especiacutefico e de difiacutecil compreensatildeo para as proacuteprias partes litigantes tornando o processo judicial ainda mais formal aleacutem das altas custas processuais e a demora para a solu-ccedilatildeo do litiacutegio fatores esses que afastam cada vez mais o Judiciaacuterio da sociedade (ALVES 2015)

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Primando pelo princiacutepio constitucional da inafastabilida-de da jurisdiccedilatildeo a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 apresenta em seu art 5ordm inciso XXXV ldquoa lei natildeo excluiraacute da apreciaccedilatildeo do Poder Judiciaacuterio lesatildeo ou ameaccedila a direitordquo (BRASIL 1988) Sendo as-sim eacute garantido a toda pessoa o poder de buscar no Judiciaacuterio a efetividade dos seus direitos violados

O Poder Judiciaacuterio tendo a obrigaccedilatildeo de abranger toda demanda da sociedade passou a enfrentar uma crise gerando o abarrotamento de processos Deste modo o Judiciaacuterio comeccedilou a natildeo suportar tamanha procura para a soluccedilatildeo de conflitos haja vista que natildeo consegue respeitar sequer alguns princiacutepios proces-suais como a celeridade processual tornando-se moroso na reso-luccedilatildeo dos litiacutegios (ALVES 2015)

Para os motivos de tal morosidade existem diversos fa-tores Alguns destes estatildeo ora relacionados agrave estrutura e funcio-namento do Poder Judiciaacuterio ora agraves partes litigantes e seu modo de agir Em suma os fatores mais citados satildeo sucateamento dos equipamentos do Judiciaacuterio escassez de funcionaacuterios modo de agir das partes complexidade e burocracia do processo brasileiro (GESTEIRA 2014)

Atentando-se aos princiacutepios norteadores do Direito visto que o Poder Judiciaacuterio encontra-se em crise comeccedilaram a ser dis-cutidos outros meios alternativos de soluccedilatildeo de conflitos Surgiu assim a Resoluccedilatildeo 12510 do Conselho Nacional de Justiccedila (CNJ) disciplinando dois meios de suma importacircncia ao Direito brasilei-ro quais sejam mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo

Diante disso a presente pesquisa busca estudar esses meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos analisando se satildeo uacuteteis agrave so-ciedade como forma de dirimir litiacutegios ajudando na promoccedilatildeo da paz social prezada pelo Direito De outro modo aborda-se se estes meios de soluccedilatildeo de conflitos realmente trazem benefiacutecios se satildeo eficazes ao Judiciaacuterio diante da mencionada crise de abarrotamen-to de processos pela qual o mesmo enfrenta

Outro vieacutes a ser analisado trata-se da contribuiccedilatildeo das uni-versidades e dos acadecircmicos principalmente do curso de Direito

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na promoccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo bem como os benefiacutecios trazidos aos estudantes diante da aplicaccedilatildeo dos conhecimentos teoacutericos apreendidos nas salas de aula em casos praacuteticos

Tem-se ainda como objetivo mostrar a importacircncia do Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) no Foacuterum da Comarca do Municiacutepio de CaacuteceresMT bem como sua efetividade na resoluccedilatildeo de conflitos por meio da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Busca-se ainda expor alguns aspectos negativos le-vantados com relaccedilatildeo aos institutos de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo

Aleacutem disso realiza-se um levantamento de dados quan-titativos de audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo na Comarca do Foacuterum de CaacuteceresMT no Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Con-flitos e Cidadania para testar a aplicaccedilatildeo praacutetica dos resultados obtidos analisando concretamente se essas audiecircncias tecircm trazido resultados satisfatoacuterios ao Poder Judiciaacuterio na resoluccedilatildeo de con-flitos por meio da feitura de acordos entre as partes bem como se vecircm cumprindo com seu papel de assistecircncia agrave sociedade

Para isso utiliza-se como metodologia a pesquisa biblio-graacutefica de autores que trabalham a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como meios de resoluccedilatildeo de conflitos A partir da anaacutelise criacutetica das in-formaccedilotildees expostas visa-se trazer argumentos proacuteprios sobre o tema

Meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos

A pacificaccedilatildeo social como um dos objetivos primados pelo Direito se realiza por meio da resoluccedilatildeo dos conflitos Buscando se adequar a este objetivo os institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo tambeacutem tecircm almejado a paz social das partes litigantes que ami-gavelmente procuram dirimir os conflitos existentes Nesse senti-do o processualista Daniel Amorim Assumpccedilatildeo Neves (2016 p 32) admite que ldquoa pacificaccedilatildeo social (soluccedilatildeo da lide socioloacutegica) pode ser mais facilmente obtida por uma soluccedilatildeo do conflito deri-vada da vontade das partes do que pela imposiccedilatildeo de uma decisatildeo judicialrdquo

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Essa pacificaccedilatildeo social pode ser alcanccedilada mais facilmente nas formas consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos haja vista que o diaacutelogo entre as partes estaacute presente constantemente pois nessas as partes apresentam propostas capazes de dirimir as desavenccedilas com base em seus interesses pessoais e uma vez satisfeita a vonta-de de ambas o conflito existente eacute solucionado

O Poder Judiciaacuterio no uso de suas atribuiccedilotildees utiliza como principal ferramenta para a resoluccedilatildeo de conflitos a hetero-composiccedilatildeo que ldquoconsiste em meios onde a soluccedilatildeo dos litiacutegios eacute estabelecida por um terceiro sem interferecircncia das partesrdquo (MER-LO 2016 on line)

A partir da crise que afligiu o Judiciaacuterio novas teacutecnicas de dirimir os litiacutegios foram sendo amplamente discutidas surgindo a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como teacutecnicas de autocomposiccedilatildeo em que ao contraacuterio da heterocomposiccedilatildeo a soluccedilatildeo do problema natildeo eacute determinada por um terceiro distante do caso mas pelas proacuteprias partes litigantes que decidem como solucionar os conflitos pelos quais estatildeo passando Nesses meios autocompositivos prevalece a vontade das partes (Idem)

Assim como nos meios de heterocomposiccedilatildeo a mediaccedilatildeo e a conciliaccedilatildeo primam pela real soluccedilatildeo das desavenccedilas No entan-to a heterocomposiccedilatildeo em razatildeo de a soluccedilatildeo do conflito ser dada de acordo com o entendimento de um terceiro imparcial e distante do caso nem sempre possui forccedila capaz de satisfazer as vontades das partes jaacute que na maioria das vezes o decidido pelo magistra-do natildeo coincide com o querer das partes Desta forma ao contraacuterio dos meios consensuais os meios heterocompositivos nem sempre solucionam o conflito em sua essecircncia uma vez que natildeo atendem agrave real vontade das partes fazendo com que em muitos casos as desavenccedilas persistam mesmo apoacutes a suposta resoluccedilatildeo do conflito (ROSA apud GONCcedilALVES 2015)

A mediaccedilatildeo e a conciliaccedilatildeo por serem meacutetodos de auto-composiccedilatildeo possuem muitas semelhanccedilas distinguindo-se ape-nas quanto ao modo de atuaccedilatildeo do mediador e do conciliador

O instituto da mediaccedilatildeo eacute aconselhado para a resoluccedilatildeo de

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conflitos nos casos em que as partes conflitantes jaacute se conheciam e possuiacuteam algum viacutenculo O papel do mediador eacute caracterizado como de um facilitador do diaacutelogo entre as partes que auxilia as partes a visualizarem a melhor maneira de dirimir o conflito exis-tente natildeo podendo agir de forma imperativa no caso nem propor formas de solucionar o conflito mas tatildeo somente encaminhar as partes deixando a livre escolha dessas agrave feitura ou natildeo de um acor-do (DIDIER JR 2015)

Diferentemente da mediaccedilatildeo os casos que envolvem a resoluccedilatildeo de conflitos pela conciliaccedilatildeo segundo entendimento de Didier Jr (2015) satildeo aqueles em que as partes natildeo se conheciam ou seja natildeo possuiacuteam viacutenculos Nesses casos o conciliador tem maior autonomia para interferir no problema haja vista que pode propor soluccedilotildees para dirimir o conflito

Uma das principais caracteriacutesticas destes meios de auto-composiccedilatildeo eacute a maior atuaccedilatildeo das partes na soluccedilatildeo do conflito que satildeo os protagonistas da resoluccedilatildeo do litiacutegio o que eacute interes-sante uma vez que o conflito concerne somente a elas (MERLO 2016)

Vaacutelido ressaltar que esses mecanismos de autocompo-siccedilatildeo ao contraacuterio da heterocomposiccedilatildeo natildeo apresentam todo o tecnicismo proacuteprio de um processo judicial como o seu formalis-mo e utilizaccedilatildeo de vernaacuteculos especiacuteficos e robustos cuja ausecircncia permite que as partes possuam maior liberdade de se expressar visto que se baseiam mais na oralidade e na informalidade aleacutem de serem mais ceacuteleres baratos e justos (GONCcedilALVES 2015)

Entende-se que os acordos feitos por intermeacutedio desses meios alternativos de soluccedilatildeo de conflitos possuem a mesma forccedila de uma sentenccedila dada pelo magistrado por meio das vias comuns entretanto por serem meacutetodos que ainda podem ser considerados recentes diversas vezes natildeo satildeo efetivados pela visatildeo de que os acordos e decisotildees tomadas natildeo teriam o mesmo valor que uma decisatildeo judicial comum (MERLO 2016)

Aleacutem disso outra fragilidade que envolve os meios au-tocompositivos diz respeito agrave atuaccedilatildeo do mediador quanto agrave pos-

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sibilidade de que haja pressatildeo para que as partes cheguem a um acordo e que segundo o Manual de Mediaccedilatildeo Judicial (2015) preo-cupa os advogados por tratar-se de um receio legiacutetimo mas que quando notada deve ser comunicada agrave Secretaacuteria do Serviccedilo de Mediaccedilatildeo Forense

Resoluccedilatildeo n 12510 CNJ

O Conselho Nacional de Justiccedila editou a Resoluccedilatildeo nordm 125 de 29 de novembro de 2010 que em suma tem como objetivo a re-gulamentaccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Assim o CNJ por meio dessa Resoluccedilatildeo incentivou a soluccedilatildeo de controveacutersias por meio da autocomposiccedilatildeo (BRASIL 2010)

Para a criaccedilatildeo dessa Resoluccedilatildeo foram considerados vaacuterios pontos tais como a prestaccedilatildeo judicial de forma justa e efetiva a pacificaccedilatildeo social bem como a regulamentaccedilatildeo e uniformizaccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo (Idem) Assim um dos mais importantes artigos dessa Resoluccedilatildeo na qual se baseia todo o presente trabalho eacute o

Art 8ordm Os tribunais deveratildeo criar os Centros Judiciaacute-rios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (Centros ou Cejuscs) unidades do Poder Judiciaacuterio preferencial-mente responsaacuteveis pela realizaccedilatildeo ou gestatildeo das sessotildees e audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo que estejam a cargo de conciliadores e mediadores bem como pelo atendimento e orientaccedilatildeo ao cidadatildeo (BRASIL 2010)

Eacute com base nesse artigo que os atuais Centros Judiciaacuterios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) existem e realizam as audiecircncias de mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo sejam elas processuais (realizadas durante o tracircmite de processo judicial) ou preacute-proces-suais (que antecedem a propositura da accedilatildeo judicial)

Ademais aleacutem do caraacuteter de soluccedilatildeo de conflitos estes centros possuem uma funccedilatildeo de cidadania uma vez que atendem ao puacuteblico orientando e auxiliando os indiviacuteduos na busca por

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seus direitos (BRASIL 2015)A implantaccedilatildeo desses centros de soluccedilatildeo de conflitos a

partir da Resoluccedilatildeo nordm 12510 do CNJ que aleacutem de seu objetivo principal de incentivar que os litiacutegios sejam resolvidos de forma consensual reconheceu esses institutos como meios de acesso agrave justiccedila respeitando o princiacutepio constitucional de acesso agrave justiccedila Ademais em decorrecircncia da grande quantidade de demandas di-rigidas ao Poder Judiciaacuterio busca-se tambeacutem com as audiecircncias de mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo a diminuiccedilatildeo do abarrotamento de proces-sos uma vez que esses institutos satildeo mais ceacuteleres na soluccedilatildeo dos conflitos e a feitura de um acordo evita que novos casos resultan-tes de conflitos mal resolvidos fiquem pendentes da anaacutelise do Poder Judiciaacuterio (GONCcedilALVES 2015)

Aleacutem disso eacute importante compreender a atuaccedilatildeo dos con-ciliadores e mediadores bem como os princiacutepios e obrigaccedilotildees que os regem para que se quebre o paradigma de que um meio de resoluccedilatildeo de conflitos que envolva um terceiro que natildeo seja o ma-gistrado tambeacutem pode ser confiaacutevel e eficaz Por esta razatildeo a re-soluccedilatildeo prevecirc em seu artigo 1deg do Anexo III oito princiacutepios funda-mentais que devem ser seguidos para que se respeite o Coacutedigo de Eacutetica dos Mediadores e Conciliadores Satildeo eles confidencialidade decisatildeo informada competecircncia imparcialidade independecircncia e autonomia respeito agrave ordem puacuteblica e agraves leis vigentes empodera-mento e validaccedilatildeo (BRASIL 2010)

Os princiacutepios fundamentais previstos na resoluccedilatildeo satildeo de grande importacircncia para a conduccedilatildeo e o bom desenvolvimento dos procedimentos dos institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo

mediaccedilatildeo na resoluccedilatildeo de conflitos familiares

Pelo fato de a mediaccedilatildeo ser utilizada principalmente nos conflitos em que as partes jaacute se conheciam ela possui grande im-portacircncia na soluccedilatildeo de conflitos familiares mais ainda por se ba-sear principalmente no diaacutelogo entre as partes Tendo em vista as peculiaridades dos problemas familiares o instituto da mediaccedilatildeo

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tem sido cada vez mais empregado na resoluccedilatildeo desses conflitos Eacute evidente que as desavenccedilas familiares possuem aspectos mais delicados uma vez que envolvem laccedilos afetivos e por isso neces-sitam de guarida de forma especial comparados com outros confli-tos sociais (GONCcedilALVES 2015 GARBO 2015)

Para que natildeo haja desgaste emocional entre os familiares que se encontram em litiacutegio faz-se necessaacuterio a presenccedila da media-ccedilatildeo como meio consensual de resoluccedilatildeo de conflitos instrumento capaz de trazer a paz para as famiacutelias em desavenccedilas (TOALDO OLIVEIRA 2011)

Em decorrecircncia de o Poder Judiciaacuterio se encontrar abar-rotado de causas para serem solucionadas os conflitos sob a sua eacutegide demoram muito tempo ateacute sua resoluccedilatildeo Assim sendo a mediaccedilatildeo familiar um meio alternativo para a resoluccedilatildeo de con-flitos as demandas seratildeo solucionadas por este meio com mais rapidez fato esse de suma importacircncia nos desentendimentos fa-miliares uma vez que envolvem assuntos de natureza de urgecircncia perdurando o conflito por um periacuteodo bem menor se comparado aos meios judiciais tradicionais (PRUDENTE 2008)

Os principais casos resolvidos por meio da mediaccedilatildeo fa-miliar abrangem conflitos referentes a divoacutercio separaccedilatildeo de bens guarda fixaccedilatildeo e revisatildeo de alimentos Tais casos por se tratarem de assuntos pertinentes tatildeo apenas agraves proacuteprias partes satildeo resolvi-dos por meio da mediaccedilatildeo com grande aprovaccedilatildeo tendo em vista que a partir do diaacutelogo entre as partes pode surgir um acordo que satisfaccedila as vontades destas (GARBO 2015)

O meio heterocompositivo frente a um magistrado por natildeo possibilitar maior diaacutelogo entre as partes nem sempre per-mite que a vontade seja plenamente satisfeita inclusive porque a soluccedilatildeo do conflito viraacute de acordo com o entendimento de um terceiro distante do caso Assim diante da insatisfaccedilatildeo em rela-ccedilatildeo agrave decisatildeo tomada e da natildeo soluccedilatildeo dos conflitos ocultos novos impasses podem surgir resultando em novos processos judiciais contribuindo para o abarrotamento de processos e intensificando a crise do Poder Judiciaacuterio

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A mediaccedilatildeo familiar eacute sim uma alternativa viaacutevel para a superaccedilatildeo de conflitos familiares na socieda-de atual pois atraveacutes de mediadores capacitados e com conhecimentos especiacuteficos fazendo com que as partes cheguem uma melhor soluccedilatildeo que possa satisfazer a ambos sem a imposiccedilatildeo de uma deci-satildeo como ocorre no atual sistema juriacutedico brasileiro (TOALDO OLIVEIRA 2011 on line)

Aleacutem da insatisfaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave decisatildeo proferida por meio heterocompositivo o sentimento de conflito natildeo resolvido pode acarretar traumas emocionais aos filhos portanto quando se tem uma participaccedilatildeo muacutetua da famiacutelia para que se resolvam as questotildees familiares pendentes de forma amigaacutevel e respeitosa a decisatildeo natildeo traraacute apenas benefiacutecios processuais (custas celerida-de) como tambeacutem emocionais e psicoloacutegicos conforme menciona Parkinson (2016 p xxi)

Devemos ter em mente que longas batalhas pela guarda dos filhos satildeo extremamente prejudiciais agrave crianccedila aleacutem de apresentarem altos custos emocio-nais e financeiros ao passo que a mediaccedilatildeo incenti-va uma melhor comunicaccedilatildeo e cooperaccedilatildeo entre os pais podendo trazer benefiacutecios duradouros para a famiacutelia como um todo

Percebe-se assim que os conflitos familiares dependem grandemente do diaacutelogo para a sua soluccedilatildeo uma vez que apoacutes alguns desentendimentos os familiares se encontram receosos e abalados emocionalmente diante dos laccedilos afetivos envolvidos necessitando apenas que um terceiro no caso o mediador inter-venha no conflito para facilitar o diaacutelogo entre as partes fazendo com que as mesmas encontrem um acordo satisfatoacuterio fato esse que pode ser facilmente presenciado na mediaccedilatildeo diferentemente do que ocorre na heterocomposiccedilatildeo em que natildeo haacute tantas oportu-nidades de diaacutelogos entre as partes

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Contribuiccedilatildeo das Universidades aos CEJUSCrsquos

Tendo em vista que a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo abordam as-suntos pertinentes ao curso de Direito as universidades podem e devem contribuir na promoccedilatildeo desses institutos uma vez que ainda satildeo desconhecidos por grande parcela da sociedade Aleacutem de as universidades contribuiacuterem no incentivo e divulgaccedilatildeo dos meacutetodos consensuais de soluccedilatildeo de conflitos os acadecircmicos tam-beacutem satildeo beneficiados uma vez que poderatildeo colocar em praacutetica os aprendizados teoacutericos das aulas contribuindo para seu crescimen-to profissional futuro

O CNJ mesmo apoacutes ter criado a Resoluccedilatildeo 12510 incen-tiva ainda a pacificaccedilatildeo dos litiacutegios pela mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo por meio do Precircmio Conciliar eacute Legal de iniciativa do Comitecirc Gestor Nacional da Conciliaccedilatildeo A quinta ediccedilatildeo desse precircmio teve como uma das praacuteticas vencedoras a promoccedilatildeo de soluccedilotildees paciacuteficas de conflitos por meio do envolvimento de alunos e docentes do cur-so de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNE-MAT) Campus Francisco Ferreira Mendes em DiamantinoMT em trabalho conjunto com o Centro Judiciaacuterio da Comarca de Dia-mantinoMT (ARAUacuteJO 2015)

O projeto realizou-se por intermeacutedio da UNEMAT no Nuacute-cleo Permanente de Meacutetodos Consensuais de Soluccedilatildeo de Conflitos do Mato Grosso e do CEJUSC do TJMT e envolveu estudantes e professores que se propuseram a averiguar os processos submeti-dos ao Centro Judiciaacuterio na Comarca de DiamantinoMT (Idem)

Assim sendo fica claro que essa atitude serviu para tes-tificar os acadecircmicos envolvidos no projeto considerando que jaacute saem com capacitaccedilatildeo em conciliaccedilatildeo tornando-se uma verdadei-ra contribuiccedilatildeo acadecircmica para a sociedade o que exemplifica cla-ramente a proposta acessiacutevel da soluccedilatildeo de conflitos

Levantamento de dados realizados no CEJUSC de CAacuteCERESMT

Com base no levantamento bibliograacutefico apresentado foi

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realizada uma pesquisa quantitativa de levantamento de dados no Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT

Com a entrada em vigor da Resoluccedilatildeo 12510 do CNJ o Tribunal de Justiccedila do Mato Grosso buscou adequar-se a essa nor-ma tendo em vista que assim como apresentado no art 8ordf da refe-rida Resoluccedilatildeo foi imposta aos Tribunais de Justiccedila a criaccedilatildeo dos Centros Judiciaacuterios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania

Assim sendo foi instalado no dia 11 de julho de 2014 em CaacuteceresMT um Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cida-dania (CEJUSC) por meio da Portaria 0062014-NPMCSC-PRES (MATO GROSSO 2014)

Os dados a seguir foram informados pela gestora do CE-JUSC do Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT por meio dos rela-toacuterios que satildeo encaminhados ao CNJ Assim seratildeo apresentados os dados a respeito das conciliaccedilotildees e mediaccedilotildees realizadas tatildeo somente neste Centro expondo ainda os nuacutemeros das audiecircncias que restaram frutiacuteferas

Insta esclarecer que os dados da quantidade de audiecircncias realizadas referem-se tanto agraves audiecircncias na fase preacute-processual quanto processual Outrossim os dados apresentados satildeo apenas das audiecircncias realizadas no CEJUSC E os acordos que satildeo forma-lizados no decorrer dos processos natildeo estatildeo contidos nestes dados mas somente os formalizados em audiecircncias realizadas no Centro

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Quadro 01 minus Nuacutemero de audiecircncias realizadas no CEJUSC durante 2014 ndash 2016

Fonte Mato Grosso (2014)

A partir dos dados apresentados nota-se que a populaccedilatildeo de CaacuteceresMT tem buscado realizar tentativas de acordos para resoluccedilatildeo de conflitos mesmo sendo a heterocomposiccedilatildeo no Bra-sil a forma mais difundida e aceita para a soluccedilatildeo de conflitos O graacutefico reforccedila a tese de que os meios de autocomposiccedilatildeo tambeacutem estatildeo aos poucos ganhando mais espaccedilo e sendo utilizados fren-te aos benefiacutecios que estes meios proporcionam como celeridade menor custo econocircmico e resoluccedilatildeo do conflito por meio da satis-faccedilatildeo da vontade de ambas as partes

A tabela a seguir apresenta o nuacutemero de acordos formali-zados dentre a quantidade de audiecircncias realizadas no CEJUSC de Caacuteceres segundo apresentado no quadro 01 acima

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Quadro 02 minus Nuacutemero de audiecircncias com acordos

Fonte Mato Grosso (2014)

Por meio da anaacutelise dos dados acima descritos pode-se perceber que entre os meses em que foi realizada a pesquisa julho de 2014 a agosto de 2016 num total de 26 meses foram realizadas 1954 (mil novecentos e cinquenta e quatro) audiecircncias de conci-liaccedilatildeo e mediaccedilatildeo no Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania da Comarca de CaacuteceresMT Desse total de audiecircncias realizadas 1679 (mil seiscentos e setenta e nove) restaram frutiacute-feras ou seja obtiveram acordo correspondendo a aproximada-mente 86 de acordos do total de audiecircncias

Desta forma nota-se que estes meios alternativos de solu-ccedilatildeo de controveacutersias estatildeo sendo de suma importacircncia para a so-ciedade da comarca de Caacuteceres bem como para o Poder Judiciaacuterio local uma vez que os resultados obtidos tecircm sido satisfatoacuterios

Tais resultados corroboram com o entendimento defendi-do por Alves (2015 on line) ldquoConclui-se que a conciliaccedilatildeo eacute sem-pre a melhor opccedilatildeo para as partes em litiacutegio desde que o instituto seja aplicado corretamente em consonacircncia com os seus objetivos e por terceiros realmente imparciais e capacitadosrdquo

Para Warat (apud MERLO 2016 on line) estes institutos

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satildeo muito importantes para a sociedade visto que

As praacuteticas sociais de mediaccedilatildeo se configuram num instrumento ao exerciacutecio da cidadania na medida em que educam facilitam e ajudam a produzir dife-renccedilas e a realizar tomadas de decisotildees sem a inter-venccedilatildeo de terceiros que decidem pelos afetados por um conflito[] O acordo decorrente de uma mediaccedilatildeo satisfaz em melhores condiccedilotildees as necessidades e os desejos das partes jaacute que estas podem reclamar o que ver-dadeiramente precisam e natildeo o que a lei lhes reco-nheceria

Nota-se que a conciliaccedilatildeo e a mediaccedilatildeo realizadas no Cen-tro Judiciaacuterio de CaacuteceresMT diante dos resultados apresentados tecircm sido realmente uma alternativa eficaz para resoluccedilatildeo de con-flitos na comarca uma vez que ao produzir acordos entre as par-tes as desavenccedilas satildeo solucionadas proporcionando a paz social Aleacutem do mais pelo fato de o acordo ser realizado a partir da von-tade das partes sem a intervenccedilatildeo de um terceiro como o magis-trado os meios autocompositivos diminuem e por consequecircncia os casos a serem solucionados diretamente pelo Poder Judiciaacuterio atenuando a crise de abarrotamento de processos judiciais

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A partir das pesquisas realizadas foi possiacutevel perceber que o Poder Judiciaacuterio passa por um momento criacutetico pois se encontra abarrotado de processos e sem nenhuma condiccedilatildeo de acolher cor-retamente toda esta demanda de modo que precisou implementar outras alternativas que ajudassem a alterar esse cenaacuterio

Buscando sair deste momento de crise alguns mecanis-mos foram implementados atraveacutes da Resoluccedilatildeo nordm 12510 do CNJ quais sejam a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Percebe-se entatildeo que estes institutos foram e satildeo de fundamental importacircncia para o Ju-diciaacuterio visto que ao mesmo tempo que diminuem a grande pro-

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cura direta ao Judiciaacuterio para a resoluccedilatildeo de conflitos tambeacutem se baseiam em meacutetodos autocompositivos por meio dos quais todas as decisotildees tomadas partem tatildeo somente das proacuteprias partes liti-gantes resultando em uma justiccedila em conformidade com as neces-sidades almejadas pelas partes

Com relaccedilatildeo aos pontos positivos e negativos desses ins-titutos nota-se que os aspectos positivos prevalecem sobre os ne-gativos haja vista que estes decorrem do pouco conhecimento da sociedade de que os meios consensuais de soluccedilatildeo de conflitos satildeo eficazes e gozam dos mesmos efeitos de uma decisatildeo judicial Esse desconhecimento da sociedade deve-se ao fato de o meio ju-dicial tradicional ser utilizado haacute muito mais tempo necessitando assim que o Poder Judiciaacuterio incentive e divulgue a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como meios eficazes corroborando por consequecircncia com a diminuiccedilatildeo da crise judiciaacuteria As universidades conjun-tamente com os acadecircmicos do curso de Direito tecircm contribuiacutedo nesse aspecto de divulgaccedilatildeo e incentivo da sociedade para soluccedilatildeo dos litiacutegios por meio da autocomposiccedilatildeo atraveacutes de projetos reali-zados em parceria com os Centros Judiciaacuterios

Os meios consensuais tecircm apresentado resultados satis-fatoacuterios perante o ordenamento juriacutedico brasileiro haja vista que tecircm sido efetivamente utilizados para a soluccedilatildeo de conflitos sendo de grande valia ao Poder Judiciaacuterio e agrave sociedade principalmente agrave Comarca de Caacuteceres ora analisada

Quanto agraves resoluccedilotildees de conflitos por meio do Centro Ju-diciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania de Caacuteceres pode-se observar que apesar da autocomposiccedilatildeo como meio de resoluccedilatildeo de conflitos ainda natildeo ser amplamente difundida como acontece com os meios heterocompositivos a Comarca de Caacuteceres vem ob-tendo resultados satisfatoacuterios e natildeo soacute pela quantidade de acordos mas tambeacutem em relaccedilatildeo agrave procura deste meio

Percebe-se assim que a autocomposiccedilatildeo por meio da me-diaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo vem apresentando aos juristas aspectos po-sitivos como a diminuiccedilatildeo do abarrotamento de processos bem como esses institutos tecircm cumprido com seus objetivos sendo

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realmente eficazes na resoluccedilatildeo de conflitos

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ALVES Gabriela Pellegrina A conciliaccedilatildeo como meio de efetivaccedilatildeo do princiacutepio do acesso agrave justiccedila Disponiacutevel em httpwwwconteudojuridicocombrartigoa-conciliacao-como-meio-de-efetivacao-do-principio-do-acesso-a-justica51986html Acesso em jun 2016

ARAUacuteJO Elizacircngela Unemat recebe precircmio do CNJ por incentivar conciliaccedilatildeo entre estudantes Disponiacutevel em httpwwwcnjjusbrnoticiascnj79617-unemat-recebe-premio-do-cnj-por-incentivar-conciliacao-entre-estudantes Acesso em jan 2017

BRASIL Conselho Nacional de Justiccedila 2015 Guia de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo judicial orientaccedilatildeo para instalaccedilatildeo de CEJUSC Brasiacutelia Conselho Nacional de Justiccedila

______ Conselho Nacional de Justiccedila Resoluccedilatildeo n 125 29 de novembro de 2010 Dispotildee sobre a poliacutetica judiciaacuteria nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no acircmbito do poder judiciaacuterio e daacute outras providecircncias Disponiacutevel em httpwwwcnjjusbrbusca-atos-admdocumento=2579 Acesso em set 2016

DIDIER JR Fredie Curso de direito processual civil introduccedilatildeo ao direito processual civil parte geral e processo de conhecimento 17 ed Salvador Jus Podivm 2015

GARBO Maria Carolina Silva Mediaccedilatildeo familiar como alternativa agrave soluccedilatildeo de conflitos familiares resultantes de separaccedilatildeo eou divoacutercio Disponiacutevel em httpwwwambito-juridicocombrsiten_link=revista_artigos_leituraampartigo_id=15704amprevista_caderno=14 Acesso em set 2016

GESTEIRA Wander Joseacute Barroso Provaacuteveis causas da morosidade da justiccedila brasileira Disponiacutevel em httpswwwportaleducacaocombrdireitoartigos56733provaveis-causas-da-morosidade-da-justica-brasileira Acesso em dez 2016

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GONCcedilALVES Amanda Passos A mediaccedilatildeo como meio de resoluccedilatildeo de conflitos familiares Rio Grande do Sul Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul - PUCRS 2015

MERLO Ana Karina Franccedila Mediaccedilatildeo conciliaccedilatildeo e celeridade processual Disponiacutevel em lthttpwwwambito-juridicocombrsiteindexphpn_link=revista_artigos_leituraamp artigo_id=12349amprevista_caderno=21gt Acesso em mai de 2016

NEVES Daniel Amorim Assumpccedilatildeo Novo coacutedigo de processo civil ndash Leis 131052015 e 132562016 3 ed Satildeo Paulo Meacutetodo 2016

PARKINSON Lisa Mediaccedilatildeo familiar 2 ed Belo Horizonte Del Rey 2016

SANTOS Marcos Andreacute Couto O direito como meio de pacificaccedilatildeo social em busca do equiliacutebrio das relaccedilotildees sociais Disponiacutevel em httpsjuscombrartigos4732o-direito-como-meio-de-pacificacao-socialgt Acesso em mai 2016

TOALDO Adriane Medianeira OLIVEIRA Fernanda Rech de Mediaccedilatildeo familiar novo desafio do direito de famiacutelia contemporacircneo Disponiacutevel em httpwwwambitojuridicocombrsi ten_l ink=revis ta_ar t igos_le i turaampart igo_id=10860amprevista_cadero=21gt Acesso em set 2016

SUMAacuteRIO

APRESENTACcedilAtildeO2Danielle Cevallos SoaresEvely Bocardi de Miranda SaldanhaMurilo Oliveira Souza

ldquoWASH OUTrdquo FRENTE AO ORDENAMENTO JURIacuteDICO BRA-SILEIRO7Ana Flaacutevia Trevizan

A FRONTEIRA JURIacuteDICO-POLIacuteTICA ENTRE OS SISTEMAS JU-RIacuteDICOS DA COMMON LAW E DA CIVIL LAW E SEUS IMPAC-TOS NO DIREITO PAacuteTRIO27Ana Paula Soares de Souza e Danilo Pires Atala

VISIBILIZANDO A VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO PSICOLOacuteGICA COMO LESAtildeO Agrave SAUacuteDE DA VIacuteTIMA Revisitando o artigo 129 do Coacutedigo de Processo Penal brasileiro agrave luz da Lei Maria da Pe-nha49Artenira da Silva e SilvaJoseacute Maacutercio Maia Alves CIDADE SEM FRONTEIRAS FRONTEIRAS SEM CIDA-DES77Daniella S Dias

IMPACTO AMBIENTAL TRANSFRONTEIRICcedilO NA PERSPEC-TIVA DO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL97Dimas Simotildees Franco NetoOseias Amaral da Silva

JULGAMENTO INDIacuteGENA DE CONFLITOS INTERNOS RECO-NHECIDO PELO DIREITO ESTATAL NA PERSPECTIVA DO PLURALISMO JURIacuteDICO117Eliel Alves Camerini SilvaLuciana Stephani Silva Iocca

A TEORIA DO PREJUIacuteZO NAS NULIDADES RELATIVAS O COROLAacuteRIO DA DISCRICIONARIEDADE NO PROCESSO PE-NAL137Evandro Monezi BenevidesFelipe Teles Tourounoglou

CAacuteCERES E O DEacuteFICIT DE MORADIAS O CASO DA OCUPA-CcedilAtildeO DO BAIRRO EMPA 155Evely Bocardi de Miranda Saldanha Richard Rodrigues da Silva

PROVA NO HOMICIacuteDIO SEM CADAacuteVER169Gabrielle Vidrago de Souza Machado Solange Teresinha Carvalho Pissolato

OS MEIOS CONSENSUAIS DE SOLUCcedilAtildeO DE CONFLITOS NA COMARCA DE CAacuteCERESMT191Sandrely Ugulino CardosoGeovanna Gabriela Sandri Andreacute Trapani Costa Possignolo

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ldquoWASH OUTrdquo FRENTE AO ORDENAMENTO JURIacuteDICO BRASILEIRO

Ana Flaacutevia Trevizan1

RESUMO O presente artigo tem por escopo apresentar alguns apontamentos baacutesicos no tocante ao ldquowash outrdquo e sua incidecircncia nos contratos agraacuterios e observar de que maneira o direito paacutetrio tem se portado perante tal instituto Ressalta-se a estima em realizar esse paralelo por se tratar de algo que foi importado e por estar se difundindo entre os contratos que versam sobre commodities deveraacute atender aos princiacutepios e normas internamente estabelecidos Por ser inovador o pretenso assunto ocasionaraacute grandes debates nos quais seratildeo impresciacutendiveis as construccedilotildees doutrinaacuterias e jursiprudecircnciais sobre a mateacuteria uma vez que os impactos advindos do ldquowash outrdquo satildeo de excessiva monta Passando pela escassa jurisprudecircncia interna ao referido assunto seratildeo dadas delimitaccedilotildees e uma roupagem ante o ordenamento juriacutedico nacional

PALAVRAS-CHAVE ldquoWash outrdquo Contrato agraacuterio Commodities Direito brasileiro

ABSTRACT The purpose of this article is to present some basic notes on the ldquowash outrdquo and its incidence on agrarian contracts and to observe how the countryrsquos law has behaved before such an institute Emphasis is placed on making this parallel because it is something that has been imported and because it is spreading among contracts that deal with commodities should comply with the principles and standards internally established Being innovative the alleged subject will cause great debates in which the doctrinal and jursiprudecircncia constructions on the matter will be essential since the impacts arising from the ldquowash outrdquo are of excessive amount Turning to the scarce internal jurisprudence on the subject will be given delimitations and a drapery before the national legal order1 Mestranda em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Professora do Departmento de Direito da UFMT Bolsista CAPES-FAPEMAT E-mail aftre-vizangmailcom

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KEYWORDS ldquoWash outrdquo Agrarian contract Commodities Brazilian law

INTRODUCcedilAtildeO

Com a abertura do mercado interno principalmente no fi-nal da deacutecada de 80 o Brasil comeccedilou a dar maior notoriedade agrave exportaccedilatildeo comercial Algumas medidas como a diminuiccedilatildeo das aliacutequotas sobre a importaccedilatildeo e a extirpaccedilatildeo da maioria das restri-ccedilotildees natildeo-tarifaacuterias colocaram em ascensatildeo o mercado exportador

Nessa conjuntura globalizada merecem papel de desta-que as tradings companies que em simples linhas satildeo empresas comerciais que promovem a exportaccedilatildeo por meio da compra de produtos circulantes no mercado interno Seu marco legislativo se deu em novembro de 1972 com o advento do Decreto-Lei nordm 1248 futuramente inovado pelo Decreto nordm 45432002 O primeiro tu-tela os tributos incidentes em relaccedilatildeo aos produtos exportados e o uacuteltimo disciplina requisitos essenciais agraves tradings

Em virtude da dinacircmica presente no mercado internacio-nal torna-se comum a estipulaccedilatildeo de claacuteusulas em contratos inter-nacionais firmados entre as tradings e o paiacutes para o qual se exporta que impotildeem multas envolvendo alta quantia monetaacuteria no caso de descumprimento Um exemplo eacute a sobre-estadia a qual se refere ao pagamento feito pela restituiccedilatildeo atrasada do contecirciner do titu-lar mas que na maioria das vezes recai sobre as tradings

Todavia as tradings visando amortizar os gastos advindos de multas importaram para o direito paacutetrio um instituto chamado ldquowash outrdquo que objetiva a indenizaccedilatildeo de excessivo valor mone-taacuterio no caso de descumprimento da empresa ou pessoa fiacutesica que vende produtos agriacutecolas agraves tradings

Imperiosa eacute a anaacutelise do ldquowash outrdquo sobre o enfoque do direito brasileiro levando em consideraccedilatildeo os princiacutepios e normas tanto do direito civil como do direito constitucional Eis a finalida-de deste artigo

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Apontamentos baacutesicos sobre as Tradings Companies

As Tradings Companies em atividades no Brasil des-de 1970 ganharam destaque no cenaacuterio nacional no iniacutecio da deacutecada de 90 Foi em 1990 com o estabelecimento da Poliacutetica Industrial e de Comeacutercio Exterior que o Brasil fortalece suas relaccedilotildees mercantis com paiacuteses exteriores

Nas palavras de Anna Carolina Euclides Santos Bruno Henrique Felipe Gomes e Juliana Lima Credendio (2007 p 29)

Com a abertura da economia brasileira no governo do presidente Fernando Collor de Melo as empre-sas de grande porte sentiram-se motivadas a desen-volver suas atividades no mercado externo Com a elevada demanda essas empresas natildeo conseguiam atender agraves necessidades do mercado e iniciaram parcerias com as tradings pois perceberam as van-tagens e benefiacutecios de sua utilizaccedilatildeo ou ateacute mesmo criando a sua proacutepria Trading Company

Eacute nesse mesmo periacuteodo que as tradings ganham destaque e no primeiro momento optam pela comercializaccedilatildeo de commo-dities como por exemplo o cafeacute que na atualidade cede espaccedilo agrave soja

A Receita Federal do Brasil na Soluccedilatildeo de Consulta nordm 56 de 16 de junho de 2011 publicada no Diaacuterio Oficial da Uniatildeo de 17 de junho de 2011 definiu o instituto Trading Company como uma empresa comercial exportadora constituiacuteda sob a forma de socie-dade por accedilotildees dentre outros requisitos miacutenimos previstos no De-creto-Lei nordm 124872 (BRASIL 2009) Ou seja trading company eacute uma empresa comercial que realiza atividades como exportaccedilatildeo importaccedilatildeo e agenciamento das operaccedilotildees de compra e venda de mercadorias

O Decreto em voga veio para regulamentar alguns pon-tos especiacuteficos sobre a aquisiccedilatildeo de produtos no mercado interno visando agrave exportaccedilatildeo aleacutem de estatuir requisitos miacutenimos para a instituiccedilatildeo das tradings no Brasil

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De acordo com Pereira e Boavista (2010 p74)

Deve-se ressaltar que antes do advento dessa legis-laccedilatildeo jaacute existiam empresas comerciais exportadoras Logo a contribuiccedilatildeo da legislaccedilatildeo foi estabelecer uma categoria especiacutefica de comerciais exportado-ras ndash as que se enquadrassem no disposto no art 2ordm do referido Decreto-lei Este determinava exigecircncias quanto ao capital miacutenimo e agrave organizaccedilatildeo societaacuteria das tradings que pretendiam i) minimizar a proba-bilidade de as firmas natildeo honrarem seus compro-missos ii) influenciar esse mercado com a visatildeo de que a escala miacutenima eficiente para essas empresas deveria ser mais elevada (em linha com a experiecircn-cia japonesa) e iii) facilitar a fiscalizaccedilatildeo

Daiacute decorre a distinccedilatildeo entre trading company e comercial exportadora A primeira segue os ditames prescritos no art 2ordm do Decreto Lei nordm 1248 de 1979 quais sejam compor uma sociedade de accedilotildees accedilotildees essas nominativas e com direito a voto possuir ca-pital miacutenimo estabelecido pelo Conselho Monetaacuterio Federal e natildeo constar puniccedilotildees em decisatildeo administrativa final por infraccedilotildees relativas ao comeacutercio exterior

Hodiernamente a diferenciaccedilatildeo entre os dois citados insti-tutos se daacute no atinente ao porte em que as tradings desempenham maiores operaccedilotildees que as comerciais exportadoras

Insta ressaltar que Pereira e Boavista (Idem p 72-73) nota-ram essa mudanccedila Conforme os autores

[] os termos trading company e comercial exportado-ra tecircm no Brasil uma dimensatildeo conceitual maior do que quando foram estabelecidos Ou seja natildeo cabe mais a associaccedilatildeo do termo trading apenas agrave expor-taccedilatildeo indireta pois essas empresas atuam tanto na compra de mercadorias para exportaccedilatildeo quanto no auxiacutelio a outras empresas que pretendem exportar diretamente ndash oferecendo uma gama de serviccedilos de exportaccedilatildeo que ultrapassa em muito a simples ati-vidade de intermediaccedilatildeo comercial caracterizando-as como facilitadoras ou mesmo consultoras de

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exportaccedilatildeo Os serviccedilos oferecidos atualmente pelas tradings satildeo - Intermediaccedilatildeo comercial - Prospecccedilatildeo comercial estudos de mercado iden-tificaccedilatildeo de clientes canais de comercializaccedilatildeo etc - Accedilotildees de promoccedilatildeo comercial feiras material pro-mocional propaganda encontros de negoacutecios etc - Suporte logiacutestico preparaccedilatildeo de documentaccedilatildeo contrataccedilatildeo de transporte domeacutestico e internacional armazenagem serviccedilos alfandegaacuterios etc - Apoio agrave organizaccedilatildeo da produccedilatildeo e agrave adaptaccedilatildeo de produtos (regulamentos e normas teacutecnicas design etiquetagem embalagem etc) - Serviccedilos financeiros gerenciamento de risco e se-guros estruturaccedilatildeo de operaccedilatildeo de financiamento pagamento a fornecedores etc

Notam-se as grandes estruturas envolvendo as tradings ateacute mesmo pelo fato de a maior parte dessas manter relaccedilotildees dire-tas com paiacuteses de ilibada conduta no tocante ao mercado externo para o ecircxito de suas atividades

Natildeo se deve olvidar que ao se relacionar com os outros paiacuteses os contratos firmados com as tradings devem ser estipula-dos conforme a legislaccedilatildeo do paiacutes cliente Paiacutes cliente entende-se o Estado destinataacuterio da exportaccedilatildeo o qual fixaraacute o contrato res-peitando as regras de seu ordenamento juriacutedico A tiacutetulo de exem-plificaccedilatildeo se uma tranding nacional firmar contrato de exportaccedilatildeo com a China as claacuteusulas constantes nesse instrumento seguiratildeo as normativas do direito chinecircs Logo a depender do Estado clien-te as regras seratildeo modificadas

Aleacutem de se relacionar com outros Estados as tradings ne-gociam com os fornecedores internos de commodities que podem ser empresas ou pessoas fiacutesicas por meio de contratos que deveratildeo obedecer ao ordenamento paacutetrio

Eacute justamente frente aos fornecedores que as tradings vecircm importando a claacuteusula objeto de estudo e aplicando-as sobre os contratos firmados em domiacutenio nacional

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APLICACcedilAtildeO DO ldquoWASH OUTrdquo NO BRASIL

Internamente as tradings e os fornecedores de produtos agriacutecolas estabelecem contratos em sua maioria de compra e ven-da nos quais os fornecedores entregam na data aprazada a quan-tidade acordada do produto E para tanto em algum grande porto do Brasil jaacute existe um navio para exportar tais produtos

Por se tratar de relaccedilotildees comerciais de vultosas quantias os referidos instrumentos preveem claacuteusulas penalizadoras graves nos casos de inadimplemento contratual Eacute visando ao cumpri-mento total do acordado que se firma um ajuste entre as tradings e os paiacuteses-clientes no qual se estipula uma multa de elevado valor para cada dia que o mesmo navio ficar agrave espera da mercadoria Eacute o chamado demurrage ou sobre-estadia que segundo Gabardo (2011 p 2)

Nos contratos de transporte mariacutetimo de cargas o transportador se compromete mediante contrapres-taccedilatildeo do frete a transportar a mercadoria consigna-da pelo embarcador ao destino acordado Para que esta transaccedilatildeo possa ser efetuada normalmente o transportador concede ao usuaacuterio um determinado prazo de dias livres (estadia) para a realizaccedilatildeo das operaccedilotildees de carga e descarga das mercadorias Contudo havendo excesso ao periacuteodo estipulado tanto na utilizaccedilatildeo do navio quanto das unidades de cargas (contecirciner) o embarcador estaraacute incorrendo em sobre-estadia sobredemora ou demurrage como eacute internacionalmente conhecida

Batista (2011 p 2) ressalta que ldquopor dia extra cada navio gera entre US$ 15 mil e US$ 30 mil de penalidade ao embarcador ou seja agraves tradings exportadoras de commoditiesrdquo Logo a cada dia de atraso no embarque das commodities as tradings tecircm que arcar com essa excessiva penalidade

Nota-se a importacircncia dada ao princiacutepio do pacta sunt ser-vanda Por se tratar de comeacutercio internacional este princiacutepio deve ser respeitado para que a credibilidade e confiabilidade do paiacutes

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bem como das tradings natildeo sejam questionadasEntretanto visando minimizar as perdas eventualmente

tidas com a sobre-estadia as tradings estabelecem uma disposiccedilatildeo contratual aos produtores nacionais e por meio dela comerciali-zam no caso de inadimplemento Eacute a figura conhecida como ldquowash outrdquo termo derivado da liacutengua inglesa que significa ldquodesgastarrdquo

Salienta-se sua novidade no ordenamento juriacutedico interno fato que impossibilita maiores pesquisas e embasamento teoacutericos a seu respeito Primeiramente analisou-se o ordenamento da Aus-traacutelia paiacutes que possui o GTA (About Grain Trade Australia 2014) que significa Comeacutercio de Gratildeos da Austraacutelia o qual aleacutem de ou-tras funccedilotildees desempenha a arbitragem como forma de lidar com os conflitos derivados dos contratos agriacutecolas

O regramento estabelecido pelo GTA natildeo define o ldquowash outrdquo que usualmente eacute utilizado pelas induacutestrias nos casos de exe-cuccedilatildeo contratual em que uma das partes natildeo consegue adimplir suas obrigaccedilotildees Em natildeo havendo um acordo entre as partes no tocante ao valor do ldquowash outrdquo as induacutestrias podem socorrer do Serviccedilo de Resoluccedilatildeo de Disputas (Idem)

O ldquowash outrdquo em sua grande maioria implica o paga-mento de uma parte para outra havendo manifestaccedilatildeo de vontade de ambas Desse modo qualquer das partes entrevendo que natildeo conseguiraacute executar sua obrigaccedilatildeo pode utilizar-se do instituto em comento ateacute mesmo como forma de se resguardar quanto agraves osci-laccedilotildees de mercado (GTA 2011)

Nos casos de quebra de safra ou eminente quebra de safra os vendedores podem escolher pelo ldquowash outrdquo ou buscar gratildeos em substituiccedilatildeo no mercado Dessa forma o ldquowash outrdquo seraacute cal-culado pela diferenccedila entre o preccedilo fixado no contrato e o seu valor no comeacutercio no momento em que for estipulado podendo a ele agregar alguns outros encargos administrativos (Idem)

No Brasil o tema em comento ganhou outra roupagem Via de regra vem embutida nos contratos de compra e venda Pode tambeacutem ser objeto de um contrato autocircnomo habitualmente chamado de ldquoacordo de wash outrdquo Ambos satildeo constituiacutedos de ma-

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neira unilateral pelas tradings Assim como na Austraacutelia o ldquowash out brasileirordquo tem por

escopo a indenizaccedilatildeo sobre a valorizaccedilatildeo das commodities no mer-cado ou seja a diferenccedila entre o preccedilo no momento da celebra-ccedilatildeo do contrato e no instante em que o mesmo for descumprido e aquele comprador tiver que procurar no mercado do dia o produto que deseja

Isso se daacute quando os contratos agriacutecolas de compra e ven-da desses produtos satildeo ratificados meses antes da sua execuccedilatildeo A tiacutetulo de exemplo se o negoacutecio juriacutedico tiver por objeto a safra de soja eacute celebrado no dia em que o custo da saca de soja eacute de R$ 6000 (sessenta reais) o contrato teraacute por base esse valor poreacutem a execuccedilatildeo do contrato se daraacute alguns meses apoacutes Se na data apra-zada o contrato natildeo for cumprido e o valor da soja agrave eacutepoca for de R$ 7000 (setenta reais) o ldquowash outrdquo consistiraacute em R$ 1000 (dez reais) de diferenccedila por cada saca de soja

Poreacutem no ordenamento juriacutedico brasileiro o ldquowash outrdquo possui diferentes caracteriacutesticas Conforme anteriormente dito em territoacuterio nacional ele natildeo eacute estipulado conforme a vontade dos contratantes e sim de acordo com a conveniecircncia das tradings Ou-tro atributo se daacute ao fato de nos contratos originaacuterios envolvendo aquisiccedilatildeo de commodities ter presente alguma claacuteusula estipulando indenizaccedilotildees no caso de descumprimento da obrigaccedilatildeo ateacute mesmo porque no sistema paacutetrio vigente haacute mecanismo para tais casos Desse modo estabelecer o ldquowash outrdquo seria aplicar duplamente a penalizaccedilatildeo em virtude do inadimplemento

A propriedade que atinge diretamente o agricultor eacute o va-lor fixado a tiacutetulo de ldquowash outrdquo Ao inveacutes de seguir os paracircmetros convencionais do referido instituto estrangeiro e de o quantum ser aferido em razatildeo da diferenccedila existente entre o preccedilo da commodi-ty no momento da contrataccedilatildeo e no instante da inadimplecircncia no Brasil esse valor jaacute vem previamente ajustado de forma unilateral pelas tradings

Na grande maioria das vezes o custo do ldquowash outrdquo eacute tatildeo excessivo que pode atingir a integralidade do valor objeto do

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contrato Evidentemente natildeo se eacute averiguada a diferenccedila a qual o ldquowash outrdquo propotildee

Conceitualmente ldquowash outrdquo eacute uma claacuteusula existente nos contratos agraacuterios que estipulam uma indenizaccedilatildeo excessivamente onerosa para o contraente que natildeo cumprir suas obrigaccedilotildees in-denizaccedilatildeo essa que teoricamente consiste na diferenccedila valorativa das commodities existentes entre o dia da ratificaccedilatildeo do contrato e o da inadimplecircncia por conta de oscilaccedilotildees do mercado Eacute justa-mente nesse contexto que aleacutem de ferir uma seacuterie de normativas paacutetrias fere frontalmente os princiacutepios aqui em vigor dentre os quais alguns seratildeo adiante ponderados

Princiacutepios aplicaacuteveis ao ldquowash outrdquo

Ao adentrar o ordenamento paacutetrio o ldquowash outrdquo deveraacute obedecer aos princiacutepios aqui vigentes dentre eles os infratranscri-tos Como marca inicial tem-se a boa-feacute como sendo o princiacutepio fundamental das relaccedilotildees entre os seres humanos inclusive nas mediaccedilotildees contratuais

Para Vilaccedila (1995 p 98)

O princiacutepio da boa-feacute deve ser antes de tudo men-cionado pois ele assegura o acolhimento do que eacute liacutecito e a repulsa ao iliacutecito A contrataccedilatildeo de boa-feacute eacute a essecircncia do proacuteprio en-tendimento entre os homens e a presenccedila da eacutetica nos contratos Sim porque a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da boa-feacute traz para a ordem juriacutedica um elemento de Direito Natural que passa a integrar a norma de direito

Tal vetor permeia o ordenamento juriacutedico por inteiro Eacute interessante destacar o que o Coacutedigo Civil Portuguecircs assevera so-bre o assunto

Artigo 227(Culpa na formaccedilatildeo dos contratos)Quem negocia com outrem para conclusatildeo de um

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contrato deve tanto nos preliminares como na for-maccedilatildeo dele proceder segundo as regras da boa feacute sob pena de responder pelos danos que culposamen-te causar agrave outra parte (Portugal Lei 822014)

Nota-se que ao estipular o ldquowash outrdquo nos contratos haacute uma afronta direta ao princiacutepio em voga pois o contratante ao estipular a tal claacuteusula ao menos pode aferir se de fato haveraacute um efetivo dano na data aprazada

Por atuar como uma espeacutecie de indenizaccedilatildeo aos danos fu-turos e constituir uma claacuteusula com valor excessivo o ldquowash outrdquo evidentemente viola o princiacutepio da boa feacute O princiacutepio de liberda-de contratual se presta a defender aquela parte que nas relaccedilotildees contratuais natildeo possui livre-arbiacutetrio para dispor sobre seus inte-resses ficando atrelada agrave vontade da parte adversa

Isso ocorre por haver na relaccedilatildeo contratual uma parte mais vulneraacutevel que a outra a qual acaba por aceitar as imposiccedilotildees para natildeo perder o negoacutecio No caso em voga pelo fato de os produtores de commodities serem a parte mais fraca pois dependem direta-mente das atividades das tradings para exportaccedilatildeo surge um qua-se dever em aceitar os termos contratualmente ordenados Com isso lesotildees satildeo ocasionadas

Nesta senda Vilaccedila (1995 ano p 99-100) preceitua

Realizado o pacto sob essa pressatildeo a lesatildeo ocorre sendo difiacutecil e custosa a reparaccedilatildeo para repor certos valores destruiacutedos Se dermos forccedila demais agrave liberdade contratual fi-cando o homem livre na sociedade sem condiccedilotildees de discutir razoavelmente sobre suas convenccedilotildees seraacute ele o mesmo que um paacutessaro libertado de um a gaiola ao faacutecil alcance de um gaviatildeo pronto para atacaacute-lo Pouco duraria a liberdade daquele

Deste modo embora haja liberdade nos contratos certas limitaccedilotildees devem ser imanentes ao princiacutepio em comento em res-peito agrave sistemaacutetica do direito

Outro ponto que merece destaque eacute o princiacutepio da funccedilatildeo

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social dos contratos bem esclarecido por Vilaccedila (2011 p 100)

Por esse princiacutepio os contratos desempenham um relevante papel na sociedade nacional e internacio-nalmente considerada Pelos contratos os homens devem compreender-se e se respeitar para que encontrem um meio de enten-dimento e de negociaccedilatildeo sadia de seus interesses e natildeo um meio de opressatildeo

Assim sendo a real funccedilatildeo desempenhada pelo contrato de compra e venda entre produtores e tradings consiste no justo preccedilo da aquisiccedilatildeo das commodities e a entrega da mercadoria con-forme o convencionado pautando-se pela boa-feacute Menccedilotildees contra-tuais que contrariem esse postulado certamente causaratildeo danos a algumas das partes

Pela comutatividade princiacutepio imanente ao direito tem-se que as prestaccedilotildees e contraprestaccedilotildees devem ser equilibradas sendo impostas aos contratantes para terem ciecircncia desde o iniacutecio do negoacutecio juriacutedico de seus lucros e perdas

Um dos principais postulados estaacute estampado no princiacute-pio Rebus sic stantibus que pode ser traduzido pela expressatildeo ldquoas coisas estatildeo assimrdquo No direito moderno eacute conhecido como teoria da imprevisatildeo tendo por escopo relativizar o princiacutepio do pacta sunt servanda em relaccedilatildeo aos fatos que se alterarem notadamente no transcorrer do contrato

Para tanto nos moldes de Vilaccedila (2011 p 101-102)

Todavia essa claacuteusula considerada pela Doutrina e pela Jurisprudecircncia brasileiras como existente em todos os contratos ainda que natildeo expressamente contratada apresenta-se com trecircs pressupostos fun-damentais autorizadores de sua aplicaccedilatildeoDeve ocorrer primeiramente uma alteraccedilatildeo radical do contrato em razatildeo de circunstacircncias imprevistas e imprevisiacuteveis (aacutelea extraordinaacuteria) []Por outro lado eacute preciso que exista enriquecimento prejuiacutezo inesperado e injusto por um dos contratan-tes

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O terceiro pressuposto eacute a onerosidade excessiva que sofre um dos contratantes tornando-se para ele insuportaacutevel a execuccedilatildeo contratual Com o visto torna-se impossiacutevel a aplicaccedilatildeo da claacuteu-sula ldquorebus sic stantibusrdquo ante a natildeo-ocorrecircncia de um desses trecircs pressupostos

Diante do ldquowash outrdquo eacute evidente que por se tratar de pro-duto agriacutecola depende diretamente de vaacuterios fatores naturais os quais o ser humano natildeo pode influir os riscos da atividade satildeo maiores podendo ocorrer uma modificaccedilatildeo ao longo da vigecircncia contratual que impossibilita o cumprimento do mesmo Entra em cena o princiacutepio supracitado por nortear o operador do direito

Por fim destaca-se o princiacutepio da onerosidade excessiva no qual um dos contratantes estipula uma obrigaccedilatildeo exagerada ao outro

Aplicando-se ao ldquowash outrdquo os produtores ao negocia-rem com as tradings ou ateacute mesmo com outras empresas ficam res-ponsabilizados por no caso de inadimplecircncia ainda que parcial a indenizar uma grandiosa quantia monetaacuteria Tal fato causa seacuterias lesotildees aos produtores que natildeo possuem condiccedilotildees de arcar com esta claacuteusula abusiva

Vilaccedila (2011 p103) sabiamente leciona

Ao Direito repugna a atuaccedilatildeo iliacutecita e mesmo o en-riquecimento indevido pois a lesatildeo estaacute presente neles O fenocircmeno da lesatildeo no direito contratual moder-no deve ser encarado objetivamente Causado o prejuiacutezo ocorrendo o desequiliacutebrio nas prestaccedilotildees deve ser o reestabelecimento da igualdade entre os contratantes Isto porque o agravamento unilateral da prestaccedilatildeo de uma das partes contratantes torna excessivamente onerosa sua obrigaccedilatildeo e via de con-sequecircncia insuportaacutevel o cumprimento desta

Desse modo sendo o ldquowash outrdquo onerosamente excessivo acaba por violar natildeo soacute o princiacutepio em voga como todos os ante-

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riormente aduzidos

Implicaccedilotildees do ldquowash outrdquo no direito paacutetrio

Por ter adentrado o direito brasileiro o ldquowash outrdquo deve ser guiado pelos preceitos estatuiacutedos na Magna Carta e legislaccedilotildees infraconstitucionais

E ainda que a Secretaria de Comeacutercio Exterior tenha pu-blicado a Portaria nordm 15 de 17 de novembro de 2004 disciplinando alguns pontos no tocante ao ldquowash outrdquo natildeo houve eficaacutecia e apro-veitamento algum para o ordenamento juriacutedico brasileiro embora pudesse ser uacutetil uma vez que preleciona o seguinte

O SECRETAacuteRIO DE COMEacuteRCIO EXTERIOR DO MINISTEacuteRIO DO DESENVOLVIMENTO INDUacuteS-TRIA E COMEacuteRCIO EXTERIOR no exerciacutecio de suas atribuiccedilotildees com fundamento no art 15 do Ane-xo I ao Decreto nordm 4632 de 21 de marccedilo de 2003 vi-sando consolidar as disposiccedilotildees regulamentares das operaccedilotildees de exportaccedilatildeo resolvesect 8ordm Poderatildeo ser acolhidos pedidos de operaccedilotildees de recompra (wash out) desde que atendam aos seguin-tes requisitos preliminaresI - ganho cambial (preccediloprecircmio da recompra obri-gatoriamente inferior ao da venda) em cada RV a ser definido de acordo com as condiccedilotildees de mercado na eacutepoca do pedido de recompraII - ser submetido a exame na data de sua negocia-ccedilatildeo acompanhado de documentaccedilatildeo pertinenteIII - a empresa deveraacute comprovar o efetivo ingres-so das divisas no prazo de dez dias uacuteteis contados a partir da data da negociaccedilatildeo mediante apresentaccedilatildeo do contrato de cacircmbio relativo agrave operaccedilatildeo de recom-pra devidamente liquidado (BRASIL 2004)

Depreende-se da assertiva acima que foram estabelecidos alguns criteacuterios miacutenimos para aplicaccedilatildeo do ldquowash outrdquo elementos esses que poderiam servir de paracircmetros para delinear os contra-tos uma vez que traz preceitos importantes inclusive de acordo com o inciso I ao prever o pagamento do valor agrave eacutepoca da recom-pra

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Haacute tambeacutem o informe da Associaccedilatildeo de Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (APROSOJA) que conceitua o tema em voga

22 Claacuteusula de indenizaccedilatildeo (wash-out) Essa claacuteu-sula normalmente prevecirc a obrigaccedilatildeo de que aquele que der causa agrave rescisatildeo do contrato deve pagar agrave outra o valor do produto adquirido no dia da liqui-daccedilatildeo do contrato (no dia da entrega do produto) e normalmente possui a seguinte descriccedilatildeo a ser ve-rificada contrato por contrato ldquo[] sobre o produto natildeo entregue o produtor deveraacute arcar com perdas e danos que fica estipulada em 100 do preccedilo do pro-duto comercializado ao preccedilo do produto na data de entrega []rdquo (2016 p 3)

Contudo natildeo se mostra suficiente a conceituaccedilatildeo acima aleacutem de deixar em completo desequiliacutebrio as partes contratantes ao previamente fixar multa de 100 sobre o descumprimento con-tratual

O ordenamento juriacutedico brasileiro possui todas as ferra-mentas necessaacuterias para que a parte que descumprir o contrato arque com os prejuiacutezos causados Sendo assim o ldquowash outrdquo tal qual estaacute sendo aplicado no Brasil natildeo possui embasamento legal por desrespeitar aleacutem dos princiacutepios supramencionados as regras do Coacutedigo Civil Estando previsto em uma claacuteusula resta configu-rada sua abusividade sustentada pela onerosidade excessiva de que se reveste correspondendo a uma consideraacutevel porcentagem do valor da obrigaccedilatildeo originaacuteria

Considerando um negoacutecio juriacutedico o ldquowash outrdquo pode ser analisado sob a tricotomia deste No plano da existecircncia de fato os requisitos estatildeo preenchidos Na validade a manifestaccedilatildeo da vontade deve ser livre e como discorrido anteriormente pode ocorrer de o ldquowash outrdquo ser uma claacuteusula praticamente imposta para celebraccedilatildeo do acordo Nesse caso viciado estaria conduzindo agrave nulidade da claacuteusula

Atinente agrave eficaacutecia certamente o ldquowash outrdquo poderaacute surtir efeitos juriacutedicos Neste contexto se insere o papel acadecircmico vi-

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sando auxiliar a jurisprudecircncia na dinacircmica do tema por ser um assunto novo e complexo Como exemplo cito o Acoacuterdatildeo 1268606-7 do estado do Paranaacute no qual a douta Relatora entendeu pela legalidade da claacuteusula ldquowash outrdquo por natildeo julgaacute-la abusiva (BRA-SIL Acoacuterdatildeo na Apelaccedilatildeo 1268606-7)

Nesta senda papel de destaque possuem os trabalhos aca-decircmicos por fomentar o assunto e auxiliar os operadores do di-reito na compreensatildeo do tema em comento e por mais intrincado que seja necessaacuteria eacute essa construccedilatildeo pela real tendecircncia do ldquowash outrdquo ser mais utilizado acarretando disputas judiciais sobre sua incidecircncia

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Por ser algo novo no cenaacuterio brasileiro a escassez de ma-terial foi um grande obstaacuteculo na elaboraccedilatildeo do presente trabalho que se fundou basicamente em publicaccedilotildees dos primeiros advoga-dos a terem contato com o tema em anaacutelise

Enfatizaram-se os papeacuteis das tradings nesse contexto res-saltando-se as forccedilas de tais empresas nas relaccedilotildees comerciais e a influecircncia que as mesmas possuem ao estipular os termos contra-tuais nos quais os produtores acabam ratificando para natildeo perder o negoacutecio

Eacute justamente nesse contrato que se insere o ldquowash outrdquo uma claacuteusula que originariamente visa restituir a valorizaccedilatildeo da commodity entre o periacuteodo em que foi estabelecido o contrato e o momento em que o mesmo foi inadimplido Meses se passam en-tre esses fatos e havendo aumento de preccedilo das commodities eacute o ldquowash outrdquo que iraacute restauraacute-lo

No Brasil foram dados agrave referida claacuteusula contornos di-versos dos originalmente estabelecidos nos paiacuteses estrangeiros conforme o acima exposto Aqui o ldquowash outrdquo eacute uma claacuteusula por vezes abusiva que visa agrave reparaccedilatildeo de possiacutevel dano na maioria das vezes alcanccedilando valores exorbitantes

Reiterada estaacute se tornando tal praacutetica que eacute questatildeo de

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tempo ateacute chegar ao judiciaacuterio oacutergatildeo que deveraacute ter embasamento teoacuterico para realizar um julgamento de forma equacircnime visando compreender um instituto que natildeo eacute de faacutecil assimilaccedilatildeo aleacutem de afrontar princiacutepios e normas do direito interno

Postulados como boa-feacute liberdade contratual funccedilatildeo so-cial do contrato comutatividade rebus sic stantibus e onerosidade excessiva devem ser considerados quando o assunto eacute ldquowash outrdquo A depender do contexto em que eacute inserido e da sua quantificaccedilatildeo monetaacuteria poderaacute afrontar diretamente os princiacutepios supracita-dos

Aparentemente o ldquowash outrdquo como vem sendo posto possui linhas de ilegalidade justamente por ferir regras e princiacute-pios vigentes no ordenamento juriacutedico nacional Visto sobre o pla-no tricotocircmico dos negoacutecios juriacutedicos tambeacutem seraacute necessaacuterio um estudo casuiacutestico no tocante agrave validade e eficaacutecia

Nos moldes como foi introduzido no Brasil o ldquowash outrdquo eacute uma penalidade em repeticcedilatildeo por jaacute existirem no ordenamento paacutetrio mecanismos aptos a penalizar quem descumprir o contrato O ldquowash outrdquo teve sua forma originaacuteria totalmente desviada e por assim ser natildeo foi adaptado e inserido como uma ferramenta eficaz

Eacute importante dizer que por ser uma novidade estrangeira o ldquowash outrdquo pode ser adaptado ao direito paacutetrio obedecendo ao ordenamento aqui instituiacutedo ponderaccedilatildeo essa que seraacute realizada pelo poder judiciaacuterio o qual recorreraacute dos estudos acadecircmicos e doutrinaacuterios para o julgamento das lides

Destarte registra-se que o assunto em voga merece fo-mento e destaque por ser atual e de grande importacircncia para o sistema juriacutedico

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A FRONTEIRA JURIacuteDICO-POLIacuteTICA ENTRE OS SISTEMAS JURIacuteDICOS DA COMMON LAW E DA CIVIL LAW E SEUS IM-PACTOS NO DIREITO PAacuteTRIO

Ana Paula Soares de Souza1

Danilo Pires Atala2

RESUMO Este trabalho tem como objetivo apresentar as peculiaridades existentes entre os sistemas juriacutedicos da Common Law e da Civil Law com enfoque respectivamente nos ordenamentos juriacutedicos norte-americano e francecircs na perspectiva de Garapon e de outros estudiosos do direito E visa principalmente realccedilar as influecircncias que tais sistemas juriacutedicos realizaram no direito paacutetrio por meio de comparaccedilotildees mostrando que o direito brasileiro atual possui um sistema misto Para esse fim estruturou-se o trabalho em trecircs momentos distintos primeiramente fez-se uma abordagem geral apontando caracteriacutesticas que o Brasil positivou do Common Law para seu ordenamento juriacutedico Apoacutes demonstrou-se como o contexto histoacuterico influenciou sobremaneira a adoccedilatildeo deste ou daquele sistema juriacutedico E por fim explanou-se que a globalizaccedilatildeo e a tecnologia foram transformando o sistema juriacutedico brasileiro outrora extremamente arraigado na cultura Civil Law em um sistema juriacutedico misto que ora utiliza-se apenas da lei ora utiliza-se de um precedente para analisar um caso concreto

PALAVRAS-CHAVE Civil Law Common Law Sistema juriacutedico brasileiro

ABSTRACT This paper aims to present the peculiarities existing between the legal system of Common Law and Civil Law with a focus respectively on the North American and French legal systems from the perspective of Garapon and other scholars of

1 Acadecircmica do 8ordm periacuteodo do Curso de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT2 Professor Doutor do Departamento de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT

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law And purpose to highlight the influence of such legal systems on brasilian through comparisons showing that current brazilian legal system has a mixed system To this end the present work was structured in three distinct moments first a general approach was made pointing out characteristics that Brazil positived from Common Law to its legal order Afterwards it was demonstrated how the historical context greatly influenced the adoption of this or that legal system And finally it was explained that globalization and technology were transforming the Brazilian legal system once deeply rooted in a Civil Law culture to a mixed legal system that now uses only the law or a precedent is used to analyze a concrete case

KEYWORDS Civil Law Common Law Brazilian legal system

INTRODUCcedilAtildeO

O presente artigo tem por objeto caracterizar a diferenccedila entre os sistemas juriacutedicos Common Law e Civil Law tendo como fronteira juriacutedico-poliacutetica a Europa Continental a Inglaterra e os Estados Unidos da Ameacuterica Emprega-se o meacutetodo juriacutedico des-critivo que permite a decomposiccedilatildeo do problema em diferentes niacuteveiselementos e estabelece as interligaccedilotildees entre os mesmos para analisar e responder ao problema proposto

O sistema juriacutedico nacional embora seja tradicionalmen-te legislado aos poucos vai incorporando teorias e institutos do sistema da Common Law como por exemplo a suacutemula vinculante introduzida pela Emenda Constitucional 0452004 que acresceu o art 103-A Ainda tem-se os exemplos do que se convencionou chamar de direito jurisprudencial nos artigos 489 V-VI e 947 e 976 do Coacutedigo de Processo Civil de 2015 principalmente no art 926 que estabelece o dever dos tribunais de manter a jurisprudecircncia integra estaacutevel e coerente em evidente agasalhamento da Teoria do Direito com Integridade de Ronald Dworkin (1999) Ainda neste sentido destaca-se que no Brasil o reconhecimento da uniatildeo ho-moafetiva decorreu da construccedilatildeo ou criaccedilatildeo jurisprudencial no julgado do STF na ADI nordm 4277 e ADPF nordm 132 Assim entender as

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distinccedilotildees e as caracteriacutesticas destes dois sistemas proporcionaraacute uma melhor compreensatildeo do proacuteprio direito nacional

Breves apontamentos acerca dos Sistemas Juriacutedicos Common Law e Civil Law

O Sistema Civil Law tambeacutem usualmente apelidado de ldquoromano-germacircnicordquo diz respeito aos paiacuteses que cunharam a ciecircn-cia do direito tendo como base o direito romano cujo nascedouro se deu na Europa Nos dizeres de David (2002) os primoacuterdios do sistema Civil Law remontam aos seacuteculos XII e XIII Historicamente esse periacuteodo corresponde agrave fase em que as cidades e o comeacutercio comeccedilaram a se expandir fato que intensificou na sociedade da eacutepoca o ideal de que somente o direito pode assegurar a ordem e a segu-ranccedila necessaacuterias ao progresso (DAVID idem p 39) Com este vieacutes Medeiros (2009) diz que o ideal de uma sociedade cristatilde fundada na caridade eacute abandonado o que produz uma ruptura entre o di-reito e a religiatildeo tornando-se o direito autocircnomo

Aponta Cretella (1986) como jaacute foi dito na Roma Antiga que o direito passou a se constituir extraindo o preceito juriacutedico dos casos concretos cotidianos identificando sua classificaccedilatildeo e em seguida aplicando-se a novos casos Por isso muitos doutri-nadores apontam que o Estado Romano foi fundamental para a histoacuteria do direito constituindo-se em um divisor de aacuteguas nos processos de formaccedilatildeo dos sistemas de Civil Law e Common Law

A partir do momento em que a academia passou a se uti-lizar de textos romanos acabou por incorporar o conteuacutedo termi-noloacutegico e conceitual bem como a teacutecnica proacutepria de raciociacutenio juriacutedico para o desenvolvimento das regras juriacutedicas Tal entendi-mento juriacutedico se caracteriza mormente pelo fato de suas regras de direito serem concebidas como regras de conduta

Segundo Bobbio (1995 p 64-65) em seu livro O Positivis-mo Juriacutedico

[] a exigecircncia da codificaccedilatildeo nasceu de uma con-cepccedilatildeo francamente iluminista como demonstra

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o mote sapere aude citado por Thibaut tambeacutem na Franccedila (e na verdade com maior razatildeo visto ser este paiacutes a paacutetria maior do iluminismo) a ideacuteia de co-dificaccedilatildeo eacute fruto da cultura racionalista e se aiacute pocircde se tornar realidade eacute precisamente porque as ideacuteias iluministas se encarnaram em forccedilas histoacuterico-poliacuteti-cas dando lugar agrave Revoluccedilatildeo Francesardquo Eacute de fato propriamente durante o desenrolar da Revoluccedilatildeo Francesa (entre 1790 e 1800) que a ideacuteia de codificar o direito adquire consistecircncia poliacutetica

Diversos acontecimentos na Franccedila no seacuteculo XIX como a uniatildeo do monarca e da nobreza abusos excessivos de privileacutegios dos nobres do clero e tambeacutem dos magistrados conforme Sam-paio (2001) resultaram na Revoluccedilatildeo Francesa que foi o grande marco histoacuterico responsaacutevel pela consolidaccedilatildeo de um novo mode-lo juriacutedico riacutegido pois os revolucionaacuterios desse momento enxerga-ram a necessidade de conter a atuaccedilatildeo judicial que nos dizeres de Marinoni (2009 p 46)

[] para a Revoluccedilatildeo francesa a lei seria indispen-saacutevel para a realizaccedilatildeo da liberdade e da igualdade Por este motivo entendeu-se que a certeza juriacutedica seria indispensaacutevel diante das decisotildees judiciais uma vez que caso os juiacutezes pudessem produzir deci-sotildees destoantes da lei os propoacutesitos revolucionaacuterios estariam perdidos ou seriam inalcanccedilaacuteveis A cer-teza do direito estaria na impossibilidade de o juiz interpretar a lei ou melhor dizendo na proacutepria lei Lembre-se que com a revoluccedilatildeo francesa o poder foi transferido ao parlamento que natildeo podia confiar no judiciaacuterio

Do mesmo modo para Wambier (2010) a lei nesse pe-riacuteodo passou a ter o papel fundamental de representar um ideal de igualdade impossibilitando qualquer forma de interpretaccedilatildeo devendo nesse contexto histoacuterico ao magistrado restringir sua decisatildeo ao texto legal A concepccedilatildeo de igualdade no Civil Law era associada agrave rigorosa aplicaccedilatildeo da lei o que deu origem a um in-tenso processo de codificaccedilatildeo do direito cabendo ao juiz a funccedilatildeo

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de apenas aplicar as leis positivadas garantindo deste modo uma igualdade meramente formal

Assim aleacutem de restringir a aplicaccedilatildeo do direito pelo ma-gistrado fez com que o direito se transfigurasse na mera aplicaccedilatildeo do positivismo legislativo sem nenhuma anaacutelise das peculiarida-des do caso concreto Conforme Grossi (2006) todo o direito da eacutepoca iniciando-se com o direito civil foi aprisionado em milhares de artigos organicamente sistematizados e contidos em alguns li-vros chamados ldquocoacutedigosrdquo

Marinoni (2010) de forma brilhante aponta que natildeo eacute o fato de se ter coacutedigos ou natildeo que determina o modelo juriacutedico ado-tado a distinccedilatildeo eacute feita sobretudo a partir da concepccedilatildeo de coacutedigo que cada indiviacuteduo possui Na sua concepccedilatildeo no Common Law os coacutedigos natildeo pretendem coibir a interpretaccedilatildeo da lei razatildeo pela qual se houver um conflito entre uma lei codificada e uma empre-gada pela Common Law ficaraacute ao encargo do juiz interpretar qual das duas deveraacute ser aplicada

Dentre os vaacuterios paiacuteses que adotaram tal sistema cita-se o Brasil que por ter sido colocircnia de Portugal e nele predominar o sis-tema romano-germacircnico teve no nascedouro da ciecircncia do direito uma geraccedilatildeo de legisladores e juristas que procuravam codificar para deste modo reformular comportamentos Vejamos

[] em face de sua tradiccedilatildeo romanista o Direito Bra-sileiro tambeacutem eacute marcado pela sistematizaccedilatildeo e pela codificaccedilatildeo bem como por fazer uso de institutos originados no Direito Romano e revistados pelos doutrinadores da Europa Continental poacutes Idade Meacutedia [] O ensino do Direito no Brasil somente se iniciou em 1827 entretanto por conta da presenccedila dos jesuiacutetas e com a ida de jovens a Portugal para se tornarem bachareacuteis os estudos da Universidade de Coimbra acabaram cruzando o Atlacircntico ainda na eacutepoca colonial (SANTOS 2010 p 25)

A tiacutetulo de exemplo o Coacutedigo Civil de 1916 se encontra abarrotado de institutos oriundos do Direito Portuguecircs que por sua vez tem suas raiacutezes juriacutedicas provenientes do Direito Romano

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Em contraponto tem-se o sistema Common Law que tem suas raiacutezes nas estruturas judiciaacuterias da Inglaterra Paiacutes de Gales Irlanda do Norte e Escoacutecia e que embora tenham particularidades em razatildeo de vicissitudes histoacutericas todas elas satildeo baseadas no di-reito casuiacutestico ou case law segundo Oliveira (apud TUCCI 2010)

Diferentemente do sistema Civil Law que se deu precipu-amente mediante fases histoacutericas o sistema Common Law se deu de maneira ininterrupta baseado no cotidiano da sociedade ingle-sa ou seja ele foi se transformando no decorrer das relaccedilotildees esta-belecidas

Nas palavras de Wambier (2009 p 54)

O common law natildeo foi sempre como eacute hoje mas a sua principal caracteriacutestica sempre esteve presente casos concretos satildeo considerados fonte do direito O direito inglecircs berccedilo de todos os sistemas de common law nasceu e se desenvolveu de um modo que pode ser qualificado como ldquonaturalrdquo os casos iam sur-gindo iam sendo decididos Quando surgiam casos iguais ou semelhantes a decisatildeo tomada antes era repetida para o novo caso Mais ou menos como se dava no direito romano

Denota-se pelas palavras da autora que esse sistema juriacute-dico por ter dado mais autonomia aos juiacutezes permitiu-lhes que compusessem um sistema de precedentes para julgamento de ca-sos futuros e eacute dessa concepccedilatildeo de empregar julgamento de casos passados para vincular soluccedilotildees futuras que se extrai a concepccedilatildeo de precedente judicial

Jaacute o sistema do stare decisis se refere ao modo de opera-cionalizar o sistema da Common Law cominando certeza a essa praacutetica Eacute o denominado sistema de precedentes que nasceu tatildeo-somente no seacuteculo XVI Deste modo a teoria do stare decisis et non quieta movere que significa literalmente ldquomantenha-se a decisatildeo e natildeo mexa no que estaacute quietordquo (SABINO 2010 p 61) estaacute relacio-nada agrave ideia de que os juiacutezes estatildeo vinculados agraves decisotildees do pas-sado ou seja aos precedentes

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Entretanto Marinoni (2010) sabiamente explica que natildeo se deve confundir a doutrina de stare decisis com o proacuteprio sistema Common Law pois o Common Law foi desenvolvido pelos costumes gerais e como jaacute dito se desenvolveu no decorrer dos seacuteculos an-tes de surgir o stare decisis ou precedente vinculante Assim o stare decisis eacute tatildeo-somente um componente presente que se encontra in-cluso dentro do modelo juriacutedico baseado na Common Law

O realce da distinccedilatildeo entre stare decisis e Common Law natildeo obstante necessaacuterio para afastar uma banal confusatildeo centra-se na preocupaccedilatildeo deste trabalho em amparar o sistema de precedentes que pode constituir parte do sistema brasileiro Com efeito o sta-re decisis constitui apenas um elemento do moderno Common Law que tambeacutem natildeo se confunde com o Common Law de tempos remo-tos ou com os costumes gerais de natureza secular (MARINONI 2009)

Conforme Marinoni (Idem) o magistrado inglecircs teve fun-ccedilatildeo crucial na efetivaccedilatildeo do sistema juriacutedico Common Law pois nesse contexto histoacuterico o poder do juiz era o de afirmar o Common Law o qual se sobrepunha ao Legislativo que por isso deveria atuar de modo a complementaacute-lo Desta maneira na Inglaterra o juiz permaneceu ao lado do parlamento no combate agraves arbitrarie-dades empreendidas pelo monarca preocupando-se com a tutela dos direitos e das liberdades do cidadatildeo Por isso mesmo diferen-temente do que ocorreu na Revoluccedilatildeo Francesa natildeo houve justifi-cativa para desconfiar do Judiciaacuterio ou para desconfiar de que os juiacutezes se posicionariam em favor do rei ou do absolutismo

Nesta senda ao se referir que o juiz do Common Law cria o direito natildeo se estaacute fundamentalmente assegurando que a sua decisatildeo tem a mesma forccedila e qualidade do produto elaborado pelo Legislativo isto eacute da lei A decisatildeo neste contexto natildeo se equipara agrave lei pelo fato de ter forccedila obrigatoacuteria para os demais juiacutezes Poreacutem seria possiacutevel argumentar que a decisatildeo por ter forccedila obrigatoacuteria constitui direito

Para Marinoni (2009 p 190)

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O Common Law considera o precedente como fonte de direito Note-se contudo que quando um prece-dente interpreta a lei ou a Constituiccedilatildeo como acon-tece especialmente nos Estados Unidos haacute eviden-temente direito preexistente com forccedila normativa de modo que seria absurdo pensar que o juiz neste caso cria um direito novo

Assim como bem exposto por Marinoni (2009) o que per-mite assegurar que o juiz do Common Law cria o direito eacute a com-paraccedilatildeo do seu papel com a do juiz da tradiccedilatildeo do Civil Law cuja funccedilatildeo se atinha agrave mecacircnica aplicaccedilatildeo da lei No Civil Law quando se dizia que ao juiz cabia apenas expressar as palavras ditadas pelo legislador o direito era concebido exclusivamente como lei A ta-refa do Judiciaacuterio se resumia agrave aplicaccedilatildeo das normas gerais O juiz inglecircs natildeo apenas teve espaccedilo para densificar o Common Law como tambeacutem oportunidade de a partir dele controlar a legitimidade dos atos estatais

Para Villey (2009) em seu livro A Formaccedilatildeo do Pensamen-to Juriacutedico Moderno na formaccedilatildeo do Estado Moderno (fim da ida-de medieval e iniacutecio do iluminismo) existiu a luta pelo poder ou da legitimaccedilatildeo do poder Os ldquoDireitosrdquo existentes eram a) usos e costumes locais b) direito canocircnico (Igreja Catoacutelica) c) usos e costumes dos baacuterbarosgermacircnicos e) direito romana atraveacutes das compilaccedilotildees e gozadores da jurisprudecircncia romana

Nesse contexto o rei queria impor o seu poder atraveacutes de sua lei escrita baseado na teoria desenvolvida por Hobbes (2003) em Leviatatilde Os ingleses embora aceitassem o sistema monarca re-cusavam a lei do rei de impor seus usos e costumes com base na teoria criada por Locke (2002) em Segundo Tratado de Governo

Assim para Hobbes (Idem) naturalmente os homens natildeo satildeo justos piedosos bondosos mas ao contraacuterio os homens satildeo tendentes agrave parcialidade orgulho e vinganccedila Na realidade nes-sa condiccedilatildeo o homem estaacute em situaccedilatildeo de guerra de todos contra todos como dito em sua marcante frase o homem eacute lobo do homem Com esta ceacutelebre frase o filoacutesofo quer advertir que o Estado eacute um mal necessaacuterio ou seja o Estado sendo soberano faz com que os

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suacuteditos se submetam em absoluto ao soberano o detentor do po-der a fim de garantir seguranccedila e uma vida mais tranquila saltan-do da condiccedilatildeo de intranquilidade instabilidade e da constante e iminente medo da morte violenta que urge a todo o momento no estado de natureza

Assim para evitar que a sociedade se torne um caos e te-nha um fim traacutegico de todos contra todos faz-se necessaacuterio outor-gar o poder ao Estado de preferecircncia a um soacute homem o soberano Para Hobbes (2003) natildeo se deve pensar que a liberdade limitada seria uma condiccedilatildeo ruim pois nessa perspectiva seria muito me-lhor ter a liberdade diminuiacuteda pelo Estado do que regressar ao estado inicial o de guerra como jaacute dito de todos contra todos

Nos dizeres de Lopes (2012) o Estado enquanto titular de todos os poderes age buscando garantir a paz e todos os direitos baacutesicos dos cidadatildeos sem levar em consideraccedilatildeo qualquer base eacutetica e moral Hobbes nesse contexto observa que o contrato so-cial eacute a soluccedilatildeo para a superaccedilatildeo tanto da violecircncia como da inse-guranccedila coletiva existentes no estado de natureza e assim o Esta-do eacute a soluccedilatildeo agrave sobrevivecircncia do homem em sociedade

Desse modo o Estado obriga por seu poder soberano o cumprimento das leis civis que servem para dirigir as accedilotildees dos homens com o escopo de garantir a paz e a seguranccedila Assim para evitar que os homens voltem ao estado natural eacute imperioso um Estado civil com poder soberano capaz de obrigar os homens a cumprirem seus pactos mesmo que para tal se utilize da espada coerccedilatildeo do castigo ou da forccedila

Para Locke (2002) o ldquoestado de naturezardquo natildeo eacute caracte-rizado necessariamente por um ldquoestado de guerrardquo hobbesiano E embora concorde com a possibilidade de existecircncia de um ldquoestado de guerrardquo para o filoacutesofo o estado de guerra se daacute quando se usa a forccedila contra a pessoa de outrem e natildeo existe um superior comum a quem apelar

De acordo com o fundamento epistecircmico lockeano as ideias complexas de direito e dever pressupotildeem uma relaccedilatildeo con-sensual de caraacuteter empiacuterico-psicoloacutegico pela qual os indiviacuteduos

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criam normas ou regras que atribuem ao sujeito a faculdade cog-nitiva de fazer ou deixar de fazer determinadas coisas cabendo ao Estado garantir esse direito limitando-o atraveacutes do dever

Losurdo (apud SILVA 2011 p 126) vai dizer que

Os dois tratados sobre o governo podem ser consi-derados momentos essenciais da preparaccedilatildeo e con-sagraccedilatildeo ideoloacutegica desse acontecimento que marca o nascimento da Inglaterra liberal Estamos na pre-senccedila de textos perpassados pelo pathos da liberda-de pela condenaccedilatildeo do poder absoluto pelo apelo a se insurgir contra aqueles infelizes que quisessem privar o homem da sua liberdade e reduzi-lo agrave es-cravidatildeo Mas de vez em quando no acircmbito dessa celebraccedilatildeo da liberdade se abrem fendas assustado-ras pelas quais passa na realidade a legitimaccedilatildeo da escravidatildeo nas colocircnias

Para melhor compreender tais sistemas faz-se necessaacuterio mergulhar na histoacuteria de cada paiacutes e verificar como as experiecircn-cias cotidianas contribuiacuteram para um determinado paiacutes adotar de forma predominante este ou aquele sistema juriacutedico Mais do que isso eacute observar os rituais que satildeo utilizados e contrapocirc-los a outros utilizados

Nesse contexto eacute apropriado citar Garapon (1997) que em seu livro Bem Julgar de forma brilhante compara estrutura e expotildee como se organizam os sistemas judiciaacuterios dos Estados Uni-dos e Franccedila Vislumbra-se que Garapon busca demonstrar de que modo a sociedade e sua cultura afetam o modus operandi do Direito e por consequecircncia a adoccedilatildeo do sistema Civil Law ou do Common Law Em uma das passagens de seu livro o autor cita que nos Es-tados Unidos o juiz se comporta como aacuterbitro enquanto na Franccedila como um padre ou seja aquele garante as regras do jogo enquanto este eacute o ator da cerimocircnia

A principal caracteriacutestica deste sistema juriacutedico eacute a codifi-caccedilatildeo Segundo as precisas observaccedilotildees de Garapon e Papapoulus (2008 p 33)

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Nos sistemas de direito romano-germacircnico a lei eacute a fonte primaacuteria do direito A codificaccedilatildeo aumenta consideravelmente a forccedila da lei hierarquizando as suas disposiccedilotildees e as reagrupando em um conjun-to exaustivo e coerente em suma racional A co-dificaccedilatildeo eacute certamente a teacutecnica mais caracteriacutestica dos direitos da famiacutelia romanista Longe de ser uma simples coletacircnea de regras o coacutedigo eacute um edifiacutecio legislativo que pretende ser o espelho de uma polis harmoniosa Ele deve fornecer ao cidadatildeo um mate-rial legiacutevel ao qual seja sempre possiacutevel referir-se e ser para o juiz um guia precioso para perceber atraveacutes da disposiccedilatildeo dos princiacutepios e da classifica-ccedilatildeo das regras a intenccedilatildeo legisladora Aliaacutes somente a lei constitui o direito do qual os juiacutezes satildeo apenas os porta-vozes

Jaacute a formaccedilatildeo da Common Law deriva dos antigos costumes locais e nem as fases porvindouras que lhe afeiccediloaram o estilo que hoje ela possui foram capazes de modificar sua caracteriacutestica essencial Como na Common Law os statutory laws tecircm papel secun-daacuterio a basilar fonte do direito eacute o direito como posto pelo magis-trado no caso concreto O direito inglecircs foi intensamente caracteri-zado pela carecircncia durante o seu periacuteodo de formaccedilatildeo de poder legislativo real no seio do Parlamento e pelo poder das Cortes Re-ais de Justiccedila A Common Law designa a totalidade dessas regras suscetiacuteveis de serem subsumidas a partir de decisotildees particulares No fundamento da Common Law se encontra portanto a regra do precedente

Garapon (1997) ainda em seu livro Bem Julgar quis de-monstrar que nos Estados Unidos em que se prepondera o Com-mon Law o comportamento empregado pelo juiz eacute o comparado ao de um aacuterbitro visto que apenas intermedia o conflito existente entre as partes Diferentemente da Franccedila onde o magistrado com-porta-se como um padre ele seria a peccedila principal do julgamento ditando a forma como deveriam se comportar as partes Essa com-paraccedilatildeo metafoacuterica feita por Garapon (Idem) busca mostrar que os rituais utilizados no Judiciaacuterio nada mais satildeo do que a externali-zaccedilatildeo dos valores da repuacuteblica e da democracia de cada paiacutes e os

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representa na cena no espaccedilo no tempo nas vestimentas na lin-guagem nos papeacuteis assumidos pelos atores de modo a tornar efi-ciente a sua comunicaccedilatildeo natildeo racional A ecircnfase portanto eacute dada aos papeacuteis assumidos por quem dirige o ritual e pelos seus parti-cipantes buscando conhecer as relaccedilotildees estabelecidas entre eles

O que o direito brasileiro tem de legislado e o que tem da Common Law

Como jaacute explanado nos primoacuterdios de criaccedilatildeo do Direito brasileiro prevaleceu o sistema Civil Law todavia por ser o Direito uma ciecircncia dinacircmica e considerando a globalizaccedilatildeo hoje eacute plau-siacutevel asseverar que o Brasil possui um sistema misto com traccedilos caracteriacutesticos dos dois sistemas juriacutedicos

Vislumbra-se sobretudo que com o advento do Coacutedigo de Processo Civil de 2016 positivou-se de forma muito mais en-faacutetica o emprego dos precedentes judiciais que o anterior Obser-va-se por este paradoxo que por meio do Civil Law positivou-se a importacircncia do precedente judicial que eacute caracteriacutestica marcante do Common Law de caraacuteter vinculante no ordenamento juriacutedico brasileiro Vejamos

Art 985 Julgado o incidente a tese juriacutedica seraacute aplicadaI - a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idecircntica questatildeo de direito e que trami-tem na aacuterea de jurisdiccedilatildeo do respectivo tribunal in-clusive agravequeles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou regiatildeoII - aos casos futuros que versem idecircntica questatildeo de direito e que venham a tramitar no territoacuterio de com-petecircncia do tribunal salvo revisatildeo na forma do art 986sect 1o Natildeo observada a tese adotada no incidente ca-beraacute reclamaccedilatildeo

Denota-se pelo artigo supracitado que a tese juriacutedi-ca delineada vincularaacute os demais oacutergatildeos do Poder Judiciaacuterio sob

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pena de ajuizamento de reclamaccedilatildeo que nada mais eacute do que um remeacutedio constitucional empregado nos casos de julgamento em dissonacircncia com a tese jaacute firmada Denota-se ainda nitidamente uma valorizaccedilatildeo maior para a interpretaccedilatildeo judicial das normas positivas visando dar maior agilidade bem como impedir insegu-ranccedila juriacutedica existente no Coacutedigo Processual Civil de 1973

Ademais o advento da EC nordm 452004 trouxe ao ordenamento juriacutedico a ideia de o juiz ser um agente integrador entre o ordenamento juriacutedico e a justiccedila Todavia a ideia de uma interpretaccedilatildeo verticalizada do ordenamento juriacutedico natildeo pode ser absoluta sob pena de atividade judicante ficar condenada a uma vinculaccedilatildeo preacutevia

De fato havendo similaridade no caso concreto e precedente de caraacuteter vinculante deveraacute o juiz acompanhaacute-lo sob pena de desrespeitar o princiacutepio da igualdade todavia essa ativi-dade judicante monocraacutetica deve ser dotada de autonomia incum-bindo o juiz ao analisar o caso concreto deixar de aplicaacute-lo levan-do em conta fatores regionais situacionais que se tornaratildeo desse modo o caso singular e portanto tornando incabiacutevel a utilizaccedilatildeo do precedente vinculante

Na concepccedilatildeo de Schauer (2009) uma decisatildeo que siga os precedentes eacute melhor do que uma decisatildeo correta e que repetidamente eacute mais importante uma dada decisatildeo seguir os pre-cedentes do que ter as melhores consequecircncias

Em contraponto para Dworkin (1999) o direito seria um conceito interpretativo como a cortesia no exemplo imaginaacuterio ci-tado em seu livro O Impeacuterio do Direito Para ele caberia aos juiacutezes reconhecer o dever de continuar o desempenho da profissatildeo agrave qual aderiram em vez de rejeitaacute-la E os proacuteprios magistrados desen-volveriam em resposta as suas proacuteprias convicccedilotildees e tendecircncias teorias operacionais sobre a melhor interpretaccedilatildeo de suas respon-sabilidades nesse desempenho Nesta concepccedilatildeo a atividade inter-pretativa em grande parte seria a busca sobre a melhor interpreta-ccedilatildeo de algum aspecto pertinente ao exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo do caso concreto

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Dworkin (Idem p 110) exemplifica em que consiste a ati-vidade interpretativa do magistrado

Assim o destino de Eacutelmer vai depender das convic-ccedilotildees interpretativas do corpo de juiacutezes que julgaratildeo o caso Se um juiz acha que para alcanccedilar a melhor in-terpretaccedilatildeo daquilo que os juiacutezes geralmente fazem a propoacutesito da aplicaccedilatildeo de uma lei ele nunca deve levar em conta as intenccedilotildees dos legisladores poderaacute entatildeo tomar uma decisatildeo favoraacutevel a Eacutelmer Mas se ao contraacuterio acha que a melhor interpretaccedilatildeo exige que ele examine essas intenccedilotildees eacute provaacutevel que sua decisatildeo favoreccedila Goneril e Regan Se o caso Eacutelmer for apresentado a um juiz que ainda natildeo refletiu sobre a questatildeo da interpretaccedilatildeo ele deveraacute entatildeo fazecirc-lo e de ambos os lados encontraraacute advogados dispostos a ajudaacute-lo As interpretaccedilotildees lutam lado a lado com os litigantes diante do tribunal

Nesse conceito interpretativo o exerciacutecio do precedente na concepccedilatildeo de Dworkin natildeo poderia ser ignorado pelo juiz em sua interpretaccedilatildeo pois a atividade judicante incorpora aspectos de outras interpretaccedilotildees correntes na eacutepoca

Aleacutem disso para Dworkin (1999) os juiacutezes conjecturam sobre o direito no acircmbito da sociedade e natildeo fora dela o meio inte-lectual de modo geral assim como a linguagem comum que reflete e protege esse meio exerce restriccedilotildees praacuteticas sobre a idiossincra-sia e restriccedilotildees conceituais sobre a imaginaccedilatildeo

Todavia o proacuteprio autor critica o inevitaacutevel conservado-rismo do ensino juriacutedico formal ainda presente na academia e do processo de selecionar juristas para as tarefas judiciaacuterias e admi-nistrativas considerando a cultura juriacutedica existente O fato eacute que certas soluccedilotildees interpretativas incluindo pontos de vista sobre a natureza e a forccedila da legislaccedilatildeo e do precedente satildeo muito popula-res em determinada eacutepoca e sua popularidade ajudada pela ineacuter-cia intelectual normal estimula os juiacutezes a consideraacute-las estabele-cidas para todos os propoacutesitos praacuteticos Elas satildeo os paradigmas e quase-paradigmas de sua eacutepoca Mas ao mesmo tempo outras

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questotildees talvez igualmente fundamentais satildeo objeto de debates e controveacutersias

Assim na concepccedilatildeo de Dworkin (Idem) o precedente deve ser adotado como um princiacutepio e as teorias gerais do direito devem ser abstratas pois seu desiacutegnio eacute interpretar o ponto essen-cial e a estrutura da jurisdiccedilatildeo natildeo uma parte ou seccedilatildeo especiacutefica desta uacuteltima Para ele os filoacutesofos do direito discutem sobre o fun-damento interpretativo que qualquer argumento juriacutedico deve ter Desse modo o voto de qualquer juiz eacute em si uma peccedila de filosofia do direito mesmo quando a filosofia estaacute oculta e o argumento manifesto eacute dominado por citaccedilotildees e listas de fatos A doutrina eacute a parte geral da jurisdiccedilatildeo o proacutelogo silencioso de qualquer vere-dito

Percebe-se deste modo que se faz necessaacuterio partir do pressuposto de que nenhum caso eacute rigorosamente igual ao outro e por conta dessas peculiaridades faz-se necessaacuterio identificar as razotildees que fazem privilegiar as diferenccedilas ou semelhanccedilas de um caso Assim eacute necessaacuterio verificar a viabilidade da teacutecnica da dis-tinccedilatildeo que nada mais eacute do que observar a possibilidade da natildeo aplicaccedilatildeo de um precedente ao argumento racional e convincente pois o novo caso a ser julgado apresenta caracteriacutesticas especiais que exigem um tratamento diferenciado

Nesse contexto entra em accedilatildeo o distinguishing positivado por meio do art 489 e seguintes do Coacutedigo de Processo Civil (CPC) Esse termo teacutecnico para Didier Jr (apud LOURENCcedilO 2011) sig-nifica que o magistrado por meio de sua atividade judicante e de meacutetodos interpretativos do precedente invocado constata uma distinccedilatildeo entre o caso concreto em julgamento e o paradigma seja porque natildeo haacute coincidecircncia entre os fatos fundamentais debati-dos e aqueles que serviram de base a ratio decidendi (tese juriacutedica) constante do precedente seja porque a despeito de existir uma aproximaccedilatildeo entre eles determinada particularidade no caso em julgamento afasta a aplicaccedilatildeo do precedente E assim por haver dissonacircncia o magistrado restringe a aplicaccedilatildeo do precedente in-vocado

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No entanto caso o precedente encontre-se superado con-forme se denota pelo contido no art 297 sect3ordm do CPC estar-se-aacute diante de umas das teacutecnicas de superar um precedente denomina-do overruling que nos dizeres de Arauacutejo eacute uma superaccedilatildeo total do precedente tornando possiacutevel a revisatildeo de um precedente sempre que houver novos argumentos criando-se um novo precedente fazendo uma comparaccedilatildeo para aclarar o entendimento Tal insti-tuto se assemelha a uma revogaccedilatildeo total de uma lei pela outra Ocorre que natildeo se pode mudar do dia para noite um precedente sob pena de quebra de confianccedila sendo deste modo necessaacuteria uma fundamentaccedilatildeo abrangente para ocorrer o overruling com ar-gumentos ateacute entatildeo natildeo enfrentados bem como a necessidade de se superar o precedente

De igual maneira ainda demonstra aproximaccedilatildeo ao sis-tema da Common Law a utilizaccedilatildeo do instituto da Repercussatildeo Geral no Recurso Extraordinaacuterio estabelecido pelo art 102 sect 3ordm da Constituiccedilatildeo Federal de 88 (CF) introduzido tambeacutem pela EC 452004 e art 543-A do CPC73 (com alteraccedilotildees inseridas pela Lei nordm 114182006) Tambeacutem foram inseridas no ordenamento juriacute-dico brasileiro a suacutemula impeditiva de recurso (artigo 518 sect 1ordm CPC73 introduzido pela Lei nordm 112762006) a improcedecircncia liminar de demandas repetitivas (art 285-A CPC73 introduzida tambeacutem pela Lei nordm 112772006) e o julgamento de recursos por amostragem (art 543-B CPC73 introduzido atraveacutes da Lei nordm 114182006) dentre tantos outros exemplos

Jaacute o Coacutedigo de Processo Civil de 2016 trouxe ao ordena-mento juriacutedico a possibilidade de as partes de forma consensual estabelecer um calendaacuterio processual para um determinado pro-cesso que se aprovado de comum acordo vincula as partes in-clusive o juiz conforme se denota pelo art 191 CPC Percebe-se desse modo que as partes de comum acordo poderatildeo dilatar ou restringir prazos data em que seraacute realizada a produccedilatildeo de provas bem como a data em que seraacute a sentenccedila exarada jaacute tipicamente utilizada no direito processual estadunidense francecircs e recente-mente no italiano

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Outro ponto interessante trazido pelo Coacutedigo de Processo Civil de 2015 eacute o art 357 sectsect 2ordm e 3ordm CPC que possibilita agraves par-tes de forma consensual apresentarem decisatildeo saneadora ao juiz que poderaacute quando a causa for complexa designar audiecircncia para proferir decisatildeo de saneamento e organizaccedilatildeo do processo tendo deste modo de forma liacutempida desraigado com a antiga concepccedilatildeo eminentemente influenciada pelo direito portuguecircs em que a tal funccedilatildeo era exclusiva do magistrado

Nos dizeres de Porto (apud TRIGUEIRO 2014) eacute possiacutevel perceber que os institutos juriacutedicos da Common Law e da Civil Law estatildeo se sintonizando cada vez mais e criando um novo institu-to juriacutedico chamado commonlawlizaccedilatildeo em face das jaacute destacadas facilidades de comunicaccedilatildeo e pesquisa postas na atualidade e a disposiccedilatildeo da comunidade juriacutedica Realmente na chamada com-monlawlizaccedilatildeo do direito nacional se pode perceber que a partir da constataccedilatildeo da importacircncia da jurisprudecircncia as decisotildees jurisdi-cionais vecircm adquirindo no sistema paacutetrio por meio de normas po-sitivadas mormente por uma crescente funccedilatildeo interpretativa das normas pelo juiz

Ainda sobre a criatividade judicial Cappelletti (1993) em sua obra Juiacutezes Legisladores apoacutes discorrer sobre as altercaccedilotildees en-tre os sistemas supracitados conclui que eacute evidente o aumento da criatividade juriacutedica nos paiacuteses de Civil Law da mesma forma que ocorre no Common Law sendo as contendas cada vez mais abran-dadas entre ambos derivando do que o autor denomina ldquoconver-gecircncia evolutivardquo

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Vislumbra-se por tudo que foi exposto no decorrer deste trabalho que natildeo restam duacutevidas de que o direito brasileiro sofreu influecircncia direta e inicial do sistema juriacutedico romano-germacircnico sobretudo no nosso ordenamento juriacutedico que se encontra abar-rotado de leis regulamentos decretos resoluccedilotildees enfim a lei em sentido amplo eacute considerada no paiacutes fonte primaacuteria sendo deste

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modo o instrumento baacutesico que regula as relaccedilotildees sociais A tiacutetulo ilustrativo nota-se que se encontram positivados

direitos e deveres ainda quando nascituros e que tais garantias e deveres persistem para depois da morte Nada obstante agrave preva-lecircncia do direito legislado observa-se no que foi discutido que a lei natildeo tem a capacidade de esgotar todas as possibilidades pois ja-mais o constituinte de 1988 imaginaria os avanccedilos tecnoloacutegicos na aacuterea da informaacutetica que viriam a ocorrer ao proteger por exemplo o sigilo da correspondecircncia que hoje abrange as correspondecircncias encaminhadas por correio eletrocircnico que eacute fruto de interpretaccedilatildeo judicial O fato eacute que de laacute para caacute ocorreram inuacutemeras mudanccedilas e portanto natildeo pode uma pessoa ter seus direitos negados em ra-zatildeo da ausecircncia de norma legal que a ampare

Eacute pensamento arcaico apontar a lei como uacutenica soberana fonte primaacuteria e eacute aiacute que entra em campo a jurisprudecircncia que tem por escopo adequar a lei agraves mudanccedilas que ocorrem na sociedade Como jaacute demonstrado faz-se necessaacuterio uniformizar a jurispru-decircncia das normas dos nossos Tribunais sob pena de rechaccedilar o principio da igualdade material e ter aplicado aquele velho brocar-do ldquodois pesos e duas medidasrdquo Todavia longe de ser extremista e encobertando-se sob o principio da igualdade formal e da celeri-dade processual eacute deixar de analisar as peculiaridades e estagnar no tempo e no espaccedilo as intepretaccedilotildees judiciais que retroacutegadas natildeo teriam relaccedilatildeo com as mudanccedilas da sociedade

Desse modo faz-se necessaacuterio repensar que o sistema ju-riacutedico brasileiro jaacute natildeo mais eacute exclusivamente aderente ao sistema juriacutedico da Civil Law pois o Coacutedigo de Processo Civil de 2015 veio corroborar de forma positivada as ideias haacute tempos utilizadas nos tribunais e discutidas pelos doutrinadores de que o uso de prece-dente vinculante aleacutem de proporcionar uma nova concepccedilatildeo de que o Direito natildeo eacute soacute aquilo que estaacute posto instiga na mesma ocasiatildeo uma reflexatildeo sobre a conduta postada pelo Estado quando se ocupa de atribuir um aumento de poder aos Tribunais Paacutetrios e como estes utilizaratildeo os precedentes para fazer justiccedila

Pelo exposto eacute de clareza solar que as novas relaccedilotildees pro-

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cessuais deveratildeo observar natildeo apenas a letra da lei e tampouco observar de forma absoluta os precedentes fixados mas sim res-guardar e efetivar os Direitos previstos na Carta Magna

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VISIBILIZANDO A VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO PSICOLOacuteGICA COMO LESAtildeO Agrave SAUacuteDE DA VIacuteTIMA REVISITANDO O AR-TIGO 129 DO COacuteDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO Agrave LUZ DA LEI MARIA DA PENHA

Artenira da Silva e Silva 1

Joseacute Maacutercio Maia Alves2

RESUMO Este estudo tem o objetivo de demonstrar a possibilidade de criminalizaccedilatildeo da violecircncia psicoloacutegica pura como crime de lesatildeo corporal agrave sauacutede da viacutetima de violecircncia domeacutestica com base no caput e sect 9ordm do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro combinados com o art 7ordm II da Lei 113402006 O texto aborda apontamentos teoacutericos sobre a adequaccedilatildeo tiacutepica da lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica a partir de reflexotildees acerca da concepccedilatildeo de elemento normativo do tipo apresentando ainda uma proposta de anamnese para aferir a violecircncia psicoloacutegica e seus efeitos danosos ainda na fase de investigaccedilatildeo criminal na delegacia de poliacutecia

PALAVRAS-CHAVE Violecircncia psicoloacutegica Adequaccedilatildeo tiacutepica Anamnese

ABSTRACT This study aims to demonstrate the possibility to criminalize psychological violence as a crime of bodily injury which offends the health of the victim specially considering domestic violence victims based on the caput and on the sect9 of the article 129 of the Brazilian Penal Law combined with the article 7 II of the 113402006 Law The text presents theoretical notes about psychological health damage as well as reflections about the concept of the normative element type It also presents a general

1 Poacutes-doutora em Psicologia e Educaccedilatildeo e Doutora em Sauacutede Coletiva Docente e pesquisadora do Departamento de Sauacutede Puacuteblica e do Mestrado em Direito e Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila da Universidade Federal do Maranhatildeo Coordenadora de linha de pesquisa do Observatoacuterio Ibero Americano de Sauacutede e Cidadania e Coordenadora do Observatorium de Seguranccedila Puacuteblica (PPGDIRUFMACECGP) Email artenirassilvahotmailcom 2 Mestrando do PPGDIRUFMA (Direito e Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila) E-mail jose-marciompmampbr

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anamnesis proposal to assess psychological violence harmful effects since itacutes criminal investigation phase in the police station

KEYWORDS Psychological violence Typical adequacy Anamnesis

INTRODUCcedilAtildeO

Nos paiacuteses em que o direito tem tradiccedilatildeo romano-germacirc-nica e que sofreram a influecircncia do incremento do ideal positivista poacutes-revoluccedilatildeo francesa haacute uma resistecircncia endecircmica em se atri-buir alcance e significado agrave lei aleacutem do que seria a genuiacutena ldquointen-ccedilatildeo do legisladorrdquo As leis caducam com mais facilidade porque natildeo acompanham as mudanccedilas dos fatos sociais o contexto que elas pretenderam um dia prever passa a natildeo existir mais e em consequecircncia inauguram-se outras leis A pretexto da seguranccedila juriacutedica haacute uma necessidade de a ldquoregra legalrdquo (a lei) continua-mente esgotar a prodigiosidade da sua pretensatildeo de regulaccedilatildeo

Trata-se de uma postura equivocada que culmina por engessar a prestaccedilatildeo jurisdicional para que o Juiz cada vez mais ldquodiga o direitordquo como o legislador supostamente quis que ele fosse dito Poreacutem muito diferente de oferecer seguranccedila juriacutedica essa medida pode fomentar deficit de efetividade de direitos porque em razatildeo dela natildeo se desenvolve o haacutebito de usar-se da interpretaccedilatildeo para aplicar as normas aos casos concretos

Vecirc-se entatildeo uma sensiacutevel dicotomia quanto ao que ldquoeacute o direitordquo em paiacuteses originaacuterios da civil law e da common law de ori-gem inglesa Nos primeiros haacute um impeacuterio da norma em que a lei se esforccedila em prever qual desfecho juriacutedico se entende por apro-priado agraves situaccedilotildees nos uacuteltimos tem-se uma concentraccedilatildeo sobre a resoluccedilatildeo do litiacutegio no caso concreto e a lei eacute mero coadjuvan-te para se buscar uma soluccedilatildeo que corresponda ao melhor direito possiacutevel mediante decisotildees racionalmente fundamentadas

Esta premissa se faz importante por permitir dizer que no Brasil cujo direito tem origem romano-germacircnica a liberdade para extrair sentidos racionalmente construiacutedos acerca da norma

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ou para transitar por significados e conceitos extrajuriacutedicos que tenham forccedila para incidir diretamente nas decisotildees pode soar perigosa e por isso sofre resistecircncias que por vezes natildeo se justi-ficam Exemplo disso eacute a escasso exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de juiacutezos de valor ao elemento normativo ldquosauacutederdquo que se encontra no caput do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro mesmo depois de a Lei 113402006 ter traccedilado uma seacuterie de possibilidades de compro-metimento agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima aviltada por toda sorte de violecircncia domeacutestica sobretudo a psicoloacutegica

Este trabalho visa demonstrar que o paradigma da des-legitimaccedilatildeo da violecircncia domeacutestica que daacute suporte agrave defesa do gecircnero feminino com toda a extensatildeo hermenecircutica que a teoria de gecircnero possa alcanccedilar (direito agrave diversidade de identidade de gecircnero agrave homoafetividade agrave orientaccedilatildeo sexual e a um conceito de famiacutelia baseado na afetividade) exige uma nova abordagem ju-riacutedica do elemento normativo sauacutede que convirja para a agenda internacional que prima por coibir a violecircncia no acircmbito das rela-ccedilotildees familiares

A partir desse pano de fundo far-se-atildeo consideraccedilotildees acer-ca da teoria do tipo penal e das elementares normativas para se admitir a possibilidade de se configurarem os sintomas psiacutequicos resultantes da violecircncia domeacutestica como ofensa agrave sauacutede da viacutetima

Em seguida demonstrar-se-atildeo argumentos para funda-mentar a existecircncia do crime de ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo como consequecircncia da violecircncia de gecircnero para entatildeo se investigar como os profissionais do sistema de justiccedila sobretudo Delegados de Poliacutecia Promotores de Justiccedila e Juiacutezes estatildeo enfrentando essa temaacutetica na praacutetica e como poderiam direcionar suas atividades de forma a assumir uma postura profissional proacutexima de um po-sicionamento mais eficaz e com vista ao compromisso assumido pelo Estado brasileiro perante a comunidade internacional de coi-bir a violecircncia familiar

Por fim o trabalho sugeriraacute uma anamnese a ser aplicada agraves viacutetimas de violecircncia domeacutestica ainda nas delegacias de poliacute-cia de forma a fornecerem indiacutecios para a formulaccedilatildeo de denuacutencia

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pelo Ministeacuterio Puacuteblico por ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo com ofensa agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima sobretudo em razatildeo dos quadros cliacuteni-cos de Transtorno de Estresse Poacutes-traumaacutetico e da Siacutendrome da Mulher Espancada

Um Paradigma para o Conceito de Violecircncia Psicoloacutegica

Eacute no contexto mundial de luta pela deslegitimaccedilatildeo da vio-lecircncia contra a mulher que emergiu esse conceito sustentado pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) que considera como tal ldquoqualquer ato de violecircncia baseado no gecircnero que resulta ou que seja suscetiacutevel de resultar em dano fiacutesico sexual psicoloacutegico ou em sofrimentos agraves mulheres incluindo ameaccedilas de tais atos coaccedilatildeo ou privaccedilatildeo de liberdade ocorrendo tanto na vida puacuteblica quanto na privadardquo (ONU 1993) No Brasil a Lei Maria da Penha (LMP) ain-da especifica a agressatildeo pode resultar de qualquer relaccedilatildeo iacutentima de afeto e as relaccedilotildees pessoais independem de orientaccedilatildeo sexual (BRASIL 2006)

O que se percebe na LMP eacute que o legislador brasileiro na contramatildeo da sua tradiccedilatildeo romano-germacircnica apresentou agrave socie-dade uma lei em que natildeo haacute palavras inuacuteteis ou com efeitos de sen-tido rasos Ao contraacuterio trata-se de um texto que estaacute apto a sofrer conformaccedilotildees jurisprudenciais na medida em que sejam introjeta-das na comunidade percepccedilotildees feministas acerca das vicissitudes e da diversidade do direito deao gecircnero e agrave orientaccedilatildeo sexual

A Lei 113402006 diz bem mais do que o seu proacuteprio tex-to assim como colima por objetivos natildeo explicitamente revelados que reclamam abordagens menos simplistas eou reducionistas agrave luz de casos concretos

A reafirmaccedilatildeo da doutrina feminista o direito agrave diversida-de da identidade de gecircnero e a ressignificaccedilatildeo do conceito de famiacute-lia satildeo premissas sobre as quais estatildeo fundadas as bases da LMP A partir dessa concepccedilatildeo eacute que se sustentam os instrumentos legais de defesa dos direitos daquelas que ostentam o gecircnero feminino E isso remete ao esforccedilo necessaacuterio de se atribuir uma maacutexima efeti-

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vidade agrave extensatildeo desses remeacutedios sob pena de se transformar a lei e sua mudanccedila de paradigma em mera carta de intenccedilotildees

Induvidoso que a garantia dessa maacutexima efetividade pas-sa pela dotaccedilatildeo dos operadores do direito ndash sobretudo dos que es-tejam agrave frente das instituiccedilotildees do sistema de justiccedila ndash de conheci-mentos transdisciplinares que revelem a verdadeira mens legis da LMP como ferramenta insuflada pela rede feminista global acerca da violecircncia domeacutestica

Natildeo excluir os operadores do direito do acesso a esse deba-te em forma de qualificaccedilatildeo formal e continuada significa garantir uma mudanccedila de paradigma para o de deslegitimaccedilatildeo da violecircncia domeacutestica atraveacutes do recrudescimento do discurso socioloacutegico fe-minista no meio juriacutedico para que ele migre do abstrato agrave praacutetica das relaccedilotildees sociais geridas pelo Poder Judiciaacuterio

Daiacute dizer-se que cada signo presente na LMP deve ser sub-metido a um crivo de enfrentamento agrave luz da teoria feminista da proteccedilatildeo agrave vulnerabilidade do gecircnero feminino da reafirmaccedilatildeo da dignidade humana e do desejo de construccedilatildeo de uma sociedade mais justa solidaacuteria e livre de qualquer forma de discriminaccedilatildeo

No que toca agrave violecircncia psicoloacutegica eacute forte o entendimen-to de que a sua configuraccedilatildeo e reconhecimento no caso concreto serve apenas como vetor que projeta o tratamento da persecuccedilatildeo criminal por um injusto-tipo jaacute previsto na legislaccedilatildeo de sorte a submetecirc-lo agraves regras da Lei Maria da Penha Isso implicaria p ex subtrai-lo da competecircncia dos Juizados Especiais Criminais limi-tar a renuacutencia agrave representaccedilatildeo e ateacute mesmo atribuir aos crimes de lesatildeo corporal leve a natureza de accedilatildeo penal puacuteblica incondicio-nada (ADI nordm 44242012-STF) aleacutem de autorizar o deferimento de medidas protetivas especiacuteficas e geneacutericas em favor da viacutetima

Teoria do Tipo O Elemento Normativo ldquoSauacutederdquo

A legislaccedilatildeo brasileira adotou a teoria finalista da accedilatildeo para considerar uma conduta criminalmente tiacutepica Equivale dizer que o resultado produzido por uma conduta pode ser exigido dispen-

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saacutevel indiferente ou ateacute impossiacutevel de ocorrer (crimes materiais formais e de mera conduta) mas o inteacuterprete natildeo pode se furtar agrave anaacutelise do impacto do elemento subjetivo do injusto que permeou a conduta do agente Isso porque haacute crimes que soacute podem se confi-gurar se o agente quis se comportar de forma afrontosa a um sen-timento de justiccedila entronizado pela sociedade (dolo) outros haacute em que sob o influxo de uma indiferenccedila tocada pela assunccedilatildeo de um risco esse comportamento quebrou uma representaccedilatildeo mental de previsatildeo de um mal maior (dolo eventual) assim como haacute os que se revestiram de uma previsibilidade do mal maior mas que natildeo tangenciaram a assunccedilatildeo do risco produzindo-se o resultado por uma quebra de um dever objetivo de cuidado (culpa) Fora dessas hipoacuteteses a teoria finalista considera as condutas criminalmente atiacutepicas

Na composiccedilatildeo do injusto-tipo amalgamam-se ou natildeo trecircs espeacutecies de elementares objetiva subjetiva e normativa A primei-ra delas trata de signos ou expressotildees com significados escorreitos descritivos sobre os quais natildeo paira qualquer duacutevida A segunda corresponde agraves vontades especiacuteficas previstas no tipo geralmente sucedidas da expressatildeo ldquocom o fim derdquo ou algo que a ela equiva-lha Satildeo vontades anunciadas

Jaacute quanto agrave terceira espeacutecie de elementar ndash que interessa ao presente estudo ndash tem-se o elemento normativo do tipo Tratam-se de signos ou expressotildees que para colmatarem a adequaccedilatildeo tiacutepica e a aperfeiccediloarem requerem um esforccedilo de interpretaccedilatildeo valorativa juriacutedica ou teacutecnico-transdisciplinar extrajuriacutedica

A presenccedila dessa espeacutecie de elementar daacute azo aos chama-dos tipos abertos que dependem da interpretaccedilatildeo de quem conhece os seus significados (teacutecnicos) ou de quem os atribui de forma ra-cionalmente fundamentada (advogados membros do Ministeacuterio Puacuteblico e da Magistratura) Falam-se mesmo de tipos anormais que exigem uma aquilataccedilatildeo de significados que natildeo permitem fechar de antematildeo a adequaccedilatildeo tiacutepica e que interessaratildeo de forma crucial agrave conduta ldquoquer por conduzirem a um julgamento de valor quer por levarem agrave interpretaccedilatildeo de termos juriacutedicos ou extrajuriacutedicos

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quer por exigirem afericcedilatildeo do acircnimo ou no intuito do agente quan-do pratica a accedilatildeordquo (MIRABETE 2014 p 100)

A parte final do tipo encontrado no caput do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro eacute emblemaacutetica quanto agrave importacircncia da afericcedilatildeo do elemento normativo para se alcanccedilar uma adequaccedilatildeo tiacutepica coerente e para ateacute mesmo se visibilizar uma acepccedilatildeo de tipi-cidade que possa natildeo se apresentar recorrente na praacutetica

O tipo considera lesatildeo corporal ofender a integridade corpo-ral ou a sauacutede de outrem Agrave guisa de uma decodificaccedilatildeo que natildeo se pretende exaustiva dir-se-ia que se estaacute a tratar de uma accedilatildeo fi-naliacutestica que exige resultado naturaliacutestico e que admite condutas dolosas e culposas Daiacute extrair-se que ofender a integridade corporal corresponderia a causar dano na medida em que frustra a incolu-midade de algum componente fisioloacutegico da viacutetima que se fazia iacutentegro Jaacute na lesatildeo agrave sauacutede a extensatildeo dos efeitos da ofensa ultra-passa o dano fisioloacutegico Aqui o elemento normativo sauacutede reme-te a uma infinidade de interpretaccedilotildees atribuiacuteveis tecnicamente ou pela via da fundamentaccedilatildeo racional Estaacute a reclamar colmataccedilotildees que eclodem a partir de juiacutezos de valor que podem sofrer muta-ccedilotildees Afinal o que pode ser considerado sauacutede

Para Bitencourt (2001 p 176)

Ofensa agrave sauacutede compreende a alteraccedilatildeo de funccedilotildees fisioloacutegicas do organismo ou perturbaccedilatildeo psiacutequi-ca A simples perturbaccedilatildeo de acircnimo ou afliccedilatildeo natildeo eacute suficiente para caracterizar o crime de lesatildeo cor-poral por ofensa agrave sauacutede Mas configuraraacute o crime qualquer alteraccedilatildeo ao normal funcionamento do psiquismo mesmo que seja de duraccedilatildeo passageira Podem caracterizar essa ofensa agrave sauacutede os distuacuterbios de memoacuteria e natildeo apenas os distuacuterbios de ordem intelectiva ou volitiva

Quer-se dizer que o signo sauacutede pode permitir significados e extensotildees muacuteltiplos mas uma vez considerados deve-se obser-var se esta sauacutede restou maculada para que tenha ocorrido o crime de ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo Daiacute a importacircncia de se aferirem as

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perturbaccedilotildees do psiquismo para se considerar a adequaccedilatildeo tiacutepica oriunda de uma lesatildeo levada a efeito pela violecircncia psicoloacutegica Com efeito Aniacutebal Bruno (976 p184-185) considera que

Perturbaccedilotildees moacuterbidas do psiquismo produzidas por obra do agente tambeacutem entram na categoria de lesotildees corporais como dano agrave sauacutede da viacutetima aiacute in-cluindo-se do mesmo modo estados de inconsciecircncia ou insensibilidade determinados pelo uso de anes-teacutesicos ou inebriantes ou ainda casos de depressatildeo fiacutesica ou mental desmaios estados confusionais e outras manifestaccedilotildees de perturbaccedilatildeo nervosa ou psiacute-quica Se ocorre a alteraccedilatildeo da integridade do corpo ou da sauacutede eacute indiferente que haja ou natildeo produccedilatildeo de dor

Desse raciociacutenio extrai-se uma conclusatildeo preliminar eacute preciso introjetar nos profissionais do sistema de justiccedila a atitu-de de modular a elementar normativa sauacutede diante das condutas criminosas sob pena de se gerar um enorme deficit de efetividade na criminalizaccedilatildeo dessas praacuteticas que acabaraacute por invisibilizar o reconhecimento da violecircncia psicoloacutegica e de sua importacircncia

A ldquoLesatildeo agrave Sauacutede Psicoloacutegicardquo na Violecircncia de Gecircnero

Para atingir a justificaccedilatildeo da possibilidade do tipo de lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica tomam-se por referecircncia neste trabalho algumas consideraccedilotildees da pesquisa conduzida pela pesquisadora Isadora Vier Machado acerca de como vem sendo conduzido o manejo da violecircncia psicoloacutegica ndash prevista na Lei nordm 113402006 (Lei Maria da Penha) ndash na persecuccedilatildeo criminal preliminar perante as Dele-gacias de Poliacutecia e o Ministeacuterio Puacuteblico Algumas constataccedilotildees da pesquisa conduziratildeo agrave necessidade de uma mudanccedila teacutecnico-ju-riacutedica e estrutural na atuaccedilatildeo destas Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila no enfrentamento da violecircncia psicoloacutegica Pretende-se de-monstrar que esse novo olhar pode conduzir mesmo a uma maior efetividade do art 7ordm inciso II da LMP

Duas problematizaccedilotildees trabalhadas por MACHADO con-

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duziratildeo agraves impressotildees criacuteticas que se propotildee primeiramente tem-se a suposta barreira do princiacutepio da legalidade do qual a violecircn-cia psicoloacutegica se encontraria esvaziada no direito ordinaacuterio atual o que faria com que essa espeacutecie de violecircncia de gecircnero necessitas-se de outras figuras normativas tipificadas criminalmente para que pudesse aparecer no cenaacuterio juriacutedico ainda que eclipsada depois aponta-se a nota de imprescindibilidade de conhecimentos trans-disciplinares dos operadores do direito para que compreendam a extensatildeo do conceito de violecircncia psicoloacutegica com o objetivo de o acomodar nos injustos-tipos de que se serve no ordenamento juriacutedico

Quanto ao primeiro ponto Machado (2013) se ocupa da anaacutelise do efeito de sentido das elementares integridade corporal e sauacutede encontradas no tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal para sugerir que o bem juriacutedico tutelado nesse dispositivo trans-cenderia a mera integridade fiacutesica para alcanccedilar tambeacutem a integri-dade moral e psicoloacutegica da viacutetima

O efeito de sentido atribuiacutedo ao caput do art 129 que visa acomodar a criminalizaccedilatildeo da violecircncia psicoloacutegica por si mesma exsurgiria a partir da pretensatildeo de dissociaccedilatildeo do corpus delicti em um binocircmio fisioloacutegico-psiacutequico que revelasse um caraacuteter plurio-fensivo do crime de lesatildeo corporal

Embora a construccedilatildeo do argumento seja coerente Macha-do (Idem) natildeo o acolhe como pressuposto para as suas conclusotildees acerca das razotildees para o deficit de efetividade do reconhecimento da violecircncia psicoloacutegica no acircmbito das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila

Admitindo esses argumentos a pesquisadora faz coro agrave visatildeo de esvaziamento da violecircncia psicoloacutegica como tipo penal para alocaacute-la apenas como ldquoparacircmetro interpretativordquo para outros tipos penais existentes na lei tais como ameaccedila caluacutenia denun-ciaccedilatildeo caluniosa constrangimento ilegal e injuacuteria muito embora admita que esses injustos-tipos se afigurem apenas como ldquomeios pelos quais se possa produzir um resultado final de prejuiacutezo agrave in-tegridade psicoloacutegicardquo

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Entretanto natildeo parece coerente tatildeo somente acoplar as formas de violecircncia de gecircnero previstas no art 7ordm da lei a tipos pe-nais preexistentes com singelas cominaccedilotildees legais Fazer isso seria reduzir ou mesmo dissolver os discursos de luta pela dignidade das mulheres em vez de os inserir em um contexto que represente uma regulamentaccedilatildeo eficaz agrave norma programaacutetica do art 226 sect8ordm da Constituiccedilatildeo cuja finalidade eacute criar mecanismos para coibir a violecircncia no acircmbito das relaccedilotildees da famiacutelia

Da mesma forma tambeacutem natildeo eacute aceitaacutevel que o efeito de sentido que a norma constitucional tenha pretendido atribuir ao signo ldquocoibirrdquo implique como resposta em forma de prestaccedilatildeo ju-risdicional apenas tirar da competecircncia dos Juizados Especiais os crimes que envolvam violecircncia domeacutestica e possibilitar que a mu-lher tenha a garantia de medidas de proteccedilatildeo em escala assecura-toacuteria crescente em gravidade agrave medida que se acentue o perigo agrave sua incolumidade fiacutesica

A questatildeo eacute que nem sempre o princiacutepio da reserva legal se serve de tipos com condutas criminosas escorreitas Ao contraacuterio frequentemente os tipos se revelam plurais como resultado mesmo do esforccedilo interpretativo sobre normas de extensatildeo da figura tiacutepica e elementos normativos do tipo que permitem uma elasticidade toleraacutevel para que o texto da lei alcance adequaccedilotildees que natildeo foram sugeridas pela letra estrita da norma penal incriminadora

Quando o texto do caput do art 129 do Coacutedigo Penal criminaliza a ofensa agrave ldquointegridade corporalrdquo ou agrave ldquosauacutede de ou-tremrdquo oferece sucessivamente ao inteacuterprete uma elementar objetiva e outra normativa A primeira diz respeito agrave agressatildeo ao corpo da viacutetima enquanto mateacuteria sob o aspecto exclusivamente fisioloacutegico Trata-se de desfigurar o que se fazia iacutentegro que sugere que qual-quer alteraccedilatildeo fisioloacutegica que o agressor produza na viacutetima por menor que seja e que sequer lhe abale o seu cotidiano deve mere-cer a censura da lei Estaacute-se a tratar de resultados naturaliacutesticos cla-ros derivados de um ato comissivo ou omissivo sem se exigir que sejam aferidas outras repercussotildees que se tenham dado na vida da viacutetima Aqui o foco eacute a alteraccedilatildeo da integridade fiacutesica em si

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Jaacute o signo ldquosauacutederdquo revela-se como uma elementar nor-mativa que desafia um juiacutezo de valor ou teacutecnico que o inteacuterprete lhe deveraacute atribuir para chegar agrave adequaccedilatildeo tiacutepica em cada caso concreto E eacute nesse momento que eclode a indagaccedilatildeo proacutepria das elementares normativas que no caso do crime do art 129 pode remeter a uma possibilidade plural de adequaccedilatildeo tiacutepica o que se entende por sauacutede A partir de seu conceito o que pode ser consi-derado como conduta que a ofenda

A Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) conceitua sauacutede como a ausecircncia de doenccedila aliada a uma situaccedilatildeo de bem-estar fiacutesico mental e social Sem pretender enveredar por uma extensa miriacuteade teacutecnica a que o vocaacutebulo sauacutede possa remeter ou incursio-nar pelas subjetividades que o termo bem-estar possa sugerir (FER-RAZ SEGRE 1997) o homem meacutedio de que se serve o Direito Pe-nal responderia que se entende por sauacutede tatildeo somente um estado de boa disposiccedilatildeo fiacutesica e psiacutequica que proporcione bem-estar ao ser humano Eis o ponto de estrangulamento da discussatildeo que se propotildee

Falar em comprometimento agrave sauacutede de algueacutem natildeo sig-nifica simplesmente comprometer as suas aptidotildees fiacutesicas mas tambeacutem de alguma forma ou em algum grau desestabilizar seu equiliacutebrio psiacutequico entendendo-o aqui tambeacutem como equiliacutebrio psicoloacutegico Pensar o contraacuterio seria como a proacutepria Machado (2013) lembra incursionar equivocadamente pela tendecircncia cultu-ral ocidental de ver o corpo como um ente essencialmente bioloacutegi-co

Com efeito ver a violecircncia domeacutestica sob a perspectiva da mera violecircncia fiacutesica e lhe exigir um resultado naturaliacutestico de mero dano fisioloacutegico apequena a sua importacircncia e desvirtua o propoacutesito institucional de a coibir porque assim de fato a violecircn-cia psicoloacutegica na Lei Maria Penha natildeo passaria de um vieacutes infor-mativo uacutetil apenas e unicamente para atribuir um rito diferente agrave instruccedilatildeo de um processo por um ldquotipo penal guarda-chuvardquo3 que por sua natureza e pela pena que lhe eacute cominada seria de menor

3 Expressatildeo usada por Isadora Vier Machado em sua tese de doutoramento

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potencial ofensivoTalvez esse olhar que definitivamente natildeo converge com

a mens legis da Lei n 113402006 ocorra em razatildeo de um outro equiacutevoco afeito agrave interpretaccedilatildeo acerca da teacutecnica legislativa aplica-da agrave espeacutecie

Eacute que a rigor o legislador natildeo precisaria criar um tipo penal novo para criminalizar a violecircncia psicoloacutegica com todas as vicissitudes que a compotildeem Na verdade o caraacuteter de uma novatio legis in pejus que denota a coerecircncia do ordenamento juriacutedico em coibir eficazmente a violecircncia de gecircnero fez-se sentir apenas ndash e foi suficiente nesse sentido ndash com a inserccedilatildeo do sect9ordm do art 129 do Coacutedigo Penal que criou uma qualificadora do crime de lesatildeo cor-poral para a hipoacutetese de a agressatildeo se dar em um contexto em que o agente ldquose prevaleccedila das relaccedilotildees domeacutesticasrdquo

Mas atente-se o legislador majorou a pena do crime de lesatildeo corporal por razotildees circunstanciais acerca de como ele se puder dar notadamente em contextos que a lei achou por bem considerar mais gravosos O que natildeo quer dizer que se esqueceu de especificar que essa mesma majoraccedilatildeo se daria em caso de vio-lecircncia psicoloacutegica ateacute porque esta eacute uma das formas de ofensa agrave sauacutede cuja caracterizaccedilatildeo se extrairaacute na verdade do exerciacutecio in-terpretativo a ser deflagrado sobre o elemento normativo ldquosauacutederdquo compreendido aqui sob o vieacutes de equiliacutebrio psicoloacutegico emocional alheio a perturbaccedilotildees psicopatoloacutegicas agraves quais a viacutetima natildeo tenha dado causa

O que parece estar havendo eacute que o titular da accedilatildeo penal estaacute interpretando o caput do artigo 129 sob o paradigma da lesatildeo corporal enquanto violecircncia fiacutesica sem atentar que jaacute haacute o reco-nhecimento pelo ordenamento juriacutedico (e natildeo precisaria haver) de uma nova figura que modula o elemento normativo do tipo (sauacute-de) qual seja o conceito de violecircncia psicoloacutegica inserto no art 7ordm inciso II da Lei Maria da Penha A bem do coerente a violecircncia psicoloacutegica eacute que se encaixa no tipo do art 129 quando modula o seu elemento normativo

A outra problematizaccedilatildeo sugerida pela pesquisadora trata

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da deficiecircncia dos operadores do Direito em conhecimentos trans-disciplinares notadamente dos membros do Ministeacuterio Puacuteblico A seu sentir essa capacitaccedilatildeo eacute necessaacuteria para que a violecircncia psi-coloacutegica natildeo seja refeacutem de leituras subjetivas e passe a ser melhor reconhecida nos fatos criminosos a fim de servir de justificativa para que os tipos penais a que se agrega possam merecer uma per-secuccedilatildeo penal segundo o que prega a Lei Maria da Penha

Quanto aos crimes mais graves para a consecuccedilatildeo dos quais a violecircncia domeacutestica ndash natildeo necessariamente psicoloacutegica ndash te-nha sido apenas um meio ou conduta concomitante menos gravo-sa o reconhecimento dessa violecircncia seraacute importante apenas para habilitar o julgador a deferir as medidas de proteccedilatildeo previstas em lei inclusive a prisatildeo cautelar para os casos de crimes que em ra-zatildeo da sua pena natildeo admitam a prisatildeo preventiva Deveratildeo ser demonstrados para isso que haacute uma relaccedilatildeo de poder baseada no gecircnero que ocorreram os resultados previstos na lei em qualquer um dos planos de violecircncia seja fiacutesica psicoloacutegica patrimonial moral ou sexual que o fato se deu na unidade domeacutestica da famiacute-lia ou em razatildeo de qualquer relaccedilatildeo de afeto e que a violecircncia eacute considerada independente da orientaccedilatildeo sexual da viacutetima

Natildeo haacute duacutevidas de que a preocupaccedilatildeo com o conhecimen-to transdisciplinar se justifica com toda forccedila para a caracterizaccedilatildeo do que poderiacuteamos chamar de violecircncia psicoloacutegica pura Eacute que in-dependentemente de haver violecircncia fiacutesica como afirma Machado (2013 p 174) em outro contexto ldquoa identificaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo de violecircncia psicoloacutegica requer que o problema apresentado seja minuciosamente sondadordquo Isso porque os seus danos se apresen-tam como resultado de posturas sutis praticadas pelo agressor no dia a dia A mulher pode perfeitamente natildeo ter sofrido violecircncia fiacutesica mas ainda assim ter sido aviltada na sua integridade psiacute-quica em niacuteveis significativos

Frise-se que o comportamento insidioso do agressor pode desencadear uma seacuterie de asseacutedios psicoloacutegicos importantes que podem significar ofensas agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima Forte em es-tudos de Marie-France Hirigoyen Machado (2013) pontua os com-

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portamentos que mais comumente eclodem na relaccedilatildeo conjugal controle isolamento ciuacuteme patoloacutegico asseacutedio aviltamento (mi-nar a autoestima) humilhaccedilotildees intimidaccedilatildeo indiferenccedila a deman-das afetivas e ameaccedilas Eles podem causar diagnoacutesticos de com-prometimentos psicoloacutegicos importantes inclusive os de ordem psicossomaacutetica que requerem realmente conhecimentos teacutecnicos de cliacutenica meacutedica psicologia e ou psiquiatria para ser apontados em processos judiciais como provaacuteveis conteuacutedos do que a Lei Maria da Penha considera como resultados alcanccedilaacuteveis pela vio-lecircncia psicoloacutegica prejuiacutezo agrave autodeterminaccedilatildeo dano emocional diminuiccedilatildeo da autoestima prejuiacutezo ao pleno desenvolvimento de-gradaccedilatildeo e controle que podem definir prejuiacutezo intenso da sauacutede psicoloacutegica

Contudo eacute importante observar que pelo menos para a propositura da accedilatildeo penal em razatildeo de uma lesatildeo agrave sauacutede com base no art 129 do Coacutedigo Penal natildeo eacute imprescindiacutevel que o promotor de justiccedila labore em cogniccedilatildeo exauriente para demonstrar o juiacutezo de mera probabilidade criminosa exigido para a formulaccedilatildeo da de-nuacutencia que se traduz no texto da lei como ldquoindiacutecios suficientes de materialidade e autoriardquo aleacutem da demonstraccedilatildeo do elemento sub-jetivo da conduta exigido dolo ou culpa Jaacute para a prolataccedilatildeo da sentenccedila eacute de bom alvitre que a viacutetima seja submetida ao atendi-mento interdisciplinar a tiacutetulo de periacutecia para que sejam aferidos tecnicamente os resultados que a violecircncia psicoloacutegica provocou para daiacute restarem comprovados ou natildeo os elementos necessaacuterios agrave adequaccedilatildeo tiacutepica na fase de sentenccedila

A falta de percepccedilatildeo preacutevia da violecircncia psicoloacutegica nas delegacias de poliacutecia aliada agrave postura conservadora dos promoto-res de justiccedila de natildeo a considerar como espeacutecie autocircnoma de lesatildeo corporal que comprometa a sauacutede da viacutetima de fato faz com que essa espeacutecie de violecircncia embora relatada natildeo apareccedila nas esta-tiacutesticas do combate agrave violecircncia domeacutestica Menos aparecem ainda porque os crimes aos quais geralmente se acoplam para conduzir a persecuccedilatildeo criminal agrave luz da Lei Maria da Penha (ameaccedila injuacute-ria caluacutenia denunciaccedilatildeo caluniosa e ou constrangimento ilegal)

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tecircm pena cominada diminuta e na sua maioria tecircm natureza de accedilatildeo penal privada ou puacuteblica condicionada agrave representaccedilatildeo cuja disponibilidade que provoca na persecuccedilatildeo criminal eacute demasia-damente promovida por mulheres viacutetimas tambeacutem do asseacutedio do poder econocircmico dos agressores e de questotildees emocionais afetas aos filhos e ao casal que natildeo permitem o rompimento dos laccedilos conjugais e que geram na ofendida uma toleracircncia ciclicamente aprisionante agraves agressotildees

Assim do enfrentamento criacutetico das problemaacuteticas apon-tadas extraem-se quatro conclusotildees que se consideram importan-tes

1) quanto agrave primeira problemaacutetica sugerida o ordenamen-to juriacutedico admite a formulaccedilatildeo de accedilatildeo penal em razatildeo de vio-lecircncia psicoloacutegica autocircnoma como conteuacutedo da modulaccedilatildeo do ele-mento normativo ldquosauacutederdquo do tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal natildeo se servindo essa espeacutecie de violecircncia de gecircnero apenas para acoplar-se a outros tipos penais como paracircmetro interpreta-tivo para tatildeo somente conduzir a persecuccedilatildeo penal destes ao acircm-bito do rito penal ordinaacuterio e para garantir a aplicaccedilatildeo de medidas protetivas de urgecircncia

2) quanto agrave segunda embora natildeo se ignore que seja ne-cessaacuterio haver um incremento na formaccedilatildeo dos profissionais do Direito notadamente dos Defensores Delegados Promotores de Justiccedila e Magistrados quanto agraves questotildees de gecircnero e conhecimen-tos transdisciplinares correlatos esse diferencial intelectual natildeo indica que serviraacute apenas para identificar a violecircncia psicoloacutegica no suporte faacutetico que subjaz na adequaccedilatildeo a ldquotipos penais guarda-chuvasrdquo para que a partir daiacute as viacutetimas aufiram os benefiacutecios da Lei Maria da Penha Mais do que isso com base na premissa da existecircncia de reserva legal para o crime de lesatildeo agrave sauacutede psicoloacute-gica em razatildeo da modulaccedilatildeo do elemento normativo ldquosauacutederdquo en-contrado do injusto-tipo do caput do art 129 esses conhecimentos transdisciplinares ndash e ateacute mesmo o apoio de equipe interdisciplinar ndash seriam mais importantes para identificar a violecircncia psicoloacutegica nas sutilezas de que se reveste no dia a dia para de logo e antes

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de se associar a outras formas de violecircncia merecer uma postura das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila que convirja realmente com a norma programaacutetica constitucional de ldquocoibir a violecircncia no acircm-bito das relaccedilotildees da famiacuteliardquo

3) Dessas duas primeiras conclusotildees extrai-se mais uma quanto agrave necessidade de duas mudanccedilas de postura institucional no acircmbito do Ministeacuterio Puacuteblico uma teacutecnico-juriacutedica no sentido de repensar a interpretaccedilatildeo do tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal a partir do poder modulador que o conceito de violecircncia psicoloacutegica exerce sobre o elemento normativo ldquosauacutederdquo e outra quanto ao incremento intelectual e na estrutura de pessoal das pro-motorias de justiccedila no sentido de qualificar formalmente os pro-motores em questotildees de gecircnero e dotar as promotorias do serviccedilo interdisciplinar psicossocial para avaliar a incidecircncia de eventos de violecircncia psicoloacutegica nos casos que chegam para deliberaccedilatildeo acerca do que foi produzido nas investigaccedilotildees policiais

4) Por fim a necessidade de se desenvolverem fluxos nas delegacias de poliacutecia atraveacutes dos quais com a utilizaccedilatildeo de anam-neses na forma de entrevistas agraves ofendidas ficariam evidenciados desde o iniacutecio os indiacutecios da presenccedila da violecircncia psicoloacutegica e dos seus efeitos danosos agrave sauacutede das viacutetimas

Da Necessidade de Enfrentamento da Violecircncia Psicoloacutegica a partir do Mapa da Violecircncia

Observa-se que algumas anomalias no funcionamento das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila levam agrave invisibilidade da respos-ta da Justiccedila a violecircncia psicoloacutegica sofrida pelo gecircnero feminino mesmo apoacutes a vigecircncia da Lei Maria da Penha Mais ainda essas anomalias levam mesmo ateacute agrave exclusatildeo da consideraccedilatildeo desse tipo de violecircncia como evento provocador de uma persecuccedilatildeo penal independente

A obviedade da influecircncia dessas anomalias que se ma-terializam nessa invisibilidade aparece nos nuacutemeros do mapa da violecircncia contra a mulher Pesquisa mostra que em 2014 das no-

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tificaccedilotildees de violecircncia contra a mulher lanccediladas no Sistema de In-formaccedilatildeo de Agravos de Notificaccedilatildeo (SINAN) a partir de informaccedilotildees originaacuterias do atendimento do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) depois da violecircncia fiacutesica o tipo de violecircncia sofrida pelas mulheres mais relatado foi a psicoloacutegica Tomando-se como referecircncia o puacuteblico feminino de jovens e adultas em que eacute maior a incidecircncia de vio-lecircncia praticada por cocircnjuges e ex-cocircnjuges (WAISELFISZ 2015 p 49) vecirc-se que 589 das jovens e 571 das adultas atendidas pelo serviccedilo de sauacutede puacuteblica relataram ter sofrido violecircncia fiacute-sica A partir do mesmo nuacutemero absoluto do qual se aferiu essa porcentagem verifica-se que 245 das jovens e 266 das adultas relataram ter sofrido violecircncia psicoloacutegica aleacutem da violecircncia fiacutesica ou independente dela (WAISELFISZ 2015) Esse percentual cai sensivelmente quando se falam de outras formas de violecircncia

Pesquisa acerca do ano de 2014 da Central de Atendimen-to agrave Mulher (Ligue 180) natildeo destoa da verificaccedilatildeo de alta incidecircncia de informaccedilotildees acerca da violecircncia psicoloacutegica sofrida e relatada pelas ofendidas Naquele ano 3181 das mulheres atendidas re-lataram a violecircncia psicoloacutegica como uma das ou a espeacutecie exclusi-va de violecircncia sofrida atraacutes apenas da violecircncia fiacutesica que repre-sentou 5168 dos relatos (BRASIL 2015)

Percebe-se pois que os eventos de violecircncia psicoloacutegica

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existem e satildeo vultosos Aleacutem disso a pesquisa mostra que dos casos em que houve relatos de violecircncia contra a mulher no atendi-mento do SUS 462 dos que foram relatados por mulheres jovens foram encaminhados a instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila assim como 461 dos casos relatados por adultas Somando-se os en-caminhamentos agraves delegacias especializadas em defesa da mulher e agraves delegacias gerais tem-se 372 entre os 462 encaminhados agraves Instituiccedilotildees do sistema de defesa da mulher em se tratando de relatos de violecircncia feitos por mulheres jovens (805 dos casos) e 36 entre os 461 encaminhados agraves mesmas Instituiccedilotildees em se tratando de relatos feitos por mulheres adultas (78 dos casos) (WAISELFISZ 2015)

O que se pode concluir eacute que ou por deficit de remessa dos casos de violecircncia psicoloacutegica agraves delegacias ou por falta de inves-tigaccedilotildees concentradas tambeacutem nessa espeacutecie de violecircncia ou por um deficit de formulaccedilatildeo de denuacutencias que a tenham considerado como circunstacircncia moduladora do elemento normativo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal o que eacute sintomaacutetico eacute que a violecircncia psicoloacutegica natildeo aparece nos nuacutemeros de condenaccedilotildees da Justiccedila como delito autocircnomo Exemplo disso eacute o levantamento estatiacutes-tico da uacutenica Vara Especial de Violecircncia Domeacutestica e Familiar contra a Mulher de Satildeo Luiacutes capital do Estado do Maranhatildeo O lapso temporal da pesquisa refere-se aos meses de junho e de julho dos anos de 2012 e 2013

Os nuacutemeros referidos na pesquisa mostram que dos pro-cessos que tramitaram naquela Vara naquele periacuteodo e que se re-feriram a Medidas Protetivas de Urgecircncia 36 relataram violecircncia psicoloacutegica em 2012 e 35 em 2013 Mais ateacute do que os relatos de violecircncia fiacutesica que ocuparam 26 em 2012 e 29 em 2013 (MA-RANHAtildeO 2014)

Quanto aos nuacutemeros referentes agraves sentenccedilas vecirc-se que 91 delas foram ldquosentenccedilas inibitoacuteriasrdquo em 2012 e 92 em 2013 A pesquisa relata que essas sentenccedilas tecircm o ldquoobjetivo de coibir o ato violento praticado pelo requeridordquo contudo natildeo se tratam neces-sariamente de sentenccedilas de meacuterito em que se vejam condenaccedilotildees

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por violecircncia domeacutestica e muito menos em que se possam aferir nuacutemeros acerca das condenaccedilotildees por lesotildees corporais com ofensa agrave sauacutede psiacutequica das viacutetimas

Com pequena variaccedilatildeo nos nuacutemeros a tendecircncia se repete na pesquisa publicada em 2015 realizada pela mesma Vara espe-cializada e que teve os meses de janeiro a abril de 2014 como obje-to de anaacutelise (MARANHAtildeO 2015)

Esse cenaacuterio emerge em que pese o reconhecimento de que a violecircncia psicoloacutegica pura pode gerar um estado patoloacutegico em diversos niacuteveis tende a ser cronificada e extremamente destrui-dora porque geralmente eacute praticada por um agressor com quem a viacutetima manteve uma relaccedilatildeo de afeto e de quem espera algum niacutevel de respeito A vinculaccedilatildeo afetiva preteacuterita ou presente entre agressor e viacutetima comumente gera um sentimento de culpa da viacuteti-ma em relaccedilatildeo agrave violecircncia sofrida podendo contribuir para que ela questione inclusive sua sanidade mental Fecha-se assim um ciclo torturante e doloroso de comprometimento da sauacutede da viacutetima de violecircncia domeacutestica

Induvidoso que essa premissa conceitual faz emergirem discrepacircncias entre as adequaccedilotildees tiacutepicas dos crimes contra a hon-ra e ateacute dos de ameaccedila ndash que satildeo aferiacuteveis por evento e satildeo pontua-dos no tempo e no espaccedilo ndash e os de lesatildeo agrave sauacutede em razatildeo de violecircn-cia psicoloacutegica Eacute que nestes se tratam de resultados naturaliacutesticos aferiacuteveis no acircmbito do psiquismo mediante juiacutezos de valor ou teacutec-nicos Falam-se como relata a Psicoacuteloga Juriacutedica Sonia Rovinski de sintomas como choque negaccedilatildeo recolhimento confusatildeo entor-pecimento medo depressatildeo desesperanccedila baixa autoestima e ne-gaccedilatildeo sendo o transtorno de estresse poacutes-traumaacutetico um dos quadros cliacutenico-patoloacutegicos mais comuns (MACHADO 2013)

Portanto chega-se agrave conclusatildeo de que a mudanccedila insti-tucional para um enfrentamento mais eficaz desse estado de coi-sas soacute poderaacute ocorrer com o desenvolvimento de fluxos ainda na delegacia de poliacutecia que ofereccedilam elementos indiciaacuterios baacutesicos para que o oacutergatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico dotado de conhecimentos transdisciplinares afetos agrave teoria de gecircnero possa formular accedilotildees

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penais com adequaccedilotildees tiacutepicas que tratem de lesotildees corporais agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima de violecircncia domeacutestica

A Anamnese acerca da Violecircncia Psicoloacutegica na Persecuccedilatildeo Criminal Preliminar

Diante da dificuldade de se inaugurarem persecuccedilotildees pe-nais em razatildeo da violecircncia psicoloacutegica que caracterize a ofensa agrave sauacutede da viacutetima do gecircnero feminino eacute importante que se estabe-leccedilam fluxos baacutesicos para investigar indiacutecios dessas lesotildees ainda nas delegacias de poliacutecia de forma a proporcionar que o oacutergatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico munido de conhecimentos transdisciplinares possa posteriormente identificar a probabilidade de ocorrecircncia de algum transtorno ou sintoma psiacutequico em razatildeo da violecircncia para entatildeo formular accedilatildeo penal adequada e requerer a condenaccedilatildeo es-peciacutefica por lesatildeo agrave sauacutede psiacutequica da ofendida

Para esse fim eacute importante que se construa uma anamnese com alguns questionamentos agrave ofendida e que comporiam o cader-no policial Essa entrevista colimaria por evidenciar as posturas do agressor e consequecircncias delas referentes agraves violecircncias psicoloacutegicas que satildeo previstas na LMP e em seguida visaria perquirir caracte-riacutesticas que levassem aos sintomas das patologias mais comuns em razatildeo de violecircncia psicoloacutegica o Transtorno de Estresse Poacutes-Traumaacute-tico (TEPT) (CID 10 F 431) e Siacutendrome da Mulher Espancada (SME)

Quanto agrave primeira patologia trata-se de um distuacuterbio de ansiedade que faz com que pessoas que tenham presenciado ou sido viacutetimas de atos percebidos como intensamente violentos pas-siacuteveis de comprometerem sua seguranccedila ou de outrem revivam o episoacutedio pela representaccedilatildeo mental mas como se ele estivesse ocorrendo novamente revivendo-se as mesmas sensaccedilotildees dores e sofrimentos experimentados outrora mesmo diante de fatos novos potencialmente menos danosos Jaacute quando agrave segunda a siacutendrome se desenvolve em trecircs fases primeira o agressor assume postu-ras que criam tensotildees no relacionamento depois o estado de ten-satildeo migra para as agressotildees efetivas de qualquer espeacutecie por fim

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ocorre a fase da reconciliaccedilatildeo em que a mulher perdoa o agressor mas o ciclo de violecircncia recomeccedila e a viacutetima passa a atribuir a si a culpa dos atos do seu algoz assumindo a responsabilidade por eles ocorrerem Este estado mental continuado pode desencadear sintomas psicoloacutegicos e psicossomaacuteticos diversos alterando inclu-sive a percepccedilatildeo de realidade da viacutetima

A anamnese poderia ser composta de trecircs blocos de per-guntas semiestruturadas em cujas respostas a ofendida entrevista-da poderia desenvolver os detalhes acerca dos sintomas sem que percebesse que estaria falando deles

1ordf Fase Caracteriacutesticas gerais da violecircncia psicoloacutegica previstas na LMP

1) Vocecirc acha que por algum motivo o comportamento ou a atitude do seu namoradocompanheiromarido (NCM) compro-meteu ou compromete o sentimento de valor e seguranccedila que vocecirc tem de vocecirc mesma Relate os episoacutedios quando eles ocorrem e o que vocecirc sente quando eles acontecem (Esse quesito investiga a diminuiccedilatildeo de autoestima e seguranccedila da viacutetima)

2) Vocecirc acha que em razatildeo de algum comportamento ou atitude do seu NCM vocecirc se sentiu ou se sente controlada ou me-nosprezada com relaccedilatildeo ao que vocecirc acredita e quer para si no que se refere a comportamentos crenccedilas e decisotildees de vida Relate os episoacutedios e se eles ocorrem mediante algum desses elementos ameaccedila constrangimento humilhaccedilatildeo manipulaccedilatildeo isolamento vigilacircncia constante perseguiccedilatildeo frequente insulto chantagem ridicularizaccedilatildeo exploraccedilatildeo limitaccedilatildeo do seu desejo de se deslocar para onde queira ou outro natildeo especificado

2ordf Fase Caracteriacutesticas acerca do Transtorno de Estresse Poacutes-traumaacutetico

3) Relate que tipo de violecircncia vocecirc sofreu do seu NCM quando e com que frequecircncia ela(s) ocorreu(ram) ou ocorre(m)

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fiacutesica (lesatildeo ao corpo) psicoloacutegica (que a deixou desestabilizada emocionalmente por um periacuteodo de meacutedio a longo prazo) sexual (praacutetica de ato sexual natildeo consentido) tortura (sofreu lesotildees me-diante praacuteticas que vocecirc considerou abominaacuteveis ou especialmen-te ultrajantes) patrimonial (teve seus objetos pessoais e bens dani-ficados ou destruiacutedos) moral (sentiu-se atacada na sua honra ou quanto ao conceito que vocecirc tem de vocecirc mesma ou ainda quanto ao conceito que acredita que os outros tecircm de vocecirc)

4) Vocecirc tem lembranccedilas espontacircneas recorrentes (natildeo su-geridas por outrem) desse(s) episoacutedio(s) de violecircncia(s) Tem pe-sadelos com ele(s) Explique em que situaccedilotildees essas lembranccedilas (flashbacks) acontecem

5) Haacute objetos lugares pessoas comportamentos muacutesicas contatos atividades ou qualquer outra coisa que a remeta agrave lem-branccedila da(s) violecircncia(s) Vocecirc costuma usar da estrateacutegia de fuga ou desvio de quaisquer dessas coisaspessoascircunstacircncias que a possam rememorar a lembranccedila da agressatildeo sofrida Explique como vocecirc lida com essas lembranccedilas

6) Como vocecirc avalia o seu grau de interesse afetivo pelas pessoas que fazem parte de seu ciclo de vida (NCM pais filhos irmatildeos amigos colegas de escolafaculdade ou trabalho) Sente que essas relaccedilotildees jaacute foram mais prazerosas que mantecircm uma es-tabilidade quanto agrave sua satisfaccedilatildeo pessoal ou esse grau de satisfa-ccedilatildeo diminuiu Relate situaccedilotildees que possam respaldar os sentimen-tos relatados

7) Quando ocorrem fatos que lhe causam tensatildeo e que vocecirc considera anormais agrave sua rotina (fatos que causam excitaccedilatildeo emo-cional) vocecirc considera que tem um bom grau de autocontrole em relaccedilatildeo a eles ou se acha muito sensiacutevel a essas situaccedilotildees Vocecirc tem reaccedilotildees a esses fatos que considere repentinas eou instantacircneas que causam aceleraccedilatildeo de batimentos cardiacuteacos transpiraccedilatildeo ca-lor ou medo de morrer Apoacutes essas situaccedilotildees eacute comum vocecirc apre-sentar dificuldades para comeccedilar a dormir ou atingir sono profun-do dificuldade de concentraccedilatildeo facilidade de irritaccedilatildeo estado de alerta (hipervigilacircncia) ou alteraccedilatildeo de seu ciclo de fome deixando

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de sentir fome ou comendo demais por ansiedade8) Vocecirc se sente impotente em algum aspecto da sua vida

Acha-se incapaz de se proteger de perigos De alguma forma ou em algum grau natildeo tem esperanccedilas em relaccedilatildeo ao futuro ou tem sensaccedilatildeo de vazio A que vocecirc atribui essas sensaccedilotildees

3ordf Fase Caracteriacutesticas acerca da Siacutendrome da Mulher Espancada

9) Vocecirc considera que tem dependecircncia econocircmica em re-laccedilatildeo ao seu NCM Decirc detalhes da sua vida financeira e se souber do orccedilamento familiar (receitas e despesas)

10) Antes das agressotildees sofridas seu NCM criava situa-ccedilotildees que a deixavam embaraccedilada incomodada e que a faziam pen-sar que talvez ele natildeo fosse a melhor pessoa para vocecirc Relate os episoacutedios que lembre

11) Seu NCM costumava ou costuma pedir perdatildeo eou demonstrar arrependimento profundo apoacutes os episoacutedios de vio-lecircncia cometidos Vocecirc perdoou seu NCM das agressotildees que so-freu dele O que vocecirc levou em consideraccedilatildeo para perdoaacute-lo

12) Depois do perdatildeo agraves agressotildees o relacionamento cos-tuma ficar bem por certo tempo (em clima de lua de mel) Com que frequecircncia estes episoacutedios de arrependimento aconteciam ou acontecem Quanto tempo costuma transcorrer ateacute o proacuteximo epi-soacutedio de agressatildeo

13) Mesmo depois da(s) agressatildeo(otildees) sofrida(s) vocecirc con-sidera que conseguiraacute manter um clima de paz no relacionamento e que convenceraacute o seu NCM a fazer o mesmo Quais as estrateacute-gias que costuma usar Explique o que vocecirc acha que levaraacute a esse estado de paz

14) Por que vocecirc acha que essas agressotildees acontecem (A intenccedilatildeo da pergunta eacute avaliar se a viacutetima se sente culpada pelas agressotildees sofridas indicando seu grau de vulnerabilidade)

15) Vocecirc teme ser agredida de uma forma mais grave pelo seu NCM Houve ameaccedila dele nesse sentido Em caso afirmativo relate o que a leva a ter esse medo

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16) Seu NCM fez ou faz ameaccedilas de agredir a vocecirc ou a algueacutem que vocecirc ame caso de separeseparasse dele Relate epi-soacutedios

17) Vocecirc se sente impotente para tomar alguma atitude contra o seu NCM que possa resultar em puniccedilatildeo dele em razatildeo da(s) agressatildeo(ccedilotildees) sofrida(s) por vocecirc Por quecirc Explique

18) Vocecirc acredita ou acreditava que o contato com auto-ridades para tratar da violecircncia sofrida faraacute(ia) com que vocecirc so-fra(fesse) agressotildees mais graves por seu NCM Em caso positivo explique o que a leva a pensar assim

19) Vocecirc costuma ingerir bebidas alcooacutelicas usar drogas ou fazer uso de algum medicamento Considera que depois das agressotildees sofridas esses haacutebitos ficaram mais recorrentes no seu dia a dia

Importante destacar que essa anamnese tem a finalidade de o Delegado de Poliacutecia poder proceder a um relatoacuterio mais com-pleto em que aflorem caracteriacutesticas da lesatildeo agrave sauacutede da ofendida em razatildeo da violecircncia psicoloacutegica e para que a par dessa consta-taccedilatildeo o Ministeacuterio Puacuteblico possa denunciar o agressor com fulcro no caput do art 129 do Coacutedigo Penal combinado com o seu sect9ordm de sorte a atribuir agrave violecircncia psicoloacutegica uma razatildeo autocircnoma para a condenaccedilatildeo criminal por lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica ou havendo con-comitacircncia com outras formas de violecircncia para que seja conside-rada como motivaccedilatildeo para majoraccedilatildeo da dosimetria da pena em razatildeo do elevado grau de culpabilidade (intensidade de dolo) impu-tado ao agressor

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Diante do que se observou os fins colimados pela Lei Ma-ria da Penha na sua melhor extensatildeo dependem do desapego da praacutetica juriacutedica ndash sobretudo na fase de persecuccedilatildeo criminal preli-minar ndash a uma postura culturalmente positivista e ou reducionista de se esperar que a lei ofereccedila soluccedilotildees ostensivamente previstas para as demandas criminais que envolvam a violecircncia domeacutestica

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No que interessa agrave figura da violecircncia psicoloacutegica urge observar que a sua consideraccedilatildeo nos casos concretos se serve para bem mais do que funcionar como vetor de poliacutetica criminal que permita remeter os processos de violecircncia domeacutestica para a com-petecircncia das(dos) VarasJuizados de Violecircncia Domeacutestica e familiar contra a mulher imprimindo a esses casos a possibilidade de medi-das protetivas de urgecircncia em favor da ofendida e medidas restri-tivas mais duras contra o agressor que convirjam com a poliacutetica de coibiccedilatildeo da violecircncia contra a mulher

Mais do que isso a legislaccedilatildeo oferece alternativas para que os agressores se vejam condenados pela proacutepria violecircncia psico-loacutegica como resultado de uma tipificaccedilatildeo da ofensa agrave sauacutede (caput do art 129 do Coacutedigo Penal) ou como elemento que incremente a dosimetria penal em razatildeo da sua incidecircncia sobre o grau de culpa-bilidade enquanto intensidade do dolo na praacutetica do delito

Eacute preciso entretanto que os operadores do direito do sis-tema de justiccedila se deem agrave atribuiccedilatildeo de juiacutezo de valor ao elemento normativo sauacutede encontrado no tipo do art 129 para que a respos-ta judicial quanto agrave violecircncia psicoloacutegica apareccedila nos nuacutemeros do Judiciaacuterio Para isso fazem-se necessaacuterios incentivar a aquisiccedilatildeo de conhecimentos transdisciplinares pelos profissionais do Siste-ma de Justiccedila e a criaccedilatildeo de fluxos desde as delegacias de poliacutecia com formulaccedilatildeo de questionaacuterios agraves ofendidas agrave guisa de anamne-se para que haja indiacutecios fortes que possam fundar accedilotildees penais puacuteblicas que sejam aptas a provocar condenaccedilotildees por ldquolesatildeo agrave sauacute-de psicoloacutegicardquo

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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CIDADE SEM FRONTEIRAS FRONTEIRAS SEM CIDADES

Daniella S Dias1

RESUMO O presente artigo eacute um estudo bibliograacutefico e aponta processo de urbanizaccedilatildeo global a desigualdade planetaacuteria a periferizaccedilatildeo e a favelizaccedilatildeo mundiais como efeitos da globalizaccedilatildeo Apresenta reflexotildees sobre os efeitos da produccedilatildeo capitalista do espaccedilo sobre nossas cidades e sobre nossas vidas e como o atual modelo capitalista tem corroborado para que nossas cidades se tornem espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de atividades capitalistas produtivas Aponta a responsabilidade do Estado para o controle sobre o territoacuterio face agrave transformaccedilatildeo que o modelo capitalista produz nos espaccedilos urbanos e rurais e para a implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais para o enfrentamento da segregaccedilatildeo e da desigualdade social e analisa como as atuais poliacuteticas habitacionais implementadas pelo Estado brasileiro tem propiciado a segregaccedilatildeo socioespacial e a financeirizaccedilatildeo da moradia

PALAVRAS-CHAVE Globalizaccedilatildeo Direito agrave moradia Direito agrave cidade

ABSTRACT The present article is a bibliographic study that addresses the process of global urbanization the planet social inequality the peripheraization and the world phenomenon of shanty towns as effects of globalization It provides reflections on the effects of the capitalist space production in our cities and our lives as well as on how the current capitalist model has supported the fact that our cities have become essential spaces for the development of capitalist production activities It addresses the responsibilities of the State with the control over territorial space vis-a-vis the transformation that the capitalist model has caused in the urban and rural spaces as well as with the implementation of housing development policies for coping with the social segregation

1 Doutora em Direito Puacuteblico ndash UFPE Professora da Graduaccedilatildeo e Poacutes-graduaccedilatildeo UFPAUNIFESSPA e Promotora de Justiccedila

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and inequality Furthermore it analyzes how the current housing devepment policies as implemented by the Brazilian State has led to the socio-spatial segregation and the financialization of housing development

KEYWORDS Globalization Right to the city The right to housing

INTRODUCcedilAtildeO

Neste artigo pretendemos abordar alguns dos temas mais delicados a serem enfrentados pelos paiacuteses desenvolvidos e sub-desenvolvidos como o processo de urbanizaccedilatildeo global de perife-rizaccedilatildeo e de favelizaccedilatildeo mundiais a desigualdade planetaacuteria e o desafio de concretizaccedilatildeo do direito agrave cidade Contudo nenhuma reflexatildeo pode ser realizada de forma descontextualizada pois o processo de urbanizaccedilatildeo global tem intriacutenseca relaccedilatildeo com o de-senvolvimento do modelo capitalista transnacional e seus deleteacute-rios efeitos sobre a qualidade de vida nos espaccedilos urbanos e rurais

Eacute necessaacuterio refletir sobre os processos de diferenciaccedilatildeo espacial que seguem apartando camadas hipossuficientes das possibilidades de desenvolvimento humano e de exerciacutecio da cidadania culminando em segregaccedilatildeo histoacuterica cultural econocirc-mica tecnoloacutegica e digital Nesse sentido a mundializaccedilatildeo do ca-pital tem intriacutenseca relaccedilatildeo com a existecircncia e com a inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas habitacionais o que tem tornado nossas cida-des espaccedilos para a reproduccedilatildeo do capital

Uma das funccedilotildees do Estado para o controle sobre o terri-toacuterio face agrave transformaccedilatildeo que o modelo capitalista produz nos es-paccedilos urbanos e rurais eacute a de implementar poliacuteticas habitacionais como forma de enfrentamento da segregaccedilatildeo e da desigualdade social Refletir sobre o direito agrave moradia como bem social eacute tarefa imprescindiacutevel tarefa que natildeo se realiza sem anaacutelise criacutetica sobre as atuais poliacuteticas habitacionais implementadas pelo Estado brasi-leiro

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A Globalizaccedilatildeo o Processo de Urbanizaccedilatildeo Global e a Desigualdade Planetaacuteria

A globalizaccedilatildeo eacute uma nova ordem paradigmaacutetica (CUNHA 1998) que por meio das revoluccedilotildees teacutecnico-cientiacuteficas e das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas levou agrave compressatildeo das categorias tempo e espaccedilo (BECK 2000) Trata-se de uma nova forma de in-terconexatildeo entre Estado e sociedade interconexatildeo que se estabele-ce por meio de um novo marco econocircmico que gerou e tem pro-vocado profundas modificaccedilotildees nos acircmbitos econocircmico poliacutetico juriacutedico ambiental cultural e sobretudo territorial (DIAS 2010)

Para Julio-Campuzano (2003 p 19-20)

La globalizacioacuten representa como sostiene Octavio Ianni un nuevo ciclo de expansioacuten del capitalismo como modo de produccioacuten y proceso civilizatorio de alcance mundial un ciclo caracterizado por la integracioacuten de los mercados de forma avasalladora y por la intensificacioacuten de la circulacioacuten de bienes servicios tecnologiacuteas capitales e informaciones a niacutevel planetario De este modo la globalizacioacuten apa-rece concebida como la lsquointegracioacuten sisteacutemica de la economiacutea a nivel supranacional deflagrada por la creciente diferenciacioacuten estructural y funcional de los sistemas productivos y por la subsiguiente am-pliacioacuten de las redes empresariales comerciales y fi-nancieras a escala mundial actuando de modo cada vez maacutes independiente de los controles poliacuteticos y juriacutedicos a nivel nacionalrsquo Es lo que Wallerstein ha denominado lsquo economiacutea mundial capitalistarsquo un nuevo marco econocircmico mundial regido por el siste-ma capitalista cuya dinaacutemica expansiva alcanza asiacute su culminacioacuten De un extremo a otro del planeta el capitalismo se extiende y se ramifica en muacuteltiples derivaciones locales un uacutenico sistema cuyos des-doblamientos crean uma imagen de particularidad

O modelo capitalista global ou como apontam alguns au-tores o modelo capitalista transnacional tecnologicamente avan-ccedilado tem como consequecircncias o aumento do trabalho informal

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a precarizaccedilatildeo das relaccedilotildees trabalhistas a crise ecoloacutegica (BECK 2000) o aumento da desigualdade planetaacuteria cabendo destacar o processo de urbanizaccedilatildeo planetaacuteria que ocorre concomitantemen-te ao aumento da pobreza da periferizaccedilatildeo de enormes camadas populacionais e da inexistecircncia de condiccedilotildees de moradia digna (HARVEY 2014)

A desigualdade planetaacuteria se revela no crescimento ex-ponencial das favelas no processo de expansatildeo urbana ldquosem ci-dadesrdquo na falta de planejamento urbano e da prestaccedilatildeo de ser-viccedilos essenciais como saneamento baacutesico iluminaccedilatildeo seguranccedila puacuteblica entre outros serviccedilos Como bem ressalta Davis (2006) a expansatildeo urbana natildeo eacute a expressatildeo do desenvolvimento humano mas sim da reproduccedilatildeo da pobreza

Pobreza e favelizaccedilatildeo satildeo temas intrinsecamente rela-cionados Para Davis (2006) o crescimento populacional urbano no Terceiro Mundo nas proacuteximas deacutecadas dar-se-aacute nos espaccedilos destinados agraves comunidades informais

Os dados sugerem que os assentamentos precaacuterios seratildeo formas dominantes de ocupaccedilatildeo territorial Segundo pesquisa rea-lizada pela ONU 32 da populaccedilatildeo mundial vivem em favelas (COSTA e PORTO-GONCcedilALVES 2006) e os assentamentos precaacute-rios trazem consigo problemas de distintas ordens Contudo vale destacar de acordo com Castel (2008) dentre os efeitos nefastos do processo de periferizaccedilatildeo mundial a segregaccedilatildeo social cultural poliacutetica tecnoloacutegica ambiental e territorial

As periferias natildeo se caracterizam apenas por ser espaccedilos de vida que se produziram de forma espontacircnea por meio da au-toconstruccedilatildeo desprovidos de serviccedilos essenciais do planejamento e da intervenccedilatildeo do estado Os espaccedilos perifeacutericos satildeo para Castel (2008 p 24-25) ldquoespaccedilos de desterrordquo de falta de futuro espaccedilos fraacutegeis que revelam a total ruptura do tecido social

O espaccedilo como bem pontua Santos (2008) eacute relacional O espaccedilo eacute dinacircmico resultado da intriacutenseca relaccedilatildeo entre configura-ccedilatildeo territorial paisagem e sociedade eacute ldquoo resultado da geografi-zaccedilatildeo da sociedade sobre a configuraccedilatildeo territorialrdquo (Idem p 85)

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Para o autor satildeo as relaccedilotildees socioespaciais as estruturas sociais que sofrem profundas modificaccedilotildees com o capital Portanto eacute ne-cessaacuterio refletir sobre os processos de diferenciaccedilatildeo espacial que seguem apartando camadas hipossuficientes das possibilidades de desenvolvimento humano e de exerciacutecio da cidadania

No Brasil natildeo podemos deixar de destacar que o processo de segregaccedilatildeo socioespacial eacute histoacuterico e natildeo se trata tatildeo somente de uma segregaccedilatildeo territorial A segregaccedilatildeo territorial traz a rebo-que uma segregaccedilatildeo histoacuterica cultural e econocircmica tecnoloacutegica e digital (DIAS 2014)

Davis (2006 p 27) ao tratar sobre o crescimento das fave-las no Brasil afirma que

As favelas de Satildeo Paulo ndash meros 12 da populaccedilatildeo em 1973 mais 198 em 1993 ndash cresceram na deacuteca-da de 1990 no ritmo explosivo de 164 ao ano Na Amazocircnia uma das fronteiras urbanas que cres-cem com mais velocidade em todo mundo 80 do crescimento das cidades tecircm-se dado nas favelas privadas em sua maior parte de serviccedilos puacuteblicos e transporte municipal tornando assim sinocircnimos lsquourbanizaccedilatildeorsquo e lsquofavelizaccedilatildeorsquo

Vale salientar como bem sintetiza Herardi (2017) a mun-dializaccedilatildeo do capital trouxe como efeitos o deacuteficit de poliacuteticas puacute-blicas habitacionais deacuteficit que propiciou ldquoa produccedilatildeo ilegal do espaccedilo urbanordquo ( p 6) Para a autora ldquoo quadro atual representa a continuidade do processo histoacuterico iniciado com a industrializaccedilatildeo e desenvolvimento econocircmico do Estado brasileiro sempre marca-do pela exclusatildeo e desigualdade socialrdquo (Idem)

Precisamos portanto refletir sobre os efeitos da produccedilatildeo capitalista do espaccedilo sobre nossas cidades e sobre nossas vidas pois o modelo capitalista por meio de sua ldquodestruiccedilatildeo criativardquo transforma paulatinamente nossas cidades em puro espaccedilo de tro-cas isto eacute espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de ativida-des capitalistas produtivas

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O Mercado Existe para as Cidades Ou as Cidades Existem para o Mercado

Essas perguntas natildeo podem ser respondidas sem que nos debrucemos sobre a anaacutelise teoacuterica realizada por David Harvey

Para Harvey (2014 p 30)

Desde que passaram a existir as cidades surgiram da concentraccedilatildeo geograacutefica e social de um excedente de produccedilatildeo A urbanizaccedilatildeo sempre foi portanto al-gum tipo de fenocircmeno de classe uma vez que os ex-cedentes satildeo extraiacutedos de algum lugar ou de algueacutem enquanto o controle sobre o uso desse lucro acumu-lado costuma permanecer nas matildeos de poucos

Essa situaccedilatildeo geral persiste sob o capitalismo sem duacutevida mas nesse caso haacute uma dinacircmica bem di-ferente em atuaccedilatildeo O capitalismo fundamenta-se como nos diz Marx na eterna busca de mais valia (lucro) Contudo para produzir mais valia os ca-pitalistas tecircm de produzir excedentes de produccedilatildeo Isso significa que o capitalismo estaacute eternamente produzindo os excedentes de produccedilatildeo exigidos pela urbanizaccedilatildeo A relaccedilatildeo inversa tambeacutem se apli-ca O capitalismo precisa da urbanizaccedilatildeo para ab-sorver o excedente de produccedilatildeo que nunca deixa de produzir Dessa maneira surge uma ligaccedilatildeo iacutentima entre o desenvolvimento do capitalismo e a urbani-zaccedilatildeo (HARVEY 2014 p 30 grifo nosso)

[] A urbanizaccedilatildeo desempenha um papel particular-mente ativo (ao lado de outros fenocircmenos como os gastos militares) ao absorver as mercadorias exce-dentes que os capitalistas natildeo param de produzir em sua busca de mais-valia (Idem)

Se como leciona Harvey existe uma intriacutenseca relaccedilatildeo entre produccedilatildeo capitalista e urbanizaccedilatildeo atualmente o processo de urbanizaccedilatildeo se tornou global e a possibilidade de absorccedilatildeo do capital excedente tem provocado profundas modificaccedilotildees nos pro-cessos de expansatildeo urbana

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Eacute importante refletir sobre os efeitos da produccedilatildeo capita-lista sobre o espaccedilo para que possamos perceber que a apropriaccedilatildeo dos espaccedilos urbanos e rurais tem se dado de forma a beneficiar os interesses capitalistas viabilizando acumulaccedilatildeo e expansatildeo do proacuteprio sistema (DIAS 2014) Harvey chama a atenccedilatildeo para o fato de que as transformaccedilotildees espaciais provocadas pelo modelo capi-talista modificam natildeo somente os espaccedilos fiacutesicos mas sobretudo as relaccedilotildees sociais pois ldquoem razatildeo da eterna necessidade de encon-trar esferas rentaacuteveis para produccedilatildeo e absorccedilatildeo do excedente do capitalrdquo (Idem p 31) o capitalismo se apropria de novos recursos naturais produz novas tecnologias cria novos meios de produccedilatildeo utiliza-se da oferta de infraestrutura e da matildeo de obra organizan-do a sua proacutepria expansatildeo geograacutefica (Ibidem p 45) Essa reestru-turaccedilatildeo do capitalismo ocorre concomitantemente a uma transfor-maccedilatildeo do modelo de urbanizaccedilatildeo pois os espaccedilos urbanos passam a ser espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de atividades capitalistas lucrativas Por isso Harvey afirma que

A cidade tradicional foi morta pelo desenvolvi-mento capitalista descontrolado vitimada por sua interminaacutevel necessidade de dispor da acumulaccedilatildeo desenfreada de capital capaz de financiar a expan-satildeo interminaacutevel e desordenada do crescimento ur-bano sejam quais forem suas consequecircncias sociais ambientais ou poliacuteticasrdquo (HARVEY 2014 p 20 gri-fo nosso)

A necessidade interminaacutevel de expansatildeo urbana para ab-sorccedilatildeo dos excedentes do capital tem intriacutenseca relaccedilatildeo com a ex-pansatildeo do mercado imobiliaacuterio tornando quase tudo mercadoria Aliaacutes para Bensaiumld (2013 p 8)

Na realidade do mundo atual o capitalismo se aproxima de seu conceito teoacuterico Faz tudo virar mercadoria as coisas os serviccedilos o saber e a vida Generaliza a privatizaccedilatildeo dos bens comuns da humanidade Desencadeia a concorrecircncia de todos contra todos (Grifo nosso)

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Se o dinheiro eacute ldquoo verdadeiro poder e finalidade uacutenicardquo e como afirma Marx (apud BENSAIumlD 2013 p 33) ldquoeacute a verdadeira capacidaderdquo nossas cidades podem ser ldquopurardquo mercadoria O mercado existe para as cidades Ou as cidades existem para o mer-cado

Sandel (2012) chama a atenccedilatildeo para o fato de que os valo-res de mercado estatildeo dominando quase todos os aspectos da vida por consequecircncia quanto mais o dinheiro pode comprar maior desigualdade teremos na sociedade O dinheiro estaacute controlando nossas cidades e nossas fronteiras Estaacute ldquoimplodindordquo por meio da ldquodestruiccedilatildeo criativardquo (HARVEY 2014 p 49) nossas fronteiras e por consequecircncia nossas cidades

Quando o mercado passa a governar nossas cidades os efeitos da desigualdade social se agudizam e natildeo podemos des-cartar ndash de nossa anaacutelise sobre os desafios para o enfrentamento da exclusatildeo socioespacial do processo de favelizaccedilatildeo global e da periferizaccedilatildeo de nossas cidades ndash o fato de que a expansatildeo econocirc-mica capitalista estaacute transformando nossas cidades em mercado-rias subjacente a esses problemas estaacute a grande polarizaccedilatildeo social fruto da desigual distribuiccedilatildeo da riqueza (MENDES 2013)

O efeito nefasto da ldquomercantilizaccedilatildeordquo de nossos espaccedilos territoriais eacute a desumanizaccedilatildeo das nossas cidades registrada nas formas espaciais verdadeiro mosaico de desigualdades e de pri-vaccedilotildees

Os dados alarmantes revelam que o Estado por meio da inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas e de planejamento assistiu im-passiacutevel ao aumento das habitaccedilotildees informais e ao crescimento das favelas E segundo Davis ldquoas favelas apesar de serem funestas e inseguras tecircm um esplecircndido futurordquo (DAVIS 2006 p 155 grifo nosso)

Para Harvey (2014 p 59)

A urbanizaccedilatildeo desempenhou um papel crucial na absorccedilatildeo de excedentes de capital e o que tem feito em escala geograacutefica cada vez maior mas ao preccedilo de processos florescentes de destruiccedilatildeo criativa que

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implicam a desapropriaccedilatildeo das massas urbanas de todo e qualquer direito agrave cidade (HARVEY 2014 p 59)

Nossas cidades estatildeo cada dia mais desiguais mais vio-lentas mais poluiacutedas e insustentaacuteveis e muito pouco tem sido feito para transformar essa realidade Nossas cidades satildeo caras e insus-tentaacuteveis do ponto de vista social cultural poliacutetico e ambiental

A pobreza urbana as precaacuterias condiccedilotildees de vida nas fa-velas a inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas habitacionais consisten-tes a marginalidade econocircmica territorial poliacutetica e social a que satildeo submetidos milhares de cidadatildeos brasileiros a inexistecircncia de higiene e de condiccedilotildees sanitaacuterias a falta de acesso agrave aacutegua potaacutevel a inseguranccedila juriacutedica da posse tornam esses habitantes e seus ter-ritoacuterios invisiacuteveis

A desigualdade social poliacutetica territorial digital eacute o gran-de desafio para a sociedade e para o Estado De nada adianta teo-rizarmos sobre a necessidade de efetivaccedilatildeo dos Direitos Humanos sem considerarmos o cenaacuterio mundial marcado pela desigualda-de planetaacuteria pelo desemprego estrutural pelas cataacutestrofes am-bientais e pelo crescimento do crime organizado

Seraacute que o direito como instrumento de controle social poderaacute agregar conjunto valorativo transformador agrave implementa-ccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Seraacute que o direito pode ser ferramenta para a transformaccedilatildeo do quadro atual de desigualdade no que diz respeito ao acesso a poliacuteticas puacuteblicas habitacionais Ou a moradia virou ldquopura mercadoriardquo Essas indagaccedilotildees se fazem pertinentes porque o planejamento e ordenamento territorial satildeo ferramentas importantes para definiccedilatildeo de atividades e de funccedilotildees bem como para prover necessidades concretas dos que habitam os espaccedilos territoriais Nesse sentido indaga-se em que medida eacute possiacutevel que o Estado realize o controle sobre o territoacuterio face agrave transforma-ccedilatildeo que o capital propulsiona nos espaccedilos urbanos e rurais

Essas indagaccedilotildees estatildeo relacionadas agrave analise sobre a im-plementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais no Brasil para que possa-mos refletir criticamente sobre o processo de implementaccedilatildeo de

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poliacuteticas habitacionais e sobre a ldquocontinuidade do processo histoacute-ricordquo de produccedilatildeo espaccedilos urbanos marcados pela segregaccedilatildeo e desigualdade social

Moradia Bem Social ou Mercadoria

No Brasil a Emenda Constitucional nordm 26 inseriu o direito agrave moradia como direito social na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 no Capiacutetulo II artigo 6ordm em 14 de abril de 2000

Apesar de o texto constitucional determinar aos entes fe-derativos mesmo antes do reconhecimento do direito agrave moradia como direito social a responsabilidade de ldquopromover programas de construccedilatildeo de moradia e a melhoria das condiccedilotildees habitacionais e de saneamentordquo (Art 23 IX CF) apesar de o Estatuto da Cidade determinar em seu artigo 2deg inciso I que o municiacutepio tem por competecircncia realizar o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade bem como garantir o direito agrave cidade sustentaacutevel sendo esse o direito agrave terra urbana agrave moradia ao saneamento ambien-tal agrave infraestrutura urbana ao transporte e aos serviccedilos puacuteblicos ao trabalho e ao lazer para as presentes e futuras geraccedilotildees (artigo 2deg inciso I Lei nordm 102572001) apesar de referidas determinaccedilotildees serem normas cogentes determinando aos entes federados a reali-zaccedilatildeo de programas de poliacuteticas para que todos possam viver e ter acesso agrave moradia digna as poliacuteticas para garantir o direito agrave cidade e o direito agrave moradia satildeo fraacutegeis incipientes e passiacuteveis de criacuteticas

Saule Jr (1999 p 96) ao tratar do direito agrave moradia como um direito cuja aplicaccedilatildeo eacute imediata dotado de eficaacutecia plena aler-ta

Isto eacute de imediato o Estado Brasileiro tem a obriga-ccedilatildeo de adotar as poliacuteticas accedilotildees e demais medidas compreendidas e extraiacutedas do texto constitucional para assegurar e tornar efetivo esse direito em es-pecial aos que se encontram em estado de pobreza e miseacuteria

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Apesar de ser prioridade e obrigatoacuterio para o Estado criar poliacuteticas de desenvolvimento urbano que propiciem o direito agrave ci-dade sustentaacutevel e viabilizem o acesso agrave moradia digna segura adequada em um local livre de desastres e que o meio ambiente esteja protegido (SALDANHA 2016) apesar de diversas normas brasileiras tratarem da necessidade de estabelecimento de poliacuteti-cas puacuteblicas que propiciem o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade para garantir a qualidade de vida das presentes e futuras geraccedilotildees o que se constata eacute que grande parte dessas poliacuteticas natildeo priorizam a concretizaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana

No Brasil a falta de planejamento eacute a tocircnica o que po-tencializa a ocorrecircncia de conflitos relacionados agrave apropriaccedilatildeo dos espaccedilos territoriais

Apesar de ser responsabilidade dos entes da Federaccedilatildeo criar poliacuteticas puacuteblicas para o enfrentamento das desigualdades abissais de acesso agrave cultura agrave sauacutede agrave seguranccedila puacuteblica agrave qua-lidade de vida ao meio ambiente sadio agrave moradia a ocupaccedilatildeo do territoacuterio brasileiro continua a ser feita sem o planejamento democraacutetico e sem enfrentamento da exclusatildeo socioespacial Os efeitos deleteacuterios da falta de planejamento e da falta de intervenccedilatildeo do Estado na organizaccedilatildeo e no controle do processo de expansatildeo urbana estatildeo intrinsecamente relacionados agrave expansatildeo do merca-do agrave manipulaccedilatildeo do espaccedilo urbano caracterizando diferenccedilas sociais econocircmicas e poliacuteticas (SANTOS 2007) assim como o au-mento da violaccedilatildeo dos direitos humanos

O planejamento para o ordenamento territorial eacute a uacutenica possibilidade para o enfrentamento da polarizaccedilatildeo social pois a pobreza a desigualdade a exclusatildeo territorial poliacutetica e econocircmi-ca satildeo decorrentes das distintas formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Contudo os modelos de planejamento e os processos de decidibili-dade devem buscar a reestruturaccedilatildeo do proacuteprio processo decisoacuterio por meio da gestatildeo democraacutetica Eacute preciso que os cidadatildeos sejam ouvidos acerca das suas necessidades especiacuteficas como sauacutede mo-radia saneamento educaccedilatildeo trabalho Eacute preciso que haja um re-

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desenho do modelo de planejamento um redesenho a partir do processo decisoacuterio que deve possibilitar a ampla discussatildeo com a sociedade (SILVEIRA 1999)

Em suma o processo de planejamento urbano deve ter por finalidade o cumprimento das funccedilotildees sociais da cidade Haacute valores intangiacuteveis para garantir o direito agrave cidade e esses valores estatildeo intrinsecamente relacionados agrave possibilidade de que todos possam em igualdade de condiccedilotildees ter uma vida digna e acesso a uma moradia digna

E natildeo se trata de mera liberalidade do gestor puacuteblico O Estatuto da Cidade e o Texto constitucional propotildeem uma nova forma de compreensatildeo do exerciacutecio do direito de propriedade e do cumprimento da funccedilatildeo social da propriedade mudanccedila para-digmaacutetica que vincula a atuaccedilatildeo de legisladores administradores e operadores do direito

No que tange agrave obrigatoriedade de implementaccedilatildeo de po-liacuteticas habitacionais no Brasil constata-se que os assentamentos humanos informais satildeo locais onde eacute impossiacutevel se ter uma vida decente e tambeacutem iremos constatar a partir da leitura de textos de Rolnik (2015) que a atual poliacutetica habitacional para prover o di-reito agrave moradia sequer considera os requisitos para uma habitaccedilatildeo digna E vale aduzir que habitaccedilatildeo digna eacute uma das prioridades que a Uniatildeo definiu para a realizaccedilatildeo de programas e poliacuteticas para o desenvolvimento urbano Vale frisar que o Texto constitucional define como competecircncia de todos os entes da Federaccedilatildeo a promo-ccedilatildeo de programas de construccedilatildeo de moradia e de programas para melhoria das condiccedilotildees habitacionais e de saneamento baacutesico da populaccedilatildeo brasileira (artigo 23 inciso IX CF)

Para Agenda Habitat habitaccedilatildeo digna ou adequada eacute aquela que apresente condiccedilotildees de vida sadia com seguranccedila apresentando infraestrutura baacutesica como suprimento de aacutegua e saneamento baacutesico energia bem como a existecircncia da presta-ccedilatildeo eficiente de serviccedilos puacuteblicos urbanos como sauacutede educaccedilatildeo transporte coletivo coleta de lixo Pressupotildee-se a seguranccedila da ha-bitaccedilatildeo entendida como habitaccedilatildeo em que se faz possiacutevel ir e vir

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em seguranccedila bem como habitar locais que natildeo sejam suscetiacuteveis a desastres naturais Quanto agrave acessibilidade eacute preciso que a in-fraestrutura viaacuteria permita o acesso decente e seguro agrave habitaccedilatildeo2

Infelizmente o processo de financeirizaccedilatildeo da moradia e do solo urbano tem gerado sistemaacuteticas remoccedilotildees violentas de po-pulaccedilotildees hipossuficientes para o estabelecimento de projetos por meio de investimentos puacuteblicos que pouco ou quase nada refletem os interesses da populaccedilatildeo e a necessidade de garantir o direito agrave moradia digna (MENDES 2013)

Rolnik (2015) aponta com riqueza de detalhes os efeitos deleteacuterios dos avanccedilos do complexo imobiliaacuterio-financeiro sobre os territoacuterios populares avanccedilos que satildeo o reflexo da financeiriza-ccedilatildeo da moradia e do solo urbano sob o novo marco do pensamento e praacuteticas neoliberais

Como alerta Rolnik (2016 p01) no Brasil

Tivemos uma mudanccedila de paradigma da habitaccedilatildeo como um bem social para a moradia como uma mer-cadoria a ser produzida pelo setor privado e desem-penhando um papel importante como ativo financei-ro ou seja como uma das esferas onde um capital excedente financeiro global poderia aterrissar para multiplicar renda atraveacutes dos juros

Rolnik (2015) faz profunda anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e imple-mentaccedilatildeo do Programa Minha Casa Minha Vida apontando clara-mente que o programa teve por objetivo principal o salvamento de incorporadoras financeirizadas e tornou-se a poliacutetica habitacional que estabeleceu um uacutenico modelo de acesso agrave casa proacutepria por meio do mercado e do creacutedito hipotecaacuterio Vale ressaltar que essa poliacutetica habitacional manteacutem o padratildeo de segregaccedilatildeo socioespa-cial pois os grandes conjuntos habitacionais satildeo construiacutedos via de regra em aacutereas perifeacutericas onde a terra eacute mais barata Como o Programa daacute o poder de decisatildeo aos agentes privados sobre a loca-

2 In Declaracioacuten de Estambul sobre los Asentamientos Humanos Disponiacutevel em URL=unhabitatagendaespanolist-decshtml Acesso em 11 mai 2000

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lizaccedilatildeo e o desenho do projeto os empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida localizam-se nas franjas urbanas recru-descendo a divisatildeo territorial entre ricos e pobres (Idem 2015)

Segundo Rolnik (2015 p 314)

Apesar dos muitos bilhotildees de reais em subsiacutedios puacute-blicos o programa MCMV natildeo impacta a segregaccedilatildeo urbana existente Pelo contraacuterio apenas a reforccedila produzindo novas manchas urbanas monofuncio-nais ou aumentando a densidade populacional de zonas guetificadas jaacute existentes A intensa produccedilatildeo de moradia sem cidade ao longo das deacutecadas de ur-banizaccedilatildeo intensa acabou por gerar ampla segrega-ccedilatildeo e uma seacuterie de problemas sociais que trouxeram ocircnus significativos para o poder puacuteblico nas deacutecadas seguintes fenocircmeno que estaacute se repetindo nova-mente (ROLNIK 2015 p 314)

No Brasil nos uacuteltimos anos sob o discurso da efetivaccedilatildeo do direito agrave moradia estaacute ocorrendo a gentrificaccedilatildeo de nossas ci-dades e a exclusatildeo socioterritorial dos mais pobres (FERREIRA 2011) Esses processos de destruiccedilatildeo criativa (HARVEY 2014 p 49) ldquoacabam por atingir as camadas mais hipossuficientes da po-pulaccedilatildeo brasileirardquo

Nesse sentido Rolnik (2016 p 02) aborda a falta de efeti-vidade do direito agrave moradia

A ideia de implantar programas habitacionais mas-sivos de construccedilatildeo de moradias em nome da ideia de fazer moradias de interesse social foi implantada mundialmente nas uacuteltimas deacutecadas com resultados muito parecidos Se vocecirc for ao Meacutexico hoje na re-giatildeo metropolitana do Distrito Federal encontraraacute milhotildees de casas vazias Se vocecirc for a China encon-traraacute milhotildees de casas e apartamentos vazios Ao mesmo tempo encontraraacute muita gente sem um lu-gar para morar ou vivendo em assentamentos infor-mais construiacutedos pelas proacuteprias pessoas o que estaacute aumentando cada vez mais Esse eacute um fenocircmeno mundial especialmente nos paiacuteses do Sul global na

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Ameacuterica Latina na Aacutefrica e na Aacutesia Nestas regiotildees encontramos essa contradiccedilatildeo uma espeacutecie de des-colamento entre o processo de produccedilatildeo do espa-ccedilo construiacutedo e as necessidades das pessoas Essas duas dimensotildees tornaram-se coisas completamente independentes como se fazer cidades natildeo tivesse como objetivo principal satisfazer as necessidades das pessoas (Grifo nosso)

()Nosso problema no Brasil natildeo eacute deacuteficit de moradia Isso eacute uma falaacutecia Noacutes temos um problema de deacutefi-cit de cidade Natildeo temos produccedilatildeo de cidade sufi-ciente para acolher a totalidade das pessoas Quando vocecirc faz um programa de produccedilatildeo em massa de ca-sas sem ter a produccedilatildeo de cidade embaixo dela vocecirc acaba gerando os problemas que foram gerados no Chile e no Meacutexico por exemplo e que estatildeo come-ccedilando a ser gerados aqui no Brasil com a produccedilatildeo massiva do Minha Casa Minha Vida faixa um na extrema periferia ()Haacute muitos territoacuterios populares autoconstruiacutedos que tecircm plenas condiccedilotildees de permanecer onde es-tatildeo e melhorar infinitamente a condiccedilatildeo urbaniacutestica das pessoas que vivem ali Precisamos de um pro-grama para urbanizar esses assentamentos Estou falando de uma gama de programas Nenhum mo-delo uacutenico vai atender a quantidade diversificada de demandas que noacutes temos A soluccedilatildeo natildeo eacute uma soluccedilatildeo mas satildeo muitas (Grifo nosso)

A configuraccedilatildeo de nossas cidades reflete um padratildeo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano excludente e o Estado brasileiro tem grande responsabilidade pela forma de regulamentaccedilatildeo do uso e do acesso ao solo urbano Quanto menos democraacutetico o acesso ao solo urbano menor parcela da sociedade tem acesso ao direito agrave cidade

O que constatamos eacute que o Programa Minha Casa Minha Vida eacute um exemplo marcante dos efeitos do modelo de produ-ccedilatildeo capitalista em que a supervalorizaccedilatildeo da terra acaba por res-tringir o acesso agrave moradia digna para todos Com o crescimento

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econocircmico temos a reproduccedilatildeo da desigualdade social em nossas cidades e a manutenccedilatildeo da pobreza tendo o Estado um papel im-prescindiacutevel e condescendente para a manutenccedilatildeo da segregaccedilatildeo socioespacial

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Apesar de o Texto constitucional ter incorporado o princiacute-pio da funccedilatildeo social da propriedade e o princiacutepio da funccedilatildeo social da cidade apesar do reconhecimento do direito agrave moradia como um bem social a crise urbana brasileira revela o modelo predatoacuterio de implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais e por consequecircncia de produccedilatildeo de cidades Trata-se de um modelo excludente um modelo de expansatildeo urbana perverso que potencializa e consolida ainda mais a desigualdade em nosso paiacutes

Apesar de termos um conjunto normativo que viabiliza a implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais e de regularizaccedilatildeo fun-diaacuteria para que sejam asseguradas a posse e o direito agrave moradia infelizmente nem o direito agrave moradia nem o direito agrave cidade satildeo direitos que de fato estatildeo refletidos nas atuais poliacuteticas habitacio-nais

Acreditamos que as anaacutelises de Marx Harvey Bensaiumld Sandel e Rolnik satildeo fundamentais para o debate Decerto o capi-talismo faz tudo virar mercadoria

O dinheiro estaacute controlando nossas cidades e nossas fron-teiras Por meio da destruiccedilatildeo criativa o modelo capitalista eco-nocircmico transnacional estaacute implodindo nossas fronteiras e por consequecircncia nossas cidades Estamos assistindo a remoccedilotildees sis-temaacuteticas de assentamentos informais para dar lugar ao capital para dar lugar a grandes projetos a grandes empreendimentos imobiliaacuterios

Estamos assistindo ao processo global de financeirizaccedilatildeo da moradia por meio de uma poliacutetica puacuteblica estatal A moradia deixa de ser um direito esculpido na Carta constitucional e torna-se ldquomercadoriardquo acessiacutevel apenas agravequeles que possuem renda

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O Estado brasileiro de matildeos dadas com o capital sob o discurso da efetivaccedilatildeo do direito agrave moradia tem impulsionado a gentrificaccedilatildeo de nossas cidades e a exclusatildeo socioterritorial dos mais pobres

Os efeitos nefastos dessa poliacutetica que amputam o senti-do de cidadania e o verdadeiro valor do princiacutepio da igualdade satildeo diversos contudo apontamos a exclusatildeo do debate puacuteblico de questotildees que natildeo tecircm preccedilo vez que estamos assistindo agrave ldquoprecifi-caccedilatildeordquo de valores intangiacuteveis como centralidade habitaccedilotildees segu-ras e dignas mobilidade e acessibilidade em nossas cidades

O planejamento para o ordenamento territorial eacute a uacutenica possibilidade para o enfrentamento da polarizaccedilatildeo social pois a pobreza a desigualdade a exclusatildeo territorial poliacutetica e econocirc-mica satildeo decorrentes das distintas formas de apropriaccedilatildeo do es-paccedilo Precisamos nos apoderar dos instrumentos juriacutedicos e do planejamento urbano como ferramentas para pensar cidades mais sustentaacuteveis e conduzir criacutetica e urgentemente o planejamento ur-bano Precisamos nos apropriar dos instrumentos juriacutedicos para a transformaccedilatildeo qualitativa de nossos espaccedilos de vida

Precisamos urgente e criticamente conduzir o processo so-cial de ocupaccedilatildeo do territoacuterio por meio do planejamento democraacute-tico como forma de enfrentamento da exclusatildeo social E para isso o Estado precisa de transformaccedilatildeo de profunda mudanccedila nas praacute-ticas poliacuteticas que fortaleccedilam o modelo de produccedilatildeo e expansatildeo urbana desigual intolerante e violento de nossas cidades

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IMPACTO AMBIENTAL TRANSFRONTEIRICcedilO NA PERS-PECTIVA DO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL

Dimas Simotildees Franco Neto1

Oseias Amaral da Silva2

RESUMO A poluiccedilatildeo eacute um tema que dadas as suas caracteriacutesticas deve ser tratada pelo direito internacional puacuteblico O fato eacute que a poluiccedilatildeo como evento ambiental natildeo respeita os limites das soberanias nacionais avanccedilando para aleacutem das fronteiras da naccedilatildeo de sua origem Neste sentido uma regulamentaccedilatildeo juriacutedica que trate da poluiccedilatildeo deve necessariamente calcar-se nos instrumentos do direito internacional tornando o tema da poluiccedilatildeo fronteiriccedila uma questatildeo central do direito internacional ambiental Os sistemas juriacutedicos nacionais preveem a obrigaccedilatildeo do Estudo Preacutevio de Impacto Ambiental quando em face do licenciamento ambiental de atividade potencialmente causadora de significativo impacto ambiental Poreacutem essas normas nacionais nem sempre satildeo suficientes para solucionar a questatildeo da poluiccedilatildeo transfronteiriccedila ou do impacto ambiental trasnfronteiriccedilo que se daacute quando os efeitos de um empreendimento estendem-se para outros Estados Uma soluccedilatildeo seria interpretar as normas nacionais agrave luz dos princiacutepios de direito internacional do meio ambiente Dessa forma no presente trabalho vamos analisar os princiacutepios do direito internacional e ao final avaliar se existe uma eventual obrigaccedilatildeo juriacutedica de se efetuar um Estudo Preacutevio de Impacto Ambiental quando em face do potencial impacto ambiental vai aleacutem das fronteiras do paiacutes em que o empreendimento se localiza Para tanto utilizaremos principalmente os precedentes internacionais do Caso Fundiccedilatildeo Trail e o Caso das Papeleiras

PALAVRAS-CHAVE Poluiccedilatildeo transfronteiriccedila Direito internacional do meio ambiente Estudo preacutevio de impacto ambiental1 Professor Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT Campus de Barra do Bugres2 Professor Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT Campus de Barra do Bugres

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ABSTRACT Pollution is a subject which given its characteristics must be dealt with by public international law The fact is that pollution as an environmental event does not respect the limits of national sovereignties advancing beyond the borders of the nation of its origin In this sense legal regulation dealing with pollution must necessarily be based on the instruments of international law making the issue of border pollution a central issue in the international environmental law The national legal systems foresee the obligation of the Prior Environmental Impact Assessment when in face of the environmental licensing of activity potentially causing significant environmental impact However these national rules are not always sufficient to solve the issue of transboundary pollution or the transboundary environmental impact that occurs when the effects of an undertaking extend to other States One solution would be to interpret national rules in the light of the principles of international environmental law Thus in the present work we gol analyze the principles of international law and at the end evaluate if there is a possible legal obligation to carry out a Prior Environmental Impact Assessment when faced of the potential environmental impact goes beyond the borders of the country in which the Locates To do so we will mainly use the international precedents of the Trail Smelter Case and the Pulp Mills on the River Uruguay

KEYWORDS Transboundary pollution International environmental law Prior environmental impact assessment

INTRODUCcedilAtildeO

O tema da poluiccedilatildeo em geral eacute um tema que dadas as suas caracteriacutesticas bastante peculiares deve ser tratado incon-trolavelmente pelo direito internacional puacuteblico O fato eacute que a poluiccedilatildeo como evento ambiental natildeo respeita os limites das soberanias nacionais avanccedilando para aleacutem das fronteiras da naccedilatildeo de sua origem Neste sentido uma regulamentaccedilatildeo juriacutedica que trate da poluiccedilatildeo para que seja efetiva deve necessariamente cal-car-se nos instrumentos do Direito internacional tornando o tema da poluiccedilatildeo fronteiriccedila uma questatildeo central do Direito Internacio-

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nal AmbientalEacute justamente com a poluiccedilatildeo transfronteiriccedila que o direito

internacional do meio ambiente eacute inaugurado com suas linhas es-truturais integralmente presentes Se ateacute o caso da Fundiccedilatildeo Trail (trail smelter) haviam algumas manifestaccedilotildees de proteccedilatildeo interna-cional juriacutedica de questotildees ambientais foi somente apoacutes a arbitra-gem do referido caso que o Direito Internacional Ambiental teve seu ponto de partida

O caso da Fundiccedilatildeo Trail tratou de uma situaccedilatildeo de polui-ccedilatildeo transfronteiriccedila que acabou por gerar um conflito entre dois paiacuteses Basicamente o que se apresentou no caso da Fundiccedilatildeo Trail foi uma situaccedilatildeo de poluiccedilatildeo transfronteiriccedila em que um agente privado canadense causava danos agrave sauacutede e ao patrimocircnio de pes-soas localizadas para aleacutem das fronteiras do Canadaacute pois os efei-tos dessa poluiccedilatildeo chegavam ainda bastante nocivos em territoacuterio norte-americano

O tratado que constituiu a arbitragem estabeleceu algumas questotildees a serem respondidas pela corte arbitral sendo que a prin-cipal delas tratava da existecircncia ou natildeo da obrigaccedilatildeo de a Fundiccedilatildeo Trail alterar a sua atuaccedilatildeo para evitar danos no lado norte-ameri-cano da fronteira e em caso positivo quais seriam as normas que regeriam a conduta canadense bem como a conduta da Fundiccedilatildeo Trail Importante dizer que o tratado determinava a decisatildeo da ar-bitragem tendo como lei aplicaacutevel o Direito internacional puacuteblico e tambeacutem as leis norte-americanas

Esse tratado foi aceito pelo Canadaacute pois as suas leis eram mais prejudiciais aos empreendedores da Fundiccedilatildeo do que agraves leis norte-americanas e agraves do Direito internacional3 Sobre a decisatildeo do Tribunal Arbitral Stephens (2012 p 131) faz uma siacutentese nos se-guintes termos

Como questatildeo preliminar o tribunal decidiu que fosse a questatildeo regida pelo direito domeacutestico ou pelo direito internacional os mesmos princiacutepios de-veriam ser aplicados na medida em que ambos os

3 Ibidem

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sistemas de direito adotavam a mesma forma de abordagem O tribunal reconheceu as frequentes afirmaccedilotildees dos publicistas da existecircncia de um dever geral de respeitar os outros Estados e os seus terri-toacuterios Todavia a dificuldade aqui fora definir lsquoqual pro subject materiae eacute considerada constituinte de um ato nocivorsquo Neste ponto especiacutefico o tribunal notou que apesar de natildeo existir nenhuma decisatildeo preacutevia de um tribunal internacional referente agrave poluiccedilatildeo do ar haviam decisotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos referentes agrave questatildeo da poluiccedilatildeo entre fron-teiras federais

Tendo feito essas consideraccedilotildees sobre os fundamentos ju-riacutedicos da decisatildeo o Tribunal Arbitral resume as obrigaccedilotildees dos Estados para com a integridade de outro Estado limiacutetrofe da se-guinte maneira

[] dentro dos princiacutepios do estado de direito inter-nacional bem como do direito dos estados unidos nenhum [estado] possui o direito de usar ou permitir que se use o seu territoacuterio de tal maneira que cause prejuiacutezo por meio de fumaccedila no territoacuterio de outro Estado ou na propriedade ou pessoas que laacute se en-contrem quando houverem seacuterias consequecircncias e o dano seja estabelecido por uma evidecircncia clara e convincente4

Esse trecho da decisatildeo arbitral se tornou bastante impor-tante tendo sido considerado um marco essencial do Direito Inter-nacional Ambiental (SOARES 2003) criando um dever ao Estado para natildeo causar danos ao meio ambiente de outro Estado e que como veremos tratou de repercutir ateacute mesmo nos tratados inter-nacionais ambientais contemporacircneos

No caso especiacutefico da arbitragem da Fundiccedilatildeo Trail o Tribunal Arbitral julgou o Canadaacute responsaacutevel internacionalmen-te pela conduta da Fundiccedilatildeo Trail e determinou que a Fundiccedilatildeo parasse de causar danos ao Estado de Washington por meio da 4 TRAIL SMELTER ARBITRAL TRIBUNAL Decisioin reported on april 16 Washington 1938 p 1965 Traduccedilatildeo nossa

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fumaccedila exaladaO legado principal deste laudo arbitral eacute que pela primeira

vez ficou expresso em um julgamento internacional a obrigaccedilatildeo de o Estado natildeo atuar em seu territoacuterio de maneira a causar dano a outro Eacute certo que o caso tratou somente de poluiccedilatildeo atmosfeacuterica mas o princiacutepio que se cristalizou ali serviu como guia para futuras normas internacionais

Para o tema do EIA internacional esta decisatildeo possui re-levacircncia na medida em que o EIA internacional busca justamente prevenir a ocorrecircncia de eventual dano ecoloacutegico ao meio ambien-te do Estado limiacutetrofe ou proacuteximo ao Estado de origem do em-preendimento

Assim podemos dizer que uma eventual obrigaccedilatildeo de promover o EIA internacional deriva-se ao menos da parte do dever de os Estados natildeo prejudicarem o meio ambiente dos paiacuteses vizinhos que eacute exatamente o toacutepico sobre o qual inova o caso da Fundiccedilatildeo Trail

A influecircncia desta decisatildeo como dissemos acima pocircde ser sentida deacutecadas depois da Declaraccedilatildeo de Estocolmo de 1972 que faz uma ponderaccedilatildeo entre os limites da soberania em face agrave obriga-ccedilatildeo de natildeo causar danos a outros Estados de maneira claramente inspirada na decisatildeo do Tribunal Arbitral Vejamos o texto da De-claraccedilatildeo em seu princiacutepio 21

Em conformidade com a Carta das Naccedilotildees Unidas e com os princiacutepios de direito internacional os Es-tados tecircm o direito soberano de explorar seus proacute-prios recursos em aplicaccedilatildeo de sua proacutepria poliacutetica ambiental e a obrigaccedilatildeo de assegurar-se de que as atividades que se levem a cabo dentro de sua juris-diccedilatildeo ou sob seu controle natildeo prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda jurisdiccedilatildeo nacional

Aleacutem disso esta mesma influecircncia pocircde ser sentida duas deacutecadas apoacutes Estocolmo conforme o artigo 2deg da Declaraccedilatildeo do Rio em 1992 que tambeacutem vem no sentido de determinar aos Es-

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tados que atuam sobre o meio ambiente de suas jurisdiccedilotildees de maneira tal natildeo prejudiquem o meio ambiente de outros paiacuteses Ainda hoje eacute difiacutecil encontrar uma soluccedilatildeo para o conflito natural que existe entre a soberania nacional para a utilizaccedilatildeo de recursos naturais e o dever de natildeo causar danos ao meio ambiente de outros paiacuteses (SCHRIJVER 2008) problema para o qual o EIA interna-cional se apresenta como uma das formas de soluccedilatildeo possiacuteveis O precedente do caso Fundiccedilatildeo Trail representa uma primeira forma de tratamento e enfrentamento da questatildeo

A decisatildeo e principalmente o seu nuacutecleo transcrito acima se referem especificamente agrave poluiccedilatildeo atmosfeacuterica todavia a for-ma abrangente dos termos adotados pelo tribunal serviu para que o fundamento se prestasse a orientar o entendimento para outras formas de poluiccedilatildeo e impacto transfronteiriccedilo (STEPHENS 2009)

Como uma primeira linha de regulamentaccedilatildeo de impac-tos transfronteiriccedilos podemos perceber que o tribunal natildeo coibiu qualquer forma de impactos externos mas sim os impactos que possuiacutessem ldquoseacuterias consequecircnciasrdquo

Esta determinaccedilatildeo nos importa para a compreensatildeo do EIA internacional pois traz uma questatildeo importante sobre se o Estado estaacute proibido de causar ou permitir que se cause qualquer espeacutecie de dano ambiental internacional ou somente um dano sig-nificativo ou seja de uma magnitude maior ao meio ambiente de outro Estado trataremos disso mais adiante

O recente caso das papeleiras (Case concerning pulp Mills on the river uruguay) trouxe novamente essa discussatildeo A situaccedilatildeo faacutetica que deu iniacutecio ao conflito entre a Argentina e o Uruguai iniciou-se com a construccedilatildeo de uma usina de celulose na margem uruguaia do rio Uruguai Tal construccedilatildeo seria feita pela empresa Botnia SA

Em resumo sustentou a demandante (Argentina) que o Uruguai havia violado os termos do Estatuto do Rio Uruguai tra-tado firmado entre as partes no ano de 1975 A violaccedilatildeo seria pro-cedimental devido agrave falta de notificaccedilatildeo haacutebil nos termos do art 7deg do tratado agrave Comissatildeo Administradora do Rio Uruguai bem como agrave Argentina (paraacutegrafos 71 a 158 da sentenccedila de 20 de abril

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da CIJ) Aleacutem disso haveria ainda uma violaccedilatildeo substancial por

parte do Uruguai concernente agrave efetiva manutenccedilatildeo de um niacutevel adequado da qualidade da aacutegua do Rio Uruguai (paraacutegrafos 159 a 266 da sentenccedila)

Por fim a demandante tambeacutem questionava a eventual agressatildeo do demandado agrave qualidade ambiental do Rio Uruguai (artigo 41 do Tratado do Rio Uruguai de 1975) em face da constru-ccedilatildeo da faacutebrica (paraacutegrafos 190 a 202 da sentenccedila)

A sentenccedila bem como os memoriais e as manifestaccedilotildees das partes no caso podem ser analisados das mais diversas ma-neiras demonstrando as suas implicaccedilotildees nos variados institutos do Direito Internacional do Meio Ambiente (dever de informaccedilatildeo dever de prevenccedilatildeo dever de cooperaccedilatildeo responsabilidade por violaccedilatildeo de obrigaccedilatildeo internacional direito dos tratados dentre outros)

Inicialmente a Argentina requereu uma medida provisio-nal no sentido de suspender a construccedilatildeo da faacutebrica sustentando que

a construccedilatildeo e o funcionamento da usina de papel certamente causariam e seriam suscetiacuteveis de causar danos ao meio ambiente natural de maneira irre-versiacutevel por causa do impacto potencial sobre todo ecossistema do rio Uruguai e a qualidade de suas aacuteguas (CIJ 2006)

Em que pesem as argumentaccedilotildees expendidas a CIJ enten-deu que nada indicava que a construccedilatildeo da faacutebrica implicaria um risco iminente de dano irreparaacutevel (CIJ 2006) Nesta decisatildeo refe-rente agrave medida provisional o Juiz Vinuesa em dissonacircncia com a maioria demonstrou em seu voto-dissidente que agrave medida que a Argentina tivesse provado que a autorizaccedilatildeo de funcionamento da faacutebrica teria gerado um risco razoaacutevel de dano ao meio ambien-te era necessaacuterio a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo o qual na sua opiniatildeo ldquonatildeo se trata de uma abstraccedilatildeo acadecircmica ou um

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desejaacutevel elemento de soft law mas uma regra de direito dentro do direito internacional geral na maneira como ele eacute entendido atualmenterdquo (CIJ 2006)

Em seguida houve a apresentaccedilatildeo dos memoriais opor-tunidade na qual novamente a Argentina evoca o princiacutepio da precauccedilatildeo pelo qual se deve ldquolevar em conta os riscos incertos na concepccedilatildeo elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo de qualquer projeto ou qualquer uso relativo agraves aacuteguas do rio Uruguai e a sua zona de influecircnciardquo (CIJ 2007) Nos contra-memoriais o Uruguai indica que a Argen-tina natildeo teria comprovado a presenccedila de riscos ao meio ambiente a ponto de se aplicar o princiacutepio da precauccedilatildeo (Idem)

O princiacutepio eacute novamente invocado em nova manifestaccedilatildeo da demandante indicando a obrigaccedilatildeo de o Uruguai tecirc-la infor-mado antecipadamente sobre os riscos mesmo que em potencial da construccedilatildeo da usina Ademais sustentou-se ainda que agrave Cor-te caberia a leitura do Tratado do Rio Uruguai de 1975 agrave luz do Ddireito internacional atual ou seja incorporando-se ao princiacutepio da precauccedilatildeo (CIJ 2008) Na sua resposta o Uruguai novamente indica que natildeo se apresentou nenhuma evidecircncia concreta de ris-cos ao meio ambiente que justificasse a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo (CIJ 2008)

Destarte tendo as duas partes apresentados seus argu-mentos a CIJ finalmente proferiu uma sentenccedila em 20 de abril de 2010 Em suma a Corte entendeu que houve sim uma violaccedilatildeo ao Tratado do Rio Uruguai de 1975 mas tatildeo somente no seu aspecto processual ou seja no dever de o Uruguai informar e atuar con-juntamente com a Argentina na liberaccedilatildeo do projeto da usina de papel

A Corte indicou poreacutem que natildeo houve uma violaccedilatildeo substancial do tratado ou seja o Uruguai natildeo teria efetivamente atuado no sentido de prejudicar o uso das aacuteguas do Rio Uruguai isto eacute em nenhum momento teria prejudicado substancialmente as aacuteguas ou a possiacutevel utilizaccedilatildeo do Rio Uruguai para outros fins Finalizando a Corte considerou legiacutetima a atuaccedilatildeo do Uruguai no que tange agrave questatildeo ambiental sustentando natildeo ter havido por

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parte do Uruguai nenhuma agressatildeo efetiva ao ecossistema nem sequer ameaccedila

Cumpre dizer que a CIJ natildeo aplicou ao caso a despeito de ter sido objeto de farta e robusta argumentaccedilatildeo o princiacutepio da precauccedilatildeo A linguagem e os fundamentos utilizados na sentenccedila denotam um total afastamento do princiacutepio da precauccedilatildeo e dos seus efeitos sobre o caso concreto Todavia a CIJ tratou do dever de prevenir danos ambientais para aleacutem das fronteiras bem como tratou do EIA como instrumento para concretizar esse dever

Nota-se que quando a Corte in casu analisou os eventu-ais danos ambientais da construccedilatildeo da faacutebrica analisou questotildees como o impacto da descarga de diversas substacircncias toacutexicas (foacutesfo-ro substancias felocircnicas nonifenols e dioacutexidos) na oxigenaccedilatildeo da aacutegua e sua consequente poluiccedilatildeo bem como todos os efeitos sobre a diversidade bioloacutegica Natildeo obstante a demandante ter argumen-tado no sentido do risco de tais eventos ao meio ambiente do Rio Uruguai a CIJ ( 2010 p91) decidiu que

265 Se apreende do acima exposto que natildeo existe evidecircncias conclusivas nos autos que demonstrem que o Uruguai natildeo tenha agido com o grau de di-ligecircncia adequada ou que as descargas de efluentes da Orion (Botnia) usina possuam efeitos deleteacuterios ou causaram danos aos recursos vivos ou agrave qualida-de da aacutegua ou ao equiliacutebrio ecoloacutegico do rio desde o iniacutecio das operaccedilotildees em novembro de 2007

A Corte entende que a falta de ldquoevidecircncias conclusivasrdquo de um dano ambiental natildeo permite que a mesma determine a pa-ralisaccedilatildeo das atividades da faacutebrica Ocorre que uma interpretaccedilatildeo agrave luz do princiacutepio da precauccedilatildeo natildeo exige a evidecircncia conclusiva mas sim um indiacutecio de risco

Criticando a decisatildeo temos o voto do Juiz Canccedilado Trin-dade (CIJ 2010 p 166) para quem

113 Natildeo apenas a CIJ natildeo tomou conhecimento natildeo afirmou a existecircncia dos dois princiacutepios [prevenccedilatildeo

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e precauccedilatildeo] natildeo os elaborou deixando passar en-tatildeo uma ocasiatildeo uacutenica nesta seara do Direito Inter-nacional contemporacircneo O fato de que a Corte silen-ciou sobre eles natildeo significa que estes princiacutepios da prevenccedilatildeo e da precauccedilatildeo natildeo existam Eles existem sim e se aplicam e satildeo em minha opiniatildeo da maior importacircncia como parte do jus necessarium Dificil-mente nos podemos falar sobre o Direito Interna-cional do Meio Ambiente atualmente sem estes dois princiacutepios A Corte teve uma oportunidade uacutenica nas circunstacircncias do caso da Pulp Mills [papeleiras] para reclamar a aplicaccedilatildeo da prevenccedilatildeo bem como da precauccedilatildeo ela infelizmente preferiu natildeo fazecirc-lo por motivos que vatildeo aleacutem e escapam da minha com-preensatildeo

Em outro ponto da decisatildeo a CIJ resolve a questatildeo refe-rente agrave inversatildeo do ocircnus da prova requerida pela Argentina em funccedilatildeo da aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo (paraacutegrafos 160 agrave 168 da sentenccedila) A Corte novamente afasta a aplicaccedilatildeo do prin-ciacutepio da precauccedilatildeo e natildeo promove a inversatildeo do ocircnus de provar aplicando portanto a consagrada regra processual do onus proban-di incubit actori ou seja de que ao autor cabe a prova do alegado

A CIJ natildeo versando sobre o tema deixou agrave margem a questatildeo de definir se o princiacutepio da precauccedilatildeo possuiria o status de costume internacional ou de princiacutepio geral de direito natildeo pro-movendo avanccedilos nesta discussatildeo (ANTON 2010)

Essa ideia compreendida no seio do julgamento da ques-tatildeo arbitral qual seja a de que um Estado natildeo poderaacute atuar em seu territoacuterio de maneira a causar dano no meio ambiente de outro Estado influenciou decisivamente para o surgimento dos princiacute-pios do Direito Internacional do Meio Ambiente os quais veremos abaixo Poreacutem antes deles veremos um pouco sobre o estudo preacute-vio de impacto ambiental no Direito domeacutestico

O EIA no direito domeacutestico

As legislaccedilotildees dos paiacuteses preveem mecanismos de contro-

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le preacutevio do impacto de atividades potencialmente causadoras de dano ambiental No Brasil por exemplo o EIA eacute conceituado por Taldem Farias (FARIAS 2013 p 68) como

A avaliaccedilatildeo de impacto ambiental eacute um instrumen-to de defesa do meio ambiente constituiacutedo por um conjunto de procedimentos teacutecnicos e administra-tivos que visam agrave realizaccedilatildeo da anaacutelise sistemaacutetica dos impactos ambientais da instalaccedilatildeo ou operaccedilatildeo de uma atividade e suas diversas alternativas com a finalidade de embasar as decisotildees quanto ao seu licenciamento

Nesse sentido a norma que trata do assunto prevecirc que o EIA eacute entatildeo uma espeacutecie de licenciamento ambiental Em outras palavras natildeo eacute todo o licenciamento ambiental que seraacute sujeito agrave obrigatoriedade do EIA Vejamos o texto constitucional sobre o as-sunto

Art 225 Todos tecircm direito ao meio ambiente ecolo-gicamente equilibrado bem de uso comum do povo e essencial agrave sadia qualidade de vida impondo-se ao Poder Puacuteblico e agrave coletividade o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as presentes e futuras geraccedilotildees

IV - exigir na forma da lei para instalaccedilatildeo de obra ou atividade potencialmente causadora de significa-tiva degradaccedilatildeo do meio ambiente estudo preacutevio de impacto ambiental a que se daraacute publicidade

A principal norma infraconstitucional que versa o tema eacute a Resoluccedilatildeo nordm 0186 do Conama que trata da competecircncia para o licenciamento bem como traz alguns requisitos para o mesmo Pela clareza da norma vale a transcriccedilatildeo de alguns dos seus dis-positivos O artigo 6ordm por exemplo trata dos requisitos miacutenimos para o estudo

Artigo 6ordm - O estudo de impacto ambiental desenvol-veraacute no miacutenimo as seguintes atividades teacutecnicas

I - Diagnoacutestico ambiental da aacuterea de influecircncia do

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projeto completa descriccedilatildeo e anaacutelise dos recursos ambientais e suas interaccedilotildees tal como existem de modo a caracterizar a situaccedilatildeo ambiental da aacuterea antes da implantaccedilatildeo do projeto considerando

a) o meio fiacutesico - o subsolo as aacuteguas o ar e o clima destacando os recursos minerais a topografia os ti-pos e aptidotildees do solo os corpos drsquoaacutegua o regime hidroloacutegico as correntes marinhas as correntes at-mosfeacutericas

b) o meio bioloacutegico e os ecossistemas naturais - a fauna e a flora destacando as espeacutecies indicadoras da qualidade ambiental de valor cientiacutefico e econocirc-mico raras e ameaccediladas de extinccedilatildeo e as aacutereas de preservaccedilatildeo permanente

c) o meio soacutecio-econocircmico - o uso e ocupaccedilatildeo do solo os usos da aacutegua e a soacutecio-economia destacan-do os siacutetios e monumentos arqueoloacutegicos histoacutericos e culturais da comunidade as relaccedilotildees de dependecircn-cia entre a sociedade local os recursos ambientais e a potencial utilizaccedilatildeo futura desses recursos

II - Anaacutelise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas atraveacutes de identificaccedilatildeo previsatildeo da magnitude e interpretaccedilatildeo da importacircncia dos provaacuteveis impactos relevantes discriminando os impactos positivos e negativos (beneacuteficos e adver-sos) diretos e indiretos imediatos e a meacutedio e lon-go prazos temporaacuterios e permanentes seu grau de reversibilidade suas propriedades cumulativas e sineacutergicas a distribuiccedilatildeo dos ocircnus e benefiacutecios so-ciais

III - Definiccedilatildeo das medidas mitigadoras dos impac-tos negativos entre elas os equipamentos de contro-le e sistemas de tratamento de despejos avaliando a eficiecircncia de cada uma delas

lV - Elaboraccedilatildeo do programa de acompanhamento e monitoramento (os impactos positivos e negativos indicando os fatores e paracircmetros a serem conside-rados)

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Paraacutegrafo Uacutenico - Ao determinar a execuccedilatildeo do estu-do de impacto ambiental ao oacutergatildeo estadual compe-tente ou o IBAMA ou quando couber o Municiacutepio forneceraacute as instruccedilotildees adicionais que se fizerem ne-cessaacuterias pelas peculiaridades do projeto e caracte-riacutesticas ambientais da aacuterea

Tambeacutem o Direito francecircs exige dos empreendimentos que faccedilam o estudo preacutevio antes da sua operaccedilatildeo Explicando o sistema francecircs Yamaguchi e Souza (2011 p 17 ) pontuam que

Para Bessa (2008) a legislaccedilatildeo francesa adota o prin-ciacutepio de que toda obra deve ser previamente sub-metida a um estudo de impacto A Administraccedilatildeo em respeito ao princiacutepio estabelece uma lista nega-tiva (observe-se que o sistema francecircs de avaliaccedilatildeo de impactos ambientais funciona com uma lista po-sitiva ndash necessidade do EIA ndash e uma lista negativa ndash desnecessidade do EIA) isto eacute classifica algumas obras que natildeo precisaratildeo passar pelo preacutevio estudo de impacto

Tambeacutem o Direito norte-americano possui previsatildeo seme-lhante A norma norte- americana possui semelhanccedila com a nacio-nal em verdade a norma brasileira em certa medida se inspira nas regras do Estados Unidos Tratando do assunto vejamos a li-ccedilatildeo de Amoy (2006 p 607)

O Estudo de Impacto Ambiental ndash EIA ndash teve iniacutecio nos estudos do Prof Lynton Caldwell nos EUA onde foram expressos no National Environmental Police Act (NEPA) de 1969 que estabeleceu os ob-jetivos e princiacutepios da poliacutetica ambiental americana Aquela lei determinou ainda que todas as propostas de legislaccedilatildeo accedilotildees e projetos federais que afetassem significativamente a qualidade do meio ambien-te incluiacutessem uma detalhada avaliaccedilatildeo ambiental 44A NEPA eacute uma lei fundamental para o Direito Ambiental dos diversos Estados norte-americanos

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dos quais 18 jaacute adotam ldquominiNEPAsrdquo e de diversos paiacuteses pois tem servido de inspiraccedilatildeo para muitas legislaccedilotildees nacionais inclusive a brasileira

Vimos por meio dos exemplos acima que os estados na-cionais possuem normas mais ou menos rigorosas quanto agrave ne-cessidade de EIA Ocorre que natildeo tratam da eventualidade de o impacto ambiental avanccedilar para aleacutem das fronteiras nacionais

No proacuteximo toacutepico vamos analisar brevemente algumas interpretaccedilotildees das normas nacionais brasileiras agrave luz dos princiacute-pios do Direito Internacional do Meio Ambiente tendo em conta uma possiacutevel obrigaccedilatildeo de produzir-se EIA quando do impacto transfronteiriccedilo

A poluiccedilatildeo trasnfronteiriccedila e o dever de prevenir os impactos em acircmbito externo agrave luz dos princiacutepios do direito internacional do meio ambiente

A decisatildeo no Caso das Papeleiras tratou de maneira incon-clusiva o dever de efetivar o EIA nos casos de poluiccedilatildeo transfron-teiriccedila Vamos ao trecho da decisatildeo (CIJ 2010 p 83)

Nesse sentido a obrigaccedilatildeo de proteger e preservar nos termos do artigo 41 (a) Do Estatuto deve ser in-terpretado de acordo com uma praacutetica que nos uacutelti-mos anos ganhou tanta aceitaccedilatildeo entre os Estados que pode ser considerado um requisito5 do direito internacional geral de uma avaliaccedilatildeo de impacto am-biental sempre que exista o risco de a atividade in-dustrial proposta ter um impacto adverso significa-tivo em um contexto transfronteiriccedilo em particular sobre um recurso partilhado Aleacutem disso a devida diligecircncia e o dever de vigilacircncia e prevenccedilatildeo que implica natildeo seriam considerados como tendo sido

5 No original a expressatildeo eacute a seguinte ldquohas to be interpreted in accordance with a practice wich in recent years has gained so much acceptance among States tha it may now be consideres a require-ment under gereal international law to undertake an environmental impact assessment where ther is arisk that the proposed industrial activity may have a significant adverse impact in a transboundary context in particular on a shares resourcerdquo O termo ldquorequisiterdquo no original ldquoreuquerimentrdquo pode ser traduzido tambeacutem por ldquoexigecircnciardquo

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exercido se uma parte que as obras susceptiacuteveis de afectar o regime do rio ou a qualidade das suas aacuteguas natildeo procedeu a uma avaliaccedilatildeo do impacto ambiental do potencial efeito de tais obras 205 A Corte observa que nem o Estatuto de 1975 nem o Estatuto Direito internacional especificam o acircmbito e o conteuacutedo de um estudo preacutevio de impac-to ambiental Cumpre salientar aleacutem disso que a Argentina e o Uruguai natildeo satildeo partes na Convenccedilatildeo de Espoo Por uacuteltimo o Tribunal observa que o ou-tro instrumento a que a Argentina se refere em apoio dos seus argumentos nomeadamente os Objetivos e Princiacutepios do PNUA natildeo vinculam as Partes mas como diretrizes emitidas por um oacutergatildeo teacutecnico inter-nacional devem ser tomadas em consideraccedilatildeo pelas partes em conformidade com o artigo 41ordm aliacutenea a) na adopccedilatildeo de medidas no acircmbito do seu quadro re-gulamentar nacional Aleacutem disso este instrumento apenas prevecirc que os ldquoefeitos ambientais em um EIA devem ser avaliados com um grau de detalhe pro-porcional ao seu provaacutevel impacto ambientalrdquo (Prin-ciacutepio 5) sem dar qualquer indicaccedilatildeo dos componen-tes miacutenimos dessa avaliaccedilatildeo Consequentemente eacute a opiniatildeo da Corte de que compete a cada Estado determinar na sua legislaccedilatildeo nacional ou no pro-cesso de autorizaccedilatildeo do projeto o conteuacutedo da ava-liaccedilatildeo de impacto ambiental exigida em cada caso tendo em conta a natureza e a magnitude do projeto proposto bem como o possiacutevel impacto adverso no ambiente bem como a necessidade de efetuar nes-sa avaliaccedilatildeo toda a diligecircncia possiacutevel O tribunal considera tambeacutem que uma avaliaccedilatildeo do impacto ambiental deve ser conduzida antes da implemen-taccedilatildeo de um projeto Aleacutem disso uma vez iniciada e sempre que necessaacuterio durante toda a vida uacutetil do Projeto deve ser empreendido o contiacutenuo monitora-mento dos seus efeitos no ambiente

Sabemos que as fontes do Direito internacional satildeo aque-las discriminadas no artigo 38 do estatuto da CIJ quais sejam sim-plificadamente as convenccedilotildees os princiacutepios gerais de direito e o costume internacional

A decisatildeo da CIJ natildeo deixa claro se essa obrigaccedilatildeo seria

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oriunda de um princiacutepio (talvez princiacutepio da prevenccedilatildeo) ou de um costume Natildeo eacute possiacutevel avaliar pelo texto da decisatildeo o caraacuteter juriacutedico da obrigaccedilatildeo de promover o EIA no direito internacional

No Direito brasileiro tambeacutem natildeo temos nenhuma nor-ma que trate do assunto Poreacutem poderiacuteamos buscar fundamento normativo para essa obrigaccedilatildeo por exemplo no artigo 4 inciso X da Constituiccedilatildeo Fedral de 88 que prevecirc o princiacutepio das relaccedilotildees internacionais a ldquocooperaccedilatildeo entre os povos para o progresso da humanidaderdquo

Poreacutem se por um lado eacute possiacutevel falarmos de uma obri-gaccedilatildeo de evitar danos agrave naccedilatildeo estrangeira por causa ambiental em territoacuterio domeacutestico como sendo um princiacutepio de Direito Inter-nacional do Meio Ambiente qual seja o princiacutepio da prevenccedilatildeo (SANDS 2003) natildeo podemos avanccedilar para concluirmos que de-rivaria desse dever a obrigaccedilatildeo de efetuar o EIA

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

O caso das papeleiras demonstra que a questatildeo da polui-ccedilatildeo transfronteiriccedila e o dever de preveni-la continuam no centro dos conflitos ambientais internacionais Ainda que natildeo seja pos-siacutevel falarmos em uma obrigaccedilatildeo juriacutedica de promover o EIA em face da poluiccedilatildeo transfronteiriccedila tambeacutem jaacute natildeo se pode falar em uma total ausecircncia de responsabilidade do Estado quanto a danos para aleacutem de suas fronteiras

A questatildeo somente ficaraacute mais delineada em seus aspectos juriacutedicos com os avanccedilos dos casos e da doutrina especializada devendo o jurista ficar atento em especial aos desdobramentos relacionados agraves consequecircncias da decisatildeo da CIJ no caso Pulp Mils (papeleiras)

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JULGAMENTO INDIacuteGENA DE CONFLITOS INTERNOS RE-CONHECIDO PELO DIREITO ESTATAL NA PERSPECTIVA DO PLURALISMO JURIacuteDICO

Eliel Alves Camerini Silva1

Luciana Stephani Silva Iocca2

RESUMO O presente artigo explora a garantia legal constitucional do processo juriacutedico criminal indiacutegena concebida pela Constituiccedilatildeo Federal Brasileira e pela Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho e legislaccedilotildees afins e de seu reconhecimento pelo Estado por meio da Sentenccedila proferida pela Comarca de BonfimRO nos autos de nordm 009010000302-0 e mantida pela turma recursal Ao seguir os moldes do neoconstitucionalismo latino-americano aponta o direito indiacutegena como um direito autocircnomo dotado de alteridade e com jus puniendi proacuteprio sem grau de hierarquia com o jus puniendi do Estado-juiz Tal reconhecimento insurge tambeacutem na valorizaccedilatildeo de um Estado multicultural com diferentes sistemas juriacutedicos proacuteprios e vaacutelidos no respectivo acircmbito jurisdicional dentro do territoacuterio brasileiro tido como pluralismo juriacutedico capaz de influenciar o Direito Estatal seja na sua criaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo Compreender a existecircncia de pluralismo eacute conhecer o direito indiacutegena enquanto direito comparado surgindo a possibilidade de aprofundar o conhecimento dos sistemas juriacutedicos aprimorando o direito nacional e aproximando os povos atraveacutes do respeito de suas identidades culturais tema este pouco abordado pela doutrina juriacutedica brasileira e nas academias juriacutedicas

PALAVRAS-CHAVE Direito Indiacutegena Reconhecimento Estatal Multiculturalismo

1 Acadecircmico do Curso de Direito da UNEMAT CaacuteceresMTelielcamerinigmailcom 2 Professora Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT lucianaioc-cagmailcom

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ABSTRACT This article explores a Constitutional legal warranty of the indigenous criminal legal process conceived by the Brazilian Federal Constitution and by the International Labour Organization and related legislation and its recognition by the State by means of the judgment pronounced by the district of Bonfim Rondocircnia Brazil records number 009010000302-0 and maintained by the recursal class By following the molds of Latin American Neoconstitutionalism points to indigenous law as an autonomous right full of alterity and with own jus puniendi without degree of hierarchy with State-judgersquos jus puniendi Such recognition also insists on the appreciation of a multicultural State composed by different legal systems of their own and valid in the judicial sphere within the Brazilian territory understood as legal pluralism able to influencing State Law whether in its creation interpretation and application To understand the existence of pluralism is to know the Indigenous Law as protected right arising the possibility of deepening the knowledge of legal systems improving national law and approaching people through the respect of their cultural identities which is not usually addressed by Brazilian legal doctrine and in legal academies

KEYWORDS IndigenousLaws Staterecognition Multiculturalism

INTRODUCcedilAtildeO

A partir da Convenccedilatildeo 169 da OIT ndash Organizaccedilatildeo Inter-nacional do Trabalho ndash da qual o Brasil eacute signataacuterio e da proacutepria Constituiccedilatildeo Federal de 1988 mudanccedilas poliacuteticas e principalmen-te juriacutedicas surgiram no que diz respeito agraves relaccedilotildees do Estado e da sociedade brasileira com os povos indiacutegenas tendo em vista o reconhecimento aos povos indiacutegenas de sua organizaccedilatildeo social costumes liacutenguas crenccedilas tradiccedilotildees e autodeclaraccedilatildeo

Acerca do assunto o professor Rogeacuterio Geraldo Rocco (2015 online) tece o seguinte comentaacuterio

Sem duacutevida referida Convenccedilatildeo tem sido utilizada para a proteccedilatildeo de culturas tradicionais especial-mente de indiacutegenas e quilombolas na Amazocircnia Mas eacute um instrumento de consulta que se aplica

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quando eventuais projetos ou programas atingirem as suas terras e culturas Quanto a seus sistemas ju-riacutedicos o reconhecimento e respeito por parte da cultura hegemocircnica depende da formalizaccedilatildeo de um pluralismo juriacutedico (Grifo nosso)

Tais mudanccedilas se caracterizam pela positivaccedilatildeo de direitos pluralistas no acircmbito da etnicidade poliacutetica e cultura dos povos pautadas na concepccedilatildeo do neocostitucionalismo latino-americano

Nesse contexto tatildeo certo de que o direito de um paiacutes faz parte do patrimocircnio nacional o Tribunal de Justiccedila de Roraima decidiu em 18 de dezembro de 2015 a Apelaccedilatildeo Criminal nordm 009010000302-0 reconhecendo a jurisdiccedilatildeo indiacutegena criminal e portanto a materializaccedilatildeo do estado plurieacutetnico

Tratou-se do caso do crime de homiciacutedio praticado por Denilson Trindade Douglas que apoacutes ingerir bebida alcooacutelica desferiu facadas na viacutetima Alanderson Trindade Douglas ambos irmatildeos e membros da mesma tribo na comunidade indiacutegena do Manoaacute terra indiacutegena Manoaacute-Pium na Reserva Raposa Serra da Lua municiacutepio de Bonfim Estado de Roraima O Ministeacuterio Puacute-blico de Roraima ofereceu denuacutencia com base no art 121 sect 2ordm II do Coacutedigo Penal Brasileiro Na defesa a Procuradoria Federal responsaacutevel pela Seccedilatildeo de Indiacutegenas alegou a impossibilidade de punir o mesmo fato duas vezes bis in idem conforme o art 57 do Estatuto do Iacutendio haja vista que o crime foi punido conforme os usos e costumes da comunidade indiacutegena atraveacutes de decisatildeo das lideranccedilas das comunidades Anauaacute Manoaacute e WaiWai O Tribunal de Justiccedila de Roraima deixou de apreciar o meacuterito declarando a ausecircncia de in casu do direito de punir estatal

Entendimento do neoconstitucionalismo latino-americano

As profundas transformaccedilotildees ocorridas no cenaacuterio mun-dial na deacutecada de 90 no que diz respeito agraves relaccedilotildees econocircmicas poliacuteticas juriacutedicas e sociais entre os povos influenciaram (e in-fluenciam) na construccedilatildeo do neoconstitucionalismo latino-ameri-

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cano (DALMAU 2009)Tais mudanccedilas juriacutedicas se datildeo na esfera das relaccedilotildees in-

ternacionais concebidas atraveacutes de um sistema juriacutedico em forma de redes devido agraves muacuteltiplas cadeias normativas3 como tambeacutem no acircmbito interno de cada Estado atraveacutes do implemento de meca-nismos que visam efetivar o sistema poliacutetico adotado

O neoconstitucionalismo latino-americano surge como uma nova forma de organizaccedilatildeo juriacutedico-poliacutetica voltada para a construccedilatildeo de um ldquoEstado Democraacutetico de Direito Estado consti-tucional de direito Estado constitucional democraacuteticordquo ao institu-cionalizar no texto constitucional a dignidade da pessoa humana e normas de direitos fundamentais garantias de cunho social sob a proteccedilatildeo juriacutedica (BARROSO 2007)

A autora peruana Raquel Z Yrigoyen Fajardo (2008 p 16) identifica que o neoconstitucionalismo em linha temporal desen-volveu-se em trecircs ciclos

I - constitucionalismo multicultural (1982-1988) com a introduccedilatildeo do conceito de diversidade cultural e o reconhecimento de direitos indiacutegenas especiacuteficos II - constitucionalismo pluricultural (1988-2005) com a adoccedilatildeo do conceito de ldquonaccedilatildeo multieacutetnicardquo e o de-senvolvimento do pluralismo juriacutedico interno sendo incorporados vaacuterios direitos indiacutegenas ao cataacutelogo de direitos fundamentais III - constitucionalismo plurinacional (2006-2009) demanda pela criaccedilatildeo de um Estado plurinacional e de um pluralismo juriacutedi-co igualitaacuterio

Mais recentemente se vecirc a implantaccedilatildeo de um novo mo-delo fruto de reivindicaccedilotildees sociais de parcelas historicamente ex-cluiacutedas do processo decisoacuterio notadamente a populaccedilatildeo indiacutegena ndash como a promulgaccedilatildeo das Constituiccedilotildees do Equador (2008) e da Boliacutevia (2009) com praacuteticas de pluralismo igualitaacuterio jurisdicional em que haacute ldquoconvivecircncia de instacircncias legais diversas em igual hie-rarquia jurisdiccedilatildeo ordinaacuteria estatal e jurisdiccedilatildeo indiacutegenacampo-

3 FARIA Joseacute Eduardo Reforma constitucional em periacuteodo de globalizaccedilatildeo econocircmica 1997 p 5

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nesardquo (WOLKMER 2010 p 11)Em essecircncia um novo processo constitucional voltado

para o reconhecimento de um Estado plural ndash plurinacional ndash que segundo Dantas (2012) eacute ldquobaseado no pluralismo juriacutedico em que segue um novo regime poliacutetico pautado na democracia intercultural participaccedilatildeo popular resguardo a individualidades particulares ou coletivasrdquo

Nesse vieacutes a Constituiccedilatildeo Brasileira de 1988 investida da corrente neoconstitucionalista latino-americana com o caraacuteter de Constituiccedilatildeo Cidadatilde passa a reconhecer a identidade plurieacutetni-ca do Brasil Aos indiacutegenas satildeo reconhecidos direitos especiacuteficos bem como a garantia de direitos fundamentais enquanto cidadatildeos de direito presente no art 5ordm da Carta Magna Como resultado rompe-se a visatildeo integracionista ndash assimilacionista ndash agrave eacutepoca que entendia os indiacutegenas como categoria social transitoacuteria a ser incor-porada agrave comunhatildeo nacional E passa-se agrave perspectiva de sujeitos de direitos comuns e especiacuteficos como institucionaliza o Cap VIII intitulado ldquoDos Iacutendiosrdquo

Art 231 Satildeo reconhecidos aos iacutendios sua organiza-ccedilatildeo social costumes liacutenguas crenccedilas e tradiccedilotildees e os direitos originaacuterios sobre as terras que tradicio-nalmente ocupam competindo agrave Uniatildeo demarcaacute-las proteger e fazer respeitar todos os seus bens

sect 1ordm Satildeo terras tradicionalmente ocupadas pelos iacutendios as por eles habitadas em caraacuteter permanente as utilizadas para suas atividades produtivas as imprescindiacuteveis agrave preservaccedilatildeo dos recursos ambientais necessaacuterios a seu bem-estar e as necessaacuterias a sua reproduccedilatildeo fiacutesica e cultural segundo seus usos costumes e tradiccedilotildees

sect 2ordm As terras tradicionalmente ocupadas pelos iacutendios destinam-se a sua posse permanente cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo dos rios e dos lagos nelas existentes

sect 3ordm O aproveitamento dos recursos hiacutedricos incluiacutedos os potenciais energeacuteticos a pesquisa e a

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lavra das riquezas minerais em terras indiacutegenas soacute podem ser efetivados com autorizaccedilatildeo do Congresso Nacional ouvidas as comunidades afetadas ficando-lhes assegurada participaccedilatildeo nos resultados da lavra na forma da leisect 4ordm As terras de que trata este artigo satildeo inalienaacuteveis e indisponiacuteveis e os direitos sobre elas imprescritiacuteveis

sect 5ordm Eacute vedada a remoccedilatildeo dos grupos indiacutegenas de suas terras salvo laquoad referendumraquo do Congresso Nacional em caso de cataacutestrofe ou epidemia que ponha em risco sua populaccedilatildeo ou no interesse da soberania do Paiacutes apoacutes deliberaccedilatildeo do Congresso Nacional garantido em qualquer hipoacutetese o retorno imediato logo que cesse o risco

sect 6ordm Satildeo nulos e extintos natildeo produzindo efeitos juriacutedicos os atos que tenham por objeto a ocupaccedilatildeo o domiacutenio e a posse das terras a que se refere este artigo ou a exploraccedilatildeo das riquezas naturais do solo dos rios e dos lagos nelas existentes ressalvado relevante interesse puacuteblico da Uniatildeo segundo o que dispuser lei complementar natildeo gerando a nulidade e a extinccedilatildeo direito agrave indenizaccedilatildeo ou a accedilotildees contra a Uniatildeo salvo na forma da lei quanto agraves benfeitorias derivadas da ocupaccedilatildeo de boa feacute

sect 7ordm Natildeo se aplica agraves terras indiacutegenas o disposto no art 174 sect 3ordm e sect 4ordm

Art 232 Os iacutendios suas comunidades e organiza-ccedilotildees satildeo partes legiacutetimas para ingressar em juiacutezo em defesa de seus direitos e interesses intervindo o Mi-nisteacuterio Puacuteblico em todos os atos do processo

Acordantes no Cap III Seccedilatildeo II tiacutetulo ldquoDa Culturardquo os artigos 215 e 216 normatizam o reconhecimento e fortalecimento da identidade dos povos indiacutegenas assegurando o efetivo exerciacutecio dos direitos culturais e liberdade de manifestaccedilotildees culturais bem como a valorizaccedilatildeo das matrizes histoacutericas Tem-se entatildeo o direi-to indigenista um conjunto das normas positivas que tratam das

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questotildees indiacutegenas sejam leis princiacutepios ou demais atos normati-vos que regem as relaccedilotildees entre iacutendios e natildeo iacutendios

Por outro lado o direito indiacutegena ou direito consuetudinaacute-rio indiacutegena embora tenha garantia legal para sua manifestaccedilatildeo eacute tido como ldquoregras postas aos iacutendios nas aldeias vistas a reger as relaccedilotildees entre indiviacuteduos famiacutelias grupos e povosrdquo e integra a forma de organizaccedilatildeo e da cultura da comunidade indiacutegena atra-veacutes das relaccedilotildees ancestrais com carga moral e cultural (SILVA 2005 online)

Como bem explana Francisco das Chagas Lima Filho (2007) ao acrescentar que

[] nas relaccedilotildees de famiacutelia casamento propriedade sucessatildeo e mesmo na questatildeo criminal existe uma plenitude do direito indiacutegena que se revela atraveacutes de um sistema juriacutedico completo com direitos e de-veres normas e sanccedilotildees criadas de modo coletivo por toda a comunidade de acordo com as necessi-dades do grupo

A presenccedila de outras fontes de produccedilatildeo juriacutedica dentro de um Estado muitas vezes intituladas de direito natildeo-oficial direi-to marginal ou alternativo eacute a concepccedilatildeo do pluralismo juriacutedico O direito natildeo-oficial tem suas proacuteprias regras que satildeo seguidas e respeitadas por um nuacutemero consideraacutevel de habitantes que o reco-nhecem como tal aplicando-o na soluccedilatildeo de conflitos E por vezes acarretam modificaccedilotildees no direito oficial por via das decisotildees judi-ciaacuterias (TAVARES 2014)

Direito indiacutegena enquanto direito comparado

A presenccedila de variados sistemas juriacutedicos leva por vezes agrave necessidade de conhececirc-los para eventualmente aperfeiccediloar ou unificar o direito Certo eacute que os modelos juriacutedicos mudam ininterruptamente por lenta evoluccedilatildeo ou por sobreposiccedilatildeo global ocorrendo mutaccedilotildees ndash originais ou imitaccedilotildees (SACCO 2001)

Eis que se faz necessaacuterio o uso do direito comparado qual

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seja a contribuiccedilatildeo que ele oferece ao possibilitar a verificaccedilatildeo das vaacuterias maneiras de se organizar institutos juriacutedicos e de regular re-laccedilotildees juriacutedicas semelhantes instrumentalizando o funcionamento do ordenamento

O direito comparado por vezes eacute apresentado como a constataccedilatildeo dos pontos comuns e das divergecircncias existentes em dois ou vaacuterios direitos Contudo natildeo deve ser visto apenas como o apontamento das diferenccedilas e semelhanccedilas E sim na perspec-tiva de conhecer a natureza e evoluccedilatildeo histoacuterica das instituiccedilotildees do direito relacionando as notiacutecias e tradiccedilotildees do passado com o presente Assim como sua importacircncia na descoberta e formulaccedilatildeo dos princiacutepios comuns que regem as relaccedilotildees sociais bem como a possibilidade de enriquecimento reciacuteproco entre normas juriacutedicas e por fim o fornecimento de bases juriacutedicas e conclusotildees cientiacutefi-cas a partir da experiecircncia com o objetivo de aperfeiccediloar o sistema juriacutedico nacional (JIMENEZ SERRANO 2006)

Para explicar essas ldquomultiplicidadesrdquo no direito compara-do Ana Lucia de Lyra Tavares professora de Direito Constitucio-nal Comparado da PUC-Rio traz as seguintes consideraccedilotildees

Diversamente do que ocorreu por muito tempo em que os campos para a comparaccedilatildeo juriacutedica eram se-lecionados segundo afinidades geopoliacuteticas e ideoloacute-gicas dos Estados envolvidos ou de acordo como a similitude de graus de desenvolvimento econocircmico ou ainda em funccedilatildeo de raiacutezes culturais comuns em suma a comparaccedilatildeo do comparaacutevel em nossos dias a prefixaccedilatildeo desses campos passou a traduzir um in-teresse acadecircmico e teoacuterico Isso porque a realidade da globalizaccedilatildeo impocircs relaccedilotildees entre sistemas juriacute-dicos profundamente heterogecircneos aleacutem de extra-polarem as bases internacionais de relacionamento chegando-se a patamares supranacionais e ateacute mes-mo universais Assim se a urgecircncia da compreensatildeo entre os oriundos desses sistemas eacute ditada a curto prazo por interesses de natureza econocircmica a longo prazo satildeo exigecircncias mais profundas de compreen-satildeo intercultural que devem ser consideradas para que se alcance um entendimento mais vasto (TA-VARES 2014 online)

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Em concordacircncia nota-se que ldquoa ideia de comparaccedilatildeo au-menta a compreensatildeo entre os povos e contribui para a coexistecircn-cia das naccedilotildeesrdquo uma vez que gera aproximaccedilatildeo dos povos pelo respeito de suas identidades culturais (SACCO 2001 p 27)

Na visatildeo do professor Rogeacuterio Geraldo Rocco (2005 onli-ne)

Entretanto essa definiccedilatildeo de grandes sistemas juriacute-dicos caracteriza uma visatildeo hegemocircnica sobre gru-pos sociais que por certo satildeo diversos distintos e plurais num mesmo territoacuterio Eacute algo proacuteximo do monismo juriacutedico referido por Lins Mesquita (2012 p 157) segundo o qual os direitos dos povos tradi-cionais natildeo seriam senatildeo especificaccedilotildees histoacutericas Eacute certo que as comunidades indiacutegenas possuem seus sistemas juriacutedicos e que natildeo guardam muitas seme-lhanccedilas com os sistemas hegemocircnicos na proporccedilatildeo de seu distanciamento da cultura dominante E que o grande dilema contemporacircneo reside no desafio de harmonizar os distintos sistemas juriacutedicos eis que coincide sua incidecircncia no tempo e no espaccedilo

De fato o direito comparado pode gerar efeitos influen-ciar na mudanccedila de institutos como na criaccedilatildeo da norma juriacutedica ou no campo da hermenecircutica atraveacutes da interpretaccedilatildeo das nor-mas juriacutedicas

A conjuntura do direito comparado pode produzir mu-danccedilas no acircmbito juriacutedico no entanto atentam ao direito criado mediante um procedimento artificial o direito estatal Em contra-posto o direito tradicional como o direito indiacutegena por vezes eacute ignorado (SACCO 2001)

Jurisdiccedilatildeo equiparada

Na praacutetica o direito estatal vem imperando sobre o direito indiacutegena ao aplicar o direito positivo aos indiacutegenas negando o di-reito consuetudinaacuterio que adveacutem das praacuteticas sociais e da tradiccedilatildeo dos povos indiacutegenas pondo-o como fonte secundaacuteria do direito

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Exigindo que seja compatiacutevel com o sistema juriacutedico nacionalParalelo agrave concepccedilatildeo dogmaacutetica no sistema juriacutedico esta-

tal o Tribunal de Justiccedila de Roraima em decisatildeo ineacutedita no siste-ma juriacutedico brasileiro determinou que o Estado natildeo pode aplicar pena prevista no Coacutedigo Penal a indiacutegena que jaacute foi punido pela proacutepria comunidade

Ao declarar a ausecircncia de jus puniendi o juiz de primeiro grau suscitou a titularidade dos dois entes ndash Estado e comunidade indiacutegena ndash do direito de punir denominando de duplo jus puniendi garantindo autonomia ao Conselho Indiacutegena agrave luz do art 57 do Estatuto do Iacutendio ldquoSeraacute tolerada a aplicaccedilatildeo pelos grupos tribais de acordo com as instituiccedilotildees proacuteprias de sanccedilotildees penais ou disci-plinares contra os seus membros desde que natildeo revistam caraacuteter cruel ou infamante proibida em qualquer caso a pena de morterdquo (1973 np)

Em entrelinhas atraveacutes dessa interpretaccedilatildeo reconhece que o Estado natildeo eacute uacutenico detentor do poder de julgar e aplicar pu-niccedilatildeo colocando ambas as jurisdiccedilotildees em igual status hieraacuterquico como acontece em outras Repuacuteblicas latinas como Boliacutevia (2009) e Equador (2008)

Conforme documentos acostado agraves f 185-187 dos autos do processo em anaacutelise o Conselho Indiacutegena atraveacutes de seus usos e costumes impocircs ao indiacutegena as seguintes penalidades

ldquo1) O iacutendio Denilson deveraacute sair da Comunidade do Ma-noaacute e cumprir pena na Regiatildeo WaiWai por mais 5 (cinco) anos com possibilidade de reduccedilatildeo conforme seu comportamento

2) Cumprir o Regimento Interno do Povo WaiWai res-peitando a convivecircncia o costume a tradiccedilatildeo e moradia junto ao povo WaiWai

3) Participar de trabalho comunitaacuterio4) Participar de reuniotildees e demais eventos desenvolvido

pela comunidade5) Natildeo comercializar nenhum tipo de produto peixe ou

coisas existentes na comunidade sem permissatildeo da comunidade juntamente com tuxaua

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6) Natildeo desautorizar o tuxaua cometendo coisas agraves escon-didas sem conhecimento do tuxaua

7) Ter terra para trabalhar sempre com conhecimento e na companhia do tuxaua

8) Aprender a cultura e a liacutengua WaiWai9) Se natildeo cumprir o regimento seraacute feita outra reuniatildeo e

tomar outra decisatildeordquo (2013 p 224)Importante destacar alguns trechos da Sentenccedila dos autos

nordm 009010000302-0 TJRR proferida pelo Juiz de Direito Aluiacutezio Ferreira Vieira em 03 de setembro de 2013

[] Cabe acentuar que todo o procedimento su-pramencionado foi realizado sem mencionar em momento algum a legislaccedilatildeo estatal tendo apenas como norte a autoridade que seus usos e costumes lhes confere[] Vecirc-se portanto a potencial condenaccedilatildeo e exe-cuccedilatildeo de pena por mais de 2 (dois) entes em tese titulares do direito de punir o mesmo fato Insta ob-servar que natildeo se trata de bis in idem pois os entes detentores do direito de punir satildeo distintos e natildeo apenas o Estado mas de instituto novo que poderiacute-amos denominar de ldquoDuplo Jus Puniendirdquo Em razatildeo da situaccedilatildeo supramencionada a Defesa alccedilou a existecircncia do no bis in idem ou seja a im-possibilidade do acusado ser sancionado duas vezes pelo mesmo fato logo este Juiacutezo deveria declarar-se incompetente em razatildeo da mateacuteria haja vista o ante-rior julgamento do fato pela comunidade indiacutegena a que pertence o acusadoPois bem rechaccedilo em parte o argumento da ilustre Defesa A uma pois tenho que o imbroacuteglio natildeo se trata de bis in idem mas de ldquoDuplo jus Puniendirdquo em face do que dispotildee o art 57 da Lei 600173 (Es-tatuto do Iacutendio)[] Ora natildeo se estaacute aqui alccedilando qualquer alegaccedilatildeo de incompetecircncia do Tribunal do Juacuteri pois se trata de algo acima disso que a ausecircncia in casu do direito de punir do Estado-Juiz Logo seria uma discussatildeo esteacuteril em face da inaplicabilidade dos institutos do processo estatal Ademais ainda que se considerasse o niacutevel constitucional do prescrito no art 5ordm inciso

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XXXVIII da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica como direito fundamental a ser observado o contraponto estaria no art 231 da mesma Constituiccedilatildeo que tambeacutem eacute direito fundamental logo com a necessaacuteria obser-vacircncia aos costumes e tradiccedilotildees dos povos indiacutege-nasConveacutem advertir que a esmagadora maioria da doutrina entende que a previsatildeo art 57 do Estatuto do Iacutendio seria uma exceccedilatildeo ao direito de punir esta-tal Com base nisso poderia se concluir que o Esta-do natildeo poderia atuar de forma alguma nos casos de crimes ocorridos nas comunidades indiacutegenas o que natildeo traduz a finalidade da legislaccedilatildeo e tatildeo pouco o que acontece na realidadeVejo pois que essa natildeo eacute a melhor conclusatildeo uma vez que o Estado teraacute ampla autonomia para inves-tigar processar e julgar o indiacutegena nos casos em que a comunidade indiacutegena natildeo julgaacute-lo logo o Estado em casos tais atuaraacute de forma subsidiaacuteria[] Em outras palavras o Estado deve apenas pro-nunciar a sua ausecircncia de poder de punir uma vez que o acusado jaacute foi julgado e condenado por quem deteacutem o direito Muito maior que o reconhecimento do direito de pu-nir seus pares as comunidades indiacutegenas sentiratildeo muito mais fortalecidas em seus usos e costumes fa-tor de integraccedilatildeo e preservaccedilatildeo de sua cultura haja vista que o Estado estaraacute sinalizando o respeito ao seu modo de viver e lhe dar com as tensotildees da vida dentro da comunidadeHaacute quem pense e diga que haja o temor da repercus-satildeo social da fragilizaccedilatildeo do Estado ou o potencial recrudescimento da violecircncia dentro das comunida-des indiacutegenasDigo o inverso o Estado natildeo estaraacute fragilizado pois caso as comunidades indiacutegenas natildeo julguem seus pares manteacutem-se o Direito de Punir Estatal de for-ma subsidiaacuteriaEnfim natildeo se enfraquece de forma alguma o Poder Estatal mas ao inverso fortalece-se a atividade juris-dicional ao se reconhecer uma excepcionalidade que deve ser tratada de forma distinta afinal o Estado natildeo eacute absolutista[] Ante ao exposto deixo de apreciar o meacuterito da denuacutencia do Oacutergatildeo Ministerial representante do Es-

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tado para DECLARAR A AUSEcircNCIA IN CASU DO DIREITO DE PUNIR ESTATAL em face do julga-mento do fato por comunidade indiacutegena relativo ao acusado DENILSON TRINDADE DOUGLAS brasi-leiro solteiro agricultor nascido aos 130389 filho de Alan Douglas e Demilza da Silva Trindade com fundamento no art 57 da Lei nordm 600173 e art 231 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica (VIEIRA 2013)

Ainda como fundamentaccedilatildeo o juiacutezo levantou uma deci-satildeo do Conselho de Sentenccedila do Tribunal do Juacuteri Popular da Jus-ticcedila Federal em Roraima presidido pelo juiz federal Helder Giratildeo Barreto que entendeu pela absolviccedilatildeo do indiacutegena Basiacutelio Alves Salomatildeo por falta de culpabilidade tendo em vista que o reacuteu cum-priu sua pena imposta pela comunidade indiacutegena Vejamos o tre-cho proferido pelo titular

Pois bem apoacutes cometer o crime o acusado foi pre-so e julgado pela proacutepria Comunidade Indiacutegena agrave qual pertencia recebendo as seguintes penas cavar a cova e enterrar o corpo da viacutetima e ficar em degre-do de sua comunidade e de sua famiacutelia pelo tempo que a comunidade achasse conveniente No dia do julgamento o acusado estava haacute quase catorze anos sem poder retornar ao conviacutevio da Comunidade Indiacutegena do Maturuca Ao ser interrogado em ple-naacuterio o acusado declarou quando um iacutendio comete um crime eacute costume ele ser julgado pelos proacuteprios companheiros Tuxauas e que isso eacute um costume que vem antes do tempo dos seus avoacutes As testemunhas confirmaram os fatos Em plenaacuterio foi ouvida a an-tropoacuteloga Alesandra Albert que assegurou que na tradiccedilatildeo da etnia Macuxi um iacutendio que mata outro eacute submetido a um Conselho escolhido pela proacutepria comunidade e reconhecido como detentor de auto-ridade que a maior pena aplicada pelo Conselho eacute o banimento que tanto o julgamento quanto a pena satildeo modos como eles encaram a Justiccedila e conclui para a pessoa que sofreu banimento o julgamento e a pena tecircm o sentido da perda da convivecircncia e da di-minuiccedilatildeo do conceito perante a Comunidade coisas que satildeo muito importantes (BARRETO 2000)

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Muito embora o juiz Aluiacutezio Ferreira Vieira tenha discor-dado quanto agrave ldquoabsolviccedilatildeordquo pois absolviccedilatildeo entende-se pelo julga-mento da mateacuteria e para aquele o Estado in casu que natildeo detinha o direito de punir em virtude do que se concluiria pela competecircn-cia do jus puniendi indiacutegena

Dessa maneira entendeu-se pela inaplicabilidade dos ins-titutos do processo estatal uma vez que o Estado seria incompeten-te em razatildeo da mateacuteria diante da pena jaacute aplicada pelo Conselho Indiacutegena dando iniacutecio ao reconhecimento do Estado Plurinacio-nal com visibilidade agraves experiecircncias indiacutegenas com novas e criati-vas possibilidades de se pensar o direito

Em suma na praacutetica seraacute aplicado da seguinte maneira

a) Nos casos em que autor e viacutetima satildeo iacutendios fato ocorre em terra indiacutegena e natildeo haacute julgamen-to do fato pela comunidade indiacutegena o Estado deteraacute o direito de punir e atuaraacute apenas de forma subsidiaacuteria Logo seratildeo aplicaacuteveis todas as regras penais e processuais penais

b) nos casos em que autor e viacutetima satildeo iacutendios o fato ocorre em terra indiacutegena e haacute julgamento do fato pela comunidade indiacutegena o Estado natildeo teraacute o di-reito de punir Assim torna-se evidente a impossibi-lidade de se aplicar regras estatais procedimentais a fatos tais que natildeo podem ser julgados pelo Estado Eacute o que aconteceu neste caso (Grifo nosso)

Em apelaccedilatildeo a turma recursal atraveacutes do Relator Des Mauro Campello em 18 de dezembro de 2015 manteve a senten-ccedila como se nota

[] Firme na Convenccedilatildeo 169 da OIT bem assim no conhecido art 231 da Constituiccedilatildeo Federal e toman-do por base a experiecircncia comparada (conforme o permite o art 4ordm da LINDB) entendo como correta a decisatildeo em 1ordf instacircncia ressalvadas as consideraccedilotildees sobre parte da justificativa nela adotada como ano-tei o que em todo caso nos leva agrave mesma conclusatildeo Ante ao exposto considerando afastada a jurisdiccedilatildeo

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estatal com o julgamento do fato pela comunidade indiacutegena concernida sob pena de se acarretar bis in idem voto pelo desprovimento do recurso de ape-laccedilatildeo ministerial mantendo inalterada a sentenccedila (CAMPELLO 2015)

Por outro lado o Relator fez algumas reflexotildees colocando o caso em questatildeo como violaccedilatildeo ao princiacutepio non bis in idem dis-cordando do termo duplo jus puniendi utilizado pelo juiz senten-ciante

[] Se o que denomina o Juiz sentenciante de ldquoDu-plo Jus Puniendirdquo significa que haacute dois entes juridi-camente legitimados a punir uma infraccedilatildeo penal e julgando um deles um certo crime natildeo poderaacute se imiscuir o outro no mesmo fato arrogando para si o direito de examinar a culpabilidade do agente e eventualmente responsabilizaacute-lo tambeacutem por isto seria se outro modo justamente aquilo que veda o brocardo ldquoNemo debet bis vexari pro uma et eadem causardquo (Ningueacutem deve ser sancionado mais de uma vez por um e mesmo fato) cuja contraccedilatildeo correspon-de ao non bis in idem Este princiacutepio natildeo implica (apenas) que um mesmo ente natildeo pode punir duas vezes o mesmo fato e sim como garantia processual penal ampla do indiviacuteduo que este natildeo pode ser pu-nido duas vezes por umpelo mesmo fato qualquer se seja o ente que o puneTenho que a compreensatildeo para o caso deve ser a que percebe violado o principio non bis in idem no presente caso natildeo porque seja refrataacuterio a novos institutos que possam ser reconhecidos na casuiacutes-tica judicial mas apenas porque me parece que o ldquoDuplo Jus Puniendirdquo poderia acender um debate paralelo acerca do conflito de jurisdiccedilotildees e que esse novel instituto natildeo suplantaria adequadamente o argumento da acusaccedilatildeo de que haveria violado na espeacutecie principio da inafastabilidade da jurisdiccedilatildeo (CAMPELLO 2015)

Em suma a decisatildeo corresponde agrave realidade latino-ameri-cana reconhecendo a jurisdiccedilatildeo indiacutegena quebrando o monopoacutelio

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estatal ao conceber a utilizaccedilatildeo de meacutetodos tradicionais dos po-vos indiacutegenas para soluccedilatildeo de conflitos mesmo em mateacuteria penal Decisatildeo essa que eacute reflexo do neoconstitucionalismo latino-ame-ricano uma vez que efetiva os direitos fundamentais dos povos indiacutegenas valida e reforccedila o pluralismo existente no paiacutes Capaz de influenciar numa nova concepccedilatildeo de valores ou ideologias no que concerne a outras fontes de jurisdiccedilatildeo

Segundo dados do IBGE de 2010 a populaccedilatildeo indiacutegena brasileira eacute representada por 305 diferentes etnias conhecidas cada qual com costumes e regras proacuteprias com 274 liacutenguas indiacute-genas sendo que 175 da populaccedilatildeo indiacutegena natildeo falam a liacutengua portuguesa Mostra-se claramente um Estado composto por uma sociedade multicultural e multiliacutengue que possui seu reconheci-mento sob respaldo constitucional

Neste cenaacuterio reconhecer o jus puniendi indiacutegena em grau de paridade com o jus puniendi do Estado-juiz natildeo torna incompe-tente a atuaccedilatildeo do Estado mas sim descentraliza a efetividade do poder vez que restringe a sua atuaccedilatildeo ao caraacuteter subsidiaacuterio se o indiacutegena assim o quiser nem mesmo se teraacute uma sanccedilatildeo desfavo-raacutevel isso porque se viabiliza a aplicabilidade de outras fontes do direito nacional condizente com a realidade social indiacutegena

Atuaccedilatildeo semelhante acontece com as Constituiccedilotildees Boli-viana e Equatoriana paiacuteses em que a populaccedilatildeo eacute composta signi-ficativamente por povos originaacuterios que atraveacutes de ampla parti-cipaccedilatildeo da populaccedilatildeo durante a elaboraccedilatildeo dos respectivos textos constitucionais traccedilaram o objetivo de humanizaccedilatildeo dos povos e comunidades tradicionais sobretudo quanto ao tratamento dado agraves tradiccedilotildees e praacuteticas indiacutegenas e assim legitimaram a atuaccedilatildeo das autoridades indiacutegenas no exerciacutecio da administraccedilatildeo da justi-ccedila em seus espaccedilos territoriais com seu proacuteprio direito e procedi-mentos

O Artigo 1ordm da Constituiccedilatildeo boliviana preconiza

Boliacutevia se constituye em um Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario libre In-dependiente soberano democraacutetico intercultural

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descentralizado y com autonomias Boliacutevia se funda em lapluralidad y el pluralismo poliacutetico econocircmico juriacutedico cultural y linguiacutestico dentro Del processo integrador del paiacutes

De fato a Constituiccedilatildeo brasileira jaacute reconhece os direitos dos povos indiacutegenas e comunidades tradicionais entretanto as di-ficuldades que encontram estatildeo na efetivaccedilatildeo de tais direitos vez que versam principalmente sobre direitos de caraacuteter coletivo Na Constituiccedilatildeo boliviana por exemplo para materializar a perspec-tiva de um Estado Plurinacional houve uma transformaccedilatildeo insti-tucional Sobretudo com a composiccedilatildeo do Tribunal Constitucional Plurinacional Boliviano que em sua composiccedilatildeo aleacutem da presenccedila de representantes da jurisdiccedilatildeo estatal conta com a presenccedila obri-gatoacuteria de indiacutegenas eleitos pelo povo para um melhor diaacutelogo intercultural atraveacutes da participaccedilatildeo popular e da percepccedilatildeo in-diacutegena

Com perspectiva semelhante a Constituiccedilatildeo do Equador traz a criaccedilatildeo da Corte Constitucional Equatoriana composta com paridade entre homens e mulheres atraveacutes de um pluralismo juriacute-dico igualitaacuterio Traz ainda na essecircncia do Texto constitucional o rompimento do antropocentrismo atraveacutes da percepccedilatildeo indiacutegena da integraccedilatildeo do homem com o meio em que vive com a vida de modo geral

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Na concepccedilatildeo indiacutegena devido ao princiacutepio da solidarie-dade os interesses da comunidade satildeo mais importantes e se so-brepotildeem aos interesses ou direitos individuais de tal maneira que o direito indiacutegena se origina da proacutepria comunidade por isso a legitimidade das normas e da puniccedilatildeo natildeo satildeo questionadas

Essa visatildeo eacute diversa da empregada pelo direito comum (que se utiliza de outros meios para criaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo) mas pos-sui garantias no acircmbito constitucional e internacional

Embora presentes alguns dispositivos legais a Constitui-

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ccedilatildeo Federal vigente natildeo positiva expressamente a jurisdiccedilatildeo indiacute-gena com grau de paridade com a jurisdiccedilatildeo estatal limitando-se agrave aplicaccedilatildeo dos usos e costumes nas relaccedilotildees entre indiacutegenas salvo quando contrariar o sistema juriacutedico nacional ou direitos humanos internacionais

A Constituiccedilatildeo da Boliacutevia por sua vez elenca um rol sig-nificativo de artigos com direitos indiacutegenas Desse modo determi-na equivalecircncia entre a justiccedila indiacutegena e a justiccedila comum aleacutem de abrir espaccedilo para a participaccedilatildeo poliacutetica Assim reafirma a coexis-tecircncia de ldquonaccedilotildeesrdquo dentro do territoacuterio boliviano

Compreender a existecircncia de pluralismo eacute conhecer o di-reito indiacutegena enquanto direito comparado surgindo a possibili-dade de aprofundar o conhecimento dos sistemas juriacutedicos apri-morando o direito nacional e aproximando os povos atraveacutes do respeito de suas identidades culturais

Graccedilas agrave sentenccedila em anaacutelise o Brasil inova e abre frente para novas interpretaccedilotildees e aplicaccedilotildees do direito convalidando di-retrizes da ONU OIT e da proacutepria Constituiccedilatildeo Federal

Na concepccedilatildeo indiacutegena o reconhecimento da aplicaccedilatildeo de seus usos e costumes traz a integraccedilatildeo de povos que coexistem num mesmo espaccedilo fiacutesico

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A TEORIA DO PREJUIacuteZO NAS NULIDADES RELATIVAS O COROLAacuteRIO DA DISCRICIONARIEDADE NO PROCESSO PENAL

Evandro Monezi Benevides1

Felipe Teles Tourounoglou2

RESUMO Com a superaccedilatildeo do Estado Liberal desenvolveu-se que se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito expressatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo agrave luz do poacutes-positivismo No Brasil com a Constituiccedilatildeo Cidadatilde e a experiecircncia da ditadura militar inaugurou-se uma nova ordem juriacutedico-constitucional ensejando terreno feacutertil na efetivaccedilatildeo de direitos e garantias constitucionais Em contrapartida os paradigmas juriacutedicos erigidos com a democracia mormente tecircm sido alvo de levantes vez que o sistema normativo paacutetrio ainda continua vinculado agraves leis que natildeo mais expressam os valores constitucionais Somado a isso o Judiciaacuterio diante de sua progressiva autonomizaccedilatildeo vivencia uma era regada pela discricionariedade hermenecircutica colocando em risco inclusive a supremacia da Constituiccedilatildeo Assim o presente trabalho tem por objetivo analisar como tem se dado a atuaccedilatildeo do Judiciaacuterio na aplicaccedilatildeo da teoria do prejuiacutezo nas nulidades processuais penais e a sua imbricaccedilatildeo com a discricionariedade tatildeo bem recepcionada atualmente por juiacutezes e tribunais bem como apontar possiacuteveis saiacutedas Para tanto lanccedilaremos matildeo da teoria criacutetica do direito como forma de anaacutelise da temaacutetica proposta apresentando posicionamentos que coadunam com o tema a partir de pesquisas bibliograacuteficas Tal estudo demonstra-se fundamental viabilizando discussotildees acadecircmicas sobre a necessidade de se combater comportamentos antidemocraacuteticos que resvalam as necessidades do atual constitucionalismo

PALAVRAS-CHAVE Constitucionalismo Contemporacircneo Poacutes-positivismo Interpretaccedilatildeo 1 Graduando do curso de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail evandromonezzihotmailcom2 Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado do Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail felipetelesadvgmailcom

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ABSTRACT With an overcoming of the Liberal State what has now been understood by the Constitutional State of Law the expression of Contemporary Constitutionalism has been developed in the light of post-positivism In Brazil with the Citizen Constitution and an experience of the military dictatorship a new juridical-constitutional order was inaugurated providing fertile ground for the realization of constitutional rights and guarantees On the other hand legal paradigms erected with democracy have usually been the target of uprisings which the countryrsquos normative system remains bound by laws that no longer express constitutional values Added to this the Judiciary faced with its progressive autonomization experienced an era ruled by hermeneutical arbitrariness even putting at risk the supremacy of the Constitution The purpose of this study has to analyze how the activity of the Judiciary has been applied in the application of the theory of injury in criminal proceedings and its connection with arbitrariness currently received by judges and courts pointing out possible exits Finally we will use the critical theory of law as a way of analyzing the proposed theme presenting positions that fit the theme using bibliographical research This study proves to be fundamental since it makes it possible to vocalize academic discussions about the need to combat undemocratic behaviors that go against the needs of the current constitutionalism

KEYWORDS Contemporary Constitutionalism Post-positivism Interpretation

INTRODUCcedilAtildeO

Com o agravamento das tensotildees poliacuteticas provocadas em parte pela desmoralizaccedilatildeo dos gestores puacuteblicos legitimamente constituiacutedos pelo voto em funccedilatildeo de escacircndalos de corrupccedilatildeo bem como do descompasso de suas accedilotildees face agraves necessidades sociais o Direito tem alcanccedilado um grau de autonomia cada vez mais elevado Isso se deve ao fato de que o Direito passa a ter um caraacuteter cada vez mais progressista no sentido de ser transformador potencializando as esperanccedilas sociais de verem concretizados os

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direitos fundamentais assumidos nos textos constitucionais Nes-se novo cenaacuterio paradigmaacutetico a poliacutetica (leia-se Executivo e Le-gislativo) em todas as suas conjecturas acaba ficando em deacuteficit com os direitos fundamentais Tais circunstacircncias possibilitaram a construccedilatildeo de um novo modelo de Direito e de Estado uma vez que a Constituiccedilatildeo passa a ser uma verdadeira forma de concreti-zaccedilatildeo de direitos

Por outro lado aquilo que poderia ser beneacutefico tem de-monstrado progressivamente seu lado funesto A autonomia do Direito construiacuteda pela afirmaccedilatildeo e materializaccedilatildeo de direitos e garantias constitucionais tem produzido um indesejaacutevel ldquoefeito colateralrdquo a discricionariedade jurisdicional Tal discricionariedade encontra-se fundamentada no fato de que dentro da dogmaacutetica juriacutedica (tradicional) seria (e tem sido) impossiacutevel ao inteacuterprete (juiz) se desvencilhar da sua subjetividade bem como da objetivi-dade do texto e lanccedilar matildeo de uma interpretaccedilatildeo do fato social a partir de uma concepccedilatildeo histoacuterico-ontoloacutegica do direito Isso sig-nifica dizer que a discricionariedade esvazia-se de quaisquer in-fluecircncias concreto-reais e mergulha na abstratalidade do Direito Se a liberdade portanto do legislador foi restringida em funccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo constitucional deve-se buscar caminhos que impe-ccedilam a discricionariedade do inteacuterprete em detrimento dos direitos e garantias fundamentais mormente solapados pelo decisionismo jurisdicional

Diante disso e como prova dos efeitos nocivos da discri-cionariedadearbitrariedade do inteacuterprete o ponto fulcral o qual o presente trabalho pretende abordar trata-se da teoria do prejuiacutezo amplamente debatida pela doutrina processual penal a qual se situa no instituto das nulidades relativas poreacutem muito mal apli-cada em decisotildees judiciais as quais em vez de concretizarem o respeito aos direitos fundamentais acabam se tornando a expres-satildeo maacutexima dessa discricionariedade violando direitos e garantias fundamentais e anulando e pondo agrave prova o que se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito Pior que isso colocando em risco a autonomia do Direito e inevitavelmente a supremacia da Constituiccedilatildeo

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O Estado Constitucional de Direito e a Autonomia do Direito

Trecircs foram as referecircncias inaugurais do constitucionalis-mo moderno a norte-americana a francesa e a inglesa as quais impulsionaram a construccedilatildeo do cenaacuterio juriacutedico-constitucional e poliacutetico do final do seacuteculo XVIII bem como os contornos do Estado Constitucional de Direito expressatildeo clara da limitaccedilatildeo do poder estatal

Sarlet (2013 p 52) aponta que ldquoo processo de afirmaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do Estado (Constitucional) de Direito que nasceu como um Estado Liberal de Direito revela que se trata de uma trajetoacuteria gradualrdquo pois outras experiecircncias constitucionais fo-ram sendo delineadas ao longo da histoacuteria3 Assim alerta o autor que sob o manto de Estados Constitucionais modelos distintos de constitucionalismos podem ser identificados como o Estado Cons-titucional Liberal o Estado Constitucional Social e o Estado Cons-titucional de Direito os quais se manifestam a partir de perspecti-vas ideoloacutegicas distintas mas que contribuiacuteram para a edificaccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo

Leciona Barroso (2010) que o marco do constitucionalis-mo que hoje se conhece como ldquogarantistardquo e ldquoprogramaacuteticordquo teve como marco histoacuterico o poacutes Segunda Guerra na Europa especial-mente na Alemanha e Itaacutelia4 com suas Constituiccedilotildees escritas No Brasil o marco foi a redemocratizaccedilatildeo poacutes Ditadura Militar em 1988 com a Constituiccedilatildeo Cidadatilde que possibilitou a travessia de um regime autoritaacuterio para o democraacutetico solidificado ateacute entatildeo Todos esses ldquomarcosrdquo a partir de suas contribuiccedilotildees histoacuterias de

3 Muito comum encontrar juristas que buscam estabelecer distinccedilotildees entre Estado Liberal e Estado Social apontado um ou outro como possivelmente mais adequado Logo necessaacuterio e oportuno eacute o esclarecimento de Streck (2014 p 138) ao afirmar que ldquonatildeo parece adequada portanto a tese da contraposiccedilatildeo do modelo de direito do Estado Social ao modelo de direito do Estado Liberal Isso seria ignorar os dois pilares sobre as quais estaacute assentado o terceiro modelo o Estado Democraacutetico de Direito a proteccedilatildeo dos direitos social-fundamentais e o respeito agrave democraciardquo 4 Duas satildeo as referecircncias de constitucionalismo a Constituiccedilatildeo alematilde denominada ldquoLei funda-mental de Bonnrdquo promulgada em 1949 erigindo uma sustentaacutevel tradiccedilatildeo constitucional no acircmbito dos paiacuteses de tradiccedilatildeo romano-germacircnica e a Constituiccedilatildeo italiana de 1947 Ambas auxiliaram para a aproximaccedilatildeo de ideais de democracia e constitucionalismo produzindo uma nova configuraccedilatildeo poliacutetica (BARROSO 2010)

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fato possibilitaram uma transformaccedilatildeo na compreensatildeo do Direi-to e mais que isso na compreensatildeo de validade das normas infra-constitucionais e das instituiccedilotildees pertencentes ao Estado

A redemocratizaccedilatildeo no Brasil apoacutes mais de duas deacutecadas do regime militar e a superaccedilatildeo do Positivismo Juriacutedico5 tiveram papel decisivo na estruturaccedilatildeo de um direito constitucional para aleacutem da compreensatildeo de uma Constituiccedilatildeo meramente poliacutetica e vinculada aos interesses legislativos e administrativos A Consti-tuiccedilatildeo aleacutem de exigir uma efetiva compatibilidade das leis estabe-lece limites ao legislador ao administrador e tambeacutem ao inteacuterprete da lei impondo-lhes deveres e limites inexoraacuteveis de atuaccedilatildeo

O marco do poacutes-positivismo6 reintroduziu as ideias (e os ideais) de justiccedila e legitimidade nos diversos niacuteveis do poder es-tatal Isso significa dizer que o Direito antes compreendido como uma ciecircncia ldquopurardquo e isolada de outros conhecimentos passa a comungar com a realidade histoacuterico-social propiciando um senti-mento constitucional Mais que isso passa a proporcionar instru-mentos que possibilitam as mudanccedilas reivindicadas pela socieda-de e de direitos expressamente garantidos no texto constitucional Quer dizer no Estado Constitucional de Direito a lei passa a ser um instrumento de realizaccedilatildeo do Estado oportunizando mecanis-mos de promoccedilatildeoconcretizaccedilatildeo das reivindicaccedilotildees sociais peran-te a ineacutercia do Executivo eou do Legislativo como por exemplo o mandado de injunccedilatildeo o mandado de seguranccedila coletivo a accedilatildeo civil puacuteblica para citar alguns

Ao passo dessas transformaccedilotildees e como forma clara de efetivaccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo consolidou-se a compreensatildeo de Supremacia da Constituiccedilatildeo a dizer a ldquoseguranccedilardquo de que os poderes constituiacutedos natildeo poderatildeo dispor (tatildeo facilmente)

5 A doutrina sofreu muitas influecircncias de pensadores que buscavam professar um direito natildeo mais refeacutem dos pensamentos ultrapassados ou seja de um direito com perspectivas individualista-dogmaacute-tica teacutecnico-burocraacutetica e assim por diante mas buscava agora compatibilizar-se com perspectivas democraacuteticas em direccedilatildeo a um constitucionalismo garantista e programaacutetico 6 Importante ressaltar que o conceito de ldquopoacutes-positivismordquo deve ser compreendido aqui como a superaccedilatildeo da dogmaacutetica juriacutedica regado por concepccedilotildees solipsistas de um direito autocircnomo e in-dividualista trata-se de forma clara da superaccedilatildeo do positivismo normativista poacutes-kelseniano ou simplesmente positivismo primitivo

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das previsotildees constitucionais estabelecidas pelo Poder Constituinte muito menos contrariar tais disposiccedilotildees sob pena de serem repe-lidos do ordenamento juriacutedico Essa ldquoseguranccedilardquo por outro lado acaba sendo abalada sempre que uma (nova) ordem constitucional natildeo seja capaz de se desvencilhar de leis ordinaacuterias visivelmen-te conflitantes com essa (nova) ordem Isso porque ao contraacuterio do que pensam alguns juristas a Constituiccedilatildeo natildeo se funda ldquodo nadardquo seja com a primeira Constituiccedilatildeo de um Estado ou mesmo com a elaboraccedilatildeo de uma nova a qual substituiraacute outra Natildeo se pode tentar ldquopurificarrdquo um Poder Constituinte (como tentou fazer Kelsen) Nenhuma Constituiccedilatildeo eacute livre de influecircncias sociais poliacute-ticas culturais e religiosas Ainda mais se diante da fragilidade do monismo estatal reconhece-se a existecircncia de um direito natildeo esta-tal paralelo ao direito oficial o que certamente nos levaraacute agrave con-clusatildeo de que nenhum constituinte eacute totalmente imune agraves influecircn-cias de um direito preacute-existente quiccedilaacute das efervescecircncias sociais

Ao lado dessa inseguranccedila provocada por um sistema normativo que em muitos casos vai de encontro aos preceitos constitucionais o ponto fulcral da discussatildeo que envolve o Esta-do Democraacutetico de Direito diz respeito agrave autonomia que o Direito alcanccedilou e tem alcanccedilado Eacute preciso ter em mente que hoje no Es-tado Democraacutetico de Direito o foco de toda a atenccedilatildeo se volta ao Judiciaacuterio e isso se daacute aponta Streck (2014 p 138) em funccedilatildeo da perda da ldquoliberdade da conformaccedilatildeo do legislador em favor do controle contramajoritaacuterio feito pela jurisdiccedilatildeo constitucionalrdquo ou seja haacute uma niacutetida diminuiccedilatildeo do ldquopoderrdquo da vontade geral (Legislativo) e um aumento do espaccedilo da jurisdiccedilatildeo e o principal motivo dessa diminuiccedilatildeo de poder recai sobre a ineacutercia do Legis-lativo e do Executivo diante das garantias constitucionais que por eles satildeo negligenciadas permitindo que o Judiciaacuterio assuma uma postura mais ativa7 com o propoacutesito de concretizar os reclames da sociedade

7 Aqui a palavra ldquoativardquo (que remete ao termo ldquoativismo juriacutedicordquo) deve ser compreendida nas pa-lavras de Barroso (2012 p 1-50) como ldquouma participaccedilatildeo mais ampla e intensa do Judiciaacuterio na con-cretizaccedilatildeo dos valores e fins constitucionais com maior interferecircncia no espaccedilo de atuaccedilatildeo dos outros dois Poderes Em muitas situaccedilotildees sequer haacute confronto mas mera ocupaccedilatildeo de espaccedilos vaziosrdquo

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Diante dessa autonomizaccedilatildeo do direito do fortalecimen-to da atividade jurisdicional e da consequente diminuiccedilatildeo da in-fluecircncia dos demais poderes bem como diante da incompletude da lei que por vezes natildeo consegue abranger todas as situaccedilotildees possiacuteveis evidencia-se como defende Streck (2010) a necessidade de se encontrar mecanismos de controle do epicentro da tensatildeo entre jurisdiccedilatildeo e legislaccedilatildeo as decisotildees judiciais Isto eacute com essa au-tonomizaccedilatildeo do Direito adquirida no Estado Constitucional juiacute-zes e tribunais (e mais do que nunca os Tribunais Constitucionais) tecircm encontrado dificuldade em impedir que as suas decisotildees sejam solapadas pela discricionariedadearbitrariedade Quer dizer o que ateacute entatildeo representa(ria) um avanccedilo para o Direito agora tem sido seu principal entrave vez que natildeo tem sido usada de forma a exprimir o ldquoespiacuteritordquo do Constitucionalismo Contemporacircneo mas passa a exprimir interesses outros que natildeo se consubstanciam com a nova ordem vigente

Partindo dessa reflexatildeo pergunta-se como seraacute possiacutevel lidar com a dicotomia ldquoautonomiardquo versus ldquodiscricionariedaderdquo que hoje paira sobre o Direito muitas vezes chancelado pelos in-teacuterpretes da lei E eacute justamente no Processo Penal locus em que se deveria materializar o respeito aos direitos fundamentais que ilogicamente se tem encontrado a expressatildeo maacutexima dessa discri-cionariedade Natildeo raro chegam-se ao conhecimento puacuteblico de-cisotildees teratoloacutegicas que agrave luz da consciecircncia do julgador passam por cima da Constituiccedilatildeo violam direitos e garantias fundamen-tais e anulam a base do que agraves duras penas se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito isto eacute colocando em risco a autonomia do Direito e o pior a supremacia da Constituiccedilatildeo Como bem analisa Lopes Jr (2014 p 1176)

o sistema de garantias da Constituiccedilatildeo eacute o nuacutecleo imantador e legitimador de todas as atividades de-senvolvidas naquilo que concebemos como instru-mentalidade do processo penal eacute dizer um instru-mento a serviccedilo da maacutexima eficaacutecia do sistema de garantias da Constituiccedilatildeo

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Para tanto eacute preciso que se compreenda o Processo Penal agrave luz do sistema de garantias constitucionais a fim de efetivar a finalidade pela qual existem tais garantias limitaccedilatildeo do poder estatal face aos direitos fundamentais do reacuteu Posto isso eacute impossiacutevel negar que com a queda do regime totalitaacuterio e a promulgaccedilatildeo da Cons-tituiccedilatildeo de 1988 surgiu uma nova era constitucional advinda de um regime democraacutetico e que resvala da compreensatildeo dogmaacuteti-co-normativa do direito Todavia aleacutem do ordenamento juriacutedico vigente continuar ainda em sua grande maioria umbilicado com leis fascistas de outrora criando uma verdadeira instabilidade le-gal constitucional os inteacuterpretes do direito tambeacutem continuam os mesmos

A partir dessa problemaacutetica pode-se identificar dois pos-siacuteveis comportamentos igualmente nocivos a essa nova legalida-de constitucional ou os inteacuterpretes continuam aplicando o direito com o pressuposto da loacutegica positivista (primitiva) criando situa-ccedilotildees absurdas e desconexas com a nova ordem constitucional ou ao contraacuterio disso natildeo aceitando aplicar um Direito que natildeo mais coaduna com a nova ordem passam de meros ldquobocas da leirdquo a ldquocriacute-ticos da leirdquo proferindo decisotildees discricionaacuterias contraacuterias agrave Cons-tituiccedilatildeo que em nome de um neoconstitucionalismo natildeo abrem matildeo das raiacutezes solipsistas Como se veraacute a partir de agora o segundo comportamento tem se intensificado na seara processual penal

Teoria do ldquoVale-tudordquo

O instituto das nulidades em Processo Penal eacute um dos terremos mais arenosos no Direito atualmente Seja na juris-prudecircncia ou na doutrina raramente encontram-se opiniotildees con-vergentes sobre o assunto Todavia aleacutem das inuacutemeras discussotildees possiacuteveis que o instituto proporciona o que chama atenccedilatildeo eacute a denominada teoria do prejuiacutezo que atrelada agraves nulidades relativas transformou-se em mais um tumor do Processo Penal que volta e meia fere o sistema de garantias constitucionais

Extraiacuteda da dicccedilatildeo do artigo 563 do Coacutedigo de Processo

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Penal8 a teoria do prejuiacutezo tem finalidade uacuteltima de servir agrave apli-caccedilatildeo da nulidade relativa (que eacute uma classificaccedilatildeo doutrinaria das nulidades no sistema processual penal) O dispositivo explicita o famoso princiacutepio pas de nulliteacute sans grief (natildeo haacute nulidade sem pre-juiacutezo) isto eacute para que determinado ato seja declarado nulo seraacute necessaacuteria a comprovaccedilatildeo do prejuiacutezo pela parte que alega salvo se o ato natildeo viole norma cogente situaccedilatildeo em que o juiz poderaacute reconhececirc-la de ofiacutecio Entretanto nas palavras de Lopes Jr (2014) o ldquoprejuiacutezordquo como distinccedilatildeo entre nulidades relativas e absolutas9 possibilita espaccedilos de manipulaccedilatildeo interpretativa e a aplicaccedilatildeo inadequada das nulidades processuais penais nos casos concretos

O primeiro ponto a ser analisado entatildeo eacute a inapropriada influecircncia do processo civil exercida sobre o processo penal quanto ao tema das nulidades processuais Pois o ldquoprejuiacutezordquo ateacute entatildeo soacute era aplicado nos casos de nulidade relativa e desde que devida-mente comprovada a lesatildeo que o ato causou agravequele que alegou Todavia haacute muito nos tribunais tem-se aceitado o fenocircmeno da relativizaccedilatildeo das nulidades absolutas do processo civil em processo penal exigindo da parte que alega a nulidade absoluta a compro-vaccedilatildeo efetiva do prejuiacutezo o que implica em consequecircncias danosas ao suporte faacutetico dos direitos e garantias do imputado Nota-se portanto uma tendecircncia em evitar a decretaccedilatildeo de nulidade pro-cessual (seja ela relativa ou absoluta) sob o argumento de que a nulificaccedilatildeo natildeo condiz com os objetivos de celeridade e de precau-ccedilatildeo contra dilaccedilotildees processuais indevidas Daiacute se justificaria por exemplo a violaccedilatildeo do devido processo legal ()

8 Art 563 Nenhum ato seraacute declarado nulo se da nulidade natildeo resultar prejuiacutezo para a acusaccedilatildeo ou para a defesa (BRASIL 2016) 9 Considera-se como nulidade relativa o viacutecio que embora grave decorre de violaccedilatildeo de normas de interesse privado (ou normas infraconstitucionais) sem qualquer repercussatildeo constitucional Seu reconhecimento depende de provocaccedilatildeo do interessado com a demonstraccedilatildeo do efetivo ldquoprejuiacutezordquo sujeito a prazo preclusivo podendo se convalidar A nulidade absoluta por sua vez eacute o viacutecio de gra-vidade manifesta pois decorre de violaccedilatildeo de norma cogente ou seja que viola norma de interesse puacuteblico (e de ordem constitucional) e por isso o juiz deve alegaacute-la de ofiacutecio decretando sua inva-lidade A doutrina majoritaacuteria aponta que o prejuiacutezo nesse caso eacute presumido mas o STF e STJ tecircm relativizado as nulidades absolutas as quais nesse entendimento precisam gerar prejuiacutezo agraves partes a fim de que sejam declaradas ineficazes Nesse sentido ver STF ndash Segunda Turma ndash HC 406648 ndash Rel Min Teori Zavascki ndash Dje 26112013 e STJ ndash Quinta Turma ndash RMS 35180 ndash Rel Min Laurita Vaz ndash Dje 05112013

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Trata-se portanto de verdadeira metaacutestase vez que a re-cepccedilatildeo de categorias do processo civil para o processo penal (no caso a relativizaccedilatildeo das nulidades absolutas) como explica Lopes Jr (2014) tem produzido verdadeiro atropelamento de direitos e garantias fundamentais embasado em uma postura utilitarista e sob o manto da manipulaccedilatildeo discursivo-interpretativa Reiterando esse posicionamento Fernandes e Fernandes (2002 p 41) afirmam por outro lado que mais grave que os inconvenientes da decla-raccedilatildeo de nulidade processual ldquoseraacute a condenaccedilatildeo de um acusado com proscriccedilatildeo das garantias fundamentais do contraditoacuterio da ampla defesa da liberdade plena de produccedilatildeo de provardquo

Como consequecircncia dessa lesatildeo inicial (leia-se da inade-quada influecircncia do processo civil em processo penal) as ceacutelulas canceriacutegenas da discricionariedade do inteacuterprete acabaram se dis-seminando por todo o sistema de garantias constitucionais do reacuteu conquistado agraves duras penas frisa-se De mais a mais a pergunta que se faz eacute afinal a serviccedilo de quem estaacute o sistema de garantias constitucionais quanto agraves nulidades processuais penais Nas pala-vras de Binder (2000 p 58)

En los siglos XVIII y XIX a la par del desarrollo del pensamiento liberal (Beccaria Montesquieu Fi-lan-gieri Pagano luego Carrara etc) con los materiales del formalismo propio del sistema inquisitivo co-mienza a gestarse una nueva ingenieriacutea institucio-nal del proceso penal orientada a la contencioacuten de la violencia y la arbitrariedad del poder penal de la cual deriva lo que hoy desde Ferrajoli llamamos sis-tema de garantios

Natildeo se pode perder de vista o que jaacute fora discutido ante-riormente isto eacute que as normas bem como todas as instituiccedilotildees sujeitas ao Estado Constitucional de Direito estatildeo vinculadas a uma nova dogmaacutetica juriacutedico-constitucional que apresenta caracteriacutes-ticas dotadas de especial importacircncia na realizaccedilatildeo normativa dos direitos e garantias da Constituiccedilatildeo Logo natildeo eacute (e natildeo seraacute) pos-siacutevel compreender a teoria do prejuiacutezo e as nulidades em processo

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penal como um todo desvinculadas da compreensatildeo de Constitu-cionalismo Contemporacircneo Nessa linha arremata Binder (2000 p 59)

Formas procesales verdad proceso cognitivo prin-cipios del proceso sistema de garantiacuteas y liacutemites al poder penal son un conjunto de conceptos ligados entre siacute en un nivel de fundamento Quien no se si-tuacutee en el universo conformado por esos conceptos y su relacioacuten mutua difiacutecilmente pueda comprender el reacutegimen de las nulidades en el proceso penal

Nesta senda forma no Estado Constitucional de Direito e mais do que nunca dentro da seara processual penal eacute sinocircnimo de garantia Adequada eacute a afirmaccedilatildeo de Lopes Jr (2014 p 1175) de que o ldquoprocesso penal eacute um instrumento de limitaccedilatildeo do poder punitivo do Estado impondo severos limites desse poder e tam-beacutem regras formais para o seu exerciacutecio Eacute a forma um limite ao poder estatalrdquo e mais ldquoa forma eacute uma garantia para o imputado em situaccedilatildeo similar ao princiacutepio da legalidade do direito penalrdquo Co-mungando com essa visatildeo Streck (2010 p 170) pontua que ldquosalta-mos de um legalismo rasteiro que reduzia o elemento central do direito ora a um conceito estrito de lei [] para uma concepccedilatildeo de legalidade que soacute se constitui sob o manto da constitucionali-daderdquo Deduz-se portanto que todo o sistema de garantias e por consequecircncia de limitaccedilatildeo do puniendi estatal deve estar voltado para o reacuteu No entanto essa natildeo eacute a realidade

Nessa perspectiva e ao contraacuterio do que se imaginava a forma tem evitado que garantias constitucionais sejam colocadas em praacutetica e o pior tudo engendrado justamente por aqueles que deveriam garanti-la o inteacuterprete Diante disso introduz-se aqui o segundo ponto a ser analisado a discricionariedade travestida de le-galidade constitucional mas que na verdade tangencia qualquer noccedilatildeo de constitucionalidade Exemplo claro disso eacute o julgamento do habeas corpus nordm 148723SC em que o Superior Tribunal de Jus-ticcedila (STJ 2010 p 9) denegou a ordem de habeas corpus ao paciente que alegava nulidade absoluta em funccedilatildeo de o processo tramitar

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em segredo de justiccedila sem motivaccedilatildeo violando o princiacutepio consti-tucional da publicidade sob o seguinte fundamento

O simples fato de o feito ter tramitado em sigilo com a impliacutecita concordacircncia da Defesa natildeo gera qual-quer nulidade Poderia se cogitar eventual viacutecio em situaccedilatildeo oposta ou seja se natildeo tivesse sido obser-vado o sigilo determinado pela lei No caso contu-do natildeo haacute qualquer maacutecula processual [] natildeo se demonstrou qualquer prejuiacutezo () em decorrecircncia da providecircncia adotada A magistrada esclareceu que a Defesa teve o devido acesso aos autos e o impetrante natildeo alega o contraacuterio (Grifo nosso)

Percebe-se que sob o fundamento da preclusatildeo () a in-devida tramitaccedilatildeo em segredo de justiccedila da Accedilatildeo Penal in casu violando frontalmente ditame constitucional estampado no art 93 IX da CF88 natildeo constitui ldquoqualquer maacutecula processualrdquo Ora eacute sabido que no caso de nulidade absoluta natildeo haacute falar em conva-lidaccedilatildeo tatildeo pouco em preclusatildeo do ato eis que a invalidade pro-cessual pode ser arguida a qualquer tempo enquanto perdurar o processo penal aleacutem disso para que seja reconhecida a nulidade absoluta natildeo eacute necessaacuteria a provocaccedilatildeo da parte interessada po-dendo ser declarada de ofiacutecio pelo juiz e inclusive ser alegada em sede de revisatildeo criminal ou habeas corpus ainda que formada a coisa julgada

Outra questatildeo que toca o objeto do presente trabalho eacute que natildeo haacute falar em demonstraccedilatildeo de prejuiacutezo em nulidades ab-solutas vez que o prejuiacutezo eacute presumido E mais se se entende que ldquoformardquo eacute garantia uma vez violada a ldquoformardquo eacute obvio que tal atipicidade produza dano Apesar disso verifica-se que no exem-plo operou-se a relativizaccedilatildeo da nulidade absoluta e consequen-temente a aplicaccedilatildeo do princiacutepio pas nilliteacute sans grife mesmo sendo caso de nulidade insanaacutevel (absoluta)

Natildeo precisa ser especialista para notar a influecircncia ainda muito presente nos tribunais do animus inquisitivo Nas palavras de Lopes Jr (2014 p 1) ldquopara reconhecer uma nulidade o juiz

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precisa ser lsquoinvocadorsquo mas para ir atraacutes da prova decretar prisatildeo busca e apreensatildeo etc pode e deve atuar de ofiacutecio Olhem o ab-surdordquo E vai aleacutem o autor ao afirmar que determinado ato soacute seraacute declarado nulo ldquoquando o tribunal quiser para quem ele quiser e com o alcance que ele quiser Essa eacute a verdadeira ditadura judicial vivenciada hojerdquo (Idem) Agrave vista disto lanccedila-se mais uma pergun-ta haveria entatildeo soluccedilatildeo para o problema da discricionariedade quanto agrave aplicaccedilatildeo da teoria do prejuiacutezo em processo penal

Lopes Jr (Ibidem) em sua obra Direito Processual Penal apresenta uma possiacutevel saiacuteda O autor propotildee o que ele denomina de ldquoinversatildeo de sinaisrdquo ou seja natildeo seraacute a parte que alega o prejuiacute-zo que deveraacute demonstraacute-lo mas o proacuteprio juiz que para manter a eficaacutecia do ato deveraacute fundamentaacute-lo demonstrando que o ato alcanccedilou sua finalidade ou foi regularmente sanado Este tambeacutem eacute o posicionamento de Badaroacute (2007) para o qual deveraacute ocorrer uma liberaccedilatildeo da carga probatoacuteria por parte da defesa restando ao juiz tal incumbecircncia Isso se justifica uma vez que a defesa dificil-mente conseguiria demonstrar o prejuiacutezo por exemplo em casos de violaccedilatildeo do princiacutepio da publicidade como no caso em anaacutelise Quer dizer qual foi o prejuiacutezo nesse caso se o paciente teve opor-tunidade de alegar o defeito mas natildeo o fez oportunamente Qual foi o prejuiacutezo se o paciente sequer apontou um Ora o prejuiacutezo eacute nada mais que a violaccedilatildeo de uma norma constitucional Ou em outros casos a inobservacircncia de direitos fundamentais

Frisa-se entretanto que por mais que a medida adotada por Lopes Jr seja um grande passo para evitar a violaccedilatildeo de di-reitos e garantias constitucionais soacute ela natildeo satisfaz Afinal nada impediria que o juiz ou o tribunal continuassem tendo atitudes discricionaacuterias e violadoras bastasse apresentar razotildees que para sua consciecircncia legitimariam a inobservacircncia da Constituiccedilatildeo ou de determinada formalidade prevista no processo penal Mais que isso eacute imperioso um conjunto de accedilotildees o que inclui fundamental-mente que juiacutezes e tribunais tenham a correta compreensatildeo do processo penal natildeo mais como um sistema inquisitoacuterio mas como um sistema inexoravelmente inserido em uma nova ordem juriacutedi-

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co-constitucional na qual a forma eacute a maacutexima expressatildeo de garantiaDentro desse conjunto de accedilotildees por sua vez deve perpas-

sar tambeacutem uma maior importacircncia agrave hermenecircutica juriacutedica natildeo como ldquomais um meacutetodordquo ou como ldquoum saber operacionalrdquo mas como um instrumento a fim de se alcanccedilar interpretaccedilotildees fundi-das com a Constituiccedilatildeo Natildeo se pode mais permitir como aponta Streck (2010 p 162) que ldquolsquoo processoprocedimento interpretati-vorsquo possibilit[e]a que o sujeito [] alcance o sentido que mais lhe conveacutem lsquoo real sentido da regra juriacutedicarsquo etcrdquo Natildeo restam duacutevi-das de que no acircmbito da hermenecircutica juriacutedica haacute uma verdadei-ra banalizaccedilatildeo do processo interpretativo pois natildeo se sabe mais o que se deve seguir se ldquoa vontade da leirdquo ou ldquoa vontade do legisla-dorrdquo10 Quando nenhuma delas ldquoresolverdquo aplica-se a ldquovontade do inteacuterpreterdquo e assim em termos de nulidades em processo penal estaacute montada a torre de Babel Como explica Streck (Idem)

o resultado disso eacute que aquilo que comeccedila com (um)a subjetividade ldquocriadorardquo de sentidos (afinal quem pode controlar a ldquovontade do inteacuterpreterdquo pergun-tariam os juristas) acaba em decisionismos e arbi-trariedades interpretativas isto eacute em um ldquomundo juriacutedicordquo em que cada um interpreta como (melhor) lhe conveacutem Enfim o triunfo do sujeito solipsista o Selbstsuumlchtiger

Este portanto eacute justamente o resultado que natildeo se pode esperar quer dizer a subjetividade a discricionariedadearbitra-riedade o decisionismo Nenhum desses comportamentos har-moniza-se com o Estado Constitucional de Direito e deve ser du-ramente combatido por aqueles que acreditam na supremacia da Constituiccedilatildeo Natildeo se pode mais admitir que garantias fundamen-tais sejam violadas a fim de se satisfazer a consciecircncia do inteacuterpre-

10 Streck (2010 p 162) ensina que ldquoalguns autores colocam na consciecircncia do sujeito-juiz o locus da atribuiccedilatildeo de sentido (solipsista) Nesse contexto lsquofilosofia da consciecircnciarsquo e lsquodiscricionariedade judicialrsquo satildeo faces da mesma moeda Haacute ainda juristas filiados agraves antigas teses formalistas propalando que a interpretaccedilatildeo deve buscar a vontade da lei desconsiderando de quem a fez ndash sic ndash e que a lei lsquoterminadarsquo independe de seu passado importando apenas o que estaacute contido em seus preceitos (o texto teria um sentido lsquoem sirsquo)rdquo

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te e pior que isso que tais ilegalidades sejam chanceladas pelos tribunais

Atualmente o decisionismo no acircmbito do processo penal em especial no que diz respeito agraves nulidades processuais estaacute ri-gorosamente arraigado sendo legitimado pela doutrina diga-se de passagem Eacute preciso como jaacute dito um conjunto de accedilotildees dentre as quais a primordial eacute a compreensatildeo do sistema juriacutedico inevita-velmente inseparaacutevel da Constituiccedilatildeo e da ordem juriacutedica por ela estabelecida Compreendido isso chegar-se-aacute agrave conclusatildeo de que a formalidade de fato natildeo pode ser utilizada como um fim em si mesma assim como natildeo pode ser utilizada ao bel prazer de seus inteacuterpretes

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao fim e ao cabo com a construccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo o Direito deve se apresentar justaposto agrave nova dogmaacutetica juriacutedica implantada pelo Estado Constitucional de Di-reito mas natildeo soacute ele Tal exigecircncia deve-se estender peremptoria-mente aos seus ldquooperadoresrdquo quer dizer juiacutezes e tribunais preci-sam ter uma compreensatildeo cada vez mais consubstanciada com a nova ordem juriacutedica tendo em vista a progressiva autonomizaccedilatildeo do Direito que somada agrave incompreensatildeo dos inteacuterpretes da lei na aplicaccedilatildeo do saber tem provocado avalanches de criacuteticas as quais reprovam toda e qualquer atividade discricionaacuteria das autorida-des judiciaacuterias

A tendecircncia do Judiciaacuterio impulsionada por uma maior li-berdade de conformaccedilatildeo do sistema contramajoritaacuterio dos direitos fundamentais e em muitos casos lastreada por um falacioso dis-curso neoconstitucional por violar garantias constitucionais tem sido totalmente questionaacutevel especialmente quando tais violaccedilotildees ocorrem no acircmbito do Direito Penal e Processual Penal conside-rando seu caraacuteter subsidiaacuterio (ultima ratio) Como analisado ante-riormente evidencia-se que o grande desafio entatildeo eacute construir condiccedilotildees que evitem que a atividade jurisdicional (ou a atividade

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dos juiacutezes) se sobreponha ao proacuteprio Direito agrave proacutepria Constitui-ccedilatildeo afinal natildeo eacute em todos os casos que o Direito seraacute o que os tribunais dizem que ele eacute (e como de fato natildeo tem sido)

Esse descompasso entre a atuaccedilatildeo do judiciaacuterio e os ideais constitucionais tem se tornado nocivo para o processual penal vez que muito facilmente se tem subtraiacutedo direitos do reacuteu em prol da consciecircncia do julgador Isso fica muito claro como jaacute visto quan-do o judiciaacuterio passa a relativizar todas as nulidades no acircmbito do processo penal Sem sombra de duacutevidas tal entendimento que tem sido amplamente recepcionado por juiacutezes e tribunais nasceu em funccedilatildeo de uma equivocada recepccedilatildeo de categorias do processo civil a qual diferencia as nulidades absolutas das relativas a partir na natureza da norma ndash norma de interesse puacuteblico ou de interes-se privado Essa equivocada recepccedilatildeo insiste-se tem provocado a violaccedilatildeo dos direitos do reacuteu Primeiro porque no processo penal a forma deve ser vislumbrada como garantia isto eacute garantia contra a arbitrariedade do poder estatal Natildeo eacute por acaso que no processo inquisitivo a informalidade eacute tatildeo apreciada vez que ali o poder eacute melhor distribuiacutedo natildeo existindo limites definidos para a sua atuaccedilatildeo Essa realidade repete-se agrave exaustatildeo eacute altamente noci-va quando aplicada no processo penal levando-se em conta que a proteccedilatildeo do reacuteu eacute puacuteblica da mesma forma que puacuteblicos satildeo os direitos constitucionais que o tutelam

Diante da necessidade de proteccedilatildeo e defesa dos direitos e garantias fundamentais fazem-se essenciais algumas readequa-ccedilotildees procedimentais quanto agrave aplicaccedilatildeo das nulidades no processo penal Nesse passo a denominada ldquoinversatildeo de sinaisrdquo proposta pelo doutrinador Aury Lopes Jr (2014) apresenta-se uma possibi-lidade vez que defende que o ocircnus na demonstraccedilatildeo do prejuiacutezo natildeo ficaraacute mais com a parte que a alega (e que em muitos casos recai sobre o proacuteprio reacuteu) Tal encargo entretanto seraacute direcio-nado ao proacuteprio juiz que para manter a eficaacutecia do ato deveraacute fundamentaacute-lo demonstrando que o ato alcanccedilou sua finalidade ou foi regularmente sanado Por outro lado como apontado por mais que a medida adotada por Lopes Jr seja de grade valia para

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o sistema de garantias constitucionais ela por si soacute natildeo eacute sufi-ciente Em conjunto com essa proposta torna-se fundamental uma tomada de consciecircncia por parte do inteacuterprete quanto agrave relaccedilatildeo entre o sistema de nulidade processual penal e as garantias previs-tas na Constituiccedilatildeo Eacute preciso compreender que tais garantias (no caso as nulidades processuais) foram elaboradas a favor daquele sobre o qual recai o poder do Estado o imputado Seguindo esse raciociacutenio o inteacuterprete natildeo pode sacrificar regras e princiacutepios esta-belecidos constitucionalmente a fim de dar lugar as suas proacuteprias convicccedilotildees aos seus proacuteprios interesses

Nota-se enfim a importacircncia da hermenecircutica juriacutedica no processo de compreensatildeo do Direito como um todo o qual pro-duziraacute reflexos quando da sua aplicaccedilatildeo A superaccedilatildeo da crise de efetividade da Constituiccedilatildeo no acircmbito do Judiciaacuterio (e que haacute mui-to assola o Poder Legislativo e Executivo) em especial quanto ao tema das nulidades no processo penal estaacute inteiramente imbrica-da na retomada de uma legalidade que soacute se fundamenta por meio da constitucionalidade do respeito agrave Constituiccedilatildeo Legalidade esta que natildeo se confunde com o retorno a pensamentos positivistas mas de uma legalidade atraveacutes da qual obedecer agrave Constituiccedilatildeo simboliza um progresso consideraacutevel na defesa de direitos funda-mentais conferidos ao cidadatildeo em especial ao reacuteu

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CAacuteCERES E O DEacuteFICIT DE MORADIAS O CASO DA OCUPACcedilAtildeO DO BAIRRO EMPA

Evely Bocardi de Miranda Saldanha1

Richard Rodrigues da Silva2

RESUMO O presente trabalho analisa a ocupaccedilatildeo irregular ocorrida no bairro Jardim das Oliveiras conhecido popularmente como EMPA em CaacuteceresMT bem como verifica a situaccedilatildeo do acesso agrave moradia dos habitantes no que diz respeito agrave referida aacuterea Cabe destacar que em razatildeo do deacuteficit habitacional existente no municiacutepio a populaccedilatildeo de baixa renda se viu obrigada a ocupar irregularmente o local onde vive e sobrevive sem miacutenimas condiccedilotildees de saneamento infraestrutura baacutesica e qualquer planejamento urbano por parte do Poder Puacuteblico O municiacutepio de Caacuteceres atualmente tem uma populaccedilatildeo de 87942 habitantes segundo Censo do IBGE-2010 o qual estimou que em 2016 estaria com uma populaccedilatildeo de 90881 habitantes sendo que 8707 da populaccedilatildeo de Caacuteceres vivem na aacuterea urbana com incidecircncia de pobreza de 3902 (IBGE 2016) O Programa Minha Casa Minha Vida que atende ao municiacutepio foi criado pelo governo federal para fomentar a produccedilatildeo habitacional para populaccedilatildeo de baixa renda concentrando seus recursos nas accedilotildees de urbanizaccedilatildeo e desenvolvimento de assentamentos precaacuterios como mecanismo de reduccedilatildeo das desigualdades socioespaciais contudo natildeo consegue suprir a necessidade habitacional do municiacutepio

PALAVRAS-CHAVE Direito agrave moradia Deacuteficit habitacional Caacuteceres EMPA

ABSTRACT The present study analyzes the irregular occupation that occurres in the Jardim das Oliveiras neighborhood popularly

1 Profa Mestra em Direitos Humanos do Departamento de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail evelysaldanhagmailcom2 Acadecircmico do 10ordm Semestre do Curso de Direito de CaacuteceresMT da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT E-mail richardsilva1995hotmailcom

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known as EMPA in Caacuteceres MT as well as verify the situation of access to the dwelling of the inhabitants in what pertains to said area Was forced to occupy the place irregularly where it lives and survives without minimum sanitation conditions basic infrastructure and any urban planning by the Public Power The municipality of Caacuteceres currently has a population of 87942 inhabitants according to IBGE-2010 Census which estimated that in 2016 it would have a population of 90881 inhabitants 8707 of the population of Caacuteceres living in the urban area with incidence of poverty of 3902 (IBGE 2016) The My Home My Life Program that serves the municipality was created by the federal government to foster housing production for the low-income population concentrating its resources on urbanization and precarious settlement development as a mechanism to reduce socio-spatial inequalities Cannot meet the housing needs of the municipality

KEYWORDS Right to housing Housing deficit Caacuteceres EMPA

INTRODUCcedilAtildeO

A cidade de CaacuteceresMT assim como a maioria das cida-des brasileiras eacute marcada pela ocupaccedilatildeo espontacircnea ou irregular normalmente pela populaccedilatildeo mais pobre que vive em lugares mais perifeacutericos menos valorizados da cidade e sobrevive sem as miacutenimas condiccedilotildees de infraestrutura e saneamento baacutesico nas aacutereas marginais da cidade sem qualquer planejamento urbano

A proliferaccedilatildeo de processos informais de desenvolvimen-to urbano tem sido uma das principais caracteriacutesticas do processo de urbanizaccedilatildeo no Brasil ldquoAo longo das deacutecadas de crescimen-to urbano mas sobretudo nas uacuteltimas deacutecadas dezenas de mi-lhotildees de brasileiros natildeo tecircm tido acesso ao solo urbano e agrave moradia senatildeo atraveacutes de processos e mecanismos informais ndash e ilegaisrdquo (FERNANDES 2002 p 440)

As principais formas de habitaccedilatildeo produzidas diariamen-te nas cidades brasileiras satildeo loteamentos e conjunto habitacionais irregulares eou clandestinos favelas corticcedilos casa dos fundos ocupaccedilotildees de aacutereas puacuteblicas nas beiras de rios

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O crescimento desordenado das cidades e o processo de favelizaccedilatildeo tecircm avivado grande atenccedilatildeo e discussatildeo acerca dos instrumentos de proteccedilatildeo e defesa do bem-estar dos seus habi-tantes uma vez que a ocupaccedilatildeo desenfreada daacute-se normalmente em aacutereas de risco aacutereas de preservaccedilatildeo ambiental lugares menos valorizados e mais afastados da cidade sem infraestrutura neces-saacuteria como saneamento baacutesico escolas assistecircncia agrave sauacutede trans-porte e lazer para uma vida digna

Normalmente as aacutereas ocupadas irregularmente transfor-maram-se em bairros nos quais predomina a falta de higiene colo-cando os seus moradores sujeitos agraves doenccedilas degradaccedilatildeo social e moradia indigna sem infraestrutura no meio da poeira e da lama

Cabe destacar que a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 traz em seu bojo um marco da ordem urbaniacutestica e prevecirc a poliacutetica de desenvolvimento urbano que ldquotem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantesrdquo (BRASIL on line) conforme dispotildee o seu artigo 182

Em 2001 foi aprovado o Estatuto da Cidade (Lei nordm 102572001) que regulamenta a poliacutetica urbana no Brasil (artigos 182 e 183 da Constituiccedilatildeo Federal) e apresenta-se ldquocomo suporte juriacutedico para a realizaccedilatildeo do planejamento urbano e para a accedilatildeo dos governos municipais traccedilando as diretrizes necessaacuterias para o planejamento e para a conduccedilatildeo do processo de gestatildeo das cida-desrdquo (DIAS 2012 p 43) garantindo qualidade de vida aos habi-tantes e sustentabilidade agrave existecircncia da cidade

O papel do Poder Puacuteblico eacute de grande importacircncia por as-sumir a responsabilidade de criar acesso agrave moradia da populaccedilatildeo de baixa renda e natildeo permitir a criaccedilatildeo de novos loteamentos ir-regulares os quais natildeo tecircm os padrotildees miacutenimos exigidos por lei com a implantaccedilatildeo de serviccedilos baacutesicos e toda infraestrutura como ruas e sistema de drenagem aacutegua encanada serviccedilos de esgoto e coleta de lixo creches e escolas hospitais e etc

Desse modo eacute necessaacuterio que o Poder Puacuteblico elabore poliacuteticas de desenvolvimento urbano que facilitem o acesso agrave mo-

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radia digna e adequada num meio ambiente urbano equilibrado e preservado para as presentes e futuras geraccedilotildees garantindo o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade o bem-estar e a sadia qualidade de vida de seus habitantes

Contudo em que pesem as legislaccedilotildees que garantem o acesso agrave moradia digna em Caacuteceres nos anos 90 ocorreu a ocupa-ccedilatildeo irregular da aacuterea da Empresa Mato-grossense de Pesquisa As-sistecircncia e Extensatildeo Rural - SA (EMPAER-MT)3 instituiacuteda como bairro Jardim das Oliveiras e conhecido popularmente por EMPA pela populaccedilatildeo de baixa renda cacerense que se deu em razatildeo do deacuteficit de moradias existentes no municiacutepio ou seja pela falta de acesso agrave moradia Com a invasatildeo do local houve a construccedilatildeo de moradias precaacuterias pelos ocupantes da aacuterea

Assim o nosso objetivo neste trabalho eacute analisar a ocu-paccedilatildeo irregular ocorrida no bairro Jardim das Oliveiras antigo EMPA no municiacutepio de CaacuteceresMT bem como verificar a situa-ccedilatildeo do direito e acesso agrave moradia dos habitantes

O direito agrave moradia como direitos humanos

O direito agrave moradia eacute um dos nuacutecleos que permite o alcan-ce da dignidade da pessoa humana razatildeo pela qual foi inserido no rol dos direitos humanos desde a proclamaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos em 1948 inaugurando uma nova dimensatildeo de direitos sociais em prol de uma vida digna essenciais ao pleno reconhecimento de sua importacircncia como direito baacutesico e essencial agrave vida humana

Em 1966 foi aprovado o principal documento de proteccedilatildeo aos direitos sociais no acircmbito das Naccedilotildees Unidas o Pacto Interna-cional de Direitos Econocircmicos Sociais e Culturais ldquoquando pela primeira vez o termo moradia surgiurdquo (SOUZA 2013 p 56)

O Pacto Internacional de Direitos Econocircmicos Sociais e

3 Empresa Mato-Grossense de Pesquisa Assistecircncia e Extensatildeo Rural - SA eacute uma socie-dade de economia mista vinculada agrave Secretaria de Agricultura e Assuntos Fundiaacuterios do Estado de Mato Grosso dotada de personalidade juriacutedica de direito privado com patrimocirc-nio proacuteprio e autonomia administrativa e financeira estabelecida em Cuiabaacute-MT

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Culturais de 1966 em seu artigo 11 prevecirc que ldquoos Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um niacutevel de vida adequado para si proacuteprio e para sua famiacutelia inclusive agrave alimentaccedilatildeo vestimenta e moradia adequadas assim como uma melhoria contiacutenua de suas condiccedilotildees de vidardquo (ONU 1966)

Jaacute em 1976 foi realizada em Vancouver no Canadaacute a pri-meira Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Assentamentos Urba-nos que adotou a Declaraccedilatildeo sobre Assentamentos Humanos de Vancouver na qual o olhar sobre a habitaccedilatildeo e a moradia foi feito na perspectiva dos assentamentos humanos (human settlements)

As razotildees que motivaram a realizaccedilatildeo da Conferecircncia es-tatildeo expressas na Declaraccedilatildeo de Vancouver sobre os Assentamen-tos Humanos que apresenta os princiacutepios gerais e propostas para accedilotildees efetivas no sentido de melhorar a qualidade de vida dos in-diviacuteduos nos assentamentos humanos e ainda refere-se agraves peacutessi-mas condiccedilotildees de vida e agraves dificuldades em satisfazer as necessi-dades baacutesicas dos indiviacuteduos como emprego moradia serviccedilos de sauacutede educaccedilatildeo e recreaccedilatildeo e as aspiraccedilotildees condizentes com os princiacutepios da dignidade humana (GOMES 2005)

A Declaraccedilatildeo de Vancouver detalha os assentamentos hu-manos e destaca o problema para melhorar a qualidade de vida dos indiviacuteduos e traz a moradia como elemento indispensaacutevel do programa de accedilatildeo e poliacutetica dos Estados para uma vida digna de seus indiviacuteduos

Merece destaque a Agenda 21 adotada na Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento rea-lizada no Rio de Janeiro em 1992 que em seu capiacutetulo VII item 6 prevecirc o direito de ldquoacesso a uma habitaccedilatildeo sadia e segura eacute es-sencial para o bem-estar econocircmico social psicoloacutegico e fiacutesico da pessoa humana e deve ser parte fundamental das accedilotildees de acircmbito nacional e internacionalrdquo (SAULE JUNIOR 1999 p 82)

Em 1996 um importante instrumento internacional so-bre o direito agrave moradia foi inaugurado e adotado na Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Assentamentos Humanos ndash Habitat II realizada em Istambul a Agenda Habitat ldquoque teve como temas

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globais a Adequada Habitaccedilatildeo para Todos e o Desenvolvimento de Assentamentos Humanos Sustentaacuteveis em um Mundo em Ur-banizaccedilatildeordquo (Idem)

A Agenda Habitat estabelece que o direito agrave moradia com-preenda a habitaccedilatildeo adequada sadia acessiacutevel e disponiacutevel segu-ra protegida com a inclusatildeo de serviccedilos baacutesicos como aacutegua ener-gia saneamento baacutesico coleta de lixo e etc baseada no bem-estar e melhor qualidade de vida para seus habitantes

Assim o direito agrave moradia foi expressamente reconheci-do como um direito humano incluiacutedo no rol dos direitos sociais e que tem por finalidade garantir um niacutevel de vida adequado ao ser humano e sua famiacutelia assim como uma melhoria contiacutenua das condiccedilotildees de vida

O Brasil reconheceu a importacircncia do direito de acesso agrave moradia quando inseriu o direito agrave moradia na Constituiccedilatildeo Fe-deral com a Emenda Constitucional nordm 262000 como direito so-cial fundamental E ainda o Estatuto da Cidade ndash Lei Federal nordm 102572001 ndash que prevecirc o direito agrave moradia como sendo um dos objetivos da poliacutetica urbana

Do mesmo modo no acircmbito do municiacutepio de CaacuteceresMT as diretrizes e os objetivos previstos na Constituiccedilatildeo Federal e no Estatuto da Cidade foram contemplados no Plano Diretor do Municiacutepio ndash Lei Complementar Municipal nordm 902010 que em seu art 81 inciso VI garante ldquoo acesso agrave moradia digna com a amplia-ccedilatildeo da oferta de habitaccedilatildeo para as faixas de renda meacutedia e baixardquo (CAacuteCERES Lei complementar nordm 90 2010)

No entanto diante da realidade brasileira e cacerense haacute um descompasso uma vez que eacute assegurado o direito agrave moradia como sendo indispensaacutevel agrave vida humana poreacutem a populaccedilatildeo estaacute longe de gozaacute-lo e de ter acesso agrave moradia digna o que vere-mos a seguir

O deacuteficit de moradias e a realidade cacerense

O Brasil enfrenta um dos seus maiores problemas sociais

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o deacuteficit habitacional que hoje estaacute estimado em 6 milhotildees de mo-radias (CBIC 2014) Caacuteceres assim como os demais municiacutepios brasileiros tambeacutem enfrenta seacuterios problemas na aacuterea de habita-ccedilatildeo Em 2011 havia um deacuteficit habitacional em Caacuteceres que chega-va a 8 mil casas (CAacuteCERES 2014)

O municiacutepio de Caacuteceres atualmente tem uma populaccedilatildeo de 87942 habitantes segundo Censo do IBGE-2010 o qual esti-mou que em 2016 estaria com uma populaccedilatildeo de 90881 habitantes sendo que 8707 da populaccedilatildeo de Caacuteceres vivem na aacuterea urbana com incidecircncia de pobreza de 3902 (IBGE estimativa de popu-laccedilatildeo 2016)

O Programa Minha Casa Minha Vida do governo federal instituiacutedo haacute aproximadamente 7 anos tem ofertado aos habitan-tes cacerenses com renda ateacute R$ 160000 o acesso agrave moradia no entanto essa oferta natildeo tem sido suficiente para suprir o deacuteficit habitacional no municiacutepio e segundo o secretaacuterio de Accedilatildeo Social Claudio Henrique Donatoni em 2016 ldquoCaacuteceres ainda possui um deacuteficit habitacional para famiacutelias de baixa renda de aproximada-mente 7 mil moradiasrdquo (TEIXEIRA 2016)

A poliacutetica habitacional no Brasil enfrenta seacuterios proble-mas desde a extinccedilatildeo do Banco Nacional de Habitaccedilatildeo (BNH) em 1986 em razatildeo da descontinuidade do enfrentamento do deacuteficit de moradia pela perda de capacidade de formulaccedilatildeo de poliacuteticas em niacutevel federal e do encolhimento de recursos destinados agraves poliacuteti-cas urbanas A partir de 1988 com a redemocratizaccedilatildeo promovida pela Constituiccedilatildeo Federal o setor habitacional passou a depender da iniciativa municipal (CARDOSO et al 2011)

Segundo Cardoso et al (Idem) ldquoentre 1986 e 2003 a poliacute-tica habitacional em niacutevel federal mostrou fragilidade institucional e descontinuidade administrativa com reduzido grau de planeja-mento e baixa integraccedilatildeo agraves outras poliacuteticas urbanasrdquo

Em Caacuteceres entre os anos 1986 e 2003 natildeo se tem notiacutecias de programas habitacionais com ofertas de moradia agrave populaccedilatildeo de baixa renda tanto que na deacutecada de 90 ocorreram a invasatildeo e a ocupaccedilatildeo da aacuterea da Empresa Mato-grossense de Pesquisa Assis-

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tecircncia e Extensatildeo Rural - SA - EMPAER-MTO bairro Jardim das Oliveiras conhecido popularmente

como EMPA estaacute localizado agrave margem esquerda do Rio Paraguai e nasceu a partir de uma ocupaccedilatildeo irregular em terras doadas pelo Municiacutepio de Caacuteceres-MT agrave Empresa Mato-grossense de Pesquisa Assistecircncia e Extensatildeo Rural - SA - EMPAER-MT mediante escri-tura puacuteblica de doaccedilatildeo de uma aacuterea de 1301873 ha sob matriacutecula nordm 42654 do 1ordm Ofiacutecio - Serviccedilos Notariais e Registrais da Comarca de CaacuteceresMT Todavia apoacutes alguns anos de funcionamento a empresa deixou de realizar suas pesquisas abandonando o local e as instalaccedilotildees o que favoreceu a invasatildeo da aacuterea em razatildeo da falta de oferta de acesso agrave moradia no municiacutepio O bairro EMPA estaacute localizado na periferia do municiacutepio de Caacuteceres e a sua ocupaccedilatildeo inicial foi realizada pela populaccedilatildeo de baixa renda por se tratar de aacuterea abandonada por empresa do Estado situada longe da centra-lidade da cidade

Cabe destacar que somente a partir de 2003 no Brasil ini-ciou ldquoum movimento mais sistemaacutetico para a construccedilatildeo de uma poliacutetica habitacional mais estaacutevelrdquo (CARDOSO et al 2011) Foi criada a Secretaria Nacional de Habitaccedilatildeo no acircmbito do Minis-teacuterio das Cidades com o objetivo de dar sequecircncia ao projeto de moradia com o propoacutesito de reforccedilar o papel estrateacutegico das admi-nistraccedilotildees locais (municipais) articular institucional e financeira-mente com outros niacuteveis de governo a partir do Sistema Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social (Ibidem)

Para se integrar ao novo Sistema Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social os estados e municiacutepios deveriam ldquoaderir agrave es-trutura de criaccedilatildeo de fundos conselhos e planos locais de Habita-ccedilatildeo de Interesse Social (HIS) de forma a garantir sustentabilidade racionalidade e sobretudo a participaccedilatildeo democraacutetica na defini-ccedilatildeo e implementaccedilatildeo dos programas e projetosrdquo (CARDOSO et al 2011 p 2) E a partir da criaccedilatildeo do Fundo Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social ndash FNHIS a possibilidade de repasse de recursos aos municiacutepios e estados para implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo das po-liacuteticas habitacionais

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Segundo Cardoso et al (2011 p 2) ldquoentre 2006 e 2009 fo-ram alocados no FNHIS recursos da ordem de 44 bilhotildees de reais beneficiando mais de 4400 projetosrdquo para investimento habitacio-nal No ano de 2007 foi lanccedilado pelo governo federal o Plano de Aceleraccedilatildeo do Crescimento - PAC com o objetivo de promover o crescimento econocircmico e investimentos em infraestrutura no qual houve previsatildeo de investimentos em habitaccedilatildeo e saneamento ur-bano

No ano de 2008 mesmo com a crise mundial o governo brasileiro sustentou os investimentos puacuteblicos na aacuterea de infraes-trutura com destaque na aacuterea de habitaccedilatildeo em razatildeo do PAC E em marccedilo de 2009 anunciou o Programa Minha Casa Minha Vida com o objetivo de ampliaccedilatildeo do mercado habitacional para aten-dimento familiar com renda de ateacute 10 salaacuterios miacutenimos no qual estabeleceu um patamar de subsiacutedio direto e proporcional agrave renda das famiacutelias (CARDOSO et al 2011)

Assim o Programa Minha Casa Minha Vida foi criado para fomentar a produccedilatildeo habitacional no Brasil para populaccedilatildeo de baixa renda com auxiacutelio e participaccedilatildeo do setor privado con-centrando seus recursos nas accedilotildees de urbanizaccedilatildeo e desenvolvi-mento de assentamentos precaacuterios por orientaccedilatildeo do Ministeacuterio das Cidades como mecanismo de reduccedilatildeo das desigualdades so-cioespaciais

Em Caacuteceres a partir de 2009 iniciou-se uma poliacutetica habi-tacional com oferta de moradia agrave populaccedilatildeo de baixa renda com a implementaccedilatildeo do Programa Minha Casa Minha Vida no entanto a demanda por moradia estaacute longe de ser suprida uma vez que ainda haacute um deacuteficit habitacional de 7 mil moradias (TEIXEIRA 2016)

Vale ressaltar que a moradia compreendida aleacutem de mero teto deve ser digna e abarcar a integraccedilatildeo com a cidade em seu en-torno com disponibilidade de infraestrutura urbana e acesso aos serviccedilos puacuteblicos como oportunidades de emprego profissionali-zaccedilatildeoeducaccedilatildeo seguranccedila transporte acesso agrave justiccedila a existecircn-cia de aacutereas de lazer e outros que se caracterizam como inclusatildeo

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ao direito agrave cidade e ao exerciacutecio de cidadaniaA partir do estudo realizado observou-se que no Bairro

EMPA natildeo uma haacute integraccedilatildeo do bairro com a cidade os mora-dores satildeo privados de diversos serviccedilos puacuteblicos e infraestrutura baacutesica como coleta de lixo aacutegua tratada ldquono bairro existe apenas uma escola municipal que fornece o ensino fundamental sendo assim apoacutes terminar o ensino fundamental o estudante tem que procurar outra escola que fica distante para terminar o ensino meacute-diordquo (COSTA et al 2014) e natildeo houve uma preocupaccedilatildeo do Poder Puacuteblico em realizar a regularizaccedilatildeo fundiaacuteria da aacuterea

Segundo Coy et al (1994 p 91) em Caacuteceres nos depara-mos com

Um desenvolvimento completamente desordenado no contexto urbano causado pelo processo migratoacute-rio e pela expulsatildeo do homem do campo para a ci-dade E assim grandes aacutereas urbanizadas surgiram de invasotildees e de grilagem e mais de 50 dos lotes urbanos particulares em Caacuteceres natildeo tem documen-tos nenhum tiacutetulo somente posse

De acordo com Dan (2010 p 94) ldquoa urbanizaccedilatildeo reflete determinadas relaccedilotildees sociais assim como as contradiccedilotildees da eco-nomia de mercado e tambeacutem as desigualdades sociais marcadas pela estratificaccedilatildeo e pela produccedilatildeo setorizada do espaccedilo urbanordquo

Verifica-se que o espaccedilo urbano cacerense eacute fragmentado e explorado com contradiccedilotildees entre abundacircncia e escassez ricos e pobres centralidade e periferia havendo portanto uma enorme desigualdade social e falta de acesso agrave moradia digna

Para Santin e Mattia (2007 p 2)

A ocupaccedilatildeo veloz e desordenada das cidades gerou entre outros problemas como a deterioraccedilatildeo do am-biente urbano desorganizaccedilatildeo social falta de habi-taccedilatildeo desemprego loteamentos clandestinos sem saneamento baacutesico muitos em aacutereas de preservaccedilatildeo ambiental construccedilotildees em desacordo com as nor-mas municipais atividades comerciais invadindo

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aacutereas residenciais sem respeito agraves regras de zonea-mento traacutefego intenso falta de ruas pavimentadas inviabilizando o acesso da poliacutecia de ambulacircncias da coleta de lixo ausecircncia de iluminaccedilatildeo puacuteblica Enfim uma cadeia de problemas que se constituem em consequecircncia da urbanizaccedilatildeo desordenada

Deste modo eacute necessaacuterio que o Poder Puacuteblico crie poliacuteti-cas puacuteblicas que estabeleccedilam nos dizeres de Milton Santos (2007 p 41) ldquoos alicerces de um espaccedilo verdadeiramente humano de um espaccedilo que possa unir os homens para e por seu trabalho mas natildeo para em seguida dividi-los em classes em exploradores e ex-ploradosrdquo

Emergem assim a necessidade de integraccedilatildeo e a conver-gecircncia das poliacuteticas puacuteblicas e planejamento urbano a partir de atividades e responsabilidades sociais voltadas agrave moradia e agrave cons-truccedilatildeo da qualidade de vida urbana nas periferias como eacute o caso do EMPA para a promoccedilatildeo da sustentabilidade do espaccedilo urbano e na construccedilatildeo de uma cidade mais justa

CONCLUSAtildeO

O Poder Puacuteblico deve buscar a implementaccedilatildeo das dimen-sotildees fundamentais propostas pelo Estatuto da Cidade para a con-solidaccedilatildeo da ordem constitucional de desenvolvimento urbano na elaboraccedilatildeo de uma poliacutetica urbana que ordene e discipline a ocu-paccedilatildeo do espaccedilo a partir de uma gestatildeo democraacutetica e de acesso agrave moradia contribuindo para a qualidade de vida dos habitantes da cidade

Eacute preciso investimento puacuteblico no acesso agrave moradia digna na regularizaccedilatildeo fundiaacuteria urbana na infraestrutura entre outros para evitar as mazelas sociais e conflitos relacionados ao planeja-mento gestatildeo propriedade apropriaccedilatildeo e uso do solo nas aacutereas urbanas como ocorreu no caso do bairro EMPA

Deste modo o desafio maior para a soluccedilatildeo dos problemas urbanos enfrentados em Caacuteceres natildeo se refere somente agrave legisla-

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ccedilatildeo mas agrave formulaccedilatildeo de estrateacutegias e elaboraccedilatildeo de poliacuteticas puacute-blicas mais eficazes que garantam o acesso de todos ao mercado habitacional constituindo planos e programas habitacionais que atendam agrave populaccedilatildeo de baixa renda que natildeo tem acesso agrave mora-dia e vive em condiccedilotildees precaacuterias de habitabilidade

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PROVA NO HOMICIacuteDIO SEM CADAacuteVER

Gabrielle Vidrago de Souza Machado1

Solange Teresinha Carvalho Pissolato2

RESUMO Este estudo objetiva demonstrar a possibilidade do pronunciamento e condenaccedilatildeo do agente pela praacutetica do crime de homiciacutedio sua materialidade e quais provas poderatildeo ser utilizadas no decorrer do processo mesmo tendo a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo real do fato e abordar a importacircncia das provas no decorrer do processo penal pois satildeo elas que levaratildeo agrave descoberta da verdade real Foi realizada pesquisa bibliograacutefica leitura da legislaccedilatildeo de doutrinas artigos e jurisprudecircncias Destacou-se ainda o estudo de dois julgados de crime de homiciacutedio sem que o cadaacutever fosse encontrado O que estaacute em questatildeo eacute o modo de provar que o crime realmente aconteceu pois quando natildeo haacute o corpo da viacutetima que no caso do homiciacutedio eacute a materialidade do crime impossibilitando a realizaccedilatildeo do exame de corpo de delito direto surge entatildeo a possibilidade da utilizaccedilatildeo de outros meios de prova ou seja a realizaccedilatildeo do exame de corpo de delito indireto que eacute obtido atraveacutes de testemunhas somadas aos vestiacutegios deixados pelo crime Conclui-se que a inexistecircncia do cadaacutever natildeo poderaacute deixar o reacuteu impune podendo ele ser denunciado pronunciado e posteriormente condenado pela praacutetica do crime

PALAVRAS-CHAVE Provas Crime material Exame de corpo de delito

ABSTRACT This study aimes to demonstrate the possibility of pronouncing and condemning the perpetrator for the homicide crime its materiality and which evidence may be used during the process even though the absence of the corpse for actual evidence of the fact and addresse the importance of evidence during the course of criminal proceedings since they are the ones that will lead

1 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Diamantino-MT2 Professora Mestranda do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Diamantino-MT

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to the discovery of the real truth A bibliographical research was carried out the reading of doctrines articles and jurisprudence It was also highlighted the study of two felony murder trials without the corpse being found What is at issue is the way of proving that the crime really happened because when there is not the body of the victim that in the case of the murder is the materiality of the crime making it impossible to carry out the examination of a direct crime body then the possibility of The use of other means of proof that is the conduct of the examination of an indirect offense that is obtained through witnesses added to the traces left by the crime It is concluded that the non-existence of the corpse cannot leave the defendant unpunished being able to be denounced pronounced and later condemned by the practice of the crime

KEYWORDS Evidence Crime material Examination of corps of crime

INTRODUCcedilAtildeO

A preocupaccedilatildeo deste trabalho centrou-se na possibilidade de deixar algueacutem impune de responsabilizaccedilatildeo no crime de homi-ciacutedio diante da ausecircncia do corpo da viacutetima para comprovar a ma-terialidade do crime Nesse cenaacuterio surgem as chamadas provas do crime A prova material do homiciacutedio se mostra relevante para que haja a condenaccedilatildeo do agente e ainda para comprovaccedilatildeo do de-lito Quando nos referimos ao crime de homiciacutedio haacute uma grande repercussatildeo na sociedade visto que eacute o delito que desperta maior interesse na populaccedilatildeo pois se trata do bem mais precioso que o homem possui a vida

As discussotildees surgem devido agrave ausecircncia do cadaacutever pois o crime de homiciacutedio se consubstancia no exame de corpo de delito direto e por consequecircncia no respectivo laudo que o atesta

O presente artigo tem por escopo analisar com breves consideraccedilotildees tal situaccedilatildeo visto que de um lado temos os prin-ciacutepios do Estado Democraacutetico de Direito que satildeo abalados diante da incerteza de uma condenaccedilatildeo por outro lado surge o receio de

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deixar impune o agente que comete um crime tatildeo grave No caso em questatildeo questiona-se se eacute possiacutevel juridicamente processar o reacuteu sem o cadaacutever pois o delito qual seja o homiciacutedio exige dois aspectos para a denuacutencia indiacutecio de autoria e a materialidade A materialidade seria no caso o cadaacutever mas eis que surge a duacutevida como condenar algueacutem por homiciacutedio sem o corpo da viacutetima A pergunta que se faz eacute seria possiacutevel ficar um acusado impune pela inexistecircncia de cadaacutever em um crime de homiciacutedio

Importante destacar que muitas pessoas leigas na aacuterea juriacutedica natildeo concordam com o fato de um cidadatildeo ser condena-do por um crime em que natildeo haacute prova concreta da sua existecircncia Poreacutem a importacircncia do presente estudo eacute justamente demons-trar que se natildeo houvesse a possibilidade de condenaccedilatildeo em nosso ordenamento juriacutedico em muito facilitaria para o agente planejar e praticar o delito de forma que o corpo natildeo aparecesse para com-provaccedilatildeo do crime Contudo a robustez das provas pode levar o culpado agrave condenaccedilatildeo

O estudo teve como aporte a realizaccedilatildeo de uma pesquisa bibliograacutefica leitura de doutrinas artigos e jurisprudecircncias Des-tacou-se ainda o estudo de dois julgados brasileiros de crime de homiciacutedio sem que o cadaacutever fosse encontrado objetivando assim descrever a importacircncia das provas no decorrer do processo penal pois satildeo elas os meios de se descobrir a verdade real do crime O que eacute relevante destacar eacute o modo de provar que o crime realmente ocorreu independentemente da existecircncia do cadaacutever oportuni-zando assim a condenaccedilatildeo do agente delituoso

DA PROVA NO PROCESSO PENAL

Conceito

Processualmente falando a prova eacute o meio eficaz para se chegar agrave verdade sendo tambeacutem a forma de o juiz formar sua con-vicccedilatildeo a respeito da existecircncia ou inexistecircncia de um fato para que se possa assim decidir e prolatar a sentenccedila mais justa possiacutevel

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Nucci (2007 p 335) menciona sobre o tema

O termo prova origina-se do latim ndash probatio ndash que significa ensaio verificaccedilatildeo inspeccedilatildeo exame argu-mento razatildeo aprovaccedilatildeo ou confirmaccedilatildeo Dele deri-va o verbo provar ndash probare ndash significando ensaiar verificar examinar reconhecer por experiecircncia aprovar estar satisfeito com algo persuadir algueacutem a alguma coisa ou demonstrar

Assim o termo ldquoprovardquo trata de todos os elementos capa-zes de demonstrar a existecircncia ou natildeo de determinado fato Ressal-ta-se ainda seu valor por ser o meio de formaccedilatildeo da convicccedilatildeo do juiz que iraacute utilizar todas as provas encontradas como base para fundamentaccedilatildeo da sentenccedila Em consonacircncia com a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 todas as decisotildees judiciais devem ser fundamen-tadas conforme a disposiccedilatildeo do artigo 93 inciso IX

Objeto da prova

A finalidade da prova no direito processual como jaacute ex-posto acima eacute a formaccedilatildeo da convicccedilatildeo do juiz Conceitua-se como objeto da prova todos os fatos acontecimentos que devem ser re-velados no processo a fim de que o juiz possa utilizaacute-los como ins-trumento de autenticidade para resolver o litiacutegio e atribuir valor a cada fato

Ocircnus da prova

A regra do Coacutedigo de Processo Penal (CPP) eacute a de que o ocircnus da prova incumbe a quem o alega O Art 156 desse Coacutedigo assim dispotildee ldquoA prova da alegaccedilatildeo incumbiraacute a quem a fizer mas o Juiz poderaacute no curso da instruccedilatildeo ou antes de proferir sentenccedila determinar de ofiacutecio diligecircncias para dirimir duacutevidas sobre o pon-to relevanterdquo

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Sujeitos da prova

No que se refere ao sujeito a prova poderaacute ser real (coisa) ou pessoal Diz que se refere ao pessoal quando a prova resultar da vontade racional do indiviacuteduo Nesse caso necessitaraacute de uma declaraccedilatildeo da pessoa com o propoacutesito de estampar a verdadeira realidade dos fatos A prova real equivale agrave atestaccedilatildeo que adveacutem da proacutepria coisa constitutiva da prova como ferimento o projeacutetil baliacutestico (LIMA 2013)

Do valor da prova

No tocante aos efeitos e valor da prova esta poderaacute ser plena (quando se tratar daquelas provas sem sombra de duacutevida que o magistrado ao deparar com tais provas teraacute certeza de sua veracidade) ou natildeo plena e tambeacutem chamada de indiciaacuteria (quan-do o juiz ao apreciaacute-las verifica que tem a possibilidade de ser uma prova veriacutedica mas natildeo haacute uma certeza) Para Taacutevora (2013 p 348) ldquoeacute o grau de certeza gerado pela apreciaccedilatildeo da provardquo

a) Plena - Prova convincente e verossiacutemilb) Indiciaacuteria ou natildeo plena ndash Natildeo haacute certeza sobre o fato e

satildeo tratadas como indiacutecios Podemos ver que haacute uma ligaccedilatildeo desses efeitos da prova

com os dois princiacutepios o princiacutepio do in dubio pro reo e o in duacutebio pro societate

Quando por meio de uma prova o juiz natildeo conseguir ob-ter um juiacutezo real sobre o fato ser veriacutedico ou natildeo prevalecendo a incerteza ele deveraacute absolver o reacuteu e nesse caso surge o princiacutepio do in duacutebio pro reo Todavia se o juiz ao averiguar as provas tiver um juiacutezo de esperanccedila e a hipoacutetese dela ser veriacutedica ele poderaacute usar o princiacutepio do in duacutebio pro societate podendo por exemplo decretar a prisatildeo preventiva de algueacutem para proteger os interesses da sociedade em razatildeo da hipoacutetese de o fato ser verdadeiro

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Sistema de valoraccedilatildeo das provas

A apreciaccedilatildeo das provas foi evoluindo conforme o costu-me e o regime poliacutetico de cada povo Importante salientar que esse sistema se formou e se amoldou conforme os anos (DINAMAR-CO 2001)

Nucci (2015 p 345) esclarece sobre os trecircs sistemasa) livre convicccedilatildeo que eacute o meacutetodo concernente agrave va-loraccedilatildeo livre ou agrave intima convicccedilatildeo do magistrado natildeo haacute necessidade de motivaccedilatildeo para as decisotildees sistema adotado no Tribunal do Juacuteri b) prova legal cujo meacutetodo eacute ligado agrave valoraccedilatildeo taxada ou tarifa-da da prova c) persuasatildeo racional que eacute o meacutetodo misto tambeacutem chamado de convencimento racional livre motivado apreciaccedilatildeo fundamentada ou prova fundamentada

Trata-se do sistema adotado majoritariamente pelo pro-cesso penal brasileiro com fundamento na Constituiccedilatildeo Federal (art 93 inciso IX)

Princiacutepios que norteiam a prova

Dispotildee Nucci (2007 p76) nesse sentido ldquoPrinciacutepio juriacute-dico quer dizer um postulado que se irradia por todo o sistema de normas fornecendo um padratildeo de interpretaccedilatildeo integraccedilatildeo conhecimento e aplicaccedilatildeo do direito positivo estabelecendo uma meta maior a seguirrdquo Dentre os princiacutepios estatildeo Iniciativa das Partes Contraditoacuterio e Ampla Defesa Juiz Natural Verdade Real Publicidade Presunccedilatildeo de Inocecircncia Duplo Grau de Jurisdiccedilatildeo

Lima (2013) faz menccedilatildeo ao princiacutepio da proporcionalida-de da comunhatildeo da prova da autorresponsabilidade das partes da oralidade e liberdade probatoacuteria

OS MEIOS DE PROVA

Os meios de prova satildeo todas as provas que podem ser em-

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pregadas dentro do processo excetuando-se as natildeo permitidas por lei Logo a prova iliacutecita natildeo pode ingressar nos autos do processo A sanccedilatildeo prevista na Constituiccedilatildeo para a prova reconhecida iliacutecita eacute a sua inadmissibilidade devendo ser desentranhada dos autos (LIMA 2013)

Taacutevora (2013 p 349) descreve que ldquoOs meios de prova satildeo os recursos de percepccedilatildeo da realidade e formaccedilatildeo do convenci-mento Eacute tudo aquilo que pode ser utilizado direta ou indireta-mente para demonstrar o que se alega no processordquo

As provas que evidenciam o fato arrolado no Coacutedigo de Processo Penal natildeo satildeo taxativas e sim exemplificativas se fossem taxativas poderiam conter o culpado de trazer ao processo con-cretas provas que teriam um valor relevante em seu julgamento ademais poderia prejudicar justamente os princiacutepios da verdade real o princiacutepio do contraditoacuterio ampla defesa e o princiacutepio da liberdade das provas

Deste modo esclarece Mirabete (2006 p 252)

Como no processo penal brasileiro vige o princiacutepio da verdade real natildeo haacute limitaccedilatildeo dos meios de pro-va A busca da verdade material ou real que preside a atividade probatoacuteria do juiz exige que os requi-sitos da prova em sentido objetivo se reduzam ao miacutenimo de modo que as partes possam utilizar-se dos meios de prova com ampla liberdade Visando o processo penal o interesse puacuteblico ou social de re-pressatildeo ao crime qualquer limitaccedilatildeo agrave prova preju-dica a obtenccedilatildeo da verdade real e portanto a justa aplicaccedilatildeo da lei

Costuma-se relatar que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto aos meios de prova quando se pretende alcanccedilar a verdade real visto que a investigaccedilatildeo tem a necessidade de ser a mais vasta possiacutevel visan-do como propoacutesito principal conseguir a veracidade do fato da autoria e das circunstacircncias do crime Contudo a liberdade proba-toacuteria natildeo eacute absoluta uma vez que vamos nos deparar com restri-ccedilotildees prescritas pela lei para determinados casos

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Para que ocorra a condenaccedilatildeo eacute necessaacuterio ter a certeza quanto agrave materialidade do crime e sua autoria Desta forma o ma-gistrado busca saber o que realmente ocorreu de que forma ocor-reu quem incorreu para a infraccedilatildeo e todas as suas circunstacircncias Vigora assim no processo penal o princiacutepio da verdade real

Defende Tourinho Filho (2011 p 62)

Melhor seria falar de ldquoverdade processualrdquo ou ldquover-dade forenserdquo ateacute porque por mais que o Juiz pro-cure fazer a reconstruccedilatildeo histoacuterica do fato objeto do processo muitas e muitas vezes o material de que ele se vale poderaacute conduzi-lo a uma ldquofalsa verdade realrdquo

Em suma o ldquoprinciacutepio da verdade real significa pois que o magistrado deve buscar provas tanto quanto as partes natildeo se contentando com o que lhe eacute apresentado simplesmenterdquo (NUC-CI 2008 p 105)

Espeacutecies de provas liacutecitas

Possuiacutemos em nosso ordenamento juriacutedico as provas que natildeo contrariam o que a lei estabelece e nem mesmo os bons cos-tumes Abaixo veremos as provas que poderatildeo ser produzidas e posteriormente aceitas

Da declaraccedilatildeo do ofendido

Ofendido eacute o sujeito passivo do crime o titular do direito ofendido Somente participaraacute e teraacute o direito de depor no proces-so penal se for pessoa fiacutesica

O artigo 201 do Coacutedigo de Processo Penal preceitua ldquoSem-pre que possiacutevel o ofendido seraacute qualificado e perguntado sobre as circunstacircncias da infraccedilatildeo quem seja ou presuma ser o seu au-tor as provas que possa indicar tomando-se por termo as suas declaraccedilotildeesrdquo

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Das testemunhas

A prova testemunhal tem sua previsatildeo expressa no artigo 202 do Coacutedigo de Processo Penal

Segundo o ilustre doutrinador Norberto Avena (2011 p 319) ldquo[] Pode testemunhar em juiacutezo qualquer indiviacuteduo que tenha condiccedilotildees de perceber os acontecimentos ao seu redor e narrar o resultado destas suas percepccedilotildees independente de sua integridade mental idade e condiccedilotildees fiacutesicasrdquo

Como regra contida no artigo 342 do CP e 206 do CPP as pessoas tecircm o dever de testemunhar Quando a testemunha for intimada e natildeo comparecer sem motivo justificaacutevel o artigo 218 do CPP autoriza a sua conduccedilatildeo de forma coercitiva conforme deter-minaccedilatildeo do juiz e se sujeita a um processo-crime por desobediecircn-cia

O Artigo 206 do aludido Coacutedigo de Processo Penal precei-tua as pessoas que estatildeo dispensadas de depor tais como os pa-rentes mais proacuteximos como ascendente ou descendente o afim em linha reta o cocircnjuge ainda que desquitado o irmatildeo e o pai a matildee ou o filho adotivo do acusado natildeo satildeo obrigados a depor mas se natildeo for possiacutevel solucionar o crime por outro meio de prova eles poderatildeo prestar depoimento contudo seratildeo ouvidos como meros informantes do juiacutezo ou declarantes sendo ainda dispensados de prestar compromisso da verdade real dos fatos

Jaacute o art 207 do CPP nos remete agraves pessoas que satildeo proi-bidas de depor se refere agraves pessoas que devem guardar sigilo em razatildeo de funccedilatildeo ministeacuterio oficio ou profissatildeo assim dispotildee ldquoSatildeo proibidas de depor as pessoas que em razatildeo de funccedilatildeo ministeacuterio ofiacutecio ou profissatildeo devam guardar segredo salvo se desobrigadas pela parte interessada quiserem dar o seu testemunhordquo

Periacutecia

A Prova Pericial estaacute prevista nos artigos 158 a 184 do Coacute-digo de Processo Penal Compreende-se por periacutecia o exame con-duzido por pessoa que possua certos entendimentos teacutecnicos cien-

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tiacuteficos artiacutesticos ou praacuteticos sobre ocorrecircncias eventualidades ou condiccedilotildees pessoais ligados ao fato condenaacutevel com o propoacutesito de provaacute-los

Na hipoacutetese do exame do corpo de delito assim como em outras periacutecias a lei prevecirc no artigo 159 do Coacutedigo de Processo Penal que as regras satildeo as mesmas e deveratildeo ser realizadas por um perito oficial ldquoexame de corpo de delito e outras periacutecias seratildeo realizados por perito oficial portador de diploma de curso supe-riorrdquo

Exame de corpo de delito

No Sistema Juriacutedico Brasileiro possuiacutemos duas espeacutecies de crimes aqueles que deixam vestiacutegios tambeacutem chamados de fa-tos permanentes e os delitos que natildeo deixam vestiacutegios chamados de fatos transeuntes

Como bem preceitua Gomes (1978 p31) ldquoas infraccedilotildees penais podem deixar vestiacutegios (delicta facti permanentis) como o homiciacutedio a lesatildeo corporal e natildeo deixar vestiacutegios (delicta facti tran-seuntes) como as injuacuterias verbais o desacatordquo

Quando se fala em prova pericial importante lembrar-se de uma prova que possui grande valor no processo penal que eacute a prova conhecida como exame de corpo de delito Esse exame estaacute previsto no artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal e trata- se do conjunto de vestiacutegios deixados pelo crime

Quando o crime deixar vestiacutegios materialmente compro-vados deveraacute ser realizado o exame de corpo de delito Essa pro-va eacute obrigatoacuteria e indispensaacutevel e sua realizaccedilatildeo eacute imposta pela lei

Taacutevora e Alencar (2013 p417) conceituam corpo de delito como

o conjunto de vestiacutegios materiais deixados pela in-fraccedilatildeo penal seus elementos sensiacuteveis a proacutepria materialidade em suma aquilo que pode ser exami-nado atraveacutes dos sentidos Ex a mancha de sangue deixado no local da infraccedilatildeo as lesotildees corporais a janela arrombada no crime de furto etc Jaacute o exame

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de corpo de delito eacute a periacutecia que tem por objeto o proacuteprio corpo de delito

Imprescindiacutevel destacar que o exame de corpo de delito deveraacute ser efetuado por um perito o mais raacutepido possiacutevel para que natildeo desapareccedilam os vestiacutegios deixados pelo ato criminoso

Nesse sentido preceitua Gomes (1978 p 32) que ldquoo corpo de delito deve realizar-se o mais rapidamente possiacutevel logo que se tenha conhecimento da existecircncia do fatordquo

Mirabete (2006 p 265) diz que exame de corpo de delito eacute ldquoo conjunto de vestiacutegios materiais deixados pela infraccedilatildeo penal a materialidade do crime aquilo que se vecirc apalpa sente em suma aquilo que pode ser examinado atraveacutes dos sentidosrdquo

Quando o crime deixar vestiacutegios materialmente compro-vados deveraacute ser realizado o exame de corpo de delito Essa pro-va eacute obrigatoacuteria e indispensaacutevel e sua realizaccedilatildeo eacute imposta pela lei

Prescreve o artigo 158 do Coacutedigo Penal ldquoquando a infra-ccedilatildeo deixar vestiacutegios seraacute indispensaacutevel o exame de corpo de delito direto ou indireto natildeo podendo supri-lo a confissatildeo do acusadordquo

A ausecircncia do exame de corpo de delito ao ser decretada a sentenccedila poderaacute ocasionar nulidade natildeo sendo nem a confis-satildeo do acusado suscetiacutevel de substituiccedilatildeo O Coacutedigo de Processo Penal todavia conteacutem uma observaccedilatildeo em seu artigo 167 sendo a ausecircncia do exame supriacutevel pela prova testemunhal O que ocor-re neste caso eacute o exame de corpo de delito indireto Sendo assim podemos concluir que a confissatildeo natildeo poderaacute suprir o exame de corpo de delito

O artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal nos remete a duas modalidades de exame do corpo de delito o exame direto e o indireto Eacute conceituado direto quando os peritos examinam os vestiacutegios deixados materialmente pelo crime Seraacute indireto aque-le realizado com base nas informaccedilotildees deixadas por testemunhas documentos entre outros referentes ao fato

Em relaccedilatildeo ao artigo 167 do Coacutedigo de Processo Penal quando os vestiacutegios sumirem e natildeo puder ser realizado o exame

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de corpo de delito poderaacute a prova testemunhal suprir-lhe a falta isto eacute o exame indireto poderaacute suprir o direto quando natildeo existir mais vestiacutegios

O artigo 167 do Coacutedigo de Processo Penal existe para im-pedir uma inesperada impunidade pois se natildeo houvesse essa res-salva qualquer pessoa que praticasse um crime poderia fazer com que os vestiacutegios desaparecessem e assim ficar impune

Da acareaccedilatildeo

A acareaccedilatildeo tem sua previsatildeo legal nos artigos 229 e 230 do Coacutedigo de Processo Penal

No processo poderaacute ocorrer o caso de duas ou mais pesso-as narrarem o ato criminoso de forma distinta Em virtude disso o artigo 229 do CPP permite a realizaccedilatildeo da acareaccedilatildeo que eacute ato de colocar frente a frente as pessoas que deram versotildees diferentes a fim de desvendar tal desarmonia

Reconhecimento de pessoas e coisas

O reconhecimento de pessoas e coisas estaacute previsto no arti-go 226 e inserido no tiacutetulo reservado agraves provas do processo penal e tem por finalidade a identificaccedilatildeo de um suspeito ou de um objeto atraveacutes da palavra da viacutetima ou das testemunhas

Interrogatoacuterio do reacuteu

O interrogatoacuterio do reacuteu estaacute previsto nos artigos 185 a 196 do CPP sendo caracterizado como o ato em que o juiz procede agrave oitiva do reacuteu O julgador realiza perguntas ao reacuteu com base na acusaccedilatildeo a ele dirigida

Interrogatoacuterio pode ser definido como um ato persona-liacutessimo em razatildeo de que apenas o indiciado pode ser interrogado ademais eacute ato privativo pois soacute o juiz pode interrogaacute-lo em con-cordacircncia com o art 187 do Coacutedigo de Processo Penal A oralidade do interrogatoacuterio aproxima o acusado do juiz

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Tornaghi (1997 p 365) afirma que

O interrogatoacuterio eacute a grande oportunidade que tem o juiz para num contato direto com o acusado formar juiacutezo a respeito de sua personalidade da sincerida-de de suas desculpas ou de sua confissatildeo do estado drsquoalma em que se encontra da maliacutecia ou da negli-gecircncia com que agiu da sua frieza e perversidade ou de sua nobreza e elevaccedilatildeo eacute ocasiatildeo propiacutecia para estudar- lhe as reaccedilotildees para ver numa primeira ob-servaccedilatildeo se ele entende o carter criminoso do fato e para verificar tudo mais que estaacute ligado ao seu psi-quismo e agrave sua formaccedilatildeo moral

Conforme o artigo 185 do CPP in verbis ldquoO acusado que comparecer perante autoridade judiciaacuteria no curso do processo penal seraacute qualificado e interrogado na presenccedila de seu defensor constituiacutedo ou nomeadordquo

Da confissatildeo

Confissatildeo eacute ato efetuado pelo suposto culpado de consen-tir como veriacutedica a imputaccedilatildeo que lhe foi feita na denuacutencia ou na queixa-crime Ou seja eacute dizer que foi o causador do crime relatado na exordial acusatoacuteria A previsatildeo desta espeacutecie de prova e os dis-positivos que os compotildeem estatildeo previstos nos artigos 197 a 200 do Coacutedigo de Processo Penal

Dos documentos

A prova documental estaacute prevista nos artigos 231 a 238 do Coacutedigo de Processo Penal

Conforme o art 232 do CPP ldquoConsideram-se documentos quaisquer escritos instrumentos ou papeacuteis puacuteblicos ou particula-resrdquo

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Indiacutecios

Os indiacutecios estatildeo previstos no artigo 239 do Coacutedigo de Processo Penal e natildeo satildeo considerados essencialmente como um meio de prova e sim parte de um raciociacutenio

Assim eacute o entendimento de Oliveira (2009 p382)

Na verdade o indicio mencionado no art 239 do CPP natildeo chega a ser propriamente um meio de pro-va Trata-se antes disso da utilizaccedilatildeo de um raciociacute-nio dedutivo para a partir da valoraccedilatildeo da prova de um fato ou de uma circunstacircncia chega-se agrave conclu-satildeo da existecircncia de outro ou de outra

Os indiacutecios natildeo podem ser comparados com as presunccedilotildees conforme os ensinamentos de Nucci (2007 p 468) ldquoas presunccedilotildees natildeo satildeo consideradas como meios de prova pois as presunccedilotildees constituem apenas mera opiniatildeo com base em algo suspeito ou ateacute mesmo algo suposto eacute um processo considerado como dedutivordquo Jaacute atraveacutes de indiacutecios o magistrado poderaacute alcanccedilar um estado de certeza

HOMICIacuteDIO

O crime de homiciacutedio previsto no Coacutedigo Penal tem como finalidade a salvaguarda do bem mais precioso ou seja a vida

A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 ao revelar o perfil poliacutetico constitucional do Brasil (art 1ordm) instituiu o Estado Democraacutetico de Direito que conteacutem os Direitos e as Garantias Fundamentais in-clusive o direito agrave vida que eacute assegurado no artigo 5ordm caput e inciso X no qual se diz que o direito agrave vida eacute inviolaacutevel em razatildeo de sua importacircncia pois sem a vida natildeo haacute o que se falar em dignidade humana e todos os direitos dela decorrentes

O homiciacutedio eacute previsto na parte Especial do Coacutedigo Penal em seu artigo 121 sob a expressatildeo tiacutepica ldquomatar algueacutemrdquo

Considerando a vida o bem juriacutedico mais valioso e o crime que desperta maior interesse da sociedade iremos analisar as suas

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peculiaridades

Do homiciacutedio sem cadaacutever

Haacute muito que se discutir sobre a possibilidade do acusado ser processado e condenado pelo crime de homiciacutedio mesmo com a ausecircncia do corpo para comprovaccedilatildeo real do fato por se tratar o homiciacutedio de um crime material

No caso em questatildeo eacute possiacutevel juridicamente processar o reacuteu sem o corpo pois o delito qual seja o homiciacutedio exige dois aspectos para a denuacutencia indiacutecio de autoria e a materialidade A materialidade seria no caso o cadaacutever mas eis que surge a duacutevida como condenar algueacutem por homiciacutedio sem o corpo da viacutetima

De acordo com o artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal ldquoQuando a infraccedilatildeo deixar vestiacutegios seraacute indispensaacutevel o exame de corpo de delito direto ou indireto natildeo podendo supri-lo a confis-satildeo do acusadordquo Em contrapartida temos o artigo 167 do mesmo Coacutedigo que prevecirc ldquoNatildeo sendo possiacutevel o exame de corpo de de-lito por haverem desaparecido os vestiacutegios a prova testemunhal poderaacute suprir-lhe a faltardquo

Ainda nessa direccedilatildeo possuiacutemos outro inciso contido no artigo 564 do CPP mais especificadamente o inciso III aliacutenea ldquobrdquo que declara ldquohaveraacute nulidade pela falta do exame de corpo de de-lito nos crimes que deixam vestiacutegiosrdquo poreacutem ressaltando o dispos-to no artigo 167 do CPP o qual diz que a testemunha poderaacute suprir a falta do exame direto

Portanto os trecircs artigos acima devem ser interpretados conjuntamente para que natildeo se faccedila uma interpretaccedilatildeo errocircnea no procedimento de qualquer inqueacuterito

O corpo de delito trata-se de um mero meio de prova que poderaacute ser suprido por outros meios de prova visto que natildeo haacute uma hierarquia entre as provas e o que se preza eacute a procura da verdade real ou seja deve-se recorrer aos outros meios passiacuteveis para formar o convencimento sobre o crime

O recebimento da denuacutencia leva em consideraccedilatildeo a prova

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da materialidade mesmo que essa prova seja por um exame do corpo de delito indireto e indiacutecios de autoria ou seja indiacutecios de que a pessoa que estaacute sendo acusada e que apoacutes o recebimento da denuacutencia seraacute reacuteu tem indiacutecios de sua participaccedilatildeo no desapareci-mento daquela pessoa

ESTUDO DE CASOS

Buscou-se analisar dois casos acerca da possibilidade de condenaccedilatildeo pelo crime de homiciacutedio ante a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo do caso O primeiro caso ocorrido em Aragua-ri em MG no ano de 1937 ficou conhecido como o ldquoCaso dos Irmatildeos Navesrdquo e o segundo ocorrido no ano de 2010 com rele-vante repercussatildeo midiaacutetica ficou conhecido como o ldquoCaso do Goleiro Brunordquo

Conforme informaccedilotildees do livro do autor Joatildeo Alamy Fi-lho (1990) o caso dos Irmatildeos Naves trata-se do maior erro judici-aacuterio no qual houve uma condenaccedilatildeo injusta com lastro na rainha das provas que foi uma confissatildeo conseguida mediante tortura dos irmatildeos Sebastiatildeo e Joaquim Naves acusados do homiciacutedio de Benedito o qual decidiu desaparecer do paiacutes por encontrar-se em dificuldades financeiras agravadas pela crise econocircmica da eacutepoca Durante vaacuterios meses os irmatildeos Naves foram submetidos pelo delegado da eacutepoca a vaacuterias torturas e privados de condiccedilotildees miacutenimas de higiene e alimentaccedilatildeo a fim de que confessassem o crime destacando-se que natildeo havia nem corpo nem indiacutecios nem outros meios de prova do homiciacutedio

Diante dessa situaccedilatildeo eles se viram obrigados a assinar o termo que o delegado tanto desejava a confissatildeo Ainda natildeo con-tente o delegado mandou prender os familiares dos acusados que tambeacutem passaram a sofrer torturas constantes

Os irmatildeos passaram por dois julgamentos tendo sempre como acusaccedilatildeo o temido delegado que sempre recorreu da deci-satildeo com recursos diversos Passados 8 anos e 3 meses apoacutes o jul-gamento devido ao bom comportamento dos irmatildeos na prisatildeo

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finalmente foram colocados em liberdade condicionalAnos mais tarde em 1952 a viacutetima aparece viva pois ha-

via decidido desaparecer agrave eacutepoca porque estava endividado e natildeo conseguira adimplir as diacutevidas Em 1953 os irmatildeos foram inocen-tados e entraram com um pedido de indenizaccedilatildeo que soacute foi conse-guido apoacutes 7 anos em 1960

Atualmente deve ser superado o erro judiciaacuterio que teve agrave eacutepoca do caso dos Irmatildeos Naves atraveacutes da busca da materia-lidade indireta O ordenamento juriacutedico admite provas periciais documentais e testemunhais desde que liacutecitas e legiacutetimas

No segundo caso o Caso do Goleiro Bruno as informa-ccedilotildees foram obtidas atraveacutes da Denuacutencia-Processo 0356249-62010 oferecida no ano de 2010 em Contagem-MG envolvendo o go-leiro Bruno do Flamengo um dos iacutedolos das maiores torcidas de futebol do paiacutes Trata-se de um assassinato no qual a viacutetima Eliza Samuacutedio foi executada cruelmente Consta na Denuacutencia que Eliza Samuacutedio iniciou um envolvimento amoroso com o goleiro e apoacutes algum tempo desse episoacutedio revelou estar graacutevida A gravidez levada a termo contrariou as expectativas de Bruno e a viacutetima mediante constantes ameaccedilas do entatildeo goleiro para que realizas-se aborto foi assassinada em 2010

A materialidade formou-se com base na soma de todas as provas um conjunto de indiacutecios especialmente as provas pe-riciais documentais e testemunhais entre elas o depoimentorelato da prova oral que configurou suficiente demonstraccedilatildeo de materialidade do crime de homiciacutedio No inqueacuterito haacute provas teacutec-nicas obtidas atraveacutes de rastreamento de carros e telefonemas do registro do uso de celulares pelas antenas instaladas ao longo do percurso realizado pelos acusados e tambeacutem do que diz respei-to agraves ligaccedilotildees telefocircnicas as quais natildeo deixaram duacutevidas de uma accedilatildeo coordenada Atraveacutes da triangulaccedilatildeo do sinal dos aparelhos celulares foi possiacutevel para os peritos estabelecerem com precisatildeo endereccedilos e horaacuterios dos lugares identificados em cada aparelho de telefone usado e por consequecircncia seu portador quanto agraves provas testemunhais haacute seis depoimentos que indicam que Bruno

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e Eliza estiveram juntos no siacutetio do goleiro nos dias que antecede-ram o crime No que tange agraves provas materiais o sangue encontra-do nos vidros e no banco da picape Range Rover de propriedade do goleiro era da jovem Eliza comprovado pela periacutecia por meio de exames de DNA

Outra peccedila fundamental para a poliacutecia foi o bebecirc Bruni-nho filho de Eliza ter permanecido sem a matildee e que sob os cui-dados da mulher do goleiro teve o seu nome trocado para Ryan Yuri objetivando dificultar sua identificaccedilatildeo e localizaccedilatildeo e foi encontrado posteriormente em posse de estranhos Ainda no que se refere agraves provas documentais foi encontrada uma carta escrita pelo ex-goleiro Bruno detalhando um Plano B no caso de o cerco se fechar sobre ele prescrevendo que o amigo Macarratildeo deveria assumir toda a culpa pelo crime

Entre os indiacutecios mais fortes de que o goleiro comandou uma espeacutecie de ldquooperaccedilatildeordquo para matar Eliza estaacute o sangue en-contrado na Land Rover do goleiro apreendida com um de seus amigos aleacutem de infraccedilotildees de tracircnsito cometidas no Rio de Janeiro e Minas Gerais e o horaacuterio das ligaccedilotildees telefocircnicas de todos os acusados Por meio do cruzamento das informaccedilotildees e das provas periciais a poliacutecia diz ter conseguido remontar o que aconteceu

As evidecircncias mais importantes no entanto satildeo os depoi-mentos contraditoacuterios As duas principais testemunhas que foram o ponto de partida para a prisatildeo dos demais acusados os primos de Bruno Seacutergio Rosa Sales e o adolescente apreendido J muda-ram suas versotildees ao longo das investigaccedilotildees

No caso do ex-goleiro Bruno sabia-se que Eliza estava desaparecida que natildeo fez contato pessoal telefocircnico e-mail natildeo usou cartatildeo de creacutedito nem conta bancaacuteria haacute um viacutedeo em que Eliza diz que sofreu violecircncia para abortar e que se algo lhe acon-tecesse o responsaacutevel seria Bruno comprovou-se que Eliza foi obrigada a tomar comprimidos de origem desconhecida ou seja foi submetida agrave tentativa de aborto haacute prova de que esteve no siacutetio do suspeito com o filho somente a crianccedila apareceu haacute sangue da viacutetima no carro haacute um depoimento do menor Jorge primo de

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Bruno que conta detalhes sobre a morte e o vilipecircndio a confir-maccedilatildeo desse depoimento se deu pela anaacutelise do GPS do carro e pela comprovaccedilatildeo de que Bruno deslocou-se de aviatildeo para Minas Gerais no periacuteodo

Quando natildeo se localiza o corpo da viacutetima o que se utiliza eacute a ldquocerteza moral do crimerdquo e essa se daacute quando todas as circuns-tacircncias demonstram a morte sob pena de ficarmos agrave mercecirc dos criminosos mais perigosos que satildeo aqueles que matam e depois consomem com o corpo apostando na impunidade Vale ressaltar que as provas no Caso do goleiro Bruno foram obtidas atendendo agrave previsatildeo do ordenamento juriacutedico

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

O presente trabalho buscou analisar a possibilidade de pronunciamento e condenaccedilatildeo do agente que comete o crime de homiciacutedio e natildeo se encontra a prova material do crime o cadaacutever

No decorrer do trabalho fez-se estudo dos meios proba-toacuterios permitidos em nosso ordenamento juriacutedico no que concerne aos crimes materiais ou seja aqueles que deixam vestiacutegios

Destacou-se ainda no presente estudo a possibilidade no crime de homiciacutedio de admitir a substituiccedilatildeo da prova direta pelo prova indireta visto que o proacuteprio ordenamento juriacutedico prevecirc essa possiblidade ante a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo do crime poderaacute utilizar-se das provas testemunhais somadas a outros indiacutecios visto que seria injusto deixar algueacutem impune

Socorreu-se do caso do maior erro Judiciaacuterio ou seja o caso dos Irmatildeos Naves que ficou conhecido nacionalmente e que ateacute hoje assombra a decisatildeo dos juiacutezes em casos semelhantes Po-reacutem destaca-se se que a uacutenica prova utilizada no referido caso foi a confissatildeo obtida mediante tortura

Tivemos caso recente que causou grande repercussatildeo na miacutedia o Cso do ex-goleiro Bruno no qual se constatou a existecircncia de vaacuterias provas indiretas que possuiacuteam o condatildeo de conduzir a um desfecho do crime ocorrido mesmo ante a ausecircncia do corpo

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da viacutetima para comprovaccedilatildeo do fatoCertifica-se que a prova testemunhal se somada a outras

provas poderaacute substituir o cadaacutever se for suficiente para compro-var o delito mesmo com a ausecircncia material do corpo

Atraveacutes dos estudos realizados pode-se constatar que a inexistecircncia do corpo da viacutetima natildeo deixa o reacuteu impune podendo ele ser denunciado pronunciado e posteriormente condenado pela praacutetica do crime

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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______ Manual de processo penal e execuccedilatildeo penal 12 ed rev ampl Rio de Janeiro Forense 2015

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TAacuteVORA Nestor ALENCAR Rosmar Antonini Rodrigues Cavalcanti de Curso de direito processual penal 8 ed rev ampl e atual Salvador JusPODIVM 2013

TORNAGHI Heacutelio Curso de processo penal 10 ed atual Satildeo Paulo Saraiva v1 1997

TOURINHO FILHO Fernando da Costa Processo penal 33 ed Satildeo Paulo Saraiva v 1 2011

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OS MEIOS CONSENSUAIS DE SOLUCcedilAtildeO DE CONFLITOS NA COMARCA DE CAacuteCERESMT

Sandrely Ugulino Cardoso1

Geovanna Gabriela Sandri2

Andreacute Trapani Costa Possignolo3

RESUMO Pesquisa realizada na aacuterea do Direito Processual Civil sobre os institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo e sua eficaacutecia na comarca de CaacuteceresMT como meios alternativos na resoluccedilatildeo de conflitos Aleacutem de apresentar as principais caracteriacutesticas e objetivos dos institutos o trabalho aborda tambeacutem a perspectiva da mediaccedilatildeo para a resoluccedilatildeo de conflitos na esfera familiar ressaltando seus benefiacutecios em relaccedilatildeo aos meios judiciais A anaacutelise realizada tem como base legal a Resoluccedilatildeo 12510 do Conselho Nacional de Justiccedila que disciplina tais institutos frente ao Poder Judiciaacuterio bem como ordena aos tribunais a criaccedilatildeo de Centros Judiciaacuterios de Resoluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica de autores que disciplinam os meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos o presente trabalho faz um levantamento de dados das audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo realizadas no Centro Judiciaacuterio do Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT analisando no caso concreto se os objetivos e benefiacutecios desses institutos consensuais tecircm realmente sido alcanccedilados bem como se tecircm trazido resultados satisfatoacuterios ao Poder Judiciaacuterio e agrave sociedade do municiacutepio de CaacuteceresMT

PALAVRAS-CHAVE Mediaccedilatildeo Conciliaccedilatildeo CEJUSC

1 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT san-drelyugulinogmailcom2 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT geovan-nasandrigmailcom3 Professor do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT andre-tpossiggmailcom

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ABSTRACT Research carried out in Civil Procedural Law area on the institutes of mediation and conciliation and its effectiveness in the county of CaacuteceresMT as alternative means in the resolution of conflicts Besides presenting the main features and goals this work also approaches the perspective of mediation for conflict resolution in the Family Law sphere highlighting its benefits over judicial means The analysis is based on Resolution 12510 of the Conselho Nacional de Justiccedila which disciplines such institutes in Judiciary as well as order the courts to create Centros Judiciaacuterios de Resoluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania In addition to the bibliographic research on consensual means of conflict resolution this paper will also collect data from the conciliation and mediation hearings held at the Centro Judiciaacuterio of the CaceresMT County Forum analyzing in concrete case if the goals and benefits of these consensual institutes have actually been achieved as well as whether they have brought satisfactory results to the Judiciary and to the society of CaceresMT

KEYWORDS Mediation Conciliation CEJUSC

INTRODUCcedilAtildeO

Um dos principais objetivos buscados pelo Direito eacute a paz social de modo a tornar as relaccedilotildees mais estaacuteveis dirimindo os conflitos bem como as desigualdades sociais aleacutem de promover o desenvolvimento da sociedade (SANTOS 2004)

No entanto eacute visiacutevel que o Direito ainda natildeo conseguiu alcanccedilar a almejada pacificaccedilatildeo social hajam vista os numerosos processos que se encontram sob a eacutegide do Poder Judiciaacuterio agrave es-pera de uma soluccedilatildeo para o conflito Sabe-se que o Poder Judiciaacuterio possui muitas falhas em seu modo de atuar tais como tecnicismo proacuteprio e exacerbado inerente ao processo judicial que por exem-plo possui vernaacuteculo especiacutefico e de difiacutecil compreensatildeo para as proacuteprias partes litigantes tornando o processo judicial ainda mais formal aleacutem das altas custas processuais e a demora para a solu-ccedilatildeo do litiacutegio fatores esses que afastam cada vez mais o Judiciaacuterio da sociedade (ALVES 2015)

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Primando pelo princiacutepio constitucional da inafastabilida-de da jurisdiccedilatildeo a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 apresenta em seu art 5ordm inciso XXXV ldquoa lei natildeo excluiraacute da apreciaccedilatildeo do Poder Judiciaacuterio lesatildeo ou ameaccedila a direitordquo (BRASIL 1988) Sendo as-sim eacute garantido a toda pessoa o poder de buscar no Judiciaacuterio a efetividade dos seus direitos violados

O Poder Judiciaacuterio tendo a obrigaccedilatildeo de abranger toda demanda da sociedade passou a enfrentar uma crise gerando o abarrotamento de processos Deste modo o Judiciaacuterio comeccedilou a natildeo suportar tamanha procura para a soluccedilatildeo de conflitos haja vista que natildeo consegue respeitar sequer alguns princiacutepios proces-suais como a celeridade processual tornando-se moroso na reso-luccedilatildeo dos litiacutegios (ALVES 2015)

Para os motivos de tal morosidade existem diversos fa-tores Alguns destes estatildeo ora relacionados agrave estrutura e funcio-namento do Poder Judiciaacuterio ora agraves partes litigantes e seu modo de agir Em suma os fatores mais citados satildeo sucateamento dos equipamentos do Judiciaacuterio escassez de funcionaacuterios modo de agir das partes complexidade e burocracia do processo brasileiro (GESTEIRA 2014)

Atentando-se aos princiacutepios norteadores do Direito visto que o Poder Judiciaacuterio encontra-se em crise comeccedilaram a ser dis-cutidos outros meios alternativos de soluccedilatildeo de conflitos Surgiu assim a Resoluccedilatildeo 12510 do Conselho Nacional de Justiccedila (CNJ) disciplinando dois meios de suma importacircncia ao Direito brasilei-ro quais sejam mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo

Diante disso a presente pesquisa busca estudar esses meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos analisando se satildeo uacuteteis agrave so-ciedade como forma de dirimir litiacutegios ajudando na promoccedilatildeo da paz social prezada pelo Direito De outro modo aborda-se se estes meios de soluccedilatildeo de conflitos realmente trazem benefiacutecios se satildeo eficazes ao Judiciaacuterio diante da mencionada crise de abarrotamen-to de processos pela qual o mesmo enfrenta

Outro vieacutes a ser analisado trata-se da contribuiccedilatildeo das uni-versidades e dos acadecircmicos principalmente do curso de Direito

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na promoccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo bem como os benefiacutecios trazidos aos estudantes diante da aplicaccedilatildeo dos conhecimentos teoacutericos apreendidos nas salas de aula em casos praacuteticos

Tem-se ainda como objetivo mostrar a importacircncia do Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) no Foacuterum da Comarca do Municiacutepio de CaacuteceresMT bem como sua efetividade na resoluccedilatildeo de conflitos por meio da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Busca-se ainda expor alguns aspectos negativos le-vantados com relaccedilatildeo aos institutos de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo

Aleacutem disso realiza-se um levantamento de dados quan-titativos de audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo na Comarca do Foacuterum de CaacuteceresMT no Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Con-flitos e Cidadania para testar a aplicaccedilatildeo praacutetica dos resultados obtidos analisando concretamente se essas audiecircncias tecircm trazido resultados satisfatoacuterios ao Poder Judiciaacuterio na resoluccedilatildeo de con-flitos por meio da feitura de acordos entre as partes bem como se vecircm cumprindo com seu papel de assistecircncia agrave sociedade

Para isso utiliza-se como metodologia a pesquisa biblio-graacutefica de autores que trabalham a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como meios de resoluccedilatildeo de conflitos A partir da anaacutelise criacutetica das in-formaccedilotildees expostas visa-se trazer argumentos proacuteprios sobre o tema

Meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos

A pacificaccedilatildeo social como um dos objetivos primados pelo Direito se realiza por meio da resoluccedilatildeo dos conflitos Buscando se adequar a este objetivo os institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo tambeacutem tecircm almejado a paz social das partes litigantes que ami-gavelmente procuram dirimir os conflitos existentes Nesse senti-do o processualista Daniel Amorim Assumpccedilatildeo Neves (2016 p 32) admite que ldquoa pacificaccedilatildeo social (soluccedilatildeo da lide socioloacutegica) pode ser mais facilmente obtida por uma soluccedilatildeo do conflito deri-vada da vontade das partes do que pela imposiccedilatildeo de uma decisatildeo judicialrdquo

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Essa pacificaccedilatildeo social pode ser alcanccedilada mais facilmente nas formas consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos haja vista que o diaacutelogo entre as partes estaacute presente constantemente pois nessas as partes apresentam propostas capazes de dirimir as desavenccedilas com base em seus interesses pessoais e uma vez satisfeita a vonta-de de ambas o conflito existente eacute solucionado

O Poder Judiciaacuterio no uso de suas atribuiccedilotildees utiliza como principal ferramenta para a resoluccedilatildeo de conflitos a hetero-composiccedilatildeo que ldquoconsiste em meios onde a soluccedilatildeo dos litiacutegios eacute estabelecida por um terceiro sem interferecircncia das partesrdquo (MER-LO 2016 on line)

A partir da crise que afligiu o Judiciaacuterio novas teacutecnicas de dirimir os litiacutegios foram sendo amplamente discutidas surgindo a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como teacutecnicas de autocomposiccedilatildeo em que ao contraacuterio da heterocomposiccedilatildeo a soluccedilatildeo do problema natildeo eacute determinada por um terceiro distante do caso mas pelas proacuteprias partes litigantes que decidem como solucionar os conflitos pelos quais estatildeo passando Nesses meios autocompositivos prevalece a vontade das partes (Idem)

Assim como nos meios de heterocomposiccedilatildeo a mediaccedilatildeo e a conciliaccedilatildeo primam pela real soluccedilatildeo das desavenccedilas No entan-to a heterocomposiccedilatildeo em razatildeo de a soluccedilatildeo do conflito ser dada de acordo com o entendimento de um terceiro imparcial e distante do caso nem sempre possui forccedila capaz de satisfazer as vontades das partes jaacute que na maioria das vezes o decidido pelo magistra-do natildeo coincide com o querer das partes Desta forma ao contraacuterio dos meios consensuais os meios heterocompositivos nem sempre solucionam o conflito em sua essecircncia uma vez que natildeo atendem agrave real vontade das partes fazendo com que em muitos casos as desavenccedilas persistam mesmo apoacutes a suposta resoluccedilatildeo do conflito (ROSA apud GONCcedilALVES 2015)

A mediaccedilatildeo e a conciliaccedilatildeo por serem meacutetodos de auto-composiccedilatildeo possuem muitas semelhanccedilas distinguindo-se ape-nas quanto ao modo de atuaccedilatildeo do mediador e do conciliador

O instituto da mediaccedilatildeo eacute aconselhado para a resoluccedilatildeo de

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conflitos nos casos em que as partes conflitantes jaacute se conheciam e possuiacuteam algum viacutenculo O papel do mediador eacute caracterizado como de um facilitador do diaacutelogo entre as partes que auxilia as partes a visualizarem a melhor maneira de dirimir o conflito exis-tente natildeo podendo agir de forma imperativa no caso nem propor formas de solucionar o conflito mas tatildeo somente encaminhar as partes deixando a livre escolha dessas agrave feitura ou natildeo de um acor-do (DIDIER JR 2015)

Diferentemente da mediaccedilatildeo os casos que envolvem a resoluccedilatildeo de conflitos pela conciliaccedilatildeo segundo entendimento de Didier Jr (2015) satildeo aqueles em que as partes natildeo se conheciam ou seja natildeo possuiacuteam viacutenculos Nesses casos o conciliador tem maior autonomia para interferir no problema haja vista que pode propor soluccedilotildees para dirimir o conflito

Uma das principais caracteriacutesticas destes meios de auto-composiccedilatildeo eacute a maior atuaccedilatildeo das partes na soluccedilatildeo do conflito que satildeo os protagonistas da resoluccedilatildeo do litiacutegio o que eacute interes-sante uma vez que o conflito concerne somente a elas (MERLO 2016)

Vaacutelido ressaltar que esses mecanismos de autocompo-siccedilatildeo ao contraacuterio da heterocomposiccedilatildeo natildeo apresentam todo o tecnicismo proacuteprio de um processo judicial como o seu formalis-mo e utilizaccedilatildeo de vernaacuteculos especiacuteficos e robustos cuja ausecircncia permite que as partes possuam maior liberdade de se expressar visto que se baseiam mais na oralidade e na informalidade aleacutem de serem mais ceacuteleres baratos e justos (GONCcedilALVES 2015)

Entende-se que os acordos feitos por intermeacutedio desses meios alternativos de soluccedilatildeo de conflitos possuem a mesma forccedila de uma sentenccedila dada pelo magistrado por meio das vias comuns entretanto por serem meacutetodos que ainda podem ser considerados recentes diversas vezes natildeo satildeo efetivados pela visatildeo de que os acordos e decisotildees tomadas natildeo teriam o mesmo valor que uma decisatildeo judicial comum (MERLO 2016)

Aleacutem disso outra fragilidade que envolve os meios au-tocompositivos diz respeito agrave atuaccedilatildeo do mediador quanto agrave pos-

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sibilidade de que haja pressatildeo para que as partes cheguem a um acordo e que segundo o Manual de Mediaccedilatildeo Judicial (2015) preo-cupa os advogados por tratar-se de um receio legiacutetimo mas que quando notada deve ser comunicada agrave Secretaacuteria do Serviccedilo de Mediaccedilatildeo Forense

Resoluccedilatildeo n 12510 CNJ

O Conselho Nacional de Justiccedila editou a Resoluccedilatildeo nordm 125 de 29 de novembro de 2010 que em suma tem como objetivo a re-gulamentaccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Assim o CNJ por meio dessa Resoluccedilatildeo incentivou a soluccedilatildeo de controveacutersias por meio da autocomposiccedilatildeo (BRASIL 2010)

Para a criaccedilatildeo dessa Resoluccedilatildeo foram considerados vaacuterios pontos tais como a prestaccedilatildeo judicial de forma justa e efetiva a pacificaccedilatildeo social bem como a regulamentaccedilatildeo e uniformizaccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo (Idem) Assim um dos mais importantes artigos dessa Resoluccedilatildeo na qual se baseia todo o presente trabalho eacute o

Art 8ordm Os tribunais deveratildeo criar os Centros Judiciaacute-rios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (Centros ou Cejuscs) unidades do Poder Judiciaacuterio preferencial-mente responsaacuteveis pela realizaccedilatildeo ou gestatildeo das sessotildees e audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo que estejam a cargo de conciliadores e mediadores bem como pelo atendimento e orientaccedilatildeo ao cidadatildeo (BRASIL 2010)

Eacute com base nesse artigo que os atuais Centros Judiciaacuterios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) existem e realizam as audiecircncias de mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo sejam elas processuais (realizadas durante o tracircmite de processo judicial) ou preacute-proces-suais (que antecedem a propositura da accedilatildeo judicial)

Ademais aleacutem do caraacuteter de soluccedilatildeo de conflitos estes centros possuem uma funccedilatildeo de cidadania uma vez que atendem ao puacuteblico orientando e auxiliando os indiviacuteduos na busca por

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seus direitos (BRASIL 2015)A implantaccedilatildeo desses centros de soluccedilatildeo de conflitos a

partir da Resoluccedilatildeo nordm 12510 do CNJ que aleacutem de seu objetivo principal de incentivar que os litiacutegios sejam resolvidos de forma consensual reconheceu esses institutos como meios de acesso agrave justiccedila respeitando o princiacutepio constitucional de acesso agrave justiccedila Ademais em decorrecircncia da grande quantidade de demandas di-rigidas ao Poder Judiciaacuterio busca-se tambeacutem com as audiecircncias de mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo a diminuiccedilatildeo do abarrotamento de proces-sos uma vez que esses institutos satildeo mais ceacuteleres na soluccedilatildeo dos conflitos e a feitura de um acordo evita que novos casos resultan-tes de conflitos mal resolvidos fiquem pendentes da anaacutelise do Poder Judiciaacuterio (GONCcedilALVES 2015)

Aleacutem disso eacute importante compreender a atuaccedilatildeo dos con-ciliadores e mediadores bem como os princiacutepios e obrigaccedilotildees que os regem para que se quebre o paradigma de que um meio de resoluccedilatildeo de conflitos que envolva um terceiro que natildeo seja o ma-gistrado tambeacutem pode ser confiaacutevel e eficaz Por esta razatildeo a re-soluccedilatildeo prevecirc em seu artigo 1deg do Anexo III oito princiacutepios funda-mentais que devem ser seguidos para que se respeite o Coacutedigo de Eacutetica dos Mediadores e Conciliadores Satildeo eles confidencialidade decisatildeo informada competecircncia imparcialidade independecircncia e autonomia respeito agrave ordem puacuteblica e agraves leis vigentes empodera-mento e validaccedilatildeo (BRASIL 2010)

Os princiacutepios fundamentais previstos na resoluccedilatildeo satildeo de grande importacircncia para a conduccedilatildeo e o bom desenvolvimento dos procedimentos dos institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo

mediaccedilatildeo na resoluccedilatildeo de conflitos familiares

Pelo fato de a mediaccedilatildeo ser utilizada principalmente nos conflitos em que as partes jaacute se conheciam ela possui grande im-portacircncia na soluccedilatildeo de conflitos familiares mais ainda por se ba-sear principalmente no diaacutelogo entre as partes Tendo em vista as peculiaridades dos problemas familiares o instituto da mediaccedilatildeo

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tem sido cada vez mais empregado na resoluccedilatildeo desses conflitos Eacute evidente que as desavenccedilas familiares possuem aspectos mais delicados uma vez que envolvem laccedilos afetivos e por isso neces-sitam de guarida de forma especial comparados com outros confli-tos sociais (GONCcedilALVES 2015 GARBO 2015)

Para que natildeo haja desgaste emocional entre os familiares que se encontram em litiacutegio faz-se necessaacuterio a presenccedila da media-ccedilatildeo como meio consensual de resoluccedilatildeo de conflitos instrumento capaz de trazer a paz para as famiacutelias em desavenccedilas (TOALDO OLIVEIRA 2011)

Em decorrecircncia de o Poder Judiciaacuterio se encontrar abar-rotado de causas para serem solucionadas os conflitos sob a sua eacutegide demoram muito tempo ateacute sua resoluccedilatildeo Assim sendo a mediaccedilatildeo familiar um meio alternativo para a resoluccedilatildeo de con-flitos as demandas seratildeo solucionadas por este meio com mais rapidez fato esse de suma importacircncia nos desentendimentos fa-miliares uma vez que envolvem assuntos de natureza de urgecircncia perdurando o conflito por um periacuteodo bem menor se comparado aos meios judiciais tradicionais (PRUDENTE 2008)

Os principais casos resolvidos por meio da mediaccedilatildeo fa-miliar abrangem conflitos referentes a divoacutercio separaccedilatildeo de bens guarda fixaccedilatildeo e revisatildeo de alimentos Tais casos por se tratarem de assuntos pertinentes tatildeo apenas agraves proacuteprias partes satildeo resolvi-dos por meio da mediaccedilatildeo com grande aprovaccedilatildeo tendo em vista que a partir do diaacutelogo entre as partes pode surgir um acordo que satisfaccedila as vontades destas (GARBO 2015)

O meio heterocompositivo frente a um magistrado por natildeo possibilitar maior diaacutelogo entre as partes nem sempre per-mite que a vontade seja plenamente satisfeita inclusive porque a soluccedilatildeo do conflito viraacute de acordo com o entendimento de um terceiro distante do caso Assim diante da insatisfaccedilatildeo em rela-ccedilatildeo agrave decisatildeo tomada e da natildeo soluccedilatildeo dos conflitos ocultos novos impasses podem surgir resultando em novos processos judiciais contribuindo para o abarrotamento de processos e intensificando a crise do Poder Judiciaacuterio

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A mediaccedilatildeo familiar eacute sim uma alternativa viaacutevel para a superaccedilatildeo de conflitos familiares na socieda-de atual pois atraveacutes de mediadores capacitados e com conhecimentos especiacuteficos fazendo com que as partes cheguem uma melhor soluccedilatildeo que possa satisfazer a ambos sem a imposiccedilatildeo de uma deci-satildeo como ocorre no atual sistema juriacutedico brasileiro (TOALDO OLIVEIRA 2011 on line)

Aleacutem da insatisfaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave decisatildeo proferida por meio heterocompositivo o sentimento de conflito natildeo resolvido pode acarretar traumas emocionais aos filhos portanto quando se tem uma participaccedilatildeo muacutetua da famiacutelia para que se resolvam as questotildees familiares pendentes de forma amigaacutevel e respeitosa a decisatildeo natildeo traraacute apenas benefiacutecios processuais (custas celerida-de) como tambeacutem emocionais e psicoloacutegicos conforme menciona Parkinson (2016 p xxi)

Devemos ter em mente que longas batalhas pela guarda dos filhos satildeo extremamente prejudiciais agrave crianccedila aleacutem de apresentarem altos custos emocio-nais e financeiros ao passo que a mediaccedilatildeo incenti-va uma melhor comunicaccedilatildeo e cooperaccedilatildeo entre os pais podendo trazer benefiacutecios duradouros para a famiacutelia como um todo

Percebe-se assim que os conflitos familiares dependem grandemente do diaacutelogo para a sua soluccedilatildeo uma vez que apoacutes alguns desentendimentos os familiares se encontram receosos e abalados emocionalmente diante dos laccedilos afetivos envolvidos necessitando apenas que um terceiro no caso o mediador inter-venha no conflito para facilitar o diaacutelogo entre as partes fazendo com que as mesmas encontrem um acordo satisfatoacuterio fato esse que pode ser facilmente presenciado na mediaccedilatildeo diferentemente do que ocorre na heterocomposiccedilatildeo em que natildeo haacute tantas oportu-nidades de diaacutelogos entre as partes

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Contribuiccedilatildeo das Universidades aos CEJUSCrsquos

Tendo em vista que a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo abordam as-suntos pertinentes ao curso de Direito as universidades podem e devem contribuir na promoccedilatildeo desses institutos uma vez que ainda satildeo desconhecidos por grande parcela da sociedade Aleacutem de as universidades contribuiacuterem no incentivo e divulgaccedilatildeo dos meacutetodos consensuais de soluccedilatildeo de conflitos os acadecircmicos tam-beacutem satildeo beneficiados uma vez que poderatildeo colocar em praacutetica os aprendizados teoacutericos das aulas contribuindo para seu crescimen-to profissional futuro

O CNJ mesmo apoacutes ter criado a Resoluccedilatildeo 12510 incen-tiva ainda a pacificaccedilatildeo dos litiacutegios pela mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo por meio do Precircmio Conciliar eacute Legal de iniciativa do Comitecirc Gestor Nacional da Conciliaccedilatildeo A quinta ediccedilatildeo desse precircmio teve como uma das praacuteticas vencedoras a promoccedilatildeo de soluccedilotildees paciacuteficas de conflitos por meio do envolvimento de alunos e docentes do cur-so de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNE-MAT) Campus Francisco Ferreira Mendes em DiamantinoMT em trabalho conjunto com o Centro Judiciaacuterio da Comarca de Dia-mantinoMT (ARAUacuteJO 2015)

O projeto realizou-se por intermeacutedio da UNEMAT no Nuacute-cleo Permanente de Meacutetodos Consensuais de Soluccedilatildeo de Conflitos do Mato Grosso e do CEJUSC do TJMT e envolveu estudantes e professores que se propuseram a averiguar os processos submeti-dos ao Centro Judiciaacuterio na Comarca de DiamantinoMT (Idem)

Assim sendo fica claro que essa atitude serviu para tes-tificar os acadecircmicos envolvidos no projeto considerando que jaacute saem com capacitaccedilatildeo em conciliaccedilatildeo tornando-se uma verdadei-ra contribuiccedilatildeo acadecircmica para a sociedade o que exemplifica cla-ramente a proposta acessiacutevel da soluccedilatildeo de conflitos

Levantamento de dados realizados no CEJUSC de CAacuteCERESMT

Com base no levantamento bibliograacutefico apresentado foi

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realizada uma pesquisa quantitativa de levantamento de dados no Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT

Com a entrada em vigor da Resoluccedilatildeo 12510 do CNJ o Tribunal de Justiccedila do Mato Grosso buscou adequar-se a essa nor-ma tendo em vista que assim como apresentado no art 8ordf da refe-rida Resoluccedilatildeo foi imposta aos Tribunais de Justiccedila a criaccedilatildeo dos Centros Judiciaacuterios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania

Assim sendo foi instalado no dia 11 de julho de 2014 em CaacuteceresMT um Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cida-dania (CEJUSC) por meio da Portaria 0062014-NPMCSC-PRES (MATO GROSSO 2014)

Os dados a seguir foram informados pela gestora do CE-JUSC do Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT por meio dos rela-toacuterios que satildeo encaminhados ao CNJ Assim seratildeo apresentados os dados a respeito das conciliaccedilotildees e mediaccedilotildees realizadas tatildeo somente neste Centro expondo ainda os nuacutemeros das audiecircncias que restaram frutiacuteferas

Insta esclarecer que os dados da quantidade de audiecircncias realizadas referem-se tanto agraves audiecircncias na fase preacute-processual quanto processual Outrossim os dados apresentados satildeo apenas das audiecircncias realizadas no CEJUSC E os acordos que satildeo forma-lizados no decorrer dos processos natildeo estatildeo contidos nestes dados mas somente os formalizados em audiecircncias realizadas no Centro

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Quadro 01 minus Nuacutemero de audiecircncias realizadas no CEJUSC durante 2014 ndash 2016

Fonte Mato Grosso (2014)

A partir dos dados apresentados nota-se que a populaccedilatildeo de CaacuteceresMT tem buscado realizar tentativas de acordos para resoluccedilatildeo de conflitos mesmo sendo a heterocomposiccedilatildeo no Bra-sil a forma mais difundida e aceita para a soluccedilatildeo de conflitos O graacutefico reforccedila a tese de que os meios de autocomposiccedilatildeo tambeacutem estatildeo aos poucos ganhando mais espaccedilo e sendo utilizados fren-te aos benefiacutecios que estes meios proporcionam como celeridade menor custo econocircmico e resoluccedilatildeo do conflito por meio da satis-faccedilatildeo da vontade de ambas as partes

A tabela a seguir apresenta o nuacutemero de acordos formali-zados dentre a quantidade de audiecircncias realizadas no CEJUSC de Caacuteceres segundo apresentado no quadro 01 acima

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Quadro 02 minus Nuacutemero de audiecircncias com acordos

Fonte Mato Grosso (2014)

Por meio da anaacutelise dos dados acima descritos pode-se perceber que entre os meses em que foi realizada a pesquisa julho de 2014 a agosto de 2016 num total de 26 meses foram realizadas 1954 (mil novecentos e cinquenta e quatro) audiecircncias de conci-liaccedilatildeo e mediaccedilatildeo no Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania da Comarca de CaacuteceresMT Desse total de audiecircncias realizadas 1679 (mil seiscentos e setenta e nove) restaram frutiacute-feras ou seja obtiveram acordo correspondendo a aproximada-mente 86 de acordos do total de audiecircncias

Desta forma nota-se que estes meios alternativos de solu-ccedilatildeo de controveacutersias estatildeo sendo de suma importacircncia para a so-ciedade da comarca de Caacuteceres bem como para o Poder Judiciaacuterio local uma vez que os resultados obtidos tecircm sido satisfatoacuterios

Tais resultados corroboram com o entendimento defendi-do por Alves (2015 on line) ldquoConclui-se que a conciliaccedilatildeo eacute sem-pre a melhor opccedilatildeo para as partes em litiacutegio desde que o instituto seja aplicado corretamente em consonacircncia com os seus objetivos e por terceiros realmente imparciais e capacitadosrdquo

Para Warat (apud MERLO 2016 on line) estes institutos

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satildeo muito importantes para a sociedade visto que

As praacuteticas sociais de mediaccedilatildeo se configuram num instrumento ao exerciacutecio da cidadania na medida em que educam facilitam e ajudam a produzir dife-renccedilas e a realizar tomadas de decisotildees sem a inter-venccedilatildeo de terceiros que decidem pelos afetados por um conflito[] O acordo decorrente de uma mediaccedilatildeo satisfaz em melhores condiccedilotildees as necessidades e os desejos das partes jaacute que estas podem reclamar o que ver-dadeiramente precisam e natildeo o que a lei lhes reco-nheceria

Nota-se que a conciliaccedilatildeo e a mediaccedilatildeo realizadas no Cen-tro Judiciaacuterio de CaacuteceresMT diante dos resultados apresentados tecircm sido realmente uma alternativa eficaz para resoluccedilatildeo de con-flitos na comarca uma vez que ao produzir acordos entre as par-tes as desavenccedilas satildeo solucionadas proporcionando a paz social Aleacutem do mais pelo fato de o acordo ser realizado a partir da von-tade das partes sem a intervenccedilatildeo de um terceiro como o magis-trado os meios autocompositivos diminuem e por consequecircncia os casos a serem solucionados diretamente pelo Poder Judiciaacuterio atenuando a crise de abarrotamento de processos judiciais

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A partir das pesquisas realizadas foi possiacutevel perceber que o Poder Judiciaacuterio passa por um momento criacutetico pois se encontra abarrotado de processos e sem nenhuma condiccedilatildeo de acolher cor-retamente toda esta demanda de modo que precisou implementar outras alternativas que ajudassem a alterar esse cenaacuterio

Buscando sair deste momento de crise alguns mecanis-mos foram implementados atraveacutes da Resoluccedilatildeo nordm 12510 do CNJ quais sejam a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Percebe-se entatildeo que estes institutos foram e satildeo de fundamental importacircncia para o Ju-diciaacuterio visto que ao mesmo tempo que diminuem a grande pro-

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cura direta ao Judiciaacuterio para a resoluccedilatildeo de conflitos tambeacutem se baseiam em meacutetodos autocompositivos por meio dos quais todas as decisotildees tomadas partem tatildeo somente das proacuteprias partes liti-gantes resultando em uma justiccedila em conformidade com as neces-sidades almejadas pelas partes

Com relaccedilatildeo aos pontos positivos e negativos desses ins-titutos nota-se que os aspectos positivos prevalecem sobre os ne-gativos haja vista que estes decorrem do pouco conhecimento da sociedade de que os meios consensuais de soluccedilatildeo de conflitos satildeo eficazes e gozam dos mesmos efeitos de uma decisatildeo judicial Esse desconhecimento da sociedade deve-se ao fato de o meio ju-dicial tradicional ser utilizado haacute muito mais tempo necessitando assim que o Poder Judiciaacuterio incentive e divulgue a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como meios eficazes corroborando por consequecircncia com a diminuiccedilatildeo da crise judiciaacuteria As universidades conjun-tamente com os acadecircmicos do curso de Direito tecircm contribuiacutedo nesse aspecto de divulgaccedilatildeo e incentivo da sociedade para soluccedilatildeo dos litiacutegios por meio da autocomposiccedilatildeo atraveacutes de projetos reali-zados em parceria com os Centros Judiciaacuterios

Os meios consensuais tecircm apresentado resultados satis-fatoacuterios perante o ordenamento juriacutedico brasileiro haja vista que tecircm sido efetivamente utilizados para a soluccedilatildeo de conflitos sendo de grande valia ao Poder Judiciaacuterio e agrave sociedade principalmente agrave Comarca de Caacuteceres ora analisada

Quanto agraves resoluccedilotildees de conflitos por meio do Centro Ju-diciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania de Caacuteceres pode-se observar que apesar da autocomposiccedilatildeo como meio de resoluccedilatildeo de conflitos ainda natildeo ser amplamente difundida como acontece com os meios heterocompositivos a Comarca de Caacuteceres vem ob-tendo resultados satisfatoacuterios e natildeo soacute pela quantidade de acordos mas tambeacutem em relaccedilatildeo agrave procura deste meio

Percebe-se assim que a autocomposiccedilatildeo por meio da me-diaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo vem apresentando aos juristas aspectos po-sitivos como a diminuiccedilatildeo do abarrotamento de processos bem como esses institutos tecircm cumprido com seus objetivos sendo

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realmente eficazes na resoluccedilatildeo de conflitos

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ALVES Gabriela Pellegrina A conciliaccedilatildeo como meio de efetivaccedilatildeo do princiacutepio do acesso agrave justiccedila Disponiacutevel em httpwwwconteudojuridicocombrartigoa-conciliacao-como-meio-de-efetivacao-do-principio-do-acesso-a-justica51986html Acesso em jun 2016

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______ Conselho Nacional de Justiccedila Resoluccedilatildeo n 125 29 de novembro de 2010 Dispotildee sobre a poliacutetica judiciaacuteria nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no acircmbito do poder judiciaacuterio e daacute outras providecircncias Disponiacutevel em httpwwwcnjjusbrbusca-atos-admdocumento=2579 Acesso em set 2016

DIDIER JR Fredie Curso de direito processual civil introduccedilatildeo ao direito processual civil parte geral e processo de conhecimento 17 ed Salvador Jus Podivm 2015

GARBO Maria Carolina Silva Mediaccedilatildeo familiar como alternativa agrave soluccedilatildeo de conflitos familiares resultantes de separaccedilatildeo eou divoacutercio Disponiacutevel em httpwwwambito-juridicocombrsiten_link=revista_artigos_leituraampartigo_id=15704amprevista_caderno=14 Acesso em set 2016

GESTEIRA Wander Joseacute Barroso Provaacuteveis causas da morosidade da justiccedila brasileira Disponiacutevel em httpswwwportaleducacaocombrdireitoartigos56733provaveis-causas-da-morosidade-da-justica-brasileira Acesso em dez 2016

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GONCcedilALVES Amanda Passos A mediaccedilatildeo como meio de resoluccedilatildeo de conflitos familiares Rio Grande do Sul Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul - PUCRS 2015

MERLO Ana Karina Franccedila Mediaccedilatildeo conciliaccedilatildeo e celeridade processual Disponiacutevel em lthttpwwwambito-juridicocombrsiteindexphpn_link=revista_artigos_leituraamp artigo_id=12349amprevista_caderno=21gt Acesso em mai de 2016

NEVES Daniel Amorim Assumpccedilatildeo Novo coacutedigo de processo civil ndash Leis 131052015 e 132562016 3 ed Satildeo Paulo Meacutetodo 2016

PARKINSON Lisa Mediaccedilatildeo familiar 2 ed Belo Horizonte Del Rey 2016

SANTOS Marcos Andreacute Couto O direito como meio de pacificaccedilatildeo social em busca do equiliacutebrio das relaccedilotildees sociais Disponiacutevel em httpsjuscombrartigos4732o-direito-como-meio-de-pacificacao-socialgt Acesso em mai 2016

TOALDO Adriane Medianeira OLIVEIRA Fernanda Rech de Mediaccedilatildeo familiar novo desafio do direito de famiacutelia contemporacircneo Disponiacutevel em httpwwwambitojuridicocombrsi ten_l ink=revis ta_ar t igos_le i turaampart igo_id=10860amprevista_cadero=21gt Acesso em set 2016

JULGAMENTO INDIacuteGENA DE CONFLITOS INTERNOS RECO-NHECIDO PELO DIREITO ESTATAL NA PERSPECTIVA DO PLURALISMO JURIacuteDICO117Eliel Alves Camerini SilvaLuciana Stephani Silva Iocca

A TEORIA DO PREJUIacuteZO NAS NULIDADES RELATIVAS O COROLAacuteRIO DA DISCRICIONARIEDADE NO PROCESSO PE-NAL137Evandro Monezi BenevidesFelipe Teles Tourounoglou

CAacuteCERES E O DEacuteFICIT DE MORADIAS O CASO DA OCUPA-CcedilAtildeO DO BAIRRO EMPA 155Evely Bocardi de Miranda Saldanha Richard Rodrigues da Silva

PROVA NO HOMICIacuteDIO SEM CADAacuteVER169Gabrielle Vidrago de Souza Machado Solange Teresinha Carvalho Pissolato

OS MEIOS CONSENSUAIS DE SOLUCcedilAtildeO DE CONFLITOS NA COMARCA DE CAacuteCERESMT191Sandrely Ugulino CardosoGeovanna Gabriela Sandri Andreacute Trapani Costa Possignolo

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ldquoWASH OUTrdquo FRENTE AO ORDENAMENTO JURIacuteDICO BRASILEIRO

Ana Flaacutevia Trevizan1

RESUMO O presente artigo tem por escopo apresentar alguns apontamentos baacutesicos no tocante ao ldquowash outrdquo e sua incidecircncia nos contratos agraacuterios e observar de que maneira o direito paacutetrio tem se portado perante tal instituto Ressalta-se a estima em realizar esse paralelo por se tratar de algo que foi importado e por estar se difundindo entre os contratos que versam sobre commodities deveraacute atender aos princiacutepios e normas internamente estabelecidos Por ser inovador o pretenso assunto ocasionaraacute grandes debates nos quais seratildeo impresciacutendiveis as construccedilotildees doutrinaacuterias e jursiprudecircnciais sobre a mateacuteria uma vez que os impactos advindos do ldquowash outrdquo satildeo de excessiva monta Passando pela escassa jurisprudecircncia interna ao referido assunto seratildeo dadas delimitaccedilotildees e uma roupagem ante o ordenamento juriacutedico nacional

PALAVRAS-CHAVE ldquoWash outrdquo Contrato agraacuterio Commodities Direito brasileiro

ABSTRACT The purpose of this article is to present some basic notes on the ldquowash outrdquo and its incidence on agrarian contracts and to observe how the countryrsquos law has behaved before such an institute Emphasis is placed on making this parallel because it is something that has been imported and because it is spreading among contracts that deal with commodities should comply with the principles and standards internally established Being innovative the alleged subject will cause great debates in which the doctrinal and jursiprudecircncia constructions on the matter will be essential since the impacts arising from the ldquowash outrdquo are of excessive amount Turning to the scarce internal jurisprudence on the subject will be given delimitations and a drapery before the national legal order1 Mestranda em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Professora do Departmento de Direito da UFMT Bolsista CAPES-FAPEMAT E-mail aftre-vizangmailcom

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KEYWORDS ldquoWash outrdquo Agrarian contract Commodities Brazilian law

INTRODUCcedilAtildeO

Com a abertura do mercado interno principalmente no fi-nal da deacutecada de 80 o Brasil comeccedilou a dar maior notoriedade agrave exportaccedilatildeo comercial Algumas medidas como a diminuiccedilatildeo das aliacutequotas sobre a importaccedilatildeo e a extirpaccedilatildeo da maioria das restri-ccedilotildees natildeo-tarifaacuterias colocaram em ascensatildeo o mercado exportador

Nessa conjuntura globalizada merecem papel de desta-que as tradings companies que em simples linhas satildeo empresas comerciais que promovem a exportaccedilatildeo por meio da compra de produtos circulantes no mercado interno Seu marco legislativo se deu em novembro de 1972 com o advento do Decreto-Lei nordm 1248 futuramente inovado pelo Decreto nordm 45432002 O primeiro tu-tela os tributos incidentes em relaccedilatildeo aos produtos exportados e o uacuteltimo disciplina requisitos essenciais agraves tradings

Em virtude da dinacircmica presente no mercado internacio-nal torna-se comum a estipulaccedilatildeo de claacuteusulas em contratos inter-nacionais firmados entre as tradings e o paiacutes para o qual se exporta que impotildeem multas envolvendo alta quantia monetaacuteria no caso de descumprimento Um exemplo eacute a sobre-estadia a qual se refere ao pagamento feito pela restituiccedilatildeo atrasada do contecirciner do titu-lar mas que na maioria das vezes recai sobre as tradings

Todavia as tradings visando amortizar os gastos advindos de multas importaram para o direito paacutetrio um instituto chamado ldquowash outrdquo que objetiva a indenizaccedilatildeo de excessivo valor mone-taacuterio no caso de descumprimento da empresa ou pessoa fiacutesica que vende produtos agriacutecolas agraves tradings

Imperiosa eacute a anaacutelise do ldquowash outrdquo sobre o enfoque do direito brasileiro levando em consideraccedilatildeo os princiacutepios e normas tanto do direito civil como do direito constitucional Eis a finalida-de deste artigo

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Apontamentos baacutesicos sobre as Tradings Companies

As Tradings Companies em atividades no Brasil des-de 1970 ganharam destaque no cenaacuterio nacional no iniacutecio da deacutecada de 90 Foi em 1990 com o estabelecimento da Poliacutetica Industrial e de Comeacutercio Exterior que o Brasil fortalece suas relaccedilotildees mercantis com paiacuteses exteriores

Nas palavras de Anna Carolina Euclides Santos Bruno Henrique Felipe Gomes e Juliana Lima Credendio (2007 p 29)

Com a abertura da economia brasileira no governo do presidente Fernando Collor de Melo as empre-sas de grande porte sentiram-se motivadas a desen-volver suas atividades no mercado externo Com a elevada demanda essas empresas natildeo conseguiam atender agraves necessidades do mercado e iniciaram parcerias com as tradings pois perceberam as van-tagens e benefiacutecios de sua utilizaccedilatildeo ou ateacute mesmo criando a sua proacutepria Trading Company

Eacute nesse mesmo periacuteodo que as tradings ganham destaque e no primeiro momento optam pela comercializaccedilatildeo de commo-dities como por exemplo o cafeacute que na atualidade cede espaccedilo agrave soja

A Receita Federal do Brasil na Soluccedilatildeo de Consulta nordm 56 de 16 de junho de 2011 publicada no Diaacuterio Oficial da Uniatildeo de 17 de junho de 2011 definiu o instituto Trading Company como uma empresa comercial exportadora constituiacuteda sob a forma de socie-dade por accedilotildees dentre outros requisitos miacutenimos previstos no De-creto-Lei nordm 124872 (BRASIL 2009) Ou seja trading company eacute uma empresa comercial que realiza atividades como exportaccedilatildeo importaccedilatildeo e agenciamento das operaccedilotildees de compra e venda de mercadorias

O Decreto em voga veio para regulamentar alguns pon-tos especiacuteficos sobre a aquisiccedilatildeo de produtos no mercado interno visando agrave exportaccedilatildeo aleacutem de estatuir requisitos miacutenimos para a instituiccedilatildeo das tradings no Brasil

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De acordo com Pereira e Boavista (2010 p74)

Deve-se ressaltar que antes do advento dessa legis-laccedilatildeo jaacute existiam empresas comerciais exportadoras Logo a contribuiccedilatildeo da legislaccedilatildeo foi estabelecer uma categoria especiacutefica de comerciais exportado-ras ndash as que se enquadrassem no disposto no art 2ordm do referido Decreto-lei Este determinava exigecircncias quanto ao capital miacutenimo e agrave organizaccedilatildeo societaacuteria das tradings que pretendiam i) minimizar a proba-bilidade de as firmas natildeo honrarem seus compro-missos ii) influenciar esse mercado com a visatildeo de que a escala miacutenima eficiente para essas empresas deveria ser mais elevada (em linha com a experiecircn-cia japonesa) e iii) facilitar a fiscalizaccedilatildeo

Daiacute decorre a distinccedilatildeo entre trading company e comercial exportadora A primeira segue os ditames prescritos no art 2ordm do Decreto Lei nordm 1248 de 1979 quais sejam compor uma sociedade de accedilotildees accedilotildees essas nominativas e com direito a voto possuir ca-pital miacutenimo estabelecido pelo Conselho Monetaacuterio Federal e natildeo constar puniccedilotildees em decisatildeo administrativa final por infraccedilotildees relativas ao comeacutercio exterior

Hodiernamente a diferenciaccedilatildeo entre os dois citados insti-tutos se daacute no atinente ao porte em que as tradings desempenham maiores operaccedilotildees que as comerciais exportadoras

Insta ressaltar que Pereira e Boavista (Idem p 72-73) nota-ram essa mudanccedila Conforme os autores

[] os termos trading company e comercial exportado-ra tecircm no Brasil uma dimensatildeo conceitual maior do que quando foram estabelecidos Ou seja natildeo cabe mais a associaccedilatildeo do termo trading apenas agrave expor-taccedilatildeo indireta pois essas empresas atuam tanto na compra de mercadorias para exportaccedilatildeo quanto no auxiacutelio a outras empresas que pretendem exportar diretamente ndash oferecendo uma gama de serviccedilos de exportaccedilatildeo que ultrapassa em muito a simples ati-vidade de intermediaccedilatildeo comercial caracterizando-as como facilitadoras ou mesmo consultoras de

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exportaccedilatildeo Os serviccedilos oferecidos atualmente pelas tradings satildeo - Intermediaccedilatildeo comercial - Prospecccedilatildeo comercial estudos de mercado iden-tificaccedilatildeo de clientes canais de comercializaccedilatildeo etc - Accedilotildees de promoccedilatildeo comercial feiras material pro-mocional propaganda encontros de negoacutecios etc - Suporte logiacutestico preparaccedilatildeo de documentaccedilatildeo contrataccedilatildeo de transporte domeacutestico e internacional armazenagem serviccedilos alfandegaacuterios etc - Apoio agrave organizaccedilatildeo da produccedilatildeo e agrave adaptaccedilatildeo de produtos (regulamentos e normas teacutecnicas design etiquetagem embalagem etc) - Serviccedilos financeiros gerenciamento de risco e se-guros estruturaccedilatildeo de operaccedilatildeo de financiamento pagamento a fornecedores etc

Notam-se as grandes estruturas envolvendo as tradings ateacute mesmo pelo fato de a maior parte dessas manter relaccedilotildees dire-tas com paiacuteses de ilibada conduta no tocante ao mercado externo para o ecircxito de suas atividades

Natildeo se deve olvidar que ao se relacionar com os outros paiacuteses os contratos firmados com as tradings devem ser estipula-dos conforme a legislaccedilatildeo do paiacutes cliente Paiacutes cliente entende-se o Estado destinataacuterio da exportaccedilatildeo o qual fixaraacute o contrato res-peitando as regras de seu ordenamento juriacutedico A tiacutetulo de exem-plificaccedilatildeo se uma tranding nacional firmar contrato de exportaccedilatildeo com a China as claacuteusulas constantes nesse instrumento seguiratildeo as normativas do direito chinecircs Logo a depender do Estado clien-te as regras seratildeo modificadas

Aleacutem de se relacionar com outros Estados as tradings ne-gociam com os fornecedores internos de commodities que podem ser empresas ou pessoas fiacutesicas por meio de contratos que deveratildeo obedecer ao ordenamento paacutetrio

Eacute justamente frente aos fornecedores que as tradings vecircm importando a claacuteusula objeto de estudo e aplicando-as sobre os contratos firmados em domiacutenio nacional

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APLICACcedilAtildeO DO ldquoWASH OUTrdquo NO BRASIL

Internamente as tradings e os fornecedores de produtos agriacutecolas estabelecem contratos em sua maioria de compra e ven-da nos quais os fornecedores entregam na data aprazada a quan-tidade acordada do produto E para tanto em algum grande porto do Brasil jaacute existe um navio para exportar tais produtos

Por se tratar de relaccedilotildees comerciais de vultosas quantias os referidos instrumentos preveem claacuteusulas penalizadoras graves nos casos de inadimplemento contratual Eacute visando ao cumpri-mento total do acordado que se firma um ajuste entre as tradings e os paiacuteses-clientes no qual se estipula uma multa de elevado valor para cada dia que o mesmo navio ficar agrave espera da mercadoria Eacute o chamado demurrage ou sobre-estadia que segundo Gabardo (2011 p 2)

Nos contratos de transporte mariacutetimo de cargas o transportador se compromete mediante contrapres-taccedilatildeo do frete a transportar a mercadoria consigna-da pelo embarcador ao destino acordado Para que esta transaccedilatildeo possa ser efetuada normalmente o transportador concede ao usuaacuterio um determinado prazo de dias livres (estadia) para a realizaccedilatildeo das operaccedilotildees de carga e descarga das mercadorias Contudo havendo excesso ao periacuteodo estipulado tanto na utilizaccedilatildeo do navio quanto das unidades de cargas (contecirciner) o embarcador estaraacute incorrendo em sobre-estadia sobredemora ou demurrage como eacute internacionalmente conhecida

Batista (2011 p 2) ressalta que ldquopor dia extra cada navio gera entre US$ 15 mil e US$ 30 mil de penalidade ao embarcador ou seja agraves tradings exportadoras de commoditiesrdquo Logo a cada dia de atraso no embarque das commodities as tradings tecircm que arcar com essa excessiva penalidade

Nota-se a importacircncia dada ao princiacutepio do pacta sunt ser-vanda Por se tratar de comeacutercio internacional este princiacutepio deve ser respeitado para que a credibilidade e confiabilidade do paiacutes

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bem como das tradings natildeo sejam questionadasEntretanto visando minimizar as perdas eventualmente

tidas com a sobre-estadia as tradings estabelecem uma disposiccedilatildeo contratual aos produtores nacionais e por meio dela comerciali-zam no caso de inadimplemento Eacute a figura conhecida como ldquowash outrdquo termo derivado da liacutengua inglesa que significa ldquodesgastarrdquo

Salienta-se sua novidade no ordenamento juriacutedico interno fato que impossibilita maiores pesquisas e embasamento teoacutericos a seu respeito Primeiramente analisou-se o ordenamento da Aus-traacutelia paiacutes que possui o GTA (About Grain Trade Australia 2014) que significa Comeacutercio de Gratildeos da Austraacutelia o qual aleacutem de ou-tras funccedilotildees desempenha a arbitragem como forma de lidar com os conflitos derivados dos contratos agriacutecolas

O regramento estabelecido pelo GTA natildeo define o ldquowash outrdquo que usualmente eacute utilizado pelas induacutestrias nos casos de exe-cuccedilatildeo contratual em que uma das partes natildeo consegue adimplir suas obrigaccedilotildees Em natildeo havendo um acordo entre as partes no tocante ao valor do ldquowash outrdquo as induacutestrias podem socorrer do Serviccedilo de Resoluccedilatildeo de Disputas (Idem)

O ldquowash outrdquo em sua grande maioria implica o paga-mento de uma parte para outra havendo manifestaccedilatildeo de vontade de ambas Desse modo qualquer das partes entrevendo que natildeo conseguiraacute executar sua obrigaccedilatildeo pode utilizar-se do instituto em comento ateacute mesmo como forma de se resguardar quanto agraves osci-laccedilotildees de mercado (GTA 2011)

Nos casos de quebra de safra ou eminente quebra de safra os vendedores podem escolher pelo ldquowash outrdquo ou buscar gratildeos em substituiccedilatildeo no mercado Dessa forma o ldquowash outrdquo seraacute cal-culado pela diferenccedila entre o preccedilo fixado no contrato e o seu valor no comeacutercio no momento em que for estipulado podendo a ele agregar alguns outros encargos administrativos (Idem)

No Brasil o tema em comento ganhou outra roupagem Via de regra vem embutida nos contratos de compra e venda Pode tambeacutem ser objeto de um contrato autocircnomo habitualmente chamado de ldquoacordo de wash outrdquo Ambos satildeo constituiacutedos de ma-

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neira unilateral pelas tradings Assim como na Austraacutelia o ldquowash out brasileirordquo tem por

escopo a indenizaccedilatildeo sobre a valorizaccedilatildeo das commodities no mer-cado ou seja a diferenccedila entre o preccedilo no momento da celebra-ccedilatildeo do contrato e no instante em que o mesmo for descumprido e aquele comprador tiver que procurar no mercado do dia o produto que deseja

Isso se daacute quando os contratos agriacutecolas de compra e ven-da desses produtos satildeo ratificados meses antes da sua execuccedilatildeo A tiacutetulo de exemplo se o negoacutecio juriacutedico tiver por objeto a safra de soja eacute celebrado no dia em que o custo da saca de soja eacute de R$ 6000 (sessenta reais) o contrato teraacute por base esse valor poreacutem a execuccedilatildeo do contrato se daraacute alguns meses apoacutes Se na data apra-zada o contrato natildeo for cumprido e o valor da soja agrave eacutepoca for de R$ 7000 (setenta reais) o ldquowash outrdquo consistiraacute em R$ 1000 (dez reais) de diferenccedila por cada saca de soja

Poreacutem no ordenamento juriacutedico brasileiro o ldquowash outrdquo possui diferentes caracteriacutesticas Conforme anteriormente dito em territoacuterio nacional ele natildeo eacute estipulado conforme a vontade dos contratantes e sim de acordo com a conveniecircncia das tradings Ou-tro atributo se daacute ao fato de nos contratos originaacuterios envolvendo aquisiccedilatildeo de commodities ter presente alguma claacuteusula estipulando indenizaccedilotildees no caso de descumprimento da obrigaccedilatildeo ateacute mesmo porque no sistema paacutetrio vigente haacute mecanismo para tais casos Desse modo estabelecer o ldquowash outrdquo seria aplicar duplamente a penalizaccedilatildeo em virtude do inadimplemento

A propriedade que atinge diretamente o agricultor eacute o va-lor fixado a tiacutetulo de ldquowash outrdquo Ao inveacutes de seguir os paracircmetros convencionais do referido instituto estrangeiro e de o quantum ser aferido em razatildeo da diferenccedila existente entre o preccedilo da commodi-ty no momento da contrataccedilatildeo e no instante da inadimplecircncia no Brasil esse valor jaacute vem previamente ajustado de forma unilateral pelas tradings

Na grande maioria das vezes o custo do ldquowash outrdquo eacute tatildeo excessivo que pode atingir a integralidade do valor objeto do

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contrato Evidentemente natildeo se eacute averiguada a diferenccedila a qual o ldquowash outrdquo propotildee

Conceitualmente ldquowash outrdquo eacute uma claacuteusula existente nos contratos agraacuterios que estipulam uma indenizaccedilatildeo excessivamente onerosa para o contraente que natildeo cumprir suas obrigaccedilotildees in-denizaccedilatildeo essa que teoricamente consiste na diferenccedila valorativa das commodities existentes entre o dia da ratificaccedilatildeo do contrato e o da inadimplecircncia por conta de oscilaccedilotildees do mercado Eacute justa-mente nesse contexto que aleacutem de ferir uma seacuterie de normativas paacutetrias fere frontalmente os princiacutepios aqui em vigor dentre os quais alguns seratildeo adiante ponderados

Princiacutepios aplicaacuteveis ao ldquowash outrdquo

Ao adentrar o ordenamento paacutetrio o ldquowash outrdquo deveraacute obedecer aos princiacutepios aqui vigentes dentre eles os infratranscri-tos Como marca inicial tem-se a boa-feacute como sendo o princiacutepio fundamental das relaccedilotildees entre os seres humanos inclusive nas mediaccedilotildees contratuais

Para Vilaccedila (1995 p 98)

O princiacutepio da boa-feacute deve ser antes de tudo men-cionado pois ele assegura o acolhimento do que eacute liacutecito e a repulsa ao iliacutecito A contrataccedilatildeo de boa-feacute eacute a essecircncia do proacuteprio en-tendimento entre os homens e a presenccedila da eacutetica nos contratos Sim porque a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da boa-feacute traz para a ordem juriacutedica um elemento de Direito Natural que passa a integrar a norma de direito

Tal vetor permeia o ordenamento juriacutedico por inteiro Eacute interessante destacar o que o Coacutedigo Civil Portuguecircs assevera so-bre o assunto

Artigo 227(Culpa na formaccedilatildeo dos contratos)Quem negocia com outrem para conclusatildeo de um

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contrato deve tanto nos preliminares como na for-maccedilatildeo dele proceder segundo as regras da boa feacute sob pena de responder pelos danos que culposamen-te causar agrave outra parte (Portugal Lei 822014)

Nota-se que ao estipular o ldquowash outrdquo nos contratos haacute uma afronta direta ao princiacutepio em voga pois o contratante ao estipular a tal claacuteusula ao menos pode aferir se de fato haveraacute um efetivo dano na data aprazada

Por atuar como uma espeacutecie de indenizaccedilatildeo aos danos fu-turos e constituir uma claacuteusula com valor excessivo o ldquowash outrdquo evidentemente viola o princiacutepio da boa feacute O princiacutepio de liberda-de contratual se presta a defender aquela parte que nas relaccedilotildees contratuais natildeo possui livre-arbiacutetrio para dispor sobre seus inte-resses ficando atrelada agrave vontade da parte adversa

Isso ocorre por haver na relaccedilatildeo contratual uma parte mais vulneraacutevel que a outra a qual acaba por aceitar as imposiccedilotildees para natildeo perder o negoacutecio No caso em voga pelo fato de os produtores de commodities serem a parte mais fraca pois dependem direta-mente das atividades das tradings para exportaccedilatildeo surge um qua-se dever em aceitar os termos contratualmente ordenados Com isso lesotildees satildeo ocasionadas

Nesta senda Vilaccedila (1995 ano p 99-100) preceitua

Realizado o pacto sob essa pressatildeo a lesatildeo ocorre sendo difiacutecil e custosa a reparaccedilatildeo para repor certos valores destruiacutedos Se dermos forccedila demais agrave liberdade contratual fi-cando o homem livre na sociedade sem condiccedilotildees de discutir razoavelmente sobre suas convenccedilotildees seraacute ele o mesmo que um paacutessaro libertado de um a gaiola ao faacutecil alcance de um gaviatildeo pronto para atacaacute-lo Pouco duraria a liberdade daquele

Deste modo embora haja liberdade nos contratos certas limitaccedilotildees devem ser imanentes ao princiacutepio em comento em res-peito agrave sistemaacutetica do direito

Outro ponto que merece destaque eacute o princiacutepio da funccedilatildeo

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social dos contratos bem esclarecido por Vilaccedila (2011 p 100)

Por esse princiacutepio os contratos desempenham um relevante papel na sociedade nacional e internacio-nalmente considerada Pelos contratos os homens devem compreender-se e se respeitar para que encontrem um meio de enten-dimento e de negociaccedilatildeo sadia de seus interesses e natildeo um meio de opressatildeo

Assim sendo a real funccedilatildeo desempenhada pelo contrato de compra e venda entre produtores e tradings consiste no justo preccedilo da aquisiccedilatildeo das commodities e a entrega da mercadoria con-forme o convencionado pautando-se pela boa-feacute Menccedilotildees contra-tuais que contrariem esse postulado certamente causaratildeo danos a algumas das partes

Pela comutatividade princiacutepio imanente ao direito tem-se que as prestaccedilotildees e contraprestaccedilotildees devem ser equilibradas sendo impostas aos contratantes para terem ciecircncia desde o iniacutecio do negoacutecio juriacutedico de seus lucros e perdas

Um dos principais postulados estaacute estampado no princiacute-pio Rebus sic stantibus que pode ser traduzido pela expressatildeo ldquoas coisas estatildeo assimrdquo No direito moderno eacute conhecido como teoria da imprevisatildeo tendo por escopo relativizar o princiacutepio do pacta sunt servanda em relaccedilatildeo aos fatos que se alterarem notadamente no transcorrer do contrato

Para tanto nos moldes de Vilaccedila (2011 p 101-102)

Todavia essa claacuteusula considerada pela Doutrina e pela Jurisprudecircncia brasileiras como existente em todos os contratos ainda que natildeo expressamente contratada apresenta-se com trecircs pressupostos fun-damentais autorizadores de sua aplicaccedilatildeoDeve ocorrer primeiramente uma alteraccedilatildeo radical do contrato em razatildeo de circunstacircncias imprevistas e imprevisiacuteveis (aacutelea extraordinaacuteria) []Por outro lado eacute preciso que exista enriquecimento prejuiacutezo inesperado e injusto por um dos contratan-tes

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O terceiro pressuposto eacute a onerosidade excessiva que sofre um dos contratantes tornando-se para ele insuportaacutevel a execuccedilatildeo contratual Com o visto torna-se impossiacutevel a aplicaccedilatildeo da claacuteu-sula ldquorebus sic stantibusrdquo ante a natildeo-ocorrecircncia de um desses trecircs pressupostos

Diante do ldquowash outrdquo eacute evidente que por se tratar de pro-duto agriacutecola depende diretamente de vaacuterios fatores naturais os quais o ser humano natildeo pode influir os riscos da atividade satildeo maiores podendo ocorrer uma modificaccedilatildeo ao longo da vigecircncia contratual que impossibilita o cumprimento do mesmo Entra em cena o princiacutepio supracitado por nortear o operador do direito

Por fim destaca-se o princiacutepio da onerosidade excessiva no qual um dos contratantes estipula uma obrigaccedilatildeo exagerada ao outro

Aplicando-se ao ldquowash outrdquo os produtores ao negocia-rem com as tradings ou ateacute mesmo com outras empresas ficam res-ponsabilizados por no caso de inadimplecircncia ainda que parcial a indenizar uma grandiosa quantia monetaacuteria Tal fato causa seacuterias lesotildees aos produtores que natildeo possuem condiccedilotildees de arcar com esta claacuteusula abusiva

Vilaccedila (2011 p103) sabiamente leciona

Ao Direito repugna a atuaccedilatildeo iliacutecita e mesmo o en-riquecimento indevido pois a lesatildeo estaacute presente neles O fenocircmeno da lesatildeo no direito contratual moder-no deve ser encarado objetivamente Causado o prejuiacutezo ocorrendo o desequiliacutebrio nas prestaccedilotildees deve ser o reestabelecimento da igualdade entre os contratantes Isto porque o agravamento unilateral da prestaccedilatildeo de uma das partes contratantes torna excessivamente onerosa sua obrigaccedilatildeo e via de con-sequecircncia insuportaacutevel o cumprimento desta

Desse modo sendo o ldquowash outrdquo onerosamente excessivo acaba por violar natildeo soacute o princiacutepio em voga como todos os ante-

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riormente aduzidos

Implicaccedilotildees do ldquowash outrdquo no direito paacutetrio

Por ter adentrado o direito brasileiro o ldquowash outrdquo deve ser guiado pelos preceitos estatuiacutedos na Magna Carta e legislaccedilotildees infraconstitucionais

E ainda que a Secretaria de Comeacutercio Exterior tenha pu-blicado a Portaria nordm 15 de 17 de novembro de 2004 disciplinando alguns pontos no tocante ao ldquowash outrdquo natildeo houve eficaacutecia e apro-veitamento algum para o ordenamento juriacutedico brasileiro embora pudesse ser uacutetil uma vez que preleciona o seguinte

O SECRETAacuteRIO DE COMEacuteRCIO EXTERIOR DO MINISTEacuteRIO DO DESENVOLVIMENTO INDUacuteS-TRIA E COMEacuteRCIO EXTERIOR no exerciacutecio de suas atribuiccedilotildees com fundamento no art 15 do Ane-xo I ao Decreto nordm 4632 de 21 de marccedilo de 2003 vi-sando consolidar as disposiccedilotildees regulamentares das operaccedilotildees de exportaccedilatildeo resolvesect 8ordm Poderatildeo ser acolhidos pedidos de operaccedilotildees de recompra (wash out) desde que atendam aos seguin-tes requisitos preliminaresI - ganho cambial (preccediloprecircmio da recompra obri-gatoriamente inferior ao da venda) em cada RV a ser definido de acordo com as condiccedilotildees de mercado na eacutepoca do pedido de recompraII - ser submetido a exame na data de sua negocia-ccedilatildeo acompanhado de documentaccedilatildeo pertinenteIII - a empresa deveraacute comprovar o efetivo ingres-so das divisas no prazo de dez dias uacuteteis contados a partir da data da negociaccedilatildeo mediante apresentaccedilatildeo do contrato de cacircmbio relativo agrave operaccedilatildeo de recom-pra devidamente liquidado (BRASIL 2004)

Depreende-se da assertiva acima que foram estabelecidos alguns criteacuterios miacutenimos para aplicaccedilatildeo do ldquowash outrdquo elementos esses que poderiam servir de paracircmetros para delinear os contra-tos uma vez que traz preceitos importantes inclusive de acordo com o inciso I ao prever o pagamento do valor agrave eacutepoca da recom-pra

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Haacute tambeacutem o informe da Associaccedilatildeo de Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (APROSOJA) que conceitua o tema em voga

22 Claacuteusula de indenizaccedilatildeo (wash-out) Essa claacuteu-sula normalmente prevecirc a obrigaccedilatildeo de que aquele que der causa agrave rescisatildeo do contrato deve pagar agrave outra o valor do produto adquirido no dia da liqui-daccedilatildeo do contrato (no dia da entrega do produto) e normalmente possui a seguinte descriccedilatildeo a ser ve-rificada contrato por contrato ldquo[] sobre o produto natildeo entregue o produtor deveraacute arcar com perdas e danos que fica estipulada em 100 do preccedilo do pro-duto comercializado ao preccedilo do produto na data de entrega []rdquo (2016 p 3)

Contudo natildeo se mostra suficiente a conceituaccedilatildeo acima aleacutem de deixar em completo desequiliacutebrio as partes contratantes ao previamente fixar multa de 100 sobre o descumprimento con-tratual

O ordenamento juriacutedico brasileiro possui todas as ferra-mentas necessaacuterias para que a parte que descumprir o contrato arque com os prejuiacutezos causados Sendo assim o ldquowash outrdquo tal qual estaacute sendo aplicado no Brasil natildeo possui embasamento legal por desrespeitar aleacutem dos princiacutepios supramencionados as regras do Coacutedigo Civil Estando previsto em uma claacuteusula resta configu-rada sua abusividade sustentada pela onerosidade excessiva de que se reveste correspondendo a uma consideraacutevel porcentagem do valor da obrigaccedilatildeo originaacuteria

Considerando um negoacutecio juriacutedico o ldquowash outrdquo pode ser analisado sob a tricotomia deste No plano da existecircncia de fato os requisitos estatildeo preenchidos Na validade a manifestaccedilatildeo da vontade deve ser livre e como discorrido anteriormente pode ocorrer de o ldquowash outrdquo ser uma claacuteusula praticamente imposta para celebraccedilatildeo do acordo Nesse caso viciado estaria conduzindo agrave nulidade da claacuteusula

Atinente agrave eficaacutecia certamente o ldquowash outrdquo poderaacute surtir efeitos juriacutedicos Neste contexto se insere o papel acadecircmico vi-

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sando auxiliar a jurisprudecircncia na dinacircmica do tema por ser um assunto novo e complexo Como exemplo cito o Acoacuterdatildeo 1268606-7 do estado do Paranaacute no qual a douta Relatora entendeu pela legalidade da claacuteusula ldquowash outrdquo por natildeo julgaacute-la abusiva (BRA-SIL Acoacuterdatildeo na Apelaccedilatildeo 1268606-7)

Nesta senda papel de destaque possuem os trabalhos aca-decircmicos por fomentar o assunto e auxiliar os operadores do di-reito na compreensatildeo do tema em comento e por mais intrincado que seja necessaacuteria eacute essa construccedilatildeo pela real tendecircncia do ldquowash outrdquo ser mais utilizado acarretando disputas judiciais sobre sua incidecircncia

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Por ser algo novo no cenaacuterio brasileiro a escassez de ma-terial foi um grande obstaacuteculo na elaboraccedilatildeo do presente trabalho que se fundou basicamente em publicaccedilotildees dos primeiros advoga-dos a terem contato com o tema em anaacutelise

Enfatizaram-se os papeacuteis das tradings nesse contexto res-saltando-se as forccedilas de tais empresas nas relaccedilotildees comerciais e a influecircncia que as mesmas possuem ao estipular os termos contra-tuais nos quais os produtores acabam ratificando para natildeo perder o negoacutecio

Eacute justamente nesse contrato que se insere o ldquowash outrdquo uma claacuteusula que originariamente visa restituir a valorizaccedilatildeo da commodity entre o periacuteodo em que foi estabelecido o contrato e o momento em que o mesmo foi inadimplido Meses se passam en-tre esses fatos e havendo aumento de preccedilo das commodities eacute o ldquowash outrdquo que iraacute restauraacute-lo

No Brasil foram dados agrave referida claacuteusula contornos di-versos dos originalmente estabelecidos nos paiacuteses estrangeiros conforme o acima exposto Aqui o ldquowash outrdquo eacute uma claacuteusula por vezes abusiva que visa agrave reparaccedilatildeo de possiacutevel dano na maioria das vezes alcanccedilando valores exorbitantes

Reiterada estaacute se tornando tal praacutetica que eacute questatildeo de

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tempo ateacute chegar ao judiciaacuterio oacutergatildeo que deveraacute ter embasamento teoacuterico para realizar um julgamento de forma equacircnime visando compreender um instituto que natildeo eacute de faacutecil assimilaccedilatildeo aleacutem de afrontar princiacutepios e normas do direito interno

Postulados como boa-feacute liberdade contratual funccedilatildeo so-cial do contrato comutatividade rebus sic stantibus e onerosidade excessiva devem ser considerados quando o assunto eacute ldquowash outrdquo A depender do contexto em que eacute inserido e da sua quantificaccedilatildeo monetaacuteria poderaacute afrontar diretamente os princiacutepios supracita-dos

Aparentemente o ldquowash outrdquo como vem sendo posto possui linhas de ilegalidade justamente por ferir regras e princiacute-pios vigentes no ordenamento juriacutedico nacional Visto sobre o pla-no tricotocircmico dos negoacutecios juriacutedicos tambeacutem seraacute necessaacuterio um estudo casuiacutestico no tocante agrave validade e eficaacutecia

Nos moldes como foi introduzido no Brasil o ldquowash outrdquo eacute uma penalidade em repeticcedilatildeo por jaacute existirem no ordenamento paacutetrio mecanismos aptos a penalizar quem descumprir o contrato O ldquowash outrdquo teve sua forma originaacuteria totalmente desviada e por assim ser natildeo foi adaptado e inserido como uma ferramenta eficaz

Eacute importante dizer que por ser uma novidade estrangeira o ldquowash outrdquo pode ser adaptado ao direito paacutetrio obedecendo ao ordenamento aqui instituiacutedo ponderaccedilatildeo essa que seraacute realizada pelo poder judiciaacuterio o qual recorreraacute dos estudos acadecircmicos e doutrinaacuterios para o julgamento das lides

Destarte registra-se que o assunto em voga merece fo-mento e destaque por ser atual e de grande importacircncia para o sistema juriacutedico

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A FRONTEIRA JURIacuteDICO-POLIacuteTICA ENTRE OS SISTEMAS JURIacuteDICOS DA COMMON LAW E DA CIVIL LAW E SEUS IM-PACTOS NO DIREITO PAacuteTRIO

Ana Paula Soares de Souza1

Danilo Pires Atala2

RESUMO Este trabalho tem como objetivo apresentar as peculiaridades existentes entre os sistemas juriacutedicos da Common Law e da Civil Law com enfoque respectivamente nos ordenamentos juriacutedicos norte-americano e francecircs na perspectiva de Garapon e de outros estudiosos do direito E visa principalmente realccedilar as influecircncias que tais sistemas juriacutedicos realizaram no direito paacutetrio por meio de comparaccedilotildees mostrando que o direito brasileiro atual possui um sistema misto Para esse fim estruturou-se o trabalho em trecircs momentos distintos primeiramente fez-se uma abordagem geral apontando caracteriacutesticas que o Brasil positivou do Common Law para seu ordenamento juriacutedico Apoacutes demonstrou-se como o contexto histoacuterico influenciou sobremaneira a adoccedilatildeo deste ou daquele sistema juriacutedico E por fim explanou-se que a globalizaccedilatildeo e a tecnologia foram transformando o sistema juriacutedico brasileiro outrora extremamente arraigado na cultura Civil Law em um sistema juriacutedico misto que ora utiliza-se apenas da lei ora utiliza-se de um precedente para analisar um caso concreto

PALAVRAS-CHAVE Civil Law Common Law Sistema juriacutedico brasileiro

ABSTRACT This paper aims to present the peculiarities existing between the legal system of Common Law and Civil Law with a focus respectively on the North American and French legal systems from the perspective of Garapon and other scholars of

1 Acadecircmica do 8ordm periacuteodo do Curso de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT2 Professor Doutor do Departamento de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT

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law And purpose to highlight the influence of such legal systems on brasilian through comparisons showing that current brazilian legal system has a mixed system To this end the present work was structured in three distinct moments first a general approach was made pointing out characteristics that Brazil positived from Common Law to its legal order Afterwards it was demonstrated how the historical context greatly influenced the adoption of this or that legal system And finally it was explained that globalization and technology were transforming the Brazilian legal system once deeply rooted in a Civil Law culture to a mixed legal system that now uses only the law or a precedent is used to analyze a concrete case

KEYWORDS Civil Law Common Law Brazilian legal system

INTRODUCcedilAtildeO

O presente artigo tem por objeto caracterizar a diferenccedila entre os sistemas juriacutedicos Common Law e Civil Law tendo como fronteira juriacutedico-poliacutetica a Europa Continental a Inglaterra e os Estados Unidos da Ameacuterica Emprega-se o meacutetodo juriacutedico des-critivo que permite a decomposiccedilatildeo do problema em diferentes niacuteveiselementos e estabelece as interligaccedilotildees entre os mesmos para analisar e responder ao problema proposto

O sistema juriacutedico nacional embora seja tradicionalmen-te legislado aos poucos vai incorporando teorias e institutos do sistema da Common Law como por exemplo a suacutemula vinculante introduzida pela Emenda Constitucional 0452004 que acresceu o art 103-A Ainda tem-se os exemplos do que se convencionou chamar de direito jurisprudencial nos artigos 489 V-VI e 947 e 976 do Coacutedigo de Processo Civil de 2015 principalmente no art 926 que estabelece o dever dos tribunais de manter a jurisprudecircncia integra estaacutevel e coerente em evidente agasalhamento da Teoria do Direito com Integridade de Ronald Dworkin (1999) Ainda neste sentido destaca-se que no Brasil o reconhecimento da uniatildeo ho-moafetiva decorreu da construccedilatildeo ou criaccedilatildeo jurisprudencial no julgado do STF na ADI nordm 4277 e ADPF nordm 132 Assim entender as

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distinccedilotildees e as caracteriacutesticas destes dois sistemas proporcionaraacute uma melhor compreensatildeo do proacuteprio direito nacional

Breves apontamentos acerca dos Sistemas Juriacutedicos Common Law e Civil Law

O Sistema Civil Law tambeacutem usualmente apelidado de ldquoromano-germacircnicordquo diz respeito aos paiacuteses que cunharam a ciecircn-cia do direito tendo como base o direito romano cujo nascedouro se deu na Europa Nos dizeres de David (2002) os primoacuterdios do sistema Civil Law remontam aos seacuteculos XII e XIII Historicamente esse periacuteodo corresponde agrave fase em que as cidades e o comeacutercio comeccedilaram a se expandir fato que intensificou na sociedade da eacutepoca o ideal de que somente o direito pode assegurar a ordem e a segu-ranccedila necessaacuterias ao progresso (DAVID idem p 39) Com este vieacutes Medeiros (2009) diz que o ideal de uma sociedade cristatilde fundada na caridade eacute abandonado o que produz uma ruptura entre o di-reito e a religiatildeo tornando-se o direito autocircnomo

Aponta Cretella (1986) como jaacute foi dito na Roma Antiga que o direito passou a se constituir extraindo o preceito juriacutedico dos casos concretos cotidianos identificando sua classificaccedilatildeo e em seguida aplicando-se a novos casos Por isso muitos doutri-nadores apontam que o Estado Romano foi fundamental para a histoacuteria do direito constituindo-se em um divisor de aacuteguas nos processos de formaccedilatildeo dos sistemas de Civil Law e Common Law

A partir do momento em que a academia passou a se uti-lizar de textos romanos acabou por incorporar o conteuacutedo termi-noloacutegico e conceitual bem como a teacutecnica proacutepria de raciociacutenio juriacutedico para o desenvolvimento das regras juriacutedicas Tal entendi-mento juriacutedico se caracteriza mormente pelo fato de suas regras de direito serem concebidas como regras de conduta

Segundo Bobbio (1995 p 64-65) em seu livro O Positivis-mo Juriacutedico

[] a exigecircncia da codificaccedilatildeo nasceu de uma con-cepccedilatildeo francamente iluminista como demonstra

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o mote sapere aude citado por Thibaut tambeacutem na Franccedila (e na verdade com maior razatildeo visto ser este paiacutes a paacutetria maior do iluminismo) a ideacuteia de co-dificaccedilatildeo eacute fruto da cultura racionalista e se aiacute pocircde se tornar realidade eacute precisamente porque as ideacuteias iluministas se encarnaram em forccedilas histoacuterico-poliacuteti-cas dando lugar agrave Revoluccedilatildeo Francesardquo Eacute de fato propriamente durante o desenrolar da Revoluccedilatildeo Francesa (entre 1790 e 1800) que a ideacuteia de codificar o direito adquire consistecircncia poliacutetica

Diversos acontecimentos na Franccedila no seacuteculo XIX como a uniatildeo do monarca e da nobreza abusos excessivos de privileacutegios dos nobres do clero e tambeacutem dos magistrados conforme Sam-paio (2001) resultaram na Revoluccedilatildeo Francesa que foi o grande marco histoacuterico responsaacutevel pela consolidaccedilatildeo de um novo mode-lo juriacutedico riacutegido pois os revolucionaacuterios desse momento enxerga-ram a necessidade de conter a atuaccedilatildeo judicial que nos dizeres de Marinoni (2009 p 46)

[] para a Revoluccedilatildeo francesa a lei seria indispen-saacutevel para a realizaccedilatildeo da liberdade e da igualdade Por este motivo entendeu-se que a certeza juriacutedica seria indispensaacutevel diante das decisotildees judiciais uma vez que caso os juiacutezes pudessem produzir deci-sotildees destoantes da lei os propoacutesitos revolucionaacuterios estariam perdidos ou seriam inalcanccedilaacuteveis A cer-teza do direito estaria na impossibilidade de o juiz interpretar a lei ou melhor dizendo na proacutepria lei Lembre-se que com a revoluccedilatildeo francesa o poder foi transferido ao parlamento que natildeo podia confiar no judiciaacuterio

Do mesmo modo para Wambier (2010) a lei nesse pe-riacuteodo passou a ter o papel fundamental de representar um ideal de igualdade impossibilitando qualquer forma de interpretaccedilatildeo devendo nesse contexto histoacuterico ao magistrado restringir sua decisatildeo ao texto legal A concepccedilatildeo de igualdade no Civil Law era associada agrave rigorosa aplicaccedilatildeo da lei o que deu origem a um in-tenso processo de codificaccedilatildeo do direito cabendo ao juiz a funccedilatildeo

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de apenas aplicar as leis positivadas garantindo deste modo uma igualdade meramente formal

Assim aleacutem de restringir a aplicaccedilatildeo do direito pelo ma-gistrado fez com que o direito se transfigurasse na mera aplicaccedilatildeo do positivismo legislativo sem nenhuma anaacutelise das peculiarida-des do caso concreto Conforme Grossi (2006) todo o direito da eacutepoca iniciando-se com o direito civil foi aprisionado em milhares de artigos organicamente sistematizados e contidos em alguns li-vros chamados ldquocoacutedigosrdquo

Marinoni (2010) de forma brilhante aponta que natildeo eacute o fato de se ter coacutedigos ou natildeo que determina o modelo juriacutedico ado-tado a distinccedilatildeo eacute feita sobretudo a partir da concepccedilatildeo de coacutedigo que cada indiviacuteduo possui Na sua concepccedilatildeo no Common Law os coacutedigos natildeo pretendem coibir a interpretaccedilatildeo da lei razatildeo pela qual se houver um conflito entre uma lei codificada e uma empre-gada pela Common Law ficaraacute ao encargo do juiz interpretar qual das duas deveraacute ser aplicada

Dentre os vaacuterios paiacuteses que adotaram tal sistema cita-se o Brasil que por ter sido colocircnia de Portugal e nele predominar o sis-tema romano-germacircnico teve no nascedouro da ciecircncia do direito uma geraccedilatildeo de legisladores e juristas que procuravam codificar para deste modo reformular comportamentos Vejamos

[] em face de sua tradiccedilatildeo romanista o Direito Bra-sileiro tambeacutem eacute marcado pela sistematizaccedilatildeo e pela codificaccedilatildeo bem como por fazer uso de institutos originados no Direito Romano e revistados pelos doutrinadores da Europa Continental poacutes Idade Meacutedia [] O ensino do Direito no Brasil somente se iniciou em 1827 entretanto por conta da presenccedila dos jesuiacutetas e com a ida de jovens a Portugal para se tornarem bachareacuteis os estudos da Universidade de Coimbra acabaram cruzando o Atlacircntico ainda na eacutepoca colonial (SANTOS 2010 p 25)

A tiacutetulo de exemplo o Coacutedigo Civil de 1916 se encontra abarrotado de institutos oriundos do Direito Portuguecircs que por sua vez tem suas raiacutezes juriacutedicas provenientes do Direito Romano

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Em contraponto tem-se o sistema Common Law que tem suas raiacutezes nas estruturas judiciaacuterias da Inglaterra Paiacutes de Gales Irlanda do Norte e Escoacutecia e que embora tenham particularidades em razatildeo de vicissitudes histoacutericas todas elas satildeo baseadas no di-reito casuiacutestico ou case law segundo Oliveira (apud TUCCI 2010)

Diferentemente do sistema Civil Law que se deu precipu-amente mediante fases histoacutericas o sistema Common Law se deu de maneira ininterrupta baseado no cotidiano da sociedade ingle-sa ou seja ele foi se transformando no decorrer das relaccedilotildees esta-belecidas

Nas palavras de Wambier (2009 p 54)

O common law natildeo foi sempre como eacute hoje mas a sua principal caracteriacutestica sempre esteve presente casos concretos satildeo considerados fonte do direito O direito inglecircs berccedilo de todos os sistemas de common law nasceu e se desenvolveu de um modo que pode ser qualificado como ldquonaturalrdquo os casos iam sur-gindo iam sendo decididos Quando surgiam casos iguais ou semelhantes a decisatildeo tomada antes era repetida para o novo caso Mais ou menos como se dava no direito romano

Denota-se pelas palavras da autora que esse sistema juriacute-dico por ter dado mais autonomia aos juiacutezes permitiu-lhes que compusessem um sistema de precedentes para julgamento de ca-sos futuros e eacute dessa concepccedilatildeo de empregar julgamento de casos passados para vincular soluccedilotildees futuras que se extrai a concepccedilatildeo de precedente judicial

Jaacute o sistema do stare decisis se refere ao modo de opera-cionalizar o sistema da Common Law cominando certeza a essa praacutetica Eacute o denominado sistema de precedentes que nasceu tatildeo-somente no seacuteculo XVI Deste modo a teoria do stare decisis et non quieta movere que significa literalmente ldquomantenha-se a decisatildeo e natildeo mexa no que estaacute quietordquo (SABINO 2010 p 61) estaacute relacio-nada agrave ideia de que os juiacutezes estatildeo vinculados agraves decisotildees do pas-sado ou seja aos precedentes

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Entretanto Marinoni (2010) sabiamente explica que natildeo se deve confundir a doutrina de stare decisis com o proacuteprio sistema Common Law pois o Common Law foi desenvolvido pelos costumes gerais e como jaacute dito se desenvolveu no decorrer dos seacuteculos an-tes de surgir o stare decisis ou precedente vinculante Assim o stare decisis eacute tatildeo-somente um componente presente que se encontra in-cluso dentro do modelo juriacutedico baseado na Common Law

O realce da distinccedilatildeo entre stare decisis e Common Law natildeo obstante necessaacuterio para afastar uma banal confusatildeo centra-se na preocupaccedilatildeo deste trabalho em amparar o sistema de precedentes que pode constituir parte do sistema brasileiro Com efeito o sta-re decisis constitui apenas um elemento do moderno Common Law que tambeacutem natildeo se confunde com o Common Law de tempos remo-tos ou com os costumes gerais de natureza secular (MARINONI 2009)

Conforme Marinoni (Idem) o magistrado inglecircs teve fun-ccedilatildeo crucial na efetivaccedilatildeo do sistema juriacutedico Common Law pois nesse contexto histoacuterico o poder do juiz era o de afirmar o Common Law o qual se sobrepunha ao Legislativo que por isso deveria atuar de modo a complementaacute-lo Desta maneira na Inglaterra o juiz permaneceu ao lado do parlamento no combate agraves arbitrarie-dades empreendidas pelo monarca preocupando-se com a tutela dos direitos e das liberdades do cidadatildeo Por isso mesmo diferen-temente do que ocorreu na Revoluccedilatildeo Francesa natildeo houve justifi-cativa para desconfiar do Judiciaacuterio ou para desconfiar de que os juiacutezes se posicionariam em favor do rei ou do absolutismo

Nesta senda ao se referir que o juiz do Common Law cria o direito natildeo se estaacute fundamentalmente assegurando que a sua decisatildeo tem a mesma forccedila e qualidade do produto elaborado pelo Legislativo isto eacute da lei A decisatildeo neste contexto natildeo se equipara agrave lei pelo fato de ter forccedila obrigatoacuteria para os demais juiacutezes Poreacutem seria possiacutevel argumentar que a decisatildeo por ter forccedila obrigatoacuteria constitui direito

Para Marinoni (2009 p 190)

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O Common Law considera o precedente como fonte de direito Note-se contudo que quando um prece-dente interpreta a lei ou a Constituiccedilatildeo como acon-tece especialmente nos Estados Unidos haacute eviden-temente direito preexistente com forccedila normativa de modo que seria absurdo pensar que o juiz neste caso cria um direito novo

Assim como bem exposto por Marinoni (2009) o que per-mite assegurar que o juiz do Common Law cria o direito eacute a com-paraccedilatildeo do seu papel com a do juiz da tradiccedilatildeo do Civil Law cuja funccedilatildeo se atinha agrave mecacircnica aplicaccedilatildeo da lei No Civil Law quando se dizia que ao juiz cabia apenas expressar as palavras ditadas pelo legislador o direito era concebido exclusivamente como lei A ta-refa do Judiciaacuterio se resumia agrave aplicaccedilatildeo das normas gerais O juiz inglecircs natildeo apenas teve espaccedilo para densificar o Common Law como tambeacutem oportunidade de a partir dele controlar a legitimidade dos atos estatais

Para Villey (2009) em seu livro A Formaccedilatildeo do Pensamen-to Juriacutedico Moderno na formaccedilatildeo do Estado Moderno (fim da ida-de medieval e iniacutecio do iluminismo) existiu a luta pelo poder ou da legitimaccedilatildeo do poder Os ldquoDireitosrdquo existentes eram a) usos e costumes locais b) direito canocircnico (Igreja Catoacutelica) c) usos e costumes dos baacuterbarosgermacircnicos e) direito romana atraveacutes das compilaccedilotildees e gozadores da jurisprudecircncia romana

Nesse contexto o rei queria impor o seu poder atraveacutes de sua lei escrita baseado na teoria desenvolvida por Hobbes (2003) em Leviatatilde Os ingleses embora aceitassem o sistema monarca re-cusavam a lei do rei de impor seus usos e costumes com base na teoria criada por Locke (2002) em Segundo Tratado de Governo

Assim para Hobbes (Idem) naturalmente os homens natildeo satildeo justos piedosos bondosos mas ao contraacuterio os homens satildeo tendentes agrave parcialidade orgulho e vinganccedila Na realidade nes-sa condiccedilatildeo o homem estaacute em situaccedilatildeo de guerra de todos contra todos como dito em sua marcante frase o homem eacute lobo do homem Com esta ceacutelebre frase o filoacutesofo quer advertir que o Estado eacute um mal necessaacuterio ou seja o Estado sendo soberano faz com que os

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suacuteditos se submetam em absoluto ao soberano o detentor do po-der a fim de garantir seguranccedila e uma vida mais tranquila saltan-do da condiccedilatildeo de intranquilidade instabilidade e da constante e iminente medo da morte violenta que urge a todo o momento no estado de natureza

Assim para evitar que a sociedade se torne um caos e te-nha um fim traacutegico de todos contra todos faz-se necessaacuterio outor-gar o poder ao Estado de preferecircncia a um soacute homem o soberano Para Hobbes (2003) natildeo se deve pensar que a liberdade limitada seria uma condiccedilatildeo ruim pois nessa perspectiva seria muito me-lhor ter a liberdade diminuiacuteda pelo Estado do que regressar ao estado inicial o de guerra como jaacute dito de todos contra todos

Nos dizeres de Lopes (2012) o Estado enquanto titular de todos os poderes age buscando garantir a paz e todos os direitos baacutesicos dos cidadatildeos sem levar em consideraccedilatildeo qualquer base eacutetica e moral Hobbes nesse contexto observa que o contrato so-cial eacute a soluccedilatildeo para a superaccedilatildeo tanto da violecircncia como da inse-guranccedila coletiva existentes no estado de natureza e assim o Esta-do eacute a soluccedilatildeo agrave sobrevivecircncia do homem em sociedade

Desse modo o Estado obriga por seu poder soberano o cumprimento das leis civis que servem para dirigir as accedilotildees dos homens com o escopo de garantir a paz e a seguranccedila Assim para evitar que os homens voltem ao estado natural eacute imperioso um Estado civil com poder soberano capaz de obrigar os homens a cumprirem seus pactos mesmo que para tal se utilize da espada coerccedilatildeo do castigo ou da forccedila

Para Locke (2002) o ldquoestado de naturezardquo natildeo eacute caracte-rizado necessariamente por um ldquoestado de guerrardquo hobbesiano E embora concorde com a possibilidade de existecircncia de um ldquoestado de guerrardquo para o filoacutesofo o estado de guerra se daacute quando se usa a forccedila contra a pessoa de outrem e natildeo existe um superior comum a quem apelar

De acordo com o fundamento epistecircmico lockeano as ideias complexas de direito e dever pressupotildeem uma relaccedilatildeo con-sensual de caraacuteter empiacuterico-psicoloacutegico pela qual os indiviacuteduos

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criam normas ou regras que atribuem ao sujeito a faculdade cog-nitiva de fazer ou deixar de fazer determinadas coisas cabendo ao Estado garantir esse direito limitando-o atraveacutes do dever

Losurdo (apud SILVA 2011 p 126) vai dizer que

Os dois tratados sobre o governo podem ser consi-derados momentos essenciais da preparaccedilatildeo e con-sagraccedilatildeo ideoloacutegica desse acontecimento que marca o nascimento da Inglaterra liberal Estamos na pre-senccedila de textos perpassados pelo pathos da liberda-de pela condenaccedilatildeo do poder absoluto pelo apelo a se insurgir contra aqueles infelizes que quisessem privar o homem da sua liberdade e reduzi-lo agrave es-cravidatildeo Mas de vez em quando no acircmbito dessa celebraccedilatildeo da liberdade se abrem fendas assustado-ras pelas quais passa na realidade a legitimaccedilatildeo da escravidatildeo nas colocircnias

Para melhor compreender tais sistemas faz-se necessaacuterio mergulhar na histoacuteria de cada paiacutes e verificar como as experiecircn-cias cotidianas contribuiacuteram para um determinado paiacutes adotar de forma predominante este ou aquele sistema juriacutedico Mais do que isso eacute observar os rituais que satildeo utilizados e contrapocirc-los a outros utilizados

Nesse contexto eacute apropriado citar Garapon (1997) que em seu livro Bem Julgar de forma brilhante compara estrutura e expotildee como se organizam os sistemas judiciaacuterios dos Estados Uni-dos e Franccedila Vislumbra-se que Garapon busca demonstrar de que modo a sociedade e sua cultura afetam o modus operandi do Direito e por consequecircncia a adoccedilatildeo do sistema Civil Law ou do Common Law Em uma das passagens de seu livro o autor cita que nos Es-tados Unidos o juiz se comporta como aacuterbitro enquanto na Franccedila como um padre ou seja aquele garante as regras do jogo enquanto este eacute o ator da cerimocircnia

A principal caracteriacutestica deste sistema juriacutedico eacute a codifi-caccedilatildeo Segundo as precisas observaccedilotildees de Garapon e Papapoulus (2008 p 33)

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Nos sistemas de direito romano-germacircnico a lei eacute a fonte primaacuteria do direito A codificaccedilatildeo aumenta consideravelmente a forccedila da lei hierarquizando as suas disposiccedilotildees e as reagrupando em um conjun-to exaustivo e coerente em suma racional A co-dificaccedilatildeo eacute certamente a teacutecnica mais caracteriacutestica dos direitos da famiacutelia romanista Longe de ser uma simples coletacircnea de regras o coacutedigo eacute um edifiacutecio legislativo que pretende ser o espelho de uma polis harmoniosa Ele deve fornecer ao cidadatildeo um mate-rial legiacutevel ao qual seja sempre possiacutevel referir-se e ser para o juiz um guia precioso para perceber atraveacutes da disposiccedilatildeo dos princiacutepios e da classifica-ccedilatildeo das regras a intenccedilatildeo legisladora Aliaacutes somente a lei constitui o direito do qual os juiacutezes satildeo apenas os porta-vozes

Jaacute a formaccedilatildeo da Common Law deriva dos antigos costumes locais e nem as fases porvindouras que lhe afeiccediloaram o estilo que hoje ela possui foram capazes de modificar sua caracteriacutestica essencial Como na Common Law os statutory laws tecircm papel secun-daacuterio a basilar fonte do direito eacute o direito como posto pelo magis-trado no caso concreto O direito inglecircs foi intensamente caracteri-zado pela carecircncia durante o seu periacuteodo de formaccedilatildeo de poder legislativo real no seio do Parlamento e pelo poder das Cortes Re-ais de Justiccedila A Common Law designa a totalidade dessas regras suscetiacuteveis de serem subsumidas a partir de decisotildees particulares No fundamento da Common Law se encontra portanto a regra do precedente

Garapon (1997) ainda em seu livro Bem Julgar quis de-monstrar que nos Estados Unidos em que se prepondera o Com-mon Law o comportamento empregado pelo juiz eacute o comparado ao de um aacuterbitro visto que apenas intermedia o conflito existente entre as partes Diferentemente da Franccedila onde o magistrado com-porta-se como um padre ele seria a peccedila principal do julgamento ditando a forma como deveriam se comportar as partes Essa com-paraccedilatildeo metafoacuterica feita por Garapon (Idem) busca mostrar que os rituais utilizados no Judiciaacuterio nada mais satildeo do que a externali-zaccedilatildeo dos valores da repuacuteblica e da democracia de cada paiacutes e os

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representa na cena no espaccedilo no tempo nas vestimentas na lin-guagem nos papeacuteis assumidos pelos atores de modo a tornar efi-ciente a sua comunicaccedilatildeo natildeo racional A ecircnfase portanto eacute dada aos papeacuteis assumidos por quem dirige o ritual e pelos seus parti-cipantes buscando conhecer as relaccedilotildees estabelecidas entre eles

O que o direito brasileiro tem de legislado e o que tem da Common Law

Como jaacute explanado nos primoacuterdios de criaccedilatildeo do Direito brasileiro prevaleceu o sistema Civil Law todavia por ser o Direito uma ciecircncia dinacircmica e considerando a globalizaccedilatildeo hoje eacute plau-siacutevel asseverar que o Brasil possui um sistema misto com traccedilos caracteriacutesticos dos dois sistemas juriacutedicos

Vislumbra-se sobretudo que com o advento do Coacutedigo de Processo Civil de 2016 positivou-se de forma muito mais en-faacutetica o emprego dos precedentes judiciais que o anterior Obser-va-se por este paradoxo que por meio do Civil Law positivou-se a importacircncia do precedente judicial que eacute caracteriacutestica marcante do Common Law de caraacuteter vinculante no ordenamento juriacutedico brasileiro Vejamos

Art 985 Julgado o incidente a tese juriacutedica seraacute aplicadaI - a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idecircntica questatildeo de direito e que trami-tem na aacuterea de jurisdiccedilatildeo do respectivo tribunal in-clusive agravequeles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou regiatildeoII - aos casos futuros que versem idecircntica questatildeo de direito e que venham a tramitar no territoacuterio de com-petecircncia do tribunal salvo revisatildeo na forma do art 986sect 1o Natildeo observada a tese adotada no incidente ca-beraacute reclamaccedilatildeo

Denota-se pelo artigo supracitado que a tese juriacutedi-ca delineada vincularaacute os demais oacutergatildeos do Poder Judiciaacuterio sob

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pena de ajuizamento de reclamaccedilatildeo que nada mais eacute do que um remeacutedio constitucional empregado nos casos de julgamento em dissonacircncia com a tese jaacute firmada Denota-se ainda nitidamente uma valorizaccedilatildeo maior para a interpretaccedilatildeo judicial das normas positivas visando dar maior agilidade bem como impedir insegu-ranccedila juriacutedica existente no Coacutedigo Processual Civil de 1973

Ademais o advento da EC nordm 452004 trouxe ao ordenamento juriacutedico a ideia de o juiz ser um agente integrador entre o ordenamento juriacutedico e a justiccedila Todavia a ideia de uma interpretaccedilatildeo verticalizada do ordenamento juriacutedico natildeo pode ser absoluta sob pena de atividade judicante ficar condenada a uma vinculaccedilatildeo preacutevia

De fato havendo similaridade no caso concreto e precedente de caraacuteter vinculante deveraacute o juiz acompanhaacute-lo sob pena de desrespeitar o princiacutepio da igualdade todavia essa ativi-dade judicante monocraacutetica deve ser dotada de autonomia incum-bindo o juiz ao analisar o caso concreto deixar de aplicaacute-lo levan-do em conta fatores regionais situacionais que se tornaratildeo desse modo o caso singular e portanto tornando incabiacutevel a utilizaccedilatildeo do precedente vinculante

Na concepccedilatildeo de Schauer (2009) uma decisatildeo que siga os precedentes eacute melhor do que uma decisatildeo correta e que repetidamente eacute mais importante uma dada decisatildeo seguir os pre-cedentes do que ter as melhores consequecircncias

Em contraponto para Dworkin (1999) o direito seria um conceito interpretativo como a cortesia no exemplo imaginaacuterio ci-tado em seu livro O Impeacuterio do Direito Para ele caberia aos juiacutezes reconhecer o dever de continuar o desempenho da profissatildeo agrave qual aderiram em vez de rejeitaacute-la E os proacuteprios magistrados desen-volveriam em resposta as suas proacuteprias convicccedilotildees e tendecircncias teorias operacionais sobre a melhor interpretaccedilatildeo de suas respon-sabilidades nesse desempenho Nesta concepccedilatildeo a atividade inter-pretativa em grande parte seria a busca sobre a melhor interpreta-ccedilatildeo de algum aspecto pertinente ao exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo do caso concreto

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Dworkin (Idem p 110) exemplifica em que consiste a ati-vidade interpretativa do magistrado

Assim o destino de Eacutelmer vai depender das convic-ccedilotildees interpretativas do corpo de juiacutezes que julgaratildeo o caso Se um juiz acha que para alcanccedilar a melhor in-terpretaccedilatildeo daquilo que os juiacutezes geralmente fazem a propoacutesito da aplicaccedilatildeo de uma lei ele nunca deve levar em conta as intenccedilotildees dos legisladores poderaacute entatildeo tomar uma decisatildeo favoraacutevel a Eacutelmer Mas se ao contraacuterio acha que a melhor interpretaccedilatildeo exige que ele examine essas intenccedilotildees eacute provaacutevel que sua decisatildeo favoreccedila Goneril e Regan Se o caso Eacutelmer for apresentado a um juiz que ainda natildeo refletiu sobre a questatildeo da interpretaccedilatildeo ele deveraacute entatildeo fazecirc-lo e de ambos os lados encontraraacute advogados dispostos a ajudaacute-lo As interpretaccedilotildees lutam lado a lado com os litigantes diante do tribunal

Nesse conceito interpretativo o exerciacutecio do precedente na concepccedilatildeo de Dworkin natildeo poderia ser ignorado pelo juiz em sua interpretaccedilatildeo pois a atividade judicante incorpora aspectos de outras interpretaccedilotildees correntes na eacutepoca

Aleacutem disso para Dworkin (1999) os juiacutezes conjecturam sobre o direito no acircmbito da sociedade e natildeo fora dela o meio inte-lectual de modo geral assim como a linguagem comum que reflete e protege esse meio exerce restriccedilotildees praacuteticas sobre a idiossincra-sia e restriccedilotildees conceituais sobre a imaginaccedilatildeo

Todavia o proacuteprio autor critica o inevitaacutevel conservado-rismo do ensino juriacutedico formal ainda presente na academia e do processo de selecionar juristas para as tarefas judiciaacuterias e admi-nistrativas considerando a cultura juriacutedica existente O fato eacute que certas soluccedilotildees interpretativas incluindo pontos de vista sobre a natureza e a forccedila da legislaccedilatildeo e do precedente satildeo muito popula-res em determinada eacutepoca e sua popularidade ajudada pela ineacuter-cia intelectual normal estimula os juiacutezes a consideraacute-las estabele-cidas para todos os propoacutesitos praacuteticos Elas satildeo os paradigmas e quase-paradigmas de sua eacutepoca Mas ao mesmo tempo outras

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questotildees talvez igualmente fundamentais satildeo objeto de debates e controveacutersias

Assim na concepccedilatildeo de Dworkin (Idem) o precedente deve ser adotado como um princiacutepio e as teorias gerais do direito devem ser abstratas pois seu desiacutegnio eacute interpretar o ponto essen-cial e a estrutura da jurisdiccedilatildeo natildeo uma parte ou seccedilatildeo especiacutefica desta uacuteltima Para ele os filoacutesofos do direito discutem sobre o fun-damento interpretativo que qualquer argumento juriacutedico deve ter Desse modo o voto de qualquer juiz eacute em si uma peccedila de filosofia do direito mesmo quando a filosofia estaacute oculta e o argumento manifesto eacute dominado por citaccedilotildees e listas de fatos A doutrina eacute a parte geral da jurisdiccedilatildeo o proacutelogo silencioso de qualquer vere-dito

Percebe-se deste modo que se faz necessaacuterio partir do pressuposto de que nenhum caso eacute rigorosamente igual ao outro e por conta dessas peculiaridades faz-se necessaacuterio identificar as razotildees que fazem privilegiar as diferenccedilas ou semelhanccedilas de um caso Assim eacute necessaacuterio verificar a viabilidade da teacutecnica da dis-tinccedilatildeo que nada mais eacute do que observar a possibilidade da natildeo aplicaccedilatildeo de um precedente ao argumento racional e convincente pois o novo caso a ser julgado apresenta caracteriacutesticas especiais que exigem um tratamento diferenciado

Nesse contexto entra em accedilatildeo o distinguishing positivado por meio do art 489 e seguintes do Coacutedigo de Processo Civil (CPC) Esse termo teacutecnico para Didier Jr (apud LOURENCcedilO 2011) sig-nifica que o magistrado por meio de sua atividade judicante e de meacutetodos interpretativos do precedente invocado constata uma distinccedilatildeo entre o caso concreto em julgamento e o paradigma seja porque natildeo haacute coincidecircncia entre os fatos fundamentais debati-dos e aqueles que serviram de base a ratio decidendi (tese juriacutedica) constante do precedente seja porque a despeito de existir uma aproximaccedilatildeo entre eles determinada particularidade no caso em julgamento afasta a aplicaccedilatildeo do precedente E assim por haver dissonacircncia o magistrado restringe a aplicaccedilatildeo do precedente in-vocado

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No entanto caso o precedente encontre-se superado con-forme se denota pelo contido no art 297 sect3ordm do CPC estar-se-aacute diante de umas das teacutecnicas de superar um precedente denomina-do overruling que nos dizeres de Arauacutejo eacute uma superaccedilatildeo total do precedente tornando possiacutevel a revisatildeo de um precedente sempre que houver novos argumentos criando-se um novo precedente fazendo uma comparaccedilatildeo para aclarar o entendimento Tal insti-tuto se assemelha a uma revogaccedilatildeo total de uma lei pela outra Ocorre que natildeo se pode mudar do dia para noite um precedente sob pena de quebra de confianccedila sendo deste modo necessaacuteria uma fundamentaccedilatildeo abrangente para ocorrer o overruling com ar-gumentos ateacute entatildeo natildeo enfrentados bem como a necessidade de se superar o precedente

De igual maneira ainda demonstra aproximaccedilatildeo ao sis-tema da Common Law a utilizaccedilatildeo do instituto da Repercussatildeo Geral no Recurso Extraordinaacuterio estabelecido pelo art 102 sect 3ordm da Constituiccedilatildeo Federal de 88 (CF) introduzido tambeacutem pela EC 452004 e art 543-A do CPC73 (com alteraccedilotildees inseridas pela Lei nordm 114182006) Tambeacutem foram inseridas no ordenamento juriacute-dico brasileiro a suacutemula impeditiva de recurso (artigo 518 sect 1ordm CPC73 introduzido pela Lei nordm 112762006) a improcedecircncia liminar de demandas repetitivas (art 285-A CPC73 introduzida tambeacutem pela Lei nordm 112772006) e o julgamento de recursos por amostragem (art 543-B CPC73 introduzido atraveacutes da Lei nordm 114182006) dentre tantos outros exemplos

Jaacute o Coacutedigo de Processo Civil de 2016 trouxe ao ordena-mento juriacutedico a possibilidade de as partes de forma consensual estabelecer um calendaacuterio processual para um determinado pro-cesso que se aprovado de comum acordo vincula as partes in-clusive o juiz conforme se denota pelo art 191 CPC Percebe-se desse modo que as partes de comum acordo poderatildeo dilatar ou restringir prazos data em que seraacute realizada a produccedilatildeo de provas bem como a data em que seraacute a sentenccedila exarada jaacute tipicamente utilizada no direito processual estadunidense francecircs e recente-mente no italiano

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Outro ponto interessante trazido pelo Coacutedigo de Processo Civil de 2015 eacute o art 357 sectsect 2ordm e 3ordm CPC que possibilita agraves par-tes de forma consensual apresentarem decisatildeo saneadora ao juiz que poderaacute quando a causa for complexa designar audiecircncia para proferir decisatildeo de saneamento e organizaccedilatildeo do processo tendo deste modo de forma liacutempida desraigado com a antiga concepccedilatildeo eminentemente influenciada pelo direito portuguecircs em que a tal funccedilatildeo era exclusiva do magistrado

Nos dizeres de Porto (apud TRIGUEIRO 2014) eacute possiacutevel perceber que os institutos juriacutedicos da Common Law e da Civil Law estatildeo se sintonizando cada vez mais e criando um novo institu-to juriacutedico chamado commonlawlizaccedilatildeo em face das jaacute destacadas facilidades de comunicaccedilatildeo e pesquisa postas na atualidade e a disposiccedilatildeo da comunidade juriacutedica Realmente na chamada com-monlawlizaccedilatildeo do direito nacional se pode perceber que a partir da constataccedilatildeo da importacircncia da jurisprudecircncia as decisotildees jurisdi-cionais vecircm adquirindo no sistema paacutetrio por meio de normas po-sitivadas mormente por uma crescente funccedilatildeo interpretativa das normas pelo juiz

Ainda sobre a criatividade judicial Cappelletti (1993) em sua obra Juiacutezes Legisladores apoacutes discorrer sobre as altercaccedilotildees en-tre os sistemas supracitados conclui que eacute evidente o aumento da criatividade juriacutedica nos paiacuteses de Civil Law da mesma forma que ocorre no Common Law sendo as contendas cada vez mais abran-dadas entre ambos derivando do que o autor denomina ldquoconver-gecircncia evolutivardquo

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Vislumbra-se por tudo que foi exposto no decorrer deste trabalho que natildeo restam duacutevidas de que o direito brasileiro sofreu influecircncia direta e inicial do sistema juriacutedico romano-germacircnico sobretudo no nosso ordenamento juriacutedico que se encontra abar-rotado de leis regulamentos decretos resoluccedilotildees enfim a lei em sentido amplo eacute considerada no paiacutes fonte primaacuteria sendo deste

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modo o instrumento baacutesico que regula as relaccedilotildees sociais A tiacutetulo ilustrativo nota-se que se encontram positivados

direitos e deveres ainda quando nascituros e que tais garantias e deveres persistem para depois da morte Nada obstante agrave preva-lecircncia do direito legislado observa-se no que foi discutido que a lei natildeo tem a capacidade de esgotar todas as possibilidades pois ja-mais o constituinte de 1988 imaginaria os avanccedilos tecnoloacutegicos na aacuterea da informaacutetica que viriam a ocorrer ao proteger por exemplo o sigilo da correspondecircncia que hoje abrange as correspondecircncias encaminhadas por correio eletrocircnico que eacute fruto de interpretaccedilatildeo judicial O fato eacute que de laacute para caacute ocorreram inuacutemeras mudanccedilas e portanto natildeo pode uma pessoa ter seus direitos negados em ra-zatildeo da ausecircncia de norma legal que a ampare

Eacute pensamento arcaico apontar a lei como uacutenica soberana fonte primaacuteria e eacute aiacute que entra em campo a jurisprudecircncia que tem por escopo adequar a lei agraves mudanccedilas que ocorrem na sociedade Como jaacute demonstrado faz-se necessaacuterio uniformizar a jurispru-decircncia das normas dos nossos Tribunais sob pena de rechaccedilar o principio da igualdade material e ter aplicado aquele velho brocar-do ldquodois pesos e duas medidasrdquo Todavia longe de ser extremista e encobertando-se sob o principio da igualdade formal e da celeri-dade processual eacute deixar de analisar as peculiaridades e estagnar no tempo e no espaccedilo as intepretaccedilotildees judiciais que retroacutegadas natildeo teriam relaccedilatildeo com as mudanccedilas da sociedade

Desse modo faz-se necessaacuterio repensar que o sistema ju-riacutedico brasileiro jaacute natildeo mais eacute exclusivamente aderente ao sistema juriacutedico da Civil Law pois o Coacutedigo de Processo Civil de 2015 veio corroborar de forma positivada as ideias haacute tempos utilizadas nos tribunais e discutidas pelos doutrinadores de que o uso de prece-dente vinculante aleacutem de proporcionar uma nova concepccedilatildeo de que o Direito natildeo eacute soacute aquilo que estaacute posto instiga na mesma ocasiatildeo uma reflexatildeo sobre a conduta postada pelo Estado quando se ocupa de atribuir um aumento de poder aos Tribunais Paacutetrios e como estes utilizaratildeo os precedentes para fazer justiccedila

Pelo exposto eacute de clareza solar que as novas relaccedilotildees pro-

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cessuais deveratildeo observar natildeo apenas a letra da lei e tampouco observar de forma absoluta os precedentes fixados mas sim res-guardar e efetivar os Direitos previstos na Carta Magna

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VISIBILIZANDO A VIOLEcircNCIA DE GEcircNERO PSICOLOacuteGICA COMO LESAtildeO Agrave SAUacuteDE DA VIacuteTIMA REVISITANDO O AR-TIGO 129 DO COacuteDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO Agrave LUZ DA LEI MARIA DA PENHA

Artenira da Silva e Silva 1

Joseacute Maacutercio Maia Alves2

RESUMO Este estudo tem o objetivo de demonstrar a possibilidade de criminalizaccedilatildeo da violecircncia psicoloacutegica pura como crime de lesatildeo corporal agrave sauacutede da viacutetima de violecircncia domeacutestica com base no caput e sect 9ordm do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro combinados com o art 7ordm II da Lei 113402006 O texto aborda apontamentos teoacutericos sobre a adequaccedilatildeo tiacutepica da lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica a partir de reflexotildees acerca da concepccedilatildeo de elemento normativo do tipo apresentando ainda uma proposta de anamnese para aferir a violecircncia psicoloacutegica e seus efeitos danosos ainda na fase de investigaccedilatildeo criminal na delegacia de poliacutecia

PALAVRAS-CHAVE Violecircncia psicoloacutegica Adequaccedilatildeo tiacutepica Anamnese

ABSTRACT This study aims to demonstrate the possibility to criminalize psychological violence as a crime of bodily injury which offends the health of the victim specially considering domestic violence victims based on the caput and on the sect9 of the article 129 of the Brazilian Penal Law combined with the article 7 II of the 113402006 Law The text presents theoretical notes about psychological health damage as well as reflections about the concept of the normative element type It also presents a general

1 Poacutes-doutora em Psicologia e Educaccedilatildeo e Doutora em Sauacutede Coletiva Docente e pesquisadora do Departamento de Sauacutede Puacuteblica e do Mestrado em Direito e Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila da Universidade Federal do Maranhatildeo Coordenadora de linha de pesquisa do Observatoacuterio Ibero Americano de Sauacutede e Cidadania e Coordenadora do Observatorium de Seguranccedila Puacuteblica (PPGDIRUFMACECGP) Email artenirassilvahotmailcom 2 Mestrando do PPGDIRUFMA (Direito e Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila) E-mail jose-marciompmampbr

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anamnesis proposal to assess psychological violence harmful effects since itacutes criminal investigation phase in the police station

KEYWORDS Psychological violence Typical adequacy Anamnesis

INTRODUCcedilAtildeO

Nos paiacuteses em que o direito tem tradiccedilatildeo romano-germacirc-nica e que sofreram a influecircncia do incremento do ideal positivista poacutes-revoluccedilatildeo francesa haacute uma resistecircncia endecircmica em se atri-buir alcance e significado agrave lei aleacutem do que seria a genuiacutena ldquointen-ccedilatildeo do legisladorrdquo As leis caducam com mais facilidade porque natildeo acompanham as mudanccedilas dos fatos sociais o contexto que elas pretenderam um dia prever passa a natildeo existir mais e em consequecircncia inauguram-se outras leis A pretexto da seguranccedila juriacutedica haacute uma necessidade de a ldquoregra legalrdquo (a lei) continua-mente esgotar a prodigiosidade da sua pretensatildeo de regulaccedilatildeo

Trata-se de uma postura equivocada que culmina por engessar a prestaccedilatildeo jurisdicional para que o Juiz cada vez mais ldquodiga o direitordquo como o legislador supostamente quis que ele fosse dito Poreacutem muito diferente de oferecer seguranccedila juriacutedica essa medida pode fomentar deficit de efetividade de direitos porque em razatildeo dela natildeo se desenvolve o haacutebito de usar-se da interpretaccedilatildeo para aplicar as normas aos casos concretos

Vecirc-se entatildeo uma sensiacutevel dicotomia quanto ao que ldquoeacute o direitordquo em paiacuteses originaacuterios da civil law e da common law de ori-gem inglesa Nos primeiros haacute um impeacuterio da norma em que a lei se esforccedila em prever qual desfecho juriacutedico se entende por apro-priado agraves situaccedilotildees nos uacuteltimos tem-se uma concentraccedilatildeo sobre a resoluccedilatildeo do litiacutegio no caso concreto e a lei eacute mero coadjuvan-te para se buscar uma soluccedilatildeo que corresponda ao melhor direito possiacutevel mediante decisotildees racionalmente fundamentadas

Esta premissa se faz importante por permitir dizer que no Brasil cujo direito tem origem romano-germacircnica a liberdade para extrair sentidos racionalmente construiacutedos acerca da norma

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ou para transitar por significados e conceitos extrajuriacutedicos que tenham forccedila para incidir diretamente nas decisotildees pode soar perigosa e por isso sofre resistecircncias que por vezes natildeo se justi-ficam Exemplo disso eacute a escasso exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de juiacutezos de valor ao elemento normativo ldquosauacutederdquo que se encontra no caput do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro mesmo depois de a Lei 113402006 ter traccedilado uma seacuterie de possibilidades de compro-metimento agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima aviltada por toda sorte de violecircncia domeacutestica sobretudo a psicoloacutegica

Este trabalho visa demonstrar que o paradigma da des-legitimaccedilatildeo da violecircncia domeacutestica que daacute suporte agrave defesa do gecircnero feminino com toda a extensatildeo hermenecircutica que a teoria de gecircnero possa alcanccedilar (direito agrave diversidade de identidade de gecircnero agrave homoafetividade agrave orientaccedilatildeo sexual e a um conceito de famiacutelia baseado na afetividade) exige uma nova abordagem ju-riacutedica do elemento normativo sauacutede que convirja para a agenda internacional que prima por coibir a violecircncia no acircmbito das rela-ccedilotildees familiares

A partir desse pano de fundo far-se-atildeo consideraccedilotildees acer-ca da teoria do tipo penal e das elementares normativas para se admitir a possibilidade de se configurarem os sintomas psiacutequicos resultantes da violecircncia domeacutestica como ofensa agrave sauacutede da viacutetima

Em seguida demonstrar-se-atildeo argumentos para funda-mentar a existecircncia do crime de ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo como consequecircncia da violecircncia de gecircnero para entatildeo se investigar como os profissionais do sistema de justiccedila sobretudo Delegados de Poliacutecia Promotores de Justiccedila e Juiacutezes estatildeo enfrentando essa temaacutetica na praacutetica e como poderiam direcionar suas atividades de forma a assumir uma postura profissional proacutexima de um po-sicionamento mais eficaz e com vista ao compromisso assumido pelo Estado brasileiro perante a comunidade internacional de coi-bir a violecircncia familiar

Por fim o trabalho sugeriraacute uma anamnese a ser aplicada agraves viacutetimas de violecircncia domeacutestica ainda nas delegacias de poliacute-cia de forma a fornecerem indiacutecios para a formulaccedilatildeo de denuacutencia

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pelo Ministeacuterio Puacuteblico por ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo com ofensa agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima sobretudo em razatildeo dos quadros cliacuteni-cos de Transtorno de Estresse Poacutes-traumaacutetico e da Siacutendrome da Mulher Espancada

Um Paradigma para o Conceito de Violecircncia Psicoloacutegica

Eacute no contexto mundial de luta pela deslegitimaccedilatildeo da vio-lecircncia contra a mulher que emergiu esse conceito sustentado pela Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) que considera como tal ldquoqualquer ato de violecircncia baseado no gecircnero que resulta ou que seja suscetiacutevel de resultar em dano fiacutesico sexual psicoloacutegico ou em sofrimentos agraves mulheres incluindo ameaccedilas de tais atos coaccedilatildeo ou privaccedilatildeo de liberdade ocorrendo tanto na vida puacuteblica quanto na privadardquo (ONU 1993) No Brasil a Lei Maria da Penha (LMP) ain-da especifica a agressatildeo pode resultar de qualquer relaccedilatildeo iacutentima de afeto e as relaccedilotildees pessoais independem de orientaccedilatildeo sexual (BRASIL 2006)

O que se percebe na LMP eacute que o legislador brasileiro na contramatildeo da sua tradiccedilatildeo romano-germacircnica apresentou agrave socie-dade uma lei em que natildeo haacute palavras inuacuteteis ou com efeitos de sen-tido rasos Ao contraacuterio trata-se de um texto que estaacute apto a sofrer conformaccedilotildees jurisprudenciais na medida em que sejam introjeta-das na comunidade percepccedilotildees feministas acerca das vicissitudes e da diversidade do direito deao gecircnero e agrave orientaccedilatildeo sexual

A Lei 113402006 diz bem mais do que o seu proacuteprio tex-to assim como colima por objetivos natildeo explicitamente revelados que reclamam abordagens menos simplistas eou reducionistas agrave luz de casos concretos

A reafirmaccedilatildeo da doutrina feminista o direito agrave diversida-de da identidade de gecircnero e a ressignificaccedilatildeo do conceito de famiacute-lia satildeo premissas sobre as quais estatildeo fundadas as bases da LMP A partir dessa concepccedilatildeo eacute que se sustentam os instrumentos legais de defesa dos direitos daquelas que ostentam o gecircnero feminino E isso remete ao esforccedilo necessaacuterio de se atribuir uma maacutexima efeti-

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vidade agrave extensatildeo desses remeacutedios sob pena de se transformar a lei e sua mudanccedila de paradigma em mera carta de intenccedilotildees

Induvidoso que a garantia dessa maacutexima efetividade pas-sa pela dotaccedilatildeo dos operadores do direito ndash sobretudo dos que es-tejam agrave frente das instituiccedilotildees do sistema de justiccedila ndash de conheci-mentos transdisciplinares que revelem a verdadeira mens legis da LMP como ferramenta insuflada pela rede feminista global acerca da violecircncia domeacutestica

Natildeo excluir os operadores do direito do acesso a esse deba-te em forma de qualificaccedilatildeo formal e continuada significa garantir uma mudanccedila de paradigma para o de deslegitimaccedilatildeo da violecircncia domeacutestica atraveacutes do recrudescimento do discurso socioloacutegico fe-minista no meio juriacutedico para que ele migre do abstrato agrave praacutetica das relaccedilotildees sociais geridas pelo Poder Judiciaacuterio

Daiacute dizer-se que cada signo presente na LMP deve ser sub-metido a um crivo de enfrentamento agrave luz da teoria feminista da proteccedilatildeo agrave vulnerabilidade do gecircnero feminino da reafirmaccedilatildeo da dignidade humana e do desejo de construccedilatildeo de uma sociedade mais justa solidaacuteria e livre de qualquer forma de discriminaccedilatildeo

No que toca agrave violecircncia psicoloacutegica eacute forte o entendimen-to de que a sua configuraccedilatildeo e reconhecimento no caso concreto serve apenas como vetor que projeta o tratamento da persecuccedilatildeo criminal por um injusto-tipo jaacute previsto na legislaccedilatildeo de sorte a submetecirc-lo agraves regras da Lei Maria da Penha Isso implicaria p ex subtrai-lo da competecircncia dos Juizados Especiais Criminais limi-tar a renuacutencia agrave representaccedilatildeo e ateacute mesmo atribuir aos crimes de lesatildeo corporal leve a natureza de accedilatildeo penal puacuteblica incondicio-nada (ADI nordm 44242012-STF) aleacutem de autorizar o deferimento de medidas protetivas especiacuteficas e geneacutericas em favor da viacutetima

Teoria do Tipo O Elemento Normativo ldquoSauacutederdquo

A legislaccedilatildeo brasileira adotou a teoria finalista da accedilatildeo para considerar uma conduta criminalmente tiacutepica Equivale dizer que o resultado produzido por uma conduta pode ser exigido dispen-

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saacutevel indiferente ou ateacute impossiacutevel de ocorrer (crimes materiais formais e de mera conduta) mas o inteacuterprete natildeo pode se furtar agrave anaacutelise do impacto do elemento subjetivo do injusto que permeou a conduta do agente Isso porque haacute crimes que soacute podem se confi-gurar se o agente quis se comportar de forma afrontosa a um sen-timento de justiccedila entronizado pela sociedade (dolo) outros haacute em que sob o influxo de uma indiferenccedila tocada pela assunccedilatildeo de um risco esse comportamento quebrou uma representaccedilatildeo mental de previsatildeo de um mal maior (dolo eventual) assim como haacute os que se revestiram de uma previsibilidade do mal maior mas que natildeo tangenciaram a assunccedilatildeo do risco produzindo-se o resultado por uma quebra de um dever objetivo de cuidado (culpa) Fora dessas hipoacuteteses a teoria finalista considera as condutas criminalmente atiacutepicas

Na composiccedilatildeo do injusto-tipo amalgamam-se ou natildeo trecircs espeacutecies de elementares objetiva subjetiva e normativa A primei-ra delas trata de signos ou expressotildees com significados escorreitos descritivos sobre os quais natildeo paira qualquer duacutevida A segunda corresponde agraves vontades especiacuteficas previstas no tipo geralmente sucedidas da expressatildeo ldquocom o fim derdquo ou algo que a ela equiva-lha Satildeo vontades anunciadas

Jaacute quanto agrave terceira espeacutecie de elementar ndash que interessa ao presente estudo ndash tem-se o elemento normativo do tipo Tratam-se de signos ou expressotildees que para colmatarem a adequaccedilatildeo tiacutepica e a aperfeiccediloarem requerem um esforccedilo de interpretaccedilatildeo valorativa juriacutedica ou teacutecnico-transdisciplinar extrajuriacutedica

A presenccedila dessa espeacutecie de elementar daacute azo aos chama-dos tipos abertos que dependem da interpretaccedilatildeo de quem conhece os seus significados (teacutecnicos) ou de quem os atribui de forma ra-cionalmente fundamentada (advogados membros do Ministeacuterio Puacuteblico e da Magistratura) Falam-se mesmo de tipos anormais que exigem uma aquilataccedilatildeo de significados que natildeo permitem fechar de antematildeo a adequaccedilatildeo tiacutepica e que interessaratildeo de forma crucial agrave conduta ldquoquer por conduzirem a um julgamento de valor quer por levarem agrave interpretaccedilatildeo de termos juriacutedicos ou extrajuriacutedicos

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quer por exigirem afericcedilatildeo do acircnimo ou no intuito do agente quan-do pratica a accedilatildeordquo (MIRABETE 2014 p 100)

A parte final do tipo encontrado no caput do art 129 do Coacutedigo Penal brasileiro eacute emblemaacutetica quanto agrave importacircncia da afericcedilatildeo do elemento normativo para se alcanccedilar uma adequaccedilatildeo tiacutepica coerente e para ateacute mesmo se visibilizar uma acepccedilatildeo de tipi-cidade que possa natildeo se apresentar recorrente na praacutetica

O tipo considera lesatildeo corporal ofender a integridade corpo-ral ou a sauacutede de outrem Agrave guisa de uma decodificaccedilatildeo que natildeo se pretende exaustiva dir-se-ia que se estaacute a tratar de uma accedilatildeo fi-naliacutestica que exige resultado naturaliacutestico e que admite condutas dolosas e culposas Daiacute extrair-se que ofender a integridade corporal corresponderia a causar dano na medida em que frustra a incolu-midade de algum componente fisioloacutegico da viacutetima que se fazia iacutentegro Jaacute na lesatildeo agrave sauacutede a extensatildeo dos efeitos da ofensa ultra-passa o dano fisioloacutegico Aqui o elemento normativo sauacutede reme-te a uma infinidade de interpretaccedilotildees atribuiacuteveis tecnicamente ou pela via da fundamentaccedilatildeo racional Estaacute a reclamar colmataccedilotildees que eclodem a partir de juiacutezos de valor que podem sofrer muta-ccedilotildees Afinal o que pode ser considerado sauacutede

Para Bitencourt (2001 p 176)

Ofensa agrave sauacutede compreende a alteraccedilatildeo de funccedilotildees fisioloacutegicas do organismo ou perturbaccedilatildeo psiacutequi-ca A simples perturbaccedilatildeo de acircnimo ou afliccedilatildeo natildeo eacute suficiente para caracterizar o crime de lesatildeo cor-poral por ofensa agrave sauacutede Mas configuraraacute o crime qualquer alteraccedilatildeo ao normal funcionamento do psiquismo mesmo que seja de duraccedilatildeo passageira Podem caracterizar essa ofensa agrave sauacutede os distuacuterbios de memoacuteria e natildeo apenas os distuacuterbios de ordem intelectiva ou volitiva

Quer-se dizer que o signo sauacutede pode permitir significados e extensotildees muacuteltiplos mas uma vez considerados deve-se obser-var se esta sauacutede restou maculada para que tenha ocorrido o crime de ldquolesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegicardquo Daiacute a importacircncia de se aferirem as

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perturbaccedilotildees do psiquismo para se considerar a adequaccedilatildeo tiacutepica oriunda de uma lesatildeo levada a efeito pela violecircncia psicoloacutegica Com efeito Aniacutebal Bruno (976 p184-185) considera que

Perturbaccedilotildees moacuterbidas do psiquismo produzidas por obra do agente tambeacutem entram na categoria de lesotildees corporais como dano agrave sauacutede da viacutetima aiacute in-cluindo-se do mesmo modo estados de inconsciecircncia ou insensibilidade determinados pelo uso de anes-teacutesicos ou inebriantes ou ainda casos de depressatildeo fiacutesica ou mental desmaios estados confusionais e outras manifestaccedilotildees de perturbaccedilatildeo nervosa ou psiacute-quica Se ocorre a alteraccedilatildeo da integridade do corpo ou da sauacutede eacute indiferente que haja ou natildeo produccedilatildeo de dor

Desse raciociacutenio extrai-se uma conclusatildeo preliminar eacute preciso introjetar nos profissionais do sistema de justiccedila a atitu-de de modular a elementar normativa sauacutede diante das condutas criminosas sob pena de se gerar um enorme deficit de efetividade na criminalizaccedilatildeo dessas praacuteticas que acabaraacute por invisibilizar o reconhecimento da violecircncia psicoloacutegica e de sua importacircncia

A ldquoLesatildeo agrave Sauacutede Psicoloacutegicardquo na Violecircncia de Gecircnero

Para atingir a justificaccedilatildeo da possibilidade do tipo de lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica tomam-se por referecircncia neste trabalho algumas consideraccedilotildees da pesquisa conduzida pela pesquisadora Isadora Vier Machado acerca de como vem sendo conduzido o manejo da violecircncia psicoloacutegica ndash prevista na Lei nordm 113402006 (Lei Maria da Penha) ndash na persecuccedilatildeo criminal preliminar perante as Dele-gacias de Poliacutecia e o Ministeacuterio Puacuteblico Algumas constataccedilotildees da pesquisa conduziratildeo agrave necessidade de uma mudanccedila teacutecnico-ju-riacutedica e estrutural na atuaccedilatildeo destas Instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila no enfrentamento da violecircncia psicoloacutegica Pretende-se de-monstrar que esse novo olhar pode conduzir mesmo a uma maior efetividade do art 7ordm inciso II da LMP

Duas problematizaccedilotildees trabalhadas por MACHADO con-

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duziratildeo agraves impressotildees criacuteticas que se propotildee primeiramente tem-se a suposta barreira do princiacutepio da legalidade do qual a violecircn-cia psicoloacutegica se encontraria esvaziada no direito ordinaacuterio atual o que faria com que essa espeacutecie de violecircncia de gecircnero necessitas-se de outras figuras normativas tipificadas criminalmente para que pudesse aparecer no cenaacuterio juriacutedico ainda que eclipsada depois aponta-se a nota de imprescindibilidade de conhecimentos trans-disciplinares dos operadores do direito para que compreendam a extensatildeo do conceito de violecircncia psicoloacutegica com o objetivo de o acomodar nos injustos-tipos de que se serve no ordenamento juriacutedico

Quanto ao primeiro ponto Machado (2013) se ocupa da anaacutelise do efeito de sentido das elementares integridade corporal e sauacutede encontradas no tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal para sugerir que o bem juriacutedico tutelado nesse dispositivo trans-cenderia a mera integridade fiacutesica para alcanccedilar tambeacutem a integri-dade moral e psicoloacutegica da viacutetima

O efeito de sentido atribuiacutedo ao caput do art 129 que visa acomodar a criminalizaccedilatildeo da violecircncia psicoloacutegica por si mesma exsurgiria a partir da pretensatildeo de dissociaccedilatildeo do corpus delicti em um binocircmio fisioloacutegico-psiacutequico que revelasse um caraacuteter plurio-fensivo do crime de lesatildeo corporal

Embora a construccedilatildeo do argumento seja coerente Macha-do (Idem) natildeo o acolhe como pressuposto para as suas conclusotildees acerca das razotildees para o deficit de efetividade do reconhecimento da violecircncia psicoloacutegica no acircmbito das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila

Admitindo esses argumentos a pesquisadora faz coro agrave visatildeo de esvaziamento da violecircncia psicoloacutegica como tipo penal para alocaacute-la apenas como ldquoparacircmetro interpretativordquo para outros tipos penais existentes na lei tais como ameaccedila caluacutenia denun-ciaccedilatildeo caluniosa constrangimento ilegal e injuacuteria muito embora admita que esses injustos-tipos se afigurem apenas como ldquomeios pelos quais se possa produzir um resultado final de prejuiacutezo agrave in-tegridade psicoloacutegicardquo

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Entretanto natildeo parece coerente tatildeo somente acoplar as formas de violecircncia de gecircnero previstas no art 7ordm da lei a tipos pe-nais preexistentes com singelas cominaccedilotildees legais Fazer isso seria reduzir ou mesmo dissolver os discursos de luta pela dignidade das mulheres em vez de os inserir em um contexto que represente uma regulamentaccedilatildeo eficaz agrave norma programaacutetica do art 226 sect8ordm da Constituiccedilatildeo cuja finalidade eacute criar mecanismos para coibir a violecircncia no acircmbito das relaccedilotildees da famiacutelia

Da mesma forma tambeacutem natildeo eacute aceitaacutevel que o efeito de sentido que a norma constitucional tenha pretendido atribuir ao signo ldquocoibirrdquo implique como resposta em forma de prestaccedilatildeo ju-risdicional apenas tirar da competecircncia dos Juizados Especiais os crimes que envolvam violecircncia domeacutestica e possibilitar que a mu-lher tenha a garantia de medidas de proteccedilatildeo em escala assecura-toacuteria crescente em gravidade agrave medida que se acentue o perigo agrave sua incolumidade fiacutesica

A questatildeo eacute que nem sempre o princiacutepio da reserva legal se serve de tipos com condutas criminosas escorreitas Ao contraacuterio frequentemente os tipos se revelam plurais como resultado mesmo do esforccedilo interpretativo sobre normas de extensatildeo da figura tiacutepica e elementos normativos do tipo que permitem uma elasticidade toleraacutevel para que o texto da lei alcance adequaccedilotildees que natildeo foram sugeridas pela letra estrita da norma penal incriminadora

Quando o texto do caput do art 129 do Coacutedigo Penal criminaliza a ofensa agrave ldquointegridade corporalrdquo ou agrave ldquosauacutede de ou-tremrdquo oferece sucessivamente ao inteacuterprete uma elementar objetiva e outra normativa A primeira diz respeito agrave agressatildeo ao corpo da viacutetima enquanto mateacuteria sob o aspecto exclusivamente fisioloacutegico Trata-se de desfigurar o que se fazia iacutentegro que sugere que qual-quer alteraccedilatildeo fisioloacutegica que o agressor produza na viacutetima por menor que seja e que sequer lhe abale o seu cotidiano deve mere-cer a censura da lei Estaacute-se a tratar de resultados naturaliacutesticos cla-ros derivados de um ato comissivo ou omissivo sem se exigir que sejam aferidas outras repercussotildees que se tenham dado na vida da viacutetima Aqui o foco eacute a alteraccedilatildeo da integridade fiacutesica em si

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Jaacute o signo ldquosauacutederdquo revela-se como uma elementar nor-mativa que desafia um juiacutezo de valor ou teacutecnico que o inteacuterprete lhe deveraacute atribuir para chegar agrave adequaccedilatildeo tiacutepica em cada caso concreto E eacute nesse momento que eclode a indagaccedilatildeo proacutepria das elementares normativas que no caso do crime do art 129 pode remeter a uma possibilidade plural de adequaccedilatildeo tiacutepica o que se entende por sauacutede A partir de seu conceito o que pode ser consi-derado como conduta que a ofenda

A Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) conceitua sauacutede como a ausecircncia de doenccedila aliada a uma situaccedilatildeo de bem-estar fiacutesico mental e social Sem pretender enveredar por uma extensa miriacuteade teacutecnica a que o vocaacutebulo sauacutede possa remeter ou incursio-nar pelas subjetividades que o termo bem-estar possa sugerir (FER-RAZ SEGRE 1997) o homem meacutedio de que se serve o Direito Pe-nal responderia que se entende por sauacutede tatildeo somente um estado de boa disposiccedilatildeo fiacutesica e psiacutequica que proporcione bem-estar ao ser humano Eis o ponto de estrangulamento da discussatildeo que se propotildee

Falar em comprometimento agrave sauacutede de algueacutem natildeo sig-nifica simplesmente comprometer as suas aptidotildees fiacutesicas mas tambeacutem de alguma forma ou em algum grau desestabilizar seu equiliacutebrio psiacutequico entendendo-o aqui tambeacutem como equiliacutebrio psicoloacutegico Pensar o contraacuterio seria como a proacutepria Machado (2013) lembra incursionar equivocadamente pela tendecircncia cultu-ral ocidental de ver o corpo como um ente essencialmente bioloacutegi-co

Com efeito ver a violecircncia domeacutestica sob a perspectiva da mera violecircncia fiacutesica e lhe exigir um resultado naturaliacutestico de mero dano fisioloacutegico apequena a sua importacircncia e desvirtua o propoacutesito institucional de a coibir porque assim de fato a violecircn-cia psicoloacutegica na Lei Maria Penha natildeo passaria de um vieacutes infor-mativo uacutetil apenas e unicamente para atribuir um rito diferente agrave instruccedilatildeo de um processo por um ldquotipo penal guarda-chuvardquo3 que por sua natureza e pela pena que lhe eacute cominada seria de menor

3 Expressatildeo usada por Isadora Vier Machado em sua tese de doutoramento

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potencial ofensivoTalvez esse olhar que definitivamente natildeo converge com

a mens legis da Lei n 113402006 ocorra em razatildeo de um outro equiacutevoco afeito agrave interpretaccedilatildeo acerca da teacutecnica legislativa aplica-da agrave espeacutecie

Eacute que a rigor o legislador natildeo precisaria criar um tipo penal novo para criminalizar a violecircncia psicoloacutegica com todas as vicissitudes que a compotildeem Na verdade o caraacuteter de uma novatio legis in pejus que denota a coerecircncia do ordenamento juriacutedico em coibir eficazmente a violecircncia de gecircnero fez-se sentir apenas ndash e foi suficiente nesse sentido ndash com a inserccedilatildeo do sect9ordm do art 129 do Coacutedigo Penal que criou uma qualificadora do crime de lesatildeo cor-poral para a hipoacutetese de a agressatildeo se dar em um contexto em que o agente ldquose prevaleccedila das relaccedilotildees domeacutesticasrdquo

Mas atente-se o legislador majorou a pena do crime de lesatildeo corporal por razotildees circunstanciais acerca de como ele se puder dar notadamente em contextos que a lei achou por bem considerar mais gravosos O que natildeo quer dizer que se esqueceu de especificar que essa mesma majoraccedilatildeo se daria em caso de vio-lecircncia psicoloacutegica ateacute porque esta eacute uma das formas de ofensa agrave sauacutede cuja caracterizaccedilatildeo se extrairaacute na verdade do exerciacutecio in-terpretativo a ser deflagrado sobre o elemento normativo ldquosauacutederdquo compreendido aqui sob o vieacutes de equiliacutebrio psicoloacutegico emocional alheio a perturbaccedilotildees psicopatoloacutegicas agraves quais a viacutetima natildeo tenha dado causa

O que parece estar havendo eacute que o titular da accedilatildeo penal estaacute interpretando o caput do artigo 129 sob o paradigma da lesatildeo corporal enquanto violecircncia fiacutesica sem atentar que jaacute haacute o reco-nhecimento pelo ordenamento juriacutedico (e natildeo precisaria haver) de uma nova figura que modula o elemento normativo do tipo (sauacute-de) qual seja o conceito de violecircncia psicoloacutegica inserto no art 7ordm inciso II da Lei Maria da Penha A bem do coerente a violecircncia psicoloacutegica eacute que se encaixa no tipo do art 129 quando modula o seu elemento normativo

A outra problematizaccedilatildeo sugerida pela pesquisadora trata

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da deficiecircncia dos operadores do Direito em conhecimentos trans-disciplinares notadamente dos membros do Ministeacuterio Puacuteblico A seu sentir essa capacitaccedilatildeo eacute necessaacuteria para que a violecircncia psi-coloacutegica natildeo seja refeacutem de leituras subjetivas e passe a ser melhor reconhecida nos fatos criminosos a fim de servir de justificativa para que os tipos penais a que se agrega possam merecer uma per-secuccedilatildeo penal segundo o que prega a Lei Maria da Penha

Quanto aos crimes mais graves para a consecuccedilatildeo dos quais a violecircncia domeacutestica ndash natildeo necessariamente psicoloacutegica ndash te-nha sido apenas um meio ou conduta concomitante menos gravo-sa o reconhecimento dessa violecircncia seraacute importante apenas para habilitar o julgador a deferir as medidas de proteccedilatildeo previstas em lei inclusive a prisatildeo cautelar para os casos de crimes que em ra-zatildeo da sua pena natildeo admitam a prisatildeo preventiva Deveratildeo ser demonstrados para isso que haacute uma relaccedilatildeo de poder baseada no gecircnero que ocorreram os resultados previstos na lei em qualquer um dos planos de violecircncia seja fiacutesica psicoloacutegica patrimonial moral ou sexual que o fato se deu na unidade domeacutestica da famiacute-lia ou em razatildeo de qualquer relaccedilatildeo de afeto e que a violecircncia eacute considerada independente da orientaccedilatildeo sexual da viacutetima

Natildeo haacute duacutevidas de que a preocupaccedilatildeo com o conhecimen-to transdisciplinar se justifica com toda forccedila para a caracterizaccedilatildeo do que poderiacuteamos chamar de violecircncia psicoloacutegica pura Eacute que in-dependentemente de haver violecircncia fiacutesica como afirma Machado (2013 p 174) em outro contexto ldquoa identificaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo de violecircncia psicoloacutegica requer que o problema apresentado seja minuciosamente sondadordquo Isso porque os seus danos se apresen-tam como resultado de posturas sutis praticadas pelo agressor no dia a dia A mulher pode perfeitamente natildeo ter sofrido violecircncia fiacutesica mas ainda assim ter sido aviltada na sua integridade psiacute-quica em niacuteveis significativos

Frise-se que o comportamento insidioso do agressor pode desencadear uma seacuterie de asseacutedios psicoloacutegicos importantes que podem significar ofensas agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima Forte em es-tudos de Marie-France Hirigoyen Machado (2013) pontua os com-

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portamentos que mais comumente eclodem na relaccedilatildeo conjugal controle isolamento ciuacuteme patoloacutegico asseacutedio aviltamento (mi-nar a autoestima) humilhaccedilotildees intimidaccedilatildeo indiferenccedila a deman-das afetivas e ameaccedilas Eles podem causar diagnoacutesticos de com-prometimentos psicoloacutegicos importantes inclusive os de ordem psicossomaacutetica que requerem realmente conhecimentos teacutecnicos de cliacutenica meacutedica psicologia e ou psiquiatria para ser apontados em processos judiciais como provaacuteveis conteuacutedos do que a Lei Maria da Penha considera como resultados alcanccedilaacuteveis pela vio-lecircncia psicoloacutegica prejuiacutezo agrave autodeterminaccedilatildeo dano emocional diminuiccedilatildeo da autoestima prejuiacutezo ao pleno desenvolvimento de-gradaccedilatildeo e controle que podem definir prejuiacutezo intenso da sauacutede psicoloacutegica

Contudo eacute importante observar que pelo menos para a propositura da accedilatildeo penal em razatildeo de uma lesatildeo agrave sauacutede com base no art 129 do Coacutedigo Penal natildeo eacute imprescindiacutevel que o promotor de justiccedila labore em cogniccedilatildeo exauriente para demonstrar o juiacutezo de mera probabilidade criminosa exigido para a formulaccedilatildeo da de-nuacutencia que se traduz no texto da lei como ldquoindiacutecios suficientes de materialidade e autoriardquo aleacutem da demonstraccedilatildeo do elemento sub-jetivo da conduta exigido dolo ou culpa Jaacute para a prolataccedilatildeo da sentenccedila eacute de bom alvitre que a viacutetima seja submetida ao atendi-mento interdisciplinar a tiacutetulo de periacutecia para que sejam aferidos tecnicamente os resultados que a violecircncia psicoloacutegica provocou para daiacute restarem comprovados ou natildeo os elementos necessaacuterios agrave adequaccedilatildeo tiacutepica na fase de sentenccedila

A falta de percepccedilatildeo preacutevia da violecircncia psicoloacutegica nas delegacias de poliacutecia aliada agrave postura conservadora dos promoto-res de justiccedila de natildeo a considerar como espeacutecie autocircnoma de lesatildeo corporal que comprometa a sauacutede da viacutetima de fato faz com que essa espeacutecie de violecircncia embora relatada natildeo apareccedila nas esta-tiacutesticas do combate agrave violecircncia domeacutestica Menos aparecem ainda porque os crimes aos quais geralmente se acoplam para conduzir a persecuccedilatildeo criminal agrave luz da Lei Maria da Penha (ameaccedila injuacute-ria caluacutenia denunciaccedilatildeo caluniosa e ou constrangimento ilegal)

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tecircm pena cominada diminuta e na sua maioria tecircm natureza de accedilatildeo penal privada ou puacuteblica condicionada agrave representaccedilatildeo cuja disponibilidade que provoca na persecuccedilatildeo criminal eacute demasia-damente promovida por mulheres viacutetimas tambeacutem do asseacutedio do poder econocircmico dos agressores e de questotildees emocionais afetas aos filhos e ao casal que natildeo permitem o rompimento dos laccedilos conjugais e que geram na ofendida uma toleracircncia ciclicamente aprisionante agraves agressotildees

Assim do enfrentamento criacutetico das problemaacuteticas apon-tadas extraem-se quatro conclusotildees que se consideram importan-tes

1) quanto agrave primeira problemaacutetica sugerida o ordenamen-to juriacutedico admite a formulaccedilatildeo de accedilatildeo penal em razatildeo de vio-lecircncia psicoloacutegica autocircnoma como conteuacutedo da modulaccedilatildeo do ele-mento normativo ldquosauacutederdquo do tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal natildeo se servindo essa espeacutecie de violecircncia de gecircnero apenas para acoplar-se a outros tipos penais como paracircmetro interpreta-tivo para tatildeo somente conduzir a persecuccedilatildeo penal destes ao acircm-bito do rito penal ordinaacuterio e para garantir a aplicaccedilatildeo de medidas protetivas de urgecircncia

2) quanto agrave segunda embora natildeo se ignore que seja ne-cessaacuterio haver um incremento na formaccedilatildeo dos profissionais do Direito notadamente dos Defensores Delegados Promotores de Justiccedila e Magistrados quanto agraves questotildees de gecircnero e conhecimen-tos transdisciplinares correlatos esse diferencial intelectual natildeo indica que serviraacute apenas para identificar a violecircncia psicoloacutegica no suporte faacutetico que subjaz na adequaccedilatildeo a ldquotipos penais guarda-chuvasrdquo para que a partir daiacute as viacutetimas aufiram os benefiacutecios da Lei Maria da Penha Mais do que isso com base na premissa da existecircncia de reserva legal para o crime de lesatildeo agrave sauacutede psicoloacute-gica em razatildeo da modulaccedilatildeo do elemento normativo ldquosauacutederdquo en-contrado do injusto-tipo do caput do art 129 esses conhecimentos transdisciplinares ndash e ateacute mesmo o apoio de equipe interdisciplinar ndash seriam mais importantes para identificar a violecircncia psicoloacutegica nas sutilezas de que se reveste no dia a dia para de logo e antes

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de se associar a outras formas de violecircncia merecer uma postura das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila que convirja realmente com a norma programaacutetica constitucional de ldquocoibir a violecircncia no acircm-bito das relaccedilotildees da famiacuteliardquo

3) Dessas duas primeiras conclusotildees extrai-se mais uma quanto agrave necessidade de duas mudanccedilas de postura institucional no acircmbito do Ministeacuterio Puacuteblico uma teacutecnico-juriacutedica no sentido de repensar a interpretaccedilatildeo do tipo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal a partir do poder modulador que o conceito de violecircncia psicoloacutegica exerce sobre o elemento normativo ldquosauacutederdquo e outra quanto ao incremento intelectual e na estrutura de pessoal das pro-motorias de justiccedila no sentido de qualificar formalmente os pro-motores em questotildees de gecircnero e dotar as promotorias do serviccedilo interdisciplinar psicossocial para avaliar a incidecircncia de eventos de violecircncia psicoloacutegica nos casos que chegam para deliberaccedilatildeo acerca do que foi produzido nas investigaccedilotildees policiais

4) Por fim a necessidade de se desenvolverem fluxos nas delegacias de poliacutecia atraveacutes dos quais com a utilizaccedilatildeo de anam-neses na forma de entrevistas agraves ofendidas ficariam evidenciados desde o iniacutecio os indiacutecios da presenccedila da violecircncia psicoloacutegica e dos seus efeitos danosos agrave sauacutede das viacutetimas

Da Necessidade de Enfrentamento da Violecircncia Psicoloacutegica a partir do Mapa da Violecircncia

Observa-se que algumas anomalias no funcionamento das instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila levam agrave invisibilidade da respos-ta da Justiccedila a violecircncia psicoloacutegica sofrida pelo gecircnero feminino mesmo apoacutes a vigecircncia da Lei Maria da Penha Mais ainda essas anomalias levam mesmo ateacute agrave exclusatildeo da consideraccedilatildeo desse tipo de violecircncia como evento provocador de uma persecuccedilatildeo penal independente

A obviedade da influecircncia dessas anomalias que se ma-terializam nessa invisibilidade aparece nos nuacutemeros do mapa da violecircncia contra a mulher Pesquisa mostra que em 2014 das no-

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tificaccedilotildees de violecircncia contra a mulher lanccediladas no Sistema de In-formaccedilatildeo de Agravos de Notificaccedilatildeo (SINAN) a partir de informaccedilotildees originaacuterias do atendimento do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) depois da violecircncia fiacutesica o tipo de violecircncia sofrida pelas mulheres mais relatado foi a psicoloacutegica Tomando-se como referecircncia o puacuteblico feminino de jovens e adultas em que eacute maior a incidecircncia de vio-lecircncia praticada por cocircnjuges e ex-cocircnjuges (WAISELFISZ 2015 p 49) vecirc-se que 589 das jovens e 571 das adultas atendidas pelo serviccedilo de sauacutede puacuteblica relataram ter sofrido violecircncia fiacute-sica A partir do mesmo nuacutemero absoluto do qual se aferiu essa porcentagem verifica-se que 245 das jovens e 266 das adultas relataram ter sofrido violecircncia psicoloacutegica aleacutem da violecircncia fiacutesica ou independente dela (WAISELFISZ 2015) Esse percentual cai sensivelmente quando se falam de outras formas de violecircncia

Pesquisa acerca do ano de 2014 da Central de Atendimen-to agrave Mulher (Ligue 180) natildeo destoa da verificaccedilatildeo de alta incidecircncia de informaccedilotildees acerca da violecircncia psicoloacutegica sofrida e relatada pelas ofendidas Naquele ano 3181 das mulheres atendidas re-lataram a violecircncia psicoloacutegica como uma das ou a espeacutecie exclusi-va de violecircncia sofrida atraacutes apenas da violecircncia fiacutesica que repre-sentou 5168 dos relatos (BRASIL 2015)

Percebe-se pois que os eventos de violecircncia psicoloacutegica

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existem e satildeo vultosos Aleacutem disso a pesquisa mostra que dos casos em que houve relatos de violecircncia contra a mulher no atendi-mento do SUS 462 dos que foram relatados por mulheres jovens foram encaminhados a instituiccedilotildees do Sistema de Justiccedila assim como 461 dos casos relatados por adultas Somando-se os en-caminhamentos agraves delegacias especializadas em defesa da mulher e agraves delegacias gerais tem-se 372 entre os 462 encaminhados agraves Instituiccedilotildees do sistema de defesa da mulher em se tratando de relatos de violecircncia feitos por mulheres jovens (805 dos casos) e 36 entre os 461 encaminhados agraves mesmas Instituiccedilotildees em se tratando de relatos feitos por mulheres adultas (78 dos casos) (WAISELFISZ 2015)

O que se pode concluir eacute que ou por deficit de remessa dos casos de violecircncia psicoloacutegica agraves delegacias ou por falta de inves-tigaccedilotildees concentradas tambeacutem nessa espeacutecie de violecircncia ou por um deficit de formulaccedilatildeo de denuacutencias que a tenham considerado como circunstacircncia moduladora do elemento normativo do caput do art 129 do Coacutedigo Penal o que eacute sintomaacutetico eacute que a violecircncia psicoloacutegica natildeo aparece nos nuacutemeros de condenaccedilotildees da Justiccedila como delito autocircnomo Exemplo disso eacute o levantamento estatiacutes-tico da uacutenica Vara Especial de Violecircncia Domeacutestica e Familiar contra a Mulher de Satildeo Luiacutes capital do Estado do Maranhatildeo O lapso temporal da pesquisa refere-se aos meses de junho e de julho dos anos de 2012 e 2013

Os nuacutemeros referidos na pesquisa mostram que dos pro-cessos que tramitaram naquela Vara naquele periacuteodo e que se re-feriram a Medidas Protetivas de Urgecircncia 36 relataram violecircncia psicoloacutegica em 2012 e 35 em 2013 Mais ateacute do que os relatos de violecircncia fiacutesica que ocuparam 26 em 2012 e 29 em 2013 (MA-RANHAtildeO 2014)

Quanto aos nuacutemeros referentes agraves sentenccedilas vecirc-se que 91 delas foram ldquosentenccedilas inibitoacuteriasrdquo em 2012 e 92 em 2013 A pesquisa relata que essas sentenccedilas tecircm o ldquoobjetivo de coibir o ato violento praticado pelo requeridordquo contudo natildeo se tratam neces-sariamente de sentenccedilas de meacuterito em que se vejam condenaccedilotildees

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por violecircncia domeacutestica e muito menos em que se possam aferir nuacutemeros acerca das condenaccedilotildees por lesotildees corporais com ofensa agrave sauacutede psiacutequica das viacutetimas

Com pequena variaccedilatildeo nos nuacutemeros a tendecircncia se repete na pesquisa publicada em 2015 realizada pela mesma Vara espe-cializada e que teve os meses de janeiro a abril de 2014 como obje-to de anaacutelise (MARANHAtildeO 2015)

Esse cenaacuterio emerge em que pese o reconhecimento de que a violecircncia psicoloacutegica pura pode gerar um estado patoloacutegico em diversos niacuteveis tende a ser cronificada e extremamente destrui-dora porque geralmente eacute praticada por um agressor com quem a viacutetima manteve uma relaccedilatildeo de afeto e de quem espera algum niacutevel de respeito A vinculaccedilatildeo afetiva preteacuterita ou presente entre agressor e viacutetima comumente gera um sentimento de culpa da viacuteti-ma em relaccedilatildeo agrave violecircncia sofrida podendo contribuir para que ela questione inclusive sua sanidade mental Fecha-se assim um ciclo torturante e doloroso de comprometimento da sauacutede da viacutetima de violecircncia domeacutestica

Induvidoso que essa premissa conceitual faz emergirem discrepacircncias entre as adequaccedilotildees tiacutepicas dos crimes contra a hon-ra e ateacute dos de ameaccedila ndash que satildeo aferiacuteveis por evento e satildeo pontua-dos no tempo e no espaccedilo ndash e os de lesatildeo agrave sauacutede em razatildeo de violecircn-cia psicoloacutegica Eacute que nestes se tratam de resultados naturaliacutesticos aferiacuteveis no acircmbito do psiquismo mediante juiacutezos de valor ou teacutec-nicos Falam-se como relata a Psicoacuteloga Juriacutedica Sonia Rovinski de sintomas como choque negaccedilatildeo recolhimento confusatildeo entor-pecimento medo depressatildeo desesperanccedila baixa autoestima e ne-gaccedilatildeo sendo o transtorno de estresse poacutes-traumaacutetico um dos quadros cliacutenico-patoloacutegicos mais comuns (MACHADO 2013)

Portanto chega-se agrave conclusatildeo de que a mudanccedila insti-tucional para um enfrentamento mais eficaz desse estado de coi-sas soacute poderaacute ocorrer com o desenvolvimento de fluxos ainda na delegacia de poliacutecia que ofereccedilam elementos indiciaacuterios baacutesicos para que o oacutergatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico dotado de conhecimentos transdisciplinares afetos agrave teoria de gecircnero possa formular accedilotildees

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penais com adequaccedilotildees tiacutepicas que tratem de lesotildees corporais agrave sauacutede psiacutequica da viacutetima de violecircncia domeacutestica

A Anamnese acerca da Violecircncia Psicoloacutegica na Persecuccedilatildeo Criminal Preliminar

Diante da dificuldade de se inaugurarem persecuccedilotildees pe-nais em razatildeo da violecircncia psicoloacutegica que caracterize a ofensa agrave sauacutede da viacutetima do gecircnero feminino eacute importante que se estabe-leccedilam fluxos baacutesicos para investigar indiacutecios dessas lesotildees ainda nas delegacias de poliacutecia de forma a proporcionar que o oacutergatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico munido de conhecimentos transdisciplinares possa posteriormente identificar a probabilidade de ocorrecircncia de algum transtorno ou sintoma psiacutequico em razatildeo da violecircncia para entatildeo formular accedilatildeo penal adequada e requerer a condenaccedilatildeo es-peciacutefica por lesatildeo agrave sauacutede psiacutequica da ofendida

Para esse fim eacute importante que se construa uma anamnese com alguns questionamentos agrave ofendida e que comporiam o cader-no policial Essa entrevista colimaria por evidenciar as posturas do agressor e consequecircncias delas referentes agraves violecircncias psicoloacutegicas que satildeo previstas na LMP e em seguida visaria perquirir caracte-riacutesticas que levassem aos sintomas das patologias mais comuns em razatildeo de violecircncia psicoloacutegica o Transtorno de Estresse Poacutes-Traumaacute-tico (TEPT) (CID 10 F 431) e Siacutendrome da Mulher Espancada (SME)

Quanto agrave primeira patologia trata-se de um distuacuterbio de ansiedade que faz com que pessoas que tenham presenciado ou sido viacutetimas de atos percebidos como intensamente violentos pas-siacuteveis de comprometerem sua seguranccedila ou de outrem revivam o episoacutedio pela representaccedilatildeo mental mas como se ele estivesse ocorrendo novamente revivendo-se as mesmas sensaccedilotildees dores e sofrimentos experimentados outrora mesmo diante de fatos novos potencialmente menos danosos Jaacute quando agrave segunda a siacutendrome se desenvolve em trecircs fases primeira o agressor assume postu-ras que criam tensotildees no relacionamento depois o estado de ten-satildeo migra para as agressotildees efetivas de qualquer espeacutecie por fim

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ocorre a fase da reconciliaccedilatildeo em que a mulher perdoa o agressor mas o ciclo de violecircncia recomeccedila e a viacutetima passa a atribuir a si a culpa dos atos do seu algoz assumindo a responsabilidade por eles ocorrerem Este estado mental continuado pode desencadear sintomas psicoloacutegicos e psicossomaacuteticos diversos alterando inclu-sive a percepccedilatildeo de realidade da viacutetima

A anamnese poderia ser composta de trecircs blocos de per-guntas semiestruturadas em cujas respostas a ofendida entrevista-da poderia desenvolver os detalhes acerca dos sintomas sem que percebesse que estaria falando deles

1ordf Fase Caracteriacutesticas gerais da violecircncia psicoloacutegica previstas na LMP

1) Vocecirc acha que por algum motivo o comportamento ou a atitude do seu namoradocompanheiromarido (NCM) compro-meteu ou compromete o sentimento de valor e seguranccedila que vocecirc tem de vocecirc mesma Relate os episoacutedios quando eles ocorrem e o que vocecirc sente quando eles acontecem (Esse quesito investiga a diminuiccedilatildeo de autoestima e seguranccedila da viacutetima)

2) Vocecirc acha que em razatildeo de algum comportamento ou atitude do seu NCM vocecirc se sentiu ou se sente controlada ou me-nosprezada com relaccedilatildeo ao que vocecirc acredita e quer para si no que se refere a comportamentos crenccedilas e decisotildees de vida Relate os episoacutedios e se eles ocorrem mediante algum desses elementos ameaccedila constrangimento humilhaccedilatildeo manipulaccedilatildeo isolamento vigilacircncia constante perseguiccedilatildeo frequente insulto chantagem ridicularizaccedilatildeo exploraccedilatildeo limitaccedilatildeo do seu desejo de se deslocar para onde queira ou outro natildeo especificado

2ordf Fase Caracteriacutesticas acerca do Transtorno de Estresse Poacutes-traumaacutetico

3) Relate que tipo de violecircncia vocecirc sofreu do seu NCM quando e com que frequecircncia ela(s) ocorreu(ram) ou ocorre(m)

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fiacutesica (lesatildeo ao corpo) psicoloacutegica (que a deixou desestabilizada emocionalmente por um periacuteodo de meacutedio a longo prazo) sexual (praacutetica de ato sexual natildeo consentido) tortura (sofreu lesotildees me-diante praacuteticas que vocecirc considerou abominaacuteveis ou especialmen-te ultrajantes) patrimonial (teve seus objetos pessoais e bens dani-ficados ou destruiacutedos) moral (sentiu-se atacada na sua honra ou quanto ao conceito que vocecirc tem de vocecirc mesma ou ainda quanto ao conceito que acredita que os outros tecircm de vocecirc)

4) Vocecirc tem lembranccedilas espontacircneas recorrentes (natildeo su-geridas por outrem) desse(s) episoacutedio(s) de violecircncia(s) Tem pe-sadelos com ele(s) Explique em que situaccedilotildees essas lembranccedilas (flashbacks) acontecem

5) Haacute objetos lugares pessoas comportamentos muacutesicas contatos atividades ou qualquer outra coisa que a remeta agrave lem-branccedila da(s) violecircncia(s) Vocecirc costuma usar da estrateacutegia de fuga ou desvio de quaisquer dessas coisaspessoascircunstacircncias que a possam rememorar a lembranccedila da agressatildeo sofrida Explique como vocecirc lida com essas lembranccedilas

6) Como vocecirc avalia o seu grau de interesse afetivo pelas pessoas que fazem parte de seu ciclo de vida (NCM pais filhos irmatildeos amigos colegas de escolafaculdade ou trabalho) Sente que essas relaccedilotildees jaacute foram mais prazerosas que mantecircm uma es-tabilidade quanto agrave sua satisfaccedilatildeo pessoal ou esse grau de satisfa-ccedilatildeo diminuiu Relate situaccedilotildees que possam respaldar os sentimen-tos relatados

7) Quando ocorrem fatos que lhe causam tensatildeo e que vocecirc considera anormais agrave sua rotina (fatos que causam excitaccedilatildeo emo-cional) vocecirc considera que tem um bom grau de autocontrole em relaccedilatildeo a eles ou se acha muito sensiacutevel a essas situaccedilotildees Vocecirc tem reaccedilotildees a esses fatos que considere repentinas eou instantacircneas que causam aceleraccedilatildeo de batimentos cardiacuteacos transpiraccedilatildeo ca-lor ou medo de morrer Apoacutes essas situaccedilotildees eacute comum vocecirc apre-sentar dificuldades para comeccedilar a dormir ou atingir sono profun-do dificuldade de concentraccedilatildeo facilidade de irritaccedilatildeo estado de alerta (hipervigilacircncia) ou alteraccedilatildeo de seu ciclo de fome deixando

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de sentir fome ou comendo demais por ansiedade8) Vocecirc se sente impotente em algum aspecto da sua vida

Acha-se incapaz de se proteger de perigos De alguma forma ou em algum grau natildeo tem esperanccedilas em relaccedilatildeo ao futuro ou tem sensaccedilatildeo de vazio A que vocecirc atribui essas sensaccedilotildees

3ordf Fase Caracteriacutesticas acerca da Siacutendrome da Mulher Espancada

9) Vocecirc considera que tem dependecircncia econocircmica em re-laccedilatildeo ao seu NCM Decirc detalhes da sua vida financeira e se souber do orccedilamento familiar (receitas e despesas)

10) Antes das agressotildees sofridas seu NCM criava situa-ccedilotildees que a deixavam embaraccedilada incomodada e que a faziam pen-sar que talvez ele natildeo fosse a melhor pessoa para vocecirc Relate os episoacutedios que lembre

11) Seu NCM costumava ou costuma pedir perdatildeo eou demonstrar arrependimento profundo apoacutes os episoacutedios de vio-lecircncia cometidos Vocecirc perdoou seu NCM das agressotildees que so-freu dele O que vocecirc levou em consideraccedilatildeo para perdoaacute-lo

12) Depois do perdatildeo agraves agressotildees o relacionamento cos-tuma ficar bem por certo tempo (em clima de lua de mel) Com que frequecircncia estes episoacutedios de arrependimento aconteciam ou acontecem Quanto tempo costuma transcorrer ateacute o proacuteximo epi-soacutedio de agressatildeo

13) Mesmo depois da(s) agressatildeo(otildees) sofrida(s) vocecirc con-sidera que conseguiraacute manter um clima de paz no relacionamento e que convenceraacute o seu NCM a fazer o mesmo Quais as estrateacute-gias que costuma usar Explique o que vocecirc acha que levaraacute a esse estado de paz

14) Por que vocecirc acha que essas agressotildees acontecem (A intenccedilatildeo da pergunta eacute avaliar se a viacutetima se sente culpada pelas agressotildees sofridas indicando seu grau de vulnerabilidade)

15) Vocecirc teme ser agredida de uma forma mais grave pelo seu NCM Houve ameaccedila dele nesse sentido Em caso afirmativo relate o que a leva a ter esse medo

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16) Seu NCM fez ou faz ameaccedilas de agredir a vocecirc ou a algueacutem que vocecirc ame caso de separeseparasse dele Relate epi-soacutedios

17) Vocecirc se sente impotente para tomar alguma atitude contra o seu NCM que possa resultar em puniccedilatildeo dele em razatildeo da(s) agressatildeo(ccedilotildees) sofrida(s) por vocecirc Por quecirc Explique

18) Vocecirc acredita ou acreditava que o contato com auto-ridades para tratar da violecircncia sofrida faraacute(ia) com que vocecirc so-fra(fesse) agressotildees mais graves por seu NCM Em caso positivo explique o que a leva a pensar assim

19) Vocecirc costuma ingerir bebidas alcooacutelicas usar drogas ou fazer uso de algum medicamento Considera que depois das agressotildees sofridas esses haacutebitos ficaram mais recorrentes no seu dia a dia

Importante destacar que essa anamnese tem a finalidade de o Delegado de Poliacutecia poder proceder a um relatoacuterio mais com-pleto em que aflorem caracteriacutesticas da lesatildeo agrave sauacutede da ofendida em razatildeo da violecircncia psicoloacutegica e para que a par dessa consta-taccedilatildeo o Ministeacuterio Puacuteblico possa denunciar o agressor com fulcro no caput do art 129 do Coacutedigo Penal combinado com o seu sect9ordm de sorte a atribuir agrave violecircncia psicoloacutegica uma razatildeo autocircnoma para a condenaccedilatildeo criminal por lesatildeo agrave sauacutede psicoloacutegica ou havendo con-comitacircncia com outras formas de violecircncia para que seja conside-rada como motivaccedilatildeo para majoraccedilatildeo da dosimetria da pena em razatildeo do elevado grau de culpabilidade (intensidade de dolo) impu-tado ao agressor

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Diante do que se observou os fins colimados pela Lei Ma-ria da Penha na sua melhor extensatildeo dependem do desapego da praacutetica juriacutedica ndash sobretudo na fase de persecuccedilatildeo criminal preli-minar ndash a uma postura culturalmente positivista e ou reducionista de se esperar que a lei ofereccedila soluccedilotildees ostensivamente previstas para as demandas criminais que envolvam a violecircncia domeacutestica

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No que interessa agrave figura da violecircncia psicoloacutegica urge observar que a sua consideraccedilatildeo nos casos concretos se serve para bem mais do que funcionar como vetor de poliacutetica criminal que permita remeter os processos de violecircncia domeacutestica para a com-petecircncia das(dos) VarasJuizados de Violecircncia Domeacutestica e familiar contra a mulher imprimindo a esses casos a possibilidade de medi-das protetivas de urgecircncia em favor da ofendida e medidas restri-tivas mais duras contra o agressor que convirjam com a poliacutetica de coibiccedilatildeo da violecircncia contra a mulher

Mais do que isso a legislaccedilatildeo oferece alternativas para que os agressores se vejam condenados pela proacutepria violecircncia psico-loacutegica como resultado de uma tipificaccedilatildeo da ofensa agrave sauacutede (caput do art 129 do Coacutedigo Penal) ou como elemento que incremente a dosimetria penal em razatildeo da sua incidecircncia sobre o grau de culpa-bilidade enquanto intensidade do dolo na praacutetica do delito

Eacute preciso entretanto que os operadores do direito do sis-tema de justiccedila se deem agrave atribuiccedilatildeo de juiacutezo de valor ao elemento normativo sauacutede encontrado no tipo do art 129 para que a respos-ta judicial quanto agrave violecircncia psicoloacutegica apareccedila nos nuacutemeros do Judiciaacuterio Para isso fazem-se necessaacuterios incentivar a aquisiccedilatildeo de conhecimentos transdisciplinares pelos profissionais do Siste-ma de Justiccedila e a criaccedilatildeo de fluxos desde as delegacias de poliacutecia com formulaccedilatildeo de questionaacuterios agraves ofendidas agrave guisa de anamne-se para que haja indiacutecios fortes que possam fundar accedilotildees penais puacuteblicas que sejam aptas a provocar condenaccedilotildees por ldquolesatildeo agrave sauacute-de psicoloacutegicardquo

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CIDADE SEM FRONTEIRAS FRONTEIRAS SEM CIDADES

Daniella S Dias1

RESUMO O presente artigo eacute um estudo bibliograacutefico e aponta processo de urbanizaccedilatildeo global a desigualdade planetaacuteria a periferizaccedilatildeo e a favelizaccedilatildeo mundiais como efeitos da globalizaccedilatildeo Apresenta reflexotildees sobre os efeitos da produccedilatildeo capitalista do espaccedilo sobre nossas cidades e sobre nossas vidas e como o atual modelo capitalista tem corroborado para que nossas cidades se tornem espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de atividades capitalistas produtivas Aponta a responsabilidade do Estado para o controle sobre o territoacuterio face agrave transformaccedilatildeo que o modelo capitalista produz nos espaccedilos urbanos e rurais e para a implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais para o enfrentamento da segregaccedilatildeo e da desigualdade social e analisa como as atuais poliacuteticas habitacionais implementadas pelo Estado brasileiro tem propiciado a segregaccedilatildeo socioespacial e a financeirizaccedilatildeo da moradia

PALAVRAS-CHAVE Globalizaccedilatildeo Direito agrave moradia Direito agrave cidade

ABSTRACT The present article is a bibliographic study that addresses the process of global urbanization the planet social inequality the peripheraization and the world phenomenon of shanty towns as effects of globalization It provides reflections on the effects of the capitalist space production in our cities and our lives as well as on how the current capitalist model has supported the fact that our cities have become essential spaces for the development of capitalist production activities It addresses the responsibilities of the State with the control over territorial space vis-a-vis the transformation that the capitalist model has caused in the urban and rural spaces as well as with the implementation of housing development policies for coping with the social segregation

1 Doutora em Direito Puacuteblico ndash UFPE Professora da Graduaccedilatildeo e Poacutes-graduaccedilatildeo UFPAUNIFESSPA e Promotora de Justiccedila

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and inequality Furthermore it analyzes how the current housing devepment policies as implemented by the Brazilian State has led to the socio-spatial segregation and the financialization of housing development

KEYWORDS Globalization Right to the city The right to housing

INTRODUCcedilAtildeO

Neste artigo pretendemos abordar alguns dos temas mais delicados a serem enfrentados pelos paiacuteses desenvolvidos e sub-desenvolvidos como o processo de urbanizaccedilatildeo global de perife-rizaccedilatildeo e de favelizaccedilatildeo mundiais a desigualdade planetaacuteria e o desafio de concretizaccedilatildeo do direito agrave cidade Contudo nenhuma reflexatildeo pode ser realizada de forma descontextualizada pois o processo de urbanizaccedilatildeo global tem intriacutenseca relaccedilatildeo com o de-senvolvimento do modelo capitalista transnacional e seus deleteacute-rios efeitos sobre a qualidade de vida nos espaccedilos urbanos e rurais

Eacute necessaacuterio refletir sobre os processos de diferenciaccedilatildeo espacial que seguem apartando camadas hipossuficientes das possibilidades de desenvolvimento humano e de exerciacutecio da cidadania culminando em segregaccedilatildeo histoacuterica cultural econocirc-mica tecnoloacutegica e digital Nesse sentido a mundializaccedilatildeo do ca-pital tem intriacutenseca relaccedilatildeo com a existecircncia e com a inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas habitacionais o que tem tornado nossas cida-des espaccedilos para a reproduccedilatildeo do capital

Uma das funccedilotildees do Estado para o controle sobre o terri-toacuterio face agrave transformaccedilatildeo que o modelo capitalista produz nos es-paccedilos urbanos e rurais eacute a de implementar poliacuteticas habitacionais como forma de enfrentamento da segregaccedilatildeo e da desigualdade social Refletir sobre o direito agrave moradia como bem social eacute tarefa imprescindiacutevel tarefa que natildeo se realiza sem anaacutelise criacutetica sobre as atuais poliacuteticas habitacionais implementadas pelo Estado brasi-leiro

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A Globalizaccedilatildeo o Processo de Urbanizaccedilatildeo Global e a Desigualdade Planetaacuteria

A globalizaccedilatildeo eacute uma nova ordem paradigmaacutetica (CUNHA 1998) que por meio das revoluccedilotildees teacutecnico-cientiacuteficas e das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas levou agrave compressatildeo das categorias tempo e espaccedilo (BECK 2000) Trata-se de uma nova forma de in-terconexatildeo entre Estado e sociedade interconexatildeo que se estabele-ce por meio de um novo marco econocircmico que gerou e tem pro-vocado profundas modificaccedilotildees nos acircmbitos econocircmico poliacutetico juriacutedico ambiental cultural e sobretudo territorial (DIAS 2010)

Para Julio-Campuzano (2003 p 19-20)

La globalizacioacuten representa como sostiene Octavio Ianni un nuevo ciclo de expansioacuten del capitalismo como modo de produccioacuten y proceso civilizatorio de alcance mundial un ciclo caracterizado por la integracioacuten de los mercados de forma avasalladora y por la intensificacioacuten de la circulacioacuten de bienes servicios tecnologiacuteas capitales e informaciones a niacutevel planetario De este modo la globalizacioacuten apa-rece concebida como la lsquointegracioacuten sisteacutemica de la economiacutea a nivel supranacional deflagrada por la creciente diferenciacioacuten estructural y funcional de los sistemas productivos y por la subsiguiente am-pliacioacuten de las redes empresariales comerciales y fi-nancieras a escala mundial actuando de modo cada vez maacutes independiente de los controles poliacuteticos y juriacutedicos a nivel nacionalrsquo Es lo que Wallerstein ha denominado lsquo economiacutea mundial capitalistarsquo un nuevo marco econocircmico mundial regido por el siste-ma capitalista cuya dinaacutemica expansiva alcanza asiacute su culminacioacuten De un extremo a otro del planeta el capitalismo se extiende y se ramifica en muacuteltiples derivaciones locales un uacutenico sistema cuyos des-doblamientos crean uma imagen de particularidad

O modelo capitalista global ou como apontam alguns au-tores o modelo capitalista transnacional tecnologicamente avan-ccedilado tem como consequecircncias o aumento do trabalho informal

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a precarizaccedilatildeo das relaccedilotildees trabalhistas a crise ecoloacutegica (BECK 2000) o aumento da desigualdade planetaacuteria cabendo destacar o processo de urbanizaccedilatildeo planetaacuteria que ocorre concomitantemen-te ao aumento da pobreza da periferizaccedilatildeo de enormes camadas populacionais e da inexistecircncia de condiccedilotildees de moradia digna (HARVEY 2014)

A desigualdade planetaacuteria se revela no crescimento ex-ponencial das favelas no processo de expansatildeo urbana ldquosem ci-dadesrdquo na falta de planejamento urbano e da prestaccedilatildeo de ser-viccedilos essenciais como saneamento baacutesico iluminaccedilatildeo seguranccedila puacuteblica entre outros serviccedilos Como bem ressalta Davis (2006) a expansatildeo urbana natildeo eacute a expressatildeo do desenvolvimento humano mas sim da reproduccedilatildeo da pobreza

Pobreza e favelizaccedilatildeo satildeo temas intrinsecamente rela-cionados Para Davis (2006) o crescimento populacional urbano no Terceiro Mundo nas proacuteximas deacutecadas dar-se-aacute nos espaccedilos destinados agraves comunidades informais

Os dados sugerem que os assentamentos precaacuterios seratildeo formas dominantes de ocupaccedilatildeo territorial Segundo pesquisa rea-lizada pela ONU 32 da populaccedilatildeo mundial vivem em favelas (COSTA e PORTO-GONCcedilALVES 2006) e os assentamentos precaacute-rios trazem consigo problemas de distintas ordens Contudo vale destacar de acordo com Castel (2008) dentre os efeitos nefastos do processo de periferizaccedilatildeo mundial a segregaccedilatildeo social cultural poliacutetica tecnoloacutegica ambiental e territorial

As periferias natildeo se caracterizam apenas por ser espaccedilos de vida que se produziram de forma espontacircnea por meio da au-toconstruccedilatildeo desprovidos de serviccedilos essenciais do planejamento e da intervenccedilatildeo do estado Os espaccedilos perifeacutericos satildeo para Castel (2008 p 24-25) ldquoespaccedilos de desterrordquo de falta de futuro espaccedilos fraacutegeis que revelam a total ruptura do tecido social

O espaccedilo como bem pontua Santos (2008) eacute relacional O espaccedilo eacute dinacircmico resultado da intriacutenseca relaccedilatildeo entre configura-ccedilatildeo territorial paisagem e sociedade eacute ldquoo resultado da geografi-zaccedilatildeo da sociedade sobre a configuraccedilatildeo territorialrdquo (Idem p 85)

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Para o autor satildeo as relaccedilotildees socioespaciais as estruturas sociais que sofrem profundas modificaccedilotildees com o capital Portanto eacute ne-cessaacuterio refletir sobre os processos de diferenciaccedilatildeo espacial que seguem apartando camadas hipossuficientes das possibilidades de desenvolvimento humano e de exerciacutecio da cidadania

No Brasil natildeo podemos deixar de destacar que o processo de segregaccedilatildeo socioespacial eacute histoacuterico e natildeo se trata tatildeo somente de uma segregaccedilatildeo territorial A segregaccedilatildeo territorial traz a rebo-que uma segregaccedilatildeo histoacuterica cultural e econocircmica tecnoloacutegica e digital (DIAS 2014)

Davis (2006 p 27) ao tratar sobre o crescimento das fave-las no Brasil afirma que

As favelas de Satildeo Paulo ndash meros 12 da populaccedilatildeo em 1973 mais 198 em 1993 ndash cresceram na deacuteca-da de 1990 no ritmo explosivo de 164 ao ano Na Amazocircnia uma das fronteiras urbanas que cres-cem com mais velocidade em todo mundo 80 do crescimento das cidades tecircm-se dado nas favelas privadas em sua maior parte de serviccedilos puacuteblicos e transporte municipal tornando assim sinocircnimos lsquourbanizaccedilatildeorsquo e lsquofavelizaccedilatildeorsquo

Vale salientar como bem sintetiza Herardi (2017) a mun-dializaccedilatildeo do capital trouxe como efeitos o deacuteficit de poliacuteticas puacute-blicas habitacionais deacuteficit que propiciou ldquoa produccedilatildeo ilegal do espaccedilo urbanordquo ( p 6) Para a autora ldquoo quadro atual representa a continuidade do processo histoacuterico iniciado com a industrializaccedilatildeo e desenvolvimento econocircmico do Estado brasileiro sempre marca-do pela exclusatildeo e desigualdade socialrdquo (Idem)

Precisamos portanto refletir sobre os efeitos da produccedilatildeo capitalista do espaccedilo sobre nossas cidades e sobre nossas vidas pois o modelo capitalista por meio de sua ldquodestruiccedilatildeo criativardquo transforma paulatinamente nossas cidades em puro espaccedilo de tro-cas isto eacute espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de ativida-des capitalistas produtivas

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O Mercado Existe para as Cidades Ou as Cidades Existem para o Mercado

Essas perguntas natildeo podem ser respondidas sem que nos debrucemos sobre a anaacutelise teoacuterica realizada por David Harvey

Para Harvey (2014 p 30)

Desde que passaram a existir as cidades surgiram da concentraccedilatildeo geograacutefica e social de um excedente de produccedilatildeo A urbanizaccedilatildeo sempre foi portanto al-gum tipo de fenocircmeno de classe uma vez que os ex-cedentes satildeo extraiacutedos de algum lugar ou de algueacutem enquanto o controle sobre o uso desse lucro acumu-lado costuma permanecer nas matildeos de poucos

Essa situaccedilatildeo geral persiste sob o capitalismo sem duacutevida mas nesse caso haacute uma dinacircmica bem di-ferente em atuaccedilatildeo O capitalismo fundamenta-se como nos diz Marx na eterna busca de mais valia (lucro) Contudo para produzir mais valia os ca-pitalistas tecircm de produzir excedentes de produccedilatildeo Isso significa que o capitalismo estaacute eternamente produzindo os excedentes de produccedilatildeo exigidos pela urbanizaccedilatildeo A relaccedilatildeo inversa tambeacutem se apli-ca O capitalismo precisa da urbanizaccedilatildeo para ab-sorver o excedente de produccedilatildeo que nunca deixa de produzir Dessa maneira surge uma ligaccedilatildeo iacutentima entre o desenvolvimento do capitalismo e a urbani-zaccedilatildeo (HARVEY 2014 p 30 grifo nosso)

[] A urbanizaccedilatildeo desempenha um papel particular-mente ativo (ao lado de outros fenocircmenos como os gastos militares) ao absorver as mercadorias exce-dentes que os capitalistas natildeo param de produzir em sua busca de mais-valia (Idem)

Se como leciona Harvey existe uma intriacutenseca relaccedilatildeo entre produccedilatildeo capitalista e urbanizaccedilatildeo atualmente o processo de urbanizaccedilatildeo se tornou global e a possibilidade de absorccedilatildeo do capital excedente tem provocado profundas modificaccedilotildees nos pro-cessos de expansatildeo urbana

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Eacute importante refletir sobre os efeitos da produccedilatildeo capita-lista sobre o espaccedilo para que possamos perceber que a apropriaccedilatildeo dos espaccedilos urbanos e rurais tem se dado de forma a beneficiar os interesses capitalistas viabilizando acumulaccedilatildeo e expansatildeo do proacuteprio sistema (DIAS 2014) Harvey chama a atenccedilatildeo para o fato de que as transformaccedilotildees espaciais provocadas pelo modelo capi-talista modificam natildeo somente os espaccedilos fiacutesicos mas sobretudo as relaccedilotildees sociais pois ldquoem razatildeo da eterna necessidade de encon-trar esferas rentaacuteveis para produccedilatildeo e absorccedilatildeo do excedente do capitalrdquo (Idem p 31) o capitalismo se apropria de novos recursos naturais produz novas tecnologias cria novos meios de produccedilatildeo utiliza-se da oferta de infraestrutura e da matildeo de obra organizan-do a sua proacutepria expansatildeo geograacutefica (Ibidem p 45) Essa reestru-turaccedilatildeo do capitalismo ocorre concomitantemente a uma transfor-maccedilatildeo do modelo de urbanizaccedilatildeo pois os espaccedilos urbanos passam a ser espaccedilos primordiais para o desenvolvimento de atividades capitalistas lucrativas Por isso Harvey afirma que

A cidade tradicional foi morta pelo desenvolvi-mento capitalista descontrolado vitimada por sua interminaacutevel necessidade de dispor da acumulaccedilatildeo desenfreada de capital capaz de financiar a expan-satildeo interminaacutevel e desordenada do crescimento ur-bano sejam quais forem suas consequecircncias sociais ambientais ou poliacuteticasrdquo (HARVEY 2014 p 20 gri-fo nosso)

A necessidade interminaacutevel de expansatildeo urbana para ab-sorccedilatildeo dos excedentes do capital tem intriacutenseca relaccedilatildeo com a ex-pansatildeo do mercado imobiliaacuterio tornando quase tudo mercadoria Aliaacutes para Bensaiumld (2013 p 8)

Na realidade do mundo atual o capitalismo se aproxima de seu conceito teoacuterico Faz tudo virar mercadoria as coisas os serviccedilos o saber e a vida Generaliza a privatizaccedilatildeo dos bens comuns da humanidade Desencadeia a concorrecircncia de todos contra todos (Grifo nosso)

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Se o dinheiro eacute ldquoo verdadeiro poder e finalidade uacutenicardquo e como afirma Marx (apud BENSAIumlD 2013 p 33) ldquoeacute a verdadeira capacidaderdquo nossas cidades podem ser ldquopurardquo mercadoria O mercado existe para as cidades Ou as cidades existem para o mer-cado

Sandel (2012) chama a atenccedilatildeo para o fato de que os valo-res de mercado estatildeo dominando quase todos os aspectos da vida por consequecircncia quanto mais o dinheiro pode comprar maior desigualdade teremos na sociedade O dinheiro estaacute controlando nossas cidades e nossas fronteiras Estaacute ldquoimplodindordquo por meio da ldquodestruiccedilatildeo criativardquo (HARVEY 2014 p 49) nossas fronteiras e por consequecircncia nossas cidades

Quando o mercado passa a governar nossas cidades os efeitos da desigualdade social se agudizam e natildeo podemos des-cartar ndash de nossa anaacutelise sobre os desafios para o enfrentamento da exclusatildeo socioespacial do processo de favelizaccedilatildeo global e da periferizaccedilatildeo de nossas cidades ndash o fato de que a expansatildeo econocirc-mica capitalista estaacute transformando nossas cidades em mercado-rias subjacente a esses problemas estaacute a grande polarizaccedilatildeo social fruto da desigual distribuiccedilatildeo da riqueza (MENDES 2013)

O efeito nefasto da ldquomercantilizaccedilatildeordquo de nossos espaccedilos territoriais eacute a desumanizaccedilatildeo das nossas cidades registrada nas formas espaciais verdadeiro mosaico de desigualdades e de pri-vaccedilotildees

Os dados alarmantes revelam que o Estado por meio da inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas e de planejamento assistiu im-passiacutevel ao aumento das habitaccedilotildees informais e ao crescimento das favelas E segundo Davis ldquoas favelas apesar de serem funestas e inseguras tecircm um esplecircndido futurordquo (DAVIS 2006 p 155 grifo nosso)

Para Harvey (2014 p 59)

A urbanizaccedilatildeo desempenhou um papel crucial na absorccedilatildeo de excedentes de capital e o que tem feito em escala geograacutefica cada vez maior mas ao preccedilo de processos florescentes de destruiccedilatildeo criativa que

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implicam a desapropriaccedilatildeo das massas urbanas de todo e qualquer direito agrave cidade (HARVEY 2014 p 59)

Nossas cidades estatildeo cada dia mais desiguais mais vio-lentas mais poluiacutedas e insustentaacuteveis e muito pouco tem sido feito para transformar essa realidade Nossas cidades satildeo caras e insus-tentaacuteveis do ponto de vista social cultural poliacutetico e ambiental

A pobreza urbana as precaacuterias condiccedilotildees de vida nas fa-velas a inexistecircncia de poliacuteticas puacuteblicas habitacionais consisten-tes a marginalidade econocircmica territorial poliacutetica e social a que satildeo submetidos milhares de cidadatildeos brasileiros a inexistecircncia de higiene e de condiccedilotildees sanitaacuterias a falta de acesso agrave aacutegua potaacutevel a inseguranccedila juriacutedica da posse tornam esses habitantes e seus ter-ritoacuterios invisiacuteveis

A desigualdade social poliacutetica territorial digital eacute o gran-de desafio para a sociedade e para o Estado De nada adianta teo-rizarmos sobre a necessidade de efetivaccedilatildeo dos Direitos Humanos sem considerarmos o cenaacuterio mundial marcado pela desigualda-de planetaacuteria pelo desemprego estrutural pelas cataacutestrofes am-bientais e pelo crescimento do crime organizado

Seraacute que o direito como instrumento de controle social poderaacute agregar conjunto valorativo transformador agrave implementa-ccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Seraacute que o direito pode ser ferramenta para a transformaccedilatildeo do quadro atual de desigualdade no que diz respeito ao acesso a poliacuteticas puacuteblicas habitacionais Ou a moradia virou ldquopura mercadoriardquo Essas indagaccedilotildees se fazem pertinentes porque o planejamento e ordenamento territorial satildeo ferramentas importantes para definiccedilatildeo de atividades e de funccedilotildees bem como para prover necessidades concretas dos que habitam os espaccedilos territoriais Nesse sentido indaga-se em que medida eacute possiacutevel que o Estado realize o controle sobre o territoacuterio face agrave transforma-ccedilatildeo que o capital propulsiona nos espaccedilos urbanos e rurais

Essas indagaccedilotildees estatildeo relacionadas agrave analise sobre a im-plementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais no Brasil para que possa-mos refletir criticamente sobre o processo de implementaccedilatildeo de

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poliacuteticas habitacionais e sobre a ldquocontinuidade do processo histoacute-ricordquo de produccedilatildeo espaccedilos urbanos marcados pela segregaccedilatildeo e desigualdade social

Moradia Bem Social ou Mercadoria

No Brasil a Emenda Constitucional nordm 26 inseriu o direito agrave moradia como direito social na Constituiccedilatildeo Federal de 1988 no Capiacutetulo II artigo 6ordm em 14 de abril de 2000

Apesar de o texto constitucional determinar aos entes fe-derativos mesmo antes do reconhecimento do direito agrave moradia como direito social a responsabilidade de ldquopromover programas de construccedilatildeo de moradia e a melhoria das condiccedilotildees habitacionais e de saneamentordquo (Art 23 IX CF) apesar de o Estatuto da Cidade determinar em seu artigo 2deg inciso I que o municiacutepio tem por competecircncia realizar o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade bem como garantir o direito agrave cidade sustentaacutevel sendo esse o direito agrave terra urbana agrave moradia ao saneamento ambien-tal agrave infraestrutura urbana ao transporte e aos serviccedilos puacuteblicos ao trabalho e ao lazer para as presentes e futuras geraccedilotildees (artigo 2deg inciso I Lei nordm 102572001) apesar de referidas determinaccedilotildees serem normas cogentes determinando aos entes federados a reali-zaccedilatildeo de programas de poliacuteticas para que todos possam viver e ter acesso agrave moradia digna as poliacuteticas para garantir o direito agrave cidade e o direito agrave moradia satildeo fraacutegeis incipientes e passiacuteveis de criacuteticas

Saule Jr (1999 p 96) ao tratar do direito agrave moradia como um direito cuja aplicaccedilatildeo eacute imediata dotado de eficaacutecia plena aler-ta

Isto eacute de imediato o Estado Brasileiro tem a obriga-ccedilatildeo de adotar as poliacuteticas accedilotildees e demais medidas compreendidas e extraiacutedas do texto constitucional para assegurar e tornar efetivo esse direito em es-pecial aos que se encontram em estado de pobreza e miseacuteria

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Apesar de ser prioridade e obrigatoacuterio para o Estado criar poliacuteticas de desenvolvimento urbano que propiciem o direito agrave ci-dade sustentaacutevel e viabilizem o acesso agrave moradia digna segura adequada em um local livre de desastres e que o meio ambiente esteja protegido (SALDANHA 2016) apesar de diversas normas brasileiras tratarem da necessidade de estabelecimento de poliacuteti-cas puacuteblicas que propiciem o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade para garantir a qualidade de vida das presentes e futuras geraccedilotildees o que se constata eacute que grande parte dessas poliacuteticas natildeo priorizam a concretizaccedilatildeo da dignidade da pessoa humana

No Brasil a falta de planejamento eacute a tocircnica o que po-tencializa a ocorrecircncia de conflitos relacionados agrave apropriaccedilatildeo dos espaccedilos territoriais

Apesar de ser responsabilidade dos entes da Federaccedilatildeo criar poliacuteticas puacuteblicas para o enfrentamento das desigualdades abissais de acesso agrave cultura agrave sauacutede agrave seguranccedila puacuteblica agrave qua-lidade de vida ao meio ambiente sadio agrave moradia a ocupaccedilatildeo do territoacuterio brasileiro continua a ser feita sem o planejamento democraacutetico e sem enfrentamento da exclusatildeo socioespacial Os efeitos deleteacuterios da falta de planejamento e da falta de intervenccedilatildeo do Estado na organizaccedilatildeo e no controle do processo de expansatildeo urbana estatildeo intrinsecamente relacionados agrave expansatildeo do merca-do agrave manipulaccedilatildeo do espaccedilo urbano caracterizando diferenccedilas sociais econocircmicas e poliacuteticas (SANTOS 2007) assim como o au-mento da violaccedilatildeo dos direitos humanos

O planejamento para o ordenamento territorial eacute a uacutenica possibilidade para o enfrentamento da polarizaccedilatildeo social pois a pobreza a desigualdade a exclusatildeo territorial poliacutetica e econocircmi-ca satildeo decorrentes das distintas formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Contudo os modelos de planejamento e os processos de decidibili-dade devem buscar a reestruturaccedilatildeo do proacuteprio processo decisoacuterio por meio da gestatildeo democraacutetica Eacute preciso que os cidadatildeos sejam ouvidos acerca das suas necessidades especiacuteficas como sauacutede mo-radia saneamento educaccedilatildeo trabalho Eacute preciso que haja um re-

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desenho do modelo de planejamento um redesenho a partir do processo decisoacuterio que deve possibilitar a ampla discussatildeo com a sociedade (SILVEIRA 1999)

Em suma o processo de planejamento urbano deve ter por finalidade o cumprimento das funccedilotildees sociais da cidade Haacute valores intangiacuteveis para garantir o direito agrave cidade e esses valores estatildeo intrinsecamente relacionados agrave possibilidade de que todos possam em igualdade de condiccedilotildees ter uma vida digna e acesso a uma moradia digna

E natildeo se trata de mera liberalidade do gestor puacuteblico O Estatuto da Cidade e o Texto constitucional propotildeem uma nova forma de compreensatildeo do exerciacutecio do direito de propriedade e do cumprimento da funccedilatildeo social da propriedade mudanccedila para-digmaacutetica que vincula a atuaccedilatildeo de legisladores administradores e operadores do direito

No que tange agrave obrigatoriedade de implementaccedilatildeo de po-liacuteticas habitacionais no Brasil constata-se que os assentamentos humanos informais satildeo locais onde eacute impossiacutevel se ter uma vida decente e tambeacutem iremos constatar a partir da leitura de textos de Rolnik (2015) que a atual poliacutetica habitacional para prover o di-reito agrave moradia sequer considera os requisitos para uma habitaccedilatildeo digna E vale aduzir que habitaccedilatildeo digna eacute uma das prioridades que a Uniatildeo definiu para a realizaccedilatildeo de programas e poliacuteticas para o desenvolvimento urbano Vale frisar que o Texto constitucional define como competecircncia de todos os entes da Federaccedilatildeo a promo-ccedilatildeo de programas de construccedilatildeo de moradia e de programas para melhoria das condiccedilotildees habitacionais e de saneamento baacutesico da populaccedilatildeo brasileira (artigo 23 inciso IX CF)

Para Agenda Habitat habitaccedilatildeo digna ou adequada eacute aquela que apresente condiccedilotildees de vida sadia com seguranccedila apresentando infraestrutura baacutesica como suprimento de aacutegua e saneamento baacutesico energia bem como a existecircncia da presta-ccedilatildeo eficiente de serviccedilos puacuteblicos urbanos como sauacutede educaccedilatildeo transporte coletivo coleta de lixo Pressupotildee-se a seguranccedila da ha-bitaccedilatildeo entendida como habitaccedilatildeo em que se faz possiacutevel ir e vir

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em seguranccedila bem como habitar locais que natildeo sejam suscetiacuteveis a desastres naturais Quanto agrave acessibilidade eacute preciso que a in-fraestrutura viaacuteria permita o acesso decente e seguro agrave habitaccedilatildeo2

Infelizmente o processo de financeirizaccedilatildeo da moradia e do solo urbano tem gerado sistemaacuteticas remoccedilotildees violentas de po-pulaccedilotildees hipossuficientes para o estabelecimento de projetos por meio de investimentos puacuteblicos que pouco ou quase nada refletem os interesses da populaccedilatildeo e a necessidade de garantir o direito agrave moradia digna (MENDES 2013)

Rolnik (2015) aponta com riqueza de detalhes os efeitos deleteacuterios dos avanccedilos do complexo imobiliaacuterio-financeiro sobre os territoacuterios populares avanccedilos que satildeo o reflexo da financeiriza-ccedilatildeo da moradia e do solo urbano sob o novo marco do pensamento e praacuteticas neoliberais

Como alerta Rolnik (2016 p01) no Brasil

Tivemos uma mudanccedila de paradigma da habitaccedilatildeo como um bem social para a moradia como uma mer-cadoria a ser produzida pelo setor privado e desem-penhando um papel importante como ativo financei-ro ou seja como uma das esferas onde um capital excedente financeiro global poderia aterrissar para multiplicar renda atraveacutes dos juros

Rolnik (2015) faz profunda anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e imple-mentaccedilatildeo do Programa Minha Casa Minha Vida apontando clara-mente que o programa teve por objetivo principal o salvamento de incorporadoras financeirizadas e tornou-se a poliacutetica habitacional que estabeleceu um uacutenico modelo de acesso agrave casa proacutepria por meio do mercado e do creacutedito hipotecaacuterio Vale ressaltar que essa poliacutetica habitacional manteacutem o padratildeo de segregaccedilatildeo socioespa-cial pois os grandes conjuntos habitacionais satildeo construiacutedos via de regra em aacutereas perifeacutericas onde a terra eacute mais barata Como o Programa daacute o poder de decisatildeo aos agentes privados sobre a loca-

2 In Declaracioacuten de Estambul sobre los Asentamientos Humanos Disponiacutevel em URL=unhabitatagendaespanolist-decshtml Acesso em 11 mai 2000

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lizaccedilatildeo e o desenho do projeto os empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida localizam-se nas franjas urbanas recru-descendo a divisatildeo territorial entre ricos e pobres (Idem 2015)

Segundo Rolnik (2015 p 314)

Apesar dos muitos bilhotildees de reais em subsiacutedios puacute-blicos o programa MCMV natildeo impacta a segregaccedilatildeo urbana existente Pelo contraacuterio apenas a reforccedila produzindo novas manchas urbanas monofuncio-nais ou aumentando a densidade populacional de zonas guetificadas jaacute existentes A intensa produccedilatildeo de moradia sem cidade ao longo das deacutecadas de ur-banizaccedilatildeo intensa acabou por gerar ampla segrega-ccedilatildeo e uma seacuterie de problemas sociais que trouxeram ocircnus significativos para o poder puacuteblico nas deacutecadas seguintes fenocircmeno que estaacute se repetindo nova-mente (ROLNIK 2015 p 314)

No Brasil nos uacuteltimos anos sob o discurso da efetivaccedilatildeo do direito agrave moradia estaacute ocorrendo a gentrificaccedilatildeo de nossas ci-dades e a exclusatildeo socioterritorial dos mais pobres (FERREIRA 2011) Esses processos de destruiccedilatildeo criativa (HARVEY 2014 p 49) ldquoacabam por atingir as camadas mais hipossuficientes da po-pulaccedilatildeo brasileirardquo

Nesse sentido Rolnik (2016 p 02) aborda a falta de efeti-vidade do direito agrave moradia

A ideia de implantar programas habitacionais mas-sivos de construccedilatildeo de moradias em nome da ideia de fazer moradias de interesse social foi implantada mundialmente nas uacuteltimas deacutecadas com resultados muito parecidos Se vocecirc for ao Meacutexico hoje na re-giatildeo metropolitana do Distrito Federal encontraraacute milhotildees de casas vazias Se vocecirc for a China encon-traraacute milhotildees de casas e apartamentos vazios Ao mesmo tempo encontraraacute muita gente sem um lu-gar para morar ou vivendo em assentamentos infor-mais construiacutedos pelas proacuteprias pessoas o que estaacute aumentando cada vez mais Esse eacute um fenocircmeno mundial especialmente nos paiacuteses do Sul global na

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Ameacuterica Latina na Aacutefrica e na Aacutesia Nestas regiotildees encontramos essa contradiccedilatildeo uma espeacutecie de des-colamento entre o processo de produccedilatildeo do espa-ccedilo construiacutedo e as necessidades das pessoas Essas duas dimensotildees tornaram-se coisas completamente independentes como se fazer cidades natildeo tivesse como objetivo principal satisfazer as necessidades das pessoas (Grifo nosso)

()Nosso problema no Brasil natildeo eacute deacuteficit de moradia Isso eacute uma falaacutecia Noacutes temos um problema de deacutefi-cit de cidade Natildeo temos produccedilatildeo de cidade sufi-ciente para acolher a totalidade das pessoas Quando vocecirc faz um programa de produccedilatildeo em massa de ca-sas sem ter a produccedilatildeo de cidade embaixo dela vocecirc acaba gerando os problemas que foram gerados no Chile e no Meacutexico por exemplo e que estatildeo come-ccedilando a ser gerados aqui no Brasil com a produccedilatildeo massiva do Minha Casa Minha Vida faixa um na extrema periferia ()Haacute muitos territoacuterios populares autoconstruiacutedos que tecircm plenas condiccedilotildees de permanecer onde es-tatildeo e melhorar infinitamente a condiccedilatildeo urbaniacutestica das pessoas que vivem ali Precisamos de um pro-grama para urbanizar esses assentamentos Estou falando de uma gama de programas Nenhum mo-delo uacutenico vai atender a quantidade diversificada de demandas que noacutes temos A soluccedilatildeo natildeo eacute uma soluccedilatildeo mas satildeo muitas (Grifo nosso)

A configuraccedilatildeo de nossas cidades reflete um padratildeo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano excludente e o Estado brasileiro tem grande responsabilidade pela forma de regulamentaccedilatildeo do uso e do acesso ao solo urbano Quanto menos democraacutetico o acesso ao solo urbano menor parcela da sociedade tem acesso ao direito agrave cidade

O que constatamos eacute que o Programa Minha Casa Minha Vida eacute um exemplo marcante dos efeitos do modelo de produ-ccedilatildeo capitalista em que a supervalorizaccedilatildeo da terra acaba por res-tringir o acesso agrave moradia digna para todos Com o crescimento

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econocircmico temos a reproduccedilatildeo da desigualdade social em nossas cidades e a manutenccedilatildeo da pobreza tendo o Estado um papel im-prescindiacutevel e condescendente para a manutenccedilatildeo da segregaccedilatildeo socioespacial

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Apesar de o Texto constitucional ter incorporado o princiacute-pio da funccedilatildeo social da propriedade e o princiacutepio da funccedilatildeo social da cidade apesar do reconhecimento do direito agrave moradia como um bem social a crise urbana brasileira revela o modelo predatoacuterio de implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais e por consequecircncia de produccedilatildeo de cidades Trata-se de um modelo excludente um modelo de expansatildeo urbana perverso que potencializa e consolida ainda mais a desigualdade em nosso paiacutes

Apesar de termos um conjunto normativo que viabiliza a implementaccedilatildeo de poliacuteticas habitacionais e de regularizaccedilatildeo fun-diaacuteria para que sejam asseguradas a posse e o direito agrave moradia infelizmente nem o direito agrave moradia nem o direito agrave cidade satildeo direitos que de fato estatildeo refletidos nas atuais poliacuteticas habitacio-nais

Acreditamos que as anaacutelises de Marx Harvey Bensaiumld Sandel e Rolnik satildeo fundamentais para o debate Decerto o capi-talismo faz tudo virar mercadoria

O dinheiro estaacute controlando nossas cidades e nossas fron-teiras Por meio da destruiccedilatildeo criativa o modelo capitalista eco-nocircmico transnacional estaacute implodindo nossas fronteiras e por consequecircncia nossas cidades Estamos assistindo a remoccedilotildees sis-temaacuteticas de assentamentos informais para dar lugar ao capital para dar lugar a grandes projetos a grandes empreendimentos imobiliaacuterios

Estamos assistindo ao processo global de financeirizaccedilatildeo da moradia por meio de uma poliacutetica puacuteblica estatal A moradia deixa de ser um direito esculpido na Carta constitucional e torna-se ldquomercadoriardquo acessiacutevel apenas agravequeles que possuem renda

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O Estado brasileiro de matildeos dadas com o capital sob o discurso da efetivaccedilatildeo do direito agrave moradia tem impulsionado a gentrificaccedilatildeo de nossas cidades e a exclusatildeo socioterritorial dos mais pobres

Os efeitos nefastos dessa poliacutetica que amputam o senti-do de cidadania e o verdadeiro valor do princiacutepio da igualdade satildeo diversos contudo apontamos a exclusatildeo do debate puacuteblico de questotildees que natildeo tecircm preccedilo vez que estamos assistindo agrave ldquoprecifi-caccedilatildeordquo de valores intangiacuteveis como centralidade habitaccedilotildees segu-ras e dignas mobilidade e acessibilidade em nossas cidades

O planejamento para o ordenamento territorial eacute a uacutenica possibilidade para o enfrentamento da polarizaccedilatildeo social pois a pobreza a desigualdade a exclusatildeo territorial poliacutetica e econocirc-mica satildeo decorrentes das distintas formas de apropriaccedilatildeo do es-paccedilo Precisamos nos apoderar dos instrumentos juriacutedicos e do planejamento urbano como ferramentas para pensar cidades mais sustentaacuteveis e conduzir criacutetica e urgentemente o planejamento ur-bano Precisamos nos apropriar dos instrumentos juriacutedicos para a transformaccedilatildeo qualitativa de nossos espaccedilos de vida

Precisamos urgente e criticamente conduzir o processo so-cial de ocupaccedilatildeo do territoacuterio por meio do planejamento democraacute-tico como forma de enfrentamento da exclusatildeo social E para isso o Estado precisa de transformaccedilatildeo de profunda mudanccedila nas praacute-ticas poliacuteticas que fortaleccedilam o modelo de produccedilatildeo e expansatildeo urbana desigual intolerante e violento de nossas cidades

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IMPACTO AMBIENTAL TRANSFRONTEIRICcedilO NA PERS-PECTIVA DO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL

Dimas Simotildees Franco Neto1

Oseias Amaral da Silva2

RESUMO A poluiccedilatildeo eacute um tema que dadas as suas caracteriacutesticas deve ser tratada pelo direito internacional puacuteblico O fato eacute que a poluiccedilatildeo como evento ambiental natildeo respeita os limites das soberanias nacionais avanccedilando para aleacutem das fronteiras da naccedilatildeo de sua origem Neste sentido uma regulamentaccedilatildeo juriacutedica que trate da poluiccedilatildeo deve necessariamente calcar-se nos instrumentos do direito internacional tornando o tema da poluiccedilatildeo fronteiriccedila uma questatildeo central do direito internacional ambiental Os sistemas juriacutedicos nacionais preveem a obrigaccedilatildeo do Estudo Preacutevio de Impacto Ambiental quando em face do licenciamento ambiental de atividade potencialmente causadora de significativo impacto ambiental Poreacutem essas normas nacionais nem sempre satildeo suficientes para solucionar a questatildeo da poluiccedilatildeo transfronteiriccedila ou do impacto ambiental trasnfronteiriccedilo que se daacute quando os efeitos de um empreendimento estendem-se para outros Estados Uma soluccedilatildeo seria interpretar as normas nacionais agrave luz dos princiacutepios de direito internacional do meio ambiente Dessa forma no presente trabalho vamos analisar os princiacutepios do direito internacional e ao final avaliar se existe uma eventual obrigaccedilatildeo juriacutedica de se efetuar um Estudo Preacutevio de Impacto Ambiental quando em face do potencial impacto ambiental vai aleacutem das fronteiras do paiacutes em que o empreendimento se localiza Para tanto utilizaremos principalmente os precedentes internacionais do Caso Fundiccedilatildeo Trail e o Caso das Papeleiras

PALAVRAS-CHAVE Poluiccedilatildeo transfronteiriccedila Direito internacional do meio ambiente Estudo preacutevio de impacto ambiental1 Professor Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT Campus de Barra do Bugres2 Professor Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT Campus de Barra do Bugres

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ABSTRACT Pollution is a subject which given its characteristics must be dealt with by public international law The fact is that pollution as an environmental event does not respect the limits of national sovereignties advancing beyond the borders of the nation of its origin In this sense legal regulation dealing with pollution must necessarily be based on the instruments of international law making the issue of border pollution a central issue in the international environmental law The national legal systems foresee the obligation of the Prior Environmental Impact Assessment when in face of the environmental licensing of activity potentially causing significant environmental impact However these national rules are not always sufficient to solve the issue of transboundary pollution or the transboundary environmental impact that occurs when the effects of an undertaking extend to other States One solution would be to interpret national rules in the light of the principles of international environmental law Thus in the present work we gol analyze the principles of international law and at the end evaluate if there is a possible legal obligation to carry out a Prior Environmental Impact Assessment when faced of the potential environmental impact goes beyond the borders of the country in which the Locates To do so we will mainly use the international precedents of the Trail Smelter Case and the Pulp Mills on the River Uruguay

KEYWORDS Transboundary pollution International environmental law Prior environmental impact assessment

INTRODUCcedilAtildeO

O tema da poluiccedilatildeo em geral eacute um tema que dadas as suas caracteriacutesticas bastante peculiares deve ser tratado incon-trolavelmente pelo direito internacional puacuteblico O fato eacute que a poluiccedilatildeo como evento ambiental natildeo respeita os limites das soberanias nacionais avanccedilando para aleacutem das fronteiras da naccedilatildeo de sua origem Neste sentido uma regulamentaccedilatildeo juriacutedica que trate da poluiccedilatildeo para que seja efetiva deve necessariamente cal-car-se nos instrumentos do Direito internacional tornando o tema da poluiccedilatildeo fronteiriccedila uma questatildeo central do Direito Internacio-

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nal AmbientalEacute justamente com a poluiccedilatildeo transfronteiriccedila que o direito

internacional do meio ambiente eacute inaugurado com suas linhas es-truturais integralmente presentes Se ateacute o caso da Fundiccedilatildeo Trail (trail smelter) haviam algumas manifestaccedilotildees de proteccedilatildeo interna-cional juriacutedica de questotildees ambientais foi somente apoacutes a arbitra-gem do referido caso que o Direito Internacional Ambiental teve seu ponto de partida

O caso da Fundiccedilatildeo Trail tratou de uma situaccedilatildeo de polui-ccedilatildeo transfronteiriccedila que acabou por gerar um conflito entre dois paiacuteses Basicamente o que se apresentou no caso da Fundiccedilatildeo Trail foi uma situaccedilatildeo de poluiccedilatildeo transfronteiriccedila em que um agente privado canadense causava danos agrave sauacutede e ao patrimocircnio de pes-soas localizadas para aleacutem das fronteiras do Canadaacute pois os efei-tos dessa poluiccedilatildeo chegavam ainda bastante nocivos em territoacuterio norte-americano

O tratado que constituiu a arbitragem estabeleceu algumas questotildees a serem respondidas pela corte arbitral sendo que a prin-cipal delas tratava da existecircncia ou natildeo da obrigaccedilatildeo de a Fundiccedilatildeo Trail alterar a sua atuaccedilatildeo para evitar danos no lado norte-ameri-cano da fronteira e em caso positivo quais seriam as normas que regeriam a conduta canadense bem como a conduta da Fundiccedilatildeo Trail Importante dizer que o tratado determinava a decisatildeo da ar-bitragem tendo como lei aplicaacutevel o Direito internacional puacuteblico e tambeacutem as leis norte-americanas

Esse tratado foi aceito pelo Canadaacute pois as suas leis eram mais prejudiciais aos empreendedores da Fundiccedilatildeo do que agraves leis norte-americanas e agraves do Direito internacional3 Sobre a decisatildeo do Tribunal Arbitral Stephens (2012 p 131) faz uma siacutentese nos se-guintes termos

Como questatildeo preliminar o tribunal decidiu que fosse a questatildeo regida pelo direito domeacutestico ou pelo direito internacional os mesmos princiacutepios de-veriam ser aplicados na medida em que ambos os

3 Ibidem

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sistemas de direito adotavam a mesma forma de abordagem O tribunal reconheceu as frequentes afirmaccedilotildees dos publicistas da existecircncia de um dever geral de respeitar os outros Estados e os seus terri-toacuterios Todavia a dificuldade aqui fora definir lsquoqual pro subject materiae eacute considerada constituinte de um ato nocivorsquo Neste ponto especiacutefico o tribunal notou que apesar de natildeo existir nenhuma decisatildeo preacutevia de um tribunal internacional referente agrave poluiccedilatildeo do ar haviam decisotildees da Suprema Corte dos Estados Unidos referentes agrave questatildeo da poluiccedilatildeo entre fron-teiras federais

Tendo feito essas consideraccedilotildees sobre os fundamentos ju-riacutedicos da decisatildeo o Tribunal Arbitral resume as obrigaccedilotildees dos Estados para com a integridade de outro Estado limiacutetrofe da se-guinte maneira

[] dentro dos princiacutepios do estado de direito inter-nacional bem como do direito dos estados unidos nenhum [estado] possui o direito de usar ou permitir que se use o seu territoacuterio de tal maneira que cause prejuiacutezo por meio de fumaccedila no territoacuterio de outro Estado ou na propriedade ou pessoas que laacute se en-contrem quando houverem seacuterias consequecircncias e o dano seja estabelecido por uma evidecircncia clara e convincente4

Esse trecho da decisatildeo arbitral se tornou bastante impor-tante tendo sido considerado um marco essencial do Direito Inter-nacional Ambiental (SOARES 2003) criando um dever ao Estado para natildeo causar danos ao meio ambiente de outro Estado e que como veremos tratou de repercutir ateacute mesmo nos tratados inter-nacionais ambientais contemporacircneos

No caso especiacutefico da arbitragem da Fundiccedilatildeo Trail o Tribunal Arbitral julgou o Canadaacute responsaacutevel internacionalmen-te pela conduta da Fundiccedilatildeo Trail e determinou que a Fundiccedilatildeo parasse de causar danos ao Estado de Washington por meio da 4 TRAIL SMELTER ARBITRAL TRIBUNAL Decisioin reported on april 16 Washington 1938 p 1965 Traduccedilatildeo nossa

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fumaccedila exaladaO legado principal deste laudo arbitral eacute que pela primeira

vez ficou expresso em um julgamento internacional a obrigaccedilatildeo de o Estado natildeo atuar em seu territoacuterio de maneira a causar dano a outro Eacute certo que o caso tratou somente de poluiccedilatildeo atmosfeacuterica mas o princiacutepio que se cristalizou ali serviu como guia para futuras normas internacionais

Para o tema do EIA internacional esta decisatildeo possui re-levacircncia na medida em que o EIA internacional busca justamente prevenir a ocorrecircncia de eventual dano ecoloacutegico ao meio ambien-te do Estado limiacutetrofe ou proacuteximo ao Estado de origem do em-preendimento

Assim podemos dizer que uma eventual obrigaccedilatildeo de promover o EIA internacional deriva-se ao menos da parte do dever de os Estados natildeo prejudicarem o meio ambiente dos paiacuteses vizinhos que eacute exatamente o toacutepico sobre o qual inova o caso da Fundiccedilatildeo Trail

A influecircncia desta decisatildeo como dissemos acima pocircde ser sentida deacutecadas depois da Declaraccedilatildeo de Estocolmo de 1972 que faz uma ponderaccedilatildeo entre os limites da soberania em face agrave obriga-ccedilatildeo de natildeo causar danos a outros Estados de maneira claramente inspirada na decisatildeo do Tribunal Arbitral Vejamos o texto da De-claraccedilatildeo em seu princiacutepio 21

Em conformidade com a Carta das Naccedilotildees Unidas e com os princiacutepios de direito internacional os Es-tados tecircm o direito soberano de explorar seus proacute-prios recursos em aplicaccedilatildeo de sua proacutepria poliacutetica ambiental e a obrigaccedilatildeo de assegurar-se de que as atividades que se levem a cabo dentro de sua juris-diccedilatildeo ou sob seu controle natildeo prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda jurisdiccedilatildeo nacional

Aleacutem disso esta mesma influecircncia pocircde ser sentida duas deacutecadas apoacutes Estocolmo conforme o artigo 2deg da Declaraccedilatildeo do Rio em 1992 que tambeacutem vem no sentido de determinar aos Es-

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tados que atuam sobre o meio ambiente de suas jurisdiccedilotildees de maneira tal natildeo prejudiquem o meio ambiente de outros paiacuteses Ainda hoje eacute difiacutecil encontrar uma soluccedilatildeo para o conflito natural que existe entre a soberania nacional para a utilizaccedilatildeo de recursos naturais e o dever de natildeo causar danos ao meio ambiente de outros paiacuteses (SCHRIJVER 2008) problema para o qual o EIA interna-cional se apresenta como uma das formas de soluccedilatildeo possiacuteveis O precedente do caso Fundiccedilatildeo Trail representa uma primeira forma de tratamento e enfrentamento da questatildeo

A decisatildeo e principalmente o seu nuacutecleo transcrito acima se referem especificamente agrave poluiccedilatildeo atmosfeacuterica todavia a for-ma abrangente dos termos adotados pelo tribunal serviu para que o fundamento se prestasse a orientar o entendimento para outras formas de poluiccedilatildeo e impacto transfronteiriccedilo (STEPHENS 2009)

Como uma primeira linha de regulamentaccedilatildeo de impac-tos transfronteiriccedilos podemos perceber que o tribunal natildeo coibiu qualquer forma de impactos externos mas sim os impactos que possuiacutessem ldquoseacuterias consequecircnciasrdquo

Esta determinaccedilatildeo nos importa para a compreensatildeo do EIA internacional pois traz uma questatildeo importante sobre se o Estado estaacute proibido de causar ou permitir que se cause qualquer espeacutecie de dano ambiental internacional ou somente um dano sig-nificativo ou seja de uma magnitude maior ao meio ambiente de outro Estado trataremos disso mais adiante

O recente caso das papeleiras (Case concerning pulp Mills on the river uruguay) trouxe novamente essa discussatildeo A situaccedilatildeo faacutetica que deu iniacutecio ao conflito entre a Argentina e o Uruguai iniciou-se com a construccedilatildeo de uma usina de celulose na margem uruguaia do rio Uruguai Tal construccedilatildeo seria feita pela empresa Botnia SA

Em resumo sustentou a demandante (Argentina) que o Uruguai havia violado os termos do Estatuto do Rio Uruguai tra-tado firmado entre as partes no ano de 1975 A violaccedilatildeo seria pro-cedimental devido agrave falta de notificaccedilatildeo haacutebil nos termos do art 7deg do tratado agrave Comissatildeo Administradora do Rio Uruguai bem como agrave Argentina (paraacutegrafos 71 a 158 da sentenccedila de 20 de abril

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da CIJ) Aleacutem disso haveria ainda uma violaccedilatildeo substancial por

parte do Uruguai concernente agrave efetiva manutenccedilatildeo de um niacutevel adequado da qualidade da aacutegua do Rio Uruguai (paraacutegrafos 159 a 266 da sentenccedila)

Por fim a demandante tambeacutem questionava a eventual agressatildeo do demandado agrave qualidade ambiental do Rio Uruguai (artigo 41 do Tratado do Rio Uruguai de 1975) em face da constru-ccedilatildeo da faacutebrica (paraacutegrafos 190 a 202 da sentenccedila)

A sentenccedila bem como os memoriais e as manifestaccedilotildees das partes no caso podem ser analisados das mais diversas ma-neiras demonstrando as suas implicaccedilotildees nos variados institutos do Direito Internacional do Meio Ambiente (dever de informaccedilatildeo dever de prevenccedilatildeo dever de cooperaccedilatildeo responsabilidade por violaccedilatildeo de obrigaccedilatildeo internacional direito dos tratados dentre outros)

Inicialmente a Argentina requereu uma medida provisio-nal no sentido de suspender a construccedilatildeo da faacutebrica sustentando que

a construccedilatildeo e o funcionamento da usina de papel certamente causariam e seriam suscetiacuteveis de causar danos ao meio ambiente natural de maneira irre-versiacutevel por causa do impacto potencial sobre todo ecossistema do rio Uruguai e a qualidade de suas aacuteguas (CIJ 2006)

Em que pesem as argumentaccedilotildees expendidas a CIJ enten-deu que nada indicava que a construccedilatildeo da faacutebrica implicaria um risco iminente de dano irreparaacutevel (CIJ 2006) Nesta decisatildeo refe-rente agrave medida provisional o Juiz Vinuesa em dissonacircncia com a maioria demonstrou em seu voto-dissidente que agrave medida que a Argentina tivesse provado que a autorizaccedilatildeo de funcionamento da faacutebrica teria gerado um risco razoaacutevel de dano ao meio ambien-te era necessaacuterio a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo o qual na sua opiniatildeo ldquonatildeo se trata de uma abstraccedilatildeo acadecircmica ou um

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desejaacutevel elemento de soft law mas uma regra de direito dentro do direito internacional geral na maneira como ele eacute entendido atualmenterdquo (CIJ 2006)

Em seguida houve a apresentaccedilatildeo dos memoriais opor-tunidade na qual novamente a Argentina evoca o princiacutepio da precauccedilatildeo pelo qual se deve ldquolevar em conta os riscos incertos na concepccedilatildeo elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo de qualquer projeto ou qualquer uso relativo agraves aacuteguas do rio Uruguai e a sua zona de influecircnciardquo (CIJ 2007) Nos contra-memoriais o Uruguai indica que a Argen-tina natildeo teria comprovado a presenccedila de riscos ao meio ambiente a ponto de se aplicar o princiacutepio da precauccedilatildeo (Idem)

O princiacutepio eacute novamente invocado em nova manifestaccedilatildeo da demandante indicando a obrigaccedilatildeo de o Uruguai tecirc-la infor-mado antecipadamente sobre os riscos mesmo que em potencial da construccedilatildeo da usina Ademais sustentou-se ainda que agrave Cor-te caberia a leitura do Tratado do Rio Uruguai de 1975 agrave luz do Ddireito internacional atual ou seja incorporando-se ao princiacutepio da precauccedilatildeo (CIJ 2008) Na sua resposta o Uruguai novamente indica que natildeo se apresentou nenhuma evidecircncia concreta de ris-cos ao meio ambiente que justificasse a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo (CIJ 2008)

Destarte tendo as duas partes apresentados seus argu-mentos a CIJ finalmente proferiu uma sentenccedila em 20 de abril de 2010 Em suma a Corte entendeu que houve sim uma violaccedilatildeo ao Tratado do Rio Uruguai de 1975 mas tatildeo somente no seu aspecto processual ou seja no dever de o Uruguai informar e atuar con-juntamente com a Argentina na liberaccedilatildeo do projeto da usina de papel

A Corte indicou poreacutem que natildeo houve uma violaccedilatildeo substancial do tratado ou seja o Uruguai natildeo teria efetivamente atuado no sentido de prejudicar o uso das aacuteguas do Rio Uruguai isto eacute em nenhum momento teria prejudicado substancialmente as aacuteguas ou a possiacutevel utilizaccedilatildeo do Rio Uruguai para outros fins Finalizando a Corte considerou legiacutetima a atuaccedilatildeo do Uruguai no que tange agrave questatildeo ambiental sustentando natildeo ter havido por

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parte do Uruguai nenhuma agressatildeo efetiva ao ecossistema nem sequer ameaccedila

Cumpre dizer que a CIJ natildeo aplicou ao caso a despeito de ter sido objeto de farta e robusta argumentaccedilatildeo o princiacutepio da precauccedilatildeo A linguagem e os fundamentos utilizados na sentenccedila denotam um total afastamento do princiacutepio da precauccedilatildeo e dos seus efeitos sobre o caso concreto Todavia a CIJ tratou do dever de prevenir danos ambientais para aleacutem das fronteiras bem como tratou do EIA como instrumento para concretizar esse dever

Nota-se que quando a Corte in casu analisou os eventu-ais danos ambientais da construccedilatildeo da faacutebrica analisou questotildees como o impacto da descarga de diversas substacircncias toacutexicas (foacutesfo-ro substancias felocircnicas nonifenols e dioacutexidos) na oxigenaccedilatildeo da aacutegua e sua consequente poluiccedilatildeo bem como todos os efeitos sobre a diversidade bioloacutegica Natildeo obstante a demandante ter argumen-tado no sentido do risco de tais eventos ao meio ambiente do Rio Uruguai a CIJ ( 2010 p91) decidiu que

265 Se apreende do acima exposto que natildeo existe evidecircncias conclusivas nos autos que demonstrem que o Uruguai natildeo tenha agido com o grau de di-ligecircncia adequada ou que as descargas de efluentes da Orion (Botnia) usina possuam efeitos deleteacuterios ou causaram danos aos recursos vivos ou agrave qualida-de da aacutegua ou ao equiliacutebrio ecoloacutegico do rio desde o iniacutecio das operaccedilotildees em novembro de 2007

A Corte entende que a falta de ldquoevidecircncias conclusivasrdquo de um dano ambiental natildeo permite que a mesma determine a pa-ralisaccedilatildeo das atividades da faacutebrica Ocorre que uma interpretaccedilatildeo agrave luz do princiacutepio da precauccedilatildeo natildeo exige a evidecircncia conclusiva mas sim um indiacutecio de risco

Criticando a decisatildeo temos o voto do Juiz Canccedilado Trin-dade (CIJ 2010 p 166) para quem

113 Natildeo apenas a CIJ natildeo tomou conhecimento natildeo afirmou a existecircncia dos dois princiacutepios [prevenccedilatildeo

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e precauccedilatildeo] natildeo os elaborou deixando passar en-tatildeo uma ocasiatildeo uacutenica nesta seara do Direito Inter-nacional contemporacircneo O fato de que a Corte silen-ciou sobre eles natildeo significa que estes princiacutepios da prevenccedilatildeo e da precauccedilatildeo natildeo existam Eles existem sim e se aplicam e satildeo em minha opiniatildeo da maior importacircncia como parte do jus necessarium Dificil-mente nos podemos falar sobre o Direito Interna-cional do Meio Ambiente atualmente sem estes dois princiacutepios A Corte teve uma oportunidade uacutenica nas circunstacircncias do caso da Pulp Mills [papeleiras] para reclamar a aplicaccedilatildeo da prevenccedilatildeo bem como da precauccedilatildeo ela infelizmente preferiu natildeo fazecirc-lo por motivos que vatildeo aleacutem e escapam da minha com-preensatildeo

Em outro ponto da decisatildeo a CIJ resolve a questatildeo refe-rente agrave inversatildeo do ocircnus da prova requerida pela Argentina em funccedilatildeo da aplicaccedilatildeo do princiacutepio da precauccedilatildeo (paraacutegrafos 160 agrave 168 da sentenccedila) A Corte novamente afasta a aplicaccedilatildeo do prin-ciacutepio da precauccedilatildeo e natildeo promove a inversatildeo do ocircnus de provar aplicando portanto a consagrada regra processual do onus proban-di incubit actori ou seja de que ao autor cabe a prova do alegado

A CIJ natildeo versando sobre o tema deixou agrave margem a questatildeo de definir se o princiacutepio da precauccedilatildeo possuiria o status de costume internacional ou de princiacutepio geral de direito natildeo pro-movendo avanccedilos nesta discussatildeo (ANTON 2010)

Essa ideia compreendida no seio do julgamento da ques-tatildeo arbitral qual seja a de que um Estado natildeo poderaacute atuar em seu territoacuterio de maneira a causar dano no meio ambiente de outro Estado influenciou decisivamente para o surgimento dos princiacute-pios do Direito Internacional do Meio Ambiente os quais veremos abaixo Poreacutem antes deles veremos um pouco sobre o estudo preacute-vio de impacto ambiental no Direito domeacutestico

O EIA no direito domeacutestico

As legislaccedilotildees dos paiacuteses preveem mecanismos de contro-

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le preacutevio do impacto de atividades potencialmente causadoras de dano ambiental No Brasil por exemplo o EIA eacute conceituado por Taldem Farias (FARIAS 2013 p 68) como

A avaliaccedilatildeo de impacto ambiental eacute um instrumen-to de defesa do meio ambiente constituiacutedo por um conjunto de procedimentos teacutecnicos e administra-tivos que visam agrave realizaccedilatildeo da anaacutelise sistemaacutetica dos impactos ambientais da instalaccedilatildeo ou operaccedilatildeo de uma atividade e suas diversas alternativas com a finalidade de embasar as decisotildees quanto ao seu licenciamento

Nesse sentido a norma que trata do assunto prevecirc que o EIA eacute entatildeo uma espeacutecie de licenciamento ambiental Em outras palavras natildeo eacute todo o licenciamento ambiental que seraacute sujeito agrave obrigatoriedade do EIA Vejamos o texto constitucional sobre o as-sunto

Art 225 Todos tecircm direito ao meio ambiente ecolo-gicamente equilibrado bem de uso comum do povo e essencial agrave sadia qualidade de vida impondo-se ao Poder Puacuteblico e agrave coletividade o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as presentes e futuras geraccedilotildees

IV - exigir na forma da lei para instalaccedilatildeo de obra ou atividade potencialmente causadora de significa-tiva degradaccedilatildeo do meio ambiente estudo preacutevio de impacto ambiental a que se daraacute publicidade

A principal norma infraconstitucional que versa o tema eacute a Resoluccedilatildeo nordm 0186 do Conama que trata da competecircncia para o licenciamento bem como traz alguns requisitos para o mesmo Pela clareza da norma vale a transcriccedilatildeo de alguns dos seus dis-positivos O artigo 6ordm por exemplo trata dos requisitos miacutenimos para o estudo

Artigo 6ordm - O estudo de impacto ambiental desenvol-veraacute no miacutenimo as seguintes atividades teacutecnicas

I - Diagnoacutestico ambiental da aacuterea de influecircncia do

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projeto completa descriccedilatildeo e anaacutelise dos recursos ambientais e suas interaccedilotildees tal como existem de modo a caracterizar a situaccedilatildeo ambiental da aacuterea antes da implantaccedilatildeo do projeto considerando

a) o meio fiacutesico - o subsolo as aacuteguas o ar e o clima destacando os recursos minerais a topografia os ti-pos e aptidotildees do solo os corpos drsquoaacutegua o regime hidroloacutegico as correntes marinhas as correntes at-mosfeacutericas

b) o meio bioloacutegico e os ecossistemas naturais - a fauna e a flora destacando as espeacutecies indicadoras da qualidade ambiental de valor cientiacutefico e econocirc-mico raras e ameaccediladas de extinccedilatildeo e as aacutereas de preservaccedilatildeo permanente

c) o meio soacutecio-econocircmico - o uso e ocupaccedilatildeo do solo os usos da aacutegua e a soacutecio-economia destacan-do os siacutetios e monumentos arqueoloacutegicos histoacutericos e culturais da comunidade as relaccedilotildees de dependecircn-cia entre a sociedade local os recursos ambientais e a potencial utilizaccedilatildeo futura desses recursos

II - Anaacutelise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas atraveacutes de identificaccedilatildeo previsatildeo da magnitude e interpretaccedilatildeo da importacircncia dos provaacuteveis impactos relevantes discriminando os impactos positivos e negativos (beneacuteficos e adver-sos) diretos e indiretos imediatos e a meacutedio e lon-go prazos temporaacuterios e permanentes seu grau de reversibilidade suas propriedades cumulativas e sineacutergicas a distribuiccedilatildeo dos ocircnus e benefiacutecios so-ciais

III - Definiccedilatildeo das medidas mitigadoras dos impac-tos negativos entre elas os equipamentos de contro-le e sistemas de tratamento de despejos avaliando a eficiecircncia de cada uma delas

lV - Elaboraccedilatildeo do programa de acompanhamento e monitoramento (os impactos positivos e negativos indicando os fatores e paracircmetros a serem conside-rados)

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Paraacutegrafo Uacutenico - Ao determinar a execuccedilatildeo do estu-do de impacto ambiental ao oacutergatildeo estadual compe-tente ou o IBAMA ou quando couber o Municiacutepio forneceraacute as instruccedilotildees adicionais que se fizerem ne-cessaacuterias pelas peculiaridades do projeto e caracte-riacutesticas ambientais da aacuterea

Tambeacutem o Direito francecircs exige dos empreendimentos que faccedilam o estudo preacutevio antes da sua operaccedilatildeo Explicando o sistema francecircs Yamaguchi e Souza (2011 p 17 ) pontuam que

Para Bessa (2008) a legislaccedilatildeo francesa adota o prin-ciacutepio de que toda obra deve ser previamente sub-metida a um estudo de impacto A Administraccedilatildeo em respeito ao princiacutepio estabelece uma lista nega-tiva (observe-se que o sistema francecircs de avaliaccedilatildeo de impactos ambientais funciona com uma lista po-sitiva ndash necessidade do EIA ndash e uma lista negativa ndash desnecessidade do EIA) isto eacute classifica algumas obras que natildeo precisaratildeo passar pelo preacutevio estudo de impacto

Tambeacutem o Direito norte-americano possui previsatildeo seme-lhante A norma norte- americana possui semelhanccedila com a nacio-nal em verdade a norma brasileira em certa medida se inspira nas regras do Estados Unidos Tratando do assunto vejamos a li-ccedilatildeo de Amoy (2006 p 607)

O Estudo de Impacto Ambiental ndash EIA ndash teve iniacutecio nos estudos do Prof Lynton Caldwell nos EUA onde foram expressos no National Environmental Police Act (NEPA) de 1969 que estabeleceu os ob-jetivos e princiacutepios da poliacutetica ambiental americana Aquela lei determinou ainda que todas as propostas de legislaccedilatildeo accedilotildees e projetos federais que afetassem significativamente a qualidade do meio ambien-te incluiacutessem uma detalhada avaliaccedilatildeo ambiental 44A NEPA eacute uma lei fundamental para o Direito Ambiental dos diversos Estados norte-americanos

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dos quais 18 jaacute adotam ldquominiNEPAsrdquo e de diversos paiacuteses pois tem servido de inspiraccedilatildeo para muitas legislaccedilotildees nacionais inclusive a brasileira

Vimos por meio dos exemplos acima que os estados na-cionais possuem normas mais ou menos rigorosas quanto agrave ne-cessidade de EIA Ocorre que natildeo tratam da eventualidade de o impacto ambiental avanccedilar para aleacutem das fronteiras nacionais

No proacuteximo toacutepico vamos analisar brevemente algumas interpretaccedilotildees das normas nacionais brasileiras agrave luz dos princiacute-pios do Direito Internacional do Meio Ambiente tendo em conta uma possiacutevel obrigaccedilatildeo de produzir-se EIA quando do impacto transfronteiriccedilo

A poluiccedilatildeo trasnfronteiriccedila e o dever de prevenir os impactos em acircmbito externo agrave luz dos princiacutepios do direito internacional do meio ambiente

A decisatildeo no Caso das Papeleiras tratou de maneira incon-clusiva o dever de efetivar o EIA nos casos de poluiccedilatildeo transfron-teiriccedila Vamos ao trecho da decisatildeo (CIJ 2010 p 83)

Nesse sentido a obrigaccedilatildeo de proteger e preservar nos termos do artigo 41 (a) Do Estatuto deve ser in-terpretado de acordo com uma praacutetica que nos uacutelti-mos anos ganhou tanta aceitaccedilatildeo entre os Estados que pode ser considerado um requisito5 do direito internacional geral de uma avaliaccedilatildeo de impacto am-biental sempre que exista o risco de a atividade in-dustrial proposta ter um impacto adverso significa-tivo em um contexto transfronteiriccedilo em particular sobre um recurso partilhado Aleacutem disso a devida diligecircncia e o dever de vigilacircncia e prevenccedilatildeo que implica natildeo seriam considerados como tendo sido

5 No original a expressatildeo eacute a seguinte ldquohas to be interpreted in accordance with a practice wich in recent years has gained so much acceptance among States tha it may now be consideres a require-ment under gereal international law to undertake an environmental impact assessment where ther is arisk that the proposed industrial activity may have a significant adverse impact in a transboundary context in particular on a shares resourcerdquo O termo ldquorequisiterdquo no original ldquoreuquerimentrdquo pode ser traduzido tambeacutem por ldquoexigecircnciardquo

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exercido se uma parte que as obras susceptiacuteveis de afectar o regime do rio ou a qualidade das suas aacuteguas natildeo procedeu a uma avaliaccedilatildeo do impacto ambiental do potencial efeito de tais obras 205 A Corte observa que nem o Estatuto de 1975 nem o Estatuto Direito internacional especificam o acircmbito e o conteuacutedo de um estudo preacutevio de impac-to ambiental Cumpre salientar aleacutem disso que a Argentina e o Uruguai natildeo satildeo partes na Convenccedilatildeo de Espoo Por uacuteltimo o Tribunal observa que o ou-tro instrumento a que a Argentina se refere em apoio dos seus argumentos nomeadamente os Objetivos e Princiacutepios do PNUA natildeo vinculam as Partes mas como diretrizes emitidas por um oacutergatildeo teacutecnico inter-nacional devem ser tomadas em consideraccedilatildeo pelas partes em conformidade com o artigo 41ordm aliacutenea a) na adopccedilatildeo de medidas no acircmbito do seu quadro re-gulamentar nacional Aleacutem disso este instrumento apenas prevecirc que os ldquoefeitos ambientais em um EIA devem ser avaliados com um grau de detalhe pro-porcional ao seu provaacutevel impacto ambientalrdquo (Prin-ciacutepio 5) sem dar qualquer indicaccedilatildeo dos componen-tes miacutenimos dessa avaliaccedilatildeo Consequentemente eacute a opiniatildeo da Corte de que compete a cada Estado determinar na sua legislaccedilatildeo nacional ou no pro-cesso de autorizaccedilatildeo do projeto o conteuacutedo da ava-liaccedilatildeo de impacto ambiental exigida em cada caso tendo em conta a natureza e a magnitude do projeto proposto bem como o possiacutevel impacto adverso no ambiente bem como a necessidade de efetuar nes-sa avaliaccedilatildeo toda a diligecircncia possiacutevel O tribunal considera tambeacutem que uma avaliaccedilatildeo do impacto ambiental deve ser conduzida antes da implemen-taccedilatildeo de um projeto Aleacutem disso uma vez iniciada e sempre que necessaacuterio durante toda a vida uacutetil do Projeto deve ser empreendido o contiacutenuo monitora-mento dos seus efeitos no ambiente

Sabemos que as fontes do Direito internacional satildeo aque-las discriminadas no artigo 38 do estatuto da CIJ quais sejam sim-plificadamente as convenccedilotildees os princiacutepios gerais de direito e o costume internacional

A decisatildeo da CIJ natildeo deixa claro se essa obrigaccedilatildeo seria

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oriunda de um princiacutepio (talvez princiacutepio da prevenccedilatildeo) ou de um costume Natildeo eacute possiacutevel avaliar pelo texto da decisatildeo o caraacuteter juriacutedico da obrigaccedilatildeo de promover o EIA no direito internacional

No Direito brasileiro tambeacutem natildeo temos nenhuma nor-ma que trate do assunto Poreacutem poderiacuteamos buscar fundamento normativo para essa obrigaccedilatildeo por exemplo no artigo 4 inciso X da Constituiccedilatildeo Fedral de 88 que prevecirc o princiacutepio das relaccedilotildees internacionais a ldquocooperaccedilatildeo entre os povos para o progresso da humanidaderdquo

Poreacutem se por um lado eacute possiacutevel falarmos de uma obri-gaccedilatildeo de evitar danos agrave naccedilatildeo estrangeira por causa ambiental em territoacuterio domeacutestico como sendo um princiacutepio de Direito Inter-nacional do Meio Ambiente qual seja o princiacutepio da prevenccedilatildeo (SANDS 2003) natildeo podemos avanccedilar para concluirmos que de-rivaria desse dever a obrigaccedilatildeo de efetuar o EIA

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

O caso das papeleiras demonstra que a questatildeo da polui-ccedilatildeo transfronteiriccedila e o dever de preveni-la continuam no centro dos conflitos ambientais internacionais Ainda que natildeo seja pos-siacutevel falarmos em uma obrigaccedilatildeo juriacutedica de promover o EIA em face da poluiccedilatildeo transfronteiriccedila tambeacutem jaacute natildeo se pode falar em uma total ausecircncia de responsabilidade do Estado quanto a danos para aleacutem de suas fronteiras

A questatildeo somente ficaraacute mais delineada em seus aspectos juriacutedicos com os avanccedilos dos casos e da doutrina especializada devendo o jurista ficar atento em especial aos desdobramentos relacionados agraves consequecircncias da decisatildeo da CIJ no caso Pulp Mils (papeleiras)

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JULGAMENTO INDIacuteGENA DE CONFLITOS INTERNOS RE-CONHECIDO PELO DIREITO ESTATAL NA PERSPECTIVA DO PLURALISMO JURIacuteDICO

Eliel Alves Camerini Silva1

Luciana Stephani Silva Iocca2

RESUMO O presente artigo explora a garantia legal constitucional do processo juriacutedico criminal indiacutegena concebida pela Constituiccedilatildeo Federal Brasileira e pela Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho e legislaccedilotildees afins e de seu reconhecimento pelo Estado por meio da Sentenccedila proferida pela Comarca de BonfimRO nos autos de nordm 009010000302-0 e mantida pela turma recursal Ao seguir os moldes do neoconstitucionalismo latino-americano aponta o direito indiacutegena como um direito autocircnomo dotado de alteridade e com jus puniendi proacuteprio sem grau de hierarquia com o jus puniendi do Estado-juiz Tal reconhecimento insurge tambeacutem na valorizaccedilatildeo de um Estado multicultural com diferentes sistemas juriacutedicos proacuteprios e vaacutelidos no respectivo acircmbito jurisdicional dentro do territoacuterio brasileiro tido como pluralismo juriacutedico capaz de influenciar o Direito Estatal seja na sua criaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo Compreender a existecircncia de pluralismo eacute conhecer o direito indiacutegena enquanto direito comparado surgindo a possibilidade de aprofundar o conhecimento dos sistemas juriacutedicos aprimorando o direito nacional e aproximando os povos atraveacutes do respeito de suas identidades culturais tema este pouco abordado pela doutrina juriacutedica brasileira e nas academias juriacutedicas

PALAVRAS-CHAVE Direito Indiacutegena Reconhecimento Estatal Multiculturalismo

1 Acadecircmico do Curso de Direito da UNEMAT CaacuteceresMTelielcamerinigmailcom 2 Professora Mestre do Departamento de Direito da UNEMAT CaacuteceresMT lucianaioc-cagmailcom

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ABSTRACT This article explores a Constitutional legal warranty of the indigenous criminal legal process conceived by the Brazilian Federal Constitution and by the International Labour Organization and related legislation and its recognition by the State by means of the judgment pronounced by the district of Bonfim Rondocircnia Brazil records number 009010000302-0 and maintained by the recursal class By following the molds of Latin American Neoconstitutionalism points to indigenous law as an autonomous right full of alterity and with own jus puniendi without degree of hierarchy with State-judgersquos jus puniendi Such recognition also insists on the appreciation of a multicultural State composed by different legal systems of their own and valid in the judicial sphere within the Brazilian territory understood as legal pluralism able to influencing State Law whether in its creation interpretation and application To understand the existence of pluralism is to know the Indigenous Law as protected right arising the possibility of deepening the knowledge of legal systems improving national law and approaching people through the respect of their cultural identities which is not usually addressed by Brazilian legal doctrine and in legal academies

KEYWORDS IndigenousLaws Staterecognition Multiculturalism

INTRODUCcedilAtildeO

A partir da Convenccedilatildeo 169 da OIT ndash Organizaccedilatildeo Inter-nacional do Trabalho ndash da qual o Brasil eacute signataacuterio e da proacutepria Constituiccedilatildeo Federal de 1988 mudanccedilas poliacuteticas e principalmen-te juriacutedicas surgiram no que diz respeito agraves relaccedilotildees do Estado e da sociedade brasileira com os povos indiacutegenas tendo em vista o reconhecimento aos povos indiacutegenas de sua organizaccedilatildeo social costumes liacutenguas crenccedilas tradiccedilotildees e autodeclaraccedilatildeo

Acerca do assunto o professor Rogeacuterio Geraldo Rocco (2015 online) tece o seguinte comentaacuterio

Sem duacutevida referida Convenccedilatildeo tem sido utilizada para a proteccedilatildeo de culturas tradicionais especial-mente de indiacutegenas e quilombolas na Amazocircnia Mas eacute um instrumento de consulta que se aplica

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quando eventuais projetos ou programas atingirem as suas terras e culturas Quanto a seus sistemas ju-riacutedicos o reconhecimento e respeito por parte da cultura hegemocircnica depende da formalizaccedilatildeo de um pluralismo juriacutedico (Grifo nosso)

Tais mudanccedilas se caracterizam pela positivaccedilatildeo de direitos pluralistas no acircmbito da etnicidade poliacutetica e cultura dos povos pautadas na concepccedilatildeo do neocostitucionalismo latino-americano

Nesse contexto tatildeo certo de que o direito de um paiacutes faz parte do patrimocircnio nacional o Tribunal de Justiccedila de Roraima decidiu em 18 de dezembro de 2015 a Apelaccedilatildeo Criminal nordm 009010000302-0 reconhecendo a jurisdiccedilatildeo indiacutegena criminal e portanto a materializaccedilatildeo do estado plurieacutetnico

Tratou-se do caso do crime de homiciacutedio praticado por Denilson Trindade Douglas que apoacutes ingerir bebida alcooacutelica desferiu facadas na viacutetima Alanderson Trindade Douglas ambos irmatildeos e membros da mesma tribo na comunidade indiacutegena do Manoaacute terra indiacutegena Manoaacute-Pium na Reserva Raposa Serra da Lua municiacutepio de Bonfim Estado de Roraima O Ministeacuterio Puacute-blico de Roraima ofereceu denuacutencia com base no art 121 sect 2ordm II do Coacutedigo Penal Brasileiro Na defesa a Procuradoria Federal responsaacutevel pela Seccedilatildeo de Indiacutegenas alegou a impossibilidade de punir o mesmo fato duas vezes bis in idem conforme o art 57 do Estatuto do Iacutendio haja vista que o crime foi punido conforme os usos e costumes da comunidade indiacutegena atraveacutes de decisatildeo das lideranccedilas das comunidades Anauaacute Manoaacute e WaiWai O Tribunal de Justiccedila de Roraima deixou de apreciar o meacuterito declarando a ausecircncia de in casu do direito de punir estatal

Entendimento do neoconstitucionalismo latino-americano

As profundas transformaccedilotildees ocorridas no cenaacuterio mun-dial na deacutecada de 90 no que diz respeito agraves relaccedilotildees econocircmicas poliacuteticas juriacutedicas e sociais entre os povos influenciaram (e in-fluenciam) na construccedilatildeo do neoconstitucionalismo latino-ameri-

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cano (DALMAU 2009)Tais mudanccedilas juriacutedicas se datildeo na esfera das relaccedilotildees in-

ternacionais concebidas atraveacutes de um sistema juriacutedico em forma de redes devido agraves muacuteltiplas cadeias normativas3 como tambeacutem no acircmbito interno de cada Estado atraveacutes do implemento de meca-nismos que visam efetivar o sistema poliacutetico adotado

O neoconstitucionalismo latino-americano surge como uma nova forma de organizaccedilatildeo juriacutedico-poliacutetica voltada para a construccedilatildeo de um ldquoEstado Democraacutetico de Direito Estado consti-tucional de direito Estado constitucional democraacuteticordquo ao institu-cionalizar no texto constitucional a dignidade da pessoa humana e normas de direitos fundamentais garantias de cunho social sob a proteccedilatildeo juriacutedica (BARROSO 2007)

A autora peruana Raquel Z Yrigoyen Fajardo (2008 p 16) identifica que o neoconstitucionalismo em linha temporal desen-volveu-se em trecircs ciclos

I - constitucionalismo multicultural (1982-1988) com a introduccedilatildeo do conceito de diversidade cultural e o reconhecimento de direitos indiacutegenas especiacuteficos II - constitucionalismo pluricultural (1988-2005) com a adoccedilatildeo do conceito de ldquonaccedilatildeo multieacutetnicardquo e o de-senvolvimento do pluralismo juriacutedico interno sendo incorporados vaacuterios direitos indiacutegenas ao cataacutelogo de direitos fundamentais III - constitucionalismo plurinacional (2006-2009) demanda pela criaccedilatildeo de um Estado plurinacional e de um pluralismo juriacutedi-co igualitaacuterio

Mais recentemente se vecirc a implantaccedilatildeo de um novo mo-delo fruto de reivindicaccedilotildees sociais de parcelas historicamente ex-cluiacutedas do processo decisoacuterio notadamente a populaccedilatildeo indiacutegena ndash como a promulgaccedilatildeo das Constituiccedilotildees do Equador (2008) e da Boliacutevia (2009) com praacuteticas de pluralismo igualitaacuterio jurisdicional em que haacute ldquoconvivecircncia de instacircncias legais diversas em igual hie-rarquia jurisdiccedilatildeo ordinaacuteria estatal e jurisdiccedilatildeo indiacutegenacampo-

3 FARIA Joseacute Eduardo Reforma constitucional em periacuteodo de globalizaccedilatildeo econocircmica 1997 p 5

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nesardquo (WOLKMER 2010 p 11)Em essecircncia um novo processo constitucional voltado

para o reconhecimento de um Estado plural ndash plurinacional ndash que segundo Dantas (2012) eacute ldquobaseado no pluralismo juriacutedico em que segue um novo regime poliacutetico pautado na democracia intercultural participaccedilatildeo popular resguardo a individualidades particulares ou coletivasrdquo

Nesse vieacutes a Constituiccedilatildeo Brasileira de 1988 investida da corrente neoconstitucionalista latino-americana com o caraacuteter de Constituiccedilatildeo Cidadatilde passa a reconhecer a identidade plurieacutetni-ca do Brasil Aos indiacutegenas satildeo reconhecidos direitos especiacuteficos bem como a garantia de direitos fundamentais enquanto cidadatildeos de direito presente no art 5ordm da Carta Magna Como resultado rompe-se a visatildeo integracionista ndash assimilacionista ndash agrave eacutepoca que entendia os indiacutegenas como categoria social transitoacuteria a ser incor-porada agrave comunhatildeo nacional E passa-se agrave perspectiva de sujeitos de direitos comuns e especiacuteficos como institucionaliza o Cap VIII intitulado ldquoDos Iacutendiosrdquo

Art 231 Satildeo reconhecidos aos iacutendios sua organiza-ccedilatildeo social costumes liacutenguas crenccedilas e tradiccedilotildees e os direitos originaacuterios sobre as terras que tradicio-nalmente ocupam competindo agrave Uniatildeo demarcaacute-las proteger e fazer respeitar todos os seus bens

sect 1ordm Satildeo terras tradicionalmente ocupadas pelos iacutendios as por eles habitadas em caraacuteter permanente as utilizadas para suas atividades produtivas as imprescindiacuteveis agrave preservaccedilatildeo dos recursos ambientais necessaacuterios a seu bem-estar e as necessaacuterias a sua reproduccedilatildeo fiacutesica e cultural segundo seus usos costumes e tradiccedilotildees

sect 2ordm As terras tradicionalmente ocupadas pelos iacutendios destinam-se a sua posse permanente cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo dos rios e dos lagos nelas existentes

sect 3ordm O aproveitamento dos recursos hiacutedricos incluiacutedos os potenciais energeacuteticos a pesquisa e a

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lavra das riquezas minerais em terras indiacutegenas soacute podem ser efetivados com autorizaccedilatildeo do Congresso Nacional ouvidas as comunidades afetadas ficando-lhes assegurada participaccedilatildeo nos resultados da lavra na forma da leisect 4ordm As terras de que trata este artigo satildeo inalienaacuteveis e indisponiacuteveis e os direitos sobre elas imprescritiacuteveis

sect 5ordm Eacute vedada a remoccedilatildeo dos grupos indiacutegenas de suas terras salvo laquoad referendumraquo do Congresso Nacional em caso de cataacutestrofe ou epidemia que ponha em risco sua populaccedilatildeo ou no interesse da soberania do Paiacutes apoacutes deliberaccedilatildeo do Congresso Nacional garantido em qualquer hipoacutetese o retorno imediato logo que cesse o risco

sect 6ordm Satildeo nulos e extintos natildeo produzindo efeitos juriacutedicos os atos que tenham por objeto a ocupaccedilatildeo o domiacutenio e a posse das terras a que se refere este artigo ou a exploraccedilatildeo das riquezas naturais do solo dos rios e dos lagos nelas existentes ressalvado relevante interesse puacuteblico da Uniatildeo segundo o que dispuser lei complementar natildeo gerando a nulidade e a extinccedilatildeo direito agrave indenizaccedilatildeo ou a accedilotildees contra a Uniatildeo salvo na forma da lei quanto agraves benfeitorias derivadas da ocupaccedilatildeo de boa feacute

sect 7ordm Natildeo se aplica agraves terras indiacutegenas o disposto no art 174 sect 3ordm e sect 4ordm

Art 232 Os iacutendios suas comunidades e organiza-ccedilotildees satildeo partes legiacutetimas para ingressar em juiacutezo em defesa de seus direitos e interesses intervindo o Mi-nisteacuterio Puacuteblico em todos os atos do processo

Acordantes no Cap III Seccedilatildeo II tiacutetulo ldquoDa Culturardquo os artigos 215 e 216 normatizam o reconhecimento e fortalecimento da identidade dos povos indiacutegenas assegurando o efetivo exerciacutecio dos direitos culturais e liberdade de manifestaccedilotildees culturais bem como a valorizaccedilatildeo das matrizes histoacutericas Tem-se entatildeo o direi-to indigenista um conjunto das normas positivas que tratam das

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questotildees indiacutegenas sejam leis princiacutepios ou demais atos normati-vos que regem as relaccedilotildees entre iacutendios e natildeo iacutendios

Por outro lado o direito indiacutegena ou direito consuetudinaacute-rio indiacutegena embora tenha garantia legal para sua manifestaccedilatildeo eacute tido como ldquoregras postas aos iacutendios nas aldeias vistas a reger as relaccedilotildees entre indiviacuteduos famiacutelias grupos e povosrdquo e integra a forma de organizaccedilatildeo e da cultura da comunidade indiacutegena atra-veacutes das relaccedilotildees ancestrais com carga moral e cultural (SILVA 2005 online)

Como bem explana Francisco das Chagas Lima Filho (2007) ao acrescentar que

[] nas relaccedilotildees de famiacutelia casamento propriedade sucessatildeo e mesmo na questatildeo criminal existe uma plenitude do direito indiacutegena que se revela atraveacutes de um sistema juriacutedico completo com direitos e de-veres normas e sanccedilotildees criadas de modo coletivo por toda a comunidade de acordo com as necessi-dades do grupo

A presenccedila de outras fontes de produccedilatildeo juriacutedica dentro de um Estado muitas vezes intituladas de direito natildeo-oficial direi-to marginal ou alternativo eacute a concepccedilatildeo do pluralismo juriacutedico O direito natildeo-oficial tem suas proacuteprias regras que satildeo seguidas e respeitadas por um nuacutemero consideraacutevel de habitantes que o reco-nhecem como tal aplicando-o na soluccedilatildeo de conflitos E por vezes acarretam modificaccedilotildees no direito oficial por via das decisotildees judi-ciaacuterias (TAVARES 2014)

Direito indiacutegena enquanto direito comparado

A presenccedila de variados sistemas juriacutedicos leva por vezes agrave necessidade de conhececirc-los para eventualmente aperfeiccediloar ou unificar o direito Certo eacute que os modelos juriacutedicos mudam ininterruptamente por lenta evoluccedilatildeo ou por sobreposiccedilatildeo global ocorrendo mutaccedilotildees ndash originais ou imitaccedilotildees (SACCO 2001)

Eis que se faz necessaacuterio o uso do direito comparado qual

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seja a contribuiccedilatildeo que ele oferece ao possibilitar a verificaccedilatildeo das vaacuterias maneiras de se organizar institutos juriacutedicos e de regular re-laccedilotildees juriacutedicas semelhantes instrumentalizando o funcionamento do ordenamento

O direito comparado por vezes eacute apresentado como a constataccedilatildeo dos pontos comuns e das divergecircncias existentes em dois ou vaacuterios direitos Contudo natildeo deve ser visto apenas como o apontamento das diferenccedilas e semelhanccedilas E sim na perspec-tiva de conhecer a natureza e evoluccedilatildeo histoacuterica das instituiccedilotildees do direito relacionando as notiacutecias e tradiccedilotildees do passado com o presente Assim como sua importacircncia na descoberta e formulaccedilatildeo dos princiacutepios comuns que regem as relaccedilotildees sociais bem como a possibilidade de enriquecimento reciacuteproco entre normas juriacutedicas e por fim o fornecimento de bases juriacutedicas e conclusotildees cientiacutefi-cas a partir da experiecircncia com o objetivo de aperfeiccediloar o sistema juriacutedico nacional (JIMENEZ SERRANO 2006)

Para explicar essas ldquomultiplicidadesrdquo no direito compara-do Ana Lucia de Lyra Tavares professora de Direito Constitucio-nal Comparado da PUC-Rio traz as seguintes consideraccedilotildees

Diversamente do que ocorreu por muito tempo em que os campos para a comparaccedilatildeo juriacutedica eram se-lecionados segundo afinidades geopoliacuteticas e ideoloacute-gicas dos Estados envolvidos ou de acordo como a similitude de graus de desenvolvimento econocircmico ou ainda em funccedilatildeo de raiacutezes culturais comuns em suma a comparaccedilatildeo do comparaacutevel em nossos dias a prefixaccedilatildeo desses campos passou a traduzir um in-teresse acadecircmico e teoacuterico Isso porque a realidade da globalizaccedilatildeo impocircs relaccedilotildees entre sistemas juriacute-dicos profundamente heterogecircneos aleacutem de extra-polarem as bases internacionais de relacionamento chegando-se a patamares supranacionais e ateacute mes-mo universais Assim se a urgecircncia da compreensatildeo entre os oriundos desses sistemas eacute ditada a curto prazo por interesses de natureza econocircmica a longo prazo satildeo exigecircncias mais profundas de compreen-satildeo intercultural que devem ser consideradas para que se alcance um entendimento mais vasto (TA-VARES 2014 online)

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Em concordacircncia nota-se que ldquoa ideia de comparaccedilatildeo au-menta a compreensatildeo entre os povos e contribui para a coexistecircn-cia das naccedilotildeesrdquo uma vez que gera aproximaccedilatildeo dos povos pelo respeito de suas identidades culturais (SACCO 2001 p 27)

Na visatildeo do professor Rogeacuterio Geraldo Rocco (2005 onli-ne)

Entretanto essa definiccedilatildeo de grandes sistemas juriacute-dicos caracteriza uma visatildeo hegemocircnica sobre gru-pos sociais que por certo satildeo diversos distintos e plurais num mesmo territoacuterio Eacute algo proacuteximo do monismo juriacutedico referido por Lins Mesquita (2012 p 157) segundo o qual os direitos dos povos tradi-cionais natildeo seriam senatildeo especificaccedilotildees histoacutericas Eacute certo que as comunidades indiacutegenas possuem seus sistemas juriacutedicos e que natildeo guardam muitas seme-lhanccedilas com os sistemas hegemocircnicos na proporccedilatildeo de seu distanciamento da cultura dominante E que o grande dilema contemporacircneo reside no desafio de harmonizar os distintos sistemas juriacutedicos eis que coincide sua incidecircncia no tempo e no espaccedilo

De fato o direito comparado pode gerar efeitos influen-ciar na mudanccedila de institutos como na criaccedilatildeo da norma juriacutedica ou no campo da hermenecircutica atraveacutes da interpretaccedilatildeo das nor-mas juriacutedicas

A conjuntura do direito comparado pode produzir mu-danccedilas no acircmbito juriacutedico no entanto atentam ao direito criado mediante um procedimento artificial o direito estatal Em contra-posto o direito tradicional como o direito indiacutegena por vezes eacute ignorado (SACCO 2001)

Jurisdiccedilatildeo equiparada

Na praacutetica o direito estatal vem imperando sobre o direito indiacutegena ao aplicar o direito positivo aos indiacutegenas negando o di-reito consuetudinaacuterio que adveacutem das praacuteticas sociais e da tradiccedilatildeo dos povos indiacutegenas pondo-o como fonte secundaacuteria do direito

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Exigindo que seja compatiacutevel com o sistema juriacutedico nacionalParalelo agrave concepccedilatildeo dogmaacutetica no sistema juriacutedico esta-

tal o Tribunal de Justiccedila de Roraima em decisatildeo ineacutedita no siste-ma juriacutedico brasileiro determinou que o Estado natildeo pode aplicar pena prevista no Coacutedigo Penal a indiacutegena que jaacute foi punido pela proacutepria comunidade

Ao declarar a ausecircncia de jus puniendi o juiz de primeiro grau suscitou a titularidade dos dois entes ndash Estado e comunidade indiacutegena ndash do direito de punir denominando de duplo jus puniendi garantindo autonomia ao Conselho Indiacutegena agrave luz do art 57 do Estatuto do Iacutendio ldquoSeraacute tolerada a aplicaccedilatildeo pelos grupos tribais de acordo com as instituiccedilotildees proacuteprias de sanccedilotildees penais ou disci-plinares contra os seus membros desde que natildeo revistam caraacuteter cruel ou infamante proibida em qualquer caso a pena de morterdquo (1973 np)

Em entrelinhas atraveacutes dessa interpretaccedilatildeo reconhece que o Estado natildeo eacute uacutenico detentor do poder de julgar e aplicar pu-niccedilatildeo colocando ambas as jurisdiccedilotildees em igual status hieraacuterquico como acontece em outras Repuacuteblicas latinas como Boliacutevia (2009) e Equador (2008)

Conforme documentos acostado agraves f 185-187 dos autos do processo em anaacutelise o Conselho Indiacutegena atraveacutes de seus usos e costumes impocircs ao indiacutegena as seguintes penalidades

ldquo1) O iacutendio Denilson deveraacute sair da Comunidade do Ma-noaacute e cumprir pena na Regiatildeo WaiWai por mais 5 (cinco) anos com possibilidade de reduccedilatildeo conforme seu comportamento

2) Cumprir o Regimento Interno do Povo WaiWai res-peitando a convivecircncia o costume a tradiccedilatildeo e moradia junto ao povo WaiWai

3) Participar de trabalho comunitaacuterio4) Participar de reuniotildees e demais eventos desenvolvido

pela comunidade5) Natildeo comercializar nenhum tipo de produto peixe ou

coisas existentes na comunidade sem permissatildeo da comunidade juntamente com tuxaua

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6) Natildeo desautorizar o tuxaua cometendo coisas agraves escon-didas sem conhecimento do tuxaua

7) Ter terra para trabalhar sempre com conhecimento e na companhia do tuxaua

8) Aprender a cultura e a liacutengua WaiWai9) Se natildeo cumprir o regimento seraacute feita outra reuniatildeo e

tomar outra decisatildeordquo (2013 p 224)Importante destacar alguns trechos da Sentenccedila dos autos

nordm 009010000302-0 TJRR proferida pelo Juiz de Direito Aluiacutezio Ferreira Vieira em 03 de setembro de 2013

[] Cabe acentuar que todo o procedimento su-pramencionado foi realizado sem mencionar em momento algum a legislaccedilatildeo estatal tendo apenas como norte a autoridade que seus usos e costumes lhes confere[] Vecirc-se portanto a potencial condenaccedilatildeo e exe-cuccedilatildeo de pena por mais de 2 (dois) entes em tese titulares do direito de punir o mesmo fato Insta ob-servar que natildeo se trata de bis in idem pois os entes detentores do direito de punir satildeo distintos e natildeo apenas o Estado mas de instituto novo que poderiacute-amos denominar de ldquoDuplo Jus Puniendirdquo Em razatildeo da situaccedilatildeo supramencionada a Defesa alccedilou a existecircncia do no bis in idem ou seja a im-possibilidade do acusado ser sancionado duas vezes pelo mesmo fato logo este Juiacutezo deveria declarar-se incompetente em razatildeo da mateacuteria haja vista o ante-rior julgamento do fato pela comunidade indiacutegena a que pertence o acusadoPois bem rechaccedilo em parte o argumento da ilustre Defesa A uma pois tenho que o imbroacuteglio natildeo se trata de bis in idem mas de ldquoDuplo jus Puniendirdquo em face do que dispotildee o art 57 da Lei 600173 (Es-tatuto do Iacutendio)[] Ora natildeo se estaacute aqui alccedilando qualquer alegaccedilatildeo de incompetecircncia do Tribunal do Juacuteri pois se trata de algo acima disso que a ausecircncia in casu do direito de punir do Estado-Juiz Logo seria uma discussatildeo esteacuteril em face da inaplicabilidade dos institutos do processo estatal Ademais ainda que se considerasse o niacutevel constitucional do prescrito no art 5ordm inciso

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XXXVIII da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica como direito fundamental a ser observado o contraponto estaria no art 231 da mesma Constituiccedilatildeo que tambeacutem eacute direito fundamental logo com a necessaacuteria obser-vacircncia aos costumes e tradiccedilotildees dos povos indiacutege-nasConveacutem advertir que a esmagadora maioria da doutrina entende que a previsatildeo art 57 do Estatuto do Iacutendio seria uma exceccedilatildeo ao direito de punir esta-tal Com base nisso poderia se concluir que o Esta-do natildeo poderia atuar de forma alguma nos casos de crimes ocorridos nas comunidades indiacutegenas o que natildeo traduz a finalidade da legislaccedilatildeo e tatildeo pouco o que acontece na realidadeVejo pois que essa natildeo eacute a melhor conclusatildeo uma vez que o Estado teraacute ampla autonomia para inves-tigar processar e julgar o indiacutegena nos casos em que a comunidade indiacutegena natildeo julgaacute-lo logo o Estado em casos tais atuaraacute de forma subsidiaacuteria[] Em outras palavras o Estado deve apenas pro-nunciar a sua ausecircncia de poder de punir uma vez que o acusado jaacute foi julgado e condenado por quem deteacutem o direito Muito maior que o reconhecimento do direito de pu-nir seus pares as comunidades indiacutegenas sentiratildeo muito mais fortalecidas em seus usos e costumes fa-tor de integraccedilatildeo e preservaccedilatildeo de sua cultura haja vista que o Estado estaraacute sinalizando o respeito ao seu modo de viver e lhe dar com as tensotildees da vida dentro da comunidadeHaacute quem pense e diga que haja o temor da repercus-satildeo social da fragilizaccedilatildeo do Estado ou o potencial recrudescimento da violecircncia dentro das comunida-des indiacutegenasDigo o inverso o Estado natildeo estaraacute fragilizado pois caso as comunidades indiacutegenas natildeo julguem seus pares manteacutem-se o Direito de Punir Estatal de for-ma subsidiaacuteriaEnfim natildeo se enfraquece de forma alguma o Poder Estatal mas ao inverso fortalece-se a atividade juris-dicional ao se reconhecer uma excepcionalidade que deve ser tratada de forma distinta afinal o Estado natildeo eacute absolutista[] Ante ao exposto deixo de apreciar o meacuterito da denuacutencia do Oacutergatildeo Ministerial representante do Es-

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tado para DECLARAR A AUSEcircNCIA IN CASU DO DIREITO DE PUNIR ESTATAL em face do julga-mento do fato por comunidade indiacutegena relativo ao acusado DENILSON TRINDADE DOUGLAS brasi-leiro solteiro agricultor nascido aos 130389 filho de Alan Douglas e Demilza da Silva Trindade com fundamento no art 57 da Lei nordm 600173 e art 231 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica (VIEIRA 2013)

Ainda como fundamentaccedilatildeo o juiacutezo levantou uma deci-satildeo do Conselho de Sentenccedila do Tribunal do Juacuteri Popular da Jus-ticcedila Federal em Roraima presidido pelo juiz federal Helder Giratildeo Barreto que entendeu pela absolviccedilatildeo do indiacutegena Basiacutelio Alves Salomatildeo por falta de culpabilidade tendo em vista que o reacuteu cum-priu sua pena imposta pela comunidade indiacutegena Vejamos o tre-cho proferido pelo titular

Pois bem apoacutes cometer o crime o acusado foi pre-so e julgado pela proacutepria Comunidade Indiacutegena agrave qual pertencia recebendo as seguintes penas cavar a cova e enterrar o corpo da viacutetima e ficar em degre-do de sua comunidade e de sua famiacutelia pelo tempo que a comunidade achasse conveniente No dia do julgamento o acusado estava haacute quase catorze anos sem poder retornar ao conviacutevio da Comunidade Indiacutegena do Maturuca Ao ser interrogado em ple-naacuterio o acusado declarou quando um iacutendio comete um crime eacute costume ele ser julgado pelos proacuteprios companheiros Tuxauas e que isso eacute um costume que vem antes do tempo dos seus avoacutes As testemunhas confirmaram os fatos Em plenaacuterio foi ouvida a an-tropoacuteloga Alesandra Albert que assegurou que na tradiccedilatildeo da etnia Macuxi um iacutendio que mata outro eacute submetido a um Conselho escolhido pela proacutepria comunidade e reconhecido como detentor de auto-ridade que a maior pena aplicada pelo Conselho eacute o banimento que tanto o julgamento quanto a pena satildeo modos como eles encaram a Justiccedila e conclui para a pessoa que sofreu banimento o julgamento e a pena tecircm o sentido da perda da convivecircncia e da di-minuiccedilatildeo do conceito perante a Comunidade coisas que satildeo muito importantes (BARRETO 2000)

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Muito embora o juiz Aluiacutezio Ferreira Vieira tenha discor-dado quanto agrave ldquoabsolviccedilatildeordquo pois absolviccedilatildeo entende-se pelo julga-mento da mateacuteria e para aquele o Estado in casu que natildeo detinha o direito de punir em virtude do que se concluiria pela competecircn-cia do jus puniendi indiacutegena

Dessa maneira entendeu-se pela inaplicabilidade dos ins-titutos do processo estatal uma vez que o Estado seria incompeten-te em razatildeo da mateacuteria diante da pena jaacute aplicada pelo Conselho Indiacutegena dando iniacutecio ao reconhecimento do Estado Plurinacio-nal com visibilidade agraves experiecircncias indiacutegenas com novas e criati-vas possibilidades de se pensar o direito

Em suma na praacutetica seraacute aplicado da seguinte maneira

a) Nos casos em que autor e viacutetima satildeo iacutendios fato ocorre em terra indiacutegena e natildeo haacute julgamen-to do fato pela comunidade indiacutegena o Estado deteraacute o direito de punir e atuaraacute apenas de forma subsidiaacuteria Logo seratildeo aplicaacuteveis todas as regras penais e processuais penais

b) nos casos em que autor e viacutetima satildeo iacutendios o fato ocorre em terra indiacutegena e haacute julgamento do fato pela comunidade indiacutegena o Estado natildeo teraacute o di-reito de punir Assim torna-se evidente a impossibi-lidade de se aplicar regras estatais procedimentais a fatos tais que natildeo podem ser julgados pelo Estado Eacute o que aconteceu neste caso (Grifo nosso)

Em apelaccedilatildeo a turma recursal atraveacutes do Relator Des Mauro Campello em 18 de dezembro de 2015 manteve a senten-ccedila como se nota

[] Firme na Convenccedilatildeo 169 da OIT bem assim no conhecido art 231 da Constituiccedilatildeo Federal e toman-do por base a experiecircncia comparada (conforme o permite o art 4ordm da LINDB) entendo como correta a decisatildeo em 1ordf instacircncia ressalvadas as consideraccedilotildees sobre parte da justificativa nela adotada como ano-tei o que em todo caso nos leva agrave mesma conclusatildeo Ante ao exposto considerando afastada a jurisdiccedilatildeo

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estatal com o julgamento do fato pela comunidade indiacutegena concernida sob pena de se acarretar bis in idem voto pelo desprovimento do recurso de ape-laccedilatildeo ministerial mantendo inalterada a sentenccedila (CAMPELLO 2015)

Por outro lado o Relator fez algumas reflexotildees colocando o caso em questatildeo como violaccedilatildeo ao princiacutepio non bis in idem dis-cordando do termo duplo jus puniendi utilizado pelo juiz senten-ciante

[] Se o que denomina o Juiz sentenciante de ldquoDu-plo Jus Puniendirdquo significa que haacute dois entes juridi-camente legitimados a punir uma infraccedilatildeo penal e julgando um deles um certo crime natildeo poderaacute se imiscuir o outro no mesmo fato arrogando para si o direito de examinar a culpabilidade do agente e eventualmente responsabilizaacute-lo tambeacutem por isto seria se outro modo justamente aquilo que veda o brocardo ldquoNemo debet bis vexari pro uma et eadem causardquo (Ningueacutem deve ser sancionado mais de uma vez por um e mesmo fato) cuja contraccedilatildeo correspon-de ao non bis in idem Este princiacutepio natildeo implica (apenas) que um mesmo ente natildeo pode punir duas vezes o mesmo fato e sim como garantia processual penal ampla do indiviacuteduo que este natildeo pode ser pu-nido duas vezes por umpelo mesmo fato qualquer se seja o ente que o puneTenho que a compreensatildeo para o caso deve ser a que percebe violado o principio non bis in idem no presente caso natildeo porque seja refrataacuterio a novos institutos que possam ser reconhecidos na casuiacutes-tica judicial mas apenas porque me parece que o ldquoDuplo Jus Puniendirdquo poderia acender um debate paralelo acerca do conflito de jurisdiccedilotildees e que esse novel instituto natildeo suplantaria adequadamente o argumento da acusaccedilatildeo de que haveria violado na espeacutecie principio da inafastabilidade da jurisdiccedilatildeo (CAMPELLO 2015)

Em suma a decisatildeo corresponde agrave realidade latino-ameri-cana reconhecendo a jurisdiccedilatildeo indiacutegena quebrando o monopoacutelio

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estatal ao conceber a utilizaccedilatildeo de meacutetodos tradicionais dos po-vos indiacutegenas para soluccedilatildeo de conflitos mesmo em mateacuteria penal Decisatildeo essa que eacute reflexo do neoconstitucionalismo latino-ame-ricano uma vez que efetiva os direitos fundamentais dos povos indiacutegenas valida e reforccedila o pluralismo existente no paiacutes Capaz de influenciar numa nova concepccedilatildeo de valores ou ideologias no que concerne a outras fontes de jurisdiccedilatildeo

Segundo dados do IBGE de 2010 a populaccedilatildeo indiacutegena brasileira eacute representada por 305 diferentes etnias conhecidas cada qual com costumes e regras proacuteprias com 274 liacutenguas indiacute-genas sendo que 175 da populaccedilatildeo indiacutegena natildeo falam a liacutengua portuguesa Mostra-se claramente um Estado composto por uma sociedade multicultural e multiliacutengue que possui seu reconheci-mento sob respaldo constitucional

Neste cenaacuterio reconhecer o jus puniendi indiacutegena em grau de paridade com o jus puniendi do Estado-juiz natildeo torna incompe-tente a atuaccedilatildeo do Estado mas sim descentraliza a efetividade do poder vez que restringe a sua atuaccedilatildeo ao caraacuteter subsidiaacuterio se o indiacutegena assim o quiser nem mesmo se teraacute uma sanccedilatildeo desfavo-raacutevel isso porque se viabiliza a aplicabilidade de outras fontes do direito nacional condizente com a realidade social indiacutegena

Atuaccedilatildeo semelhante acontece com as Constituiccedilotildees Boli-viana e Equatoriana paiacuteses em que a populaccedilatildeo eacute composta signi-ficativamente por povos originaacuterios que atraveacutes de ampla parti-cipaccedilatildeo da populaccedilatildeo durante a elaboraccedilatildeo dos respectivos textos constitucionais traccedilaram o objetivo de humanizaccedilatildeo dos povos e comunidades tradicionais sobretudo quanto ao tratamento dado agraves tradiccedilotildees e praacuteticas indiacutegenas e assim legitimaram a atuaccedilatildeo das autoridades indiacutegenas no exerciacutecio da administraccedilatildeo da justi-ccedila em seus espaccedilos territoriais com seu proacuteprio direito e procedi-mentos

O Artigo 1ordm da Constituiccedilatildeo boliviana preconiza

Boliacutevia se constituye em um Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario libre In-dependiente soberano democraacutetico intercultural

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descentralizado y com autonomias Boliacutevia se funda em lapluralidad y el pluralismo poliacutetico econocircmico juriacutedico cultural y linguiacutestico dentro Del processo integrador del paiacutes

De fato a Constituiccedilatildeo brasileira jaacute reconhece os direitos dos povos indiacutegenas e comunidades tradicionais entretanto as di-ficuldades que encontram estatildeo na efetivaccedilatildeo de tais direitos vez que versam principalmente sobre direitos de caraacuteter coletivo Na Constituiccedilatildeo boliviana por exemplo para materializar a perspec-tiva de um Estado Plurinacional houve uma transformaccedilatildeo insti-tucional Sobretudo com a composiccedilatildeo do Tribunal Constitucional Plurinacional Boliviano que em sua composiccedilatildeo aleacutem da presenccedila de representantes da jurisdiccedilatildeo estatal conta com a presenccedila obri-gatoacuteria de indiacutegenas eleitos pelo povo para um melhor diaacutelogo intercultural atraveacutes da participaccedilatildeo popular e da percepccedilatildeo in-diacutegena

Com perspectiva semelhante a Constituiccedilatildeo do Equador traz a criaccedilatildeo da Corte Constitucional Equatoriana composta com paridade entre homens e mulheres atraveacutes de um pluralismo juriacute-dico igualitaacuterio Traz ainda na essecircncia do Texto constitucional o rompimento do antropocentrismo atraveacutes da percepccedilatildeo indiacutegena da integraccedilatildeo do homem com o meio em que vive com a vida de modo geral

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Na concepccedilatildeo indiacutegena devido ao princiacutepio da solidarie-dade os interesses da comunidade satildeo mais importantes e se so-brepotildeem aos interesses ou direitos individuais de tal maneira que o direito indiacutegena se origina da proacutepria comunidade por isso a legitimidade das normas e da puniccedilatildeo natildeo satildeo questionadas

Essa visatildeo eacute diversa da empregada pelo direito comum (que se utiliza de outros meios para criaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo) mas pos-sui garantias no acircmbito constitucional e internacional

Embora presentes alguns dispositivos legais a Constitui-

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ccedilatildeo Federal vigente natildeo positiva expressamente a jurisdiccedilatildeo indiacute-gena com grau de paridade com a jurisdiccedilatildeo estatal limitando-se agrave aplicaccedilatildeo dos usos e costumes nas relaccedilotildees entre indiacutegenas salvo quando contrariar o sistema juriacutedico nacional ou direitos humanos internacionais

A Constituiccedilatildeo da Boliacutevia por sua vez elenca um rol sig-nificativo de artigos com direitos indiacutegenas Desse modo determi-na equivalecircncia entre a justiccedila indiacutegena e a justiccedila comum aleacutem de abrir espaccedilo para a participaccedilatildeo poliacutetica Assim reafirma a coexis-tecircncia de ldquonaccedilotildeesrdquo dentro do territoacuterio boliviano

Compreender a existecircncia de pluralismo eacute conhecer o di-reito indiacutegena enquanto direito comparado surgindo a possibili-dade de aprofundar o conhecimento dos sistemas juriacutedicos apri-morando o direito nacional e aproximando os povos atraveacutes do respeito de suas identidades culturais

Graccedilas agrave sentenccedila em anaacutelise o Brasil inova e abre frente para novas interpretaccedilotildees e aplicaccedilotildees do direito convalidando di-retrizes da ONU OIT e da proacutepria Constituiccedilatildeo Federal

Na concepccedilatildeo indiacutegena o reconhecimento da aplicaccedilatildeo de seus usos e costumes traz a integraccedilatildeo de povos que coexistem num mesmo espaccedilo fiacutesico

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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A TEORIA DO PREJUIacuteZO NAS NULIDADES RELATIVAS O COROLAacuteRIO DA DISCRICIONARIEDADE NO PROCESSO PENAL

Evandro Monezi Benevides1

Felipe Teles Tourounoglou2

RESUMO Com a superaccedilatildeo do Estado Liberal desenvolveu-se que se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito expressatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo agrave luz do poacutes-positivismo No Brasil com a Constituiccedilatildeo Cidadatilde e a experiecircncia da ditadura militar inaugurou-se uma nova ordem juriacutedico-constitucional ensejando terreno feacutertil na efetivaccedilatildeo de direitos e garantias constitucionais Em contrapartida os paradigmas juriacutedicos erigidos com a democracia mormente tecircm sido alvo de levantes vez que o sistema normativo paacutetrio ainda continua vinculado agraves leis que natildeo mais expressam os valores constitucionais Somado a isso o Judiciaacuterio diante de sua progressiva autonomizaccedilatildeo vivencia uma era regada pela discricionariedade hermenecircutica colocando em risco inclusive a supremacia da Constituiccedilatildeo Assim o presente trabalho tem por objetivo analisar como tem se dado a atuaccedilatildeo do Judiciaacuterio na aplicaccedilatildeo da teoria do prejuiacutezo nas nulidades processuais penais e a sua imbricaccedilatildeo com a discricionariedade tatildeo bem recepcionada atualmente por juiacutezes e tribunais bem como apontar possiacuteveis saiacutedas Para tanto lanccedilaremos matildeo da teoria criacutetica do direito como forma de anaacutelise da temaacutetica proposta apresentando posicionamentos que coadunam com o tema a partir de pesquisas bibliograacuteficas Tal estudo demonstra-se fundamental viabilizando discussotildees acadecircmicas sobre a necessidade de se combater comportamentos antidemocraacuteticos que resvalam as necessidades do atual constitucionalismo

PALAVRAS-CHAVE Constitucionalismo Contemporacircneo Poacutes-positivismo Interpretaccedilatildeo 1 Graduando do curso de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail evandromonezzihotmailcom2 Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado do Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail felipetelesadvgmailcom

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ABSTRACT With an overcoming of the Liberal State what has now been understood by the Constitutional State of Law the expression of Contemporary Constitutionalism has been developed in the light of post-positivism In Brazil with the Citizen Constitution and an experience of the military dictatorship a new juridical-constitutional order was inaugurated providing fertile ground for the realization of constitutional rights and guarantees On the other hand legal paradigms erected with democracy have usually been the target of uprisings which the countryrsquos normative system remains bound by laws that no longer express constitutional values Added to this the Judiciary faced with its progressive autonomization experienced an era ruled by hermeneutical arbitrariness even putting at risk the supremacy of the Constitution The purpose of this study has to analyze how the activity of the Judiciary has been applied in the application of the theory of injury in criminal proceedings and its connection with arbitrariness currently received by judges and courts pointing out possible exits Finally we will use the critical theory of law as a way of analyzing the proposed theme presenting positions that fit the theme using bibliographical research This study proves to be fundamental since it makes it possible to vocalize academic discussions about the need to combat undemocratic behaviors that go against the needs of the current constitutionalism

KEYWORDS Contemporary Constitutionalism Post-positivism Interpretation

INTRODUCcedilAtildeO

Com o agravamento das tensotildees poliacuteticas provocadas em parte pela desmoralizaccedilatildeo dos gestores puacuteblicos legitimamente constituiacutedos pelo voto em funccedilatildeo de escacircndalos de corrupccedilatildeo bem como do descompasso de suas accedilotildees face agraves necessidades sociais o Direito tem alcanccedilado um grau de autonomia cada vez mais elevado Isso se deve ao fato de que o Direito passa a ter um caraacuteter cada vez mais progressista no sentido de ser transformador potencializando as esperanccedilas sociais de verem concretizados os

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direitos fundamentais assumidos nos textos constitucionais Nes-se novo cenaacuterio paradigmaacutetico a poliacutetica (leia-se Executivo e Le-gislativo) em todas as suas conjecturas acaba ficando em deacuteficit com os direitos fundamentais Tais circunstacircncias possibilitaram a construccedilatildeo de um novo modelo de Direito e de Estado uma vez que a Constituiccedilatildeo passa a ser uma verdadeira forma de concreti-zaccedilatildeo de direitos

Por outro lado aquilo que poderia ser beneacutefico tem de-monstrado progressivamente seu lado funesto A autonomia do Direito construiacuteda pela afirmaccedilatildeo e materializaccedilatildeo de direitos e garantias constitucionais tem produzido um indesejaacutevel ldquoefeito colateralrdquo a discricionariedade jurisdicional Tal discricionariedade encontra-se fundamentada no fato de que dentro da dogmaacutetica juriacutedica (tradicional) seria (e tem sido) impossiacutevel ao inteacuterprete (juiz) se desvencilhar da sua subjetividade bem como da objetivi-dade do texto e lanccedilar matildeo de uma interpretaccedilatildeo do fato social a partir de uma concepccedilatildeo histoacuterico-ontoloacutegica do direito Isso sig-nifica dizer que a discricionariedade esvazia-se de quaisquer in-fluecircncias concreto-reais e mergulha na abstratalidade do Direito Se a liberdade portanto do legislador foi restringida em funccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo constitucional deve-se buscar caminhos que impe-ccedilam a discricionariedade do inteacuterprete em detrimento dos direitos e garantias fundamentais mormente solapados pelo decisionismo jurisdicional

Diante disso e como prova dos efeitos nocivos da discri-cionariedadearbitrariedade do inteacuterprete o ponto fulcral o qual o presente trabalho pretende abordar trata-se da teoria do prejuiacutezo amplamente debatida pela doutrina processual penal a qual se situa no instituto das nulidades relativas poreacutem muito mal apli-cada em decisotildees judiciais as quais em vez de concretizarem o respeito aos direitos fundamentais acabam se tornando a expres-satildeo maacutexima dessa discricionariedade violando direitos e garantias fundamentais e anulando e pondo agrave prova o que se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito Pior que isso colocando em risco a autonomia do Direito e inevitavelmente a supremacia da Constituiccedilatildeo

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O Estado Constitucional de Direito e a Autonomia do Direito

Trecircs foram as referecircncias inaugurais do constitucionalis-mo moderno a norte-americana a francesa e a inglesa as quais impulsionaram a construccedilatildeo do cenaacuterio juriacutedico-constitucional e poliacutetico do final do seacuteculo XVIII bem como os contornos do Estado Constitucional de Direito expressatildeo clara da limitaccedilatildeo do poder estatal

Sarlet (2013 p 52) aponta que ldquoo processo de afirmaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do Estado (Constitucional) de Direito que nasceu como um Estado Liberal de Direito revela que se trata de uma trajetoacuteria gradualrdquo pois outras experiecircncias constitucionais fo-ram sendo delineadas ao longo da histoacuteria3 Assim alerta o autor que sob o manto de Estados Constitucionais modelos distintos de constitucionalismos podem ser identificados como o Estado Cons-titucional Liberal o Estado Constitucional Social e o Estado Cons-titucional de Direito os quais se manifestam a partir de perspecti-vas ideoloacutegicas distintas mas que contribuiacuteram para a edificaccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo

Leciona Barroso (2010) que o marco do constitucionalis-mo que hoje se conhece como ldquogarantistardquo e ldquoprogramaacuteticordquo teve como marco histoacuterico o poacutes Segunda Guerra na Europa especial-mente na Alemanha e Itaacutelia4 com suas Constituiccedilotildees escritas No Brasil o marco foi a redemocratizaccedilatildeo poacutes Ditadura Militar em 1988 com a Constituiccedilatildeo Cidadatilde que possibilitou a travessia de um regime autoritaacuterio para o democraacutetico solidificado ateacute entatildeo Todos esses ldquomarcosrdquo a partir de suas contribuiccedilotildees histoacuterias de

3 Muito comum encontrar juristas que buscam estabelecer distinccedilotildees entre Estado Liberal e Estado Social apontado um ou outro como possivelmente mais adequado Logo necessaacuterio e oportuno eacute o esclarecimento de Streck (2014 p 138) ao afirmar que ldquonatildeo parece adequada portanto a tese da contraposiccedilatildeo do modelo de direito do Estado Social ao modelo de direito do Estado Liberal Isso seria ignorar os dois pilares sobre as quais estaacute assentado o terceiro modelo o Estado Democraacutetico de Direito a proteccedilatildeo dos direitos social-fundamentais e o respeito agrave democraciardquo 4 Duas satildeo as referecircncias de constitucionalismo a Constituiccedilatildeo alematilde denominada ldquoLei funda-mental de Bonnrdquo promulgada em 1949 erigindo uma sustentaacutevel tradiccedilatildeo constitucional no acircmbito dos paiacuteses de tradiccedilatildeo romano-germacircnica e a Constituiccedilatildeo italiana de 1947 Ambas auxiliaram para a aproximaccedilatildeo de ideais de democracia e constitucionalismo produzindo uma nova configuraccedilatildeo poliacutetica (BARROSO 2010)

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fato possibilitaram uma transformaccedilatildeo na compreensatildeo do Direi-to e mais que isso na compreensatildeo de validade das normas infra-constitucionais e das instituiccedilotildees pertencentes ao Estado

A redemocratizaccedilatildeo no Brasil apoacutes mais de duas deacutecadas do regime militar e a superaccedilatildeo do Positivismo Juriacutedico5 tiveram papel decisivo na estruturaccedilatildeo de um direito constitucional para aleacutem da compreensatildeo de uma Constituiccedilatildeo meramente poliacutetica e vinculada aos interesses legislativos e administrativos A Consti-tuiccedilatildeo aleacutem de exigir uma efetiva compatibilidade das leis estabe-lece limites ao legislador ao administrador e tambeacutem ao inteacuterprete da lei impondo-lhes deveres e limites inexoraacuteveis de atuaccedilatildeo

O marco do poacutes-positivismo6 reintroduziu as ideias (e os ideais) de justiccedila e legitimidade nos diversos niacuteveis do poder es-tatal Isso significa dizer que o Direito antes compreendido como uma ciecircncia ldquopurardquo e isolada de outros conhecimentos passa a comungar com a realidade histoacuterico-social propiciando um senti-mento constitucional Mais que isso passa a proporcionar instru-mentos que possibilitam as mudanccedilas reivindicadas pela socieda-de e de direitos expressamente garantidos no texto constitucional Quer dizer no Estado Constitucional de Direito a lei passa a ser um instrumento de realizaccedilatildeo do Estado oportunizando mecanis-mos de promoccedilatildeoconcretizaccedilatildeo das reivindicaccedilotildees sociais peran-te a ineacutercia do Executivo eou do Legislativo como por exemplo o mandado de injunccedilatildeo o mandado de seguranccedila coletivo a accedilatildeo civil puacuteblica para citar alguns

Ao passo dessas transformaccedilotildees e como forma clara de efetivaccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo consolidou-se a compreensatildeo de Supremacia da Constituiccedilatildeo a dizer a ldquoseguranccedilardquo de que os poderes constituiacutedos natildeo poderatildeo dispor (tatildeo facilmente)

5 A doutrina sofreu muitas influecircncias de pensadores que buscavam professar um direito natildeo mais refeacutem dos pensamentos ultrapassados ou seja de um direito com perspectivas individualista-dogmaacute-tica teacutecnico-burocraacutetica e assim por diante mas buscava agora compatibilizar-se com perspectivas democraacuteticas em direccedilatildeo a um constitucionalismo garantista e programaacutetico 6 Importante ressaltar que o conceito de ldquopoacutes-positivismordquo deve ser compreendido aqui como a superaccedilatildeo da dogmaacutetica juriacutedica regado por concepccedilotildees solipsistas de um direito autocircnomo e in-dividualista trata-se de forma clara da superaccedilatildeo do positivismo normativista poacutes-kelseniano ou simplesmente positivismo primitivo

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das previsotildees constitucionais estabelecidas pelo Poder Constituinte muito menos contrariar tais disposiccedilotildees sob pena de serem repe-lidos do ordenamento juriacutedico Essa ldquoseguranccedilardquo por outro lado acaba sendo abalada sempre que uma (nova) ordem constitucional natildeo seja capaz de se desvencilhar de leis ordinaacuterias visivelmen-te conflitantes com essa (nova) ordem Isso porque ao contraacuterio do que pensam alguns juristas a Constituiccedilatildeo natildeo se funda ldquodo nadardquo seja com a primeira Constituiccedilatildeo de um Estado ou mesmo com a elaboraccedilatildeo de uma nova a qual substituiraacute outra Natildeo se pode tentar ldquopurificarrdquo um Poder Constituinte (como tentou fazer Kelsen) Nenhuma Constituiccedilatildeo eacute livre de influecircncias sociais poliacute-ticas culturais e religiosas Ainda mais se diante da fragilidade do monismo estatal reconhece-se a existecircncia de um direito natildeo esta-tal paralelo ao direito oficial o que certamente nos levaraacute agrave con-clusatildeo de que nenhum constituinte eacute totalmente imune agraves influecircn-cias de um direito preacute-existente quiccedilaacute das efervescecircncias sociais

Ao lado dessa inseguranccedila provocada por um sistema normativo que em muitos casos vai de encontro aos preceitos constitucionais o ponto fulcral da discussatildeo que envolve o Esta-do Democraacutetico de Direito diz respeito agrave autonomia que o Direito alcanccedilou e tem alcanccedilado Eacute preciso ter em mente que hoje no Es-tado Democraacutetico de Direito o foco de toda a atenccedilatildeo se volta ao Judiciaacuterio e isso se daacute aponta Streck (2014 p 138) em funccedilatildeo da perda da ldquoliberdade da conformaccedilatildeo do legislador em favor do controle contramajoritaacuterio feito pela jurisdiccedilatildeo constitucionalrdquo ou seja haacute uma niacutetida diminuiccedilatildeo do ldquopoderrdquo da vontade geral (Legislativo) e um aumento do espaccedilo da jurisdiccedilatildeo e o principal motivo dessa diminuiccedilatildeo de poder recai sobre a ineacutercia do Legis-lativo e do Executivo diante das garantias constitucionais que por eles satildeo negligenciadas permitindo que o Judiciaacuterio assuma uma postura mais ativa7 com o propoacutesito de concretizar os reclames da sociedade

7 Aqui a palavra ldquoativardquo (que remete ao termo ldquoativismo juriacutedicordquo) deve ser compreendida nas pa-lavras de Barroso (2012 p 1-50) como ldquouma participaccedilatildeo mais ampla e intensa do Judiciaacuterio na con-cretizaccedilatildeo dos valores e fins constitucionais com maior interferecircncia no espaccedilo de atuaccedilatildeo dos outros dois Poderes Em muitas situaccedilotildees sequer haacute confronto mas mera ocupaccedilatildeo de espaccedilos vaziosrdquo

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Diante dessa autonomizaccedilatildeo do direito do fortalecimen-to da atividade jurisdicional e da consequente diminuiccedilatildeo da in-fluecircncia dos demais poderes bem como diante da incompletude da lei que por vezes natildeo consegue abranger todas as situaccedilotildees possiacuteveis evidencia-se como defende Streck (2010) a necessidade de se encontrar mecanismos de controle do epicentro da tensatildeo entre jurisdiccedilatildeo e legislaccedilatildeo as decisotildees judiciais Isto eacute com essa au-tonomizaccedilatildeo do Direito adquirida no Estado Constitucional juiacute-zes e tribunais (e mais do que nunca os Tribunais Constitucionais) tecircm encontrado dificuldade em impedir que as suas decisotildees sejam solapadas pela discricionariedadearbitrariedade Quer dizer o que ateacute entatildeo representa(ria) um avanccedilo para o Direito agora tem sido seu principal entrave vez que natildeo tem sido usada de forma a exprimir o ldquoespiacuteritordquo do Constitucionalismo Contemporacircneo mas passa a exprimir interesses outros que natildeo se consubstanciam com a nova ordem vigente

Partindo dessa reflexatildeo pergunta-se como seraacute possiacutevel lidar com a dicotomia ldquoautonomiardquo versus ldquodiscricionariedaderdquo que hoje paira sobre o Direito muitas vezes chancelado pelos in-teacuterpretes da lei E eacute justamente no Processo Penal locus em que se deveria materializar o respeito aos direitos fundamentais que ilogicamente se tem encontrado a expressatildeo maacutexima dessa discri-cionariedade Natildeo raro chegam-se ao conhecimento puacuteblico de-cisotildees teratoloacutegicas que agrave luz da consciecircncia do julgador passam por cima da Constituiccedilatildeo violam direitos e garantias fundamen-tais e anulam a base do que agraves duras penas se compreende hoje por Estado Constitucional de Direito isto eacute colocando em risco a autonomia do Direito e o pior a supremacia da Constituiccedilatildeo Como bem analisa Lopes Jr (2014 p 1176)

o sistema de garantias da Constituiccedilatildeo eacute o nuacutecleo imantador e legitimador de todas as atividades de-senvolvidas naquilo que concebemos como instru-mentalidade do processo penal eacute dizer um instru-mento a serviccedilo da maacutexima eficaacutecia do sistema de garantias da Constituiccedilatildeo

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Para tanto eacute preciso que se compreenda o Processo Penal agrave luz do sistema de garantias constitucionais a fim de efetivar a finalidade pela qual existem tais garantias limitaccedilatildeo do poder estatal face aos direitos fundamentais do reacuteu Posto isso eacute impossiacutevel negar que com a queda do regime totalitaacuterio e a promulgaccedilatildeo da Cons-tituiccedilatildeo de 1988 surgiu uma nova era constitucional advinda de um regime democraacutetico e que resvala da compreensatildeo dogmaacuteti-co-normativa do direito Todavia aleacutem do ordenamento juriacutedico vigente continuar ainda em sua grande maioria umbilicado com leis fascistas de outrora criando uma verdadeira instabilidade le-gal constitucional os inteacuterpretes do direito tambeacutem continuam os mesmos

A partir dessa problemaacutetica pode-se identificar dois pos-siacuteveis comportamentos igualmente nocivos a essa nova legalida-de constitucional ou os inteacuterpretes continuam aplicando o direito com o pressuposto da loacutegica positivista (primitiva) criando situa-ccedilotildees absurdas e desconexas com a nova ordem constitucional ou ao contraacuterio disso natildeo aceitando aplicar um Direito que natildeo mais coaduna com a nova ordem passam de meros ldquobocas da leirdquo a ldquocriacute-ticos da leirdquo proferindo decisotildees discricionaacuterias contraacuterias agrave Cons-tituiccedilatildeo que em nome de um neoconstitucionalismo natildeo abrem matildeo das raiacutezes solipsistas Como se veraacute a partir de agora o segundo comportamento tem se intensificado na seara processual penal

Teoria do ldquoVale-tudordquo

O instituto das nulidades em Processo Penal eacute um dos terremos mais arenosos no Direito atualmente Seja na juris-prudecircncia ou na doutrina raramente encontram-se opiniotildees con-vergentes sobre o assunto Todavia aleacutem das inuacutemeras discussotildees possiacuteveis que o instituto proporciona o que chama atenccedilatildeo eacute a denominada teoria do prejuiacutezo que atrelada agraves nulidades relativas transformou-se em mais um tumor do Processo Penal que volta e meia fere o sistema de garantias constitucionais

Extraiacuteda da dicccedilatildeo do artigo 563 do Coacutedigo de Processo

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Penal8 a teoria do prejuiacutezo tem finalidade uacuteltima de servir agrave apli-caccedilatildeo da nulidade relativa (que eacute uma classificaccedilatildeo doutrinaria das nulidades no sistema processual penal) O dispositivo explicita o famoso princiacutepio pas de nulliteacute sans grief (natildeo haacute nulidade sem pre-juiacutezo) isto eacute para que determinado ato seja declarado nulo seraacute necessaacuteria a comprovaccedilatildeo do prejuiacutezo pela parte que alega salvo se o ato natildeo viole norma cogente situaccedilatildeo em que o juiz poderaacute reconhececirc-la de ofiacutecio Entretanto nas palavras de Lopes Jr (2014) o ldquoprejuiacutezordquo como distinccedilatildeo entre nulidades relativas e absolutas9 possibilita espaccedilos de manipulaccedilatildeo interpretativa e a aplicaccedilatildeo inadequada das nulidades processuais penais nos casos concretos

O primeiro ponto a ser analisado entatildeo eacute a inapropriada influecircncia do processo civil exercida sobre o processo penal quanto ao tema das nulidades processuais Pois o ldquoprejuiacutezordquo ateacute entatildeo soacute era aplicado nos casos de nulidade relativa e desde que devida-mente comprovada a lesatildeo que o ato causou agravequele que alegou Todavia haacute muito nos tribunais tem-se aceitado o fenocircmeno da relativizaccedilatildeo das nulidades absolutas do processo civil em processo penal exigindo da parte que alega a nulidade absoluta a compro-vaccedilatildeo efetiva do prejuiacutezo o que implica em consequecircncias danosas ao suporte faacutetico dos direitos e garantias do imputado Nota-se portanto uma tendecircncia em evitar a decretaccedilatildeo de nulidade pro-cessual (seja ela relativa ou absoluta) sob o argumento de que a nulificaccedilatildeo natildeo condiz com os objetivos de celeridade e de precau-ccedilatildeo contra dilaccedilotildees processuais indevidas Daiacute se justificaria por exemplo a violaccedilatildeo do devido processo legal ()

8 Art 563 Nenhum ato seraacute declarado nulo se da nulidade natildeo resultar prejuiacutezo para a acusaccedilatildeo ou para a defesa (BRASIL 2016) 9 Considera-se como nulidade relativa o viacutecio que embora grave decorre de violaccedilatildeo de normas de interesse privado (ou normas infraconstitucionais) sem qualquer repercussatildeo constitucional Seu reconhecimento depende de provocaccedilatildeo do interessado com a demonstraccedilatildeo do efetivo ldquoprejuiacutezordquo sujeito a prazo preclusivo podendo se convalidar A nulidade absoluta por sua vez eacute o viacutecio de gra-vidade manifesta pois decorre de violaccedilatildeo de norma cogente ou seja que viola norma de interesse puacuteblico (e de ordem constitucional) e por isso o juiz deve alegaacute-la de ofiacutecio decretando sua inva-lidade A doutrina majoritaacuteria aponta que o prejuiacutezo nesse caso eacute presumido mas o STF e STJ tecircm relativizado as nulidades absolutas as quais nesse entendimento precisam gerar prejuiacutezo agraves partes a fim de que sejam declaradas ineficazes Nesse sentido ver STF ndash Segunda Turma ndash HC 406648 ndash Rel Min Teori Zavascki ndash Dje 26112013 e STJ ndash Quinta Turma ndash RMS 35180 ndash Rel Min Laurita Vaz ndash Dje 05112013

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Trata-se portanto de verdadeira metaacutestase vez que a re-cepccedilatildeo de categorias do processo civil para o processo penal (no caso a relativizaccedilatildeo das nulidades absolutas) como explica Lopes Jr (2014) tem produzido verdadeiro atropelamento de direitos e garantias fundamentais embasado em uma postura utilitarista e sob o manto da manipulaccedilatildeo discursivo-interpretativa Reiterando esse posicionamento Fernandes e Fernandes (2002 p 41) afirmam por outro lado que mais grave que os inconvenientes da decla-raccedilatildeo de nulidade processual ldquoseraacute a condenaccedilatildeo de um acusado com proscriccedilatildeo das garantias fundamentais do contraditoacuterio da ampla defesa da liberdade plena de produccedilatildeo de provardquo

Como consequecircncia dessa lesatildeo inicial (leia-se da inade-quada influecircncia do processo civil em processo penal) as ceacutelulas canceriacutegenas da discricionariedade do inteacuterprete acabaram se dis-seminando por todo o sistema de garantias constitucionais do reacuteu conquistado agraves duras penas frisa-se De mais a mais a pergunta que se faz eacute afinal a serviccedilo de quem estaacute o sistema de garantias constitucionais quanto agraves nulidades processuais penais Nas pala-vras de Binder (2000 p 58)

En los siglos XVIII y XIX a la par del desarrollo del pensamiento liberal (Beccaria Montesquieu Fi-lan-gieri Pagano luego Carrara etc) con los materiales del formalismo propio del sistema inquisitivo co-mienza a gestarse una nueva ingenieriacutea institucio-nal del proceso penal orientada a la contencioacuten de la violencia y la arbitrariedad del poder penal de la cual deriva lo que hoy desde Ferrajoli llamamos sis-tema de garantios

Natildeo se pode perder de vista o que jaacute fora discutido ante-riormente isto eacute que as normas bem como todas as instituiccedilotildees sujeitas ao Estado Constitucional de Direito estatildeo vinculadas a uma nova dogmaacutetica juriacutedico-constitucional que apresenta caracteriacutes-ticas dotadas de especial importacircncia na realizaccedilatildeo normativa dos direitos e garantias da Constituiccedilatildeo Logo natildeo eacute (e natildeo seraacute) pos-siacutevel compreender a teoria do prejuiacutezo e as nulidades em processo

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penal como um todo desvinculadas da compreensatildeo de Constitu-cionalismo Contemporacircneo Nessa linha arremata Binder (2000 p 59)

Formas procesales verdad proceso cognitivo prin-cipios del proceso sistema de garantiacuteas y liacutemites al poder penal son un conjunto de conceptos ligados entre siacute en un nivel de fundamento Quien no se si-tuacutee en el universo conformado por esos conceptos y su relacioacuten mutua difiacutecilmente pueda comprender el reacutegimen de las nulidades en el proceso penal

Nesta senda forma no Estado Constitucional de Direito e mais do que nunca dentro da seara processual penal eacute sinocircnimo de garantia Adequada eacute a afirmaccedilatildeo de Lopes Jr (2014 p 1175) de que o ldquoprocesso penal eacute um instrumento de limitaccedilatildeo do poder punitivo do Estado impondo severos limites desse poder e tam-beacutem regras formais para o seu exerciacutecio Eacute a forma um limite ao poder estatalrdquo e mais ldquoa forma eacute uma garantia para o imputado em situaccedilatildeo similar ao princiacutepio da legalidade do direito penalrdquo Co-mungando com essa visatildeo Streck (2010 p 170) pontua que ldquosalta-mos de um legalismo rasteiro que reduzia o elemento central do direito ora a um conceito estrito de lei [] para uma concepccedilatildeo de legalidade que soacute se constitui sob o manto da constitucionali-daderdquo Deduz-se portanto que todo o sistema de garantias e por consequecircncia de limitaccedilatildeo do puniendi estatal deve estar voltado para o reacuteu No entanto essa natildeo eacute a realidade

Nessa perspectiva e ao contraacuterio do que se imaginava a forma tem evitado que garantias constitucionais sejam colocadas em praacutetica e o pior tudo engendrado justamente por aqueles que deveriam garanti-la o inteacuterprete Diante disso introduz-se aqui o segundo ponto a ser analisado a discricionariedade travestida de le-galidade constitucional mas que na verdade tangencia qualquer noccedilatildeo de constitucionalidade Exemplo claro disso eacute o julgamento do habeas corpus nordm 148723SC em que o Superior Tribunal de Jus-ticcedila (STJ 2010 p 9) denegou a ordem de habeas corpus ao paciente que alegava nulidade absoluta em funccedilatildeo de o processo tramitar

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em segredo de justiccedila sem motivaccedilatildeo violando o princiacutepio consti-tucional da publicidade sob o seguinte fundamento

O simples fato de o feito ter tramitado em sigilo com a impliacutecita concordacircncia da Defesa natildeo gera qual-quer nulidade Poderia se cogitar eventual viacutecio em situaccedilatildeo oposta ou seja se natildeo tivesse sido obser-vado o sigilo determinado pela lei No caso contu-do natildeo haacute qualquer maacutecula processual [] natildeo se demonstrou qualquer prejuiacutezo () em decorrecircncia da providecircncia adotada A magistrada esclareceu que a Defesa teve o devido acesso aos autos e o impetrante natildeo alega o contraacuterio (Grifo nosso)

Percebe-se que sob o fundamento da preclusatildeo () a in-devida tramitaccedilatildeo em segredo de justiccedila da Accedilatildeo Penal in casu violando frontalmente ditame constitucional estampado no art 93 IX da CF88 natildeo constitui ldquoqualquer maacutecula processualrdquo Ora eacute sabido que no caso de nulidade absoluta natildeo haacute falar em conva-lidaccedilatildeo tatildeo pouco em preclusatildeo do ato eis que a invalidade pro-cessual pode ser arguida a qualquer tempo enquanto perdurar o processo penal aleacutem disso para que seja reconhecida a nulidade absoluta natildeo eacute necessaacuteria a provocaccedilatildeo da parte interessada po-dendo ser declarada de ofiacutecio pelo juiz e inclusive ser alegada em sede de revisatildeo criminal ou habeas corpus ainda que formada a coisa julgada

Outra questatildeo que toca o objeto do presente trabalho eacute que natildeo haacute falar em demonstraccedilatildeo de prejuiacutezo em nulidades ab-solutas vez que o prejuiacutezo eacute presumido E mais se se entende que ldquoformardquo eacute garantia uma vez violada a ldquoformardquo eacute obvio que tal atipicidade produza dano Apesar disso verifica-se que no exem-plo operou-se a relativizaccedilatildeo da nulidade absoluta e consequen-temente a aplicaccedilatildeo do princiacutepio pas nilliteacute sans grife mesmo sendo caso de nulidade insanaacutevel (absoluta)

Natildeo precisa ser especialista para notar a influecircncia ainda muito presente nos tribunais do animus inquisitivo Nas palavras de Lopes Jr (2014 p 1) ldquopara reconhecer uma nulidade o juiz

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precisa ser lsquoinvocadorsquo mas para ir atraacutes da prova decretar prisatildeo busca e apreensatildeo etc pode e deve atuar de ofiacutecio Olhem o ab-surdordquo E vai aleacutem o autor ao afirmar que determinado ato soacute seraacute declarado nulo ldquoquando o tribunal quiser para quem ele quiser e com o alcance que ele quiser Essa eacute a verdadeira ditadura judicial vivenciada hojerdquo (Idem) Agrave vista disto lanccedila-se mais uma pergun-ta haveria entatildeo soluccedilatildeo para o problema da discricionariedade quanto agrave aplicaccedilatildeo da teoria do prejuiacutezo em processo penal

Lopes Jr (Ibidem) em sua obra Direito Processual Penal apresenta uma possiacutevel saiacuteda O autor propotildee o que ele denomina de ldquoinversatildeo de sinaisrdquo ou seja natildeo seraacute a parte que alega o prejuiacute-zo que deveraacute demonstraacute-lo mas o proacuteprio juiz que para manter a eficaacutecia do ato deveraacute fundamentaacute-lo demonstrando que o ato alcanccedilou sua finalidade ou foi regularmente sanado Este tambeacutem eacute o posicionamento de Badaroacute (2007) para o qual deveraacute ocorrer uma liberaccedilatildeo da carga probatoacuteria por parte da defesa restando ao juiz tal incumbecircncia Isso se justifica uma vez que a defesa dificil-mente conseguiria demonstrar o prejuiacutezo por exemplo em casos de violaccedilatildeo do princiacutepio da publicidade como no caso em anaacutelise Quer dizer qual foi o prejuiacutezo nesse caso se o paciente teve opor-tunidade de alegar o defeito mas natildeo o fez oportunamente Qual foi o prejuiacutezo se o paciente sequer apontou um Ora o prejuiacutezo eacute nada mais que a violaccedilatildeo de uma norma constitucional Ou em outros casos a inobservacircncia de direitos fundamentais

Frisa-se entretanto que por mais que a medida adotada por Lopes Jr seja um grande passo para evitar a violaccedilatildeo de di-reitos e garantias constitucionais soacute ela natildeo satisfaz Afinal nada impediria que o juiz ou o tribunal continuassem tendo atitudes discricionaacuterias e violadoras bastasse apresentar razotildees que para sua consciecircncia legitimariam a inobservacircncia da Constituiccedilatildeo ou de determinada formalidade prevista no processo penal Mais que isso eacute imperioso um conjunto de accedilotildees o que inclui fundamental-mente que juiacutezes e tribunais tenham a correta compreensatildeo do processo penal natildeo mais como um sistema inquisitoacuterio mas como um sistema inexoravelmente inserido em uma nova ordem juriacutedi-

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co-constitucional na qual a forma eacute a maacutexima expressatildeo de garantiaDentro desse conjunto de accedilotildees por sua vez deve perpas-

sar tambeacutem uma maior importacircncia agrave hermenecircutica juriacutedica natildeo como ldquomais um meacutetodordquo ou como ldquoum saber operacionalrdquo mas como um instrumento a fim de se alcanccedilar interpretaccedilotildees fundi-das com a Constituiccedilatildeo Natildeo se pode mais permitir como aponta Streck (2010 p 162) que ldquolsquoo processoprocedimento interpretati-vorsquo possibilit[e]a que o sujeito [] alcance o sentido que mais lhe conveacutem lsquoo real sentido da regra juriacutedicarsquo etcrdquo Natildeo restam duacutevi-das de que no acircmbito da hermenecircutica juriacutedica haacute uma verdadei-ra banalizaccedilatildeo do processo interpretativo pois natildeo se sabe mais o que se deve seguir se ldquoa vontade da leirdquo ou ldquoa vontade do legisla-dorrdquo10 Quando nenhuma delas ldquoresolverdquo aplica-se a ldquovontade do inteacuterpreterdquo e assim em termos de nulidades em processo penal estaacute montada a torre de Babel Como explica Streck (Idem)

o resultado disso eacute que aquilo que comeccedila com (um)a subjetividade ldquocriadorardquo de sentidos (afinal quem pode controlar a ldquovontade do inteacuterpreterdquo pergun-tariam os juristas) acaba em decisionismos e arbi-trariedades interpretativas isto eacute em um ldquomundo juriacutedicordquo em que cada um interpreta como (melhor) lhe conveacutem Enfim o triunfo do sujeito solipsista o Selbstsuumlchtiger

Este portanto eacute justamente o resultado que natildeo se pode esperar quer dizer a subjetividade a discricionariedadearbitra-riedade o decisionismo Nenhum desses comportamentos har-moniza-se com o Estado Constitucional de Direito e deve ser du-ramente combatido por aqueles que acreditam na supremacia da Constituiccedilatildeo Natildeo se pode mais admitir que garantias fundamen-tais sejam violadas a fim de se satisfazer a consciecircncia do inteacuterpre-

10 Streck (2010 p 162) ensina que ldquoalguns autores colocam na consciecircncia do sujeito-juiz o locus da atribuiccedilatildeo de sentido (solipsista) Nesse contexto lsquofilosofia da consciecircnciarsquo e lsquodiscricionariedade judicialrsquo satildeo faces da mesma moeda Haacute ainda juristas filiados agraves antigas teses formalistas propalando que a interpretaccedilatildeo deve buscar a vontade da lei desconsiderando de quem a fez ndash sic ndash e que a lei lsquoterminadarsquo independe de seu passado importando apenas o que estaacute contido em seus preceitos (o texto teria um sentido lsquoem sirsquo)rdquo

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te e pior que isso que tais ilegalidades sejam chanceladas pelos tribunais

Atualmente o decisionismo no acircmbito do processo penal em especial no que diz respeito agraves nulidades processuais estaacute ri-gorosamente arraigado sendo legitimado pela doutrina diga-se de passagem Eacute preciso como jaacute dito um conjunto de accedilotildees dentre as quais a primordial eacute a compreensatildeo do sistema juriacutedico inevita-velmente inseparaacutevel da Constituiccedilatildeo e da ordem juriacutedica por ela estabelecida Compreendido isso chegar-se-aacute agrave conclusatildeo de que a formalidade de fato natildeo pode ser utilizada como um fim em si mesma assim como natildeo pode ser utilizada ao bel prazer de seus inteacuterpretes

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao fim e ao cabo com a construccedilatildeo do Constitucionalismo Contemporacircneo o Direito deve se apresentar justaposto agrave nova dogmaacutetica juriacutedica implantada pelo Estado Constitucional de Di-reito mas natildeo soacute ele Tal exigecircncia deve-se estender peremptoria-mente aos seus ldquooperadoresrdquo quer dizer juiacutezes e tribunais preci-sam ter uma compreensatildeo cada vez mais consubstanciada com a nova ordem juriacutedica tendo em vista a progressiva autonomizaccedilatildeo do Direito que somada agrave incompreensatildeo dos inteacuterpretes da lei na aplicaccedilatildeo do saber tem provocado avalanches de criacuteticas as quais reprovam toda e qualquer atividade discricionaacuteria das autorida-des judiciaacuterias

A tendecircncia do Judiciaacuterio impulsionada por uma maior li-berdade de conformaccedilatildeo do sistema contramajoritaacuterio dos direitos fundamentais e em muitos casos lastreada por um falacioso dis-curso neoconstitucional por violar garantias constitucionais tem sido totalmente questionaacutevel especialmente quando tais violaccedilotildees ocorrem no acircmbito do Direito Penal e Processual Penal conside-rando seu caraacuteter subsidiaacuterio (ultima ratio) Como analisado ante-riormente evidencia-se que o grande desafio entatildeo eacute construir condiccedilotildees que evitem que a atividade jurisdicional (ou a atividade

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dos juiacutezes) se sobreponha ao proacuteprio Direito agrave proacutepria Constitui-ccedilatildeo afinal natildeo eacute em todos os casos que o Direito seraacute o que os tribunais dizem que ele eacute (e como de fato natildeo tem sido)

Esse descompasso entre a atuaccedilatildeo do judiciaacuterio e os ideais constitucionais tem se tornado nocivo para o processual penal vez que muito facilmente se tem subtraiacutedo direitos do reacuteu em prol da consciecircncia do julgador Isso fica muito claro como jaacute visto quan-do o judiciaacuterio passa a relativizar todas as nulidades no acircmbito do processo penal Sem sombra de duacutevidas tal entendimento que tem sido amplamente recepcionado por juiacutezes e tribunais nasceu em funccedilatildeo de uma equivocada recepccedilatildeo de categorias do processo civil a qual diferencia as nulidades absolutas das relativas a partir na natureza da norma ndash norma de interesse puacuteblico ou de interes-se privado Essa equivocada recepccedilatildeo insiste-se tem provocado a violaccedilatildeo dos direitos do reacuteu Primeiro porque no processo penal a forma deve ser vislumbrada como garantia isto eacute garantia contra a arbitrariedade do poder estatal Natildeo eacute por acaso que no processo inquisitivo a informalidade eacute tatildeo apreciada vez que ali o poder eacute melhor distribuiacutedo natildeo existindo limites definidos para a sua atuaccedilatildeo Essa realidade repete-se agrave exaustatildeo eacute altamente noci-va quando aplicada no processo penal levando-se em conta que a proteccedilatildeo do reacuteu eacute puacuteblica da mesma forma que puacuteblicos satildeo os direitos constitucionais que o tutelam

Diante da necessidade de proteccedilatildeo e defesa dos direitos e garantias fundamentais fazem-se essenciais algumas readequa-ccedilotildees procedimentais quanto agrave aplicaccedilatildeo das nulidades no processo penal Nesse passo a denominada ldquoinversatildeo de sinaisrdquo proposta pelo doutrinador Aury Lopes Jr (2014) apresenta-se uma possibi-lidade vez que defende que o ocircnus na demonstraccedilatildeo do prejuiacutezo natildeo ficaraacute mais com a parte que a alega (e que em muitos casos recai sobre o proacuteprio reacuteu) Tal encargo entretanto seraacute direcio-nado ao proacuteprio juiz que para manter a eficaacutecia do ato deveraacute fundamentaacute-lo demonstrando que o ato alcanccedilou sua finalidade ou foi regularmente sanado Por outro lado como apontado por mais que a medida adotada por Lopes Jr seja de grade valia para

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o sistema de garantias constitucionais ela por si soacute natildeo eacute sufi-ciente Em conjunto com essa proposta torna-se fundamental uma tomada de consciecircncia por parte do inteacuterprete quanto agrave relaccedilatildeo entre o sistema de nulidade processual penal e as garantias previs-tas na Constituiccedilatildeo Eacute preciso compreender que tais garantias (no caso as nulidades processuais) foram elaboradas a favor daquele sobre o qual recai o poder do Estado o imputado Seguindo esse raciociacutenio o inteacuterprete natildeo pode sacrificar regras e princiacutepios esta-belecidos constitucionalmente a fim de dar lugar as suas proacuteprias convicccedilotildees aos seus proacuteprios interesses

Nota-se enfim a importacircncia da hermenecircutica juriacutedica no processo de compreensatildeo do Direito como um todo o qual pro-duziraacute reflexos quando da sua aplicaccedilatildeo A superaccedilatildeo da crise de efetividade da Constituiccedilatildeo no acircmbito do Judiciaacuterio (e que haacute mui-to assola o Poder Legislativo e Executivo) em especial quanto ao tema das nulidades no processo penal estaacute inteiramente imbrica-da na retomada de uma legalidade que soacute se fundamenta por meio da constitucionalidade do respeito agrave Constituiccedilatildeo Legalidade esta que natildeo se confunde com o retorno a pensamentos positivistas mas de uma legalidade atraveacutes da qual obedecer agrave Constituiccedilatildeo simboliza um progresso consideraacutevel na defesa de direitos funda-mentais conferidos ao cidadatildeo em especial ao reacuteu

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CAacuteCERES E O DEacuteFICIT DE MORADIAS O CASO DA OCUPACcedilAtildeO DO BAIRRO EMPA

Evely Bocardi de Miranda Saldanha1

Richard Rodrigues da Silva2

RESUMO O presente trabalho analisa a ocupaccedilatildeo irregular ocorrida no bairro Jardim das Oliveiras conhecido popularmente como EMPA em CaacuteceresMT bem como verifica a situaccedilatildeo do acesso agrave moradia dos habitantes no que diz respeito agrave referida aacuterea Cabe destacar que em razatildeo do deacuteficit habitacional existente no municiacutepio a populaccedilatildeo de baixa renda se viu obrigada a ocupar irregularmente o local onde vive e sobrevive sem miacutenimas condiccedilotildees de saneamento infraestrutura baacutesica e qualquer planejamento urbano por parte do Poder Puacuteblico O municiacutepio de Caacuteceres atualmente tem uma populaccedilatildeo de 87942 habitantes segundo Censo do IBGE-2010 o qual estimou que em 2016 estaria com uma populaccedilatildeo de 90881 habitantes sendo que 8707 da populaccedilatildeo de Caacuteceres vivem na aacuterea urbana com incidecircncia de pobreza de 3902 (IBGE 2016) O Programa Minha Casa Minha Vida que atende ao municiacutepio foi criado pelo governo federal para fomentar a produccedilatildeo habitacional para populaccedilatildeo de baixa renda concentrando seus recursos nas accedilotildees de urbanizaccedilatildeo e desenvolvimento de assentamentos precaacuterios como mecanismo de reduccedilatildeo das desigualdades socioespaciais contudo natildeo consegue suprir a necessidade habitacional do municiacutepio

PALAVRAS-CHAVE Direito agrave moradia Deacuteficit habitacional Caacuteceres EMPA

ABSTRACT The present study analyzes the irregular occupation that occurres in the Jardim das Oliveiras neighborhood popularly

1 Profa Mestra em Direitos Humanos do Departamento de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT CaacuteceresMT E-mail evelysaldanhagmailcom2 Acadecircmico do 10ordm Semestre do Curso de Direito de CaacuteceresMT da Universidade do Estado de Mato Grosso ndash UNEMAT E-mail richardsilva1995hotmailcom

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known as EMPA in Caacuteceres MT as well as verify the situation of access to the dwelling of the inhabitants in what pertains to said area Was forced to occupy the place irregularly where it lives and survives without minimum sanitation conditions basic infrastructure and any urban planning by the Public Power The municipality of Caacuteceres currently has a population of 87942 inhabitants according to IBGE-2010 Census which estimated that in 2016 it would have a population of 90881 inhabitants 8707 of the population of Caacuteceres living in the urban area with incidence of poverty of 3902 (IBGE 2016) The My Home My Life Program that serves the municipality was created by the federal government to foster housing production for the low-income population concentrating its resources on urbanization and precarious settlement development as a mechanism to reduce socio-spatial inequalities Cannot meet the housing needs of the municipality

KEYWORDS Right to housing Housing deficit Caacuteceres EMPA

INTRODUCcedilAtildeO

A cidade de CaacuteceresMT assim como a maioria das cida-des brasileiras eacute marcada pela ocupaccedilatildeo espontacircnea ou irregular normalmente pela populaccedilatildeo mais pobre que vive em lugares mais perifeacutericos menos valorizados da cidade e sobrevive sem as miacutenimas condiccedilotildees de infraestrutura e saneamento baacutesico nas aacutereas marginais da cidade sem qualquer planejamento urbano

A proliferaccedilatildeo de processos informais de desenvolvimen-to urbano tem sido uma das principais caracteriacutesticas do processo de urbanizaccedilatildeo no Brasil ldquoAo longo das deacutecadas de crescimen-to urbano mas sobretudo nas uacuteltimas deacutecadas dezenas de mi-lhotildees de brasileiros natildeo tecircm tido acesso ao solo urbano e agrave moradia senatildeo atraveacutes de processos e mecanismos informais ndash e ilegaisrdquo (FERNANDES 2002 p 440)

As principais formas de habitaccedilatildeo produzidas diariamen-te nas cidades brasileiras satildeo loteamentos e conjunto habitacionais irregulares eou clandestinos favelas corticcedilos casa dos fundos ocupaccedilotildees de aacutereas puacuteblicas nas beiras de rios

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O crescimento desordenado das cidades e o processo de favelizaccedilatildeo tecircm avivado grande atenccedilatildeo e discussatildeo acerca dos instrumentos de proteccedilatildeo e defesa do bem-estar dos seus habi-tantes uma vez que a ocupaccedilatildeo desenfreada daacute-se normalmente em aacutereas de risco aacutereas de preservaccedilatildeo ambiental lugares menos valorizados e mais afastados da cidade sem infraestrutura neces-saacuteria como saneamento baacutesico escolas assistecircncia agrave sauacutede trans-porte e lazer para uma vida digna

Normalmente as aacutereas ocupadas irregularmente transfor-maram-se em bairros nos quais predomina a falta de higiene colo-cando os seus moradores sujeitos agraves doenccedilas degradaccedilatildeo social e moradia indigna sem infraestrutura no meio da poeira e da lama

Cabe destacar que a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 traz em seu bojo um marco da ordem urbaniacutestica e prevecirc a poliacutetica de desenvolvimento urbano que ldquotem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantesrdquo (BRASIL on line) conforme dispotildee o seu artigo 182

Em 2001 foi aprovado o Estatuto da Cidade (Lei nordm 102572001) que regulamenta a poliacutetica urbana no Brasil (artigos 182 e 183 da Constituiccedilatildeo Federal) e apresenta-se ldquocomo suporte juriacutedico para a realizaccedilatildeo do planejamento urbano e para a accedilatildeo dos governos municipais traccedilando as diretrizes necessaacuterias para o planejamento e para a conduccedilatildeo do processo de gestatildeo das cida-desrdquo (DIAS 2012 p 43) garantindo qualidade de vida aos habi-tantes e sustentabilidade agrave existecircncia da cidade

O papel do Poder Puacuteblico eacute de grande importacircncia por as-sumir a responsabilidade de criar acesso agrave moradia da populaccedilatildeo de baixa renda e natildeo permitir a criaccedilatildeo de novos loteamentos ir-regulares os quais natildeo tecircm os padrotildees miacutenimos exigidos por lei com a implantaccedilatildeo de serviccedilos baacutesicos e toda infraestrutura como ruas e sistema de drenagem aacutegua encanada serviccedilos de esgoto e coleta de lixo creches e escolas hospitais e etc

Desse modo eacute necessaacuterio que o Poder Puacuteblico elabore poliacuteticas de desenvolvimento urbano que facilitem o acesso agrave mo-

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radia digna e adequada num meio ambiente urbano equilibrado e preservado para as presentes e futuras geraccedilotildees garantindo o pleno desenvolvimento das funccedilotildees sociais da cidade o bem-estar e a sadia qualidade de vida de seus habitantes

Contudo em que pesem as legislaccedilotildees que garantem o acesso agrave moradia digna em Caacuteceres nos anos 90 ocorreu a ocupa-ccedilatildeo irregular da aacuterea da Empresa Mato-grossense de Pesquisa As-sistecircncia e Extensatildeo Rural - SA (EMPAER-MT)3 instituiacuteda como bairro Jardim das Oliveiras e conhecido popularmente por EMPA pela populaccedilatildeo de baixa renda cacerense que se deu em razatildeo do deacuteficit de moradias existentes no municiacutepio ou seja pela falta de acesso agrave moradia Com a invasatildeo do local houve a construccedilatildeo de moradias precaacuterias pelos ocupantes da aacuterea

Assim o nosso objetivo neste trabalho eacute analisar a ocu-paccedilatildeo irregular ocorrida no bairro Jardim das Oliveiras antigo EMPA no municiacutepio de CaacuteceresMT bem como verificar a situa-ccedilatildeo do direito e acesso agrave moradia dos habitantes

O direito agrave moradia como direitos humanos

O direito agrave moradia eacute um dos nuacutecleos que permite o alcan-ce da dignidade da pessoa humana razatildeo pela qual foi inserido no rol dos direitos humanos desde a proclamaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos em 1948 inaugurando uma nova dimensatildeo de direitos sociais em prol de uma vida digna essenciais ao pleno reconhecimento de sua importacircncia como direito baacutesico e essencial agrave vida humana

Em 1966 foi aprovado o principal documento de proteccedilatildeo aos direitos sociais no acircmbito das Naccedilotildees Unidas o Pacto Interna-cional de Direitos Econocircmicos Sociais e Culturais ldquoquando pela primeira vez o termo moradia surgiurdquo (SOUZA 2013 p 56)

O Pacto Internacional de Direitos Econocircmicos Sociais e

3 Empresa Mato-Grossense de Pesquisa Assistecircncia e Extensatildeo Rural - SA eacute uma socie-dade de economia mista vinculada agrave Secretaria de Agricultura e Assuntos Fundiaacuterios do Estado de Mato Grosso dotada de personalidade juriacutedica de direito privado com patrimocirc-nio proacuteprio e autonomia administrativa e financeira estabelecida em Cuiabaacute-MT

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Culturais de 1966 em seu artigo 11 prevecirc que ldquoos Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um niacutevel de vida adequado para si proacuteprio e para sua famiacutelia inclusive agrave alimentaccedilatildeo vestimenta e moradia adequadas assim como uma melhoria contiacutenua de suas condiccedilotildees de vidardquo (ONU 1966)

Jaacute em 1976 foi realizada em Vancouver no Canadaacute a pri-meira Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Assentamentos Urba-nos que adotou a Declaraccedilatildeo sobre Assentamentos Humanos de Vancouver na qual o olhar sobre a habitaccedilatildeo e a moradia foi feito na perspectiva dos assentamentos humanos (human settlements)

As razotildees que motivaram a realizaccedilatildeo da Conferecircncia es-tatildeo expressas na Declaraccedilatildeo de Vancouver sobre os Assentamen-tos Humanos que apresenta os princiacutepios gerais e propostas para accedilotildees efetivas no sentido de melhorar a qualidade de vida dos in-diviacuteduos nos assentamentos humanos e ainda refere-se agraves peacutessi-mas condiccedilotildees de vida e agraves dificuldades em satisfazer as necessi-dades baacutesicas dos indiviacuteduos como emprego moradia serviccedilos de sauacutede educaccedilatildeo e recreaccedilatildeo e as aspiraccedilotildees condizentes com os princiacutepios da dignidade humana (GOMES 2005)

A Declaraccedilatildeo de Vancouver detalha os assentamentos hu-manos e destaca o problema para melhorar a qualidade de vida dos indiviacuteduos e traz a moradia como elemento indispensaacutevel do programa de accedilatildeo e poliacutetica dos Estados para uma vida digna de seus indiviacuteduos

Merece destaque a Agenda 21 adotada na Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento rea-lizada no Rio de Janeiro em 1992 que em seu capiacutetulo VII item 6 prevecirc o direito de ldquoacesso a uma habitaccedilatildeo sadia e segura eacute es-sencial para o bem-estar econocircmico social psicoloacutegico e fiacutesico da pessoa humana e deve ser parte fundamental das accedilotildees de acircmbito nacional e internacionalrdquo (SAULE JUNIOR 1999 p 82)

Em 1996 um importante instrumento internacional so-bre o direito agrave moradia foi inaugurado e adotado na Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre Assentamentos Humanos ndash Habitat II realizada em Istambul a Agenda Habitat ldquoque teve como temas

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globais a Adequada Habitaccedilatildeo para Todos e o Desenvolvimento de Assentamentos Humanos Sustentaacuteveis em um Mundo em Ur-banizaccedilatildeordquo (Idem)

A Agenda Habitat estabelece que o direito agrave moradia com-preenda a habitaccedilatildeo adequada sadia acessiacutevel e disponiacutevel segu-ra protegida com a inclusatildeo de serviccedilos baacutesicos como aacutegua ener-gia saneamento baacutesico coleta de lixo e etc baseada no bem-estar e melhor qualidade de vida para seus habitantes

Assim o direito agrave moradia foi expressamente reconheci-do como um direito humano incluiacutedo no rol dos direitos sociais e que tem por finalidade garantir um niacutevel de vida adequado ao ser humano e sua famiacutelia assim como uma melhoria contiacutenua das condiccedilotildees de vida

O Brasil reconheceu a importacircncia do direito de acesso agrave moradia quando inseriu o direito agrave moradia na Constituiccedilatildeo Fe-deral com a Emenda Constitucional nordm 262000 como direito so-cial fundamental E ainda o Estatuto da Cidade ndash Lei Federal nordm 102572001 ndash que prevecirc o direito agrave moradia como sendo um dos objetivos da poliacutetica urbana

Do mesmo modo no acircmbito do municiacutepio de CaacuteceresMT as diretrizes e os objetivos previstos na Constituiccedilatildeo Federal e no Estatuto da Cidade foram contemplados no Plano Diretor do Municiacutepio ndash Lei Complementar Municipal nordm 902010 que em seu art 81 inciso VI garante ldquoo acesso agrave moradia digna com a amplia-ccedilatildeo da oferta de habitaccedilatildeo para as faixas de renda meacutedia e baixardquo (CAacuteCERES Lei complementar nordm 90 2010)

No entanto diante da realidade brasileira e cacerense haacute um descompasso uma vez que eacute assegurado o direito agrave moradia como sendo indispensaacutevel agrave vida humana poreacutem a populaccedilatildeo estaacute longe de gozaacute-lo e de ter acesso agrave moradia digna o que vere-mos a seguir

O deacuteficit de moradias e a realidade cacerense

O Brasil enfrenta um dos seus maiores problemas sociais

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o deacuteficit habitacional que hoje estaacute estimado em 6 milhotildees de mo-radias (CBIC 2014) Caacuteceres assim como os demais municiacutepios brasileiros tambeacutem enfrenta seacuterios problemas na aacuterea de habita-ccedilatildeo Em 2011 havia um deacuteficit habitacional em Caacuteceres que chega-va a 8 mil casas (CAacuteCERES 2014)

O municiacutepio de Caacuteceres atualmente tem uma populaccedilatildeo de 87942 habitantes segundo Censo do IBGE-2010 o qual esti-mou que em 2016 estaria com uma populaccedilatildeo de 90881 habitantes sendo que 8707 da populaccedilatildeo de Caacuteceres vivem na aacuterea urbana com incidecircncia de pobreza de 3902 (IBGE estimativa de popu-laccedilatildeo 2016)

O Programa Minha Casa Minha Vida do governo federal instituiacutedo haacute aproximadamente 7 anos tem ofertado aos habitan-tes cacerenses com renda ateacute R$ 160000 o acesso agrave moradia no entanto essa oferta natildeo tem sido suficiente para suprir o deacuteficit habitacional no municiacutepio e segundo o secretaacuterio de Accedilatildeo Social Claudio Henrique Donatoni em 2016 ldquoCaacuteceres ainda possui um deacuteficit habitacional para famiacutelias de baixa renda de aproximada-mente 7 mil moradiasrdquo (TEIXEIRA 2016)

A poliacutetica habitacional no Brasil enfrenta seacuterios proble-mas desde a extinccedilatildeo do Banco Nacional de Habitaccedilatildeo (BNH) em 1986 em razatildeo da descontinuidade do enfrentamento do deacuteficit de moradia pela perda de capacidade de formulaccedilatildeo de poliacuteticas em niacutevel federal e do encolhimento de recursos destinados agraves poliacuteti-cas urbanas A partir de 1988 com a redemocratizaccedilatildeo promovida pela Constituiccedilatildeo Federal o setor habitacional passou a depender da iniciativa municipal (CARDOSO et al 2011)

Segundo Cardoso et al (Idem) ldquoentre 1986 e 2003 a poliacute-tica habitacional em niacutevel federal mostrou fragilidade institucional e descontinuidade administrativa com reduzido grau de planeja-mento e baixa integraccedilatildeo agraves outras poliacuteticas urbanasrdquo

Em Caacuteceres entre os anos 1986 e 2003 natildeo se tem notiacutecias de programas habitacionais com ofertas de moradia agrave populaccedilatildeo de baixa renda tanto que na deacutecada de 90 ocorreram a invasatildeo e a ocupaccedilatildeo da aacuterea da Empresa Mato-grossense de Pesquisa Assis-

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tecircncia e Extensatildeo Rural - SA - EMPAER-MTO bairro Jardim das Oliveiras conhecido popularmente

como EMPA estaacute localizado agrave margem esquerda do Rio Paraguai e nasceu a partir de uma ocupaccedilatildeo irregular em terras doadas pelo Municiacutepio de Caacuteceres-MT agrave Empresa Mato-grossense de Pesquisa Assistecircncia e Extensatildeo Rural - SA - EMPAER-MT mediante escri-tura puacuteblica de doaccedilatildeo de uma aacuterea de 1301873 ha sob matriacutecula nordm 42654 do 1ordm Ofiacutecio - Serviccedilos Notariais e Registrais da Comarca de CaacuteceresMT Todavia apoacutes alguns anos de funcionamento a empresa deixou de realizar suas pesquisas abandonando o local e as instalaccedilotildees o que favoreceu a invasatildeo da aacuterea em razatildeo da falta de oferta de acesso agrave moradia no municiacutepio O bairro EMPA estaacute localizado na periferia do municiacutepio de Caacuteceres e a sua ocupaccedilatildeo inicial foi realizada pela populaccedilatildeo de baixa renda por se tratar de aacuterea abandonada por empresa do Estado situada longe da centra-lidade da cidade

Cabe destacar que somente a partir de 2003 no Brasil ini-ciou ldquoum movimento mais sistemaacutetico para a construccedilatildeo de uma poliacutetica habitacional mais estaacutevelrdquo (CARDOSO et al 2011) Foi criada a Secretaria Nacional de Habitaccedilatildeo no acircmbito do Minis-teacuterio das Cidades com o objetivo de dar sequecircncia ao projeto de moradia com o propoacutesito de reforccedilar o papel estrateacutegico das admi-nistraccedilotildees locais (municipais) articular institucional e financeira-mente com outros niacuteveis de governo a partir do Sistema Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social (Ibidem)

Para se integrar ao novo Sistema Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social os estados e municiacutepios deveriam ldquoaderir agrave es-trutura de criaccedilatildeo de fundos conselhos e planos locais de Habita-ccedilatildeo de Interesse Social (HIS) de forma a garantir sustentabilidade racionalidade e sobretudo a participaccedilatildeo democraacutetica na defini-ccedilatildeo e implementaccedilatildeo dos programas e projetosrdquo (CARDOSO et al 2011 p 2) E a partir da criaccedilatildeo do Fundo Nacional de Habitaccedilatildeo de Interesse Social ndash FNHIS a possibilidade de repasse de recursos aos municiacutepios e estados para implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo das po-liacuteticas habitacionais

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Segundo Cardoso et al (2011 p 2) ldquoentre 2006 e 2009 fo-ram alocados no FNHIS recursos da ordem de 44 bilhotildees de reais beneficiando mais de 4400 projetosrdquo para investimento habitacio-nal No ano de 2007 foi lanccedilado pelo governo federal o Plano de Aceleraccedilatildeo do Crescimento - PAC com o objetivo de promover o crescimento econocircmico e investimentos em infraestrutura no qual houve previsatildeo de investimentos em habitaccedilatildeo e saneamento ur-bano

No ano de 2008 mesmo com a crise mundial o governo brasileiro sustentou os investimentos puacuteblicos na aacuterea de infraes-trutura com destaque na aacuterea de habitaccedilatildeo em razatildeo do PAC E em marccedilo de 2009 anunciou o Programa Minha Casa Minha Vida com o objetivo de ampliaccedilatildeo do mercado habitacional para aten-dimento familiar com renda de ateacute 10 salaacuterios miacutenimos no qual estabeleceu um patamar de subsiacutedio direto e proporcional agrave renda das famiacutelias (CARDOSO et al 2011)

Assim o Programa Minha Casa Minha Vida foi criado para fomentar a produccedilatildeo habitacional no Brasil para populaccedilatildeo de baixa renda com auxiacutelio e participaccedilatildeo do setor privado con-centrando seus recursos nas accedilotildees de urbanizaccedilatildeo e desenvolvi-mento de assentamentos precaacuterios por orientaccedilatildeo do Ministeacuterio das Cidades como mecanismo de reduccedilatildeo das desigualdades so-cioespaciais

Em Caacuteceres a partir de 2009 iniciou-se uma poliacutetica habi-tacional com oferta de moradia agrave populaccedilatildeo de baixa renda com a implementaccedilatildeo do Programa Minha Casa Minha Vida no entanto a demanda por moradia estaacute longe de ser suprida uma vez que ainda haacute um deacuteficit habitacional de 7 mil moradias (TEIXEIRA 2016)

Vale ressaltar que a moradia compreendida aleacutem de mero teto deve ser digna e abarcar a integraccedilatildeo com a cidade em seu en-torno com disponibilidade de infraestrutura urbana e acesso aos serviccedilos puacuteblicos como oportunidades de emprego profissionali-zaccedilatildeoeducaccedilatildeo seguranccedila transporte acesso agrave justiccedila a existecircn-cia de aacutereas de lazer e outros que se caracterizam como inclusatildeo

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ao direito agrave cidade e ao exerciacutecio de cidadaniaA partir do estudo realizado observou-se que no Bairro

EMPA natildeo uma haacute integraccedilatildeo do bairro com a cidade os mora-dores satildeo privados de diversos serviccedilos puacuteblicos e infraestrutura baacutesica como coleta de lixo aacutegua tratada ldquono bairro existe apenas uma escola municipal que fornece o ensino fundamental sendo assim apoacutes terminar o ensino fundamental o estudante tem que procurar outra escola que fica distante para terminar o ensino meacute-diordquo (COSTA et al 2014) e natildeo houve uma preocupaccedilatildeo do Poder Puacuteblico em realizar a regularizaccedilatildeo fundiaacuteria da aacuterea

Segundo Coy et al (1994 p 91) em Caacuteceres nos depara-mos com

Um desenvolvimento completamente desordenado no contexto urbano causado pelo processo migratoacute-rio e pela expulsatildeo do homem do campo para a ci-dade E assim grandes aacutereas urbanizadas surgiram de invasotildees e de grilagem e mais de 50 dos lotes urbanos particulares em Caacuteceres natildeo tem documen-tos nenhum tiacutetulo somente posse

De acordo com Dan (2010 p 94) ldquoa urbanizaccedilatildeo reflete determinadas relaccedilotildees sociais assim como as contradiccedilotildees da eco-nomia de mercado e tambeacutem as desigualdades sociais marcadas pela estratificaccedilatildeo e pela produccedilatildeo setorizada do espaccedilo urbanordquo

Verifica-se que o espaccedilo urbano cacerense eacute fragmentado e explorado com contradiccedilotildees entre abundacircncia e escassez ricos e pobres centralidade e periferia havendo portanto uma enorme desigualdade social e falta de acesso agrave moradia digna

Para Santin e Mattia (2007 p 2)

A ocupaccedilatildeo veloz e desordenada das cidades gerou entre outros problemas como a deterioraccedilatildeo do am-biente urbano desorganizaccedilatildeo social falta de habi-taccedilatildeo desemprego loteamentos clandestinos sem saneamento baacutesico muitos em aacutereas de preservaccedilatildeo ambiental construccedilotildees em desacordo com as nor-mas municipais atividades comerciais invadindo

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aacutereas residenciais sem respeito agraves regras de zonea-mento traacutefego intenso falta de ruas pavimentadas inviabilizando o acesso da poliacutecia de ambulacircncias da coleta de lixo ausecircncia de iluminaccedilatildeo puacuteblica Enfim uma cadeia de problemas que se constituem em consequecircncia da urbanizaccedilatildeo desordenada

Deste modo eacute necessaacuterio que o Poder Puacuteblico crie poliacuteti-cas puacuteblicas que estabeleccedilam nos dizeres de Milton Santos (2007 p 41) ldquoos alicerces de um espaccedilo verdadeiramente humano de um espaccedilo que possa unir os homens para e por seu trabalho mas natildeo para em seguida dividi-los em classes em exploradores e ex-ploradosrdquo

Emergem assim a necessidade de integraccedilatildeo e a conver-gecircncia das poliacuteticas puacuteblicas e planejamento urbano a partir de atividades e responsabilidades sociais voltadas agrave moradia e agrave cons-truccedilatildeo da qualidade de vida urbana nas periferias como eacute o caso do EMPA para a promoccedilatildeo da sustentabilidade do espaccedilo urbano e na construccedilatildeo de uma cidade mais justa

CONCLUSAtildeO

O Poder Puacuteblico deve buscar a implementaccedilatildeo das dimen-sotildees fundamentais propostas pelo Estatuto da Cidade para a con-solidaccedilatildeo da ordem constitucional de desenvolvimento urbano na elaboraccedilatildeo de uma poliacutetica urbana que ordene e discipline a ocu-paccedilatildeo do espaccedilo a partir de uma gestatildeo democraacutetica e de acesso agrave moradia contribuindo para a qualidade de vida dos habitantes da cidade

Eacute preciso investimento puacuteblico no acesso agrave moradia digna na regularizaccedilatildeo fundiaacuteria urbana na infraestrutura entre outros para evitar as mazelas sociais e conflitos relacionados ao planeja-mento gestatildeo propriedade apropriaccedilatildeo e uso do solo nas aacutereas urbanas como ocorreu no caso do bairro EMPA

Deste modo o desafio maior para a soluccedilatildeo dos problemas urbanos enfrentados em Caacuteceres natildeo se refere somente agrave legisla-

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ccedilatildeo mas agrave formulaccedilatildeo de estrateacutegias e elaboraccedilatildeo de poliacuteticas puacute-blicas mais eficazes que garantam o acesso de todos ao mercado habitacional constituindo planos e programas habitacionais que atendam agrave populaccedilatildeo de baixa renda que natildeo tem acesso agrave mora-dia e vive em condiccedilotildees precaacuterias de habitabilidade

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PROVA NO HOMICIacuteDIO SEM CADAacuteVER

Gabrielle Vidrago de Souza Machado1

Solange Teresinha Carvalho Pissolato2

RESUMO Este estudo objetiva demonstrar a possibilidade do pronunciamento e condenaccedilatildeo do agente pela praacutetica do crime de homiciacutedio sua materialidade e quais provas poderatildeo ser utilizadas no decorrer do processo mesmo tendo a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo real do fato e abordar a importacircncia das provas no decorrer do processo penal pois satildeo elas que levaratildeo agrave descoberta da verdade real Foi realizada pesquisa bibliograacutefica leitura da legislaccedilatildeo de doutrinas artigos e jurisprudecircncias Destacou-se ainda o estudo de dois julgados de crime de homiciacutedio sem que o cadaacutever fosse encontrado O que estaacute em questatildeo eacute o modo de provar que o crime realmente aconteceu pois quando natildeo haacute o corpo da viacutetima que no caso do homiciacutedio eacute a materialidade do crime impossibilitando a realizaccedilatildeo do exame de corpo de delito direto surge entatildeo a possibilidade da utilizaccedilatildeo de outros meios de prova ou seja a realizaccedilatildeo do exame de corpo de delito indireto que eacute obtido atraveacutes de testemunhas somadas aos vestiacutegios deixados pelo crime Conclui-se que a inexistecircncia do cadaacutever natildeo poderaacute deixar o reacuteu impune podendo ele ser denunciado pronunciado e posteriormente condenado pela praacutetica do crime

PALAVRAS-CHAVE Provas Crime material Exame de corpo de delito

ABSTRACT This study aimes to demonstrate the possibility of pronouncing and condemning the perpetrator for the homicide crime its materiality and which evidence may be used during the process even though the absence of the corpse for actual evidence of the fact and addresse the importance of evidence during the course of criminal proceedings since they are the ones that will lead

1 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Diamantino-MT2 Professora Mestranda do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Diamantino-MT

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to the discovery of the real truth A bibliographical research was carried out the reading of doctrines articles and jurisprudence It was also highlighted the study of two felony murder trials without the corpse being found What is at issue is the way of proving that the crime really happened because when there is not the body of the victim that in the case of the murder is the materiality of the crime making it impossible to carry out the examination of a direct crime body then the possibility of The use of other means of proof that is the conduct of the examination of an indirect offense that is obtained through witnesses added to the traces left by the crime It is concluded that the non-existence of the corpse cannot leave the defendant unpunished being able to be denounced pronounced and later condemned by the practice of the crime

KEYWORDS Evidence Crime material Examination of corps of crime

INTRODUCcedilAtildeO

A preocupaccedilatildeo deste trabalho centrou-se na possibilidade de deixar algueacutem impune de responsabilizaccedilatildeo no crime de homi-ciacutedio diante da ausecircncia do corpo da viacutetima para comprovar a ma-terialidade do crime Nesse cenaacuterio surgem as chamadas provas do crime A prova material do homiciacutedio se mostra relevante para que haja a condenaccedilatildeo do agente e ainda para comprovaccedilatildeo do de-lito Quando nos referimos ao crime de homiciacutedio haacute uma grande repercussatildeo na sociedade visto que eacute o delito que desperta maior interesse na populaccedilatildeo pois se trata do bem mais precioso que o homem possui a vida

As discussotildees surgem devido agrave ausecircncia do cadaacutever pois o crime de homiciacutedio se consubstancia no exame de corpo de delito direto e por consequecircncia no respectivo laudo que o atesta

O presente artigo tem por escopo analisar com breves consideraccedilotildees tal situaccedilatildeo visto que de um lado temos os prin-ciacutepios do Estado Democraacutetico de Direito que satildeo abalados diante da incerteza de uma condenaccedilatildeo por outro lado surge o receio de

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deixar impune o agente que comete um crime tatildeo grave No caso em questatildeo questiona-se se eacute possiacutevel juridicamente processar o reacuteu sem o cadaacutever pois o delito qual seja o homiciacutedio exige dois aspectos para a denuacutencia indiacutecio de autoria e a materialidade A materialidade seria no caso o cadaacutever mas eis que surge a duacutevida como condenar algueacutem por homiciacutedio sem o corpo da viacutetima A pergunta que se faz eacute seria possiacutevel ficar um acusado impune pela inexistecircncia de cadaacutever em um crime de homiciacutedio

Importante destacar que muitas pessoas leigas na aacuterea juriacutedica natildeo concordam com o fato de um cidadatildeo ser condena-do por um crime em que natildeo haacute prova concreta da sua existecircncia Poreacutem a importacircncia do presente estudo eacute justamente demons-trar que se natildeo houvesse a possibilidade de condenaccedilatildeo em nosso ordenamento juriacutedico em muito facilitaria para o agente planejar e praticar o delito de forma que o corpo natildeo aparecesse para com-provaccedilatildeo do crime Contudo a robustez das provas pode levar o culpado agrave condenaccedilatildeo

O estudo teve como aporte a realizaccedilatildeo de uma pesquisa bibliograacutefica leitura de doutrinas artigos e jurisprudecircncias Des-tacou-se ainda o estudo de dois julgados brasileiros de crime de homiciacutedio sem que o cadaacutever fosse encontrado objetivando assim descrever a importacircncia das provas no decorrer do processo penal pois satildeo elas os meios de se descobrir a verdade real do crime O que eacute relevante destacar eacute o modo de provar que o crime realmente ocorreu independentemente da existecircncia do cadaacutever oportuni-zando assim a condenaccedilatildeo do agente delituoso

DA PROVA NO PROCESSO PENAL

Conceito

Processualmente falando a prova eacute o meio eficaz para se chegar agrave verdade sendo tambeacutem a forma de o juiz formar sua con-vicccedilatildeo a respeito da existecircncia ou inexistecircncia de um fato para que se possa assim decidir e prolatar a sentenccedila mais justa possiacutevel

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Nucci (2007 p 335) menciona sobre o tema

O termo prova origina-se do latim ndash probatio ndash que significa ensaio verificaccedilatildeo inspeccedilatildeo exame argu-mento razatildeo aprovaccedilatildeo ou confirmaccedilatildeo Dele deri-va o verbo provar ndash probare ndash significando ensaiar verificar examinar reconhecer por experiecircncia aprovar estar satisfeito com algo persuadir algueacutem a alguma coisa ou demonstrar

Assim o termo ldquoprovardquo trata de todos os elementos capa-zes de demonstrar a existecircncia ou natildeo de determinado fato Ressal-ta-se ainda seu valor por ser o meio de formaccedilatildeo da convicccedilatildeo do juiz que iraacute utilizar todas as provas encontradas como base para fundamentaccedilatildeo da sentenccedila Em consonacircncia com a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 todas as decisotildees judiciais devem ser fundamen-tadas conforme a disposiccedilatildeo do artigo 93 inciso IX

Objeto da prova

A finalidade da prova no direito processual como jaacute ex-posto acima eacute a formaccedilatildeo da convicccedilatildeo do juiz Conceitua-se como objeto da prova todos os fatos acontecimentos que devem ser re-velados no processo a fim de que o juiz possa utilizaacute-los como ins-trumento de autenticidade para resolver o litiacutegio e atribuir valor a cada fato

Ocircnus da prova

A regra do Coacutedigo de Processo Penal (CPP) eacute a de que o ocircnus da prova incumbe a quem o alega O Art 156 desse Coacutedigo assim dispotildee ldquoA prova da alegaccedilatildeo incumbiraacute a quem a fizer mas o Juiz poderaacute no curso da instruccedilatildeo ou antes de proferir sentenccedila determinar de ofiacutecio diligecircncias para dirimir duacutevidas sobre o pon-to relevanterdquo

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Sujeitos da prova

No que se refere ao sujeito a prova poderaacute ser real (coisa) ou pessoal Diz que se refere ao pessoal quando a prova resultar da vontade racional do indiviacuteduo Nesse caso necessitaraacute de uma declaraccedilatildeo da pessoa com o propoacutesito de estampar a verdadeira realidade dos fatos A prova real equivale agrave atestaccedilatildeo que adveacutem da proacutepria coisa constitutiva da prova como ferimento o projeacutetil baliacutestico (LIMA 2013)

Do valor da prova

No tocante aos efeitos e valor da prova esta poderaacute ser plena (quando se tratar daquelas provas sem sombra de duacutevida que o magistrado ao deparar com tais provas teraacute certeza de sua veracidade) ou natildeo plena e tambeacutem chamada de indiciaacuteria (quan-do o juiz ao apreciaacute-las verifica que tem a possibilidade de ser uma prova veriacutedica mas natildeo haacute uma certeza) Para Taacutevora (2013 p 348) ldquoeacute o grau de certeza gerado pela apreciaccedilatildeo da provardquo

a) Plena - Prova convincente e verossiacutemilb) Indiciaacuteria ou natildeo plena ndash Natildeo haacute certeza sobre o fato e

satildeo tratadas como indiacutecios Podemos ver que haacute uma ligaccedilatildeo desses efeitos da prova

com os dois princiacutepios o princiacutepio do in dubio pro reo e o in duacutebio pro societate

Quando por meio de uma prova o juiz natildeo conseguir ob-ter um juiacutezo real sobre o fato ser veriacutedico ou natildeo prevalecendo a incerteza ele deveraacute absolver o reacuteu e nesse caso surge o princiacutepio do in duacutebio pro reo Todavia se o juiz ao averiguar as provas tiver um juiacutezo de esperanccedila e a hipoacutetese dela ser veriacutedica ele poderaacute usar o princiacutepio do in duacutebio pro societate podendo por exemplo decretar a prisatildeo preventiva de algueacutem para proteger os interesses da sociedade em razatildeo da hipoacutetese de o fato ser verdadeiro

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Sistema de valoraccedilatildeo das provas

A apreciaccedilatildeo das provas foi evoluindo conforme o costu-me e o regime poliacutetico de cada povo Importante salientar que esse sistema se formou e se amoldou conforme os anos (DINAMAR-CO 2001)

Nucci (2015 p 345) esclarece sobre os trecircs sistemasa) livre convicccedilatildeo que eacute o meacutetodo concernente agrave va-loraccedilatildeo livre ou agrave intima convicccedilatildeo do magistrado natildeo haacute necessidade de motivaccedilatildeo para as decisotildees sistema adotado no Tribunal do Juacuteri b) prova legal cujo meacutetodo eacute ligado agrave valoraccedilatildeo taxada ou tarifa-da da prova c) persuasatildeo racional que eacute o meacutetodo misto tambeacutem chamado de convencimento racional livre motivado apreciaccedilatildeo fundamentada ou prova fundamentada

Trata-se do sistema adotado majoritariamente pelo pro-cesso penal brasileiro com fundamento na Constituiccedilatildeo Federal (art 93 inciso IX)

Princiacutepios que norteiam a prova

Dispotildee Nucci (2007 p76) nesse sentido ldquoPrinciacutepio juriacute-dico quer dizer um postulado que se irradia por todo o sistema de normas fornecendo um padratildeo de interpretaccedilatildeo integraccedilatildeo conhecimento e aplicaccedilatildeo do direito positivo estabelecendo uma meta maior a seguirrdquo Dentre os princiacutepios estatildeo Iniciativa das Partes Contraditoacuterio e Ampla Defesa Juiz Natural Verdade Real Publicidade Presunccedilatildeo de Inocecircncia Duplo Grau de Jurisdiccedilatildeo

Lima (2013) faz menccedilatildeo ao princiacutepio da proporcionalida-de da comunhatildeo da prova da autorresponsabilidade das partes da oralidade e liberdade probatoacuteria

OS MEIOS DE PROVA

Os meios de prova satildeo todas as provas que podem ser em-

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pregadas dentro do processo excetuando-se as natildeo permitidas por lei Logo a prova iliacutecita natildeo pode ingressar nos autos do processo A sanccedilatildeo prevista na Constituiccedilatildeo para a prova reconhecida iliacutecita eacute a sua inadmissibilidade devendo ser desentranhada dos autos (LIMA 2013)

Taacutevora (2013 p 349) descreve que ldquoOs meios de prova satildeo os recursos de percepccedilatildeo da realidade e formaccedilatildeo do convenci-mento Eacute tudo aquilo que pode ser utilizado direta ou indireta-mente para demonstrar o que se alega no processordquo

As provas que evidenciam o fato arrolado no Coacutedigo de Processo Penal natildeo satildeo taxativas e sim exemplificativas se fossem taxativas poderiam conter o culpado de trazer ao processo con-cretas provas que teriam um valor relevante em seu julgamento ademais poderia prejudicar justamente os princiacutepios da verdade real o princiacutepio do contraditoacuterio ampla defesa e o princiacutepio da liberdade das provas

Deste modo esclarece Mirabete (2006 p 252)

Como no processo penal brasileiro vige o princiacutepio da verdade real natildeo haacute limitaccedilatildeo dos meios de pro-va A busca da verdade material ou real que preside a atividade probatoacuteria do juiz exige que os requi-sitos da prova em sentido objetivo se reduzam ao miacutenimo de modo que as partes possam utilizar-se dos meios de prova com ampla liberdade Visando o processo penal o interesse puacuteblico ou social de re-pressatildeo ao crime qualquer limitaccedilatildeo agrave prova preju-dica a obtenccedilatildeo da verdade real e portanto a justa aplicaccedilatildeo da lei

Costuma-se relatar que natildeo haacute restriccedilatildeo quanto aos meios de prova quando se pretende alcanccedilar a verdade real visto que a investigaccedilatildeo tem a necessidade de ser a mais vasta possiacutevel visan-do como propoacutesito principal conseguir a veracidade do fato da autoria e das circunstacircncias do crime Contudo a liberdade proba-toacuteria natildeo eacute absoluta uma vez que vamos nos deparar com restri-ccedilotildees prescritas pela lei para determinados casos

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Para que ocorra a condenaccedilatildeo eacute necessaacuterio ter a certeza quanto agrave materialidade do crime e sua autoria Desta forma o ma-gistrado busca saber o que realmente ocorreu de que forma ocor-reu quem incorreu para a infraccedilatildeo e todas as suas circunstacircncias Vigora assim no processo penal o princiacutepio da verdade real

Defende Tourinho Filho (2011 p 62)

Melhor seria falar de ldquoverdade processualrdquo ou ldquover-dade forenserdquo ateacute porque por mais que o Juiz pro-cure fazer a reconstruccedilatildeo histoacuterica do fato objeto do processo muitas e muitas vezes o material de que ele se vale poderaacute conduzi-lo a uma ldquofalsa verdade realrdquo

Em suma o ldquoprinciacutepio da verdade real significa pois que o magistrado deve buscar provas tanto quanto as partes natildeo se contentando com o que lhe eacute apresentado simplesmenterdquo (NUC-CI 2008 p 105)

Espeacutecies de provas liacutecitas

Possuiacutemos em nosso ordenamento juriacutedico as provas que natildeo contrariam o que a lei estabelece e nem mesmo os bons cos-tumes Abaixo veremos as provas que poderatildeo ser produzidas e posteriormente aceitas

Da declaraccedilatildeo do ofendido

Ofendido eacute o sujeito passivo do crime o titular do direito ofendido Somente participaraacute e teraacute o direito de depor no proces-so penal se for pessoa fiacutesica

O artigo 201 do Coacutedigo de Processo Penal preceitua ldquoSem-pre que possiacutevel o ofendido seraacute qualificado e perguntado sobre as circunstacircncias da infraccedilatildeo quem seja ou presuma ser o seu au-tor as provas que possa indicar tomando-se por termo as suas declaraccedilotildeesrdquo

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Das testemunhas

A prova testemunhal tem sua previsatildeo expressa no artigo 202 do Coacutedigo de Processo Penal

Segundo o ilustre doutrinador Norberto Avena (2011 p 319) ldquo[] Pode testemunhar em juiacutezo qualquer indiviacuteduo que tenha condiccedilotildees de perceber os acontecimentos ao seu redor e narrar o resultado destas suas percepccedilotildees independente de sua integridade mental idade e condiccedilotildees fiacutesicasrdquo

Como regra contida no artigo 342 do CP e 206 do CPP as pessoas tecircm o dever de testemunhar Quando a testemunha for intimada e natildeo comparecer sem motivo justificaacutevel o artigo 218 do CPP autoriza a sua conduccedilatildeo de forma coercitiva conforme deter-minaccedilatildeo do juiz e se sujeita a um processo-crime por desobediecircn-cia

O Artigo 206 do aludido Coacutedigo de Processo Penal precei-tua as pessoas que estatildeo dispensadas de depor tais como os pa-rentes mais proacuteximos como ascendente ou descendente o afim em linha reta o cocircnjuge ainda que desquitado o irmatildeo e o pai a matildee ou o filho adotivo do acusado natildeo satildeo obrigados a depor mas se natildeo for possiacutevel solucionar o crime por outro meio de prova eles poderatildeo prestar depoimento contudo seratildeo ouvidos como meros informantes do juiacutezo ou declarantes sendo ainda dispensados de prestar compromisso da verdade real dos fatos

Jaacute o art 207 do CPP nos remete agraves pessoas que satildeo proi-bidas de depor se refere agraves pessoas que devem guardar sigilo em razatildeo de funccedilatildeo ministeacuterio oficio ou profissatildeo assim dispotildee ldquoSatildeo proibidas de depor as pessoas que em razatildeo de funccedilatildeo ministeacuterio ofiacutecio ou profissatildeo devam guardar segredo salvo se desobrigadas pela parte interessada quiserem dar o seu testemunhordquo

Periacutecia

A Prova Pericial estaacute prevista nos artigos 158 a 184 do Coacute-digo de Processo Penal Compreende-se por periacutecia o exame con-duzido por pessoa que possua certos entendimentos teacutecnicos cien-

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tiacuteficos artiacutesticos ou praacuteticos sobre ocorrecircncias eventualidades ou condiccedilotildees pessoais ligados ao fato condenaacutevel com o propoacutesito de provaacute-los

Na hipoacutetese do exame do corpo de delito assim como em outras periacutecias a lei prevecirc no artigo 159 do Coacutedigo de Processo Penal que as regras satildeo as mesmas e deveratildeo ser realizadas por um perito oficial ldquoexame de corpo de delito e outras periacutecias seratildeo realizados por perito oficial portador de diploma de curso supe-riorrdquo

Exame de corpo de delito

No Sistema Juriacutedico Brasileiro possuiacutemos duas espeacutecies de crimes aqueles que deixam vestiacutegios tambeacutem chamados de fa-tos permanentes e os delitos que natildeo deixam vestiacutegios chamados de fatos transeuntes

Como bem preceitua Gomes (1978 p31) ldquoas infraccedilotildees penais podem deixar vestiacutegios (delicta facti permanentis) como o homiciacutedio a lesatildeo corporal e natildeo deixar vestiacutegios (delicta facti tran-seuntes) como as injuacuterias verbais o desacatordquo

Quando se fala em prova pericial importante lembrar-se de uma prova que possui grande valor no processo penal que eacute a prova conhecida como exame de corpo de delito Esse exame estaacute previsto no artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal e trata- se do conjunto de vestiacutegios deixados pelo crime

Quando o crime deixar vestiacutegios materialmente compro-vados deveraacute ser realizado o exame de corpo de delito Essa pro-va eacute obrigatoacuteria e indispensaacutevel e sua realizaccedilatildeo eacute imposta pela lei

Taacutevora e Alencar (2013 p417) conceituam corpo de delito como

o conjunto de vestiacutegios materiais deixados pela in-fraccedilatildeo penal seus elementos sensiacuteveis a proacutepria materialidade em suma aquilo que pode ser exami-nado atraveacutes dos sentidos Ex a mancha de sangue deixado no local da infraccedilatildeo as lesotildees corporais a janela arrombada no crime de furto etc Jaacute o exame

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de corpo de delito eacute a periacutecia que tem por objeto o proacuteprio corpo de delito

Imprescindiacutevel destacar que o exame de corpo de delito deveraacute ser efetuado por um perito o mais raacutepido possiacutevel para que natildeo desapareccedilam os vestiacutegios deixados pelo ato criminoso

Nesse sentido preceitua Gomes (1978 p 32) que ldquoo corpo de delito deve realizar-se o mais rapidamente possiacutevel logo que se tenha conhecimento da existecircncia do fatordquo

Mirabete (2006 p 265) diz que exame de corpo de delito eacute ldquoo conjunto de vestiacutegios materiais deixados pela infraccedilatildeo penal a materialidade do crime aquilo que se vecirc apalpa sente em suma aquilo que pode ser examinado atraveacutes dos sentidosrdquo

Quando o crime deixar vestiacutegios materialmente compro-vados deveraacute ser realizado o exame de corpo de delito Essa pro-va eacute obrigatoacuteria e indispensaacutevel e sua realizaccedilatildeo eacute imposta pela lei

Prescreve o artigo 158 do Coacutedigo Penal ldquoquando a infra-ccedilatildeo deixar vestiacutegios seraacute indispensaacutevel o exame de corpo de delito direto ou indireto natildeo podendo supri-lo a confissatildeo do acusadordquo

A ausecircncia do exame de corpo de delito ao ser decretada a sentenccedila poderaacute ocasionar nulidade natildeo sendo nem a confis-satildeo do acusado suscetiacutevel de substituiccedilatildeo O Coacutedigo de Processo Penal todavia conteacutem uma observaccedilatildeo em seu artigo 167 sendo a ausecircncia do exame supriacutevel pela prova testemunhal O que ocor-re neste caso eacute o exame de corpo de delito indireto Sendo assim podemos concluir que a confissatildeo natildeo poderaacute suprir o exame de corpo de delito

O artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal nos remete a duas modalidades de exame do corpo de delito o exame direto e o indireto Eacute conceituado direto quando os peritos examinam os vestiacutegios deixados materialmente pelo crime Seraacute indireto aque-le realizado com base nas informaccedilotildees deixadas por testemunhas documentos entre outros referentes ao fato

Em relaccedilatildeo ao artigo 167 do Coacutedigo de Processo Penal quando os vestiacutegios sumirem e natildeo puder ser realizado o exame

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de corpo de delito poderaacute a prova testemunhal suprir-lhe a falta isto eacute o exame indireto poderaacute suprir o direto quando natildeo existir mais vestiacutegios

O artigo 167 do Coacutedigo de Processo Penal existe para im-pedir uma inesperada impunidade pois se natildeo houvesse essa res-salva qualquer pessoa que praticasse um crime poderia fazer com que os vestiacutegios desaparecessem e assim ficar impune

Da acareaccedilatildeo

A acareaccedilatildeo tem sua previsatildeo legal nos artigos 229 e 230 do Coacutedigo de Processo Penal

No processo poderaacute ocorrer o caso de duas ou mais pesso-as narrarem o ato criminoso de forma distinta Em virtude disso o artigo 229 do CPP permite a realizaccedilatildeo da acareaccedilatildeo que eacute ato de colocar frente a frente as pessoas que deram versotildees diferentes a fim de desvendar tal desarmonia

Reconhecimento de pessoas e coisas

O reconhecimento de pessoas e coisas estaacute previsto no arti-go 226 e inserido no tiacutetulo reservado agraves provas do processo penal e tem por finalidade a identificaccedilatildeo de um suspeito ou de um objeto atraveacutes da palavra da viacutetima ou das testemunhas

Interrogatoacuterio do reacuteu

O interrogatoacuterio do reacuteu estaacute previsto nos artigos 185 a 196 do CPP sendo caracterizado como o ato em que o juiz procede agrave oitiva do reacuteu O julgador realiza perguntas ao reacuteu com base na acusaccedilatildeo a ele dirigida

Interrogatoacuterio pode ser definido como um ato persona-liacutessimo em razatildeo de que apenas o indiciado pode ser interrogado ademais eacute ato privativo pois soacute o juiz pode interrogaacute-lo em con-cordacircncia com o art 187 do Coacutedigo de Processo Penal A oralidade do interrogatoacuterio aproxima o acusado do juiz

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Tornaghi (1997 p 365) afirma que

O interrogatoacuterio eacute a grande oportunidade que tem o juiz para num contato direto com o acusado formar juiacutezo a respeito de sua personalidade da sincerida-de de suas desculpas ou de sua confissatildeo do estado drsquoalma em que se encontra da maliacutecia ou da negli-gecircncia com que agiu da sua frieza e perversidade ou de sua nobreza e elevaccedilatildeo eacute ocasiatildeo propiacutecia para estudar- lhe as reaccedilotildees para ver numa primeira ob-servaccedilatildeo se ele entende o carter criminoso do fato e para verificar tudo mais que estaacute ligado ao seu psi-quismo e agrave sua formaccedilatildeo moral

Conforme o artigo 185 do CPP in verbis ldquoO acusado que comparecer perante autoridade judiciaacuteria no curso do processo penal seraacute qualificado e interrogado na presenccedila de seu defensor constituiacutedo ou nomeadordquo

Da confissatildeo

Confissatildeo eacute ato efetuado pelo suposto culpado de consen-tir como veriacutedica a imputaccedilatildeo que lhe foi feita na denuacutencia ou na queixa-crime Ou seja eacute dizer que foi o causador do crime relatado na exordial acusatoacuteria A previsatildeo desta espeacutecie de prova e os dis-positivos que os compotildeem estatildeo previstos nos artigos 197 a 200 do Coacutedigo de Processo Penal

Dos documentos

A prova documental estaacute prevista nos artigos 231 a 238 do Coacutedigo de Processo Penal

Conforme o art 232 do CPP ldquoConsideram-se documentos quaisquer escritos instrumentos ou papeacuteis puacuteblicos ou particula-resrdquo

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Indiacutecios

Os indiacutecios estatildeo previstos no artigo 239 do Coacutedigo de Processo Penal e natildeo satildeo considerados essencialmente como um meio de prova e sim parte de um raciociacutenio

Assim eacute o entendimento de Oliveira (2009 p382)

Na verdade o indicio mencionado no art 239 do CPP natildeo chega a ser propriamente um meio de pro-va Trata-se antes disso da utilizaccedilatildeo de um raciociacute-nio dedutivo para a partir da valoraccedilatildeo da prova de um fato ou de uma circunstacircncia chega-se agrave conclu-satildeo da existecircncia de outro ou de outra

Os indiacutecios natildeo podem ser comparados com as presunccedilotildees conforme os ensinamentos de Nucci (2007 p 468) ldquoas presunccedilotildees natildeo satildeo consideradas como meios de prova pois as presunccedilotildees constituem apenas mera opiniatildeo com base em algo suspeito ou ateacute mesmo algo suposto eacute um processo considerado como dedutivordquo Jaacute atraveacutes de indiacutecios o magistrado poderaacute alcanccedilar um estado de certeza

HOMICIacuteDIO

O crime de homiciacutedio previsto no Coacutedigo Penal tem como finalidade a salvaguarda do bem mais precioso ou seja a vida

A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 ao revelar o perfil poliacutetico constitucional do Brasil (art 1ordm) instituiu o Estado Democraacutetico de Direito que conteacutem os Direitos e as Garantias Fundamentais in-clusive o direito agrave vida que eacute assegurado no artigo 5ordm caput e inciso X no qual se diz que o direito agrave vida eacute inviolaacutevel em razatildeo de sua importacircncia pois sem a vida natildeo haacute o que se falar em dignidade humana e todos os direitos dela decorrentes

O homiciacutedio eacute previsto na parte Especial do Coacutedigo Penal em seu artigo 121 sob a expressatildeo tiacutepica ldquomatar algueacutemrdquo

Considerando a vida o bem juriacutedico mais valioso e o crime que desperta maior interesse da sociedade iremos analisar as suas

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peculiaridades

Do homiciacutedio sem cadaacutever

Haacute muito que se discutir sobre a possibilidade do acusado ser processado e condenado pelo crime de homiciacutedio mesmo com a ausecircncia do corpo para comprovaccedilatildeo real do fato por se tratar o homiciacutedio de um crime material

No caso em questatildeo eacute possiacutevel juridicamente processar o reacuteu sem o corpo pois o delito qual seja o homiciacutedio exige dois aspectos para a denuacutencia indiacutecio de autoria e a materialidade A materialidade seria no caso o cadaacutever mas eis que surge a duacutevida como condenar algueacutem por homiciacutedio sem o corpo da viacutetima

De acordo com o artigo 158 do Coacutedigo de Processo Penal ldquoQuando a infraccedilatildeo deixar vestiacutegios seraacute indispensaacutevel o exame de corpo de delito direto ou indireto natildeo podendo supri-lo a confis-satildeo do acusadordquo Em contrapartida temos o artigo 167 do mesmo Coacutedigo que prevecirc ldquoNatildeo sendo possiacutevel o exame de corpo de de-lito por haverem desaparecido os vestiacutegios a prova testemunhal poderaacute suprir-lhe a faltardquo

Ainda nessa direccedilatildeo possuiacutemos outro inciso contido no artigo 564 do CPP mais especificadamente o inciso III aliacutenea ldquobrdquo que declara ldquohaveraacute nulidade pela falta do exame de corpo de de-lito nos crimes que deixam vestiacutegiosrdquo poreacutem ressaltando o dispos-to no artigo 167 do CPP o qual diz que a testemunha poderaacute suprir a falta do exame direto

Portanto os trecircs artigos acima devem ser interpretados conjuntamente para que natildeo se faccedila uma interpretaccedilatildeo errocircnea no procedimento de qualquer inqueacuterito

O corpo de delito trata-se de um mero meio de prova que poderaacute ser suprido por outros meios de prova visto que natildeo haacute uma hierarquia entre as provas e o que se preza eacute a procura da verdade real ou seja deve-se recorrer aos outros meios passiacuteveis para formar o convencimento sobre o crime

O recebimento da denuacutencia leva em consideraccedilatildeo a prova

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da materialidade mesmo que essa prova seja por um exame do corpo de delito indireto e indiacutecios de autoria ou seja indiacutecios de que a pessoa que estaacute sendo acusada e que apoacutes o recebimento da denuacutencia seraacute reacuteu tem indiacutecios de sua participaccedilatildeo no desapareci-mento daquela pessoa

ESTUDO DE CASOS

Buscou-se analisar dois casos acerca da possibilidade de condenaccedilatildeo pelo crime de homiciacutedio ante a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo do caso O primeiro caso ocorrido em Aragua-ri em MG no ano de 1937 ficou conhecido como o ldquoCaso dos Irmatildeos Navesrdquo e o segundo ocorrido no ano de 2010 com rele-vante repercussatildeo midiaacutetica ficou conhecido como o ldquoCaso do Goleiro Brunordquo

Conforme informaccedilotildees do livro do autor Joatildeo Alamy Fi-lho (1990) o caso dos Irmatildeos Naves trata-se do maior erro judici-aacuterio no qual houve uma condenaccedilatildeo injusta com lastro na rainha das provas que foi uma confissatildeo conseguida mediante tortura dos irmatildeos Sebastiatildeo e Joaquim Naves acusados do homiciacutedio de Benedito o qual decidiu desaparecer do paiacutes por encontrar-se em dificuldades financeiras agravadas pela crise econocircmica da eacutepoca Durante vaacuterios meses os irmatildeos Naves foram submetidos pelo delegado da eacutepoca a vaacuterias torturas e privados de condiccedilotildees miacutenimas de higiene e alimentaccedilatildeo a fim de que confessassem o crime destacando-se que natildeo havia nem corpo nem indiacutecios nem outros meios de prova do homiciacutedio

Diante dessa situaccedilatildeo eles se viram obrigados a assinar o termo que o delegado tanto desejava a confissatildeo Ainda natildeo con-tente o delegado mandou prender os familiares dos acusados que tambeacutem passaram a sofrer torturas constantes

Os irmatildeos passaram por dois julgamentos tendo sempre como acusaccedilatildeo o temido delegado que sempre recorreu da deci-satildeo com recursos diversos Passados 8 anos e 3 meses apoacutes o jul-gamento devido ao bom comportamento dos irmatildeos na prisatildeo

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finalmente foram colocados em liberdade condicionalAnos mais tarde em 1952 a viacutetima aparece viva pois ha-

via decidido desaparecer agrave eacutepoca porque estava endividado e natildeo conseguira adimplir as diacutevidas Em 1953 os irmatildeos foram inocen-tados e entraram com um pedido de indenizaccedilatildeo que soacute foi conse-guido apoacutes 7 anos em 1960

Atualmente deve ser superado o erro judiciaacuterio que teve agrave eacutepoca do caso dos Irmatildeos Naves atraveacutes da busca da materia-lidade indireta O ordenamento juriacutedico admite provas periciais documentais e testemunhais desde que liacutecitas e legiacutetimas

No segundo caso o Caso do Goleiro Bruno as informa-ccedilotildees foram obtidas atraveacutes da Denuacutencia-Processo 0356249-62010 oferecida no ano de 2010 em Contagem-MG envolvendo o go-leiro Bruno do Flamengo um dos iacutedolos das maiores torcidas de futebol do paiacutes Trata-se de um assassinato no qual a viacutetima Eliza Samuacutedio foi executada cruelmente Consta na Denuacutencia que Eliza Samuacutedio iniciou um envolvimento amoroso com o goleiro e apoacutes algum tempo desse episoacutedio revelou estar graacutevida A gravidez levada a termo contrariou as expectativas de Bruno e a viacutetima mediante constantes ameaccedilas do entatildeo goleiro para que realizas-se aborto foi assassinada em 2010

A materialidade formou-se com base na soma de todas as provas um conjunto de indiacutecios especialmente as provas pe-riciais documentais e testemunhais entre elas o depoimentorelato da prova oral que configurou suficiente demonstraccedilatildeo de materialidade do crime de homiciacutedio No inqueacuterito haacute provas teacutec-nicas obtidas atraveacutes de rastreamento de carros e telefonemas do registro do uso de celulares pelas antenas instaladas ao longo do percurso realizado pelos acusados e tambeacutem do que diz respei-to agraves ligaccedilotildees telefocircnicas as quais natildeo deixaram duacutevidas de uma accedilatildeo coordenada Atraveacutes da triangulaccedilatildeo do sinal dos aparelhos celulares foi possiacutevel para os peritos estabelecerem com precisatildeo endereccedilos e horaacuterios dos lugares identificados em cada aparelho de telefone usado e por consequecircncia seu portador quanto agraves provas testemunhais haacute seis depoimentos que indicam que Bruno

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e Eliza estiveram juntos no siacutetio do goleiro nos dias que antecede-ram o crime No que tange agraves provas materiais o sangue encontra-do nos vidros e no banco da picape Range Rover de propriedade do goleiro era da jovem Eliza comprovado pela periacutecia por meio de exames de DNA

Outra peccedila fundamental para a poliacutecia foi o bebecirc Bruni-nho filho de Eliza ter permanecido sem a matildee e que sob os cui-dados da mulher do goleiro teve o seu nome trocado para Ryan Yuri objetivando dificultar sua identificaccedilatildeo e localizaccedilatildeo e foi encontrado posteriormente em posse de estranhos Ainda no que se refere agraves provas documentais foi encontrada uma carta escrita pelo ex-goleiro Bruno detalhando um Plano B no caso de o cerco se fechar sobre ele prescrevendo que o amigo Macarratildeo deveria assumir toda a culpa pelo crime

Entre os indiacutecios mais fortes de que o goleiro comandou uma espeacutecie de ldquooperaccedilatildeordquo para matar Eliza estaacute o sangue en-contrado na Land Rover do goleiro apreendida com um de seus amigos aleacutem de infraccedilotildees de tracircnsito cometidas no Rio de Janeiro e Minas Gerais e o horaacuterio das ligaccedilotildees telefocircnicas de todos os acusados Por meio do cruzamento das informaccedilotildees e das provas periciais a poliacutecia diz ter conseguido remontar o que aconteceu

As evidecircncias mais importantes no entanto satildeo os depoi-mentos contraditoacuterios As duas principais testemunhas que foram o ponto de partida para a prisatildeo dos demais acusados os primos de Bruno Seacutergio Rosa Sales e o adolescente apreendido J muda-ram suas versotildees ao longo das investigaccedilotildees

No caso do ex-goleiro Bruno sabia-se que Eliza estava desaparecida que natildeo fez contato pessoal telefocircnico e-mail natildeo usou cartatildeo de creacutedito nem conta bancaacuteria haacute um viacutedeo em que Eliza diz que sofreu violecircncia para abortar e que se algo lhe acon-tecesse o responsaacutevel seria Bruno comprovou-se que Eliza foi obrigada a tomar comprimidos de origem desconhecida ou seja foi submetida agrave tentativa de aborto haacute prova de que esteve no siacutetio do suspeito com o filho somente a crianccedila apareceu haacute sangue da viacutetima no carro haacute um depoimento do menor Jorge primo de

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Bruno que conta detalhes sobre a morte e o vilipecircndio a confir-maccedilatildeo desse depoimento se deu pela anaacutelise do GPS do carro e pela comprovaccedilatildeo de que Bruno deslocou-se de aviatildeo para Minas Gerais no periacuteodo

Quando natildeo se localiza o corpo da viacutetima o que se utiliza eacute a ldquocerteza moral do crimerdquo e essa se daacute quando todas as circuns-tacircncias demonstram a morte sob pena de ficarmos agrave mercecirc dos criminosos mais perigosos que satildeo aqueles que matam e depois consomem com o corpo apostando na impunidade Vale ressaltar que as provas no Caso do goleiro Bruno foram obtidas atendendo agrave previsatildeo do ordenamento juriacutedico

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

O presente trabalho buscou analisar a possibilidade de pronunciamento e condenaccedilatildeo do agente que comete o crime de homiciacutedio e natildeo se encontra a prova material do crime o cadaacutever

No decorrer do trabalho fez-se estudo dos meios proba-toacuterios permitidos em nosso ordenamento juriacutedico no que concerne aos crimes materiais ou seja aqueles que deixam vestiacutegios

Destacou-se ainda no presente estudo a possibilidade no crime de homiciacutedio de admitir a substituiccedilatildeo da prova direta pelo prova indireta visto que o proacuteprio ordenamento juriacutedico prevecirc essa possiblidade ante a ausecircncia do cadaacutever para comprovaccedilatildeo do crime poderaacute utilizar-se das provas testemunhais somadas a outros indiacutecios visto que seria injusto deixar algueacutem impune

Socorreu-se do caso do maior erro Judiciaacuterio ou seja o caso dos Irmatildeos Naves que ficou conhecido nacionalmente e que ateacute hoje assombra a decisatildeo dos juiacutezes em casos semelhantes Po-reacutem destaca-se se que a uacutenica prova utilizada no referido caso foi a confissatildeo obtida mediante tortura

Tivemos caso recente que causou grande repercussatildeo na miacutedia o Cso do ex-goleiro Bruno no qual se constatou a existecircncia de vaacuterias provas indiretas que possuiacuteam o condatildeo de conduzir a um desfecho do crime ocorrido mesmo ante a ausecircncia do corpo

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da viacutetima para comprovaccedilatildeo do fatoCertifica-se que a prova testemunhal se somada a outras

provas poderaacute substituir o cadaacutever se for suficiente para compro-var o delito mesmo com a ausecircncia material do corpo

Atraveacutes dos estudos realizados pode-se constatar que a inexistecircncia do corpo da viacutetima natildeo deixa o reacuteu impune podendo ele ser denunciado pronunciado e posteriormente condenado pela praacutetica do crime

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OS MEIOS CONSENSUAIS DE SOLUCcedilAtildeO DE CONFLITOS NA COMARCA DE CAacuteCERESMT

Sandrely Ugulino Cardoso1

Geovanna Gabriela Sandri2

Andreacute Trapani Costa Possignolo3

RESUMO Pesquisa realizada na aacuterea do Direito Processual Civil sobre os institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo e sua eficaacutecia na comarca de CaacuteceresMT como meios alternativos na resoluccedilatildeo de conflitos Aleacutem de apresentar as principais caracteriacutesticas e objetivos dos institutos o trabalho aborda tambeacutem a perspectiva da mediaccedilatildeo para a resoluccedilatildeo de conflitos na esfera familiar ressaltando seus benefiacutecios em relaccedilatildeo aos meios judiciais A anaacutelise realizada tem como base legal a Resoluccedilatildeo 12510 do Conselho Nacional de Justiccedila que disciplina tais institutos frente ao Poder Judiciaacuterio bem como ordena aos tribunais a criaccedilatildeo de Centros Judiciaacuterios de Resoluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania Aleacutem da pesquisa bibliograacutefica de autores que disciplinam os meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos o presente trabalho faz um levantamento de dados das audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo realizadas no Centro Judiciaacuterio do Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT analisando no caso concreto se os objetivos e benefiacutecios desses institutos consensuais tecircm realmente sido alcanccedilados bem como se tecircm trazido resultados satisfatoacuterios ao Poder Judiciaacuterio e agrave sociedade do municiacutepio de CaacuteceresMT

PALAVRAS-CHAVE Mediaccedilatildeo Conciliaccedilatildeo CEJUSC

1 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT san-drelyugulinogmailcom2 Acadecircmica do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT geovan-nasandrigmailcom3 Professor do Curso de Direito da UNEMAT Campus de Barra do BugresMT andre-tpossiggmailcom

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ABSTRACT Research carried out in Civil Procedural Law area on the institutes of mediation and conciliation and its effectiveness in the county of CaacuteceresMT as alternative means in the resolution of conflicts Besides presenting the main features and goals this work also approaches the perspective of mediation for conflict resolution in the Family Law sphere highlighting its benefits over judicial means The analysis is based on Resolution 12510 of the Conselho Nacional de Justiccedila which disciplines such institutes in Judiciary as well as order the courts to create Centros Judiciaacuterios de Resoluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania In addition to the bibliographic research on consensual means of conflict resolution this paper will also collect data from the conciliation and mediation hearings held at the Centro Judiciaacuterio of the CaceresMT County Forum analyzing in concrete case if the goals and benefits of these consensual institutes have actually been achieved as well as whether they have brought satisfactory results to the Judiciary and to the society of CaceresMT

KEYWORDS Mediation Conciliation CEJUSC

INTRODUCcedilAtildeO

Um dos principais objetivos buscados pelo Direito eacute a paz social de modo a tornar as relaccedilotildees mais estaacuteveis dirimindo os conflitos bem como as desigualdades sociais aleacutem de promover o desenvolvimento da sociedade (SANTOS 2004)

No entanto eacute visiacutevel que o Direito ainda natildeo conseguiu alcanccedilar a almejada pacificaccedilatildeo social hajam vista os numerosos processos que se encontram sob a eacutegide do Poder Judiciaacuterio agrave es-pera de uma soluccedilatildeo para o conflito Sabe-se que o Poder Judiciaacuterio possui muitas falhas em seu modo de atuar tais como tecnicismo proacuteprio e exacerbado inerente ao processo judicial que por exem-plo possui vernaacuteculo especiacutefico e de difiacutecil compreensatildeo para as proacuteprias partes litigantes tornando o processo judicial ainda mais formal aleacutem das altas custas processuais e a demora para a solu-ccedilatildeo do litiacutegio fatores esses que afastam cada vez mais o Judiciaacuterio da sociedade (ALVES 2015)

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Primando pelo princiacutepio constitucional da inafastabilida-de da jurisdiccedilatildeo a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 apresenta em seu art 5ordm inciso XXXV ldquoa lei natildeo excluiraacute da apreciaccedilatildeo do Poder Judiciaacuterio lesatildeo ou ameaccedila a direitordquo (BRASIL 1988) Sendo as-sim eacute garantido a toda pessoa o poder de buscar no Judiciaacuterio a efetividade dos seus direitos violados

O Poder Judiciaacuterio tendo a obrigaccedilatildeo de abranger toda demanda da sociedade passou a enfrentar uma crise gerando o abarrotamento de processos Deste modo o Judiciaacuterio comeccedilou a natildeo suportar tamanha procura para a soluccedilatildeo de conflitos haja vista que natildeo consegue respeitar sequer alguns princiacutepios proces-suais como a celeridade processual tornando-se moroso na reso-luccedilatildeo dos litiacutegios (ALVES 2015)

Para os motivos de tal morosidade existem diversos fa-tores Alguns destes estatildeo ora relacionados agrave estrutura e funcio-namento do Poder Judiciaacuterio ora agraves partes litigantes e seu modo de agir Em suma os fatores mais citados satildeo sucateamento dos equipamentos do Judiciaacuterio escassez de funcionaacuterios modo de agir das partes complexidade e burocracia do processo brasileiro (GESTEIRA 2014)

Atentando-se aos princiacutepios norteadores do Direito visto que o Poder Judiciaacuterio encontra-se em crise comeccedilaram a ser dis-cutidos outros meios alternativos de soluccedilatildeo de conflitos Surgiu assim a Resoluccedilatildeo 12510 do Conselho Nacional de Justiccedila (CNJ) disciplinando dois meios de suma importacircncia ao Direito brasilei-ro quais sejam mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo

Diante disso a presente pesquisa busca estudar esses meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos analisando se satildeo uacuteteis agrave so-ciedade como forma de dirimir litiacutegios ajudando na promoccedilatildeo da paz social prezada pelo Direito De outro modo aborda-se se estes meios de soluccedilatildeo de conflitos realmente trazem benefiacutecios se satildeo eficazes ao Judiciaacuterio diante da mencionada crise de abarrotamen-to de processos pela qual o mesmo enfrenta

Outro vieacutes a ser analisado trata-se da contribuiccedilatildeo das uni-versidades e dos acadecircmicos principalmente do curso de Direito

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na promoccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo bem como os benefiacutecios trazidos aos estudantes diante da aplicaccedilatildeo dos conhecimentos teoacutericos apreendidos nas salas de aula em casos praacuteticos

Tem-se ainda como objetivo mostrar a importacircncia do Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) no Foacuterum da Comarca do Municiacutepio de CaacuteceresMT bem como sua efetividade na resoluccedilatildeo de conflitos por meio da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Busca-se ainda expor alguns aspectos negativos le-vantados com relaccedilatildeo aos institutos de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo

Aleacutem disso realiza-se um levantamento de dados quan-titativos de audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo na Comarca do Foacuterum de CaacuteceresMT no Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Con-flitos e Cidadania para testar a aplicaccedilatildeo praacutetica dos resultados obtidos analisando concretamente se essas audiecircncias tecircm trazido resultados satisfatoacuterios ao Poder Judiciaacuterio na resoluccedilatildeo de con-flitos por meio da feitura de acordos entre as partes bem como se vecircm cumprindo com seu papel de assistecircncia agrave sociedade

Para isso utiliza-se como metodologia a pesquisa biblio-graacutefica de autores que trabalham a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como meios de resoluccedilatildeo de conflitos A partir da anaacutelise criacutetica das in-formaccedilotildees expostas visa-se trazer argumentos proacuteprios sobre o tema

Meios consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos

A pacificaccedilatildeo social como um dos objetivos primados pelo Direito se realiza por meio da resoluccedilatildeo dos conflitos Buscando se adequar a este objetivo os institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo tambeacutem tecircm almejado a paz social das partes litigantes que ami-gavelmente procuram dirimir os conflitos existentes Nesse senti-do o processualista Daniel Amorim Assumpccedilatildeo Neves (2016 p 32) admite que ldquoa pacificaccedilatildeo social (soluccedilatildeo da lide socioloacutegica) pode ser mais facilmente obtida por uma soluccedilatildeo do conflito deri-vada da vontade das partes do que pela imposiccedilatildeo de uma decisatildeo judicialrdquo

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Essa pacificaccedilatildeo social pode ser alcanccedilada mais facilmente nas formas consensuais de resoluccedilatildeo de conflitos haja vista que o diaacutelogo entre as partes estaacute presente constantemente pois nessas as partes apresentam propostas capazes de dirimir as desavenccedilas com base em seus interesses pessoais e uma vez satisfeita a vonta-de de ambas o conflito existente eacute solucionado

O Poder Judiciaacuterio no uso de suas atribuiccedilotildees utiliza como principal ferramenta para a resoluccedilatildeo de conflitos a hetero-composiccedilatildeo que ldquoconsiste em meios onde a soluccedilatildeo dos litiacutegios eacute estabelecida por um terceiro sem interferecircncia das partesrdquo (MER-LO 2016 on line)

A partir da crise que afligiu o Judiciaacuterio novas teacutecnicas de dirimir os litiacutegios foram sendo amplamente discutidas surgindo a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como teacutecnicas de autocomposiccedilatildeo em que ao contraacuterio da heterocomposiccedilatildeo a soluccedilatildeo do problema natildeo eacute determinada por um terceiro distante do caso mas pelas proacuteprias partes litigantes que decidem como solucionar os conflitos pelos quais estatildeo passando Nesses meios autocompositivos prevalece a vontade das partes (Idem)

Assim como nos meios de heterocomposiccedilatildeo a mediaccedilatildeo e a conciliaccedilatildeo primam pela real soluccedilatildeo das desavenccedilas No entan-to a heterocomposiccedilatildeo em razatildeo de a soluccedilatildeo do conflito ser dada de acordo com o entendimento de um terceiro imparcial e distante do caso nem sempre possui forccedila capaz de satisfazer as vontades das partes jaacute que na maioria das vezes o decidido pelo magistra-do natildeo coincide com o querer das partes Desta forma ao contraacuterio dos meios consensuais os meios heterocompositivos nem sempre solucionam o conflito em sua essecircncia uma vez que natildeo atendem agrave real vontade das partes fazendo com que em muitos casos as desavenccedilas persistam mesmo apoacutes a suposta resoluccedilatildeo do conflito (ROSA apud GONCcedilALVES 2015)

A mediaccedilatildeo e a conciliaccedilatildeo por serem meacutetodos de auto-composiccedilatildeo possuem muitas semelhanccedilas distinguindo-se ape-nas quanto ao modo de atuaccedilatildeo do mediador e do conciliador

O instituto da mediaccedilatildeo eacute aconselhado para a resoluccedilatildeo de

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conflitos nos casos em que as partes conflitantes jaacute se conheciam e possuiacuteam algum viacutenculo O papel do mediador eacute caracterizado como de um facilitador do diaacutelogo entre as partes que auxilia as partes a visualizarem a melhor maneira de dirimir o conflito exis-tente natildeo podendo agir de forma imperativa no caso nem propor formas de solucionar o conflito mas tatildeo somente encaminhar as partes deixando a livre escolha dessas agrave feitura ou natildeo de um acor-do (DIDIER JR 2015)

Diferentemente da mediaccedilatildeo os casos que envolvem a resoluccedilatildeo de conflitos pela conciliaccedilatildeo segundo entendimento de Didier Jr (2015) satildeo aqueles em que as partes natildeo se conheciam ou seja natildeo possuiacuteam viacutenculos Nesses casos o conciliador tem maior autonomia para interferir no problema haja vista que pode propor soluccedilotildees para dirimir o conflito

Uma das principais caracteriacutesticas destes meios de auto-composiccedilatildeo eacute a maior atuaccedilatildeo das partes na soluccedilatildeo do conflito que satildeo os protagonistas da resoluccedilatildeo do litiacutegio o que eacute interes-sante uma vez que o conflito concerne somente a elas (MERLO 2016)

Vaacutelido ressaltar que esses mecanismos de autocompo-siccedilatildeo ao contraacuterio da heterocomposiccedilatildeo natildeo apresentam todo o tecnicismo proacuteprio de um processo judicial como o seu formalis-mo e utilizaccedilatildeo de vernaacuteculos especiacuteficos e robustos cuja ausecircncia permite que as partes possuam maior liberdade de se expressar visto que se baseiam mais na oralidade e na informalidade aleacutem de serem mais ceacuteleres baratos e justos (GONCcedilALVES 2015)

Entende-se que os acordos feitos por intermeacutedio desses meios alternativos de soluccedilatildeo de conflitos possuem a mesma forccedila de uma sentenccedila dada pelo magistrado por meio das vias comuns entretanto por serem meacutetodos que ainda podem ser considerados recentes diversas vezes natildeo satildeo efetivados pela visatildeo de que os acordos e decisotildees tomadas natildeo teriam o mesmo valor que uma decisatildeo judicial comum (MERLO 2016)

Aleacutem disso outra fragilidade que envolve os meios au-tocompositivos diz respeito agrave atuaccedilatildeo do mediador quanto agrave pos-

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sibilidade de que haja pressatildeo para que as partes cheguem a um acordo e que segundo o Manual de Mediaccedilatildeo Judicial (2015) preo-cupa os advogados por tratar-se de um receio legiacutetimo mas que quando notada deve ser comunicada agrave Secretaacuteria do Serviccedilo de Mediaccedilatildeo Forense

Resoluccedilatildeo n 12510 CNJ

O Conselho Nacional de Justiccedila editou a Resoluccedilatildeo nordm 125 de 29 de novembro de 2010 que em suma tem como objetivo a re-gulamentaccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Assim o CNJ por meio dessa Resoluccedilatildeo incentivou a soluccedilatildeo de controveacutersias por meio da autocomposiccedilatildeo (BRASIL 2010)

Para a criaccedilatildeo dessa Resoluccedilatildeo foram considerados vaacuterios pontos tais como a prestaccedilatildeo judicial de forma justa e efetiva a pacificaccedilatildeo social bem como a regulamentaccedilatildeo e uniformizaccedilatildeo da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo (Idem) Assim um dos mais importantes artigos dessa Resoluccedilatildeo na qual se baseia todo o presente trabalho eacute o

Art 8ordm Os tribunais deveratildeo criar os Centros Judiciaacute-rios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (Centros ou Cejuscs) unidades do Poder Judiciaacuterio preferencial-mente responsaacuteveis pela realizaccedilatildeo ou gestatildeo das sessotildees e audiecircncias de conciliaccedilatildeo e mediaccedilatildeo que estejam a cargo de conciliadores e mediadores bem como pelo atendimento e orientaccedilatildeo ao cidadatildeo (BRASIL 2010)

Eacute com base nesse artigo que os atuais Centros Judiciaacuterios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) existem e realizam as audiecircncias de mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo sejam elas processuais (realizadas durante o tracircmite de processo judicial) ou preacute-proces-suais (que antecedem a propositura da accedilatildeo judicial)

Ademais aleacutem do caraacuteter de soluccedilatildeo de conflitos estes centros possuem uma funccedilatildeo de cidadania uma vez que atendem ao puacuteblico orientando e auxiliando os indiviacuteduos na busca por

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seus direitos (BRASIL 2015)A implantaccedilatildeo desses centros de soluccedilatildeo de conflitos a

partir da Resoluccedilatildeo nordm 12510 do CNJ que aleacutem de seu objetivo principal de incentivar que os litiacutegios sejam resolvidos de forma consensual reconheceu esses institutos como meios de acesso agrave justiccedila respeitando o princiacutepio constitucional de acesso agrave justiccedila Ademais em decorrecircncia da grande quantidade de demandas di-rigidas ao Poder Judiciaacuterio busca-se tambeacutem com as audiecircncias de mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo a diminuiccedilatildeo do abarrotamento de proces-sos uma vez que esses institutos satildeo mais ceacuteleres na soluccedilatildeo dos conflitos e a feitura de um acordo evita que novos casos resultan-tes de conflitos mal resolvidos fiquem pendentes da anaacutelise do Poder Judiciaacuterio (GONCcedilALVES 2015)

Aleacutem disso eacute importante compreender a atuaccedilatildeo dos con-ciliadores e mediadores bem como os princiacutepios e obrigaccedilotildees que os regem para que se quebre o paradigma de que um meio de resoluccedilatildeo de conflitos que envolva um terceiro que natildeo seja o ma-gistrado tambeacutem pode ser confiaacutevel e eficaz Por esta razatildeo a re-soluccedilatildeo prevecirc em seu artigo 1deg do Anexo III oito princiacutepios funda-mentais que devem ser seguidos para que se respeite o Coacutedigo de Eacutetica dos Mediadores e Conciliadores Satildeo eles confidencialidade decisatildeo informada competecircncia imparcialidade independecircncia e autonomia respeito agrave ordem puacuteblica e agraves leis vigentes empodera-mento e validaccedilatildeo (BRASIL 2010)

Os princiacutepios fundamentais previstos na resoluccedilatildeo satildeo de grande importacircncia para a conduccedilatildeo e o bom desenvolvimento dos procedimentos dos institutos da mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo

mediaccedilatildeo na resoluccedilatildeo de conflitos familiares

Pelo fato de a mediaccedilatildeo ser utilizada principalmente nos conflitos em que as partes jaacute se conheciam ela possui grande im-portacircncia na soluccedilatildeo de conflitos familiares mais ainda por se ba-sear principalmente no diaacutelogo entre as partes Tendo em vista as peculiaridades dos problemas familiares o instituto da mediaccedilatildeo

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tem sido cada vez mais empregado na resoluccedilatildeo desses conflitos Eacute evidente que as desavenccedilas familiares possuem aspectos mais delicados uma vez que envolvem laccedilos afetivos e por isso neces-sitam de guarida de forma especial comparados com outros confli-tos sociais (GONCcedilALVES 2015 GARBO 2015)

Para que natildeo haja desgaste emocional entre os familiares que se encontram em litiacutegio faz-se necessaacuterio a presenccedila da media-ccedilatildeo como meio consensual de resoluccedilatildeo de conflitos instrumento capaz de trazer a paz para as famiacutelias em desavenccedilas (TOALDO OLIVEIRA 2011)

Em decorrecircncia de o Poder Judiciaacuterio se encontrar abar-rotado de causas para serem solucionadas os conflitos sob a sua eacutegide demoram muito tempo ateacute sua resoluccedilatildeo Assim sendo a mediaccedilatildeo familiar um meio alternativo para a resoluccedilatildeo de con-flitos as demandas seratildeo solucionadas por este meio com mais rapidez fato esse de suma importacircncia nos desentendimentos fa-miliares uma vez que envolvem assuntos de natureza de urgecircncia perdurando o conflito por um periacuteodo bem menor se comparado aos meios judiciais tradicionais (PRUDENTE 2008)

Os principais casos resolvidos por meio da mediaccedilatildeo fa-miliar abrangem conflitos referentes a divoacutercio separaccedilatildeo de bens guarda fixaccedilatildeo e revisatildeo de alimentos Tais casos por se tratarem de assuntos pertinentes tatildeo apenas agraves proacuteprias partes satildeo resolvi-dos por meio da mediaccedilatildeo com grande aprovaccedilatildeo tendo em vista que a partir do diaacutelogo entre as partes pode surgir um acordo que satisfaccedila as vontades destas (GARBO 2015)

O meio heterocompositivo frente a um magistrado por natildeo possibilitar maior diaacutelogo entre as partes nem sempre per-mite que a vontade seja plenamente satisfeita inclusive porque a soluccedilatildeo do conflito viraacute de acordo com o entendimento de um terceiro distante do caso Assim diante da insatisfaccedilatildeo em rela-ccedilatildeo agrave decisatildeo tomada e da natildeo soluccedilatildeo dos conflitos ocultos novos impasses podem surgir resultando em novos processos judiciais contribuindo para o abarrotamento de processos e intensificando a crise do Poder Judiciaacuterio

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A mediaccedilatildeo familiar eacute sim uma alternativa viaacutevel para a superaccedilatildeo de conflitos familiares na socieda-de atual pois atraveacutes de mediadores capacitados e com conhecimentos especiacuteficos fazendo com que as partes cheguem uma melhor soluccedilatildeo que possa satisfazer a ambos sem a imposiccedilatildeo de uma deci-satildeo como ocorre no atual sistema juriacutedico brasileiro (TOALDO OLIVEIRA 2011 on line)

Aleacutem da insatisfaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave decisatildeo proferida por meio heterocompositivo o sentimento de conflito natildeo resolvido pode acarretar traumas emocionais aos filhos portanto quando se tem uma participaccedilatildeo muacutetua da famiacutelia para que se resolvam as questotildees familiares pendentes de forma amigaacutevel e respeitosa a decisatildeo natildeo traraacute apenas benefiacutecios processuais (custas celerida-de) como tambeacutem emocionais e psicoloacutegicos conforme menciona Parkinson (2016 p xxi)

Devemos ter em mente que longas batalhas pela guarda dos filhos satildeo extremamente prejudiciais agrave crianccedila aleacutem de apresentarem altos custos emocio-nais e financeiros ao passo que a mediaccedilatildeo incenti-va uma melhor comunicaccedilatildeo e cooperaccedilatildeo entre os pais podendo trazer benefiacutecios duradouros para a famiacutelia como um todo

Percebe-se assim que os conflitos familiares dependem grandemente do diaacutelogo para a sua soluccedilatildeo uma vez que apoacutes alguns desentendimentos os familiares se encontram receosos e abalados emocionalmente diante dos laccedilos afetivos envolvidos necessitando apenas que um terceiro no caso o mediador inter-venha no conflito para facilitar o diaacutelogo entre as partes fazendo com que as mesmas encontrem um acordo satisfatoacuterio fato esse que pode ser facilmente presenciado na mediaccedilatildeo diferentemente do que ocorre na heterocomposiccedilatildeo em que natildeo haacute tantas oportu-nidades de diaacutelogos entre as partes

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Contribuiccedilatildeo das Universidades aos CEJUSCrsquos

Tendo em vista que a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo abordam as-suntos pertinentes ao curso de Direito as universidades podem e devem contribuir na promoccedilatildeo desses institutos uma vez que ainda satildeo desconhecidos por grande parcela da sociedade Aleacutem de as universidades contribuiacuterem no incentivo e divulgaccedilatildeo dos meacutetodos consensuais de soluccedilatildeo de conflitos os acadecircmicos tam-beacutem satildeo beneficiados uma vez que poderatildeo colocar em praacutetica os aprendizados teoacutericos das aulas contribuindo para seu crescimen-to profissional futuro

O CNJ mesmo apoacutes ter criado a Resoluccedilatildeo 12510 incen-tiva ainda a pacificaccedilatildeo dos litiacutegios pela mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo por meio do Precircmio Conciliar eacute Legal de iniciativa do Comitecirc Gestor Nacional da Conciliaccedilatildeo A quinta ediccedilatildeo desse precircmio teve como uma das praacuteticas vencedoras a promoccedilatildeo de soluccedilotildees paciacuteficas de conflitos por meio do envolvimento de alunos e docentes do cur-so de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNE-MAT) Campus Francisco Ferreira Mendes em DiamantinoMT em trabalho conjunto com o Centro Judiciaacuterio da Comarca de Dia-mantinoMT (ARAUacuteJO 2015)

O projeto realizou-se por intermeacutedio da UNEMAT no Nuacute-cleo Permanente de Meacutetodos Consensuais de Soluccedilatildeo de Conflitos do Mato Grosso e do CEJUSC do TJMT e envolveu estudantes e professores que se propuseram a averiguar os processos submeti-dos ao Centro Judiciaacuterio na Comarca de DiamantinoMT (Idem)

Assim sendo fica claro que essa atitude serviu para tes-tificar os acadecircmicos envolvidos no projeto considerando que jaacute saem com capacitaccedilatildeo em conciliaccedilatildeo tornando-se uma verdadei-ra contribuiccedilatildeo acadecircmica para a sociedade o que exemplifica cla-ramente a proposta acessiacutevel da soluccedilatildeo de conflitos

Levantamento de dados realizados no CEJUSC de CAacuteCERESMT

Com base no levantamento bibliograacutefico apresentado foi

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realizada uma pesquisa quantitativa de levantamento de dados no Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT

Com a entrada em vigor da Resoluccedilatildeo 12510 do CNJ o Tribunal de Justiccedila do Mato Grosso buscou adequar-se a essa nor-ma tendo em vista que assim como apresentado no art 8ordf da refe-rida Resoluccedilatildeo foi imposta aos Tribunais de Justiccedila a criaccedilatildeo dos Centros Judiciaacuterios de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania

Assim sendo foi instalado no dia 11 de julho de 2014 em CaacuteceresMT um Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cida-dania (CEJUSC) por meio da Portaria 0062014-NPMCSC-PRES (MATO GROSSO 2014)

Os dados a seguir foram informados pela gestora do CE-JUSC do Foacuterum da Comarca de CaacuteceresMT por meio dos rela-toacuterios que satildeo encaminhados ao CNJ Assim seratildeo apresentados os dados a respeito das conciliaccedilotildees e mediaccedilotildees realizadas tatildeo somente neste Centro expondo ainda os nuacutemeros das audiecircncias que restaram frutiacuteferas

Insta esclarecer que os dados da quantidade de audiecircncias realizadas referem-se tanto agraves audiecircncias na fase preacute-processual quanto processual Outrossim os dados apresentados satildeo apenas das audiecircncias realizadas no CEJUSC E os acordos que satildeo forma-lizados no decorrer dos processos natildeo estatildeo contidos nestes dados mas somente os formalizados em audiecircncias realizadas no Centro

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Quadro 01 minus Nuacutemero de audiecircncias realizadas no CEJUSC durante 2014 ndash 2016

Fonte Mato Grosso (2014)

A partir dos dados apresentados nota-se que a populaccedilatildeo de CaacuteceresMT tem buscado realizar tentativas de acordos para resoluccedilatildeo de conflitos mesmo sendo a heterocomposiccedilatildeo no Bra-sil a forma mais difundida e aceita para a soluccedilatildeo de conflitos O graacutefico reforccedila a tese de que os meios de autocomposiccedilatildeo tambeacutem estatildeo aos poucos ganhando mais espaccedilo e sendo utilizados fren-te aos benefiacutecios que estes meios proporcionam como celeridade menor custo econocircmico e resoluccedilatildeo do conflito por meio da satis-faccedilatildeo da vontade de ambas as partes

A tabela a seguir apresenta o nuacutemero de acordos formali-zados dentre a quantidade de audiecircncias realizadas no CEJUSC de Caacuteceres segundo apresentado no quadro 01 acima

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Quadro 02 minus Nuacutemero de audiecircncias com acordos

Fonte Mato Grosso (2014)

Por meio da anaacutelise dos dados acima descritos pode-se perceber que entre os meses em que foi realizada a pesquisa julho de 2014 a agosto de 2016 num total de 26 meses foram realizadas 1954 (mil novecentos e cinquenta e quatro) audiecircncias de conci-liaccedilatildeo e mediaccedilatildeo no Centro Judiciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania da Comarca de CaacuteceresMT Desse total de audiecircncias realizadas 1679 (mil seiscentos e setenta e nove) restaram frutiacute-feras ou seja obtiveram acordo correspondendo a aproximada-mente 86 de acordos do total de audiecircncias

Desta forma nota-se que estes meios alternativos de solu-ccedilatildeo de controveacutersias estatildeo sendo de suma importacircncia para a so-ciedade da comarca de Caacuteceres bem como para o Poder Judiciaacuterio local uma vez que os resultados obtidos tecircm sido satisfatoacuterios

Tais resultados corroboram com o entendimento defendi-do por Alves (2015 on line) ldquoConclui-se que a conciliaccedilatildeo eacute sem-pre a melhor opccedilatildeo para as partes em litiacutegio desde que o instituto seja aplicado corretamente em consonacircncia com os seus objetivos e por terceiros realmente imparciais e capacitadosrdquo

Para Warat (apud MERLO 2016 on line) estes institutos

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satildeo muito importantes para a sociedade visto que

As praacuteticas sociais de mediaccedilatildeo se configuram num instrumento ao exerciacutecio da cidadania na medida em que educam facilitam e ajudam a produzir dife-renccedilas e a realizar tomadas de decisotildees sem a inter-venccedilatildeo de terceiros que decidem pelos afetados por um conflito[] O acordo decorrente de uma mediaccedilatildeo satisfaz em melhores condiccedilotildees as necessidades e os desejos das partes jaacute que estas podem reclamar o que ver-dadeiramente precisam e natildeo o que a lei lhes reco-nheceria

Nota-se que a conciliaccedilatildeo e a mediaccedilatildeo realizadas no Cen-tro Judiciaacuterio de CaacuteceresMT diante dos resultados apresentados tecircm sido realmente uma alternativa eficaz para resoluccedilatildeo de con-flitos na comarca uma vez que ao produzir acordos entre as par-tes as desavenccedilas satildeo solucionadas proporcionando a paz social Aleacutem do mais pelo fato de o acordo ser realizado a partir da von-tade das partes sem a intervenccedilatildeo de um terceiro como o magis-trado os meios autocompositivos diminuem e por consequecircncia os casos a serem solucionados diretamente pelo Poder Judiciaacuterio atenuando a crise de abarrotamento de processos judiciais

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A partir das pesquisas realizadas foi possiacutevel perceber que o Poder Judiciaacuterio passa por um momento criacutetico pois se encontra abarrotado de processos e sem nenhuma condiccedilatildeo de acolher cor-retamente toda esta demanda de modo que precisou implementar outras alternativas que ajudassem a alterar esse cenaacuterio

Buscando sair deste momento de crise alguns mecanis-mos foram implementados atraveacutes da Resoluccedilatildeo nordm 12510 do CNJ quais sejam a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo Percebe-se entatildeo que estes institutos foram e satildeo de fundamental importacircncia para o Ju-diciaacuterio visto que ao mesmo tempo que diminuem a grande pro-

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cura direta ao Judiciaacuterio para a resoluccedilatildeo de conflitos tambeacutem se baseiam em meacutetodos autocompositivos por meio dos quais todas as decisotildees tomadas partem tatildeo somente das proacuteprias partes liti-gantes resultando em uma justiccedila em conformidade com as neces-sidades almejadas pelas partes

Com relaccedilatildeo aos pontos positivos e negativos desses ins-titutos nota-se que os aspectos positivos prevalecem sobre os ne-gativos haja vista que estes decorrem do pouco conhecimento da sociedade de que os meios consensuais de soluccedilatildeo de conflitos satildeo eficazes e gozam dos mesmos efeitos de uma decisatildeo judicial Esse desconhecimento da sociedade deve-se ao fato de o meio ju-dicial tradicional ser utilizado haacute muito mais tempo necessitando assim que o Poder Judiciaacuterio incentive e divulgue a mediaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo como meios eficazes corroborando por consequecircncia com a diminuiccedilatildeo da crise judiciaacuteria As universidades conjun-tamente com os acadecircmicos do curso de Direito tecircm contribuiacutedo nesse aspecto de divulgaccedilatildeo e incentivo da sociedade para soluccedilatildeo dos litiacutegios por meio da autocomposiccedilatildeo atraveacutes de projetos reali-zados em parceria com os Centros Judiciaacuterios

Os meios consensuais tecircm apresentado resultados satis-fatoacuterios perante o ordenamento juriacutedico brasileiro haja vista que tecircm sido efetivamente utilizados para a soluccedilatildeo de conflitos sendo de grande valia ao Poder Judiciaacuterio e agrave sociedade principalmente agrave Comarca de Caacuteceres ora analisada

Quanto agraves resoluccedilotildees de conflitos por meio do Centro Ju-diciaacuterio de Soluccedilatildeo de Conflitos e Cidadania de Caacuteceres pode-se observar que apesar da autocomposiccedilatildeo como meio de resoluccedilatildeo de conflitos ainda natildeo ser amplamente difundida como acontece com os meios heterocompositivos a Comarca de Caacuteceres vem ob-tendo resultados satisfatoacuterios e natildeo soacute pela quantidade de acordos mas tambeacutem em relaccedilatildeo agrave procura deste meio

Percebe-se assim que a autocomposiccedilatildeo por meio da me-diaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo vem apresentando aos juristas aspectos po-sitivos como a diminuiccedilatildeo do abarrotamento de processos bem como esses institutos tecircm cumprido com seus objetivos sendo

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realmente eficazes na resoluccedilatildeo de conflitos

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