Rastros, restos e vestígios no design de moda1

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Rastros, restos e vestígios no design de moda 1 FABRI, Hélcio (Mestrando) 2 Universidade Tuiuti do Paraná - UTP Resumo: Este trabalho objetiva discutir sobre a questão do “contexto” como articulador do tempo, espaço e memória e revelador de relevantes aspectos socioculturais produtores de sentidos nos estudos de comunicação sobre design de moda. Usando as metodologias para interpretação de imagens sugeridas por Burke, Barthes e Floch, pretende-se uma reflexão sobre a imagem de moda, que além de sua dimensão plástica, cria um sistema gerador de tensões e de sentido. Como objeto desta análise optou-se pela observação da construção de significados de um anúncio publicitário de uma campanha de moda do designer britânico Alexander McQueen. Palavras-chave: memória, contexto, design de moda. Introdução A era industrial atual é caracterizada pela produção e pelo consumo de bens com valores estético-simbólicos. A indústria de moda descaracterizou a função prática (proteção) do vestuário, convertendo-o em referencial de status e como uma forma de representação do indivíduo em relação ao meio social em que vive. O produto de moda (roupas, calçados e acessórios) tornou-se uma forma de expressão e de comunicação para a diferenciação de indivíduos ou grupos, assim como a interação entre estes. "A moda não é mais um enfeite estético, um acessório decorativo da vida coletiva; é sua pedra angular. A moda terminou estruturalmente seu curso histórico, chegou ao topo do seu poder, conseguiu remodelar a sociedade inteira à sua imagem: era periférica, agora é hegemônica" (LIPOVETSKY, 1989, p.12). A partir da concepção de produtos de moda como bens da cultura material, observamos as relações de identidade que os indivíduos estabelecem com o vestuário e o processo de comunicação que se inicia entre esses indivíduos enquanto pertencentes a grupos sociais e entre estes grupos. Estes produtos de moda atuam como elementos que nos configuram como indivíduos e como grupos ao se constituírem como representações de características, valores e símbolos compartilhados (BARNARD, 2003). Estes produtos atuam como dispositivos de difusão de valores e outras cargas 1 Trabalho apresentado no GT de Historiografia da Mídia, integrante do VIII Encontro Nacional de História da Mídia, 2011. 2 Hélcio Fabri, Desenhista Industrial, Especialista em Marketing Empresarial e Mestrando do Programa de Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná.

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Rastros, restos e vestígios no design de moda1

FABRI, Hélcio (Mestrando)2 Universidade Tuiuti do Paraná - UTP

Resumo: Este trabalho objetiva discutir sobre a questão do “contexto” como articulador do tempo, espaço e memória e revelador de relevantes aspectos socioculturais produtores de sentidos nos estudos de comunicação sobre design de moda. Usando as metodologias para interpretação de imagens sugeridas por Burke, Barthes e Floch, pretende-se uma reflexão sobre a imagem de moda, que além de sua dimensão plástica, cria um sistema gerador de tensões e de sentido. Como objeto desta análise optou-se pela observação da construção de significados de um anúncio publicitário de uma campanha de moda do designer britânico Alexander McQueen. Palavras-chave: memória, contexto, design de moda.

Introdução

A era industrial atual é caracterizada pela produção e pelo consumo de bens

com valores estético-simbólicos. A indústria de moda descaracterizou a função prática

(proteção) do vestuário, convertendo-o em referencial de status e como uma forma de

representação do indivíduo em relação ao meio social em que vive. O produto de moda

(roupas, calçados e acessórios) tornou-se uma forma de expressão e de comunicação

para a diferenciação de indivíduos ou grupos, assim como a interação entre estes. "A

moda não é mais um enfeite estético, um acessório decorativo da vida coletiva; é sua

pedra angular. A moda terminou estruturalmente seu curso histórico, chegou ao topo do

seu poder, conseguiu remodelar a sociedade inteira à sua imagem: era periférica, agora é

hegemônica" (LIPOVETSKY, 1989, p.12).

A partir da concepção de produtos de moda como bens da cultura material,

observamos as relações de identidade que os indivíduos estabelecem com o vestuário e

o processo de comunicação que se inicia entre esses indivíduos enquanto pertencentes a

grupos sociais e entre estes grupos. Estes produtos de moda atuam como elementos que

nos configuram como indivíduos e como grupos ao se constituírem como

representações de características, valores e símbolos compartilhados (BARNARD,

2003). Estes produtos atuam como dispositivos de difusão de valores e outras cargas

1 Trabalho apresentado no GT de Historiografia da Mídia, integrante do VIII Encontro Nacional de

História da Mídia, 2011. 2 Hélcio Fabri, Desenhista Industrial, Especialista em Marketing Empresarial e Mestrando do Programa

de Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná.

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simbólicas na cultura, o que lhes institui um caráter de elemento portador e transmissor

de subjetividade inerente a determinado grupo, configurando-se, aí, como elemento de

construção de identidade, seja no âmbito da individualidade ou da esfera do convívio

social. Sobre isto Hollander comenta:

Em razão de sua enorme base emocional, a moda reflete sempre a índole da história; mas ela não é realmente perfeita como espelho, exceto como indicador temporal (...). Compreender os elementos de importância política imediata (...) pode ajudar a localizar uma moda no tempo” (HOLLANDER, 1996, p.30)

Muitas vezes, o estudo da moda e do vestuário é entendido apenas por um meio

de abordagem icônica, assim relacionando a uma questão meramente estética entre

quem cria e quem se apropria. Desta forma análise e conseqüente leitura fazem com que

a moda pareça descontextualizada dos mecanismos que lhes solicitam a idealização, a

produção e o consumo (CONTI, 2008). Pensar a moda nestes termos arrisca ser

extremamente redutivo. Portanto, não deve se pensar a moda apenas nos termos de

intuição e recepção de um conteúdo estilístico, mas pensar o objeto de moda inserido

em um contexto que revela uma série de fenômenos culturais, produtivos, mediáticos e

consumistas que permitem a produção de sentidos muito importantes.

Se analisarmos a história da moda percebemos as passagens e a mutabilidade

dos diversos códigos estéticos e estilísticos. Conti (2008) descreve que a moda sempre

foi caracterizada pelo “ciclo da moda” e também pelo “processo da moda”. O primeiro

pode ser definido como um lapso de tempo, dividido por fases, que variam da

introdução de uma nova moda até a sua substituição por uma moda sucessiva. O

segundo refere-se por sua vez ao conjunto de influências, interações, trocas, adaptações

e sistematização entre pessoas e instituições que animam o ciclo do início ao fim.

Ao exprimir o espírito do tempo, BARTHES (2009) comenta que a moda é

objeto privilegiado de uma disciplina fortemente diferenciada da roupa, objeto

tecnológico, do ornamento, objeto estético e do costume, objeto de pesquisas

sociológicas. A respeito da evolução histórica da moda, Barthes destaca:

As mudanças de Moda se mostrarão regulares se considerarmos uma duração histórica relativamente longa e, irregulares se reduzirmos essa duração aos poucos anos que precedem o momento no qual estamos situados; regular de longe e anárquica de perto, a Moda parece assim dispor de duas durações: uma propriamente histórica, e a outra que poderia ser chamada de memorizável, porque põe em jogo a memória que uma mulher poder ter das Modas que precederam a Moda o ano (Barthes, 2009, p.435).

Ao aprofundarmos, no sentido cultural, nos estudos sobre a importância da

moda e de seu registro histórico, revelamos uma chave para a compreensão das

informações de nossa cultura. Paul Ricouer (1989) define memória pela materialização

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de um paradoxo fundamental: torna presente uma coisa ausente. No mesmo texto, ele

enfatiza a importância da documentação histórica que marca a transposição para a

escrita da problemática da memória e do testemunho. Ao discutir sobre rastros, vestígios

e memória Barbosa (2007, p.47) destaca que:

O esforço de rememoração e de localização da lembrança é sempre social, já que só se faz por associações culturais inscritas socialmente. A memória é dialógica, uma vez que estabelece relação com o outro e com o tempo, isto é, com o par presença/ausência. É a ausência do presente que produz o passado.

Os meios de comunicação ao documentarem a história constituem-se como

mecanismos de transformação do ausente no presente e, portanto, como lugares

fundadores da memória contemporânea. Por outro lado, ao possuirem o estatuto de

texto, seus registros transformam-se em uma espécie de documento de época, regido

pela convenção de veracidade necessária aos documentos – monumentos de memória

(Barbosa, 2007). Portanto, a análise de documentos históricos de moda e suas

manifestações em textos e imagens se tornam ferramentas importantes para se

reconhecer as dinâmicas sociais do passado, os pensamentos, as ações, os debates, as

mentiras e as verdades com as quais o homem se deparou no transcorrer dos anos.

Barbosa ainda destaca que os lugares que habitamos são os lugares que

produzimos. O homem projetou espaços plurais: físicos, imaginados, representados na

busca incessante da compreensão do significado da sua finitude. Hoje, o ciberespaço

retoma conceitos antigos dos lugares do corpo e da alma, onde há a possibilidade de se

experimentar uma articulação da vida sem a matéria e, logo, uma duração contínua. Se o

espaço é produto das relações sociais, pode se pensar o locus espaço como sendo um

lugar onde os homens desenvolvem convívio, interações, diferenciação e disputas,

construído pela sociedade a partir das trocas simbólicas entre os indivíduos: estamos

diante da noção de espaço social. O espaço é o local das relações.

Iconografia e Iconologia

O registro das memórias de uma cultura pode ser feito por meio de conteúdos

orais, textuais e imagéticos. A sociedade contemporânea é cada vez mais representada

pela visualidade, seja por intermédio de registros fotográficos, anúncios publicitários,

reportagens em jornais ou sites na internet.

Segundo Peter Burke (2004), iconografia e iconologia se apresentam como

recursos metodológicos para interpretação de conteúdos imagéticos. Trata-se de

expressões utilizadas pelos estudiosos de história da arte na escola de Warburg, em

Hamburgo, durante os anos da década de 1920. Erwin Panofsky (1892-1968) estava

entre os pesquisadores deste grupo em seu ensaio publicado em 1939, distinguiu três

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níveis de significado das imagens:

O primeiro desses níveis era a descrição pré-iconográfica, voltada para o “significado natural”, consistindo na identificação de objetos (tais como árvores, prédios, animais e pessoas) e eventos (refeições, batalhas, procissões, etc.). O segundo nível era a análise iconográfica no sentido estrito, voltado para o “significado convencional” (reconhecer uma ceia como a Última Ceia ou uma batalha como a Batalha de Waterloo). O terceiro e principal nível, era o da interpretação iconológica, distinguia-se da iconografia pelo fato de se voltar para o “significado intrínseco”, em outras palavras “os princípios subjacentes que revelam a atitude básica de uma nação, um período, uma classe, uma crença religiosa ou filosófica”. É nesse nível que as imagens oferecem evidência útil, de fato indispensável, para os historiadores culturais” (BURKE, 2001, p. 45).

Panofsky (1955) defendeu a idéia de que a filosofia, o conteúdo intelectual,

bem como a sociedade a qual a obra de arte pertence, são essenciais para interpretação

de suas mensagens, ao contrário do pensamento anterior que enfatizava apenas a

composição ou a cor. Em outras palavras, ao analisarmos uma imagem devemos

entender todo o contexto histórico no qual a mesma foi produzida. A exemplificar esta

metodologia, Burke sugere prestar atenção em detalhes que possam identificar

“significados culturais” (BURKE, 2001, p.49), além de outros textos ou imagens que

possam colaborar na interpretação.

Para Kossoy (2001), com a iconologia obtêm-se o significado das imagens, que

está em suas entrelinhas, além da informação iconográfica. A interpretação da imagem

deve ser alimentada através de outras fontes que possam esclarecer sobre o passado ou

que tragam vestígios sobre a sua criação. Conhecendo-se “o contexto econômico,

político e social, dos costumes, do ideário estético refletido nas manifestações artísticas,

literárias e culturais da época retratada, haverá condições de recuperar micro-histórias

implícitas nos conteúdos das imagens e, assim, reviver o assunto registrado no plano do

imaginário” (KOSSOY, 2001, p.117).

Iconologia nos intertextos de Alexander McQueen

O objeto de análise desta reflexão trata-se de um anúncio publicitário referente à

coleção outono-inverno 2009/2010 designer Alexander McQueen, intitulada “The Horn

of Plenty”. McQueen, até o a data de sua morte em fevereiro de 2010, foi um dos

designers que dominaram a cena da moda mundial e dando início a novos estilos de

silhuetas, utilizando-se da moda e do vestuário como ferramenta de expressão. Nascido

em 1969 e formado pela conceituada St. Martin's College of Art & Design em Londres,

McQueen adquiriu experiência trabalhando com grandes alfaiates ingleses e com a

criação de figurinos, sendo posteriormente contratado pela Givenchy (1997-2001) e

posteriormente pela Gucci.

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Cada coleção e cada desfile era desenvolvidos a partir de um tema, que muitas

vezes podia parecer bastante abstrato, mas que normalmente refletia as inquietações do

momento. McQueen empregava temas não-usuais, que subvertiam regras e

questionavam a realidade, apesar de serem apresentados de forma fantasiosa. Este

tensionamento era uma forma de alertar para os problemas contemporâneos.

Suas coleções traziam referências intertextuais de outras expressões artísticas,

como fotografia, cinema e artes plásticas. Nelas já haviam sido referenciadas as

fotografias do norte-americano Joel Peter Witkin, os filmes de Pasolini, Kubrick,

Buñuel e Hitchcock, as pinturas do artista Jackson Pollock e os sprays cinéticos criados

pela artista alemã Rebecca Horn.

Cabe ressaltar que o termo intertextualidade foi utilizado por Julia Kristeva

(1969) para explicar o que Mikhail Bakhtin, na década de 1920, definia como

dialogismo. Para Bakhtin, a noção de que um texto não subexiste sem o outro, quer

como uma forma de atração ou de rejeição permite que ocorra um diálogo entre duas ou

mais vozes, entre dois ou mais discursos. A noção de dialogismo - escrita em que se lê o

outro, o discurso do outro - remete a outra, explicitada por Kristeva ao sugerir que

Bakhtin, ao falar de duas vozes coexistindo num texto, isto é, de um texto como atração

e rejeição, resgate e repelência de outros textos, teria apresentado a idéia de

intertextualidade. (BARROS; FIORIN, 1999).

Do ponto de vista iconográfico proposto por Panofsky, o anúncio (Fig.1)

apresenta em destaque a figura de duas modelos, ambas morenas, de cabelos presos,

maquiagem suave, porém com batom vermelho carregado nas bocas, que usam vestidos

da versão comercial da coleção de McQueen. A modelo em primeiro plano usa um

vestido com corte clássico, drapeado na parte frontal e que parece ser confeccionado em

lã no padrão pied-de-poule nas cores preto e branco. O ombro se destaca pela aplicação

de duas flores em tecido do mesmo padrão, porém com estampas maiores. Luvas de

couro estilo motociclista se apresentam como acessórios deste look. A modelo que

aparece em segundo plano na imagem, usa um vestido com capuz feito em tecido

listrado nas horizontais, nas cores preta e vermelha. Um cinto de couro preto com

aplicação de argolas metálicas, meias na cor preta e calçados plataforma completam o

look desta modelo. As modelos aparecem fotografadas na frente de um espelho, que

além de refletir imagem, destaca o cenário escuro em que a fotografia foi executada.

A marca Alexander McQueen aplicada na parte inferior direita tem uma função

referencial e cumpre o papel de ancoragem da imagem, comunicando ao leitor que o

anúncio faz referência a uma grife. Na parte central inferior do anúncio aparecem

grafismos, aparentemente feitos a lápis, que sugerem esboços de um projeto

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arquitetônico. Em letras minúsculas posicionadas na vertical, na página esquerda

superior central aparece um texto citando o site da grife AMQ e a informação “Avaiable

at I.T. Xintiandi Shanghai-Seasons Place Beijing” - tratam-se de centros comerciais

localizados na China que comercializam marcas de grife, entre elas Gucci, Dior,

Versace, Kenzo, entre outras. Esta informação nos dá indícios de que o anúncio,

capturado de um site de moda na internet para esta análise, provavelmente foi veiculado

em uma grande revista de moda com edição chinesa.

Para diagramação do anúncio, a foto da modelo em primeiro aparece sangrada

na altura das pernas enquanto a foto da modelo em segundo plano aparece de corpo

inteiro. Porém, a cor do fundo e os grafismos aplicados na parte inferior do anúncio

atrapalham a visualização das pernas e do sapato que a modelo está calçando. As

bruscas passagens cromáticas entre o preto, branco e vermelho reforçam o efeito

dramático e impactante da imagem. O anúncio é espelhado em página dupla e, à

primeira vista, esta característica espelhamento pode parecer apenas uma estratégia de

reforçar a identidade da marca com uma repetição as informações. Também não ocorre

a presença de algum slogan para explicar do que se trata o conceito da coleção. No

entanto, a imagem é carregada de conteúdos polissêmicos que não são explicados por

informações verbais. A partir desse ponto, é possível aprofundar a reflexão, reportando-

se ao novamente a Panofsky e ao modelo iconológico de análise de imagens.

O designer de moda, apesar de ter um vínculo muito estreito com o consumo,

marketing e produção, em suas criações se envolve com uma série de princípios e

elementos relacionados às artes plásticas. Souza (2003, p.33) comenta que “hoje como

ontem, sentado em seu estúdio, o costureiro, ao criar um modelo, resolve problemas de

equilíbrio, de volumes, de linhas, de cores, de ritmos. O estreitamento das fronteiras

entre design de moda e arte aparece na obra de McQueen, que evidenciava aspectos

artísticos em seus trabalhos usando a teatralidade nos desfiles e recursos provocativos

como o choque estético e a subversão. McQueen assumia uma postura artística ao criar

coleções de moda inspiradas em diversos tipos de arte ou movimentos artísticos,

fazendo com a roupa assumisse o papel de comunicar uma mensagem. A respeito disto,

Schulte (2002, p.49) destaca que “no momento inicial da criação, tanto o estilista como

o artista não costumam ter uma preocupação comercial. Há apenas a relação criador-

objeto, por onde passam sentimentos, concepções e ideais, elaborando-se no concreto o

que estava apenas na imaginação”.

McQueen construiu uma reputação internacional com base em apresentações

extravagantes e, muitas vezes, subversivas, que provocavam um tensionamento entre o

que é belo e o que é útil. No universo da moda, a subversão destes valores se efetiva no

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momento em que o designer-artista apresenta suas coleções nos grandes desfiles de

moda, que se realizam anualmente nas semanas de moda de Paris, Londres, Milão e

Nova Iorque. Esta abordagem ganhou expressividade durante a década de 1990 “em

produções de desfile de moda que se comunicam por meio da arte performática”

(Duggan, 2002, p.4). A evolução do desfile rumo à arte performática e que, segundo

McRobbie (1998, p.169), trata-se um “desfile-espetáculo, que liga o mundo da moda ao

da música pop, show business e culto de celebridades”, está relacionado ao que Jameson

(2002, p.28) diz ser característico do pós-modernismo e que se refere ao “apagamento

da antiga fronteira entre a alta cultura e a assim chamada cultura de massa ou

comercial”.

As coleções conceituais apresentadas nos grandes desfiles revelam um

desencontro dos princípios básicos da moda como business. Muitas das peças de

vestuário utilizadas pelas modelos jamais serão produzidas ou comercializadas. A roupa

fica em segundo plano em prol do espetáculo e da mensagem que se deseja transmitir.

Por outro lado, as peças tidas como “vendáveis” não chegam a ser exibidas nos desfiles,

sendo apresentadas nas peças publicitárias que compões as campanhas. Sobre este

aspecto, McQueen comentava em suas entrevistas sobre o desejo das pessoas em ver

nos desfiles, algo que alimentasse a sua imaginação ao invés de ver somente roupas.

Bordieu (2002) comenta que algumas das grandes maisons que fecharam com a

morte do criador, ou sobreviveram apenas por alguns anos, não foram capazes de

assegurar, de forma duradoura um mercado simbólico. Também destaca que existem

criadores que marcaram época, pois a cada geração surgem dominadores, aqueles que

na história relativamente autônoma da moda, dão inicio ao um novo estilo. Tudo se

transforma em luta e, neste campo, a luta pela dominação é conduzida para alcançar o

poder de constituir e impor símbolos de distinção legítimos em matéria do vestuário:

“Fazer moda” não é somente desclassificar a moda do ano anterior, mas, desclassificar os produtos daqueles que faziam moda no ano anterior, portanto, desapossá-los de sua autoridade sobre a moda. As estratégias dos recém-chegados, que são também os mais jovens, tendem a rejeitar para o passado os mais velhos e estes colaboram com a translação do campo que desembocará em sua desclassificação (...) pelas as estratégias que utilizam para assegurar sua posição dominante que é também a mais próxima do declínio. (BOURDIEU, 2002, p. 138)

A coleção de moda objeto desta reflexão foi intitulada “The Horn of Plenty” e

nela, McQueen traz referências intertextuais das obras ao pintor Ercher, de criações dos

estilistas Givenchy e Dior, do artista performático Leigh Bowery, da mitologia, de

documentários de cinema, entre outras.

Na mitologia greco-romana, “The Horn of Plenty” (o chifre da fartura) trata-se

de uma simbologia relacionada à fertilidade, à riqueza e à abundância. É representada

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por vaso em forma de chifre contendo flores e frutas em seu interior. O chifre também

pode representar um símbolo fálico, em que o exterior representa o sagrado masculino e

seu interior, quando cheio, simboliza o útero como sagrado feminino.

No desfile desta coleção McQueen apresentou uma passarela, revestida com

fragmentos de espelhos, que refletia a imagem das modelos durante o desfile e o

revestimento negro da forração do teto. Esta por sua vez emoldurava uma montanha de

sucata, composta por móveis, objetos de decoração, pneus, calotas, latas de

refrigerantes, todos pintados na cor preta, o que dava um efeito teatral, dramático e

sombrio ao cenário do desfile. Sugeria-se com isso uma crítica ao consumismo no auge

de uma crise econômica mundial, em que algumas das tradicionais grifes de moda

decretaram a sua falência, como a de Lacroix em 2009. O cenário do desfile de

McQueen lembra algumas passagens do documentário sueco Surplus: terrorized into

being consumers (2003) dirigido pelo italiano Erik Giandini. Usando a linguagem dos

vídeos clips, o filme faz uma crítica ao consumismo e traça um paralelo entre o

capitalismo vs socialismo, refletindo o jeito de viver da sociedade contemporânea. Desta

forma, coloca em discussão questões como a vida em sociedade, a ordem estabelecida,

as necessidades humanas, o consumismo e o comprometimento do ecossistema

terrestre. Gandini reafirma Freud que entende o homem como um ser “fadado à

insatisfação”, pois está sempre buscando, sempre à procura, sem nunca se

complementar.

Voltando às reflexões a respeito da coleção, “The Horn of Plenty” é a crítica

que McQueen fez à abundância de produtos industrializados, ao consumismo, ao

descarte destes produtos após a utilização e as questões relacionadas à ecologia. Além

da cenografia, a iluminação, a trilha sonora, o ritmo dos passos das modelos na

passarela, a sequência de entrada dos looks no desfile assumiam, neste caso, um papel

essencial que permite a criação de uma ambiência que fortalece a mensagem, que o

designer procurava transmitir.

Os editoriais de moda veiculados sobre a Semana de Moda em Paris em março

de 2009, comentaram que McQueen apresentou a imagem sensual das femmes fatales

dos filmes noir usando vestidos “retrôs” em preto e vermelho. Em meio aos destroços

de objetos sucateados, as modelos desfilavam com roupas que pareciam satirizar a moda

do século XX, parodiando a abundância de tecidos do New Look de Christian Dior e os

ternos de twed de Chanel intercalados com arlequins da Commedia del Arte, mescladas

com criações anteriores de sua própria autoria. O desfile apresentou uma produção

teatral espetacular que sugeria uma crítica ao papel na moda na sociedade em um

momento de crise econômica mundial, a pior da história após 1929.

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Nos looks conceituais apresentados no desfile da coleção percebemos que as

algumas estampas pied-de-poule se transformam em pássaros que lembram os jogos

óticos nas obras do artista M.C.Ercher (1898-1972) com suas construções geométricas e

perspectivas impossíveis. Na área da indústria têxtil, o pied-de-poule trata-se de um

tecido utilizado desde o século XIX com uma padronagem ou estampa xadrez regular,

geralmente em duas cores, cujo formato lembra um pé de galinha, característica que dá

o nome, em francês, ao estilo do padrão. Se o desenho da padronagem for maior, o

tecido é chamado de pied-de-coq (pé de galo) (PEZZOLO, 2007).

Nas cabeças, acessórios feitos com sucata combinavam com maquiagem que

explorava bocas superdimensionadas onde o batom vermelho escuro contrastava com a

face pálida das modelos. Uma referência a extravagância do designer e artista

performático Leigh Bowery (1961-1994) que explorava em suas obras elementos da

estética punk, fetiche e sadomasoquismo, revelando trabalhos inspiradores para a moda

da década de 1980.

A campanha publicitária da coleção comercial outono-inverno de McQueen foi

veiculada quase cinco meses após a realização do desfile e poucos dias antes dos

lançamentos das próximas coleções primavera-verão 2010. Comparada ao desfile de

lançamento da coleção, a campanha publicitária é bem menos impactante e dramática.

A comunicação a respeito do conceito da coleção se dá através da

figuratividade da imagem, configurada pelos elementos plásticos e simbólicos que a

constituem. Retomando as teorias de Panofsky e Floch, os efeitos de sentido se

manifestam através da fotografia das modelos, das roupas que foram escolhidas para as

fotos, da produção, dos retoques efetuados em programas de tratamento de imagens, dos

esboços que foram colocados no anúncio, dos sistemas cromáticos aplicados, dos

posicionamentos e relações dimensionais entre outros. Na imagem do anúncio há uma

categoria topológica, página esquerda vs direita, elementos diagramados na parte

superior vs inferior, primeiro plano vs segundo plano, figura vs fundo que são

configurados através das relações entre os elementos que compõem a página.

A campanha combina, entre outras peças gráficas, o anúncio de página dupla

(Fig.1) com anúncios de uma página (Fig. 2). É importante destacar este aspecto porque

nos anúncios simples, os fundos trazem a referência dos espelhos fragmentados usados

no piso passarela do desfile, o que não acontece no anúncio de página dupla, objeto

desta análise.

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Figuras 1 e 2 – Anúncios publicitário da coleção “The Horn of Plenty”, do designer Alexander McQueen (2009)

Na foto do anúncio aparece a top model canadense Tara Gill, fotografada por

David Burton. A busca das informações contidas nas entrelinhas, sugeridas por Kossoy,

revela que mesma modelo é usada para apresentar os dois looks comerciais da coleção

utilizados neste anúncio. A duplicação da imagem da modelo na diagramação e

espelhamento das páginas descreve aquilo que é conhecido como estrutura em abismo,

técnica narrativa utilizada originariamente pela pintura nas artes plásticas e depois

assimilada pela literatura e pelo cinema. O conceito de estrutura em abismo vem da

heráldica e consiste de uma estrutura visual formada pela repetição de elementos que a

compõem em diferentes dimensões, ou por um elemento menos solto dentro de uma

estrutura maior, sugerindo uma leitura de profundidade, de abismo. A fotografia é um

meio de limitação espacial, feito através do enquadramento, em que o espaço maior

(realidade) é fragmentado em um menor (foto) e isso, por si só, já revela a existência de

uma estrutura em abismo. Umberto Eco já chamara a imagem fotográfica de “espelho

congelante”, sobre cuja superfície congela-se a imagem refletida quando o objeto

desaparece. (ECO, 1989, p.33).

A utilização de espelhos na cena fotografada é uma das formas de se criar áreas

distintas dentro de um mesmo enunciado. É o que ocorre na imagem do anúncio de

McQueen. Por se tratar da mesma modelo vestindo looks diferentes, fica evidente que as

fotografias foram feitas em momentos distintos e posteriormente editadas em algum

software de manipulação de imagens. Cada look foi fotografado frontalmente com a

modelo posicionada de forma oblíqua a um espelho, revelando detalhes existentes na

parte das costas. Na montagem da imagem do anúncio, a imagem frontal da modelo foi

repetida, criando a partir daí um primeiro nível de abismo. O reflexo da modelo no

espelho e a aplicação da fotografia do outro look usando os mesmos recursos e

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finalmente, o espelhamento da imagem da página esquerda na direita, reforçam a

estrutura em abismo citadas. A construção da imagem sugere a convergência de

perpendiculares para pontos de fuga, localizados no centro e nas laterais da página.

O excesso de elementos figurativos estabelecido pela construção em abismo tornando

esta tensão o principal elemento do discurso. Os espelhos se apresentam como abismos

porque refletem parte da cena fotografada de outro ponto de vista. Desta maneira agem

como pontos de fuga para o olhar, mas também fazem o leitor retornar para a cena

principal, onde se encontra o ponto de vista do fotógrafo.

O efeito ótico provocado pela estrutura em abismo dos espelhos combinado

com as padronagens das estampas pied-de-poule e as largas listras horizontais das

roupas nos remetem novamente às obras de Ercher e suas construções caleidoscópicas.

Cabe citar o filósofo Bachelard e sua reflexão sobre a simbologia das águas e o mito de

Narciso. Para ele as águas são um espelho aberto às profundidades do eu. Por este

motivo, Narciso, ao olhar a sua imagem refletida na água, tem uma visão idealizada de

sua imagem. A água serve de espelho, sempre aberto às profundezas do Eu, pois o

reflexo do Eu sugere uma idealização. Narciso diante das águas tem uma revelação de

sua identidade e de sua dualidade (BACHELARD 1989, p.24). Já para Eco o espelho

demarca as fronteiras entre o simbólico e o imaginário. A magia dos espelhos reside no

fato de que sua extensividade-intrusividade não somente nos permite olhar melhor o

mundo, mas também ver-nos como os outros nos vêem os outros. (ECO, 1989, p.18).

Estas considerações reforçam o poder simbólico do espelho como provedor da

sabedoria e conhecimento, espaço mágico da reciprocidade das consciências e

instigador das reflexões sobre os enigmas existenciais do homem.

Considerações finais

Os estudos sobre comunicação têm na pesquisa histórica uma importante

ferramenta para o entendimento dos contextos socioculturais de uma sociedade. A

televisão, as revistas especializadas, os jornais, as rádios, os sites da internet, fazem

parte das mídias que oferecem registros memoráveis para compreensão de épocas

passadas, presentes ou futuras. Não é preciso estar fisicamente presente para se obter o

conhecimento a respeito dos fatos relacionados à moda. Os meios de comunicação

modificam a geografia da vida social e, consequentemente, o modo de vivenciar certas

experiências fazendo com que o homem contemporâneo não se reconheça mais em um

único lugar ou em um único modo de se vestir.

A obra do designer de moda McQueen é repleta de referências intertextuais.

O anúncio utilizado nesta reflexão tem como destaque os jogos de espelhos que, dentro

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da narrativa fotográfica delimitam as fronteiras entre o Eu e o Outro, o real e o

representado, o material e o imaterial. No caso de McQueen podemos entender o

anúncio, além de comunicar atributos pertinentes a roupa e a marca, faz uma crítica à

sociedade contemporânea, consumidora de produtos de moda, valorizadora de marcas

(imagem). Por outro lado nos faz refletir sobre o papel da moda, e as conseqüências de

um consumo descontrolado e os prejuízos ao ecossistema (realidade). Cabe citar que

Arlindo Machado classificara de “ilusão especular” o efeito causado pela imagem

fotográfica, lembrando que a fotografia, “desde os primórdios de sua prática, tem sido

conhecida como o ‘espelho do mundo’, só que um espelho dotado de memória”

(MACHADO, 1984, p.10).

Interpretações como estas só são possíveis ao investigarmos as entrelinhas das

informações contidas na imagem e em que situações ela foi produzida. A iconografia e a

iconologia, complementadas por outras metodologias de análise da imagem se

apresentam como ferramentas indispensáveis para entender o contexto sócio-cultural

dos acontecimentos relacionados à moda em nossa sociedade.

Referências

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