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ÁREA DO CONHECIMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL HABILITAÇÃO EM JORNALISMO JOELDINE MOTTA DE ANDRADE JORNALISMO HUMANIZADO E A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS: VALORES- NOTÍCIA NO DOCUMENTÁRIO EDIFÍCIO MASTER, DE EDUARDO COUTINHO CAXIAS DO SUL 2017

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ÁREA DO CONHECIMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

JOELDINE MOTTA DE ANDRADE

JORNALISMO HUMANIZADO E A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS: VALORES-NOTÍCIA NO DOCUMENTÁRIO EDIFÍCIO MASTER, DE EDUARDO COUTINHO

CAXIAS DO SUL 2017

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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

JOELDINE MOTTA DE ANDRADE

JORNALISMO HUMANIZADO E A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS: VALORES-NOTÍCIA NO DOCUMENTÁRIO EDIFÍCIO MASTER, DE EDUARDO COUTINHO

CAXIAS DO SUL

2017

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JOELDINE MOTTA DE ANDRADE

JORNALISMO HUMANIZADO E A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS: VALORES-NOTÍCIA NO DOCUMENTÁRIO EDIFÍCIO MASTER, DE EDUARDO COUTINHO

Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, da Universidade de Caxias do Sul.

Orientadora: Prof.ª. Me. Marliva Vanti Gonçalves

CAXIAS DO SUL 2017

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JOELDINE MOTTA DE ANDRADE

JORNALISMO HUMANIZADO E A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS: VALORES-NOTÍCIA NO DOCUMENTÁRIO EDIFÍCIO MASTER, DE EDUARDO COUTINHO

Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, da Universidade de Caxias do Sul.

Aprovado em ___ /___ / 2017

Banca Examinadora ___________________________________ Prof.ª. Me. Marliva Vanti Gonçalves Universidade de Caxias do Sul - UCS ___________________________________ Prof.ª Dr. Alessandra Paula Rech Universidade de Caxias do Sul – UCS ___________________________________ Prof. Me. Jacob Raul Hoffmann Universidade de Caxias do Sul - UCS

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Dedico este trabalho à minha família, aos meus amigos, a quem acredita que o Jornalismo é uma arte: a arte de contar histórias.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, antes de tudo, a Deus, por ter me dado o dom da vida e guiar os

meus caminhos, nunca me desamparando e sempre me estendendo a mão. A Deus,

minha gratidão também, pela vida dos meus pais e familiares, pelo lar que ele me

fez nascer, cercado de amor, proteção e de experiências com Ele.

Aos meus pais, Ivonildo e Jaqueline, que desde pequena me incentivaram a

estudar e sempre me apoiaram em todos os momentos, até aqui. Sem o apoio deles,

o amor, o esforço e a compreensão, com certeza eu não chegaria aonde cheguei.

Agradeço as infinitas orações, aos conselhos dados e a todas as renúncias feitas,

para que eu pudesse viver e realizar o meu sonho.

Em especial, agradeço ao meu esposo e melhor amigo Lucas Caziraghi,

pela pessoa que ele é. Um marido carinhoso, prestativo, que soube me compreender

nos momentos mais difíceis dessa jornada e que nunca se negou em me ajudar. Por

todas as incansáveis vezes que me levou e me buscou na universidade, fazendo

chuva ou sol, ele estava lá. Por sempre me incentivar e por me inspirar todos os dias

a ser uma pessoa melhor. Ele é um presente de Deus na minha vida, o futuro pai

dos meus filhos e com quem eu desejo passar o resto dos meus dias. Te Amo, meu

Amor!

Agradeço com carinho à minha orientadora, Marliva Vanti Gonçalves, pela

dedicação e compreensão, mesmo nos momentos mais difíceis desse processo,

pelas palavras de sabedoria, pelas correções minuciosas, pelo incentivo e por ser a

principal “parceira” na construção desse trabalho.

Às minhas amigas, que encontrei graças ao Jornalismo, Ana Paula Seerig,

Franciane Perachi e Karine Bergozza, companheiras nessa jornada.

Agradeço a todos, familiares, colegas e amigos que, de alguma forma,

contribuíram para que eu chegasse ao final desse processo tendo elaborado algo do

qual eu pudesse me orgulhar. Muito obrigada!

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“Os jornalistas são os trabalhadores manuais, os

operários da palavra. O jornalismo só pode ser

literatura quando é apaixonado”.

Marguerite Duras

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RESUMO

A presente monografia analisa de que forma são empregados os valores-notícia no documentário Edifício Master do diretor e documentarista Eduardo Coutinho. Por meio da Análise de Conteúdo e da Análise de Discurso (método de apoio), foram decupadas nove cenas presentes no documentário, listado em 2015 como um dos 100 melhores filmes brasileiros, pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Edifício Master é uma obra prima, que aborda questões de grande relevância social: gravidez na adolescência, violência, aborto e desemprego. A base teórica para essa pesquisa consiste nos estudos nas áreas de Jornalismo e Cinema, no que se refere ao surgimento do documentário. Pretende-se contribuir para os estudos em Comunicação e apresentar uma maneira diferenciada de trabalhar com notícias.

Palavras-chave: Jornalismo. Jornalismo Literário. Documentário. Valores-notícia. Eduardo Coutinho.

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LISTA DE FOTOGRAMAS

Fotograma 1 - Capa do DVD do documentário Edifício Master.................................63

Fotograma 2 - Dona Vera, primeira entrevistada do documentário...........................66

Fotograma 3 - Sérgio, síndico do Master...................................................................68

Fotograma 4 - Renata, jovem negra e sonhadora......................................................69

Fotograma 5 - Daniela, professora de inglês, com sociofobia...................................73

Fotograma 6 - Roberto, camelô e desempregado......................................................77

Fotograma 7 - Alessandra, mãe e garota de programa.............................................80

Fotograma 8 - Maria Pia, espanhola e empregada doméstica...................................86

Fotograma 9 - Suze, ex-dançarina e cantora.............................................................91

Fotograma 10 - Eugênia, solteira e poetisa............................................................... 94

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Elementos de categorização de análise (parte1) ................................... 97

Quadro 2 - Elementos de categorização de análise (parte 2) .................................101

Quadro 3 - Elementos de categorização de análise (parte 3) .................................105

Quadro 4 - Valores-notícia nas cenas analisadas (parte 1) ....................................121

Quadro 5 - Valores-notícia nas cenas analisadas (parte 2) ....................................121

Quadro 6 - Valores-notícia nas cenas analisadas (parte 3) ....................................122

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 12

1.1 MÉTODOS DE ANÁLISE DE CONTEÚDO E ANÁLISE DE DISCURSO ......... 16

2 JORNALISMO ....................................................................................................... 19

2.1 A ARTE DE INFORMAR PARA TRANSFORMAR ............................................. 19

2.2 ESSÊNCIA E HISTÓRIA .................................................................................... 20

2.3 O QUE É NOTÍCIA? ........................................................................................... 24

2.3.1 Os Valores-notícia ......................................................................................... 25

3 A EXPERIÊNCIA LITERÁRIA NO JORNALISMO ............................................... 30

3.1 NEW JOURNALISM ........................................................................................... 30

3.2 JORNALISMO LITERÁRIO ................................................................................ 32

4 DOCUMENTÁRIO ............................................................................................... 38

4.1 A ORALIDADE COMO ESSÊNCIA NO DOCUMENTÁRIO ............................... 38

4.2 GÊNEROS E FORMATOS ................................................................................. 39

4.3 HISTÓRIA ........................................................................................................... 40

4.4 JORNALISMO HUMANIZADO: A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS ................. 46

4.5 O DOCUMENTÁRIO DE EDUARDO COUTINHO ............................................. 50

4.5.1 Edifício Master ............................................................................................... 55

5. METODOLOGIA ................................................................................................ 61

5.1 DECUPAGEM .................................................................................................... 62

5.2 APRESENTAÇÃO DO DOCUMENTÁRIO ......................................................... 63

5.2.1 Vera ................................................................................................................. 64

5.2.2 Sérgio ............................................................................................................. 67

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5.2.3 Renata .......................................................................................... .................. 69

5.2.4 Daniela ........................................................................................................... 72

5.2.5 Roberto .......................................................................................................... 77

5.2.6 Alessandra ..................................................................................................... 79

5.2.7 Maria Pia ......................................................................................................... 85

5.2.8 Suze ................................................................................................................ 91

5.2.9 Eugênia .......................................................................................................... 94

5.3 ANÁLISE ........................................................................................................... 96

5.3.1 Valores-notícia no documentário Edifício Master .................................... 110

5.3.2 Cenas analisadas e os seus valores-notícia ............................................. 121

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 124

REFERÊNCIAS ............................................................................................... .... 128

APÊNDICE ............................................................................................................. 133

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1 INTRODUÇÃO

O que seria do homem sem a comunicação verbal? Afinal, a palavra, escrita

ou falada, é uma das características que nos diferencia das outras espécies. O papel

da comunicação é fazer com que haja uma troca de informações entre as pessoas

para a sua integração na sociedade. A comunicação possibilita adquirir mais

conhecimentos e obter novas experiências de vida. Segundo Bill Kovach e Tom

Rosenstiel, autores do livro Os Elementos do jornalismo (2003), os relatos orais

podem ser considerados uma espécie de pré-jornalismo. A partir dessa ideia, pode-

se entender como o Jornalismo surgiu.

O Jornalismo é o responsável por satisfazer um dos mais básicos impulsos

da humanidade: “a necessidade intrínseca de saber o que se passa para além da

sua própria experiência direta” (KOVACH; ROSENSTIEL, 2003, p. 5). Nesse sentido,

o Jornalismo funciona como uma ponte que liga as pessoas aos acontecimentos da

atualidade, permitindo que fiquem “em dia” com os principais episódios do mundo

contemporâneo, que participem ativamente de grupos sociais e que se sintam

“reasseguradas de que através dos vários produtos do jornalismo não estão a perder

algo” (TRAQUINA, 2005, p. 20).

Hoje, em pleno século XXI e com todos os recursos e tecnologias existentes,

o Jornalismo já passou por diversas mudanças; porém, nem tudo mudou: a

objetividade jornalística permanece como prática dos jornalistas. Ao observar o

cenário atual do Jornalismo convencional, com toda a sua lógica industrial de

“leads1”, pirâmide invertida2, pautas, etc, surgiu o interesse em estudar um modelo

do Jornalismo pouco discutido entre os estudantes de comunicação: o Jornalismo

Literário.

O excesso de trabalho e a falta de tempo do repórter não facilitam o

processo de construção de notícias com características literárias. Além disso, os

recursos e espaços nas mídias não permitem que haja abertura para informações

1 Famosa fórmula objetiva que prega a necessidade de o texto jornalístico responder no primeiro parágrafo, as principais perguntas da reportagem: Quem? O quê? Como? Onde? Quando e Por quê? (PENA, 2006, p. 15). 2 Modo com que os jornalistas hierarquizam os fatos: inicialmente apresentam os mais importantes,

que são seguidos pelos menos “atraentes” ao público (TRAQUINA, 2005, p. 59).

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mais aprofundadas. Nesse cenário, a imprensa perde a oportunidade de contar

histórias de vidas que poderiam despertar, nos leitores, uma identificação que vai

além do simples fato cotidiano. Histórias que poderiam gerar empatia e fazer com

que o leitor se identificasse com a experiência do outro.

A preocupação com o Jornalismo cada vez mais “engessado” fez com que

fosse escolhido como objeto de estudo dessa monografia, o documentário Edifício

Master (2002), de Eduardo Coutinho. O gênero documentário foi escolhido por

possibilitar aprofundar o que é relatado, e por encaixar-se também nas

características do Jornalismo Literário. Os documentários de Coutinho podem ser

categorizados como documentários de representação social, que segundo Nichols

(2008, p. 27), também são chamados de filmes de não ficção. Eles retratam o mundo

comum a partir de diferentes pontos de vista que o espectador pode ou não aceitar.

“Os documentários de representação social proporcionam novas visões de um

mundo comum, para que as exploremos e compreendamos [...]”.

Para Aronchi de Souza (2004), é próprio do documentário aprofundar

temas, inclusive cotidianos, de forma a destacar sua importância social, histórica,

econômica, política ou científica; apresentar o máximo de informações sobre o

mesmo tema; diversificar ambientes de entrevistas/imagens; propor ao espectador

uma nova visão de mundo, a partir da realidade de outras culturas e analisar

criticamente o tema e tentar convencer o espectador de o que ele assiste é real.

Um dos aspectos do documentário é mostrar o cotidiano de “pessoas

comuns”, de forma que haja identificação entre personagem e espectador. Quando

um documentário é produzido por jornalistas, estes têm a vantagem de estarem

habituados a — ou terem sido preparados para — contar histórias. O historiador

Jacques Le Goff, aponta que os relatos pessoais são vistos como narrativas dos

sujeitos, artífices da própria história. A oralidade consiste na expressão de

lembranças desse sujeito que aciona a sua capacidade psíquica de rememorar,

propriedade humana de conservar certas informações sobre o passado (LE GOFF,

1996). Documentários costumam demonstrar, mesmo que implicitamente, a empatia

do documentarista em relação a seus personagens. Essa identificação pessoal é

uma característica marcante nas produções de Eduardo Coutinho, já que ele é

mestre em respeitar e ouvir a fala do outro.

Em Edifício Master, o documentarista e sua equipe passaram um mês

contando histórias de moradores de um edifício em Copacabana, no Rio de Janeiro.

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Histórias simples, nenhum furo de reportagem, mas que sensibilizam quem as ouve

com atenção e, querendo ou não, fazem com que quem as ouve, se identifique, de

alguma forma, com as mesmas. A partir dessa reflexão, desenvolveu-se a questão

norteadora da presente pesquisa: A vida das pessoas e as suas histórias contadas

no documentário Edifício Master de Eduardo Coutinho podem ser entendidas a partir

dos valores-notícia? Ou seja, a intenção é verificar se essas histórias de “gente

como a gente” podem ser entendidas a partir de valores-notícia do Jornalismo. Para

nortear esse estudo, foram formuladas cinco hipóteses, sendo elas:

- O Jornalismo Literário possibilita ao jornalista expressar suas emoções e

demonstrar que se importa com o outro, desapegando-se, assim, da “objetividade”,

um dos ideais da profissão jornalística.

- O documentário toma por base os preceitos do Jornalismo Literário.

- O documentarista Eduardo Coutinho respeita o discurso do outro e não

interfere nas falas de seus entrevistados, fazendo com que não haja indução da fala.

- Coutinho dá voz aos “esquecidos”, aqueles que nunca seriam chamados

para dar sua opinião em um veículo de comunicação, garantindo crédito e espaço a

“pessoas comuns” que não são especialistas em nenhum assunto específico.

- As histórias de vida das pessoas, contadas por Coutinho em Edifício

Master, possuem valores-notícia na medida em que são histórias que interessam ao

espectador, sob determinado ponto de vista.

Essa monografia também busca cumprir alguns objetivos, sendo o principal

deles analisar as histórias contadas no documentário Edifício Master de Eduardo

Coutinho e verificar se nelas constam valores-notícia do Jornalismo. Os objetivos

específicos tratam de conceituar e caracterizar questões indispensáveis para a

pesquisa. Para cumprir essa etapa, são tratados temas como: Jornalismo,

Jornalismo Literário, notícia, valores-notícia e documentário. Além disso, é contada

parte da história do documentarista Eduardo Coutinho, com foco em sua obra

Edifício Master. Para a reflexão sobre o documentário, foram selecionadas e

analisadas cenas das histórias de vida, contadas por moradores do edifício, a fim de

verificar se há valores-notícias presentes nessas histórias.

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Para se alcançar uma pesquisa satisfatória, se percorreu um caminho em

seis capítulos, sendo o primeiro deles, esta introdução. No capítulo 2 foram

retratados conceitos e caracterizações sobre o Jornalismo, sua história e seus

produtos mais notáveis; também buscou-se embasamento teórico para a notícia e os

valores-notícia. No capítulo 3 foi contada a história do movimento New Journalism3 e

do Jornalismo Literário, mostrando que esse gênero do Jornalismo proporciona

visões mais amplas da realidade e dá profundidade aos relatos. No capítulo 4 foi

contada a história do documentário, seus formatos e linguagens. Além disso, foi

relatada parte da história do documentarista Eduardo Coutinho, com foco no

documentário Edifício Master. No capítulo 5 foi apresentada a Metodologia, mais

especificamente, as fases dois e três da Análise de Conteúdo (AC), proposta por

Laurence Bardin. Por conseguinte, foi realizada a decupagem de algumas cenas do

documentário Edifício Master, como também a análise final desse material.

A fim de identificar se as histórias contadas no documentário Edifício Master,

de Eduardo Coutinho, podem ser entendidas como valores-notícia e, por

conseguinte, informar, essa pesquisa irá utilizar procedimentos qualitativos. A

pesquisa qualitativa, segundo Laurence Bardin, no livro Análise de Conteúdo (2004),

corresponde a um procedimento mais intuitivo e adaptável. Já de acordo com

Minayo (1995, p. 21-22), a pesquisa qualitativa busca encontrar respostas para

questões subjetivas dos seres humanos, portanto, ela “se preocupa, nas ciências

sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado, ou seja, trabalha

com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes”.

Outra característica da pesquisa qualitativa é ter como base a interpretação sobre o

objeto de estudo.

A pesquisa quantitativa lida com números, usa modelos estatísticos para explicar os dados, e é considerada pesquisa hard. [...] Em contraste, a pesquisa qualitativa evita números, lida com interpretações das realidades sociais, e é considerada pesquisa soft (BAUER; GASKELL, 2008, p. 22-23, grifo do autor).

Quanto ao método, que segundo Antônio Carlos Gil (1999, p. 26), “[...] pode-

se definir como o caminho para se chegar a determinado fim”, foram utilizadas para

essa monografia, a Análise de Conteúdo (AC) e a Análise de Discurso (AD), junto de

pesquisa bibliográfica como procedimento metodológico. Essas escolhas ajudam na

3 Novo Jornalismo (tradução nossa).

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comprovação ou refutação das hipóteses e na resposta à questão norteadora dessa

pesquisa.

Mesmo assim, será necessário, antes, esclarecer o que são os valores-

notícia e quais devem ser explorados com mais atenção durante a pesquisa. Esses

e outros esclarecimentos somente são possíveis por meio da pesquisa na literatura

existente sobre o assunto, pois além de respaldar conceitos, “a principal vantagem

da pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de

uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar

diretamente”. (GIL, 1999, p. 71). A pesquisa bibliográfica está presente em todas as

etapas do processo, pois é a partir da consulta a livros e materiais de referência que

o pesquisador consegue identificar o problema de pesquisa e quais conceitos e

abordagens irá aplicar. A pesquisa bibliográfica pode ser definida como:

[...] um conjunto de procedimentos que visa identificar informações bibliográficas, selecionar os documentos pertinentes ao tema estudado e proceder à respectiva anotação ou fichamento das referências e dos dados dos documentos para que sejam posteriormente utilizados na redação de um trabalho acadêmico (STUMPF, 2005, p. 51).

Ao mesmo tempo em que o pesquisador faz uso do material já existente

sobre seu tema, contribui para o aumento desse acervo e, consequentemente, com

a construção de futuras pesquisas.

A produção do conhecimento não é um empreendimento isolado. É uma construção coletiva da comunidade científica, um processo continuado de busca, no qual cada nova investigação se insere, complementando ou contestando contribuições anteriormente dadas ao estudo do tema. A formulação de um problema de pesquisa relevante exige, portanto, que o pesquisador se situe nesse processo, analisando criticamente o estado atual do conhecimento em sua área de interesse [...] (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSNAJDER, 1999, p. 180).

1.1 MÉTODOS DE ANÁLISE DE CONTEÚDO E ANÁLISE DE DISCURSO

De acordo com artigo intitulado Análise de Conteúdo, de Wilson Corrêa

Fonseca Júnior, “[...] a Análise de Conteúdo (AC), em concepção ampla, se refere a

um método das ciências humanas e sociais destinado à investigação de fenômenos

simbólicos por meio de várias técnicas de pesquisa” (FONSECA JÚNIOR, 2005,

apud DUARTE; BARROS, 2005, p. 280).

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Bardin (2004) explica que a Análise de Conteúdo enriquece as chances de

descoberta e exploração na pesquisa e, também, pode ser utilizada para verificação,

no sentido de confirmação ou não, de determinadas hipóteses. A autora defende

que as duas funções podem coexistir. Durante a AC é descoberto o conteúdo da

mensagem. Para a realização do método, Bardin explica que a AC organiza-se em

três fases cronológicas distintas: a pré-análise; a exploração do material e o

tratamento dos resultados, inferências e interpretações.

A pré-análise, ainda de acordo com a autora, consiste na organização em si.

Aqui, devem-se escolher os documentos a serem analisados, formular as hipóteses

e os objetivos, e ainda elaborar indicadores que, depois, possam fundamentar a

interpretação final. Também na pré-análise, consta a leitura flutuante – que deve ser

o primeiro passo de todos, e que consiste no contato com os documentos para

conhecê-los e para deixar-se invadir por impressões e orientações. Para essa

pesquisa, a pré-análise foi realizada, assim como citou Bardin, a partir da formulação

das hipóteses, objetivos e questão norteadora.

A exploração do material, ainda segundo Bardin (2004), é o momento em

que o pesquisador seleciona os recortes do material que será analisado e, então,

ocorre a categorização do mesmo. Neste caso, a exploração foi feita por meio das

histórias contadas no documentário Edifício Master; sendo que essas histórias foram

agrupadas nas categorias; e as categorias foram representadas por valores-notícia,

que foram questionados e/ou confirmados. Nessa segunda fase da AC foi utilizado

como método de apoio a Análise de Discurso. Ainda de acordo com Laurence Bardin

(2004, p. 214), todo discurso, ou um conjunto de discursos, é determinado por

condições de produção e por um sistema linguístico. “Desde que se conheçam as

condições de produção e o sistema linguístico, pode-se descobrir a estrutura

organizadora ou processo de produção, através da análise da superfície semântica e

sintáctica deste discurso”.

Para Martin W. Bauer e George Gaskell, é proveitoso pensar a Análise de

Discurso como tendo três temas principais:

[...] uma preocupação com o discurso em si mesmo; uma visão da linguagem como uma forma de ação; e uma convicção na organização retórica do discurso. Em primeiro lugar, então, ela toma o próprio discurso como seu tópico. O termo “discurso” é empregado para se referir a todas as formas de fala e textos (BAUER; GASKELL, 2008, p. 247).

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A Análise de Discurso permite perceber como se fala, como se dá a

interação entre emissor e receptor de uma mensagem; identifica o receptor;

interpreta o discurso produzido pelos outros sem desconsiderar a subjetividade do

pesquisador. Na última etapa da Análise de Conteúdo ocorre o tratamento dos

dados. A inferência e a interpretação são o resultado da pesquisa, em que o

pesquisador tem uma visão geral sobre o trabalho e, então, analisa quais objetivos

foram alcançados e qual resposta foi dada à questão norteadora.

Por fim, no capítulo 6, a pesquisadora expõe suas percepções e

considerações finais sobre a pesquisa realizada.

Sendo assim, por sua ousadia no conteúdo, caráter inovador e por suas

contribuições ao Jornalismo, acredita-se que, de alguma forma, o documentário a

partir de relatos de “pessoas comuns”, trará uma oxigenação às práticas

jornalísticas. Além disso, esse trabalho pretende contribuir para o campo de estudo

da comunicação, especificamente para o Jornalismo, Jornalismo Literário e para o

Cinema. Essa pesquisa também pode se constituir em ferramenta de consulta para

futuros pesquisadores das áreas mencionadas.

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2 JORNALISMO

Há inúmeras definições sobre Jornalismo; algumas poéticas, outras

ideológicas. Definir Jornalismo não é uma tarefa simples, é como definir paixão; algo

simples e específico, mas ao mesmo tempo tão abrangente. Muitos conceitos foram

elaborados, no decorrer dos anos, por incontáveis estudiosos da área. O fato é que

o fazer jornalístico não é algo exato ou invariável, e sim uma prática que depende de

diversos fatores, como o tipo de público ao qual é direcionada a notícia, a visão de

mundo do repórter que escreve determinada matéria, a autonomia do veículo de

comunicação e as normas sociais em que esse está inserido.

Para Ricardo Kotscho (2001), Jornalismo não é uma ciência exata. É algo

extremamente difícil de explicar, pois não possui fórmulas. Segundo ele, definir

Jornalismo é tão difícil quanto definir o amor. Já para Nelson Traquina (2005, p. 19),

o Jornalismo “é a vida, tal como é contada nas notícias de nascimentos e de mortes

[...] É a vida em todas as suas dimensões, como uma enciclopédia”.

2.1 A ARTE DE INFORMAR PARA TRANSFORMAR

Dentre tantas teorias e conceitos que explicam o que é Jornalismo, Clóvis

Rossi (1994, p.7), se restringe a dizer que simplesmente é a arte de informar para

transformar. Além disso, o autor conceitua Jornalismo como uma batalha pela

conquista das mentes e corações de seus alvos: leitores, telespectadores ou

ouvintes. “[...] uma batalha geralmente sutil e que usa uma arma de aparência

extremamente inofensiva: a palavra, acrescida, no caso da televisão, de imagens”.

Todos esses conceitos atribuídos ao Jornalismo fazem refletir que o

Jornalismo pode ser considerado uma arte, não uma ciência exata. E, na maioria

das vezes, quem escolhe essa profissão, escolhe por amor e não por dinheiro ou

fama. O Jornalismo, instiga, questiona, incomoda e muitas vezes, comove e

emociona. Jornalismo é a arte de contar histórias.

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2.2 ESSÊNCIA E HISTÓRIA

Com toda a tecnologia que cerca o século XXI, o acesso à informação se

tornou algo fácil e rápido de se obter. Porém, antes do surgimento do Jornalismo, as

informações não eram um “bem comum”. No século XVII, por exemplo, o saber, o

acesso a informações, a documentos e o direito à pesquisa eram restritos à Igreja e

às universidades (MARCONDES FILHO, 2002). Hoje, a situação é outra, as

informações são transmitidas em tempo real e chegam a um alcance surpreendente.

Felipe Pena (2015) fala sobre o surgimento do Jornalismo. Ele afirma que não há

consenso sobre sua origem e, assim como Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2003),

acredita que ele possa ter começado junto com o advento da verbalização.

Para muitos pesquisadores, ele começa junto com a primeira comunicação humana, ainda na pré-história. Mas outros localizam o início muito mais tarde, entre os séculos XVIII e XIX, quando suas características modernas já podem ser identificadas. Ou seja, quando os jornais já possuem periodicidade, atualidade, universalidade e publicidade (PENA, 2015, p. 2).

O Jornalismo surgiu com o intuito de informar, ou seja, de trazer

esclarecimento, tanto político quanto ideológico; de expor, de acabar com o

monopólio do segredo e oferecer ao público a verdade sobre os fatos

(MARCONDES FILHO, 2002). Porém, a verdade possui inúmeros significados e o

que é verdade para um, pode não ser para o outro. Acredita-se, que assim como

mudam os olhares sobre a vida, igualmente os seres humanos possuem valores e

crenças sobre aquilo que tomam por “verdade”. Se as pessoas tivessem

pensamentos iguais, sentimentos iguais, olhares semelhantes sobre a vida e o modo

de estar nela, talvez o mundo vivesse sem conflitos. Acontece, porém, que o ser

humano carrega consigo um mundo que é unicamente seu. Logicamente, nesse

mundo particular os conceitos pessoais mudam. E essa mudança acontece pela

própria natureza das pessoas, que são diferentes umas das outras; e pelas suas

experiências, que também são únicas.

Assim, a resposta é mergulhar, profundamente, nos fatos que são

apresentados. Fugir do senso comum e criar opiniões próprias. Entendendo assim,

que a verdade depende do modo como cada pessoa encara o mundo. O filósofo

alemão Friedrich Nietzsche, na sua obra Sobre verdade e mentira no sentido extra-

moral (2007, p. 48), utiliza-se de uma linguagem quase poética para tratar da

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discussão sobre a construção da verdade pelo homem, esta verdade que rege seu

mundo pelo universo da razão: “[…] as verdades são ilusões que foram esquecidas

enquanto tais, metáforas que foram gastas e que ficaram esvaziadas do seu sentido,

moedas que perderam o seu cunho e que agora são consideradas, não já como

moedas, mas como metal”. Para o filósofo, a verdade é um ponto de vista. O autor

não define nem aceita a definição da verdade, porque segundo ele, não se pode

alcançar uma certeza sobre a definição do oposto da mentira. Entretanto, cabe ao

Jornalismo, o papel de buscar e relatar a verdade. Para cumprir essa tão difícil

tarefa, os jornalistas, no seu cotidiano, podem considerar a verdade como o

fundamento da realidade, como a confirmação ou checagem dos dados que

instituem um fato como verdadeiro.

Contudo, ao considerar a verdade jornalística como representação da

realidade, corre-se o risco de distorcer os fatos, especialmente quando, no ritmo

industrial de produção das notícias, há problemas na apuração das informações.

Para que possam se denominar como expressão da verdade, ou produto crível, os

manuais dos jornais “O GLOBO” e “O Estado de S. Paulo” estabelecem como

pressuposto que o jornalista deve ouvir duas os mais fontes ligadas à informação

que se pretende publicar. A recomendação se justifica na medida em que, na

maioria dos casos, os repórteres não estão presentes no momento em que ocorre o

fato a ser relatado. Para os autores Bill Kovach e Tom Rosenstiel, a veracidade, ou

seja, um medidor para se verificar o quanto é verdadeira uma afirmação, é definida

como o primeiro e mais confuso princípio da atividade de produção de notícias.

[...] os próprios jornalistas nunca tiveram uma noção clara do que querem dizer com veracidade. Por sua própria natureza, o jornalismo é reativo e prático, não filosófico ou introspectivo. Não existe muita reflexão escrita dos jornalistas sobre esses assuntos, e o pouco que existe não é lido pela maioria dos profissionais do ramo. As teorias do jornalismo ficam nas cabeças dos acadêmicos, e grande parte dos jornalistas sempre desvalorizou o ensino profissional (KOVACH; ROSENSTIEL, 2003, p. 66).

Para os autores, o mais realista seria entender a verdade jornalística como

um processo, uma caminhada contínua na direção do entendimento. Apesar de não

haver um consenso sobre como o jornalista deve procurar a verdade, torna-se cada

vez mais importante concluir com as recomendações do Código de Ética, aprovado

em 1987 no Congresso Nacional dos Jornalistas. Ao tratar da conduta profissional, o

artigo 7º estabelece: "O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade dos

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fatos, e seu trabalho se pauta pela precisa apuração dos acontecimentos e sua

correta divulgação" (BARBEIRO; LIMA, 2002, p.161).

A história do Jornalismo, como já dito anteriormente, não pode ser datada

com exatidão. Mas é no período Neolítico, quando o homem descobre a agricultura e

a pecuária e, consequentemente, deixa de ser nômade, que acontece a formação

das civilizações, o que demanda uma maior organização em termos de

comunicação. LIMA (2013, p. 16) esclarece que “[...] a complexidade dessas

sociedades criou a necessidade de transmitir e registrar informações de forma mais

perene que a verbal. Vários povos criaram, então, sistemas de registros gráficos”.

Apesar dessa necessidade, é somente com a invenção dos tipos móveis,

atribuída ao alemão Johannes Gutemberg4 – que ocorreu no século XVI, passando a

ser amplamente utilizada no século XVIII – que se deu início a uma revolução na

história do Jornalismo. “Na onda da emergente indústria do livro, surge uma nova,

que cresce entre os restos de papel e as folhas soltas que dão origem a pequenas

publicações periódicas. Nasce a imprensa” (PENA, 2005, p. 28).

Ainda que muitos autores afirmem que o nascimento do Jornalismo ocorreu

concomitantemente à Revolução Francesa, entre 1789 a 1799, há quem aponte que

sua emersão se deu nos primórdios do século XVII, nos pubs (casas públicas,

estabelecimento comercial onde se servem bebidas alcoólicas), bares e cafés de

Londres. E é exatamente nos cafés de Londres, no começo do século XVII, que Bill

Kovach e Tom Rosenstiel situam um possível início do que eles chamam de

moderno Jornalismo. Lá, os donos dos pubs estimulavam as conversas com

viajantes, pedindo que eles contassem o que tinham visto pelo caminho.

Na Inglaterra, havia cafés especializados em informações específicas. Os primeiros jornais saíram desses cafés por volta de 1609, quando tipógrafos mais atrevidos começaram a recolher informações, fofocas e discussões políticas nos próprios cafés, depois imprimindo tudo (KOVACH; ROSENSTIEL, 2003, p.37).

Segundo os autores, aqueles que ligam o surgimento do Jornalismo ao

período da insurreição que ocorreu na França, o fazem porque com a queda do

poder da monarquia e da aristocracia, a população conquistou o direito à

4 “Apesar da atribuição a Gutemberg, seus verdadeiros criadores foram os chineses. O primeiro livro impresso conhecido é do ano de 868 e a invenção do tipo móvel foi aproximadamente em 1040. Ambos em território chinês” (PENA, 2005, p. 27).

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informação. Além da passagem de uma cultura oral para a escrita, é a invenção dos

tipos móveis para impressão que vai possibilitar o advento do Jornalismo moderno.

Entretanto, a oralidade continuará sendo protagonista do processo jornalístico, não

só na relação com as fontes como na configuração de novas tecnologias midiáticas,

como o rádio e a televisão. Só que, na história da imprensa, os críticos costumam

fazer uma divisão cronológica em modelos explicativos, que refletem as

transformações do espaço público. Dito isso, Ciro Marcondes Filho, no livro

Comunicação e jornalismo: a saga dos cães perdidos (2002, p. 48) traça um quadro

evolutivo de cinco épocas distintas:

• Pré-história do Jornalismo: de 1631 a 1789. Caracterizada por uma

economia elementar, produção artesanal e forma semelhante ao livro.

• Primeiro Jornalismo: 1789 a 1830. Caracterizado pelo conteúdo literário e

político, com texto crítico, economia deficitária e comandado por escritores, políticos

e intelectuais.

• Segundo Jornalismo: 1830 a 1900. Chamada de imprensa de massa,

marca o início da profissionalização dos jornalistas, a criação de reportagens e

manchetes, a utilização da publicidade e a consolidação da economia de empresa.

• Terceiro Jornalismo: 1900 a 1960. Chamada de imprensa monopolista,

marcada por grandes tiragens, influência das relações públicas e fortes grupos

editoriais que monopolizam o mercado.

• Quarto Jornalismo: de 1960 em diante. Marcada pela informação eletrônica

e interativa, como ampla utilização da tecnologia, mudança das funções do

jornalista, muita velocidade na transmissão de informações, valorização do visual e

crise da imprensa escrita.

Pela classificação de Marcondes Filho, pode-se perceber que a influência da

literatura na imprensa está mais presente nos chamados primeiro e segundo

Jornalismos. Está se falando justamente dos séculos XVIII e XIX, quando escritores

de prestígio tomaram conta dos jornais e descobriram a força do novo espaço

público. Não só comandando as redações, mas, principalmente, determinando a

linguagem e o conteúdo dos jornais.

A partir do século XX, houve uma mudança importante no formato da notícia.

Foi com o advento do lead, técnica utilizada até hoje, que tinha como meta dar “uma

aura” de cientificidade ao trabalho jornalístico, que segundo Traquina (2005, p.59,

grifo do autor), “[...] as notícias passaram a ser tratadas como um produto, uma

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forma nascente de ‘empacotamento’”. É possível observar que os veículos de

comunicação ainda usam o lead como prática quase que obrigatória em suas

notícias (tanto em jornais impressos ou online, como em TV e principalmente em

rádio), porém, é mais um recurso que torna a produção ágil, que corresponde às

condições de trabalho do repórter, do que uma maneira atrativa de comunicar.

2.3 O QUE É NOTÍCIA?

A função do Jornalismo é basicamente comunicar, buscar e divulgar

informações. Sendo assim, a matéria-prima principal do Jornalismo é a notícia. Ela é

a essência das reportagens, sejam elas curtas ou longas; feitas para impresso,

rádio, televisão ou internet. Lage (2006, p. 17) define notícia como “o relato de uma

série de fatos, a partir do fato mais importante ou interessante; e, de cada fato, a

partir do aspecto mais importante ou interessante”. O principal meio de transmissão

de tais notícias é o Jornalismo, como apontado por Alsina (2009). Segundo o autor,

o Jornalismo, ao mesmo tempo, cria e mantém atualizadas as informações.

Portanto, ao jornalista cabe expor os fatos ocorridos de modo que fiquem claros ao

público e, principalmente, possibilitem a ele formar uma opinião.

Toda essa ânsia por conhecimento e informação que é inerente ao ser

humano, como também a necessidade do homem de saber o que se passa ao seu

redor, resulta na busca diária por notícia. “Todas as manhãs, as pessoas que

querem saber o que está acontecendo no mundo leem o jornal, escutam a rádio,

veem a televisão, ou navegam pela internet. Esses indivíduos consomem uma

mercadoria especial: as notícias” (ALSINA, 2009, p. 9). Porém, assim como ocorre

com o Jornalismo, conceituar notícia, não é uma tarefa simples.

Hohenberg (1981, p. 68) afirma que é impossível conceituar a notícia porque

o conceito varia em função do veículo. "Para os matutinos é o que aconteceu ontem;

para os vespertinos, o fato de hoje. Para as revistas, o acontecimento da semana

passada. Para as agências noticiosas, emissoras de rádio e televisão, é o que

acabou de ocorrer". Por isso, ele nos oferece apenas as "características" da notícia:

"[...] precisão, interesse e atualidade. A essas qualidades deve ser acrescentada

uma quarta, a explicação. Qual a vantagem de um noticiário preciso, interessante e

atual, se os leitores não o entendem?", indaga Hohenberg (1981, p. 69).

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Nos primórdios do Jornalismo, as notícias resultavam de antigas formas de

se contar histórias (CRUZ, 2000). Com o tempo, isso foi mudando e inúmeras

questões passaram a interferir na definição do que pode ou não ser considerado

notícia. Um dos fatores que contribuiu para essa interferência é o avanço na rapidez

da transmissão de informações. O mundo, cada vez mais globalizado, tornou mais

difícil fornecer a notícia em primeira mão e com exclusividade, gerando maior

competitividade e provocando mudanças sobre aquilo que determina um fato ser

notícia ou não, ou seja, modificaram-se os valores-notícia.

2.3.1 Os Valores-notícia

Ao Jornalismo “é reivindicada a autoridade e legitimidade de exercer um

monopólio sobre o poder de decidir a noticiabilidade dos acontecimentos e das

problemáticas” (TRAQUINA, 2005, p. 181, grifo do autor). Ou seja, quanto maior o

grau de noticiabilidade, maior a capacidade de um assunto virar notícia e propagar-

se pelos meios de comunicação. Os critérios de noticiabilidade podem ser

explicitados de uma forma mais contundente por meio dos valores-notícia, descritos

como “uma série de fatores que determinam a seleção das notícias” (ALSINA, 2009,

p. 157).

Os valores-notícia são um elemento básico da cultura jornalística que os

membros dessa comunidade partilham. Bourdieu (1997, p. 12) escreveu que os

jornalistas têm óculos particulares pelos quais determinam os valores-notícia. “(...)

através dos quais veem certas coisas e não outras, e veem de uma certa maneira as

coisas que veem. Operam uma seleção e uma construção daquilo que é

selecionado”. Traquina (2005, p. 63), por sua vez, afirma que os valores-notícia são

um aspecto fundamental da cultura profissional do jornalista “e determinam se um

acontecimento, ou assunto, é susceptível de se tornar notícia, isto é, de ser julgado

como merecedor de ser transformado em matéria noticiável”.

No que se refere ao conteúdo da notícia, Wolf (1995, p. 180-183) indica os

critérios substantivos, que se referem a dois aspectos: a importância e o interesse da

notícia. Em relação à importância da notícia, o autor elenca:

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a) grau e nível hierárquico dos envolvidos no fato: quanto mais

visibilidade a pessoa ou instituição tiver, mais facilmente vira notícia.

Celebridades, políticos, atletas, elite (pessoas que detêm privilégios na

sociedade, grupo minoritário pertencente à classe alta, economicamente falando),

entre outros, estão sempre presentes nas páginas dos jornais. A elite e os políticos,

principalmente, estampam tais páginas desde os primórdios da notícia, ou seja,

desde o momento em que o ser humano passou a ter curiosidade e a dar

importância ao que se passa na vida das pessoas com maior “status” e prestígio na

sociedade. Isso porque a notoriedade/visibilidade da pessoa ou instituição é mais

um valor-notícia. Percebe-se que, muitas vezes, acontecimentos se mostram

relevantes não pelo acontecimento em si, mas pelas pessoas que estavam

envolvidas nos fatos. Traquina (2005) explica que, por exemplo, o que o Presidente

do país faz é importante porque o Presidente é importante. A posição social da

pessoa é importante como fator de noticiabilidade.

b) impacto sobre a nação e sobre o interesse nacional: quanto mais

interferir em questões de nível nacional e/ou quanto mais proximidade geográfica e

cultural, mais um fato pode virar notícia.

De acordo com Wolf (1995), as notícias podem ter afinidade cultural caso

refiram-se a acontecimentos que entram na esfera normal de experiência, tanto dos

jornalistas, quanto do público. Isto é, se a comunidade compartilha de pensamentos

e linguagens.

c) quantidade de pessoas envolvidas no fato: quanto mais pessoas

envolvidas, mais visibilidade o fato tem. Porém, predomina a proximidade com o

público-alvo do veículo de comunicação, ou seja, um acidente local com duas

vítimas tem maior potencial noticioso do que um acidente com cinco vítimas em

outras cidades, por exemplo.

Outro fator fundamental dentro dos critérios de noticiabilidade é a

proximidade. Segundo Traquina (2005), este valor-notícia é relevante principalmente

em termos geográficos. Muitas vezes, um fato que é notícia em uma determinada

cidade é irrelevante para outra.

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d) relevância e significatividade do acontecimento quanto à evolução

futura de uma determinada situação: quanto mais o fato inicial gerar

desdobramentos que a imprensa possa cobrir, mais pode ser considerado notícia

(de acordo com os demais valores-notícia que apresentar).

Este valor-notícia interfere em mais critérios de noticiabilidade. Conforme

explica Traquina (2005, p. 80), ele “[...] responde à preocupação de informar o

público dos acontecimentos que são importantes porque têm um impacto sobre a

vida das pessoas”. Ainda de acordo com Wolf (1995), o fato deve ser significativo

dentro do contexto cultural. Tal valor mostra que um fato pode se tornar notícia

dependendo de seu impacto, seja essa notícia sobre algumas pessoas, sobre o

país, ou mesmo sobre o mundo. Quanto mais impactante, mais visibilidade terá o

fato.

Além desses critérios indicados por Wolf, outros estudiosos também

elencaram valores-notícia. Conforme Alsina (2009, p. 185) há uma série de critérios

de noticiabilidade que indicam uma análise mais atual da imprensa:

a) a novidade, a modernidade do fenômeno, as últimas tendências: os

meios de comunicação apontam as mudanças de tendências de uma

sociedade;

b) a distinção entre normalidade e anormalidade, acordo e

discrepância, no tocante à orientação da conduta individual e sua

valorização: quando valores sociais são julgados e ocorre a discussão

sobre sua aceitação ou não aceitação;

c) violência, agressividade e dor: acidentes, crimes e catástrofes são de

grande interesse da imprensa;

d) enfrentamento: a mídia costuma retratar com entusiasmo a rivalidade

entre partes de interesse em um mesmo tema, como times de futebol ou

candidatos políticos;

e) enriquecimento individual: com frequência, a imprensa lista os mais

ricos de determinado país ou época, ou a evolução financeira de

determinadas pessoas públicas;

f) crises e seus sintomas: o Jornalismo é observador; repórteres e

comentaristas prestam esclarecimentos ao público em momentos de crises;

g) exoticidade: quanto maior o choque cultural, mais noticiável o fato é.

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Já em relação ao interesse sobre a notícia, Golding e Elliot (apud WOLF,

1995, p. 184) listam quatro critérios de noticiabilidade:

a) histórias de pessoas comuns que vivem situações atípicas ou

histórias que envolvam a privacidade de figuras públicas;

b) histórias em que há troca de papéis;

c) histórias de interesse humano;

d) histórias de feitos heroicos.

A necessidade de se pensar sobre critérios de noticiabilidade surge diante

da constatação prática de que não há espaço nos veículos informativos para a

publicação ou veiculação da infinidade de acontecimentos que ocorrem no dia-a-dia.

Frente a um volume tão grande de matéria-prima, é preciso escolher qual

acontecimento é mais merecedor de adquirir existência pública como notícia.

Selecionados os fatos que serão transmitidos ao público, basta estruturá-los para

que possam ser devidamente noticiados. Os métodos e processos de seleção são

descritos em duas teorias do Jornalismo: gatekeeper e agenda-setting.

A teoria da agenda setting defende que a imprensa dita o que as pessoas

devem considerar relevante e em qual ordem de prioridade estes assuntos devem

ser debatidos. Segundo Pena (2005), diante de tantos fenômenos, a imprensa acaba

sendo um mecanismo que indica o que é realmente importante ou não. Essa teoria

se assemelha, de diversas formas, aos estudos sobre os gatekeepers. O termo,

nesse contexto, significa “selecionador”. Nos meios de comunicação, cabe a um

indivíduo, ou a um grupo, a decisão de deixar passar ou de bloquear uma

informação. As decisões do gatekeeper também têm como base uma série de

critérios. Porém, levam-se mais em conta quesitos organizacionais, como a

eficiência, a produção de notícias e a rapidez, do que a avaliação individual da

noticiabilidade.

Segundo Traquina (2005), a teoria do gatekeeper ganhou relevância no

campo jornalístico em 1950, quando David Manning White publicou um estudo em

que acompanhou, por uma semana, um jornalista de um jornal de porte médio norte-

americano e analisou quais motivos levavam aquele jornalista a aceitar ou a recusar

notícias que chegavam à redação. Ainda segundo o autor, White concluiu que as

decisões eram subjetivas e arbitrárias. Porém, com o avanço dos estudos sobre a

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comunicação jornalística, constatou-se que a interferência individual do jornalista

não dependia unicamente da sua intenção.

Mesmo ficando clara a importância dos valores-notícia, é importante

ressaltar que não são apenas eles que definem o que será notícia, mesmo

considerando que um fato que apresenta o maior número desses elementos tem

mais chances de ser noticiado. Apesar de muitas redações possuírem um manual

que aponta alguns dos critérios acima, no cotidiano a seleção é feita de forma rápida

e natural, quase automática, e consideram-se outros fatores, próprios da rotina das

empresas de comunicação. Portanto, mesmo quando uma notícia apresenta a maior

parte dessas características, ela pode não ser publicada ou transmitida, pois o

processo produtivo ainda depende do ambiente de trabalho, do repórter que irá fazer

a matéria e das informações obtidas por fontes.

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3 A EXPERIÊNCIA LITERÁRIA NO JORNALISMO

Muito se discute se o Jornalismo pode ser literatura. A mera junção das

palavras “Jornalismo” e “literatura” pode parecer controversa, por se tratarem, à

primeira vista, de gêneros tão diferentes. Marcelo Magalhães Bulhões (2007), no

livro: Jornalismo e literatura em convergência, traz como parece ser improvável o

relacionamento entre esses dois mundos, após se debruçar separadamente sobre a

realização literária, que se mescla, muitas vezes, à fantasia; e sobre a realização

jornalística, que procura a verdade absoluta como ideal. Mesmo assim, ele ressalta

que a convivência acontece. “[...] por mais que se imaginasse o contrário, jornalismo

e literatura não ficariam estranhos um ao outro. Ambos tramariam modos sinuosos e

desconcertantes de convivência” (BULHÕES, 2007, p. 26).

Antonio Olinto (2008), no livro: Jornalismo e Literatura, logo no primeiro

capítulo de sua obra já declara que o Jornalismo tem as mesmas possibilidades que

a literatura de produzir obras de arte. Escritores como George Orwell e Ernest

Hemingway já haviam trazido a fluência da literatura para o Jornalismo no início do

século XX, mas foi na década de 60, nos Estados Unidos, que nasceu um

movimento revolucionário no que tange ao âmbito jornalístico-literário, batizado de

New Journalism – o “Novo Jornalismo”.

3.1 NEW JOURNALISM

No decorrer da história do Jornalismo, o formato das notícias sofreu

transformações, originando variados gêneros e ramificações. Um desses gêneros é

o movimento New Journalism, identificado também por muitos autores como

Jornalismo Literário. O New Journalism surgiu nos Estados Unidos na década de

1960 como forma de ruptura às fórmulas impostas pela industrialização da

informação. Segundo LIMA (1993), o movimento começou quando alguns jornalistas

verificaram que não bastava tentar captar o real de maneira linear, lógica. A isso era

necessário somar-se a experiência vital de o repórter lançar-se a campo aberto, nos

cenários sobre os quais escreveria, para melhor sentir a realidade também no que

tem de subjetiva, imaterial.

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O novo jornalismo traz à luz dos holofotes o mesmo timbre de sensualidade, de mergulho completo, corpo e mente, que outros meios de expressão da contracultura, como o cinema underground, estavam incorporando. Assim, suas reportagens têm calor, vida, rostos, nomes (LIMA, 1993, p. 46).

Ainda segundo o autor, a grande revolução do New Journalism foi o estilo da

escrita, o qual se apropriou de quatro recursos técnicos do realismo social: o ponto

de vista, símbolos do cotidiano, os diálogos e a construção cena-a-cena, sendo que

o primeiro foi o que mais fugiu das regras tradicionais do Jornalismo, que defendem

que os fatos devem ser apresentados sem qualquer pessoalidade. Outro ponto

importante sobre o novo gênero foi o lançamento de um romance de não-ficção

escrito por Truman Capote. A sangue frio é considerado um dos mais importantes

trabalhos do New Journalism. A obra foi publicada em capítulos na revista The New

Yorker em 1965, e se transformou em livro em 1966, sendo esse um revés para

aqueles que achavam que o Novo Jornalismo ia se esgotar como uma moda.

O romance conta a história de dois assassinos de uma família nos Estados

Unidos e foi através de uma pequena notícia no New York Times, que Capote ficou

sabendo do crime e se dispôs a investigar a história. Devido a sua ousadia e

inovação, o livro, A sangue frio, é uma obra que “abriu portas” para que diversos

repórteres explorassem, anos após, novas formas de renovar e revigorar os

conteúdos do Jornalismo.

Ao final dos anos 1970, segundo Edvaldo Pereira Lima (2004, p. 206), “[...] o

vigor do New Journalism fenece”. Tal declínio foi atribuído ao excesso de narrativas

e à diminuição das transformações bruscas enfrentadas pela sociedade, por

exemplo, o fim do movimento hippie. A maior herança deixada por ele foi a

comprovação “[...] de que a melhor reportagem, no sentido de captação de campo e

fidelidade para com o real, pode combinar-se muito bem com a melhor técnica

literária” (LIMA, 2004, p. 211).

Convém lembrar também, que o New Journalism deu apenas novo formato

ao Jornalismo Literário, que sempre existiu, pois, “[...] repórteres rebeldes sempre

procuraram, ao longo da história, manter viva a chama da reportagem mais solta,

criativa, provocante, tirando da literatura e de outras formas de compreensão e

expressão do mundo, inspirações renovadoras” (LIMA, 1993, p. 51-52). A partir daí,

ainda de acordo com o autor, surge uma nova fase do Jornalismo Literário, que

aproveita o legado do New Journalism, mas que também inova, trazendo

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particularmente “[...] a construção por cenas, a escolha mais variada de perspectiva -

angulação, o aproveitamento mais dinâmico do diálogo e das vozes dos

personagens e o uso de detalhes significativos do ambiente” (LIMA, 2004, p. 207).

3.2 JORNALISMO LITERÁRIO

Jornalismo Literário é uma expressão que aparece com uma gama de

significados, indo desde explicações operacionais até reflexões filosóficas. Para

Pena (2006), o Jornalismo Literário é uma narrativa de não-ficção produzida e

revelada com recursos da literatura. Esse gênero rompe as correntes do lead e

potencializa os recursos do Jornalismo, proporcionando visões amplas da realidade

e dando profundidade aos relatos. A respeito disso, Belo (2006, p. 43) ressalta que

“[...] nem toda não-ficção é jornalismo, mas todo o jornalismo tem que ser, por

princípio, não-ficcional”. Ou seja, o Jornalismo tem sua base na realidade e a ela tem

que se manter fiel.

Alguns escritores e jornalistas defendem a postura de que Jornalismo e a

literatura se diferenciam apenas pela questão do estilo. É o que acredita Cristina

Ponte (2004). “A diferença entre jornalismo e literatura está em grande parte no

estilo e na forma com que apresentam essa referência ao real” (PONTE, 2004, p. 19-

20). Outros definem Jornalismo como um gênero da literatura, como é o caso do

crítico literário Alceu Amoroso Lima (1990). Para ele, o Jornalismo é classificado

como um gênero literário em si. No seu livro O jornalismo como gênero literário, o

autor, em primeiro lugar, apresenta um estudo dos gêneros literários, a fim de

afirmar, depois, que o Jornalismo é um deles. Tal posicionamento causa polêmica se

levarmos em consideração as definições de gêneros jornalísticos pesquisados por

Luiz Beltrão e, também, por José Marques de Melo5.

O professor e pesquisador Edvaldo Pereira Lima classifica o Jornalismo

Literário como uma modalidade que apresenta recursos oriundos do universo da

5 Os gêneros podem ser definidos, basicamente, em três categorias: Informativa (que especifica gêneros como notícia e nota), Opinativa (que especifica gêneros como artigo, editorial, crônica e crítica) e uma última categoria, que apresenta divergência entre os autores, que é a Interpretativa, (que especifica gêneros como a reportagem com estrutura de textos interpretativos), segundo Melo (1992) e Beltrão (1980).

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literatura, ou seja, recursos narrativos que foram desenvolvidos pela literatura de

ficção. Lima define Jornalismo Literário como uma modalidade da prática da

reportagem de profundidade e do ensaio jornalístico que se utiliza de recursos de

observação e redação com origem ou inspiração na literatura. As principais

características dessa modalidade são a imersão (o mergulho do repórter no universo

da história) e a voz autoral (a presença do estilo de produção próprios do repórter).

Além dessas, há o uso de simbologias e metáforas e, principalmente, a

humanização, ou seja, as histórias são contadas e vistas sob uma dimensão

humana e nessa abordagem, as pessoas não são simples fontes.

A possibilidade de abordar o Jornalismo Literário de uma forma humanística

é o que o afasta da abordagem tradicional do Jornalismo contemporâneo. A

pesquisa do tema e a coleta de informação feita pelo repórter na rua e não pelo

computador, é o que Lima chama de imersão, ao entender a presença do repórter

para uma vivência com suas fontes, o que facilita a humanização da produção

jornalística.

A literatura é a arte da criação verbal, da livre imaginação, mesmo que

baseada nos fatos reais. Desenvolve-se nas bases da dualidade entre a razão e a

emoção. O Jornalismo tem, em suas bases, o compromisso de retratar a realidade.

Mas, a ideia de ficção e não-ficção não pode ser tomada como única fonte para essa

diferença. Com diversas características interrelacionadas, parece possível afirmar

que as convergências textuais entre o Jornalismo e a literatura são frequentes e

trazem mais união que diferença, além do que essas relações exercem múltipla

influência. Gustavo de Castro (2002), no livro: Jornalismo e Literatura: a sedução da

palavra, traz outras aproximações e recuos entre Jornalismo e literatura.

Enquanto o jornalismo pretende oferecer uma visão objetiva, fiel ao mundo dos fatos que descreve, a literatura procura apresentar apenas um recorte verossímil. Nem sempre a literatura, por sua vez, é metáfora, versão indireta da realidade, assim como nem sempre é uma janela aberta sobre o mundo. Também há jornalismo praticado com efeito mistificador, tendencioso e falso. Encontramos jornalistas que inventam fatos em suas reportagens ou que tratam certos episódios como se fossem contos de fada. O texto jornalístico permite que várias pessoas (além do repórter ou do redator) possam nele intervir, alterando-o tantas vezes queiram, sendo por fim, o resultado de uma produção coletiva. O texto literário permite, por sua vez, diversos níveis de relação no interior do próprio texto, produzindo meta-narrações, explorando diversas camadas de significação, criando efeitos de realidade (CASTRO; GALENO, 2002, p. 17).

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Mas, se é necessário falar em diferenças, a questão mais apropriada entre

Jornalismo e literatura que melhor define esse dilema é entender a função de cada

um deles. “A principal finalidade do jornalismo é fornecer aos cidadãos as

informações de que necessitam para serem livres e se autogovernar” (KOVACH;

ROSENSTIEL, 2003, p. 31). Já em literatura, a estética é o elemento central que

orienta o autor na construção do texto. Ainda segundo os autores, a preocupação do

jornalista é com a informação do real, com o reportar e o recortar a realidade. O

argumento que distancia Jornalismo e literatura, na maioria das discussões sobre o

tema, é a ideia da objetividade e exatidão que o Jornalismo contemporâneo

incorporou.

Conforme Pena (2006), o Jornalismo, que deveria ser uma profissão ligada

às causas da coletividade, vem se transformando, salvo raras e boas exceções, em

um palco de futilidades e exploração do grotesco e da espetacularização. Sem

mencionar a “frieza” que muitos jornalistas vêm adotando ao escreverem suas

matérias. Afinal, eles foram ensinados que devem ser imparciais, indiferentes,

neutros, dotados da tal “objetividade jornalística”. O termo ‘objetividade jornalística’

se repete em diversos livros sobre noções e técnicas de reportagem. Os jornalistas

aprendem, em sua formação, que devem sintetizar a trajetória de apuração e escrita

das reportagens. A regra também é incentivada no mercado de trabalho. “Esse laço

obrigatório com a informação objetiva vem dizer que, qualquer que seja o tipo de

reportagem (interpretativa, especial, etc.), impõe-se ao redator o 'estilo direto puro',

isto é, a narração sem comentários, sem subjetivações” (SODRÉ; FERRARI, 1986,

p. 11).

Já Kotscho (2001) é contra o que determina a objetividade jornalística. Para

ele, o leitor tem o direito de saber o que pensa, de que lado está aquele que lhe

escreve – é uma informação a mais para que ele possa tirar suas próprias

conclusões. O autor ainda afirma que não há como o repórter ficar insensível frente

aos fatos – nem deve. Afinal, ele é, antes de mais nada, um ser humano igual aos

seus leitores, e precisa transmitir não só as informações, mas também as emoções

dos acontecimentos que está cobrindo. “Informação e emoção são as duas

ferramentas básicas do repórter, e ele terá que lutar sempre consigo mesmo para

saber dosá-las na medida certa em cada matéria” (KOTSCHO, 2001, p. 32).

Pode-se dizer, a partir dos pensamentos de Pena e Kotscho, que para se

fazer um Jornalismo de qualidade, em especial no gênero do Jornalismo Literário, é

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necessário ser e demonstrar ser “mais humano”, ou seja, dentre tantas coisas, ser

mais humano é se livrar de todo e qualquer preconceito, deixar-se sensibilizar com a

história do outro. Eliane Brum é uma jornalista gaúcha, escritora e documentarista.

Autora de obras que lhe renderam dezenas de prêmios nacionais e internacionais,

apaixonada por literatura, cinema e política. Suas produções são carregadas de

elementos literários. No seu livro “A menina quebrada e outras colunas de Eliane

Brum”, ela diz: “Eu escrevo sobre gente, mas quem não escreve sobre gente? Volta

e meia alguém diz que faço ‘matérias humanas’. Mas seria possível alguém fazer

‘matérias inumanas’?” (BRUM, 2013, p. 13-14). O Jornalismo se torna mais humano

na medida em que, no lugar de fazer entrevistas, os repórteres “saem a campo para

vivenciar de peito aberto a realidade de seus personagens. Convivem com eles dias,

semanas, meses” (LIMA, 1993, p. 47).

Para Brum (2013), os termos New Journalism e/ou Jornalismo Literário são

classificados como “bom jornalismo”, a reportagem que não reduz o mundo, que

busca captar palavras, silêncios, hesitações, texturas e gestos. Detalhes únicos que

enriquecem o texto, que fazem com que o leitor imagine a cena, desloque-se no

tempo, no espaço e se emocione. Ela defende que a boa matéria é feita na rua. “A

reportagem é o exercício de se despir de si para alcançar o outro. E isso se faz

carne a carne”. E diz mais: “[...] o bom jornalismo se aplica a tudo o que é da vida.”6

Assim como Brum, Ricardo Kotscho é outro jornalista que defende que a boa

matéria se faz na rua. “Com pauta ou sem pauta, lugar de repórter é na rua. É lá que

as coisas acontecem, que a vida se transforma em notícia” (KOTSCHO, 2001, p.

12). Complementando as definições sobre Jornalismo Literário, Sérgio Vilas Boas

traz sua visão sobre o tema. Segundo ele, é a arte de contar histórias.

O jornalismo literário é uma maneira diferente de fazer jornalismo. É uma maneira mais aprofundada, que gira em torno da vivência de personagens. A razão de ser do jornalismo narrativo ou literário é a existência de protagonistas, de pessoas que falam sobre suas experiências pessoais, como viveram, e o que pensam da vida e do mundo (VILAS BOAS, 2007).7

6 OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA. “O bom jornalismo se aplica a tudo o que é da vida”. Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/_ed737_o_bom_jornalismo_se_aplica_a_tudo_o_que_e_da_vida/>. Acesso em: 26 outubro 2016.

7 6º CONGRESSO INTERNACIONAL DE JORNALISMO INVESTIGATIVO. “Entrevista com Sérgio Vilas Boas”. Disponível em: <https://6congressoabraji.wordpress.com/jogo-rapido/sergio-vilas-

boas/>. Acesso em: 29 outubro 2016.

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A partir do que foi colocado pelos autores, pode-se perceber que o papel do

Jornalismo Literário é contar histórias de uma forma elegante e bem articulada. O

modo de vida das pessoas, o jeito como se comportam, as roupas que vestem, o

que carregam consigo e até o que tem dentro do quarto são importantes para a

narrativa literária e mostram, de fato, como as pessoas são e como estão envolvidas

nos ambientes em que estão. Histórias contadas por meio do Jornalismo Literário

são vistas com os “olhos” da alma. Captam a realidade e apresentam sentimentos,

razões e intuições. Contextualizam, mostram o significado mais complexo das

coisas. Apresentam qualidades líricas e poéticas, sem deixar de perder o foco na

realidade que precisa ser apresentada; cria autores de histórias de vida vivida.

Complementando a fala de Vilas Boas, Edvaldo Pereira Lima (2010, p.18)

diz que a linha condutora no Jornalismo Literário está relacionada ao contar

histórias. Sob essa perspectiva, o autor comenta que, geralmente, gostamos de

contá-las porque fazem parte de nossas vidas. O Jornalismo Literário, além de trazer

um aprofundamento e maior detalhamento de situações do cotidiano, foge do

convencional, de contar histórias rápidas e de forma simplificada.

A partir desse pensamento, pode-se observar quão grande é o papel do

jornalista na sociedade, pois além de informar, ele consegue atingir vidas de

maneiras inimagináveis, o que agrega também um fardo de responsabilidades. O

profissional de Jornalismo, que não vê em seu trabalho apenas a mera execução de

técnicas, precisa constantemente desenvolver as habilidades de agir e refletir. Agir e

refletir sobre a realidade concreta, sobre o mundo, pois, conforme Cremilda Medina,

pelo papel social que está investido, “[...] sua função é estabelecer pontes na

realidade dividida, estratificada em grupos de interesse, classes sociais, extratos

culturais e faixas até mesmo etárias. ” (MEDINA, 1982, p. 22).

Ainda de acordo com a autora, no exercício desse papel social, ao sair para

a sociedade “[...] para rastrear o maior número possível de versões, na busca

incessante de uma verdade inatingível, na solidariedade aberta a todos que tenham

alguma coisa a falar” (MEDINA, 1982, p. 23), o jornalista constrói a realidade. Dessa

forma, como explica Marcelo Bulhões (2007, p. 11, grifos do autor), a profissão torna

a própria existência do ser humano seu objeto de estudo: “[...] observa-a, comprova-

a, sente-a, torna-a um produto a ser vendido, consumido, porém, digno de

credibilidade. Assim sendo, o jornalismo presta um testemunho do ‘real’ e o repórter

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se torna uma espécie de ‘historiador da vida contemporânea’, diariamente

compartilhada”.

Falar sobre o real leva a outro dilema: o que, afinal, é ficção e não-ficção?

Assim como há controvérsias em relação às diferenças entre Jornalismo e literatura,

também é bastante discutível a delimitação de uma obra entre ficção e não-ficção.

Nesse sentido, Jean-Claude Bernardet e Alcides Freire Ramos (1988, p. 42),

afirmam: “Os documentários, assim como os filmes de ficção, estão sujeitos às

manipulações mais variadas”. Neste caso, quando os autores se referem a

“documentários”, estão falando de obras de não-ficção.

No entanto, por mais que um filme seja de não-ficção, ou seja, que tente

retratar a realidade, com a maior verdade possível, verifica-se que as pessoas se

transformam diante de uma câmera, por mais naturais que pareçam ser. O simples

fato de saber que se está exposto a uma filmagem ou gravação, faz com que,

normalmente, o indivíduo se projete por meio de posturas, gestos, feições,

entonação de voz, escolha lexical e demais atributos ligados à aparência, o que faz

com que haja certa manipulação, inclusive nesse tipo de obra. Porém, a finalidade

da obra de não-ficção continua sendo, retratar a realidade sem interferir nela,

fazendo com que o espectador consiga refletir e tirar suas próprias conclusões.

Para se utilizar de todas as ferramentas que o Jornalismo Literário dispõe

para o repórter, é necessário que os jornalistas estejam familiarizados com as

técnicas narrativas literárias, porém, uma vez que nem todos talvez tenham essa

aproximação, pode-se pensar que atualmente, o diálogo com os meios audiovisuais

seja a forma mais interessante de avançar nos estudos dos escritos jornalísticos

mais sofisticados. Isso porque o meio audiovisual exerce fascínio, essencialmente

por meio da imagem, seja através das grandes produções ficcionais, seja através da

exibição de representações imagéticas do real.

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4 DOCUMENTÁRIO

Este capítulo conta a história do documentário, seus formatos e linguagens.

Além disso, relata parte da história do documentarista Eduardo Coutinho, com foco

no seu documentário Edifício Master. Pode-se dizer que, assim como ocorre com a

definição de Jornalismo e notícia, a discussão em torno da conceituação sobre

documentário não chega a um consenso entre os estudiosos da área. Contudo, há

certa semelhança em relação aos apontamentos de características básicas deste

produto audiovisual tão fascinante e reflexivo.

O documentário, mais que outros gêneros e formatos, permite ao espectador

fazer uma reflexão sobre o que é apresentado na tela. É o meio audiovisual como

lugar de expressão de pensamento e construção de discurso, por excelência. Uma

visão particular de um lugar ou de um acontecimento num dado momento específico.

Mostra-se aqui o audiovisual como registro, pois “[...] a entrevista e a fonte oral,

quando publicada, tem fé de documento” (ROUCHOU, 2003, p. 5).

Uma das reflexões que o documentário instiga se deve ao fato dele se

aproximar da realidade e permitir uma relação entre o acontecimento mostrado e o

espectador desse acontecimento. Abordar a realidade, buscando um novo olhar;

lidar com a verdade, saindo do senso comum, são características do documentário.

4.1 A ORALIDADE COMO ESSÊNCIA NO DOCUMENTÁRIO

A liberdade de se expressar que o Jornalismo Literário traz para o repórter

ganha maior visibilidade nos meios audiovisuais, como a televisão, por exemplo.

Isso porque ela possui caráter de aprofundar melhor uma questão, aliando imagens,

som, texto e outros recursos técnicos. Quando se pensa em televisão e

documentário, pode-se imaginar que a imagem é a característica fundamental tanto

do meio quanto do gênero, pois é a imagem que diferencia o audiovisual de outros

meios do Jornalismo, como o rádio e o impresso e de outros gêneros, advindos

desses meios.

Porém, apesar da imagem ser tão relevante para o meio audiovisual, ao

mesmo tempo, a oralidade também é a essência da televisão e do documentário.

Martín-Barbero (2004) diz que a oralidade levou ao teatro, ao rádio, ao cinema, à

televisão. Ela é a base das estórias populares contadas em praças, etc. Em suma,

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sabe-se das coisas, até hoje, porque elas são narradas, contadas, ditas, faladas,

escritas e também, mostradas.

A fala, nos meios audiovisuais, é essencial, pois na maioria das vezes é ela

que oferece o sentido ao que se vê. A expressão narrativa do sujeito, a partir de um

relato, traz à tona a oralidade e a necessidade da articulação do falar. Contudo,

reitera Martín-Barbero, falar não é somente se servir de uma língua, mas pôr um

mundo em comum, fazê-lo lugar de encontro. “A linguagem é a instância em que

emergem mundo e homem ao mesmo tempo. E aprender a falar é aprender a dizer o

mundo, a dizê-lo como os outros, a partir da experiência de habitante da terra, uma

experiência acumulada através dos séculos” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 30, grifo

do autor).

4.2 GÊNEROS E FORMATOS

No audiovisual, o repórter fornece ao cidadão a possibilidade de fuga do

anonimato, o mesmo recurso que o New Journalism utiliza para narrar os fatos.

Segundo Iluska Coutinho (2012), a dramaturgia não ficcional na TV gera um conflito

narrativo que ressalta histórias cujos personagens anônimos ganham visibilidade ao

exporem suas versões da própria realidade aos repórteres. Ainda conforme a autora,

para que haja um telejornalismo de qualidade é necessário pensar em uma

diversidade na linguagem audiovisual: novas formas de produzir e construir

significados, buscando diferentes quadros, pontos de vista e movimentos de câmera.

Esses elementos todos podem proporcionar um maior engajamento do público com

a notícia na televisão.

A programação da TV brasileira está definida em cinco categorias diferentes.

Essa divisão foi elaborada por José Carlos Aronchi de Souza (2004, p. 93-165) num

estudo que tomou por base os boletins de programação das emissoras brasileiras,

publicados nos principais jornais e revistas do país. A classificação assim é dada,

segundo o autor:

a) entretenimento: tem como formatos – auditório, colunismo social,

culinário, desenho animado, docudrama, esportivo, filme, game show,

humor, infantil, interativo, musical, novela, quis show, reality show, revista,

série, talk show, teledramaturgia e variedades;

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b) educação: programas educativos e instrutivos;

c) publicidade: são as chamadas, filmes comerciais, políticos, sorteios e

tele-compras;

d) informação: debates, documentários, entrevistas e telejornais;

e) outros: são transmissões, como programas especiais, eventos ou

religiosos.

O documentário, foco desse trabalho, pertence à categoria de informação, a

mesma à qual pertencem os telejornais, ou seja, os noticiários transmitidos pela

televisão, em que geralmente se abordam os acontecimentos do dia.

Aronchi de Souza (2004) reconhece o documentário tanto como gênero

quanto como formato (quando inserido em outros gêneros). O documentário propõe

uma visão crítica, estabelecendo relações de contexto histórico, social, político,

cultural, econômico e tantos quantos forem possíveis e pertinentes; possibilita que o

público conheça outras culturas, interferindo na sua visão de mundo.

4.3 HISTÓRIA

O documentário viveu trajetórias diferentes desde seu surgimento. Foi a

partir do cinema, que os primeiros filmes considerados documentários surgiram. Tais

filmes possuíam como característica, relatar as experiências pessoais e o cotidiano.

Segundo Silvio Da-Rin (2004, p. 28), foi na França, em 1895, que os irmãos Lumière

conduziram as primeiras sessões proporcionadas pela invenção do cinematógrafo,

uma câmera leve movida à manivela e que permitia exibições a grupos. As principais

obras de Auguste e Louis Lumière foram: A chegada do comboio à estação e Saída

dos trabalhadores das fábricas Lumière, datados do fim do século XIX.

Ao voltarmos o nosso olhar para o cinema do final do século XIX, pode-se

afirmar que o trabalho dos irmãos Lumière é essencialmente realista, mesmo que

não seja uma cópia fiel do mundo, das coisas como elas acontecem. Conforme

Nichols (2005, p. 118, grifo do autor), essas primeiras obras “[...] serviram

tipicamente como origem do documentário ao manter uma ‘fé na imagem’. Parecem

reproduzir o acontecimento e preservar o mistério”.

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O termo “documentário” foi utilizado pela primeira vez pelo cineasta inglês

John Grierson, em fevereiro de 1926 e sua definição para essa expressão é a mais

citada em todos os livros, embora, segundo Silvio Da-Rin (2004, p. 16), não se saiba

ao certo em que texto ou em qual contexto Grierson a formulou: documentário é o

“tratamento criativo da realidade”.

A noção de tratamento criativo possui, nessa fórmula, uma função bastante particular. Pretendia distinguir o documentário griersoniano de objetos como os actualités8 de Lumière e os cinejornais9. Em contraste com a actualité e o cinejornal, o documentário griersoniano possuía uma dimensão criativa, sendo, por isso, explicitamente concebido como uma obra de arte (CARROLL, 2005, p. 70).

A discussão em torno do termo documentário e da definição griersoniana

começou a se difundir e a ser aplicada a todo e qualquer tipo de filme que não se

encaixasse nos moldes ficcionais. Depois de Grierson, surgiram as primeiras bases

necessárias para a definição do gênero. O responsável por abrir caminho à

propagação desse tipo de produção foi o cineasta Robert Flaherty (1884-1951), com

o filme Nanook of the North (1922). A produção apresentava o explorador norte-

americano em contato com os nativos que habitavam uma região da Baía de

Hudson, no norte do Canadá (DA-RIN, 2004, p. 45).

O filme não foi apenas o marco inaugural do documentário, como também

aquele que colocou em cena a vida de uma comunidade, com a finalidade de narrar

a realidade da forma mais adequada, não dissimulando-a por trás de um “elegante

véu de ficção”. O relato do viajante-explorador deu lugar ao relato da vida em

comunidade com Dziga Vertov (1895-1954). Vertov era um cineasta russo, defensor

do cinema enquanto uma ferramenta analítica da realidade e, portanto, contra a

utilização de encenações. Segundo Da-Rin (2004), os pressupostos de Vertov se

referiam à necessidade de educar as massas, mostrando a vida como ela é; ao

8 Actualités (Atualidades – tradução nossa) é um gênero que dominou a produção cinematográfica de

1895 até aproximadamente 1903, época inserida no chamado Primeiro Cinema. Essas produções se

diferenciam do documentário atual por serem encenações ficcionais, antes espetáculo do que

narração (COSTA, 2005, p. 45).

9 Cinejornal foi uma forma de filme curto documental, predominante na primeira metade do século XX. Era veiculado nas sessões de cinema antes dos filmes de longa-metragem, composto por pelo menos quatro pequenas reportagens, totalizando em geral de seis a oito minutos de exibição. O resultado era o registro fílmico das notícias mais importantes de uma semana (ENCICLOPÉDIA DO CINEMA BRASILEIRO, 2000, p. 133-135).

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reconhecimento de que a percepção do homem é limitada, em função da falta de

acesso aos processos naturais e sociais; ao reconhecimento de que a máquina tem

capacidades ausentes no homem; à afirmação de que o cinema tem como função

revelar o mundo, de forma analítica.

Em sua principal obra, Um homem com uma câmera (1929), ele intercala as

imagens de um dia normal em uma cidade industrializada, mostrando desde as ruas

vazias do início da manhã até o apagar das luzes no fim do dia, mesclando com as

imagens da própria construção do filme. Ao utilizar a metalinguagem, o cineasta

“desconstrói a impressão de acesso desimpedido à realidade e convida-nos a refletir

sobre o processo pelo qual essa impressão é construída por meio da montagem”

(NICHOLS, 2005, p.165).

Porém, apenas nos anos 1930 é que o documentário veio a se consolidar

com o chamado “movimento documentarista britânico”, através de Grierson. O

precursor do movimento entendia que um documentário deveria ter uma função

social e pedagógica e que deveria, ainda, ser um instrumento de educação pública.

É a partir disso que encontra-se, finalmente, o reconhecimento do documentário

propriamente dito.

No Brasil, grande parte dos realizadores no início do século XX era de

estrangeiros, sobretudo, europeus. Predominou a produção de um cinema natural,

com assuntos corriqueiros. Foram os curtas-metragens que sustentaram, durante

décadas, a produção e o comércio dos filmes brasileiros. De acordo com Ramos

(1987, p. 18) foi “Afonso Segreto quem realizou a primeira imagem do cinema

brasileiro, filmando a Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, a bordo do navio Brésil,

que retornava de Paris”. As novas tecnologias proporcionaram aos irmãos Segreto o

registro de fatos relacionados à elite carioca, como as festas, outros eventos da

classe e também acontecimentos políticos.

[...] passam a registrar regularmente os acontecimentos cívicos e os personagens no poder. Cerimônias, festas públicas, acontecimentos excepcionais e aspectos da cidade são filmados pelos irmãos num momento crucial de transformações, tornando-se praticamente os únicos produtores de cinema no país até 1903 (RAMOS, 1987, p. 18).

Eduardo Hitz era um alemão que morava em Porto Alegre e é considerado o

pai do cinema gaúcho. Entre 1907 e 1915 produziu diversos documentários. No

Paraná, em 1907, foi Annibal Rocha Requião quem preconizou as primeiras

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experiências com documentários no estado. Registrou a vida social de Curitiba, com

desfiles militares, bailes e festas. No Pará, foi o espanhol Ramón de Baños que se

dedicou à produção de vídeos através da produtora Pará Filmes. Depois, passou a

trabalhar com cinejornais. Silvino Simões dos Santos Silva realizou, entre 1913 e

1930, no Amazonas, documentários longos, que retrataram a vida das populações

indígenas da região. Seu trabalho esteve ligado aos pedidos de fazendeiros e

coronéis. Foi através de expedições que o major Luiz Tomás Reis registrou também

populações indígenas pelo interior do país, nos anos 1910 e 1920. Ele viajava a

trabalho pelo Serviço de Fotografia e Cinematografia da Comissão de Linhas

Telegráficas.

Minas Gerais revelou, de acordo com os especialistas, a primeira

personalidade de destaque no cinema brasileiro. Foi Humberto Mauro, que mostrou

nas décadas de 1920 e 1930 a periferia, o carnaval da época e canções tradicionais

do folclore brasileiro. Realizou 354 filmes educativos. Os filmes Vitória Régia e Céu

do Brasil, de 1937, fizeram Humberto Mauro ser o primeiro cineasta brasileiro a

participar oficialmente de um festival de cinema no exterior: o Festival de Veneza, na

Itália.

As noções e preocupações estéticas, quanto a enquadramentos,

movimentos de câmera e iluminação surgiram com a produção São Paulo, sinfonia

da metrópole, em 1929. Seus realizadores foram Rodolfo Rex Lustig e Adalberto

Kemery, húngaros que realizaram uma das produções mais significativas da época.

Em 1949, em meio ao período de abertura do Estado Novo10, surgiu a Companhia

Cinematográfica Vera Cruz. De acordo com Altafini (1999, não paginado), “[...] o

objetivo da companhia era o desenvolvimento de uma produção cinematográfica

brasileira em escala industrial”. E essa foi a característica dos trabalhos feitos pela

Vera Cruz: documentários de linguagem clássica11 em série.

10 Estado Novo, ou Terceira República Brasileira, foi o regime político brasileiro fundado por Getúlio

Vargas em 10 de novembro de 1937. Era caracterizado pela centralização do poder, nacionalismo,

anticomunismo e por seu autoritarismo. É parte do período da história do Brasil conhecido como Era

Vargas. SENADO. “Legislaturas Anteriores”. Disponível em:

<http://www.senado.gov.br/senadores/periodos/legisant.shtm>. Acesso em: 25 março 2017.

11 Na linguagem clássica, as técnicas empregadas são subordinadas à clareza, à homogeneidade, à linearidade, à coerência da narrativa, “[...] o encadeamento das cenas e das sequências se desenvolve de acordo com uma dinâmica de causas e efeitos clara e progressiva” e o

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Três anos mais tarde, em meados de 1952, começaram a aparecer às

primeiras indicações do que viria a se consolidar como o movimento do Cinema

Novo (1952 – 1972). Conforme Ramos (2004, p. 83), um dos documentários

precursores foi o Arraial do Cabo, de Paulo Cézar Saraceni, que retratou a vida em

uma comunidade de pescadores dissolvida por causa da instalação de uma fábrica

nas proximidades. Aruanda também foi outro destaque. O movimento se inspirou

nas produções de Dziga Vertov e Sergei Eisenstein, cineasta russo, dedicado ao

estudo da montagem do filme.

Uma das grandes características do Cinema Novo foi liberar as câmeras

das limitações, os cineastas desse movimento não colocavam as novas tecnologias

como a prioridade de suas obras. A busca pela realidade era mais importante que a

estética, sintetizando assim o slogan da época: “uma câmera na mão e uma ideia na

cabeça” (CARVALHO In MASCARELLO, 2014, p. 290).

Naquela época, qualquer manifestação cultural, no Brasil, era considerada

um ato de coragem, visto que a censura imposta pela Ditadura Militar12, era um

obstáculo que comprometia, inclusive, a vida dos autores. Foi preciso muita sutileza

para que cineastas como Glauber Rocha conseguissem camuflar suas críticas nas

telonas. Glauber Rocha foi um dos nomes mais famosos da época do Cinema Novo,

embora, mais reconhecido no exterior, muito em função da falta de compreensão do

público nacional, que não entendia que o cineasta criticava a própria realidade

brasileira. Seus filmes criticavam as desigualdades sociais e focavam nas minorias,

como pobres e negros. É nessa época também que surge a tomada de

depoimentos, na rua, sobre determinado assunto, as chamadas enquetes, que hoje

são comuns no telejornalismo.

Conforme Altafini13 (1999), entre os anos de 1970 e 1980 a produção de

documentários brasileiros centrou-se nos relatos de movimentos populares,

refletindo a abertura política pela qual o país passava. Um exemplo é Greve!, de

desenvolvimento “[...] leva o espectador às respostas das questões (e, eventualmente, enigmas) colocadas pelo filme” (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 27). 12 A Ditadura Militar no Brasil, ou Quinta República Brasileira, foi o regime instaurado em 1964 e que durou até 1985, sob comando de sucessivos governos militares. Foi uma forma de governo autoritário onde o poder político era efetivamente controlado pelos militares (RESENDE, 2013, p. 1). 13 ALTAFINI, Thiago. “Cinema Documentário Brasileiro: Evolução Histórica da Linguagem”. Disponível em: <http://bocc.ubi.pt/pag/Altafini-thiago-Cinema-Documentario-Brasileiro.html>. Acesso em: 25 de março de 2017.

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João Batista de Andrade, que documentou a paralisação dos metalúrgicos no ABC

paulista.

O autor conta que em 1971, a Rede Globo de Televisão encomendou uma

série de dez documentários, chamada O Globo Shell Especial. A produtora Blimp

Filmes realizou as filmagens. O primeiro programa da série foi “São Paulo: Terra do

Amor”, uma homenagem à cidade paulista. Depois do sucesso dos documentários, a

Globo decidiu produzir uma série de vídeos com temas variados. Assim, surgiu o

Globo Repórter, em 1973. O primeiro programa oficial exibido com este nome falou

sobre a Seleção Brasileira de Futebol. Num primeiro momento, o programa era

desvinculado do departamento de Jornalismo da Globo e foi idealizado, tentando

buscar um “país desconhecido” através de uma linguagem experimental e inovadora.

Naquele mesmo ano, criou-se, dentro da emissora, um núcleo de reportagens

especiais, que revelou cineastas de renome, como Eduardo Coutinho, hoje

considerado por muitos autores e especialistas como o maior documentarista

brasileiro.

Foi na TV Cultura que surgiu, em 1972, o programa Hora da Notícia. Era

formado por pequenos documentários, de até sete minutos de duração, com temas

diferenciados. Na atualidade, a emissora também vem veiculando filmes feitos em

parceria com produtores. É o caso do programa DOC TV. Na década passada, a

produção nacional foi atingida pelas medidas tomadas pelo então presidente

Fernando Collor de Melo, que extinguiu a Embrafilme – uma empresa estatal

brasileira produtora e distribuidora de filmes cinematográficos, criada em 1969. De

acordo com Altafini (1999), destruindo, assim, qualquer possibilidade de

sobrevivência do mercado cinematográfico brasileiro.

Ainda de acordo com o autor, já com o advento da TV a cabo, na década de

1990, os produtores viram uma nova oportunidade para a veiculação de seus

materiais. Mas, na maioria dos casos, foi o próprio canal que garantiu a exibição e

foram as produtoras que viabilizaram as filmagens. O surgimento dos novos canais

também coincidiu com a regulamentação de leis de incentivo à cultura e produção

audiovisual. A partir de então, com o avanço da tecnologia e com o menor custo dos

equipamentos, registrou-se um aumento na produção de documentários.

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4.4 JORNALISMO HUMANIZADO: A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS

Parar alguém na rua e pedir um minuto da atenção; entrar na casa de um

desconhecido para saber de sua vida; participar da intimidade do lar e do dia-a-dia

da fonte; buscar um contato e conversar por telefone para tirar dúvidas e marcar

uma visita posterior, são procedimentos que fazem parte da rotina de um repórter. A

entrevista serve para ouvir e conhecer as vivências dos personagens. Esses

personagens são as fontes; as pessoas que livremente aceitam responder perguntas

e contar suas histórias para os outros. A contemporaneidade tem no sujeito o seu fio

condutor; o Jornalismo e o documentário têm no personagem, a base para se contar

uma boa história. Através desse formato, sem dúvida, podem ser construídos

verdadeiros retratos jornalísticos baseados na vida cotidiana.

A origem da palavra personagem advém da raiz comum à etimologia de

“persona”, com significado próximo ao de máscara, ou seja, entidade tomada pelo

indivíduo que variará segundo as convenções sociais. Nesse contexto, aponta-se

abaixo como a personagem se liga a fatores essenciais do seu convívio para

conceber sua visão de mundo. Diante disso, Beth Brait (1987, p. 42-45) indica a

classificação feita por Phillipe Hamon:

a) Personagem Referencial – é o que se refere a um sentido pleno e fixo.

Sua participação e identificação dependerão do reconhecimento do leitor

na cultura da qual o personagem faz parte. Rotineiramente, a imprensa

traz histórias de vida de personalidades que as pessoas já conhecem,

pois estes estão inseridos na mesma cultura dos leitores;

b) Personagem Anáfora – normalmente circunda alguém desconhecido do

grande público e só pode ser apreendida dentro do contexto;

c) Figurantes – na maioria das vezes, ocupam lugares subalternos nas

obras. Distanciados e passivos, são pouco significativos no campo

psicológico, mas muito importantes no aspecto físico, servindo para

ilustrar lugares e dar atmosfera ao ambiente narrado.

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Escutar esses personagens, é a essência básica da reportagem, é de onde

se retiram as informações que vão estruturar toda a produção, seja de uma simples

nota, de uma reportagem ou de um documentário. Dessa forma, se abre espaço na

reportagem para que os entrevistados expressem seus relatos, o que os legitima

como fonte do assunto abordado. Qualquer matéria jornalística é de fato uma

conversa, uma revelação a um estranho. O jornalista desobedece à primeira lição

que as crianças aprendem e sempre falam com estranhos. De acordo com

Thompson (1992, p.197) “[...] toda fonte histórica derivada da percepção humana é

subjetiva, mas apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar

camadas da memória, cavar fundo, na expectativa de atingir a verdade oculta”.

É na entrevista que detecta-se o procedimento clássico de apuração das

notícias em Jornalismo, objetivando a coleta de interpretações e a reconstituição dos

fatos. Para o Jornalismo e, consequentemente, para o documentário também, a arte

de ouvir é essencial. Segundo Medina (2000, p. 61) “[...] ser jornalista é

compreender que, atrás de tantas histórias e palavras, existe vida humana que

chora, sente, se emociona e vê nos meios de comunicação o seu próprio retrato”. O

repórter deve reconhecer que não é ele que detém a informação. Ele deve, sim, ir

atrás daquela fonte que tenha o que dizer.

Jorge Ijuim (2006, p. 21) pontua quatro abordagens diferentes para se

praticar um Jornalismo mais humanizado, mais próximo dos personagens:

a) construção cena por cena: contar a história, recorrendo o mínimo

possível à mera narrativa histórica (cronológica). Pode ser por descrição

pictórica, topográfica, cinematográfica, etc.

b) diálogo completo: um diálogo realista, com travessões, abrindo

espaço efetivo para as falas dos personagens. Estabelece e define mais

rápido e com mais precisão o personagem.

c) ponto de vista: apresentar cada cena por intermédio dos olhos de um

personagem particular, dando ao leitor a sensação de estar dentro da

cabeça do personagem, experimentando a realidade emocional da cena

como o personagem a experimenta e criando a sensação de “eu estava lá”.

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d) status de vida da pessoa (simbolismo): registro de gestos, hábitos,

maneiras, costumes, estilos de mobília, roupas, decoração, maneiras de

comer, viajar, manter a casa, modo de se comportar com os filhos, com os

criados, com os superiores, com os inferiores, com os pares; além de ares,

olhares, poses, estilos de andar e outros detalhes simbólicos do dia-a-dia

que possam existir dentro de uma cena.

Quando o jornalista vai para a rua, em busca de suas fontes, ele tem uma

chance maior de encontrar pessoas e ouvir suas histórias. E esse é um elemento

essencial da prática jornalística que não pode ser suprido por arquivos e banco de

dados, apesar de que essa prática de ir aos arquivos e bancos de imagens também

seja imprescindível para uma boa reportagem. O relato feito ao jornalista é único. De

modo sintético, Cremilda Medina (2000, p. 14) classifica as entrevistas entre aquelas

“[...] cujo objetivo é espetacularizar o ser humano; e entrevistas que esboçam a

intenção de compreendê-lo”. Entre os subgêneros do que chama de “entrevista de

compreensão”, Medina (2000, p. 18, grifo da autora) inclui o “perfil humanizado”, que

descreve como “uma entrevista aberta que mergulha no outro para compreender

seus conceitos, valores, comportamentos, histórico de vida”.

O documentário, devido ao seu formato, permite que o entrevistador tenha

mais tempo para dialogar com seus personagens, enquanto o modelo da televisão

impõe algumas dificuldades para o jornalista administrar o tempo. Por causa dos

temas serem factuais, o número de pautas, a pressão por resposta, o tempo

disponível às fontes e a agilidade que o formato de mídia exige podem interferir no

período destinado às entrevistas.

Na atualidade, Bill Nichols é um dos principais pesquisadores que vêm

formulando diversos estudos sobre o documentário.

O documentário engaja-se no mundo pela representação, fazendo isso de três maneiras. Em primeiro lugar, os documentários oferecem-nos um retrato ou uma representação reconhecível do mundo. Pela capacidade que têm o filme e a fita de áudio de registrar situações e acontecimentos com notável fidelidade, vemos nos documentários, pessoas, lugares e coisas que também poderíamos ver por nós mesmos, fora do cinema. Essa característica, por si só, muitas vezes fornece uma base para a crença: vemos o que estava lá, diante da câmera: deve ser verdade (NICHOLS, 2005, p. 28).

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Como se viu anteriormente, o filósofo Nietzsche (2007) explica que desde o

seu início, a filosofia se ocupa em discutir sobre a verdade. Constata-se que a

verdade é detentora de significados variados, dependendo, apenas, de quem a

define. Para Nietzsche, a verdade é uma ilusão massificante. É um instrumento de

dominação que, muitas vezes, nos cansa, pois se torna algo obrigatório e forçado.

A partir do conceito de Nichols, pode-se dizer que o documentário resulta de

um olhar pessoal sobre determinado fato, acontecimento, assunto ou tema, baseado

no ponto de vista do documentarista, ou “sua verdade”. Visando uma divisão das

características específicas e das formas como o documentário pode ser trabalhado,

Bill Nichols (2005, p. 63) estabeleceu seis modos diferentes de representação do

gênero, que são:

a) poético: enfatiza associações visuais e organização formal. Os atores

sociais raramente assumem a forma vigorosa dos personagens com

complexidade psicológica e uma visão definida do mundo. Reúne

fragmentos dos temas abordados de maneira poética, não específica e

abstrata. Preocupa-se com a estética. Na construção do texto, permite a

utilização de poemas e trechos de obras literárias;

b) expositivo: trata diretamente de questões do mundo histórico. Destaca

o comentário verbal e uma lógica argumentativa. Corresponde ao

documentário clássico, onde o argumento é veiculado por letreiros ou pelo

comentário off14 servindo às imagens de ilustração ou contraponto.

Preocupa-se com a defesa dos argumentos e equilibra bem o que está

sendo falado ao que está sendo mostrado. Caracteriza-se pela objetividade

na informação;

c) observacional: observa as coisas conforme elas acontecem. Enfatiza

o engajamento direto no cotidiano das pessoas que representam o tema do

cineasta. Situa o espectador na posição de observador ideal e defende a

não intervenção do realizador;

14 Texto lido pelo apresentador, locutor, repórter (ou ainda, o documentarista, nesse caso) e coberto

com imagens (BISTANE; BACELLAR, 2008, p. 135).

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d) participativo ou interativo: destaca a interação de cineasta e tema. O

pesquisador vai a campo, participa da vida de outras pessoas. A

subjetividade do cineasta e dos participantes da filmagem é plenamente

assumida ao entrevistar os participantes e interagir com eles;

e) performático: todos os filmes desse modo compartilham

características com filmes experimentais, pessoais e de vanguarda, mas

com uma ênfase vigorosa no impacto emocional e social sobre o público.

Utiliza-se da subjetividade e das técnicas cinematográficas de forma livre;

f) reflexivo: “Apresenta o produtor e o processo de produção juntamente

com o produto” (DA-RIN, 2004, p. 135). Deixa claro para quem assiste quais

foram os procedimentos da filmagem. Mostra o documentário como

processo artesanal e leva o telespectador a fazer uma reflexão sobre o que

ele assistiu.

O documentário se deu a partir da iniciativa de alguns cineastas que

quebraram paradigmas de suas épocas e, naturalmente, criaram tendências. Um

desses cineastas de grande renome foi o paulistano Eduardo Coutinho.

4.5 O DOCUMENTÁRIO DE EDUARDO COUTINHO

Na hora que eu filmo uma pessoa, eu a amo mais que a qualquer outra. Aliás, quando a câmera está ligada é que eu vejo as pessoas. Eu sou uma pessoa que não olha para o mundo. Sou totalmente distraído, me perco nas ruas, em todas as cidades. Agora, quando eu ligo a câmera e selo os olhos na pessoa, é isso que vale a pena para mim.

Eduardo Coutinho15

Eduardo de Oliveira Coutinho, mais conhecido como Eduardo Coutinho, foi

um cineasta, roteirista e produtor brasileiro nascido em São Paulo, no dia 11 de maio

de 1933. Como cineasta, Coutinho é considerado um dos mais importantes

15 OHATA, Milton (Org.). Eduardo Coutinho. São Paulo: Cosac Naify: SESC, 2013.

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documentaristas do cinema mundial. Seu trabalho caracteriza-se pela sensibilidade

e pela capacidade de ouvir o outro, registrando as emoções e aspirações das

“pessoas comuns”, sejam camponeses diante de processos históricos (Cabra

Marcado para Morrer), moradores de um enorme condomínio de baixa classe média

no Rio de Janeiro (Edifício Master), metalúrgicos que conviveram com o então

sindicalista Luiz Inácio (Lula) da Silva (Peões), etc.

No livro “O Documentário de Eduardo Coutinho – Televisão, Cinema e

Vídeo”, Consuelo Lins (2004), docente da Escola de Comunicação da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) conta um pouco da história e trajetória do

documentarista. Segundo a autora, Eduardo Coutinho cursou Direito em São Paulo,

mas não concluiu. Em 1954, aos 21 anos, teve seu primeiro contato com o cinema

no Seminário promovido pelo MASP e dirigido por Marcos Marguliès. Trabalhou

como revisor na revista Visão (1954-1957) e dirigiu, no teatro, uma montagem da

peça infantil Pluft, o Fantasminha, de Maria Clara Machado. Ainda em 1957, ganhou

2 mil dólares no programa O Dobro ou Nada, da TV Record, respondendo perguntas

sobre Charles Chaplin. Com o dinheiro do prêmio, foi para a França estudar direção

e montagem no Institut des Hautes Études Cinematographiques (IDHEC), onde

realizou seus primeiros documentários.

De volta ao Brasil em 1960, teve contato com o grupo do Cinema Novo e

integrou-se ao Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes

(UNE). No núcleo dirigido por Chico de Assis, trabalhou na montagem da peça

Mutirão em Nosso Sol, apresentada no I Congresso dos Trabalhadores Agrícolas,

que aconteceu em Belo Horizonte em 1962. Foi gerente de produção do primeiro

filme produzido pelo CPC, o longa-metragem Cinco Vezes Favela.

Ainda conforme Lins (2004), escolhido para dirigir a segunda produção do

CPC, Coutinho começou a trabalhar num projeto de ficção baseado em fatos reais,

reconstituindo o assassinato do líder das Ligas Camponesas João Pedro Teixeira, a

ser interpretado pelos próprios camponeses do Engenho Cananéia, no interior de

Pernambuco, inclusive a viúva de João Pedro, Elizabeth Teixeira, que faria o seu

próprio papel. O filme se chamaria Cabra Marcado para Morrer, e chegou a ter duas

semanas de filmagens, até o Golpe Militar de 1964. Parte da equipe foi presa sob a

alegação de comunismo e o restante se dispersou, interrompendo a realização do

filme por quase 20 anos. Lins (2004) destaca um elemento encontrado no

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documentário Cabra Marcado para Morrer e que também é frequente nos demais

trabalhos de Eduardo Coutinho:

Em Cabra Marcado para Morrer, diferentes elementos da tradição do cinema documentário surgem alterados, transformados, torcidos, a começar pela clássica separação entre o cineasta e personagens, Coutinho é também personagem do filme, o que inclui de imediato uma dimensão da subjetividade do diretor na própria imagem (LINS, 2004, p. 33).

Essa aparição do diretor e também da equipe de produção como

participantes do documentário é um recurso que se destaca em outras obras do

documentarista. No documentário Edifício Master (2002), que é o objeto de análise

dessa monografia, também se verifica a presença constante do diretor com seus

personagens.

Em 1966, de acordo com Lins (2004, p. 17), Coutinho constituiu, com Leon

Hirszman e Marcos Faria, a produtora Saga Filmes. Dirigiu um episódio do longa O

ABC do Amor (coprodução entre Argentina, Brasil e Chile); foi diretor substituto em

O Homem que Comprou o Mundo (1968) e realizou uma adaptação de Shakespeare

para o cangaço brasileiro, em que o personagem Falstaff, que é utilizado por

Shakespeare em várias peças, tornou-se Faustão (1970).

Especializando-se em roteiro, Eduardo Coutinho foi corroteirista de vários

títulos importantes do cinema brasileiro, como A Falecida (1965) e Garota de

Ipanema (1967) de Leon Hirszman; Os Condenados, de Zelito Viana (1973); Lição

de Amor, de Eduardo Escorel (1975) e Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno

Barreto (1976).

Em 1975, passou a integrar a equipe do programa Globo Repórter, da Rede

Globo, juntamente com Paulo Gil Soares, João Batista de Andrade e outros.

Permaneceu no programa até 1984, sempre rodando em 16 mm, com uma liberdade

editorial surpreendente para a época, e acabou descobrindo sua vocação de

documentarista em trabalhos inovadores como Teodorico, o Imperador do Sertão,

sobre o líder político nordestino Theodorico Bezerra.

Em 1981, Coutinho reencontrou os negativos de Cabra Marcado para

Morrer, que haviam sido escondidos da polícia por um membro da equipe, e

resolveu retomar o projeto. Conseguiu localizar Elizabeth Teixeira em São Rafael, no

interior do Rio Grande do Norte, mostrou-lhe o que havia sido filmado em 1964 e

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filmou o depoimento dela sobre a dispersão de sua família após a interrupção do

filme.

A partir daí, a ficção baseada em fatos reais transformou-se num dos mais

extraordinários documentários jamais filmados, retratando e acompanhando as

tentativas de Elizabeth de reencontrar seus filhos, em diferentes pontos do país, e

refletindo sobre o que aconteceu com a sociedade brasileira no longo período da

ditadura militar. O filme ficou pronto em 1984 e ganhou 12 prêmios em festivais

internacionais, no Rio de Janeiro, Havana, Paris, Berlim, Setúbal, etc.

Após o sucesso de Cabra marcado para morrer, Coutinho afastou-se do

Globo Repórter e passou alguns anos trabalhando com documentários em vídeo

para o CECIP (Centro de Criação da Imagem Popular), com temas ligados à

cidadania e à educação. São dessa época projetos como Santa Marta e Boca de

lixo, visões humanistas e pessoais sobre indivíduos e populações marginalizadas.

Também escreveu roteiros para séries documentais da extinta TV Manchete, como

90 Anos de Cinema Brasileiro e Caminhos da Sobrevivência (sobre a poluição em

São Paulo).

Em 1988, com o centenário da Abolição da Escravatura, foi estimulado pela

então secretária de Cultura do Rio de Janeiro, Aspásia Camargo, a realizar um

documentário sobre a população negra na História do Brasil. O Fio da Memória,

centrado na figura do artista popular Gabriel Joaquim dos Santos, só viria a ser

concluído três anos mais tarde, com o apoio das emissoras de televisão La Sept

(França) e Channel Four (Inglaterra).

Em 1997, Coutinho foi contratado para fazer a pesquisa de Identidades

Brasileiras, uma série de programas da TVE que abordaria dez temas diferentes e

envolveria pesquisa e gravações em diversas partes do país. Embora o projeto

tenha acabado antes das gravações, o cineasta teve a ideia de fazer um filme sobre

religião e pediu ajuda para José Carlos Avellar, então diretor-presidente da Riofilme,

para financiar o documentário. Com custo aproximado de 300 mil reais e quase dois

anos de trabalho com a produção do Centro de Criação da Imagem Popular,

Coutinho lançou Santo Forte, em 1999.

A partir dali, Coutinho passou a trabalhar com colaboradores regularmente,

conseguindo manter uma produção constante de filmes graças à parceria com a

produtora Vídeo Filmes, do também documentarista João Moreira Salles. Com este,

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desenvolveu fortes laços de amizade. Salles o ajudou a viabilizar e se envolveu na

elaboração dos sete documentários seguintes, realizados entre 2000 e 2011.

Durante esses 11 anos, Coutinho foi premiado três vezes no Festival de

Gramado pelos filmes Santo Forte e Edifício Master, além de um Kikito de Cristal

pelo conjunto da obra, e duas vezes pelo Festival de Brasília pelos filmes Santo

Forte e Peões, sem contar o reconhecimento da crítica especializada como o maior

documentarista brasileiro em atividade à época. Em 2013, ao completar 80 anos,

Coutinho foi homenageado na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) e na

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Em fevereiro de 2014, Coutinho finalizava um documentário no qual

entrevistava adolescentes da rede pública de ensino do Rio de Janeiro, quando foi

morto a facadas, em seu apartamento, pelo próprio filho, que sofria de esquizofrenia.

No mesmo ano de seu assassinato, o cineasta foi homenageado na cerimônia do

Oscar 2014. Cronologicamente, sua última aparição em vídeo foi em Sete Visitas, de

Douglas Duarte. Seu último trabalho acabou finalizado por João Moreira Salles,

ganhou o nome de Últimas Conversas e foi lançado em 2015 no festival É Tudo

Verdade, em São Paulo.

Os documentários de Eduardo Coutinho se enquadram em vários dos

modos de representação estabelecidos por Nichols e vistos anteriormente. Dentre

eles, pode-se destacar o observacional, participativo ou interativo, performático

e reflexivo. Todos esses são marcados, principalmente, pela atenção reservada ao

entrevistado, pela forma como o próprio personagem conduz a história e pela

despretensão do documentarista em defender seu posicionamento, ao menos de

forma direta. Coutinho não se preocupa em apresentar uma série de dados, em ouvir

especialistas ou comover seu público com imagens ou depoimentos chocantes. João

Moreira Salles, também documentarista, expressa sua visão sobre o trabalho de

Coutinho:

[...] o cinema de Coutinho dedicou-se a reunir um conjunto de histórias fragilíssimas, oferecendo a cada uma delas aquilo que, em outros filmes e outras circunstâncias, elas não teriam: proteção. Nada mais frágil do que palavras ditas por quem não costuma ser escutado (SALLES, 2004, p. 7).

Consuelo Lins (2004, p. 103), revela a caminhada metodológica por trás da

obra de Eduardo Coutinho. Pode-se destacar deste método a parte inicial, ou seja, a

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pesquisa. “O objetivo é encontrar pessoas que saibam contar histórias. Para o

diretor, de nada adianta achar pessoas com vidas extraordinárias, mas sem essa

habilidade narrativa”. O documentarista, contudo, não constrange ou sugere

julgamento ao personagem, mas consegue depoimentos tão sinceros, que o

espectador tem o necessário para formar sua própria opinião.

A entrevista é uma marca forte de seu estilo e, ao assistir seus trabalhos, é

possível perceber que Coutinho tem respeito pela fala do outro. O documentarista

sempre teve grande desejo e capacidade de ouvir e, principalmente, de trabalhar

com o outro. Algo que Pierre Bourdieu (1997, p. 23), define como “[...] um exercício

espiritual, visando obter, pelo esquecimento de si, uma verdadeira conversão do

olhar que lançamos sobre os outros nas circunstâncias da vida”.

Se fosse possível resumir em uma frase a carreira de Eduardo Coutinho,

essa frase seria dita por um personagem seu — a aposentada Geicy da Silva

Bastos, de 77 anos, moradora do Edifício Master — que assim o resumiu: “O

Coutinho deu importância à minha história”16.

4.5.1 Edifício Master

Eduardo Coutinho começa o documentário Edifício Master com uma

descrição objetiva, como é seu costume, visando a apresentação do cenário ou

“pano de fundo” que envolve seus personagens. “Um edifício em Copacabana, a

uma esquina da praia, 276 apartamentos conjugados, uns 500 moradores; 12

andares, 23 apartamentos por andar. ” Nessa mesma linha de raciocínio, seria

possível, de forma objetiva, dizer sobre Eduardo Coutinho: Um cineasta nascido em

São Paulo, radicado no Rio de Janeiro, 80 anos, 22 filmes, uns 40 prêmios, mais de

cem pessoas entrevistadas.

Edifício Master (2002), é um dos seus documentários de maior destaque. Só

com ele, o documentarista recebeu cinco prêmios de melhor documentário17 e em

16 Frase retirada do documentário Edifício Master. EDIFÍCIO Master. Direção e Roteiro: Eduardo Coutinho. Produção: Beth Formaggni. Produtora: Videofilmes. Rio de Janeiro: RioFilme, 2002. 1. DVD, (110 min), son., color., 35mm. 17 IMDB. “Edifício Master (2002) ”. Disponível em: <http://www.imdb.com/title/tt0333388/awards/>.

Acesso em: 26 outubro 2016.

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novembro de 2015 o filme entrou na lista feita pela Associação Brasileira de Críticos

de Cinema (Abraccine) como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os

tempos18. Para a gravação de Edifício Master, Coutinho e sua equipe alugaram um

apartamento e passaram um mês morando no prédio localizado em Copacabana

(RJ), a fim de se aproximar de seus moradores e ouvir suas histórias. Quase todo o

documentário é uma sequência de depoimentos de pessoas dentro de seus

apartamentos. Jean-Claude Bernadet, também documentarista, relata o método que

Coutinho utilizou na gravação do documentário Edifício Master:

O som direto abriu para o cinema um leque extraordinariamente rico de entrevistas e falas. Num pólo, temos fala, entrevistas e outras modalidades, cuja finalidade é transmitir uma informação verbal, tendo o conteúdo uma importância predominante. No outro, encontramos uma fala cujo conteúdo se torna secundário, e o ato da fala passa a predominar. Nenhum desses pólos concretiza-se com exclusividade: trata-se de tendências, podendo uma ou outra prevalecer nesta ou naquela entrevista (BERNARDET, 2003, p. 284).

Ao que tudo indica, Coutinho se preocupava mais com o que as pessoas

tinham para contar do que propriamente com a forma como contavam, considerando

que não havia nada de muito atípico além do sotaque carioca (no caso do Edifício

Master). Assim, segundo Lins (2004), ele abria espaço para a classe média, que

pouco interessava para os documentaristas, tendo seu papel social e histórico

ignorado diante da desigualdade de renda, cujos extremos são o pobre e o rico. Lins

relata ainda sobre os mundos que o documentarista Eduardo Coutinho nos revela:

[...] esses mundos não estão centrados em um comentário nem em informações precisas, mas em depoimentos que traçam uma rede de pequenas histórias descentradas, que se comunicam através de ligações frágeis e não-casuais. São ecos que se estabelecem entre diferentes elementos da imagem ou da fala dos personagens (LINS, 2004, p.183).

A autora conta ainda, outra técnica característica do documentarista, que é

se instalar no local da filmagem, delimitando geograficamente seu campo de

interesse. Lins (2004, p. 34) explica que, ao se estabelecer um único local de

produção, Coutinho acrescenta outro sentido ao seu documentário, que é de mostrar

sua própria relação com a comunidade. Para extrair a história de vida dos moradores

18ABRACCINE. “Abraccine organiza ranking dos 100 melhores filmes brasileiros”. Disponível

em: < https://abraccine.org/2015/11/27/abraccine-organiza-ranking-dos-100-melhores-filmes-brasileiros/>. Acesso em: 26 outubro 2016.

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do edifício com toda a carga trágica que isso comporta, Coutinho trabalha com uma

técnica baseada na escuta e no dispositivo, na qual os entrevistados são deixados à

vontade para narrar as suas histórias, intervindo quando necessário, sem sugerir o

que quer ouvir. A busca deste “movimento de abertura ao outro e de atenção ao que

está sendo dito”, complementa-se na técnica cinematográfica, com pouca edição,

sem muitos cortes, evitando um roteiro predefinido, sem muito tratamento estético.

Edifício Master conta a história de 27 moradores de um dos maiores

espigões residenciais da capital carioca. Foram três semanas de pré-entrevistas19 e

sete dias de gravações. O documentário partiu de uma ideia original da

pesquisadora e professora Consuelo Lins, uma estudiosa da obra de Coutinho. O

projeto consistia em filmar a vida de um prédio qualquer de Copacabana. A escolha

do imóvel não foi fácil. Muitos se mostraram inviáveis devido ao excessivo ruído de

trânsito. Em outros, o condomínio não aceitou a ideia de se deixar devassar por um

filme. Lins (2004, p. 141), relata que “[...] um dia, por um desses acasos que

ninguém explica, abriram-se as portas do Master, onde o próprio Coutinho havia

residido por cerca de seis meses, 35 anos antes”.

Além da filmagem em uma só locação, a sugestão de Lins ainda implicava

outra temática, a qual se desvia dos trabalhos anteriores do diretor. Nos seus últimos

projetos, Coutinho havia registrado a favela Vila Parque da Cidade, no Rio de

Janeiro, em Santo Forte (1999) e o morro da Babilônia, também no Rio de Janeiro,

em Babilônia 2000 (2001) e se deparou com a proposta de filmar a classe média. As

três semanas de pré-entrevistas serviram para encontrar não só histórias de vida,

mas também personagens que delimitassem um tema para o filme, através das

pesquisas e contato com os entrevistados. Apesar do trabalho árduo da equipe que

procurava, incessantemente, por entrevistados que se dispusessem a falar, Lins

(2004, p. 48) escreve que “dos cerca de 70 moradores entrevistados no Edifício

Master ao longo das três semanas de pesquisa, Coutinho escolheu 37 para serem

filmados, dos quais dez acabaram não entrando na montagem final”.

Nos 110 minutos do documentário, o documentarista conseguiu construir

uma narrativa baseada apenas em entrevistas, usando sempre o som direto e com

19 Pré-entrevistas marcam o primeiro contato entre documentarista, ou sua equipe de pesquisadores, e os possíveis participantes do documentário. São úteis tanto para fornecer informações, ou mesmo aprofundar informações já coletadas, como para servir de teste para se avaliar os depoentes como possíveis personagens do filme no que tange ao comportamento de cada um diante da câmera e a articulação verbal do entrevistado (PUCCINI, 2009, p. 181-182).

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legendas apenas com a função de nomear os moradores, utilizando somente o

primeiro nome, sem sobrenome, profissão ou qualquer outra informação adicional.

As diferentes experiências de vida fazem emergir opiniões de pessoas que, antes

anônimas, contidas na banalidade de uma grande cidade, apresentam uma

realidade até então desconhecida. Assim como sugere a frase de apresentação na

capa do documentário: “Um filme sobre pessoas como você e eu”.

As entrevistas contextualizam ainda a realidade social nos dias de hoje. Os

problemas sociais como: gravidez na adolescência, assalto, aborto e desemprego

são detectados em vários depoimentos. O documentário coloca em questão o

cotidiano de muitas pessoas que, assim como no Master, não conhecem o próprio

vizinho e vivem num mundo isolado.

Edifício Master é um concentrado de substância humana, raramente visto no

cinema brasileiro. Dramas familiares, solidão, pequenas fantasias compensatórias,

vaidades mínimas e convivência precária são a base do documentário, capaz de

exaurir as emoções de quem o assiste. Entre os moradores “visitados” pela equipe

de Eduardo Coutinho estão verdadeiros protagonistas de uma dramaturgia da vida

real: um casal de meia-idade que se conheceu através dos classificados de um

jornal; uma garota de programa que sustenta a filha e a irmã; um ator aposentado;

um ex-jogador de futebol e um porteiro desconfiado de que o pai adotivo, com quem

sonha toda noite, é seu pai verdadeiro.

Com todo esse turbilhão de histórias, de pessoas tão diferentes, mas, ao

mesmo tempo inseridas em um mesmo contexto social, consegue-se perceber que

esses pedaços de vida estão por aí, no cotidiano de cada um, esperando apenas

alguém disposto a ouvir e dar crédito a suas histórias. Coutinho sabia fazer isso

como poucos e, mais uma vez, provou sua excelência com um filme primoroso.

Assim sendo, pode-se dizer que Edifício Master traz para o espectador, confissões

comovidas, declarações vaidosas, almas que se ocultam ou se revelam aos poucos,

ao ritmo das conversas com o diretor.

Coutinho fez de sua cinematografia um trabalho de reunir e recolher

histórias, realizando “um cinema da palavra filmada, que aposta nas possibilidades

de narração dos seus próprios personagens” (LINS, 2004, p. 180-181). O diretor

aproxima seu trabalho da história oral, nessa postura da escuta, do encontro e da

proximidade. Segundo Xavier (2010, p. 66), Coutinho prefere o termo conversa a

entrevista, que associa ao Jornalismo. O documentarista compreendia que a relação

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com o ser humano se verifica pelas palavras. Logo, a palavra é elevada ao elemento

essencial da relação. Nos seus filmes, a fala possui uma dimensão estética. Há, da

parte do entrevistado, “um desejo de apropriação da cena, tomar o momento da

filmagem como afirmação de si em consonância com a situação dialógica aí

procurada. Compor um estilo, um modo de estar e de se comunicar” (XAVIER, 2010,

p. 73).

Logo, é um falar de si, da intimidade, que torna quem fala uma personagem.

Vale salientar que o ato da entrevista, em Coutinho, como sugere Xavier, tem um

quê de confessionário. O diretor tentava compreender o imaginário do outro, embora

sem aderir a ele, sem qualquer julgamento, pois entendia que “o que o outro diz é

sagrado, e sabe que seu imaginário pode ser tão frágil quanto o do outro” (LINS,

2004, p. 107).

Pode-se perceber que, ao longo dos anos, vem crescendo o interesse pelo

“homem comum” como fonte histórica. Segundo o historiador Jacques Le Goff, por

trás de tantas informações, são as histórias dos “homens comuns” que retratam

melhor a veracidade dos fatos.

A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e com as ervas daninhas […]. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve ao homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem (LE GOFF, 1996, p. 540).

Essa retomada de discurso do “homem comum” colabora para uma maior

humanização da prática jornalística. Pois, já não são somente os políticos, as

celebridades, os governantes, as autoridades e a elite como um todo, que tem voz e

credibilidade, mas também, o “homem comum”, protagonizando suas experiências

pessoais e relatando aquilo que vivenciou. A posição social já não importa mais, mas

sim, o testemunho de quem presenciou o fato e que pode, a partir das suas

memórias, contar aquilo que se quer realmente saber.

[...] as recordações familiares, às histórias locais, de clã, de famílias, de aldeias, as recordações pessoais [...], a todo aquele vasto complexo de conhecimentos não-oficiais, não-institucionalizados, que ainda não se cristalizaram em tradições formais [...] que de algum modo representam a consciência coletiva de grupos inteiros (famílias, aldeias) ou indivíduos

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(recordações e experiências pessoais), contrapondo-se a um conhecimento privatizado e monopolizado por grupos precisos em defesa de interesses constituídos (TRIULZI apud LE GOFF, 1996, p. 477).

Nesse “cinema da oralidade”, as personagens contam histórias, e a busca

de Coutinho é justamente por pessoas que saibam narrar histórias diante da câmera.

Em suma, Edifício Master mostra justamente essa transformação da pessoa em

personagem. E são exatamente essas as diferentes histórias mostradas no

documentário, relatos marcados pelas memórias pessoais, contados em primeira

pessoa, por personagens que são “pessoas comuns”. Como disse o documentarista

João Moreira Salles, “[...] palavras ditas por quem não costuma ser escutado”

(SALLES, 2004, p. 7).

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5 METODOLOGIA

Como já explanado na introdução deste trabalho, os métodos utilizados para

essa monografia, foram a Análise de Conteúdo (AC) e a Análise de Discurso (AD),

que serviu como apoio, junto de pesquisa bibliográfica como procedimento

metodológico. Nesse capítulo, a metodologia foi aplicada, a partir, da segunda fase

da Análise de Conteúdo (AC) de Laurence Bardin, a exploração do material. Para

realizar essa etapa, foi necessário realizar a decupagem20 de uma parte do

documentário Edifício Master.

Segundo Bardin (2004), a exploração do material é o momento em que o

pesquisador seleciona os recortes do material que será analisado, categorizando o

mesmo. Neste caso, a exploração foi feita a partir da decupagem de algumas

histórias contadas, no documentário Edifício Master; mas a categorização, sugerida

por Bardin no método da AC, foi realizada a partir do método de apoio, que é a

Análise de Discurso. Sendo assim, essas histórias foram agrupadas em algumas

categorias elencadas por Ian Parker e as mesmas categorias foram representadas

por valores-notícia, que foram questionados e/ou confirmados. A seguir, são

apresentadas as categorias, que para Parker21 (1992 apud NOGUEIRA, 2001) são

chamadas de fases, e que foram escolhidas para essa categorização na seguinte

organização classificatória:

Textos (O que se fala)

1 - tratar objetos de estudo como sendo textos (nesse caso, a decupagem,

essencialmente a partir das histórias contadas)

2 - explorar conotações, associação livre

20 A palavra é originada do francês, découper, ato de recortar. Decupagem então significa descrever tudo o que foi gravado em termos de vídeo e áudio. Portanto, ela tem uma escrita técnica que começa pelo plano, movimento de lente ou câmera, descrição da cena, descrição do áudio: off e sonoras (entrevistas). 21 PARKER, Ian. Discourse Dynamics: Critical Analysis for social and individual psychology. London: Routledge, 1992.

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Sujeitos (Quem fala)

3 - especificar sujeitos (pessoas, assuntos, temas, etc.), como tipos de objetos no

texto (nesse caso, os personagens entrevistados, do documentário Edifício Master)

4 - especular acerca de como eles podem “falar”

História (Entrelinhas)

5 - analisar com atenção como esses discursos emergem

Instituições e Poder (Valores de Convivência)

6 - identificar instituições reforçadas pelos discursos

7 - identificar instituições que são atacadas pelos discursos

08 - analisar que categorias de pessoas ganham e perdem

09 - questionar quem os promoverá e quem se lhes oporá

5.1 DECUPAGEM

A seguir, será apresentada a decupagem de 9 histórias do documentário

Edifício Master de Eduardo Coutinho, ou seja, 1/3 do total de 27 moradores, que

relatam suas memórias para o documentarista. Cada uma delas foi escolhida,

levando em consideração aspectos que condizem com os assuntos pertencentes às

categorias da Análise de Discurso, citadas acima.

Para a escolha das cenas analisadas, foi utilizado como critério, coletar três

histórias do início, três histórias do meio e três histórias do fim do documentário, a

fim de conseguir apresentar uma amostra geral do que se passa nos 110 minutos de

Edifício Master.

Após a decupagem, a pesquisadora fez a análise das cenas apresentadas.

Com a aplicação da Análise de Conteúdo, bem como da Análise de Discurso,

tentou-se identificar se as nove histórias selecionadas e contadas no documentário

Edifício Master, de Eduardo Coutinho (ou parte delas), podem ser entendidas a partir

dos valores-notícia.

A fim de permitir a referência a cada cena na análise, elas serão nomeadas

com expressões de fácil associação (pelo nome do morador entrevistado). Será

mantido também, o linguajar próprio do personagem, mesmo que o que ele diga não

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se encaixe nas regras da Língua Portuguesa. Nas cenas em que Eduardo Coutinho

não aparece, apenas narra, será usado o termo off.

5.2 APRESENTAÇÃO DO DOCUMENTÁRIO

Fotograma 1 – Capa do DVD do documentário Edifício Master

Fonte: Imagem extraída do DVD

Todo o documentário se desenrola no interior do prédio, denominado Edifício

Master. Uma das poucas cenas externas acontece logo no início, quando a equipe e

o documentarista aparecem, em registro nas câmeras de segurança, entrando no

edifício. Logo em seguida, as imagens das escadas, dos corredores desertos e das

câmeras de segurança do prédio são mostradas, assim como o que parece ser a

rotina do edifício. Os cortes feitos no documentário são simples e secos, com

enquadramentos em Close22, Meio Primeiro Plano23 e Plano Geral24. Percebe-se

também, que durante as entrevistas, há a manutenção do som ambiente.

22 Close é o plano onde é mostrado o rosto ou parte dele, preenchendo a tela (LUCENA, 2012, p. 72). 23 Meio Primeiro Plano ou Plano Próximo é o plano que enquadra logo abaixo dos ombros. É fechado o bastante para mostrar detalhes do rosto, sem chegar a parecer um “intruso”, como no close (LUCENA, 2012, p. 73). 24 Plano Geral é o plano que inclui todos os personagens ou uma pessoa por inteiro, mais o cenário de fundo. Serve para abrir uma cena, identificando o local (LUCENA, 2012, p. 74).

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A seguir, imagens das câmeras do documentário, mostram a equipe já

dentro do prédio. Coutinho e alguns membros entram no elevador. O corte coincide

com o fechamento da porta. O plano de um dos corredores do prédio mostra, ao

fundo, uma pessoa em frente a uma das portas dos vários apartamentos. A câmera

realiza uma virada panorâmica25, voltando-se para a outra extremidade do mesmo

corredor e segue em um Travelling26, em que o estilo “câmera-na-mão”, confere um

leve tremor à imagem.

Ao longo desse Travelling, no qual se vê um dos longos e escuros

corredores do Edifício Master, com apenas uma luz ao fundo, ouve-se a narração

em off, pela voz do diretor:

Coutinho (off): - Um edifício em Copacabana, a uma esquina da praia. Duzentos e

setenta e seis apartamentos conjugados. Uns quinhentos moradores. Doze andares.

Vinte e três apartamentos por andar. Alugamos um apartamento no prédio por um

mês. Com três equipes, filmamos a vida do prédio durante uma semana.

Nesta breve narração, Coutinho apresenta o local de filmagem e sua inicial

proposta.

5.2.1 Vera

A primeira entrevista que abre o documentário é a de dona Vera, que passou

quase toda sua vida morando no Edifício Master. Assim que acaba a narração em

off de Coutinho, aparece instantaneamente na tela dona Vera contando que se

mudou para o prédio com apenas um ano de idade. Vera é uma senhora de 49

anos, pele branca, cabelos curtos pintados de vermelho e presos lateralmente por

uma presilha. No vídeo, ela está sentada em um sofá, veste uma blusa de mangas

curtas vermelha, brincos de argola (um modelo menor atrás e um maior na frente)

em cada orelha, colar e óculos de grau. Além disso, está usando um batom discreto.

25 Panorâmica: a câmera pode girar em torno do próprio eixo, tanto horizontal quanto vertical (LUCENA, 2012, p. 72). 26 Travelling (Passeio): a câmera pode se movimentar para frente, para trás, lateralmente, para cima, para baixo (LUCENA, 2012, p. 73).

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Possui marcas de expressão no rosto, principalmente na região da boca, que ela

mexe bastante durante sua entrevista. Sua voz é mansa e enquanto fala, gesticula

com as mãos, além de se expressar com os lábios, mostrando sorrisos e até caretas

(quando fala de algo “ruim” que aconteceu no prédio). Percebe-se pela sua fala, que

é uma pessoa observadora, de olhos e ouvidos bem atentos. Não é à toa que

Coutinho a escolheu para ser a primeira entrevistada do documentário. Por viver

praticamente sua vida toda no Edifício Master e por ter esse olhar atento e curioso,

Vera sabe contar como ninguém, o que se passa dentro do prédio. Sabe das

tragédias, das comemorações, da vida da vizinhança, dos murmurinhos, do Master

como um todo.

Vera: - Eu vim pra cá, com um ano.

Coutinho: - Quer dizer que, praticamente, a senhora passou todos os 49

anos, aqui? Quase...

Vera: - (falando com ênfase). Aqui. Todos eles, todos os 49 anos eu passei

aqui, sem nunca mudar do prédio (corte de edição).

Coutinho: - Sempre nesse apartamento?

Vera: - (Olhando para cima, como faz alguém para se lembrar de algo) Não,

não. Eu já morei no... O meu primeiro apartamento que eu morei, foi o 813; morei

depois do 813, eu fui para o 715; do 715 eu morei no 714 (risos), morei no 1102,

morei no 306, morei no 209, morei no 123, morei no 117(corte de edição). 28

apartamentos, que foi assim, ela alugava os apartamentos, e com a ordem dos

proprietários, ela sublocava. Ela mobiliava o apartamento e a pessoa gostava do

nosso apartamento, entendeu? (sorrindo) Então, a gente pulava para outro, sempre,

às vezes, a nossa vida era de cigano, mas sempre dentro do mesmo edifício (corte

de edição).

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Dona Vera fala também sobre a mudança que o edifício sofreu, pois antes

era um “antro de perdição muito pesado” e agora é “um prédio familiar”.

Vera: - (Séria) Aqui, antigamente havia, eu vou falar primeiro, o apanhado

geral, pra “mim” depois entrar nos detalhes. Aqui era um antro de perdição muito

pesado (corte de edição), houve suicídios, houve mortes de porteiros, houve

assassinatos, isso já foi muito, muito pesado. Então assim, nos corredores, haviam

mulheres caídas, havia filas, entendeu? De mulheres e de homens, esperando o

freguês sair, para entrar outro, sabe? (coçando a cabeça). E então, havia muitas

cafetinas aqui (olhando para cima). (corte de edição). Depois, tiveram as mortes

naturais, (colocando a mão na boca, constrangida) que eu me lembre, posso falar?

O 608, morreu uma amiga lá, minha.

Coutinho: - (Coutinho se surpreende pelo fato que Vera contou). O

apartamento que a gente tá morando?

Vera: - O apartamento que vocês estão (corte de edição). Houve muita

mudança aqui no prédio. As pessoas “malgradas” saíram. Tem muitas pessoas de

bom grado aqui. Graças a Deus, aqui agora é um prédio familiar.

Fotograma 2 – Dona Vera, primeira entrevistada do documentário

Fonte: Imagem extraída do DVD

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Acaba a entrevista de dona Vera e a tela é ocupada por um Plano Geral. A

imagem mostra um grupo de moradores que está no hall do prédio. A câmera segue

em direção à sala da administração, quando o entrevistado já está conversando com

a equipe, Coutinho entra e é recebido com boas vindas. Essa é a segunda entrevista

do documentário e o depoimento é do síndico Sérgio que, junto como o porteiro-

chefe, são as únicas entrevistas, que não acontecem dentro de algum apartamento

do edifício.

5.2.2 Sérgio

Sérgio é um homem de meia idade, pele branca, olhos e cabelos pretos. No

vídeo, ele está sentado em uma cadeira, atrás de sua mesa que fica na sala da

administração do prédio. Sérgio veste uma camisa com gola polo, mangas curtas,

cinza com vermelho. Seu rosto não tem barba, mas uma de suas características

marcantes é o bigode que potencializa ainda mais suas expressões faciais (sorri

bastante, arregala os olhos e encara o entrevistador). Síndico do Edifício Master, o

discurso de Sérgio é marcado por frases de efeito. Fala com muita desenvoltura,

sempre procurando demonstrar sua capacidade e autoridade. Ele resume o prédio

como um lugar onde se vive a realidade. Diz isso para falar das suas dificuldades

enquanto síndico, disposto a moralizar um condomínio que, até pouco tempo, era

um antro de drogados, de travestis, de prostitutas, de cafetinas e de quartos de

massagens, misturados às famílias que lá residiam. Isso tudo, nas palavras dos

moradores.

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Fotograma 3 – Sérgio, síndico do Master

Fonte: Imagem extraída do DVD

Sérgio: - Seja bem-vindo, à sala da administração (gargalhada e corte de

edição). Tô feliz, eu me sinto feliz, porque (olhando para cima, como faz alguém

para se lembrar de algo) eu tô aqui desde 8 de abril de 1997 (corte de edição) e a

minha gestão agora foi reeleita em março e vai até 2003. Eu espero poder fazer

muito mais, o meu objetivo não é, vamos dizer assim, eu queria botar um prédio

bonito, digno, decente e graças a Deus, eu consegui (corte de edição). Eu uso muito

Piaget, quando não dá certo, eu parto pro Pinochet (arregalou os olhos), que é uma

realidade, “né”? Como diz o outro, eu uso muito ditados, “né”? (Encarando Coutinho,

como se perguntasse: “entende o que eu estou falando?”). A realidade da vida é

sempre um funeral das ilusões, “né”? (acenando com a cabeça positivamente).

Então, quando essa gente tá “viajando na maionese”, que você mostra a realidade

pra eles, eles caem. Aí se chocam diante da realidade. E é isso aí que eu tento

mostrar (batendo com o dedo na mesa). Vamos do Piaget, com educação, com

muito carinho; eu dou amor e eu quero receber amor. Mas, eu não posso exigir o

amor, é o que eu digo sempre, essas coisas não se exigem, se cativam.

Na sequência a seguir, aparece em Plano Geral o corredor, com um homem

fazendo a limpeza. Logo após, em Meio Primeiro Plano, é mostrada a imagem da

moradora Renata que já inicia falando, sem que Coutinho introduza o começo da

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sua entrevista. Nesse trecho, os cortes são secos e a intervenção de Coutinho é

mínima, o que serviu para enriquecer a narração do sujeito.

5.2.3 Renata

Renata é uma jovem negra, com olhos castanhos, cabelos pretos e

cacheados abaixo dos ombros. No vídeo, ela está sentada no que parece ser a sala

do seu apartamento. Está vestindo uma blusa de mangas curtas branca, com a parte

de cima de um biquíni rosa por baixo da blusa. Não usa maquiagem, mas usa

brincos de argola grandes, pulseira e um óculos de sol que está em cima de sua

cabeça.

Durante sua entrevista, Renata é bastante expressiva. Movimenta os

ombros, mãos, braços e olhos. Além disso, mexe constantemente no cabelo, se

mostrando inquieta durante sua fala.

Fotograma 4 – Renata, jovem negra e sonhadora

Fonte: Imagem extraída do DVD

Renata: - (Sorrindo). Meu namorado é americano.

Coutinho: - Como é que ele é?

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Renata: - (coçando o nariz e jogando o cabelo para trás). O Christopher,

meu Deus, ele caiu na minha vida, foi uma glória, (batendo as palmas das mãos e

olhando para baixo) entendeu? Ele sim, ele me liga todo dia, (olhando para os lados,

como se estivesse procurando seu celular) deve tá doido, meu celular tá desligado.

Coutinho: - Ele tá onde agora?

Renata: - Ele mora em Greenville, Estados Unidos, uma cidade (olhando

para cima). Ih, ele me deu apartamento, ele quer casar comigo. Eu tô pensando em

ano que vem ir pra lá, entendeu? Só que eu quero esperar um pouco, porque ele tá

demais, sabe? (Franzindo a testa e apertando os olhos). Todo dia ele me manda e-

mail, liga, bota dinheiro na minha conta, fala que me ama.

Coutinho: - (corte de edição) Como é que ele te trata?

Renata: - Ah, chocolate baby. Ele me chama de chocolate baby, então eu

chamo ele de chocolate white (risos) (corte de edição). (enrolando o cabelo com as

mãos e torcendo). Ele é muito irado, muito irado, principalmente, ele é muito

brincalhão, sabe? “Pô”, nem parece. Ele tem 42 anos e ele é presidente de uma das

mais famosas empresas de associação nos Estados Unidos.

Coutinho: - Ele é solteiro? Casado? Viúvo?

Renata: - É solteiro. Ele é meu (risos). Ele teve um filho lindo, que me adora,

o filho dele. Nossa...

Coutinho: - O filho conhece você?

Renata: - Conhece. Eu conheço a mãe dele, o filho dele teve aqui, mas a

mãe dele não (olhando para baixo). A mãe dele também manda e-mail pra mim,

sabe, parece que a casa dele é imensa. Parece que ele foi abandonado, sabe?

Tadinho do meu bebê gente, que a mulher dele era meio neurótica, aí foi embora

com outro homem, deixou ele com o filho (penteando o cabelo com as mãos), aí ele

ficou meio traumatizado. (Cheirando uma mecha do cabelo). Já tem dois anos que

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ele se separou, entendeu? E eu penso que ele encontrou em mim, uma coisa que

ele tava procurando, entendeu? (corte de edição) Eu sonho em poder fazer uma

coisa, que eu saí da minha casa e falei. Minha mãe falou assim ó: “você quer morar

com a sua prima, tudo bem. Eu não dou uma semana pra você passar fome lá e vir

correndo pedir um prato de comida pra mim.” E eu sou uma mulher muito orgulhosa,

falei: “mãe, só puta eu não vou virar e nem matar ninguém, mas posso passar fome,

mas na tua casa eu não venho mais” (sorrindo).

Coutinho: - Por quê?

Renata: - Porque eu namorava um garoto e minha mãe, por ser sempre

muito liberal com as minhas amigas, (apontando para frente com uma pinça na mão)

eu pensei que comigo... do do nada, eu peguei e engravidei (corte de edição).

(segurando o cabelo para trás). Eu sou hiper contra o aborto. Contra, contra, contra,

contra...

Nesse momento da entrevista, Renata começa a ficar séria.

Renata: - Minha mãe tinha medo do que os outros iam falar, entendeu? Não

é nem por ela, tinha medo do que os vizinhos iam falar. Por isso que eu me

revoltava mais (corte de edição). Aí ela pegou, tirou o pagamento dela e me levou

numa curiosa, que chamam. Um centro espírita, onde as mulheres fazem abortos lá,

entendeu? E toda mulher que vai lá, faz o negócio lá e, no dia seguinte, o neném

desce (corte de edição). No dia seguinte, o neném não desceu. Conclusão: ficou me

infectando por dentro, entendeu? Eu fiquei três dias com o neném morto na minha

barriga, no quarto dia, me deu 42 graus de febre, entendeu? (corte de edição)

Quando eu tava quase pra ficar boa, minha mãe falou assim: “Agora você tá bem,

vamos”. Falei: “Olha só, você pode não lembrar do que você disse, mas você falou

pra mim, que eu, com filho na sua casa, não ia ficar. Então, sem filho, você também

não vai querer. (olhando para baixo). Gosto muito de você”. Eu não podia ver minha

mãe chorando, que eu me caía em “plantos”, entendeu? (corte de edição)

Para encerrar seu depoimento, Renata volta a descontrair.

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Renata: - Hoje eu sou a Renata, pronto e acabou. A “number one” Brasil

(risos). Não tem ninguém, ninguém me deixa mais pra baixo (olhando para baixo).

A próxima entrevista a ser analisada é o depoimento de Daniela, professora

de inglês, com sociofobia27. Durante os primeiros minutos de entrevista, a

personagem se coloca em posição lateral em relação ao diretor e os braços

envolvem as pernas. A câmera a enquadra em perfil. Daniela fala da dificuldade de

encarar e olhar nos olhos das pessoas, inclusive, em quase todo o depoimento, ela

não consegue olhar nos olhos de Coutinho, sempre desviando seu olhar da câmera

e, consequentemente, do espectador. Outro elemento que difere essa entrevista das

outras do documentário, é que Coutinho interfere mais vezes na fala de Daniela,

para conduzir melhor a entrevista, devido à professora ter dificuldade em conversar

com estranhos.

5.2.4 Daniela

Daniela é uma jovem de pele branca, olhos pretos e cabelos castanhos,

ondulados, na altura dos ombros. No vídeo, ela aparece sentada e está vestindo

uma blusa de mangas longas colorida e listrada. Daniela não utiliza nenhum adereço

e não está maquiada. Durante sua entrevista, a professora é bastante eloquente e

articulada, apesar de sofrer de sociofobia. Com as dificuldades enfrentadas pela

neurose e a sua fobia social, ela utiliza a poesia e a pintura como válvulas de

escape.

27 Fobia Social ou Sociofobia é um traço do caráter que se traduz numa tendência para o isolamento, com receio das implicações sociais. Revista Brasileira de Psiquiatria: O tratamento farmacológico da fobia social. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44461999000400015>. Acesso em: 06 maio 2017.

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Fotograma 5 – Daniela, professora de inglês, com sociofobia

Fonte: Imagem extraída do DVD

A entrevista de Daniela começa com a imagem da equipe de Coutinho, na

porta do apartamento dela.

Equipe de Filmagem: - Ué, mas você não se lembrava que era esse

horário, que a gente tinha combinado?

Daniela: - Lembrava sim, só que eu fui acordada ao ser chamada à porta.

Equipe de Filmagem: - Tem problema, da gente estar filmando?

Daniela: - Não, o problema é de quem vai assistir, porque eu acabei de

acordar e essa é a minha cara.

Nesse momento, Daniela abre a porta do seu apartamento e deixa a equipe

de Coutinho, juntamente com ele, entrar e fazer a gravação da entrevista. Em Meio

Primeiro Plano, o diretor inicia o depoimento com a professora.

Coutinho: - E você é professora?

Daniela: - Sim (acenando com a cabeça). (corte de edição).

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Coutinho: - De inglês, né?

Daniela: - É, porque eu morei oito anos em New Orleans.

Coutinho: - Por que você morou lá?

Daniela: - Porque minha mãe era do Consulado.

Coutinho: - Trabalhava no Consulado?

Daniela: - Sim.

Coutinho: - Você vive aqui com um gato? Como é que é?

Daniela: - É, eu moro sozinha com três gatinhos. Eu tinha gatos machos,

mas, como eu não castrei as bebês e então, eu tive que abrir mão disso, foi um

golpe pra mim muito duro. Mas, tudo bem, eu moro com as três e metade da

semana, meu namorado vem, mas...

Coutinho: - Seu namorado vem aqui?

Daniela: - Ele vem (corte de edição). Eu tenho problemas de neurose e de

sociofobia e a aglomeração típica do vai e vem em Copacabana, faz com que eu

chegue em casa muito estressada.

Coutinho: - Multidão, essa coisa toda?

Daniela: - É, porque eu não sei se são pessoas de mais ou calçadas muito

estreitas ou se é uma fusão desagradável dos dois elementos. (Nesse momento, a

imagem amplia e aparece Coutinho, de costas, com a mão no queixo e Daniela na

mesma posição lateral do início da entrevista) Eu sei que pode ser feio, tá? Mas eu,

muitas vezes, fico contente quando eu subo e desço no elevador, sozinha. Não

porque eu não vou perder tempo parando em outro andar, mas porque eu sei que

não vou ter que ver e nem ser vista. (Retorna o enquadramento em perfil).

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Coutinho: - Posso te perguntar uma coisa?

Daniela: - Pode.

Coutinho: - Por que que a gente conversa e você não olha pra mim?

Daniela: - (instantaneamente, após a pergunta, Daniela olha para o diretor,

meio surpresa pelo questionamento). Não porque o que eu esteja dizendo não tenha

veracidade (voltando a olhar para o lado), mas porque eu, não sei se eu tenho

autoconfiança pra encará-lo (fita os olhos em Coutinho mais uma vez e pisca

repetidamente), sem talvez, gaguejar ou piscar compulsivamente.

Coutinho: - Na pesquisa também, você olhava meio de lado assim?

Daniela: - Exatamente, eu tenho esse problema. Eu só forço a barra,

quando, por exemplo, eu vou numa entrevista de trabalho. Ou elas acham que você

tá mentindo. (Muda o tom de voz, e fala com sarcasmo) “Não está me olhando nos

olhos, então você teme, você deve”. (Fala bem baixinho). E como eu não tô

devendo, nem temendo... ( Volta o tom normal da voz). Aqui eu não tô devendo,

mas eu tô temendo.

Coutinho: - Temendo?

Daniela: - É claro, você acha que o fator que impulsiona a pessoa não ter o

tête-à-tête (olhando para Coutinho e apontando para o seu rosto), é o quê? É o

medo, né? (corte de edição). (Com os braços envolvidos no próprio corpo). Olha, eu

sinto bastante necessidade de escrever, como válvula de escape, mas ultimamente,

eu não tive inspiração pra poetizar, né? É isso... (corte de edição). Esse aqui é um

versinho chamado “Opium Dreams”.

Nesse trecho, Daniela lê o versinho que escreveu em inglês.

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Daniela: - “Opium dream, fields so green. Bright mind, bright future. If they

ever reach her let her be a sculpture or free her from third-world-culture.” O senhor

entendeu?

Coutinho: - Eu entendi no geral, mas você podia, pro público entender,

traduzir em português.

Daniela: - Sonhos de Ópio, campos tão verdes. Mente brilhante, futuro

brilhante. Se a alcançarem, a tornem uma escultura ou a libertem da cultura de

terceiro mundo.

Daniela mostra um quadro que pintou, intitulado A Floresta do Meu

Desespero. Segundo ela mesma, a obra “fala sobre paranoia e desamor”.

Daniela: - O simbolismo me toca profundamente, né? Isso aqui (segurando

o quadro nas mãos), eu anotei o nome, traduzindo, porque eu boto os nomes em

inglês, é A Floresta do Meu Desespero, que fala de paranoia e desamor (corte de

edição). A floresta é um lugar tão dúbio. A floresta é você explorar, é arborização, é

oxigênio, é aventura e é enigma, né? É o que puxa a curiosidade, inclusive muito

citada nas histórias infantis, né? Inclusive, as que colocam mais terror (corte de

edição). E aqui (referindo-se ao quadro e apontando para o mesmo), são os olhares

que colocam a selva de pedra como um lugar em que há muita paranoia e há muita

invasão e que, de alguma forma, parece que estamos sempre sendo assistidos

(corte de edição). Mas é, esteticamente é ridículo, mas eu não ligo, porque eu não

tenho pretensão e isso aqui, pra mim, no dia, foi balsâmico, eu resolvi muitas coisas!

Na sequência, o vídeo mostra, em Plano Geral, várias imagens de janelas,

de vários apartamentos do Edifício Master, tendo ao fundo ruídos de uma

construção e da rua. A cena a seguir é da equipe de Coutinho na porta do

apartamento do senhor Roberto, que surpreende Coutinho com sua audácia, ao

perguntar se o documentarista tem um emprego para lhe oferecer.

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5.2.5 Roberto

Roberto é um senhor de 65 anos, de pele branca, olhos e cabelos castanhos

(calvo). No vídeo, ele está sentado em um sofá, vestindo uma camisa social branca,

estampada. De ascendência italiana, Roberto se mostra uma pessoa muito emotiva,

principalmente quando fala da perda dos pais. Durante sua fala, demonstra

sinceridade no que diz e se expressa bastante com as mãos e os olhos. Em alguns

momentos de sua entrevista, seu olhar é triste e sem esperança. Relata sua

dificuldade em conseguir um emprego e sua debilidade física.

Fotograma 6 – Roberto, camelô e desempregado

Fonte: Imagem extraída do DVD

Homem: - Oi.

Equipe de Filmagem: - Ai, acho... Aqui é a casa do Seu Roberto?

Homem: - Sim.

Equipe de Filmagem: - Ah tá! Ele tá aí, né? (corte de edição).

A equipe vai entrando no apartamento.

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Equipe de Filmagem: - (A imagem está escura e o áudio é bem baixo) Seu

Roberto, é uma equipe, tá? Você é neto dele? (referindo-se ao homem que atendeu

a porta). (corte de edição).

Coutinho: - O senhor trabalha onde?

Roberto: - Olha meu filho, eu trabalho de camelô, mas eu já fui um homem

bem de vida, tive muitas casas, mas, ah: eu morava em Santa Tereza, morava em

Santa Tereza, tive muitas profissões na minha vida. Trabalhei muito nesse mundo,

enquanto muita gente ia tomar sua cervejinha, eu ficava trabalhando, trabalhei muito

dia e noite, sem parar... (corte de edição). Mas, infelizmente, eu fiquei doente, eu

tive um derrame cerebral, fiquei seis meses num hospital, sem poder me mover.

(corte de edição). Olha, eu já tô com 65, vou fazer 66 anos. Doente, nessas

condições, quem é que vai me dar emprego? Pra dar emprego pra um garoto novo

tá difícil, quanto mais pra um velho cheio de problema. Então, não tem emprego pra

uma pessoa igual a mim. O senhor quer me dar um emprego? (com uma expressão

fechada e sem esperança, ele fala dirigindo-se à Coutinho).

Nesse momento, Coutinho fica embaraçado com a pergunta de Roberto e ao

responder, chega a gaguejar.

Coutinho: - Eu não tenho nem emprego pra dar, mas eu que/ é claro que

hoje em dia não é nem (cinquenta por cento)... (Escolheu-se colocar parte da fala

entre parênteses, pois, antes que Coutinho terminasse de falar, Roberto o

interrompe. Por trás da fala de Roberto se ouve a conclusão de Coutinho, dizendo o

que está dentro dos parênteses).

Roberto: - (Roberto interrompe Coutinho, pois vê que constrangeu o diretor.

Ele sorri, seu olhar é triste e direto). O senhor é uma pessoa muito simpática e muito

amável, eu lhe agradeço... (olhando, provavelmente, para alguém da equipe de

Coutinho) é ou não é? (olhando em direção a Coutinho). Mas, é isso a “reali”, mas, a

realidade é a realidade, não é meu? (corte de edição).

Coutinho: - O senhor é casado, separado, como é que é?

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Roberto: - Eu sou casado, mas já sou separado já, uns 30 anos (risos).

Mas, me dou muito bem com a minha, com a minha esposa. Me dou muito bem; que

eu sou separado dela, mas não sou divorciado não. É, nós somos amigos, eu quero

muito bem a ela, muito bem mesmo. Quero todo bem desse mundo a ela, uma

pessoa maravilhosa. Só que não deu, não deu (corte de edição). (Close no rosto de

Roberto). Olha, pra lhe ser sincero, o senhor vai até rir de mim. Eu sou uma pessoa

muito emotiva (olhando para Coutinho). Eu choro por qualquer coisa, sou muito

emotivo, eu sou da raça italiana né? Sou muito emotivo (desviando o olhar da

câmera), mas a questão aí não é de emotividade não, a questão é a... Respondendo

a pergunta que o senhor me fez, eu sinto muito, mas, muito, muito, muito a morte da

minha mãe (com os olhos marejados). Ela poderia estar um “caquinho”, mas eu

queria ela do meu lado. Sinto demais a morte do meu pai (corte de edição). Claro, a

vida continua, existe a continuação né? (pausa longa) O senhor não tá aí? Não teve

os seus pais? O senhor não cresceu, não se casou, não teve seus filhos, não teve a

continuação da vida? Não abandonou a casa dos seus pais? Não foi ter que formar

sua família? Isso não é a continuação da vida? Por que os filhos, não “é” pra gente

não.

5.2.6 Alessandra

A entrevista que segue, após a de seu Roberto, é a de Alessandra, uma

moça que, na época da gravação do documentário, entregava-se à prostituição.

Alessandra é uma jovem de 20 anos, negra, de cabelos curtos avermelhados e

olhos castanhos. No vídeo, ela aparece sentada, vestindo uma camiseta preta,

estampada com a bandeira dos Estados Unidos, com uma jaqueta jeans por cima.

Seu rosto está sem maquiagem e ela está usando brincos compridos. Mãe de uma

menina de seis anos, Alessandra faz programas para se sustentar e sustentar a

filha. Seu discurso é autêntico e corajoso, além disso, seu rosto é bem expressivo.

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Fotograma 7 – Alessandra, mãe e garota de programa

Fonte: Imagem extraída do DVD

Coutinho: - E de onde você é?

Alessandra: - (Sorrindo). Eu sou de Belo Horizonte.

Coutinho: - E como é que foi tua infância?

Alessandra: - (respira fundo) Eu não tive infância. A minha infância... Eu

não tive infância (chacoalhando a cabeça lateralmente e mexendo os ombros), só

isso.

Coutinho: - O que quer dizer isso?

Alessandra: - Ué? Porque eu “num”, “num” tive “liberdad”/ liberdade de, pra

assim, pra ser uma criança normal, brincar... Eu não tive essa liberdade sobre isso.

Coutinho: - Não teve isso?

Alessandra: - Não, porque meu pai nunca deixava. Aí, é com 14 anos eu já

fui mãe. Acabou a infância.

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Coutinho: - E como é que foi essa historia de ser mãe? Conta... Foi a

primeira vez que você transou?

Alessandra: - (com ênfase na resposta). Foi, foi o primeiro homem que eu

encostei a mão. Que, que eu nunca, eu não saía de casa pra nada, era escola, casa,

essas coisas... Meu pai não deixava, ele quase me buscava na escola pra mi/pra

“mim” não chegar perto de homem nenhum. Que ele gos/ que ele queria me

proteger de qualquer jeito de todo mundo. Aí foi assim, e quando foi a primeira vez

que eu saí, que eu conheci o pai da minha filha, que aí eu pensei, eu não sabia que

eu não, eu não sabia o que que era paixão. Eu tinha 14 anos, mas eu achei que eu

estava apaixonada. E aí eu fui, me entreguei, engravidei. Ai, que ódio! (fechando e

apertando os olhos).

Coutinho: - E daí? Você fez o quê? Abortou?

Alessandra: - Não, não, minha mãe não deixou não, eu che/ eu falei com a

minha mãe, eu nunca menti pra minha mãe. Eu falei pra minha mãe: tá acontecendo

alguma coisa estranha no meu corpo. Eu acho que eu tô grávida. Porque eu não

tinha quadril, estava diferente, estava tudo diferente. Aí eu falei pra ela, eu acho que

eu estou grávida. Minha mãe ficou desesperada, meu pai... a gente ficou sem

conversar um ano. Depois, a gente voltou a conversar, depois que ele viu que não

tinha nada a ver, que ele era culpado de tudo o que aconteceu comigo aí.

Coutinho: - E nasceu então?

Alessandra: - Nasceu (sorrindo).

Coutinho: - Filho ou filha?

Alessandra: - Filha.

Coutinho: - Como que chama?

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Alessandra: - Alexia Caroline (corte de edição). (sorrindo) Ai, a primeira vez

que foi meu primeiro programa, foi muito legal.

Coutinho: - Como é que é? A primeira vez?

Alessandra: - Primeiro, meu primeiro programa foi muito legal, porque

assim, foi legal porque quando eu peguei aquele dinheiro, eu fiquei desesperada. Eu

nunca tinha pegado naquele dinheiro. Era o quê? “Foi” 150 reais, mas, pra mim,

aquilo foi tudo, eu falei: nossa! 150 reais! Eu trabalho um mês pra ganhar isso, eu

trabalhava, eu ganhava 136. Eu falei: Nossa! Aí eu falei com a minha filha: vamos,

vamos “pro” shopping. Ah, a gente comeu, comeu o dinheiro todo no McDonald’s,

sorvete... Ai, muito bom... (sorrindo). Muito bom, hoje eu não tenho coragem de

fazer isso não, tá é doido? Mas aquele dia foi muito bom.

Coutinho: - Não tem coragem de fazer o quê?

Alessandra: - De gastar 150 reais em McDonald’s. Tá louco? Hoje não faço

não, mas aquele dia, pra mim, foi igual uma criança quando ganha o brinquedo que

mais quer. Ah, eu comi muito.

Coutinho: - (corte de edição) E como é que é viver assim?

Alessandra: - Como é que é? “Uhn”... Ai, não é bom. Não é o que o pessoal

fala assim, é uma vida fácil... Não é. Porque é muito, muito nojento. Você sai com a

pessoa e você pode até gostar dela, por ela ser uma pessoa interessante, uma

pessoa inteligente. Você gostar, depois no outro dia, você acordar e essa pessoa te

dá um dinheiro. Não é bom e não é um dinheiro fácil, como o pessoal pensa. Porque

é muito difícil, a gente passa por muita humilhação. Escuta o que não quer, é

humilhada, muito humilhada. Isso não é fácil, igual o pessoal...

Coutinho: - E no sexo, tem que fingir? Como é que é?

Alessandra: - Eu bebo pra fazer alguma coisa. Eu tenho que beber. Normal,

eu prefiro nem ir trabalhar. Eu bebo, por isso que eu falei pra eles, eu bebo todo dia.

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Porque eu tenho que trabalhar todo dia. Porque eu tenho que sustentar minha filha,

minha família. Então eu bebo todo dia, pra criar coragem, porque normal eu não

consigo.

Coutinho: - E você, assim, mas você tem, por exemplo, fora dinheiro,

namorado?

Alessandra: - (risos) Ah, “hã”... Não!

Coutinho: - Não tem nenhum namorado?

Alessandra: - Não... (pensando melhor): tem rolo. É, “ôh” poxa, eu ainda, eu

me considero uma adolescente, só tenho 20 anos.

Coutinho: - (corte de edição). Me diz uma coisa, você gosta de beber?

Alessandra: - Eu gosto (fazendo sinal afirmativo com a cabeça) mas, eu

espero a minha morte a qualquer momento. Eu já falei pra minha mãe, a hora que

eu morrer, não chora. Porque eu vou tá melhor do que todo mundo aqui né?

Coutinho: - Por que que você acha isso?

Alessandra: - Ah, porque quem morre tá melhor do que quem tá aqui nesse

mundo. Esse mundo é muito ruim, tem muita pessoa ruim. Por isso que eu falo, na

hora que eu morrer, eu vou ficar, eu vou ser é feliz. Eu não quero morrer não, eu

amo a minha vida, mas, eu não quero morrer não. Mas eu sei que eu não vou parar,

eu vou parar de sofrer, eu vou parar de sofrer. Não vou ter que ficar me esforçando,

não vou ter que trabalhar. “Óh”, que bom! Acordar às sete horas da manhã é muito

ruim. É verdade, eu não gosto de trabalhar não (risos). Eu não gosto, eu trabalho

porque eu tenho que sustentar a minha filha, mas se eu pudesse, eu ficava na

mordomia.

Coutinho: - Mordomia o que que é?

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Alessandra: - (Sorrindo, como se estivesse imaginando aquilo que está

falando). Ah, acordar meio-dia, o almoço pronto. Acho que eu tenho que casar com

um milionário. O almoço pronto, ficar ench/ eu e minha filha ficar brincando o dia

inteiro, enchendo o saco uma da outra. Telefonando pra todo mundo. É isso, é isso,

é o que eu queria.

Coutinho: - (corte de edição). Eu quero saber assim, como é que você teve

coragem? É um depoimento corajoso, entende? Por que você tomou a decisão de

falar? Porque é um filme que vai passar no cinema depois. Explica isso.

Alessandra: - (Mordendo o lábio). É... não é coragem. É, isso nu/... isso é

normal. Eu acho normal. Isso, pra mim, é uma coisa normal. Eu falei com ela

(referindo-se à produtora), eu acho isso normal. O pessoal de hoje em dia, no

mundo que a gente tá, o pessoal tem uma cabeça dos anos antes de Cristo. Já

passou, hoje, no mundo, é tudo normal. Nasce gente, de tudo quanto é jeito. É

homem com homem, mulher com mulher, né? É ci/ 50 mulher pra cada homem. É

cada coisa que não deveria ser normal. É gente roubando gente, é político roubando

gente, é ladrão roubando de pobre, né? Ladrão pobre, roubando de pobre, ladrão

rico roubando de pobre. É po/ é gente roubando de gente, e aquela coisa toda, o

pessoal acha normal. Por que que eu ser, eu fazer programa é anormal? É coisa de

alguém vir me apedrejar? Não acho isso, por isso que eu falo mesmo, eu não tenho

vergonha. No meu bairro todo mundo sabe, a minha família toda sabe e quem quiser

gostar de mim, vai ter que gostar assim. Não acho isso anormal.

Coutinho: - Eu posso te perguntar uma última coisa só? E você, quando a

sua filha crescer, ela tá com seis anos, né? Você pretende dizer a verdade pra ela?

Ou...

Alessandra: - (com ênfase na resposta). Vou. Que é isso minha filha, eu

vou di/ eu vou orientar minha filha de tudo (movimentando o braço esquerdo, com o

punho cerrado). Quando a minha filha tiver com 14 anos, eu vou comprar remédio

pra ela, já falei com a minha mãe. Vou comprar remédio, porque eu não vou fazer

igual a minha mãe fez comigo. Vou falar pra ela: “óh, eu fiz isso e isso e isso e isso”.

Eu não quero, nem ela, nem minha irmã, não quero que façam o mesmo. Eu vou

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trabalhar pra pagar os “estudo”, curso... Tudo que ela quiser fazer, ela e a minha

irmã quiser fazer, eu ajudo, eu pago, eu dou, eu faço tudo, pra não faz/ fazer o

mesmo. Mas se quiser fazer, você acha que eu vou proibir? Não vou não, vai doer

igual doeu na minha mãe. Claro, é minha filha, mas, paciência. Eu vou falar: “olha, tá

doendo, você tá me magoando”, mas aí eu vou pa/ eu acho que não vou falar isso

não, porque se eu falar, ela vai falar: “ei, você magoou a minha avó e ela não falou

isso pra você”.

Coutinho: - (corte de edição). Você disse assim: “eu minto muito”...

Alessandra: - (Apertando os olhos e sorrindo). Eu sou muito mentirosa e eu

conto mentira. E eu acho que pra gente mentir, a gente tem que acreditar na

mentira, pra mentira ficar bem feita. E eu sou assim, sou muito mentirosa. Muito

mesmo. Eu até choro pra “mim” acreditar na minha mentira. Depois, até tenho disso:

você sabe que tem mentira que eu acabo acreditando que é verdade?

Coutinho: - O que você mentiu nessa conversa de hoje, nossa?

Alessandra: - (Alessandra se surpreende com a pergunta e sorri). Ah, agora

não menti nada, não (corte de edição). Ontem eu menti pra eles (referindo-se à pré-

entrevista realizada pela produção). É porque eu não queria vir, eu estava com

medo de fazer essa entrevista. Eu menti, eu falei: “vou sair. Fala que não sabe que

horas eu vou chegar, não”. Assim que saíram daqui, eu cheguei. Eu não queria; eu

tava com medo. Mas hoje eu não tava mentindo, hoje eu esqueci mesmo e nem

passava pela minha cabeça que eu tinha que fazer entrevista. Tava viajando hoje,

nem lembrava. Mas ontem, eu menti. Você vê como sou uma mentirosa verdadeira

(sorrindo). Eu falo mentira, mas eu falo a verdade.

5.2.7 Maria Pia

A próxima cena a ser decupada é o depoimento de Maria Pia, uma senhora

que veio da Espanha, ainda jovem, para morar no Brasil. Maria Pia tem cerca de 60

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anos, de pele branca, cabelos curtos e grisalhos e olhos azuis. No vídeo, ela está

sentada em cima de uma cama, dentro de um quarto. Seu neto Felipe, de cinco

anos, está sentado ao lado dela. Maria está vestindo uma camisa social bege e

usando um colar. Está sem maquiagem. Em seu rosto, várias marcas de expressão

e quando fala, percebe-se um sotaque espanhol bem “carregado”. Durante sua

entrevista, em alguns momentos, ela muda de postura e aumenta o tom da voz,

interrompendo, por várias vezes, a fala do diretor. Possui opiniões fortes e uma

ideologia polêmica sobre a pobreza.

Fotograma 8 – Maria Pia, espanhola e empregada doméstica

Fonte: Imagem extraída do DVD

Coutinho: - A senhora nasceu aonde?

Maria Pia: - Espanha.

Coutinho: - E como é que veio parar aqui?

Maria Pia: - (Falando com sotaque espanhol “carregado”). É o destino que

resolve a situação da vida das pessoas. Eu more/ eu nasci na aldeia, perto de

Santiago de Compostela, por isso na província de, de La Coruña (corte de edição),

bem jovem, com 17, 18 anos já saí, já fui pra Santiago de Compostela. Trabalhei

num hotel, até que eu resolvi “vim” pra cá.

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Coutinho: - Sozinha?

Maria Pia: - Sozinha.

Coutinho: - (corte de edição). Já começou a trabalhar aqui, logo? Como é?

Maria Pia: - Não assim, eu fiquei só 11 dias sem trabalhar.

Coutinho: - E onde a senhora foi trabalhar?

Maria Pia: - Eu fui trabalhar nessa casa que é, até hoje, na Avenida

Atlântica.

Coutinho: Copacabana?

Maria Pia: - Copacabana mesmo.

Coutinho: - E a senhora trabalhava, era empregada lá?

Maria Pia: - Eu sou empregada doméstica, até a vida inteira, até hoje. Eu

sou se/, até hoje eu sou e tenho muita honra de ser doméstica, porque muita gente

tem vergonha, mas eu acho ignorância. Eu acho, é pobreza de espírito. Porque a

pessoa, trabalhando honestamente, todo trabalho é bom.

Coutinho: - (corte de edição). Chegou a voltar e ver a sua terra? A

Espanha?

Maria Pia: - Sim, eu fui com dez anos de Brasil, eu já fui. Porque aí o meu

patrão me pagou a passagem. Só tinha a filha mais velha, né? Eu ia grávida do

Fernando, aí fui, fui lá ver meu pai. Depois, voltei agora o ano passado. Fui lá de

novo, mas agora eu fui na Europa, né? Não fui só, não foi só a Espanha, eu fui na

Europa inteira.

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Coutinho: - (corte de edição). E como é que a senhora teve condições de

viajar (pra Europa)? (Antes que Coutinho terminasse de falar, Maria Pia o

interrompe. Por trás da fala dela se ouve a conclusão de Coutinho, dizendo o que

está dentro do parênteses).

Maria Pia: - Ué? A vida toda, a gente não guarda uns trocados? Eu sempre

fui muito econômica. Eu não gasto com nada que possa... Eu já, eu já não gasto por

medo de faltar. Então, a gente vai juntando a vida inteira, vai juntando, vai juntando

(corte de edição). Os problemas... faz parte da vida. Eu, quando tenho problemas

não, não coragem pra resolvê-los, não é um fracasso. Então, eu graças a Deus

sempre tive coragem pra resolvê-los e fui sempre em frente. Eu me sinto uma

vitoriosa.

Coutinho: - (pausa longa). (A imagem fica parada no rosto de Maria Pia, ela

olhando para Coutinho e esperando a próxima pergunta). A senhora acha que quem

tiver disposição e vontade de lutar, esse negócio de pobreza e tudo dá pra...

Maria Pia: - (Fala com ênfase e em tom de reclamação). Não existe

pobreza. Isso é da cabeça das pessoas, isso é palhaçada. Que pobreza nada, ficam

falando pobreza, que pobreza? Não existe pobreza. Existe pobreza em outros

lugares, onde tem guerra, né? Onde tem essas misérias assim, que não tem onde

plantar, onde não tem como plantar tudo sim... Mas, um país como o nosso, um país

nosso é a coisa mais rica do mundo.

Coutinho: - E como é que é?

Maria Pia: - Pra mim, é o primeiro mundo, não é nem a América. Pra mim, é

o Brasil que vive. Nós temos tudo, é só querer trabalhar, rapaz.

Coutinho: - Quer dizer que a senhora acha que as pessoas pobres...

Maria Pia: - (Falando mais alto e interrompendo a fala de Coutinho). Isso é

besteira, é porque não querem fazer nada. Eu lido com pobre, já há 40 anos que eu

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estou no Brasil, eu lido com os pobres, eu sei como eles são, eles mentem, eles...

Você nem sabe como eles fazem.

Coutinho: - Mas são preguiçosos ou...?

Maria Pia: - Preguiçosos... Eles não querem trabalhar (risos), não, eles não

gostam de trabalhar (corte de edição). Porque nem pra to/ pra buscar o remédio no

no no no hospital ou nos posto de saúde, que eles dão de graça pra evitar filho, eles

não vão (rindo), eles não vão.

Coutinho: - Os pobres nem isso fazem?

Maria Pia: - Nem isso vai (risos). Eu conheço, não vai (risos), não vai.

Preguiça de ir lá. E, se “comprá”, às vezes a gente dá o remédio e ele esqueceu de

tomar. Esquecem de tomar, então é muito difícil, é muito difícil. É, talvez fosse um,

não sei, uma forma de “deles” educá-los, mas, às vezes, quando a pessoa é muito

pobre de espírito, eles não assimilam o que você fala. Você fala e ele fica calado,

entendeu? Às vezes, se você fala: “tem um emprego ali, é um salário mínimo, você

vai?” “Ah, mas a mulher é muito chata”, quer dizer, a mulher é chata. “Ah, mas, mas

só 20 reais, isso não dá pra nada” (corte de edição). Às vezes, as pessoas acham

que trabalhar é desonra, porque o patrão chamou atenção, que é humilhação ou que

é cri/discriminação. Não é, não é discriminação. Porque não existe, é empregado e

empregador, é uma troca de serviços que nós fazemos. Eu trabalho e você me

paga, você me paga e eu trabalho. Então, um precisa do outro (corte de edição). Às

vezes, as pessoas acham que eu sou éh, éh que eu sou, “uhm”, do lado do patrão.

Eu sou do lado da realidade, porque eu vejo os dois lados e muitas pessoas só “vê”

um lado só. Eu vejo os dois lados.

Coutinho: - (falando com o neto de Maria Pia): e você, quantos anos tem?

Felipe (neto): - (Maria Pia passa a mão na cabeça e nas costas do neto).

Cinco (responde com a mão na boca).

Coutinho: - Você gosta da sua avó?

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Felipe (neto): - (faz sinal afirmativo com a cabeça e olha para a avó).

Coutinho: - Hoje é dia dos pais?

Felipe (neto): - “Uhm hum.”

Coutinho: - E você está triste ou contente?

Felipe (neto): - Triste.

Coutinho: - Por quê?

Felipe (neto): - Porque o meu pai está é... Mora lá em Petrópolis e viajou.

Coutinho: - Você não vai ver ele hoje?

Felipe (neto): - (Faz sinal negativo com a cabeça).

Coutinho: Mas ele está trabalhando né? Não, não é isso?

Felipe (neto): - É... ele foi expulso do trabalho. Ele vai ter que arranjar outro

trabalho.

Maria Pia: - Ele perdeu o emprego.

Coutinho: - Ele foi expulso do trabalho?

(risos), (corte de edição), (Maria Pia faz carinho nas costas do neto e

responde para Coutinho em voz baixa).

Maria Pia: - É... esses são os problemas da vida... a incompreensão, porque

eu acho que quando se tem filhos, a pessoa supera. Tem que passar por cima de

muita coisa, né? Pra aguentar... e hoje em dia, os casais, eles brigam né?

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Coutinho: - É separado o pai dele?

Maria Pia: - É separado (olhando para baixo).

5.2.8 Suze

A próxima entrevista exibida é a de Suze, uma mulata que saiu de Salvador,

na esperança de uma vida melhor. Suze é uma jovem senhora, negra, com cabelos

pretos logo abaixo dos ombros, franja e de olhos castanhos. No vídeo, ela aparece

sentada em uma cama. Está usando um moletom branco com listras pretas,

estampado e usando brincos de argola grandes. Na boca, ela usa um batom

cintilante; na mão, um anel e no pescoço, um colar comprido. Seu jeito e linguajar

são simples. Apesar de ter viajado por muitos lugares, percebe-se, na sua

entrevista, que ela pronuncia de forma errada algumas palavras. Durante a

entrevista, Suze demonstra ser uma pessoa alegre e sonhadora.

Fotograma 9 – Suze, ex-dançarina e cantora

Fonte: Imagem extraída do DVD

Coutinho: - Você conheceu o Rio quando?

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Suze: - Ah... eu conheço o Rio há muito tempo, porque eu vinha pra cá, só

na época de carnaval, aí eu vinha com minha empre/minha empresária né?

Coutinho: - Me explica... empresária de quê?

Suze: - Empresária... porque eu (inclinando o corpo para a frente e dando

ênfase na resposta) era dançarina, fazia grande show.

Coutinho: - Que tipo?

Suze: - Eu sou uma das “estautas” de bronze (sorrindo). Então, viajei São

Paulo inteiro fazendo show. Fui pro Japão fazendo show.

Coutinho: - (corte de edição). Você ficou quanto tempo no Japão? Um ano?

Suze: - Um ano (fazendo sinal afirmativo com a cabeça).

Coutinho: - Em Tókyo? No interior? Em que cidades?

Suze: - Olha, eu fiquei em Shirahama, mas conheci Shirahama, Shimoda...

Yokohama e Tókyo.

Coutinho: - (corte de edição). Você dançava, só? Ou dançava e cantava?

Suze: - Olha, eu dançava e cantava.

Coutinho: - Eu gostaria muito que você me cantasse um pedaço que fosse

de uma música em japonês.

Suze: - “Uhm” (inclinando a cabela para o lado) ... é cantar... (risos) “ãhm”

(pausa longa), (olhando para cima, como faz quem quer se lembrar de algo), um

momento... Deixa eu ver...

Nesse momento, Suze canta um trechinho de uma canção em japonês.

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Suze: - E tinha uma outra também, que eu cantava, né? (canta novamente

em japonês). Aí já viu né? Depois de tanto tempo, a gente esquece né? (risos).

Coutinho: - (corte de edição). Me conta uma coisa... você é... nasceu

aonde?

Suze: - Salvador.

Coutinho: - Foi parar em São Paulo como?

Suze: - Eu fui parar em São Paulo porque eu tinha muita vontade de

trabalhar e “o” meus pais eram, eram pobres né? (corte de edição). E lá, eu, sem ter

aquele conhecimento né? Comecei a trabalhar na casa da mulher. Aí, passei lá a ser

a lavadeira, a passadeira, a cozinheira, mas meu negócio era trabalhar fora e aí

muitas pessoas me arrumava assim, faxina né? Eu ia fazia a faxina, voltava (corte

de edição). Eu fui vendo as coisas, aprendendo. Aí, construí a minha casa né?

Assim... E aí conheci a Ruth, a Ruth falou: “nossa, você é alta, grandona, bonita... eu

vou montar um show, você quer, quer ir lá na casa ver?” Eu falei: “quero” (corte de

edição). Aí, quando ela montou o show, ela já me encaixou, aí nós começamos a

correr São Paulo fazendo show, fazendo show, fazendo show, fazendo show,

fazendo show, fazendo show. (risos).

Coutinho: - (corte de edição). A senhora nunca viveu ou casou com

ninguém?

Suze: - Ah, já vivi sim.

Coutinho: - E foi feliz ou não?

Suze: - Eu fui feliz, eu vivi aqui com um alemão (fechando os olhos e

apontando para dentro do apartamento). É, dez anos, dez anos (sorrindo)... Faz, faz

pouco tempo que a gente se separou.

Coutinho: - Foi bom?

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Suze: - Foi ótimo (corte de edição). Se eu tivesse que ser casada, eu já

estaria. Não aqui dentro de casa, porque ninguém vai descobrir ninguém dentro de

uma casa né? A pessoa tem que sair pra fora. Arrumar eu arrumo, mas... (mexendo

nos cabelos, suspira): eu, eu não quero um homem pra me dar “pobrema”. (Olhando

para Coutinho). Eu não quero um homem pra me dar um “pobremão”.

5.2.9 Eugênia

O próximo depoimento escolhido é o de Eugênia, uma mulher com idade

entre 50 e 60 anos, que se dedica, entre outras coisas, a fazer poesia. Eugênia tem

pele branca, cabelos curtos e loiros. No vídeo, ela aparece sentada em um sofá,

vestindo um moletom laranja, usando brincos de argola pequenos e um batom rosa

cintilante. Desempregada, ela trabalha com várias coisas ao mesmo tempo e tem

como hobby escrever poemas, que ela recita por duas vezes durante sua entrevista.

Para ler, ela usa óculos de grau e possui bastante desenvoltura ao falar.

Fotograma 10 – Eugênia, solteira e poetisa

Fonte: Imagem extraída do DVD

Coutinho: - (Eugênia sorri enquanto Coutinho fala). Eu posso pe/ pedir pra

você ler uns poemas então?

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Eugênia: - Natureza... (tirando os óculos), natureza morta. Mil novecentos e

oitenta... (recitando o poema). “Minha carne, ferida aberta e vermelha, melancia

arrebentada em fim de feira, exposta”.

Coutinho: - (corte de edição). Você mora sozinha aqui?

Eugênia: - Moro sozinha.

Coutinho: - Você não casou?

Eugênia: - Não... Tive uns “tico-tico” no fubá, um aqui outro lá. Morei junto,

mas não casei, no sentido tradicional, oficial da coisa... não.

Coutinho: - (corte de edição). Você trabalha em quê?

Eugênia: - Ai, atualmente, eu estou fazendo, sabe né? Como é que é eu

tenho, eu já, eu sou uma antiguidade, né? Estou quase num/numa antiguidade aqui

nesse mundo. Então, eu aprendi a fazer muitas coisas. Então, nesse momento eu

não estou empregada e tô usando esses recursos das coisas que eu aprendi a

fazer, tipo: animadora cultural, animando festa infantil, fazendo mapa numerológico

(com a mão no cabelo), (corte de edição). A poesia... ela não me dá dinheiro (com a

mão no queixo), eu falo poesia pelo mundo afora, mas eu não ganho dinheiro com a

poesia.

Coutinho: - Você já publicou livro?

Eugênia: - Eu já publiquei (fazendo sinal afirmativo com a cabeça).

Publiquei um livro que eu paguei a edição, quando eu trabalhava num, num né?

Num, numa loja. Ganhei um bom dinheiro, publiquei esse livro. Depois, eu publiquei

um outro (franzindo a testa), através de uma editora infanto-juvenil e...

Coutinho: - Mas você continua escrevendo?

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Eugênia: - Eu continuo escrevendo, tem um mon/aquela, aquela velha

his/aquele velho papo, né? (risos). Ali no armário tá cheio de, cheio de coisa... (corte

de edição) (de óculos, recitando o poema): “terceiro, segundo, primeiro, quarto,

cama, colchão, gente, térreo, chão, rua, asfalto, carro”. (termina o poema e olha para

Coutinho).

5.3 ANÁLISE

Neste subcapítulo, serão analisadas as cenas anteriormente detalhadas. Por

meio do método de Análise de Discurso (AD), e as fases de Ian Parker se buscará

relacionar as cenas decupadas do documentário Edifício Master, com os valores-

notícia indicados no capítulo 2. Além da aplicação das teorias da área do

Jornalismo, também serão indicadas as características próprias do documentário, a

fim de reforçar a relação entre as duas áreas. Todos os autores e conceitos

aplicados na análise já foram citados nos capítulos do referencial teórico.

Por intermédio da categorização sugerida por Ian Parker, se estabeleceram

quatro critérios para análise, que servem de fio condutor para chegar à resposta da

questão norteadora. A pesquisa, portanto, está dividida em quatro categorias de

análise: textos (o que se fala), sujeitos (quem fala), história (entrelinhas) e

instituições e poder (valores de convivência). A seguir, estas quatro categorias são

ilustradas em três quadros e, após, será explanado em um subtítulo subsequente, a

relação entre o conteúdo destas categorias e os valores-notícia do Jornalismo.

As expressões usadas para identificar as cenas decupadas são grifadas em

negrito e os valores-notícia, em itálico.

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Quadro 1 - Elementos de categorização de análise (parte 1)

CENAS

CATEGORIAS

VERA

SÉRGIO

RENATA

TEXTOS (O QUE SE

FALA)

- Esta é a cena de

abertura do

documentário.

Dona Vera foi

escolhida por

Coutinho para ser

a primeira

entrevistada e

essa escolha tem

um motivo. Por

viver praticamente

sua vida toda

dentro do mesmo

prédio, Vera

conhece como

ninguém as

histórias e as

memórias do

Edifício Master.

Com sua vivência,

ela consegue dar

ao espectador

uma ideia inicial de

como são esses

moradores e de

como é o dia-a-dia

- Nessa

entrevista se

observa o

empenho em

conseguir

mudar a

realidade do

edifício e o

orgulho de si,

quando se

consegue

alcançar essa

mudança.

- Também

percebe-se que

o entrevistado

usa da

autoridade que

o seu cargo lhe

concede, como

um “escudo” ou

uma “máscara”

para não

demonstrar que,

- Nesse

depoimento se

mostra com

clareza o

deslumbramento, o

orgulho e também

a vitimização por

parte da

personagem.

- São sonhos e

traumas expostos.

Somando-se a

isso, percebe-se

um posicionamento

de defesa por parte

de Renata.

- Ao falar sobre o

namorado

americano e todas

as coisas boas do

seu

relacionamento, é

como se ela

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98

no edifício.

- Também se fala

do concentrado de

substância

humana que é o

edifício, com todos

os tipos de

pessoas e de

comportamentos.

Vera dá todo o

“sabor” ao

documentário, pois

conta a vida do

Master, tal como

ela é.

na realidade,

ele é uma

pessoa

sensível.

estivesse dizendo

ao espectador:

“antes que vocês

me julguem pela

minha aparência

ou modo de falar,

preciso dizer para

vocês, que eu

tenho alguém que

me ama e que se

importa comigo, eu

tenho valor e por

isso estou nesse

documentário”.

SUJEITOS (QUEM

FALA)

- Dona Vera tem

49 anos e mora

desde o seu

primeiro ano de

idade no mesmo

prédio.

- Sincera, ela

possui um

linguajar simples e

fala como se

estivesse

contando um

segredo para

alguém.

- Sérgio é o

síndico do

Edifício Master.

Fala com muita

desenvoltura,

sempre

procurando

demonstrar sua

autoridade e

competência.

- Sorridente e

muito

expressivo, ele

mostra um

- Renata é uma

jovem sonhadora,

que apesar de ter

passado por

muitos momentos

difíceis na vida,

tenta sempre se

colocar “para cima”

e manter a alegria

e o bom humor.

- Inquieta e com

uma bagagem de

experiências

traumáticas, ela

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- Diz de si que

possui espírito

“cigano”, pois,

apesar de morar a

vida toda no

mesmo prédio,

morou em 28

apartamentos

diferentes.

linguajar

filosófico e diz

usar muitos

ditados.

- Ele é um

sujeito bem

“afetado”,

“pomposo”.

Possui olhos

protuberantes e

bigode farto.

demonstra

problemas de

relacionamento

familiar, mágoas e

um apego ao

namorado

americano. Como

se ele fosse a

única chance dela

de melhorar de

vida.

HISTÓRIA

(ENTRELINHAS)

- Em sua

entrevista, Dona

Vera demonstra

orgulho ao falar

que as pessoas

gostavam do

apartamento que

ela morava e, por

isso, ela se

mudava para

outro, ao todo, 28

mudanças.

- Esse discurso

orgulhoso, da vida

de “cigana”, pode

ser visto no

sentido que,

apesar de o prédio

- No

depoimento do

síndico Sérgio

percebe-se, a

partir de sua

fala que,

somente ele

conseguiria

resolver os

problemas do

prédio; sem ele,

o edifício

continuaria na

mesma situação

caótica de

antigamente.

- Na fala de

Renata, pode-se

observar a

tentativa dela de

querer se mostrar

o tempo todo, uma

pessoa alegre e

“sortuda” por ter

um namorado

americano.

- Ao mesmo

tempo, quando ela

começa a falar dos

traumas que

vivenciou, sua

expressão alegre

dá lugar ao olhar

sério e transparece

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100

ter sido

considerado por

ela um “antro de

perdição” e de

pessoas

“malgradas”, no

apartamento dela,

a realidade era

outra. Ali estava

tudo bem, tudo era

bom e bonito.

em sua fala o amor

que ela tem pela

mãe e como

passar por tudo o

que vivenciou,

deixou marcas que

talvez nunca sejam

esquecidas ou bem

cicatrizadas.

INSTITUIÇÕES E

PODER (VALORES

DE CONVIVÊNCIA)

- Todos os discursos,

de alguma maneira,

reforçam ou atacam a

instituição familiar.

- No caso de Dona

Vera, ela fala

sobre o período

em que o prédio

só tinha pessoas

“malgradas” e era

um “antro de

perdição”.

Demonstra, assim,

que o edifício não

era um ambiente

familiar e de

respeito. Para ela,

o respeito está

ligado à instituição

familiar.

- O síndico

Sérgio fala do

esforço em

deixar o prédio

com um

ambiente

familiar. Reforça

o que Vera fala

anteriormente,

que o Master

não era

considerado um

lugar onde

moravam

famílias

estruturadas.

- A jovem Renata

relata seus dramas

e traumas, pela

falta de apoio dos

pais. Tendo feito

um aborto, ela

retrata o ápice da

desestruturação

familiar e a mágoa

que sente dos pais,

em especial da

mãe, a principal

mentora do aborto,

segundo Renata.

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Quadro 2 - Elementos de categorização de análise (parte 2)

CENAS

CATEGORIAS

DANIELA

ROBERTO

ALESSANDRA

TEXTOS (O QUE

SE FALA)

- A professora de

inglês conta as

dificuldades que

tem para olhar

os outros nos

olhos e assume

sua sociofobia e

neurose

relacionada à

vida na cidade

grande.

- Daniela conta

ainda sobre

como utiliza a

poesia e a

pintura como

válvulas de

escape.

- Também se

fala da

aglomeração de

pessoas,

situação comum

às grandes

- Nessa entrevista,

se observa a dura

realidade do

desemprego.

- Roberto fala

sobre suas

experiências de

vida, sucessos e

fracassos e de sua

debilidade física

após ter sofrido

um derrame.

- Ao ser

perguntando sobre

com o que

trabalha, Roberto

responde Coutinho

com uma

pergunta, que

deixa o

documentarista

sem saber direito o

que responder. Ele

tenta, mas Roberto

- Nesse depoimento se

mostram com clareza

realidades, como:

prostituição e gravidez

na adolescência.

- Também são tratados

temas como

preconceito e

normalidade x

anormalidade, quando

Alessandra fala que

considera normal ser

garota de programa e

não dá direito a

ninguém de julgá-la por

isso.

- Além disso, ela diz

que é uma “mentirosa

verdadeira”, nas

palavras dela. Fala

para Coutinho, que

conta muitas mentiras

e que muitas vezes,

acaba acreditando na

própria mentira que ela

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metrópoles,

como o Rio de

Janeiro.

o interrompe,

agradecendo a

intenção.

- Fala sobre como

a morte dos pais

abalou seu estado

emocional e que

se ele pudesse,

gostaria de ter sua

mãe junto dele

novamente.

- Por fim, ele se

conforma com os

fatos e aceita que

a morte faz parte

da vida e que a

vida tem sempre

uma continuação.

contou.

SUJEITOS (QUEM

FALA)

- Daniela é uma

jovem,

professora de

inglês, que sofre

de neurose e

sociofobia.

- Apesar de ter

dificuldades em

se comunicar e

- Roberto é um

senhor de

ascendência

italiana, que

trabalhou como

camelô e está

desempregado.

- Emotivo e

sincero, por várias

- Alessandra é uma

jovem de 20 anos,

alegre e mãe de uma

menina de seis anos.

- Mora sozinha com a

filha e trabalha como

garota de programa

para sustentar as duas.

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olhar nos olhos

das pessoas

com quem

conversa, ela é

eloquente e

articulada.

- Escreve

poemas e pinta

quadros, como

válvula de

escape para

amenizar os

sintomas que a

sociofobia e a

neurose causam

nela.

vezes, seus olhos

ficam marejados

ao relatar suas

experiências.

- Possui traços de

menina, pois, apesar

de ter sido mãe aos 14

anos, ainda demonstra

na sua fala, certo ar de

ingenuidade e pureza,

típico de uma

adolescente.

- Autêntica e corajosa,

não se intimidou ao

contar qual é sua

profissão em um

documentário de

divulgação nacional e

ainda defendeu sua

posição, fazendo um

questionamento social.

HISTÓRIA

(ENTRELINHAS)

- No depoimento

de Daniela,

percebe-se o

quanto morar em

uma cidade

grande a afeta.

Contudo, o

Master é um

refúgio para

essa agonia que

ela sente. Por

causa da

aglomeração de

pessoas, o

- Roberto

demonstra ser

uma pessoa

carente e muito

sensível.

- Pode-se observar

que ele se sente

frustrado e

injustiçado pela

vida, pois antes,

ele tinha um

emprego e uma

- Na entrevista de

Alessandra, pode-se

perceber que apesar

de ter assumido várias

responsabilidades

ainda jovem, ela tenta

levar a vida de maneira

leve e descontraída.

- Também observa-se

a coragem dela, ao

admitir ser uma garota

de programa e afirmar

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edifício virou

uma espécie de

“castelo”.

- Observa-se

também, no

depoimento da

professora, a

questão da

urbanidade e o

paradoxo que é

sua realidade.

Ela mora no

centro do Rio de

Janeiro, em

Copacabana,

mas tem

sociofobia.

Convive com

500 pessoas no

edifício que

mora, mas,

preferia não ter

que encontrar

com essas

pessoas.

estabilidade

financeira e, de

repente, veio a

doença e tirou

tudo dele.

Somando-se a

isso, teve a morte

dos pais, que o

abalou mais ainda.

- Outro

apontamento que

se pode fazer é

que ele culpa a

sociedade por não

conseguir

emprego. Ele quer

trabalhar, mas,

ninguém lhe dá

uma oportunidade.

que conta muitas

mentiras, não se

sentindo mal por isso.

- Pode-se perceber

também, que ao culpar

o pai por ter

engravidado tão cedo,

ela não assume a

própria

responsabilidade pela

gravidez.

INSTITUIÇÕES E

PODER (VALORES

DE CONVIVÊNCIA)

- No caso de

Daniela, por ela

sofrer de

neurose e

sociofobia,

conviver em um

- Seu Roberto

retrata a realidade

dos idosos que,

por causa de sua

idade, apesar de

terem experiência,

- A jovem Alessandra

relata seus dramas

pessoais. Conta que

não teve infância, foi

mãe na adolescência e,

sem o apoio dos pais,

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- Todos os

discursos, de

alguma maneira,

reforçam ou atacam

a instituição familiar

ou tratam de um

grupo de pessoas

que perdem ou

ganham em

determinadas

situações.

lugar com tanta

gente, como é o

caso do Master,

faz com que

pessoas como

ela, saiam

perdendo no que

diz respeito à

sua saúde

psicológica e

emocional.

não conseguem

arranjar emprego.

- Além disso, ele é

doente e sofre

pela falta de

assistência.

acabou se tornando

garota de programa

para se sustentar e

sustentar a filha.

Reforça, assim, mais

uma vez, a

desestruturação do

ambiente familiar.

Quadro 3 - Elementos de categorização de análise (parte 3)

CENAS

CATEGORIAS

MARIA PIA

SUZE

EUGÊNIA

TEXTOS (O QUE

SE FALA)

- Nessa cena é

retratada a

história de uma

espanhola que

veio para o Brasil

na sua juventude.

- Durante sua

entrevista, Maria

Pia aparece o

tempo todo ao

lado do neto

- A entrevistada

fala sobre o

sonho de vir para

a cidade grande

e trabalhar.

- Fala sobre suas

conquistas, sua

arte: o canto e a

dança e de suas

experiências

culturais em

- Nesse depoimento

se mostra com

clareza a

autovalorização.

- Eugênia conta que

já publicou dois livros

e fala com orgulho

de seus feitos.

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Felipe, de cinco

anos de idade.

Depois de

apresentar suas

teorias e opiniões

formadas sobre a

pobreza, a

“preguiça” dos

brasileiros e os

relacionamentos,

Coutinho se dirige

ao neto de Maria

que revela ao

diretor que seu

pai, filho de Maria

Pia, está

desempregado e

divorciado.

Contradiz, assim,

todos os conceitos

polêmicos e

muitas vezes,

preconceituosos,

que a avó traz

como sendo

corretos.

outros países.

- Outro tema

abordado são

seus

relacionamentos

e como ela

analisa a questão

do compromisso

dentro de uma

relação a dois.

- Desempregada, ela

revela trabalhar com

várias coisas, as

quais aprendeu a

fazer ao longo dos

anos.

- Dedica-se à poesia

como hobby, mas

afirma não ganhar

dinheiro com isso.

SUJEITOS (QUEM

FALA)

- Maria Pia é uma

imigrante da

Espanha que

possui opiniões

fortes.

- Suze é uma ex-

dançarina e

cantora que

viajou para

diversos lugares

fazendo shows.

- Eugênia tem entre

50 a 60 anos.

Dedica-se, entre

outras coisas, a ser

animadora cultural e

fazer mapas

numerológicos, além

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- Empregada

doméstica sua

vida toda, ela

demonstra

orgulho da

profissão e

“condena” quem

tem vergonha de

ser doméstica.

- Em seu

depoimento, ela

demonstra uma

postura irredutível

quanto à sua

ideologia sobre a

pobreza no Brasil.

- De origem

humilde, ela

demonstra a

simplicidade de

quem, mesmo

tendo viajado por

muitos lugares,

ainda continua

falando errado,

ou até pensando

do mesmo modo.

- Outro ponto

importante a se

ressaltar é que

ela prefere morar

sozinha e ter sua

individualidade

respeitada, ao

invés de estar em

um

relacionamento e

se “incomodar”.

de escrever poesia e

publicar livros.

- Desempregada, ela

conta que “se vira”

como pode e ressalta

aquilo que ela

considera terem sido

os grandes feitos da

sua vida: a

publicação de dois

livros. Demonstra

sua paixão pela

escrita.

HISTÓRIA

(ENTRELINHAS)

- Na entrevista de

Maria Pia,

percebe-se que

ela sempre

“batalhou” muito

para conseguir o

- No depoimento

de Suze,

consegue-se

observar que ela

sente orgulho de

tudo o que

- Eugênia demonstra

em sua fala, um

incômodo ao ser

questionada por

Coutinho, sobre em

que ela trabalha.

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que queria.

- Ela se considera

realizada e

vitoriosa e parece

não se importar

com a opinião dos

outros.

- Ela demonstra

ter orgulho de

tudo o que

conquistou e se

vê como um

exemplo, pois,

para Maria Pia, se

qualquer um for

atrás do que quer

e trabalhar, vai

alcançar seus

objetivos.

- Outro

apontamento que

se pode fazer é

como a presença

do neto Felipe, de

cinco anos, acaba

“desmascarando”

a “verdade

absoluta” de Maria

conquistou.

- Ao falar que não

quer saber de

homem para

acabar

arranjando um

“pobrema” pra si,

Suze está

comparando um

relacionamento

com uma “dor de

cabeça” que ela

prefere evitar.

Demonstra que,

possivelmente,

em

relacionamentos

anteriores, ela

sofreu

complicações.

- Pode-se

observar

também, pela fala

da ex-dançarina,

que ela não

estudou. Mesmo

tendo contato

com outras

culturas, seu jeito

de falar e até seu

Parece ter vergonha

da sua situação

como desempregada

e justifica isso,

dizendo que “se vira”

como pode,

trabalhando com

coisas que aprendeu

ao longo da vida.

- Percebe-se,

também, que a

poesia é uma fuga

da realidade em que

ela se encontra e

que ela tem medo de

ser julgada como

“alguém que não faz

nada da vida”, só

escreve poemas.

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Pia, pois, ao dar

suas opiniões

polêmicas, ela

quer transparecer

a imagem de que

na sua vida e na

sua família nada

está errado.

modo de “ver as

coisas”

permaneceu

igual.

INSTITUIÇÕES E

PODER (VALORES

DE CONVIVÊNCIA)

- Todos os

discursos, de

alguma maneira,

reforçam ou atacam

a instituição familiar

ou tratam de um

grupo de pessoas

que perdem ou

ganham em

determinadas

situações, como é o

caso dos grupos

socioeconômicos.

- No caso de

Dona Maria Pia,

ela fala sobre os

casais que vivem

brigando, dando a

entender que os

relacionamentos

de hoje não são

duradouros como

os de

antigamente.

- Também, é

representada a

questão da

pobreza e como

as pessoas de

baixa renda, “os

pobres”, estão sob

o julgamento dos

outros por causa

de sua situação

financeira.

- Suze retrata a

falta de estudo.

Apesar, de ter

tido a

oportunidade de

conhecer outros

países e ter

viajado por

muitos lugares,

percebe-se,

como a cultura

dos locais em

que ela esteve

não afetou seu

modo de ser,

pensar e falar.

- Eugênia retrata

uma dura realidade,

a de estar

desempregada e ser

uma artista (poetisa).

Ela teme o

julgamento do

espectador, pois,

sabe que muitos

pensam que ser

artista é sinônimo de

ser “vagabundo”, de

não querer trabalhar.

Então, ela reforça a

ideia de que “se vira”

como pode, para

mostrar que faz algo

e que, sim, quer sair

da situação em que

se encontra, a de

estar desempregada.

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5.3.1 Valores-notícia no documentário Edifício Master

Como já mencionado no capítulo 2, os valores-notícia são critérios utilizados

pelos jornalistas para determinar se um fato pode ser considerado notícia ou não. Ao

observar as cenas decupadas anteriormente e analisadas a seguir, percebe-se que

todas apresentam como valor-notícia primário, uma história de interesse humano,

pois, são histórias que retratam a vida de “pessoas comuns”, como exemplifica a

frase estampada na capa do DVD do documentário: “Um filme sobre pessoas como

você e eu”. Essas histórias são a essência do Jornalismo Literário, como visto no

capítulo 3, é a partir da vivência desses personagens que o Jornalismo se torna mais

“humano”.

O jornalismo literário é uma maneira diferente de fazer jornalismo. É uma maneira mais aprofundada, que gira em torno da vivência de personagens. A razão de ser do jornalismo narrativo ou literário é a existência de protagonistas, de pessoas que falam sobre suas experiências pessoais, como viveram, e o que pensam da vida e do mundo (VILAS BOAS, 2007).

O documentário, mais que outros gêneros e formatos, possibilita, de uma

forma mais aprofundada, abordar as histórias de vida narradas por seus

personagens. Edvaldo Pereira Lima diz que o Jornalismo se torna mais humano na

medida em que, no lugar de fazer entrevistas, os repórteres “saem a campo para

vivenciar de peito aberto a realidade de seus personagens. Convivem com eles dias,

semanas, meses” (LIMA, 1993, p. 47). E foi isso que Eduardo Coutinho fez, como

mencionado no capítulo 4. O documentarista alugou um apartamento no Edifício

Master e, junto com sua equipe, morou um mês no prédio, convivendo ali com os

500 moradores que lá residiam.

Nas duas primeiras entrevistas, já aparecem os primeiros sinais sobre a

proficuidade do uso do documentário para a filmagem de narrativas de histórias de

vida. Algo que Coutinho fazia com maestria, como relatado no capítulo 4, por seu

amigo, também documentarista, João Moreira Salles.

[...] o cinema de Coutinho dedicou-se a reunir um conjunto de histórias fragilíssimas, oferecendo a cada uma delas aquilo que, em outros filmes e outras circunstâncias, elas não teriam: proteção. Nada mais frágil do que palavras ditas por quem não costuma ser escutado (SALLES, 2004, p. 7).

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As palavras pronunciadas são acompanhadas de pequenas transformações

faciais, gestos, modos de olhar e tons de voz, os quais acrescentam significados à

fala. No caso de dona Vera, percebe-se a importância que sua entrevista tem,

dentre a de todos os outros moradores e porque Coutinho a escolheu para ser a

primeira a dar seu depoimento. Seu olhar e o modo como conta tudo o que

aconteceu no prédio, dão o “sabor” do documentário e levam o espectador a

imaginar as cenas relatadas. Ao mesmo tempo em que ela morou os 49 anos no

mesmo local, ocorrem também as inúmeras trocas de apartamento, 28 no total,

fazendo com que ela possua uma gama significativa de informações sobre o que se

passa dentro do Edifício Master. Vera conta os fatos negativos do passado do

Master em um tom confessional, como quem está falando mal de alguém que está

próximo, ou pode chegar a qualquer momento. É uma verdade que diz, mas não

quer ferir ninguém. Assim, o valor-notícia que se destaca nessa cena é o

mencionado por Golding e Elliot no capítulo 2, histórias de pessoas comuns que

vivem situações atípicas, pois, a personagem será lembrada como aquela que viveu

sua vida toda no mesmo edifício, porém, em 28 apartamentos diferentes, situação

esta que desperta o interesse do público.

Na cena a seguir, do síndico Sérgio, observa-se a ênfase que o

administrador dá, ao falar que em sua administração, conseguiu fazer com que o

prédio se tornasse um ambiente familiar. Tanto ele quanto dona Vera, que lhe

antecede, falam dos problemas sociais e de comportamento que o edifício

enfrentava, como prostituição, assassinatos, entre outros acontecimentos. Sérgio faz

questão de contar que foi reeleito, devido ao seu ótimo serviço prestado. Ao mesmo

tempo em que ele mora em um dos maiores espigões do Rio de Janeiro, com 276

apartamentos conjugados, uns 500 moradores; 12 andares, 23 apartamentos por

andar, ele se mostra uma pessoa carente e sozinha. Com sua “filosofia unindo

Piaget-Pinochet”, surge sua confissão de que só quer receber amor. Sérgio

representa aqui os 500 moradores e sua fala é sobre a realidade do Edifício Master.

Ele não conta experiências pessoais, ele conta a vida dentro do edifício. Percebe-se

aqui, o valor-notícia indicado por Wolf no capítulo 2, referente à quantidade de

pessoas envolvidas no fato, já que se trata do Edifício Master, que é um concentrado

de substância humana, recheado de dramas familiares, solidão, pequenas fantasias

compensatórias, vaidades mínimas e convivência precária, realidade essa

compartilhada por muitos no Brasil.

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Já na cena em que é apresentado o depoimento de Renata, vê-se uma

jovem sonhadora que carrega consigo a marca de um passado trágico. Observa-se

na sua expressão facial que surge, de repente, uma seriedade, em um rosto que

quer aparentar felicidade. Coutinho não corta o começo da sua entrevista: “meu

namorado é americano”. Renata parece encantada e se orgulha em ser o

“chocolate” como é chamada pelo seu pretendente. Suas falas não dão sequência,

os movimentos do cabelo e gestos de inquietude são constantes. Ela começa a ficar

séria ao dizer que queria morar sozinha com a prima e a mãe duvidou da sua

capacidade: “só não vou virar puta e matar ninguém, mas para sua casa eu não

volto mais”. A decisão foi tomada, pois sua mãe a levou a um “centro espírita” para

obrigá-la a fazer um aborto aos 15 anos. Segundo Renata, a mãe não a aceitava em

casa se estivesse grávida. Diante disso, Renata anuncia: “se não me aceita com

filho, sem filho também não vai ter”, e desde então seguiu sua vida. Nesse trecho, os

cortes são secos e a intervenção de Coutinho é mínima, o que serviu para

enriquecer a narração do sujeito e o respeito pela fala do outro, como citado no

capítulo 4. “[...] uma entrevista aberta que mergulha no outro para compreender seus

conceitos, valores, comportamentos, histórico de vida” (MEDINA, 2000, p. 18).

Contudo, o drama vivido por Renata levanta certos questionamentos e

observações. Antes de revelar que engravidou ainda adolescente, ela diz, de forma

enfática, que isso ocorreu “do do nada”. É claro que ela sabe que uma gravidez não

acontece do nada e, sem dúvida, não ignora tudo o que se é preciso fazer para

engravidar. Emprega, porém, esse modo de falar, para reduzir sua responsabilidade

sobre o ocorrido. Por meio dele, é como se dissesse: eu não sabia o que estava

fazendo, não foi minha culpa. Depois, Renata faz uma longa introdução, antes de

assumir ter realizado um aborto. Na verdade, ela não chega a dizer diretamente,

mas apenas relata as circunstâncias em que tudo aconteceu. Os abortos são

proibidos por lei no Brasil. Confessar tê-lo realizado seria o mesmo que confessar

ser uma criminosa. Por isso, a necessidade de a entrevistada enfatizar, pela

hipérbole e pela repetição, que é “hiper contra o aborto, contra, contra, contra”...

Além disso, a fim de ratificar sua opinião (ser contra), a qual é enfraquecida

pelo ato cometido (o aborto), Renata vale-se de uma referência a sua mãe, para se

eximir da culpa por ter tirado o filho. Segundo Renata, a mãe tinha vergonha do que

os outros falariam e, por isso, levou-a a fazer o aborto. Neste caso, tem-se uma

alusão a terceiros, servindo para reforçar o distanciamento e para diluir a

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responsabilidade da entrevistada em relação ao que fez. Pode-se verificar, aliás, que

em todo o depoimento decupado, Renata esforça-se por se colocar como “vítima” de

uma situação não desejada: ela engravidou “do nada”; era contra o aborto, mas sua

mãe levou-a a realizá-lo.

Vale dizer ainda que, ao elaborar seu depoimento, Renata tem perfeita

ciência de que confessar ter engravidado sem planejar e, em seguida, ter feito um

aborto são revelações que a colocam em uma situação de vulnerabilidade, ficando

sujeita às críticas e ao julgamento do público. Mas, então, porque ela faz tais

confissões diante de uma câmera? Para se preservar desses julgamentos, Renata

deveria ter filtrado aquilo que ia contar para Coutinho. Acontece, porém, que ela está

sendo entrevistada diante de uma câmera, o que a torna personagem de um filme.

Assim, imagina-se que ela, para fazer valer sua presença nas telas de cinema,

apresentou de si uma imagem que não fosse ordinária, comum.

Como foi dito no capítulo 3, mesmo os documentários que têm por objetivo

retratar a realidade da maneira mais fiel possível, acabam sujeitos a algum tipo de

manipulação. Isso porque as pessoas se transformam diante de uma câmera, por

mais naturais que pareçam ser. O simples fato de saber que se está exposto a uma

filmagem ou gravação, faz com que, normalmente, o indivíduo se projete por meio

de posturas, gestos, feições, entonação de voz, escolha lexical e demais atributos

ligados à aparência. Em toda a cena de Renata, os valores-notícia que se destacam,

são violência, agressividade e dor, pois ao relatar toda sua experiência traumática

em relação à gravidez na adolescência, o aborto e a incompreensão da mãe, gera

no público uma empatia, que faz com que se identifiquem com ela, ou se

compadeçam da situação, evitando julgá-la mal. Contudo, no final de seu

depoimento, a tristeza e a seriedade vão embora. Renata, em um instante, retoma a

alegria inicial para dizer que agora ninguém a derruba mais e ela é a Renata, a

“number one do Brasil”, demonstrando, mais uma vez, orgulho de si mesma.

Na cena em que aparece Daniela, a professora de inglês que sofre de

neurose e sociofobia, chama atenção o fato de que essa personagem se encontre

impossibilitada de fitar diretamente a câmera (e, possivelmente, o espectador que

transparece através dela) na circunstância em que recebe o diretor em seu

apartamento. Os primeiros temas que Coutinho aciona na entrevista, correspondem

a aspectos mais gerais da vida de Daniela, permitindo assim, que o espectador

tenha um tempo para observar a personagem e procurar entendê-la. Contudo, ela

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logo aborda questões mais íntimas de sua trajetória, como o transtorno de

sociofobia, sua dificuldade em lidar com a aglomeração típica de grandes

metrópoles como o Rio de Janeiro, e sua satisfação habitual quando não é forçada a

dividir o elevador com outros residentes (e, consequentemente, consegue evitar o

olhar alheio em sua direção).

O jeito de falar de Daniela é manso, calmo e mostra que sempre há uma

reflexão antes de se externar um pensamento. A professora morou oito anos em

New Orleans, EUA, porque sua mãe trabalhava no consulado do Brasil. Ela mora

com três gatas e durante a metade da semana, seu namorado vem visitá-la. O

paradoxo que caracteriza a vida de Daniela é que, mesmo sendo sociofóbica, ela

coabita com quase 500 pessoas. Vendo a dificuldade que a professora tem para

interagir, Coutinho questiona Daniela sobre o por quê de não olhá-lo nos olhos. Em

um linguajar que denuncia muitas leituras e uma enorme capacidade de se

expressar, Daniela olha para o diretor esforçadamente, e antecipa uma possível

interpretação de que seu discurso não tenha veracidade. Além disso, rebate dizendo

que talvez não tenha autoconfiança para encará-lo sem gaguejar ou piscar

compulsivamente. Ela apenas se esforça em entrevistas de emprego, ciente dessa

interpretação de falta de veracidade quando se fala sem olhar diretamente para o

interlocutor.

Apesar de seu transtorno, Daniela é bastante eloquente e articulada. Ela

escreve poemas como válvula de escape e analisa uma obra de arte de sua autoria,

chamada “Floresta do Desespero” que, de acordo com suas próprias palavras, fala

de paranoia e desamor na selva de pedra. A obra parece ser um reflexo de sua

própria vida, e sua fala transmite suas inseguranças e sua impressão de estar sendo

constantemente assistida. No que concerne à patologia da professora, vale dizer,

ainda, que este seria um argumento suficiente para justificar uma recusa de Daniela

em participar do filme. Primeiramente, porque, em presença de câmeras, ela não

conseguiria evitar aquilo que mais teme: ser vista. Entretanto, Daniela está em

Edifício Master. O fato de ela confessar ser neurótica e assumir sofrer de sociofobia,

lhe coloca em uma posição frágil, mas ao mesmo tempo, corajosa. Mesmo sabendo

que podia ser mal interpretada pelos espectadores, e que estaria em exibição nos

cinemas, ela assumiu o risco de participar do documentário.

Percebe-se, assim, no depoimento de Daniela, o valor-notícia referente à

distinção entre normalidade e anormalidade, acordo e discrepância, no tocante à

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orientação da conduta individual e sua valorização. Pois, ao se declarar neurótica e

sociofóbica, a professora “sofre” o julgamento do espectador que pode aceitar ou

não a sua conduta, considerando-a normal ou anormal. Percebe-se aqui, como em

todo o documentário, o modo hábil com que Coutinho conduz suas entrevistas, com

seu jeito tranquilo e natural, consegue extrair boas respostas de seus entrevistados,

por meio de questões bem elaboradas e oportunas.

A análise a seguir é a de Roberto, um senhor com ascendência italiana e

que trabalhava como camelô. Neste caso, assim como em outros, Coutinho inicia a

entrevista questionando seu entrevistado a respeito de trabalho: “o senhor trabalha

onde?” Sentindo-se constrangido, não só pela pergunta, mas, também, pela

resposta que se vê obrigado a dar, o entrevistado, tão logo revela seu ofício: “eu

trabalho de camelô”. Inicialmente, ele fala de sua condição anterior, destacando os

pontos positivos de sua vida antes de virar camelô. Ele procura mostrar que, se hoje

tem uma profissão e uma condição que não são socialmente valorizadas, nem

sempre foi assim (relatando que já havia sido um homem bem de vida, com muitas

casas e muitas profissões). Depois, Roberto segue dando uma série de justificativas

para esclarecer o que o levou a chegar a sua condição atual. Essas justificativas são

apresentadas com o intuito de convencer os espectadores de que ele, Roberto, não

é o responsável pela situação em que se encontra. Na verdade, se hoje ele está

desempregado, isso se deu porque ele foi vítima de um derrame cerebral e somando

a doença, com a sua idade, ele faz uma reclamação, dizendo que está inserido

numa sociedade que não valoriza as pessoas velhas e estando nessa situação de

enfermidade e velhice, não consegue arrumar um emprego.

Aqui, é importante destacar que, mesmo tendo respondido ao

questionamento inicial de Coutinho, o entrevistado ainda parece se sentir

incomodado pela pergunta do diretor. Tanto que, em seguida a sua resposta,

Roberto inverte os papéis. De entrevistado, ele passa a ser entrevistador e lança a

Coutinho uma pergunta, que também constrange o diretor: “o senhor quer me dar

um emprego?” Nesse momento, Coutinho, demonstrando-se bastante embaraçado,

não consegue recuperar-se do questionamento inesperado a que foi submetido,

sendo incapaz de reverter a situação e de restaurar o equilíbrio interacional. Apesar

de tentar apresentar algum argumento de modo a fornecer uma resposta ao que lhe

foi perguntado, Coutinho hesita demais e não chega a completar seu raciocínio.

Vendo que deixou Coutinho desconfortável, Roberto logo vê um jeito de reparar a

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situação, dizendo que o diretor era uma pessoa muito simpática. O entrevistado

ainda conta em seu depoimento sobre seus relacionamentos e como sente falta da

mãe e do pai, já falecidos. Nesse contexto, Roberto se mostra uma pessoa carente e

emotiva, mas ao mesmo tempo, se conforma, dizendo que não tem muito o que

fazer, a vida tem sua própria continuação.

Ao assistir a entrevista de Roberto, o espectador pode se perguntar o porquê

de Coutinho deixar no documentário, a situação incômoda pela qual ele passou.

Acontece que Coutinho não está preocupado em resguardar sua imagem. Ele

busca, na verdade, uma reflexão por parte do espectador, para que ele perceba que

a situação retratada por Roberto é a enfrentada por muitos brasileiros. A partir desse

posicionamento do diretor, percebe-se a reação que muitos têm ao avistar uma

realidade semelhante a do personagem: a incapacidade de modificar a situação com

a qual se deparam e a vergonha por nada fazer a respeito.

Na entrevista de Roberto, é possível perceber o valor-notícia história em que

há troca de papéis, pois o camelô, com sua pergunta dirigida ao documentarista,

instaura um conflito, primeiramente, porque inverte, de forma inesperada, a relação

entrevistador-entrevistado, já que este último, ao invés de se limitar a responder,

toma a iniciativa de perguntar. A assimetria que, via de regra, dá ao entrevistador o

direito de conduzir e controlar a entrevista passa, então, para “as mãos” do

entrevistado que, mesmo que momentaneamente, assume a direção do depoimento.

O próximo depoimento é o de Alessandra, de 20 anos. Ao responder a

Coutinho, que perguntou como foi a sua infância, ela sorri, olha para o alto e diz não

ter tido infância. Então ele pergunta: “o que quer dizer isso?” Ela responde que não

teve liberdade de ser uma criança normal devido à rigidez do pai, que não a deixava

brincar, e diz: “com 14 anos de idade já fui mãe, aí acabou infância”.

A indagação de Coutinho novamente é clara, que pergunta em seguida:

“Como foi essa história de ser mãe, conta. Foi a primeira vez que você transou?” E

ela relata tudo como se estivesse contando para uma amiga: enfatizando que sim,

tinha sido com o primeiro homem que ela havia “encostado a mão”; que só saía para

a escola; que estava apaixonada, e aconteceu na primeira vez que saiu, quando

conheceu o pai da sua filha. Sem saber o que estava acontecendo com seu corpo,

disse ter comentado com sua mãe que estava diferente e achava que estava

grávida. A família entrou em desespero; o pai não falou com a filha durante um ano.

Então, aos 20 anos, ela diz que seu “primeiro programa foi muito legal”, porque ela

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nunca tinha visto tanto dinheiro na sua frente: “foi 150 reais em um dia, mas pra mim

aquilo foi tudo!”. Afirmou ser muito diferente do salário do antigo serviço, cujo valor

era de apenas “136 reais” por mês.

A seguir, Coutinho pergunta: “como é viver assim?” Mais séria, ela conta que

não é bom. Não é uma vida fácil como todos pensam. Ela acha “nojento” e só

consegue fazer sexo depois que bebe. E bebe todo dia, pois tem que se sustentar e

sustentar a filha. Quando o documentarista pergunta se ela tem namorado,

Alessandra diz que não, pois aos 20 anos, ainda se considera uma adolescente.

Outra afirmação de impacto da jovem é quando ela fala que espera sua morte todo

dia. Em suas palavras: “esse mundo é muito ruim. Tem muita pessoa ruim”.

Impressionado com o depoimento de Alessandra, o diretor questiona: “eu quero

saber assim, como é que você teve coragem? É um depoimento corajoso, entende?

Por que você tomou a decisão de falar? Porque é um filme que vai passar no cinema

depois. Explica isso”.

Alessandra responde: “não é coragem, isso, pra mim, é uma coisa normal. O

pessoal de hoje em dia, no mundo que a gente tá, o pessoal tem uma cabeça dos

anos antes de Cristo. Já passou, hoje, no mundo, é tudo normal. Nasce gente, de

tudo quanto é jeito. É homem com homem, mulher com mulher, né? É 50 mulher pra

cada homem. É cada coisa que não deveria ser normal. É gente roubando gente, é

político roubando gente, é ladrão roubando de pobre, né? Ladrão pobre, roubando

de pobre, ladrão rico roubando de pobre. É gente roubando de gente, e aquela coisa

toda, o pessoal acha normal. Por que que eu ser, eu fazer programa, é anormal? É

coisa de alguém vir me apedrejar? Não acho isso, por isso que eu falo mesmo, eu

não tenho vergonha. No meu bairro todo mundo sabe, a minha família toda sabe e

quem quiser gostar de mim, vai ter que gostar assim. Não acho isso anormal”.

Depois de expor a sua vida, com toda a sua carga trágica e as expectativas

que tem com a sua filha e irmã, Coutinho pergunta o que significa quando ela diz:

“eu minto muito”. A entrevistada afirma, sorrindo: “eu sou muito mentirosa e eu conto

mentira. E eu acho que pra gente mentir, a gente tem que acreditar na mentira, pra

mentira ficar bem feita. [...] Você vê como sou uma mentirosa verdadeira? (sorrindo).

Eu falo mentira, mas eu falo a verdade”.

No depoimento sincero e autêntico de Alessandra se observa explicitamente

o valor-notícia distinção entre normalidade e anormalidade, acordo e discrepância,

no tocante à orientação da conduta individual e sua valorização, pois como

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mencionado acima, a jovem não considera anormal ser garota de programa, mesmo

que esteja sujeita ao julgamento e às criticas do público. Ao mostrar que Alessandra

não teve o apoio dos pais quando engravidou e, mesmo assim, decidiu ter sua filha

sozinha, criá-la e sustentá-la, mesmo trabalhando como garota de programa,

Coutinho desperta no espectador (ou ao menos em uma parcela) a compaixão e a

empatia. Em todo o documentário pode se observar que, as histórias contadas são

todas interessantes e prendem a atenção do espectador, mesmo aquelas, como é o

caso da de Alessandra, que são mais longas, se percebe a maestria de Coutinho em

manter os diálogos longe da monotonia.

A próxima entrevista a ser analisada é a da doméstica Maria Pia, uma

espanhola que vive no Brasil desde a sua juventude. O discurso de Maria Pia é

formado por opiniões fortes, uma ideologia polêmica e muitas controvérsias.

Imigrante da Espanha, manteve uma vida simples, na base da economia. Quando

indagada sobre pobreza, defende que não existe pobreza, que é tudo fruto da

cabeça das pessoas. Ela afirma que pobreza existe apenas em países onde há

guerra, e que é só querer trabalhar que a pobreza termina. Maria relata que “lida

com pobres” e que eles mentem, são preguiçosos e sempre encontram problemas

para não trabalhar. Seu discurso sobre a inexistência da pobreza pode ser negado

pela sua própria posição social, visto que ela é empregada doméstica e viveu

subordinada a seus patrões.

Em nenhum momento, Maria Pia se preocupa em reduzir, de nenhuma

forma, o impacto do que ela diz e o efeito que isso pode causar. Tais afirmações

dizem respeito, essencialmente, ao modo como a entrevistada vê os pobres e

compreende a sua situação. Perante o discurso polêmico e, às vezes,

preconceituoso de Maria Pia, destaca-se o valor-notícia distinção entre normalidade

e anormalidade, acordo e discrepância, no tocante à orientação da conduta

individual e sua valorização. Mesmo pertencendo a uma classe social de baixa

renda e trabalhando como doméstica, a imigrante espanhola reforça seu

posicionamento em relação à pobreza e aos pobres.

A próxima entrevista é a de Suze, uma ex-dançarina e cantora que viajou

para muitos lugares fazendo shows. Suze é uma mulher de linguajar simples, ela

conta que nasceu em Salvador e veio para São Paulo em busca de trabalho.

Trabalhou como doméstica em muitas casas, até que um dia, conheceu Ruth, sua

empresária, que a achou muito bonita e a convidou para fazer shows. Um fato

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interessante na história de Suze é que, quando ela conta para Coutinho que havia

ido para o Japão fazer shows, ele diz que gostaria muito que ela cantasse um

pedaço de uma música em japonês. Ao aceitar participar do documentário, as

pessoas estão cientes de que serão entrevistadas e de que isso “as obriga”, de certa

forma, a responder o que lhes será perguntado. Considerando-se ainda que foram

feitas pré-entrevistas, como mencionado no capítulo 4, as pessoas já estão, mesmo

que minimamente, prevenidas quanto ao tipo de situação a que serão expostas.

Porém, ao escutar o pedido de Coutinho, Suze se surpreende e, um pouco

envergonhada, canta dois pedaços de músicas diferentes, transparecendo gostar de

ter se lembrado das canções.

Quando questionada por Coutinho sobre casamento, Suze fala que viveu

durante dez anos com um alemão e que, se fosse para estar casada, já estaria.

Além disso, ela afirma que não quer saber de homem para arranjar um “pobrema”

pra si, comparando um relacionamento com uma “dor de cabeça” que prefere evitar.

Ao observar a narrativa de Suze, percebe-se aqui, o valor-notícia exoticidade, pois,

apesar de ter tido a oportunidade de conhecer outros países e ter viajado por muitos

lugares, percebe-se, como a cultura dos locais em que ela esteve, não afetou seu

modo de ser, pensar e falar. Outro fato relevante na história de Suze, é que ao

contar seu passado, o começo de vida difícil e o sonho de vir para a cidade grande,

ela faz com que muitos espectadores se identifiquem com a sua história e suas

experiências, criando assim, uma empatia com o público.

O último depoimento a ser analisado é a história de Eugênia, uma senhora

com idade entre 50 e 60 anos, que se dedica, entre outras coisas, a fazer poesia. A

entrevista começa com Eugênia lendo um de seus poemas. Em seguida, Coutinho

faz uma série de perguntas: “Você mora sozinha? Você não casou? Trabalha em

que?” Eugênia responde que mora sozinha e quanto ao relacionamento, diz que

teve uns “tico-tico no fubá”, mas que nunca foi casada no papel. Contudo, a

pergunta que mais “embaraça” Eugênia, acontece quando Coutinho questiona em

que ela trabalha. Sentindo-se constrangida, não só pela pergunta, mas, também,

pela resposta que se vê obrigada a dar. No mesmo instante, a entrevistada recorre à

necessidade de enfatizar sua condição de uma pessoa com bastante idade

(referindo-se a si mesma como uma antiguidade), muito embora, explicitamente, ela

não diga quantos anos tem.

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Outro recurso muito utilizado por Eugênia é a autovalorização. “Nesse

mundo então, eu aprendi a fazer muitas coisas...” Através dessa fala, antes mesmo

de declarar que está desempregada, Eugênia revela que possui conhecimentos e

que, portanto, tem valor. Em toda sua entrevista, Eugênia utiliza paráfrases para

enfatizar informações que lhe permitam criar uma imagem positiva e socialmente

prestigiosa de si. A poetisa, primeiramente, afirma já ter publicado um livro: “eu já

publiquei”, em seguida, reforça, pela paráfrase, essa afirmação: “publiquei um livro

que eu paguei a edição...”, e, depois, novamente, parafraseia o que dissera

acrescentado, ainda, a informação de uma segunda publicação: “publiquei esse

livro, depois eu publiquei um outro”. Ter publicado livros valoriza a entrevistada, uma

vez que ela se apresenta como alguém que escreve poesias. Assim, valendo-se da

manutenção de sentido que promovem, Eugênia tira proveito do valor enfático que

as paráfrases produzem para sua autovalorização.

Para finalizar seu depoimento, Eugênia recita mais um de seus poemas:

“terceiro, segundo, primeiro, quarto, cama, colchão, gente, térreo, chão, rua, asfalto,

carro”. Ao recitar o poema, se tem a sensação de que Eugênia está descrevendo o

próprio Edifício Master e seu cotidiano. E o que não é dito, ah, como é dito... que

solidão!

Na entrevista de Eugênia, identifica-se o valor-notícia, crises e seus

sintomas, pois, em seu depoimento, ela retrata uma das crises que mais afeta o

brasileiro: o desemprego. Ao estar desempregada e ser uma artista (poetisa), ela

teme o julgamento do espectador, pois, sabe que muitos pensam que ser artista é

sinônimo de ser “vagabundo”, de não querer trabalhar. Por isso, ela reforça a ideia

de que “se vira” como pode, para mostrar que faz algo e que sim, quer sair da

situação em que se encontra, a de estar desempregada. Outro apontamento que

pode-se fazer em relação a poetisa, é a necessidade que ela demonstra de se

autovalorizar perante a câmera e para o espectador. Eugênia traz à tona uma dura

realidade, a de que mesmo rodeada por quase 500 moradores, ela vive só e

necessita dizer para o outro o seu valor e a sua importância.

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5.3.2 Cenas analisadas e os seus valores-notícia

Quadro 4 - Valores-notícia nas cenas analisadas (parte 1)

CENAS

ANÁLISE

VERA

SÉRGIO

RENATA

VALORES-NOTÍCIA - Histórias de

pessoas comuns

que vivem

situações

atípicas.

- Quantidade de

pessoas

envolvidas no

fato.

- Violência,

agressividade e

dor.

Quadro 5 - Valores-notícia nas cenas analisadas (parte 2)

CENAS

ANÁLISE

DANIELA

ROBERTO

ALESSANDRA

VALORES-NOTÍCIA - A distinção entre

normalidade e

anormalidade;

acordo e

discrepância, no

tocante à

orientação da

conduta individual e

sua valorização.

- História em que

há troca de

papéis.

- A distinção entre

normalidade e

anormalidade;

acordo e

discrepância, no

tocante à

orientação da

conduta individual

e sua valorização.

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Quadro 6 - Valores-notícia nas cenas analisadas (parte 3)

CENAS

ANÁLISE

MARIA PIA

SUZE

EUGÊNIA

VALORES-NOTÍCIA - A distinção entre

normalidade e

anormalidade;

acordo e

discrepância, no

tocante à

orientação da

conduta individual e

sua valorização.

- Exoticidade. - Crises e seus

sintomas.

Foi apresentada aqui, a análise das nove histórias selecionadas do

documentário Edifício Master, de Eduardo Coutinho. A partir dessa análise, pode-se

observar, como consta no capítulo 3, que todas essas histórias se enquadram no

formato do Jornalismo Literário, pois possibilitam ao espectador, não somente ver e

ouvir uma entrevista, mas mergulhar na história que é contada e ver com os “olhos”

da alma. Relatos que captam a realidade e apresentam sentimentos, razões e

intuições. Contextualizam, mostram o significado mais complexo das coisas.

Apresentam qualidades líricas e poéticas, sem perder o foco sobre a realidade que

precisa ser apresentada; cria autores de histórias de vida vivida.

Edifício Master é um concentrado de “pessoas comuns”. Seus moradores

são: aposentados, viúvos, garotas de programa, dançarinas, domésticas, artistas e

mães solteiras que aprenderam a conviver com a solidão em meio a tanta gente;

pessoas que vieram de outra cidade para “tentar a vida” no Rio de Janeiro; ex-

moradores do subúrbio que se mudaram para Copacabana (seja aquela que foi

expulsa de casa pelos pais ou a moça chocolate baby que arranjou um namorado

americano-empresário). Em Copacabana, um condado com características outrora

antagônicas ao “Cartão Postal carioca”. Hoje, um Edifício (família) Master, contador

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de histórias passadas que amedrontaram e de histórias presentes que fascinam. O

discurso do Master é a própria vida que ali vive.

Após a Análise de Conteúdo do presente estudo, torna-se possível avaliar as

hipóteses desta pesquisa e responder à questão norteadora.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Toda pesquisa é fruto de uma inquietação pessoal. Esta não foi diferente. O

propósito desta monografia foi buscar e alcançar a confirmação (ou não) de que as

histórias de “pessoas comuns”, contadas no documentário Edifício Master, podem

ser sim, consideradas a partir de valores-notícia do Jornalismo, notícias. O que

motivou a pesquisadora a desenvolver este estudo foi perceber que a objetividade

jornalística, ainda muito pregada nas universidades, é um ideal, em primeiro lugar,

impossível de ser totalmente alcançado e, por fim, diminui o potencial do jornalista

como narrador de histórias perante o fato noticiado. Por isso, se escolheu trabalhar

nesta monografia, o formato do Jornalismo Literário juntamente com o gênero

documentário, pois ambos possibilitam ao jornalista uma liberdade de expor suas

ideias, com maior profundidade e sentimento. Afinal, somos humanos, dotados de

tais sentimentos e, cabe a nós usá-los, também no Jornalismo, com equilíbrio.

Mergulhar nas histórias, enxergá-las com o coração e com a paixão de

quem escolheu como profissão, ser jornalista; possuir em si, a arte de informar para

transformar, de trazer o conhecimento e de fazer o que se sabe fazer de melhor, que

é contar histórias; humanizar, dar valor a quem, muitas vezes, não é lembrado e

nem ouvido; um Jornalismo livre de preconceitos e estereótipos, que deixa o

espectador também mais livre para fazer suas próprias reflexões: este é o

Jornalismo Humanizado.

Para o desenvolvimento desta pesquisa, foram elaboradas as definições de

notícia, valores-notícia, Jornalismo, New Journalism, Jornalismo Literário e

documentário. Assim, após a análise realizada pela pesquisadora, obteve-se

satisfatoriamente uma resposta à questão norteadora: a vida das pessoas e as suas

histórias contadas no documentário Edifício Master, de Eduardo Coutinho, podem

ser entendidas a partir dos valores-notícia?

A fim de relacionar o documentário Edifício Master, de Eduardo Coutinho,

aos valores-notícia, foram selecionadas nove cenas do objeto de estudo. Estas

cenas foram decupadas e detalhadas na medida do que se considerou essencial

para transmitir a forma de abordagem do documentarista e a reação dos

personagens sociais. Para atingir o objetivo principal dessa monografia, de analisar

as histórias contadas no documentário Edifício Master e verificar se nelas constam

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valores-notícia do Jornalismo, foi empregada a Análise de Conteúdo (AC) e a

Análise de Discurso (AD), que serviu como método de apoio. A elaboração da

Análise de Discurso fez com que a pesquisadora percebesse como o Jornalismo

Literário reforça e evidencia a representação social de “pessoas comuns”, nos

documentários.

A partir da categorização das cenas selecionadas e da análise dessas

cenas, observou-se que a primeira hipótese, que afirma que o Jornalismo Literário

possibilita ao jornalista expressar suas emoções e demonstrar que se importa com o

outro, desapegando-se, assim, da “objetividade”, um dos ideais da profissão

jornalística, foi corroborada. O formato Jornalismo Literário, que é uma fusão entre o

Jornalismo tradicional e a literatura, permite ao jornalista, fugir da objetividade e

imergir (mergulhar no universo da história), podendo mostrar seu próprio estilo de

produção. Além disso, há o uso de simbologias e metáforas e, principalmente, a

humanização, ou seja, as histórias são contadas e vistas sob uma dimensão

humana e, nessa abordagem, as pessoas não são só simples fontes.

Da mesma forma, a segunda hipótese indicada, que afirma que o

documentário toma por base os preceitos do Jornalismo Literário, se confirma. Como

já dito anteriormente, o Jornalismo Literário nada mais é que contar histórias

fortemente centradas na figura humana, célebre ou anônima. Pode-se dizer que,

num certo sentido, procura, essencialmente, retratar e compreender a alma humana

através da narração e descrição de conteúdos importantes de suas vidas. O

documentário, por sua vez, é um dos meios que possibilita que essas histórias sejam

contadas com maior proficuidade. É o meio audiovisual como lugar de expressão de

pensamento e construção de discurso, por excelência.

Em relação à terceira hipótese, que afirma que o documentarista Eduardo

Coutinho respeita o discurso do outro e não interfere nas falas de seus

entrevistados, fazendo com que não haja indução da fala, a mesma é confirmada ao

longo da pesquisa. Tal afirmação é comprovada pela pesquisadora e professora

Consuelo Lins, uma estudiosa da obra de Coutinho. Como mencionado no capítulo

4, Lins fala que, para Coutinho, o que o outro diz é sagrado e não cabe a ele julgar

ou manipular o que o entrevistado está disposto a contar.

Assim como as demais, a quarta hipótese, que afirma que Coutinho dá voz

aos “esquecidos”, àqueles que nunca seriam chamados para dar sua opinião em um

veículo de comunicação, garantindo crédito e espaço a “pessoas comuns” que não

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são especialistas em nenhum assunto específico, foi também corroborada. A prova

disso é o próprio documentário Edifício Master, onde os protagonistas são

moradores de classe média-baixa, que em outra circunstância, talvez não teriam voz

ou credibilidade, mas que, como atestado por Salles no capítulo 4, era o que

Coutinho sabia fazer de melhor: ouvir quem não costuma ser escutado.

Houve comprovação, também, quanto à quinta hipótese, que afirma que as

histórias de vida das pessoas, contadas por Coutinho em Edifício Master, possuem

valores-notícia, na medida em que são histórias que interessam ao espectador, sob

determinado ponto de vista. Um dos fatores que comprova essa hipótese é a própria

análise feita pela pesquisadora, onde foi possível perceber que as nove histórias

selecionadas apresentavam como valor-notícia primário, uma história de interesse

humano, pois retrata a vida de “pessoas comuns”, como exemplifica a frase

estampada na capa do DVD do documentário: “Um filme sobre pessoas como você

e eu”.

Em relação aos objetivos, pode-se dizer que o resultado obtido foi positivo.

O objetivo principal, como relembrado anteriormente, era analisar as histórias

contadas no documentário Edifício Master, de Eduardo Coutinho, e verificar se nelas

constam valores-notícia do Jornalismo, meta que foi alcançada. A partir da

decupagem das cenas selecionadas e da categorização, através da Análise de

Discurso, a pesquisadora conseguiu relacionar as informações categorizadas com

os valores-notícia apresentados no capítulo 2.

Considerando a análise como um todo, julga-se ter sido respondida a

questão norteadora, já que foram apresentados fatos que comprovam a presença de

valores-notícia no documentário Edifício Master. Na posição de futura jornalista, a

pesquisadora acredita que, caso houvesse mais profissionais como Eduardo

Coutinho, guiados pela inquietude e pela curiosidade, que tem o faro jornalístico

aguçado por histórias de “pessoas comuns” e que estejam dispostos a sair de sua

zona de conforto para criar, de fato, produtos que contribuam para o entendimento

de diferentes realidades, o Jornalismo teria muito mais a oferecer à população.

Obviamente, pelo impacto social causado por Coutinho, tanto em Edifício Master

quanto em outras obras, o trabalho do autor é merecedor de uma análise ainda mais

aprofundada.

Sendo assim, por sua ousadia no conteúdo, caráter inovador e por suas

contribuições ao Jornalismo, acredita-se que, de alguma forma, o documentário a

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partir de relatos de “pessoas comuns”, trará uma oxigenação às práticas

jornalísticas. Além disso, esse trabalho pretende contribuir para o campo de estudo

da comunicação, especificamente para o Jornalismo, Jornalismo Literário e para o

Cinema. Essa pesquisa também pode se constituir em ferramenta de consulta para

futuros pesquisadores das áreas mencionadas.

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APÊNDICE A - PROJETO DE PESQUISA MONOGRAFIA I

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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

JOELDINE MOTTA DE ANDRADE

JORNALISMO HUMANIZADO E A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS: VALORES-NOTÍCIA NOS DOCUMENTÁRIOS DE EDUARDO COUTINHO

CAXIAS DO SUL 2016

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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

JOELDINE MOTTA DE ANDRADE

JORNALISMO HUMANIZADO E A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS: VALORES-NOTÍCIA NOS DOCUMENTÁRIOS DE EDUARDO COUTINHO

Projeto de Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para aprovação na disciplina de Monografia I. Orientadora: Prof.ª. Me. Marliva Vanti Gonçalves

CAXIAS DO SUL

2016

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................. 04 2 TEMA ................................................................................................................ 17 3 JUSTIFICATIVA ................................................................................................ 18 4 QUESTÃO NORTEADORA .............................................................................. 20 5. HIPÓTESES .................................................................................................... 21 6. OBJETIVOS .................................................................................................... 22 6.1 OBJETIVO GERAL ........................................................................................ 22 6.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS .......................................................................... 22 7. METODOLOGIA .............................................................................................. 23 7.1 ANÁLISE DE CONTEÚDO ............................................................................. 23 7.2 PESQUISA BIBLIOGRÁFICA ......................................................................... 26 8. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ............................................................................ 28 8.1 JORNALISMO E VALORES-NOTÍCIA ........................................................... 28 8.2 JORNALISMO LITERÁRIO E NEW JOURNALISM ........................................ 28 8.3 DOCUMENTÁRIO .......................................................................................... 28 8.4 EDUARDO COUTINHO E EDIFÍCIO MASTER .............................................. 29 8.5 PALAVRAS-CHAVE ....................................................................................... 29 9. ROTEIRO DOS CAPÍTULOS ........................................................................... 30 10. CRONOGRAMA ............................................................................................ 31 REFERÊNCIAS ................................................................................................... 32

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1 INTRODUÇÃO

O que seria do homem sem a comunicação verbal? Afinal, a palavra, escrita

ou falada, é uma das características que nos diferencia das outras espécies. O papel

da comunicação é fazer com que haja uma troca de informações entre as pessoas

para a sua integração na sociedade. A comunicação possibilita adquirir mais

conhecimentos e obter novas experiências de vida. Segundo Bill Kovach e Tom

Rosenstiel, autores do livro Os Elementos do jornalismo (2003), os relatos orais

podem ser considerados uma espécie de pré-jornalismo. A partir dessa ideia, pode-

se entender como o Jornalismo surgiu.

A função do Jornalismo é basicamente comunicar, buscar e divulgar

informações. Sendo assim, a matéria-prima principal do Jornalismo é a notícia. Ela é

a essência das reportagens, sejam elas curtas ou longas; feitas para impresso,

rádio, televisão ou internet. Lage (2006, p. 17) define notícia como “o relato de uma

série de fatos, a partir do fato mais importante ou interessante; e, de cada fato, a

partir do aspecto mais importante ou interessante”. Portanto, ao jornalista cabe expor

os fatos ocorridos de modo que fiquem claros ao público e, principalmente,

possibilitem a ele formar uma opinião.

Nos primórdios do Jornalismo, as notícias resultavam de antigas formas de

se contar histórias (CRUZ, 2000). Com o tempo, isso foi mudando e inúmeras

questões passaram a interferir na definição do que pode ou não ser considerado

notícia. Um dos fatores que contribuiu para essa interferência é o avanço na rapidez

da transmissão de informações. O mundo, cada vez mais globalizado, tornou mais

difícil fornecer a notícia em primeira mão e com exclusividade, gerando maior

competitividade e provocando mudanças nos valores-notícia, ou seja, sobre o que

determina um fato ser notícia ou não. Ao Jornalismo “é reivindicada a autoridade e

legitimidade de exercer um monopólio sobre o poder de decidir a noticiabilidade dos

acontecimentos e das problemáticas” (TRAQUINA, 2005, p. 181, grifo do autor).

Os valores-notícia são um elemento básico da cultura jornalística que os

membros desta comunidade partilham. Bourdieu (1997, p. 12) escreveu que os

jornalistas têm óculos particulares pelos quais determinam os valores-notícia. “(...)

através dos quais vêem certas coisas e não outras, e vêem de uma certa maneira as

coisas que vêem. Operam uma seleção e uma construção daquilo que é

selecionado”. No que se refere ao conteúdo da notícia, Wolf (1995, p. 88-89), indica

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os critérios substantivos, que se referem a dois aspectos: a importância e o interesse

da notícia. Em relação à importância da notícia, o autor elenca:

a) grau e nível hierárquico dos envolvidos no fato: quanto mais

visibilidade a pessoa ou instituição tiver, mais facilmente vira notícia;

b) impacto sobre a nação e sobre o interesse nacional: quanto mais

interferir em questões de nível nacional e/ou quanto mais proximidade geográfica e

cultural, mais um fato pode virar notícia;

c) quantidade de pessoas envolvidas no fato: quanto mais pessoas

envolvidas, mais visibilidade o fato tem. Porém, predomina a proximidade com o

público-alvo do veículo de comunicação, ou seja, um acidente local com duas

vítimas tem maior potencial noticioso do que um acidente com cinco vítimas em

outras cidades, por exemplo;

d) relevância e significatividade do acontecimento quanto à evolução

futura de uma determinada situação: quanto mais o fato inicial gerar

desdobramentos que a imprensa possa cobrir, mais pode ser considerado notícia

(de acordo com os demais valores-notícia que tiver).

Toda essa ânsia por conhecimento e informação que é inerente ao ser

humano, como também a necessidade do homem de saber o que se passa ao seu

redor, resulta na busca diária por notícia. “Todas as manhãs, as pessoas que

querem saber o que está acontecendo no mundo leem o jornal, escutam a rádio,

veem a televisão, ou navegam pela internet. Esses indivíduos consomem uma

mercadoria especial: as notícias” (ALSINA, 2009, p. 9). Com toda a tecnologia que

cerca o século XXI, o acesso à informação se tornou algo fácil e rápido de se obter.

Porém, antes do surgimento do Jornalismo, as informações não eram um “bem

comum”. No século XVII, por exemplo, o saber, o acesso a informações, a

documentos e o direito à pesquisa eram restritos à Igreja e às universidades

(MARCONDES FILHO, 2002). Hoje, a situação é outra, as informações são

transmitidas em tempo real e chegam a um alcance surpreendente.

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O principal meio de transmissão de tais notícias, assim como apontado pelo

autor Miquel Rodrigo Alsina (2009), que ao mesmo tempo cria e mantém atualizadas

as informações, é o Jornalismo. Segundo Ricardo Kotscho (2001), Jornalismo não é

uma ciência exata. É algo extremamente difícil de explicar, pois não possui fórmulas.

Para o autor, definir Jornalismo é tão difícil quanto definir o amor. Dentre tantas

teorias e conceitos que explicam o que é Jornalismo, Clóvis Rossi (1994) se

restringe a dizer que simplesmente é a arte de informar para transformar. Além

disso, o autor conceitua Jornalismo como uma batalha pela conquista das mentes e

corações de seus alvos: leitores, telespectadores ou ouvintes. “[...] uma batalha

geralmente sutil e que usa uma arma de aparência extremamente inofensiva: a

palavra, acrescida, no caso da televisão, de imagens” (ROSSI, 1994, p. 7).

Já para Nelson Traquina (2005, p. 19), o Jornalismo “é a vida, tal como é

contada nas notícias de nascimentos e de mortes [...] É a vida em todas as suas

dimensões, como uma enciclopédia”. Felipe Pena (2015) fala sobre o surgimento do

Jornalismo. Ele afirma que não há consenso sobre sua origem e, assim como Bill

Kovach e Tom Rosenstiel (2003), acredita que ele possa ter começado junto com o

advento da verbalização.

Para muitos pesquisadores, ele começa junto com a primeira comunicação humana, ainda na pré-história. Mas outros localizam o início muito mais tarde, entre os séculos XVIII e XIX, quando suas características modernas já podem ser identificadas. Ou seja, quando os jornais já possuem periodicidade, atualidade, universalidade e publicidade. (PENA, 2015, p. 2)

O Jornalismo surgiu com o intuito de informar, ou seja, de trazer

esclarecimento, tanto político quanto ideológico, de expor, de acabar com o

monopólio do segredo e oferecer ao público a verdade sobre os fatos

(MARCONDES FILHO, 2002). Porém, a verdade possui inúmeros significados e o

que é verdade pra um, pode não ser para o outro. Acredita-se, que assim como

mudam os olhares sobre a vida, igualmente os seres humanos possuem valores e

crenças sobre aquilo que tomam por “verdade”. Se as pessoas tivessem

pensamentos iguais, sentimentos iguais, olhares semelhantes sobre a vida e o modo

de estar nela, o mundo viveria sem conflitos. Acontece, porém, que o ser humano

carrega consigo um mundo que é unicamente seu. Logicamente, nesse mundo

particular os conceitos pessoais mudam. E essa mudança acontece pela própria

natureza das pessoas, que são diferentes umas das outras.

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Assim, a resposta é mergulhar, profundamente, nos fatos que são

apresentados. Fugir do senso comum e criar opiniões próprias. Entendendo assim,

que a verdade depende do modo como cada pessoa encara o mundo. O filósofo

alemão Friedrich Nietzsche, na sua obra Sobre verdade e mentira no sentido extra-

moral (1983, p. 48), utiliza-se de uma linguagem quase poética para tratar da

discussão sobre a construção da verdade pelo homem, esta verdade que rege seu

mundo pelo universo da razão. “(…) as verdades são ilusões que foram esquecidas

enquanto tais, metáforas que foram gastas e que ficaram esvaziadas do seu sentido,

moedas que perderam o seu cunho e que agora são consideradas, não já como

moedas, mas como metal”. Para o filósofo, a verdade é um ponto de vista. O autor

não define nem aceita a definição da verdade, porque segundo ele, não se pode

alcançar uma certeza sobre a definição do oposto da mentira.

No decorrer da história do Jornalismo, o formato das notícias sofreu

transformações, originando variados gêneros e ramificações. Um desses gêneros é

o chamado Jornalismo Literário. Jornalismo Literário ou New Journalism,28 como é

conceituado por Pena (2006), é uma narrativa de não-ficção produzida e revelada

com recursos da literatura. Esse gênero rompe as correntes do lead29 e potencializa

os recursos do Jornalismo, proporcionando visões amplas da realidade e dando

profundidade aos relatos. Segundo LIMA (1993), o New Journalism surgiu quando

alguns jornalistas verificaram que não bastava tentar captar o real de maneira linear,

lógica. A isso era necessário somar-se a experiência vital de o repórter lançar-se a

campo aberto, nos cenários sobre os quais escreveria, para melhor sentir a

realidade também no que tem de subjetiva, imaterial.

O novo jornalismo traz à luz dos holofotes o mesmo timbre de sensualidade, de mergulho completo, corpo e mente, que outros meios de expressão da contracultura, como o cinema underground, estavam incorporando. Assim, suas reportagens têm calor, vida, rostos, nomes. (LIMA, 1993, p. 46)

Outro ponto importante do novo gênero foi um romance de não-ficção escrito

por Truman Capote. A sangue frio é considerado como um dos mais importantes

trabalhos do New Journalism. A obra foi publicada em capítulos na revista The New

28 Novo Jornalismo (tradução nossa). 29 Famosa fórmula objetiva que prega a necessidade de o texto jornalístico responder no primeiro parágrafo, as principais perguntas da reportagem: Quem? O quê? Como? Onde? Quando e Por quê? (PENA, 2006, p. 15).

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Yorker em 1965, e se transformou em livro em 1966, sendo esse um revés para

aqueles que achavam que o Novo Jornalismo ia se esgotar como uma moda. O

romance conta a história de dois assassinos de uma família nos Estados Unidos e

foi através de uma pequena notícia no New York Times que Capote ficou sabendo

do crime e se dispôs a investigar a história. Devido a sua ousadia e inovação, o livro,

A sangue frio é uma obra que “abriu portas” para que diversos repórteres

explorassem, anos após, novas formas de renovar e revigorar os conteúdos do

Jornalismo.

Segundo Pena (2006), o Jornalismo, que deveria ser uma profissão ligada

às causas da coletividade, vem se transformando, salvo raras e boas exceções, em

um palco de futilidades e exploração do grotesco e da espetacularização. Sem

mencionar a “frieza” que muitos jornalistas vêm adotando ao escreverem suas

matérias. Afinal, eles foram ensinados que devem ser imparciais, indiferentes,

neutros, dotados da tal “objetividade jornalística”. Esse termo objetividade

jornalística, se repete em diversos livros sobre noções e técnicas de reportagem. Os

jornalistas aprendem em sua formação, que devem sintetizar a trajetória de

apuração e escrita das reportagens. Essa regra também é incentivada no mercado

de trabalho. “Esse laço obrigatório com a informação objetiva vem dizer que,

qualquer que seja o tipo de reportagem (interpretativa, especial, etc.), impõe-se ao

redator o 'estilo direto puro', isto é, a narração sem comentários, sem subjetivações”

(SODRÉ; FERRARI, 1986, p. 11).

Já Kotscho (2001) é contra o que determina a objetividade jornalística. Para

ele, o leitor tem o direito de saber o que pensa, de que lado está aquele que lhe

escreve – é uma informação a mais para que ele possa tirar suas próprias

conclusões. O autor ainda afirma que não há como o repórter ficar insensível frente

aos fatos – nem deve. Afinal, ele é, antes de mais nada, um ser humano igual aos

seus leitores, e precisa transmitir não só as informações, mas também as emoções

dos acontecimentos que está cobrindo. “Informação e emoção são as duas

ferramentas básicas do repórter, e ele terá que lutar sempre consigo mesmo para

saber dosá-las na medida certa em cada matéria” (KOTSCHO, 2001, p. 32).

Pode-se dizer, a partir dos pensamentos de Lima, Pena e Kotscho, que para

se fazer um Jornalismo de qualidade, em especial no gênero do Jornalismo Literário,

é necessário ser mais humano. Eliane Brum é uma jornalista gaúcha, escritora e

documentarista. Autora de obras que lhe renderam dezenas de prêmios nacionais e

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internacionais, apaixonada por literatura, cinema e política, suas produções são

carregadas de elementos literários. No seu livro “A menina quebrada e outras

colunas de Eliane Brum”, ela diz: “Eu escrevo sobre gente, mas quem não escreve

sobre gente? Volta e meia alguém diz que faço ‘matérias humanas’. Mas seria

possível alguém fazer ‘matérias inumanas’?” (BRUM, 2013, p. 13-14). O Jornalismo

se torna mais humano na medida em que, no lugar de fazer entrevistas, os

repórteres “saem a campo para vivenciar de peito aberto a realidade de seus

personagens. Convivem com eles dias, semanas, meses” (LIMA, 1993, p. 47).

Para Brum (2013), os termos New Journalism e/ou Jornalismo Literário são

classificados como “bom jornalismo”, a reportagem que não reduz o mundo, que

busca captar palavras, silêncios, hesitações, texturas e gestos. Detalhes únicos que

enriquecem o texto, que fazem com que o leitor imagine a cena, desloque-se no

tempo, no espaço e se emocione. Ela defende que a boa matéria é feita na rua. “A

reportagem é o exercício de se despir de si para alcançar o outro. E isso se faz

carne a carne”. E diz mais: “[...] o bom jornalismo se aplica a tudo o que é da vida.”30

Complementando as definições sobre Jornalismo Literário, Sérgio Vilas Boas

traz sua visão sobre o tema. Segundo ele, é a arte de contar histórias.

O jornalismo literário é uma maneira diferente de fazer jornalismo. É uma maneira mais aprofundada, que gira em torno da vivência de personagens. A razão de ser do jornalismo narrativo ou literário é a existência de protagonistas, de pessoas que falam sobre suas experiências pessoais, como viveram, e o que pensam da vida e do mundo. (VILAS BOAS, 2007)

A partir dessa reflexão, pode-se observar quão grande é o papel do

jornalista na sociedade, pois além de informar, ele consegue atingir vidas de

maneiras inimagináveis, o que agrega também um fardo de responsabilidades para

o repórter. Dessa forma, explica Marcelo Bulhões (2007), a profissão torna a própria

existência do ser humano seu objeto de estudo: observa-a, comprova-a, sente-a,

torna-a um produto a ser vendido, consumido, porém, digno de credibilidade. Assim

sendo, o Jornalismo presta um testemunho do “real” e o repórter se torna uma

espécie de “historiador da vida contemporânea”, diariamente compartilhada

(BULHÕES, 2007, p. 11, grifos do autor).

30 OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA. “O bom jornalismo se aplica a tudo o que é da vida”.

Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/_ed737_o_bom_jornalismo_se_aplica_a_tudo_o_que_e_da_vida/>. Acesso em: 26 outubro 2016.

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Uma vez que nem todos os jornalistas estão familiarizados com as técnicas

narrativas literárias, talvez, atualmente, o diálogo com os meios audiovisuais seja a

forma mais interessante de avançar nos estudos dos escritos jornalísticos mais

sofisticados. Isso porque o meio audiovisual exerce fascínio pela visibilidade,

essencialmente por meio da imagem, seja através das grandes produções ficcionais,

seja através da exibição de representações imagéticas do real.

A liberdade de se expressar que o Jornalismo Literário traz para o repórter,

ganha maior visibilidade no telejornalismo, pois, assim como diz um velho provérbio

chinês: uma boa imagem vale mais do que mil palavras. Segundo a jornalista Vera

Paternostro (1999), a imagem diz o que a palavra não traduz. Para ela, a imagem

tem uma narrativa própria e para transmitir a emoção de um momento, o silêncio, às

vezes, vale mais. Ao mesmo tempo, a oralidade também é a essência da televisão.

Martín-Barbero (2004) diz que sua linguagem deriva do rádio, que deriva do teatro,

que deriva das estórias populares contadas em praças, etc. Em suma, sabe-se das

coisas, até hoje, porque elas são narradas, contadas, ditas, faladas, escritas e,

agora, também mostradas. A fala é essencial, pois na maioria das vezes é ela que

oferece o sentido ao que se vê. A expressão narrativa do sujeito, a partir de um

relato, traz à tona a oralidade e a necessidade da articulação do falar. Contudo,

reitera Martín-Barbero, falar não é somente se servir de uma língua, mas pôr um

mundo em comum, fazê-lo lugar de encontro. “A linguagem é a instância em que

emergem mundo e homem ao mesmo tempo. E aprender a falar é aprender a dizer o

mundo, a dizê-lo como os outros, a partir da experiência de habitante da terra, uma

experiência acumulada através dos séculos” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 30, grifo

do autor).

No telejornalismo, o repórter fornece ao cidadão a possibilidade de fuga do

anonimato, o mesmo recurso que o New Journalism utiliza para narrar os fatos.

Segundo Iluska Coutinho (2012), a dramaturgia não ficcional na TV gera um conflito

narrativo que ressalta histórias cujos personagens anônimos ganham visibilidade ao

exporem suas versões da própria realidade aos repórteres. Ainda conforme a autora,

para que haja um telejornalismo de qualidade é necessário pensar em uma

diversidade na linguagem audiovisual: novas formas de produzir e construir

significados, buscando diferentes quadros, pontos de vista e movimentos de câmera,

esses elementos todos, podem proporcionar um maior engajamento do público com

a notícia.

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A programação da TV brasileira está definida em cinco categorias diferentes.

Essa divisão foi elaborada por José Carlos Aronchi de Souza (2004, p. 93-165) num

estudo que tomou por base os boletins de programação das emissoras brasileiras,

publicados nos principais jornais e revistas do país. A classificação assim é dada,

segundo o autor:

f) entretenimento: tem como formatos – auditório, colunismo social, culinário,

desenho animado, docudrama, esportivo, filme, game show, humor, infantil,

interativo, musical, novela, quis show, reality show, revista, série, talk show,

teledramaturgia e variedades;

g) educação: programas educativos e instrutivos;

h) publicidade: são as chamadas, filmes comerciais, políticos, sorteios e tele-

compras;

i) informação: debates, documentários, entrevistas e telejornais;

j) outros: são transmissões, como programas especiais, eventos ou religiosos.

O documentário, foco desse trabalho, pertence à categoria de informação, a

mesma a qual pertencem os telejornais.

Abordar a realidade, buscando um novo olhar; lidar com a verdade, saindo

do senso comum, são características do documentário. Aronchi de Souza (2004)

reconhece o documentário tanto como gênero quanto como formato (quando

inserido em outros gêneros). O documentário propõe uma visão crítica,

estabelecendo relações de contexto histórico, social, político, cultural, econômico e

tantos quantos forem possíveis e pertinentes; possibilita que o público conheça

outras culturas, interferindo na sua visão de mundo.

Mas o que é documentário? O termo “documentário” foi utilizado pela

primeira vez pelo inglês e cineasta John Grierson, em fevereiro de 1926 e sua

definição para essa expressão é a mais citada em todos os livros, embora, segundo

Silvio Da-Rin (2008, p. 16), não se saiba ao certo em que texto ou em qual contexto

Grierson a formulou: documentário é o “tratamento criativo da realidade”.

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Na atualidade, Bill Nichols é um dos principais pesquisadores que vêm

formulando diversos estudos sobre o documentário. Assim, ele define o gênero:

O documentário engaja-se no mundo pela representação, fazendo isso de três maneiras. Em primeiro lugar, os documentários oferecem-nos um retrato ou uma representação reconhecível do mundo. Pela capacidade que têm o filme e a fita de áudio de registrar situações e acontecimentos com notável fidelidade, vemos nos documentários, pessoas, lugares e coisas que também poderíamos ver por nós mesmos, fora do cinema. Essa característica, por si só, muitas vezes fornece uma base para a crença: vemos o que estava lá, diante da câmera: deve ser verdade (NICHOLS, 2008, p. 28).

Como se viu anteriormente, o filósofo Nietzsche explica o que é verdade.

Uma multidão móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos; em resumo, uma soma de relações humanas que foram realçadas, transpostas e ornamentadas pela poesia e pela retórica e que, depois de um longo uso, pareceram estáveis, canônicas e obrigatórias aos olhos de um povo. (NIETZSCHE, 1983, p. 48)

O documentário, segundo Fernão Pessoa Ramos (2008), “[...] é uma narrativa com

imagens-câmera que estabelece asserções sobre o mundo, na medida em que haja

um espectador que receba essa narrativa como asserção sobre o mundo”. Essa

asserção sobre o mundo, à qual se refere o autor, pode ser entendida aqui, como

verdade sobre o mundo, onde cada espectador, ao ver as imagens, possui a sua

própria versão sobre o que está vendo.

[...] podemos afirmar que o documentário é uma narrativa basicamente composta por imagens-câmera, acompanhadas muitas vezes de imagens de animação, carregadas de ruídos, música e fala (mas, no início de sua história, mudas), para as quais olhamos (nós, espectadores) em busca de asserções sobre o mundo que nos é exterior, seja esse mundo coisa ou pessoa. (RAMOS, 2008, p. 22)

A partir desses conceitos, pode-se dizer que o documentário resulta de um

olhar pessoal sobre determinado fato, acontecimento, assunto ou tema, baseado no

ponto de vista do documentarista. Visando uma divisão das características

específicas e das formas como o vídeo documentário pode ser trabalhado, Bill

Nichols (2008, p. 63) estabeleceu seis modos diferentes de representação do

gênero, que são:

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g) poético: enfatiza associações visuais e organização formal. Os atores

sociais raramente assumem a forma vigorosa dos personagens com

complexidade psicológica e uma visão definida do mundo. Reúne

fragmentos dos temas abordados de maneira poética, não específica e

abstrata. Preocupa-se com a estética. Na construção do texto, permite a

utilização de poemas e trechos de obras literárias;

h) expositivo: trata diretamente de questões do mundo histórico. Destaca

o comentário verbal e uma lógica argumentativa. Corresponde ao

documentário clássico, onde o argumento é veiculado por letreiros ou pelo

comentário off31 servindo às imagens de ilustração ou contraponto.

Preocupa-se com a defesa dos argumentos e equilibra bem o que está

sendo falado ao que está sendo mostrado. Caracteriza-se pela objetividade

na informação;

i) observacional: observa as coisas conforme elas acontecem. Enfatiza

o engajamento direto no cotidiano das pessoas que representam o tema do

cineasta. Situa o espectador na posição de observador ideal e defende a

não intervenção do realizador;

j) participativo ou interativo: destaca a interação de cineasta e tema. O

pesquisador vai a campo, participa da vida de outras pessoas. A

subjetividade do cineasta e dos participantes da filmagem é plenamente

assumida ao entrevistar os participantes e interagir com eles;

k) performático: todos os filmes desse modo compartilham

características com filmes experimentais, pessoais e de vanguarda, mas

com uma ênfase vigorosa no impacto emocional e social sobre o público.

Utiliza-se da subjetividade e das técnicas cinematográficas de forma livre;

l) reflexivo: “Apresenta o produtor e o processo de produção juntamente

com o produto” (Da-Rin, 2008, p. 135). Deixa claro para quem assiste quais

31 Texto lido pelo apresentador, locutor ou repórter e coberto com imagens (BISTANE e BACELLAR,

2008, p. 135).

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foram os procedimentos da filmagem. Mostra o documentário como

processo artesanal e leva o telespectador a fazer uma reflexão sobre o que

ele assistiu.

O documentário se deu a partir da iniciativa de alguns cineastas que

quebraram paradigmas de suas épocas e, naturalmente, criaram tendências. Um

desses cineastas de grande renome foi o paulistano Eduardo Coutinho. No livro “O

Documentário de Eduardo Coutinho – Televisão, Cinema e Vídeo”, Consuelo Lins

(2004), docente da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ) conta um pouco da história e trajetória do documentarista. Nascido

em São Paulo, no ano de 1933, Eduardo Coutinho iniciou no Rio de Janeiro, em

1964, sua carreira no cinema como roteirista e diretor de filmes de ficção. Seu

vínculo com o documentário surge em 1975, quando passa a integrar a equipe do

Globo Repórter (TV Globo), onde dirigiu vários programas.

Os documentários de Eduardo Coutinho se enquadram no formato

observacional, são marcados, principalmente, pela atenção reservada ao

entrevistado, pela forma como o próprio personagem conduz a história e pela

despretensão do documentarista em defender seu posicionamento, ao menos de

forma direta. Coutinho não se preocupa em apresentar uma série de dados, em ouvir

especialistas ou comover seu público com imagens ou depoimentos chocantes. João

Moreira Salles, também documentarista, expressa sua visão sobre o trabalho de

Coutinho:

[...] o cinema de Coutinho dedicou-se a reunir um conjunto de histórias fragilíssimas, oferecendo a cada uma delas aquilo que, em outros filmes e outras circunstâncias, elas não teriam: proteção. Nada mais frágil do que palavras ditas por quem não costuma ser escutado. (SALLES, 2004, p. 7)

Consuelo Lins revela a caminhada metodológica por trás da obra de

Eduardo Coutinho. Pode-se destacar deste método a parte inicial, ou seja, a

pesquisa. “O objetivo é encontrar pessoas que saibam contar histórias. Para o

diretor, de nada adianta achar pessoas com vidas extraordinárias mas sem essa

habilidade narrativa” (LINS, 2004). O documentarista, contudo, não constrange ou

sugere julgamento ao personagem, mas consegue depoimentos tão sinceros, que o

espectador tem o necessário para formar sua própria opinião. A entrevista é uma

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marca forte de seu estilo e ao assistir seus trabalhos, é possível perceber que

Coutinho tem respeito pela fala do outro. Eduardo Coutinho sempre teve grande

desejo e capacidade de ouvir e, principalmente, de trabalhar com o outro. Algo que

Pierre Bourdieu (1997, p. 23), define como “(...) um exercício espiritual, visando

obter, pelo esquecimento de si, uma verdadeira conversão do olhar que lançamos

sobre os outros nas circunstâncias da vida”.

Um dos seus documentários de maior destaque é Edifício Master (2002). Só

com ele, o documentarista recebeu cinco prêmios de melhor documentário32 e em

novembro de 2015 o filme entrou na lista feita pela Associação Brasileira de Críticos

de Cinema (Abraccine) como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os

tempos33. Para a gravação de Edifício Master, Coutinho e sua equipe passaram um

mês morando no prédio localizado em Copacabana (RJ), a fim de se aproximar de

seus moradores e ouvir suas histórias. Quase todo o documentário é uma sequência

de depoimentos de pessoas dentro de seus apartamentos. Jean-Claude Bernadet,

também documentarista, relata o método que Coutinho utilizou na gravação do

documentário Edifício Master:

O som direto abriu para o cinema um leque extraordinariamente rico de entrevistas e falas. Num pólo, temos fala, entrevistas e outras modalidades, cuja finalidade é transmitir uma informação verbal, tendo o conteúdo uma importância predominante. No outro, encontramos uma fala cujo conteúdo se torna secundário, e o ato da fala passa a predominar. Nenhum desses pólos concretiza-se com exclusividade: trata-se de tendências, podendo uma ou outra prevalecer nesta ou naquela entrevista (BERNARDET, 2003, p. 284).

Ao que tudo indica, Coutinho se preocupava mais com o que as pessoas

tinham para contar do que propriamente com a forma como contavam, considerando

que não havia nada de muito atípico além do sotaque carioca (no caso do Edifício

Master). Assim, segundo Lins (2004), ele abria espaço para a classe média, que

pouco interessava para os documentaristas, tendo seu papel social e histórico

ignorado diante da desigualdade de renda, cujos extremos são o pobre e o rico. Lins

relata ainda sobre os mundos que o documentarista Eduardo Coutinho nos revela:

32 IMDB. “Edifício Master (2002)”. Disponível em: <http://www.imdb.com/title/tt0333388/awards/>. Acesso em: 26 outubro 2016. 33ABRACCINE. “Abraccine organiza ranking dos 100 melhores filmes brasileiros”. Disponível

em: < https://abraccine.org/2015/11/27/abraccine-organiza-ranking-dos-100-melhores-filmes-brasileiros/>. Acesso em: 26 outubro 2016.

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[...] esses mundos não estão centrados em um comentário nem em informações precisas, mas em depoimentos que traçam uma rede de pequenas histórias descentradas, que se comunicam através de ligações frágeis e não-casuais. São ecos que se estabelecem entre diferentes elementos da imagem ou da fala dos personagens (LINS, 2004, p.183).

Consuelo Lins conta ainda, outra técnica característica do documentarista,

que é se instalar no local da filmagem, delimitando geograficamente seu campo de

interesse. LINS (2004, p. 34) explica que ao se estabelecer um único local de

produção, Coutinho acrescenta outro sentido ao seu documentário, que é de mostrar

sua própria relação com a comunidade. Para extrair a história de vida dos moradores

do edifício com toda a carga trágica que isso comporta, Coutinho trabalha com uma

técnica baseada na escuta e no dispositivo, na qual os entrevistados são deixados à

vontade para narrar as suas histórias, intervindo quando necessário, sem sugerir o

que quer ouvir. A busca deste “movimento de abertura ao outro e de atenção ao que

está sendo dito”, complementa-se na técnica cinematográfica, com pouca edição,

sem muitos cortes, evitando um roteiro predefinido, sem tratamento estético.

Portanto, pode-se dizer que Coutinho não se limita a dar informações, mas colhe

depoimentos e insere-se no ambiente de filmagem, extraindo do presente (ato da

captura fílmica) o sentido de seus documentários, que a partir de relatos de “pessoas

comuns”, pode ser tão interessante quanto um filme de ficção.

Esse trabalho pretende contribuir para o campo de estudo da Comunicação,

especificamente para o Jornalismo, Jornalismo Literário e para o Cinema. Essa

pesquisa também pode se constituir em ferramenta de consulta para futuros

pesquisadores das áreas mencionadas.

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2 TEMA

Análise do emprego de valores-notícia nos documentários de Eduardo Coutinho.

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3 JUSTIFICATIVA

O Jornalismo é o responsável por satisfazer um dos mais básicos impulsos

da humanidade: “a necessidade intrínseca de saber o que se passa para além da

sua própria experiência direta” (KOVACH; ROSENSTIEL, 2003, p. 5). Nesse sentido,

o Jornalismo funciona como uma ponte que liga as pessoas aos acontecimentos da

atualidade, permitindo que fiquem “em dia” com os principais episódios do mundo

contemporâneo, que participem ativamente de grupos sociais e que se sintam

“reasseguradas de que através dos vários produtos do jornalismo não estão a perder

algo” (TRAQUINA, 2005, p. 20). Hoje, em pleno século XXI e com todos os recursos

e tecnologias existentes, o Jornalismo já passou por diversas mudanças, porém nem

tudo mudou, a objetividade jornalística permanece como prática dos jornalistas. Ao

observar o cenário atual do Jornalismo convencional, com toda a sua lógica

industrial de “leads”, pirâmide invertida34, pautas, etc, surgiu o interesse em estudar

um modelo do Jornalismo pouco discutido entre os estudantes de comunicação: o

Jornalismo Literário.

O excesso de trabalho e a falta de tempo do repórter, não facilita o processo

de construção de notícias com características literárias. Além disso, os recursos e

espaços nas mídias não permitem que haja abertura para informações mais

aprofundadas. Nesse cenário, a imprensa perde a oportunidade de contar histórias

de vidas que poderiam despertar nos leitores uma identificação que vai além do

simples fato cotidiano. Histórias que poderiam gerar empatia e fariam com que o

leitor se identificasse com a experiência do outro.

A preocupação com o Jornalismo cada vez mais engessado fez com que

fosse escolhido como objeto de estudo dessa monografia, os documentários de

Eduardo Coutinho. O gênero documentário foi escolhido por possibilitar aprofundar o

que é relatado, e por encaixar-se também nas características do Jornalismo

Literário. Os documentários de Coutinho podem ser categorizados como

documentários de representação social, que segundo Nichols (2008, p. 27), também

são chamados de filmes de não ficção. Eles retratam o mundo comum a partir de

diferentes pontos de vista que o telespectador pode ou não aceitar. “Os

34 Modo com que os jornalistas hierarquizam os fatos: inicialmente apresentam os mais importantes,

que são seguidos pelos menos “atraentes” ao público (TRAQUINA, 2004, p. 59).

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documentários de representação social proporcionam novas visões de um mundo

comum, para que as exploremos e compreendamos [...]”. Para Aronchi de Souza

(2004), é próprio do documentário aprofundar temas, inclusive cotidianos, de forma a

destacar sua importância social, histórica, econômica, política ou científica;

apresentar o máximo de informações sobre o mesmo tema; diversificar ambientes de

entrevistas/imagens; propor ao telespectador uma nova visão de mundo, a partir da

realidade de outras culturas e analisar criticamente o tema e tentar convencer o

telespectador de o que ele assiste é real.

Um dos aspectos do documentário é mostrar o cotidiano de “pessoas

comuns”, de forma que haja identificação entre personagem e telespectador.

Quando um documentário é produzido por jornalistas, estes têm a vantagem de

estarem habituados a — ou terem sido preparados para — contar histórias. Segundo

o historiador Jacques Le Goff (2003), os relatos pessoais são vistos como narrativas

dos sujeitos, artífices da própria história. “A oralidade consiste na expressão de

lembranças desse sujeito que aciona a sua capacidade psíquica de rememorar,

propriedade humana de conservar certas informações sobre o passado” (LE GOFF,

2003, p. 419). Grandes reportagens demonstram, mesmo que implicitamente, a

empatia do repórter em relação ao personagem. Essa identificação pessoal entre

documentarista e personagens é uma característica marcante nas produções de

Eduardo Coutinho, já que o cineasta é mestre em “respeitar e ouvir a fala do outro”.

Em “Edifício Master”, o documentarista passou um mês contando histórias

de moradores de um edifício em Copacabana no Rio de Janeiro, histórias simples,

nenhum furo de reportagem, mas que sensibilizam quem as ouve com atenção e

querendo ou não, fazem com que quem as ouve, se identifique com as mesmas. É

por esse tipo de reação, que pretende-se verificar se essas histórias de “gente como

a gente”, histórias da comunidade, podem ser entendidas como valores-notícia na

sociedade e na mídia. Sendo assim, por sua ousadia no conteúdo, caráter inovador

e por suas contribuições ao Jornalismo, acredita-se que, de alguma forma, haverá

uma oxigenação às práticas jornalísticas.

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4 QUESTÃO NORTEADORA

A vida das pessoas e as suas histórias contadas nos documentários de

Eduardo Coutinho, podem ser entendidas a partir dos valores-notícia?

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5 HIPÓTESES

- O Jornalismo Literário possibilita ao jornalista expressar suas emoções e

demonstrar que se importa com o outro, desapegando-se, assim, da “objetividade”,

um dos ideais da profissão jornalística.

- O documentarista Eduardo Coutinho respeita o discurso do outro e não

interfere nas falas de seus entrevistados, fazendo com que não haja indução da fala.

- Coutinho dá voz aos esquecidos, aqueles que nunca seriam chamados

para dar sua opinião em um veículo de comunicação, dando crédito e espaço a

“pessoas comuns” que não são especialistas em nenhum assunto.

- As histórias de vida das pessoas, contadas por Coutinho em Edifício

Master, possuem valores-notícia, pois são histórias que interessam ao telespectador.

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6 OBJETIVOS

6.1 OBJETIVO GERAL

Analisar as histórias contadas no documentário Edifício Master de Eduardo

Coutinho e verificar se nelas constam valores-notícia do Jornalismo.

6.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Tratar de temas como: Jornalismo, Jornalismo Literário, notícia, valores-notícia e

documentário. Sendo que todos eles serão conceituados, trazendo um pouco da

história de cada um, características e embasamento teórico. Além disso, será

contada, parte da história do documentarista Eduardo Coutinho, onde o foco será

seu documentário Edifício Master. Nele, serão selecionadas e analisadas cenas das

histórias de vida, contadas por moradores do edifício, para verificar se há valores-

notícias presentes nessas histórias.

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7 METODOLOGIA

Com a escolha e delimitação do tema dessa pesquisa, houve a formulação

da questão norteadora e suas possíveis hipóteses. Depois de traçados os objetivos,

foram selecionados o método e as técnicas de pesquisa a serem utilizadas nesse

trabalho. A fim de identificar se as histórias contadas no documentário Edifício

Master de Eduardo Coutinho podem ser entendidas como valores-notícia e, por

conseguinte, informar, essa pesquisa irá utilizar procedimentos qualitativos. A

pesquisa qualitativa, segundo Laurence Bardin, no livro Análise de Conteúdo (2004),

corresponde a um procedimento mais intuitivo e adaptável. Quanto ao método, que

segundo Antônio Carlos Gil (1999, p. 26), “[...] pode-se definir como o caminho para

se chegar a determinado fim”, será utilizada para essa monografia, a Análise de

Conteúdo (AC), junto de pesquisa bibliográfica como procedimento metodológico.

Assim, o método escolhido ajudará na comprovação ou refutação das hipóteses e na

resposta à questão norteadora dessa pesquisa.

De acordo com Minayo (1995, p. 21-22), a pesquisa qualitativa busca

encontrar respostas para questões subjetivas dos seres humanos, portanto, ela “se

preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser

quantificado, ou seja, trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações,

crenças, valores e atitudes”. Outra característica da pesquisa qualitativa é ter como

base, a interpretação sobre o objeto de estudo.

A pesquisa quantitativa lida com números, usa modelos estatísticos para explicar os dados, e é considerada pesquisa hard. [...] Em contraste, a pesquisa qualitativa evita números, lida com interpretações das realidades sociais, e é considerada pesquisa soft (BAUER; GASKELL, 2008, p. 22-23, grifo do autor).

7.1 ANÁLISE DE CONTEÚDO

De acordo com artigo intitulado Análise do Conteúdo, de Wilson Corrêa

Fonseca Júnior (2005, p. 280), “a Análise de Conteúdo (AC), em concepção ampla,

se refere a um método das ciências humanas e sociais destinado à investigação de

fenômenos simbólicos por meio de várias técnicas de pesquisa”.

Bardin (2004), explica que a Análise de Conteúdo enriquece as chances de

descoberta e exploração na pesquisa e, também, pode ser utilizada para verificação,

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no sentido de confirmação ou não, de determinadas hipóteses. A autora defende

que as duas funções podem coexistir. Durante a AC é descoberto o conteúdo da

mensagem. Para a realização da Análise de Conteúdo, Bardin explica que a AC

organiza-se em três fases cronológicas distintas: a pré-análise; a exploração do

material; e o tratamento dos resultados, inferências e interpretações.

A pré-análise, ainda de acordo com Bardin (2004), consiste na organização

em si. Aqui, devem-se escolher os documentos a serem analisados, formular as

hipóteses e os objetivos, e ainda elaborar indicadores que depois possam

fundamentar a interpretação final. Também na pré-análise, consta a leitura flutuante

– que deve ser o primeiro passo de todos, e que consiste no contato com os

documentos para conhecê-los e para deixar-se invadir por impressões e orientações.

Para a pesquisa desse projeto, a pré-análise foi realizada assim como citou Bardin,

na formulação das hipóteses, objetivos e questão norteadora. Foram lidos vários

livros referentes ao tema abordado para poder se aproximar e ter um primeiro

contato com variados assuntos que serão aprofundados no decorrer do tempo,

nessa monografia.

A exploração do material, segundo Bardin (2004), é o momento em que o

pesquisador seleciona os recortes do material que será analisado e, então, ocorre a

categorização do mesmo. Neste caso, a análise será feita por histórias contadas no

documentário Edifício Master; essas histórias serão agrupadas nas categorias; e as

categorias serão representadas por valores-notícia, que serão questionados e/ou

confirmados. Nessa segunda fase da AC será utilizado como método de apoio a

Análise de Discurso. Ainda de acordo com Laurence Bardin (2004, p. 214), todo

discurso, ou um conjunto de discursos, é determinado por condições de produção e

por um sistema linguístico. “Desde que se conheçam as condições de produção e o

sistema linguístico, pode-se descobrir a estrutura organizadora ou processo de

produção, através da análise da superfície semântica e sintáctica [sic] deste

discurso”.

Para Martin W. Bauer e George Gaskell é proveitoso pensar a análise de

discurso como tendo quatro temas principais:

[...] uma preocupação com o discurso em si mesmo; uma visão da linguagem como uma forma de ação; e uma convicção na organização retórica do discurso. Em primeiro lugar, então, ela toma o próprio discurso

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como seu tópico. O termo “discurso” é empregado para se referir a todas as formas de fala e textos. (BAUER; GASKELL, 2008, p. 247)

A análise de discurso permite-nos perceber como se fala, como se dá a interação

entre emissor e receptor de uma mensagem, identifica o receptor, interpreta o

discurso produzido pelos outros sem desconsiderar a subjetividade do pesquisador.

Pretende-se nessa monografia, categorizar as histórias analisadas no documentário

Edifício Master a partir de um conjunto de critérios associados a fases, estabelecidos

por Parker35 (1992 apud NOGUEIRA, 2001) que auxiliam no método da análise de

discurso.

Critérios e Fases

Textos

1 - tratar objetos de estudo como sendo textos (colocados em palavras: decupagem)

2 - explorar conotações, associação livre

Objetos

3 - procurar objetos nos textos

4 - tratar a fala acerca desses objetos como objeto de estudo

Sujeitos

5 - especificar sujeitos (pessoas, assuntos, temas, etc.), como tipos de objetos no

texto

6 - especular acerca de como eles podem “falar”

Sistema

7- traçar uma imagem do mundo, redes de relações

8 - indicar as estratégias defensivas desses sistemas contra possíveis ataques

Ligações

9 - identificar contrastes entre formas de “falar”

10 - identificar pontos de sobreposição, fala dos mesmos objetos

35 PARKER, Ian. Discourse Dynamics: Critical Analysis for social and individual psychology. London:

Routledge, 1992.

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159

Reflexão

11 - relacionar maneiras de falar para audiências diferentes

12 - escolher rótulos ou designações das formas de falar, os discursos

História

13 - analisar com atenção como esses discursos emergem

14 - questionar como os discursos contam a sua história acerca da sua origem

Instituições

15 - identificar instituições reforçadas pelos discursos

16 - identificar instituições que são atacadas pelos discursos

Poder

17 - analisar que categorias de pessoas ganham e perdem

18 - questionar quem os promoverá e quem se lhes oporá

Ideologia

19 - analisar como eles se ligam com outros discursos opressivos

20 - descrever como eles justificam o presente

Estes critérios não são rígidos, mas, são indicadores importantes para se iniciar

uma análise de discurso. Essa forma de análise refuta a ideia de que o discurso é

uma forma de reflexão neutra e o trata como uma peça essencial na construção da

vida social.

Na última etapa da Análise de Conteúdo ocorre o tratamento dos dados. A

inferência e a interpretação são o resultado da pesquisa, em que o pesquisador

pode ter uma visão geral sobre o trabalho e, então, analisar quais objetivos foram

alcançados e qual a resposta à questão norteadora.

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7.2 PESQUISA BIBLIOGRÁFICA

Para identificar se os valores-notícia estão presentes no objeto de estudo,

por exemplo, será necessário, antes, esclarecer o que são estes valores e quais

devem ser explorados com mais atenção durante essa pesquisa. Esses e outros

esclarecimentos somente são possíveis por meio da pesquisa na literatura existente

sobre o assunto, pois além de respaldar conceitos, “a principal vantagem da

pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma

gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar

diretamente”. (GIL, 1999, p. 71). A pesquisa bibliográfica está presente em todas as

etapas do processo, pois é a partir da consulta a livros e materiais de referência que

o pesquisador consegue identificar o problema de pesquisa e quais conceitos e

abordagens irá aplicar. A pesquisa bibliográfica pode ser definida como:

[...] um conjunto de procedimentos que visa identificar informações bibliográficas, selecionar os documentos pertinentes ao tema estudado e proceder à respectiva anotação ou fichamento das referências e dos dados dos documentos para que sejam posteriormente utilizados na redação de um trabalho acadêmico (STUMPF, 2005, p. 51).

Ao mesmo tempo em que o pesquisador faz uso do material já existente

sobre seu tema, contribui para o aumento desse acervo e, consequentemente, com

a construção de futuras pesquisas.

A produção do conhecimento não é um empreendimento isolado. É uma construção coletiva da comunidade científica, um processo continuado de busca, no qual cada nova investigação se insere, complementando ou contestando contribuições anteriormente dadas ao estudo do tema. A formulação de um problema de pesquisa relevante exige, portanto, que o pesquisador se situe nesse processo, analisando criticamente o estado atual do conhecimento em sua área de interesse [...] (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSNAJDER, 1999, p. 180).

Na Análise de Conteúdo, método usado nessa monografia, a pesquisa

bibliográfica é indispensável, já que as categorias usadas serão selecionadas a

partir de conceitos já existentes na área do Jornalismo.

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8 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Um dos principais alicerces dessa monografia é o referencial teórico, pois é

a partir de conceitos da comunidade científica do Jornalismo e da Comunicação que

será possível analisar o documentário selecionado para essa pesquisa.

8.1 JORNALISMO E VALORES-NOTÍCIA

Os livros O que é jornalismo (1994), de Clóvis Rossi, e A construção da

Notícia (2009), de Miquel Rodrigo Alsina, foram as principais referências sobre

Jornalismo no campo teórico. Já o livro Teorias da comunicação (1995), de Mauro

Wolf serviu de referencial para a divisão dos valores-notícias, onde serão

categorizadas as cenas do documentário Edifício Master de Eduardo Coutinho.

8.2 JORNALISMO LITERÁRIO E NEW JOURNALISM

A obra Jornalismo Literário (2006), de Felipe Pena foi de suma importância

para o trabalho, no sentido de explicitar o que realmente é o chamado Jornalismo

Literário. Pena explica o conceito do gênero (como o autor define) e como ele

potencializa os recursos do Jornalismo diário, possibilitando relatos com mais

profundidade. Dentro da esfera do Jornalismo Literário, o livro Páginas Ampliadas: O

livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura (1993), de Edvaldo

Pereira Lima foi essencial para a construção da pesquisa. Na obra, o autor buscou,

além de evidenciar as principais noções do livro-reportagem, dimensionar seu

alcance, identificar sua diversidade e sistematizar o conhecimento dessa figura do

universo jornalístico.

8.3 DOCUMENTÁRIO

O livro História do Cinema Brasileiro (1987), de Fernão Pessoa Ramos foi

muito importante para esta pesquisa por ser de uma leitura simples e direta. O autor

aborda questões básicas para a compreensão do gênero documentário, como a

diferença entre documentário e ficção e a diferença entre documentário e

reportagem. O livro Introdução ao Documentário (2008), de Bill Nichols também foi

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importante para a compreensão do gênero documentário, de uma maneira mais

profunda, com destaque para a trajetória histórica do mesmo, com foco no Cinema.

.

8.4 EDUARDO COUTINHO E EDIFÍCIO MASTER

O Documentário de Eduardo Coutinho (2004), de Consuelo Lins foi a base

para se ter uma melhor compreensão da vida e obra do documentarista Eduardo

Coutinho. Aliás, foi através de uma ideia da pesquisadora e professora Consuelo

Lins, estudiosa da obra de Coutinho, que o documentário Edifício Master foi

construído.

8.5 PALAVRAS-CHAVE

Jornalismo; Jornalismo Literário; Documentário; Valores-notícia; Eduardo Coutinho.

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9 ROTEIRO DOS CAPÍTULOS

1 INTRODUÇÃO

2 JORNALISMO

2.1 – A ARTE DE INFORMAR PARA TRANSFORMAR

2.2 – ESSÊNCIA E HISTÓRIA

2.3 – O QUE É NOTÍCIA?

2.3.1 – Os Valores-notícia

2.4 – JORNALISMO LITERÁRIO

2.4.1 – New Journalism

3 DOCUMENTÁRIO

3.1 – HISTÓRIA

3.2 – LINGUAGENS E FORMATOS

3.3 – O DOCUMENTÁRIO DE EDUARDO COUTINHO

3.3.1 – Edifício Master

4 METODOLOGIA

5 ANÁLISE

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS

APÊNDICE

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10 CRONOGRAMA

Mês Atividade

Janeiro Leituras sobre Jornalismo e Documentário

Fevereiro Produção da Introdução

Março Produção do Capítulo 2 e Correção da Introdução

Abril Produção do Capítulo 3 e Correção do Cap. 2

Maio Produção dos Capítulos 4 e 5 e Correção do Cap. 3

Junho Considerações Finais e Correções dos Cap. 4 e 5

Julho Correções finais e entrega da Monografia

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REFERÊNCIAS

ALSINA, Miquel Rodrigo. A construção da notícia. Petrópolis: Vozes, 2009. ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith; GEWANDSZNAJDER, Fernando. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira, 1999. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2004. BAUER, Martin W. Análise de conteúdo clássica: uma revisão. In: BAUER, Martin W.; GASKELL, George (Ed.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. BISTANE, Luciana; BACELLAR, Luciane. Jornalismo de TV. São Paulo: Contexto, 2008. BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. BRUM, Eliane. A menina quebrada e outras colunas de Eliane Brum. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013. BULHÕES, Marcelo Magalhães. Jornalismo e literatura em convergência. São Paulo: Ática, 2007. COUTINHO, Iluska. Dramaturgia do telejornalismo brasileiro: a estrutura narrativa das notícias em TV. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. CRUZ, Heloísa de Faria. São Paulo em Papel e Tinta: periodismo e vida urbana – 1890 - 1915. São Paulo: EDUC; FAPESP; Arquivo do Estado de São Paulo; Imprensa Oficial SP, 2000. DA-RIN, Silvio. Espelho partido. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2008. FONSECA JÚNIOR, Wilson Côrrea da. Análise do Conteúdo. In: DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio (Org.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, 2005. GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1999. KOTSCHO, Ricardo. A prática da reportagem. São Paulo: Ática, 2001. KOVACH, Bill; ROSENSTIEL, Tom. Os elementos do jornalismo: o que os jornalistas devem saber e o público exigir. São Paulo: Ediouro, 2003.

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