Reciclagem, catadores e gestão do lixo dilemas e contradições na disputa pelo que sobra

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RECICLAGEM, CATADORES E GESTÃO DO LIXO:DILEMAS E CONTRADIÇÕES NA DISPUTA PELO QUE SOBRA1Maurício Waldman

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  • 1. 1RECICLAGEM, CATADORES E GESTO DO LIXO:DILEMAS E CONTRADIES NA DISPUTA PELO QUE SOBRA1 Maurcio Waldman2 medida que Lenia se renova a cada dia, ela conserva-se integralmente em sua nica forma definitiva: o lixo de ontem, empilhado sobre o lixo de anteontem e de todos os dias e anos e dcadas. talo Calvino, Cidades Invisveis, 2009, pgina 106.Cotidianamente, os resduos so discutidos na tica de constiturem um problema. E no para menos: recorde-se que o Brasil desponta como ator de proa na problemtica do lixo. Conferindo apenas a massa planetria derefugos, importante sublinhar que conquanto corresponda a 3,06% da Humanidade e 3,5% do PIB global, opas seria, por outro lado, origem de montante estipulado entre 5,5 e 6,9% do total mundial dos resduos slidosurbanos (WALDMAN, 2010a:40).A despeito da notvel discrepncia percentual dessas duas ltimas cifras 3, elas esclarecem, de um modo ou deoutro, que o pas tem responsabilidade irrecusvel para com o equacionamento da problemtica mundial do lixo.Isto, apesar de nebuloso senso comum creditar que os resduos mundiais refletem o consumo das naes ricas(em especial dos Estados Unidos), e que nesta linha de compreenso, qualquer soluo para o lixo reportariaprioritariamente a elas.Outro aspecto matricial o crescimento exponencial do carrossel de ejeo de lixos. Isto : a participaobrasileira no ranking mundial de detritos no cessa de crescer. Clara demonstrao disso que apesar de noBrasil a populao ter aumentado 15,6% entre 1991-2000, neste mesmo perodo o lixo domiciliar expandiu-se49%, trs vezes o ndice demogrfico (IBAM, 2002:2). Mais recentemente um relatrio tcnico elaborado pelaABRELPE4, constata para 2009 um crescimento de 6,6% na gerao per capita de resduos slidos urbanos -RSU - com relao a 2008, sendo que no mesmo perodo, o crescimento populacional foi de somente 1% (CfABRELPE, 2010:30).Contudo, nossa inteno nesse texto no seria a de engrossar o caldo das eternas catilinrias endereadas aosresduos. Pelo contrrio, os prognsticos dos pargrafos que seguem caminham no sentido exatamente oposto,qual seja, discutir o lixo enquanto soluo ou minimamente, como pontuao relevante em um quadro resolutivo.Note-se que o lixo, a despeito da notria adjetivao negativa, rico em materiais valiosos que podem serrecuperados, ampliando o potencial das minas, florestas e mares. Ademais, a recuperao dos materiais umaproposio vlida no s para a indstria, como tambm para a agricultura, que pode contar com os bonsservios da compostagem da frao mida dos Resduos Domiciliares, os RDO.Certo que objetivamente, o interesse econmico pelos rejeitos consequncia direta da sua escassez edificuldade de manter o provisionamento de matrias-primas virgens. Fato manifesto, quando se sabe que a1Este texto foi formatado com informaes levantadas para elaborar o Relatrio de Pesquisa de Ps-Doutorado Lixo Domiciliar No Brasil:Dinmicas Scio-Espaciais, Gesto de Resduos e Ambiente Urbano, investigao desenvolvida pelo autor no mbito do Departamento deGeografia do Instituto de Geocincias da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), tendo por Supervisor da Investigao o Prof. Dr.Antnio Carlos Vitte. A iniciativa recebeu apoio do CNPq na forma de Bolsa de Ps-Doutorado, transcorrendo entre 01/01/2010 a 22/02/2011.2Maurcio Waldman atua como Consultor Ambiental. Fez graduao em Sociologia (USP), mestrado em Antropologia (USP) e doutorado emGeografia (USP). Ps-Doutorando no Departamento de Geografia do Instituto de Geocincias da UNICAMP. Foi Chefe da Coleta Seletivade Lixo da Capital paulista e Coordenador do Meio Ambiente em So Bernardo do Campo. autor de 14 livros, dos quais Lixo: Cenrios eDesafios (Cortez Editora, 2010), lanado na Bienal Internacional do Livro de So Paulo de 2010, constitui sua obra mais recente.3As diferenas estatsticas constituem controvrsia endmica na lixologia, passvel de ser estendida a todos levantamentos voltados para otema (UN-HABITAT, 2009). No que constitui exemplo alegrico, as estimativas do lixo urbano mundial coletado oscilam entre 2,5 e 4 bilhesde toneladas/ano (LACOSTE et CHALMIN, 2006:10). Isto : uma margem de erro de apenas, 1,5 bilhes de toneladas.4Associao Brasileira de Empresas de Limpeza Pblica e Resduos Especiais, entidade fundada em 1976 congregando as principaisempresas de limpeza e disposio final do lixo no Brasil.

2. 2sociedade moderna foi construda com base em modelos voltados para o consumo incessante, secundados poruma economia de materiais obcecada em tornar os produtos obsoletos o quanto antes - qual seja, conjugandotemporalmente a espiral de consumo com uma cornucpia dos lixos - seria difcil imaginar que um dia, aescassez no estaria batendo na porta da economia mundial.Explicitar esta tendncia no ofereceria qualquer dificuldade, a comear pelo fato de que a escalada da produo inquestionvel. Basta sublinhar, numa retrospectiva sinttica, que entre 1901 e o ano 2000 a populaohumana na Terra passou de 1,5 para 6 bilhes: portanto expandiu-se quatro vezes. Contudo, este ndice foilargamente ultrapassado pela explorao de matrias primas e produo econmica em geral.Comparativamente, temos que se a populao no sculo XX multiplicou-se por quatro, a produo de carvo foimultiplicada por seis e a do cobre, 25 vezes. (WALDMAN, 2010a e 2007, CN, 2009 e ALIER, 2005). Tratando-sede uma voracidade por insumos que pode pura e simplesmente induzir o esgotamento dos recursos naturaisplanetrios (Cf WALDMAN, 2011), a economia contempornea, ao menos na forma como foi estruturada,constituiria, de acordo com uma definio acadmica clssica em lngua alem, uma Raubwirtschaft: literalmenteuma economia de rapina5.Malgrado a consecuo da poupana de materiais contar com vrios caminhos - repensar o estilo de vida,reduzir o consumo, reutilizar bens ps-consumo - sabidamente a reciclagem possui hoje ampla insero noimaginrio voltado para a conservao da natureza, praticamente se convertendo em um sinnimo de equilbrioecolgico. Em grande parte, esse prestgio resultou do denodo dos atores envolvidos com a questo ambiental,que sempre tiveram na reciclagem uma das suas pedras de toque nas mobilizaes em favor da conservao danatureza. Os primeiros programas de Coleta Seletiva de Lixo (CSL) e de reciclagem dos RDO comearam apartir de meados da dcada de 80, como alternativa inovadora para a reduo do volume dos refugos e estmulo reciclagem, sempre pautados de visvel compromisso com o meio ambiente e a preservao da natureza.Todavia, a atividade recicladora no se expandiu devido a afetaes abstratas. Com efeito, a iniciativa senotabiliza pelos inmeros benefcios promovidos, abrangendo gerao de renda e trabalho, poupana derecursos naturais, preservao dos recursos hdricos e conservao de energia. Do ponto de vista econmico, areciclagem uma atividade extremamente promissora, qual se agregam interfaces altamente positivas.Partindo-se do pressuposto tcnico da converso de uma tonelada de material secundrio em uma tonelada deproduto final6, e subtraindo desta operao o custo da reciclagem frente aos encargos da produo primria,chegaramos ao que denominado de benefcio lquido da reciclagem, aspecto rotineiramente apontado emavaliaes tcnicas voltadas para conferir os benefcios econmicos advindos da reduo das demandas porinsumos (Ver a este respeito, IPEA, 2010:14). importante destacar o aspecto econmico da reciclagem porque este o argumento que fornece a chave demuitas das contradies que rondam o entendimento dos rejeitos no atual momento do pas e do mundo. No que,por exemplo, demonstra a forte insero da reciclagem no mundo dos negcios, apenas 2% do lixo orgnicobrasileiro foi reciclado em 2009. Este ndice, quase totalmente oriundo de equipamentos pblicos e no deservios prestados por empresas, fala bem alto em explicitar a ntima relao da indstria recicladora com asdinmicas de mercado, que constituem o grande motor da recuperao dos materiais 7. No outra a razo dosucesso da reciclagem da latinha de alumnio. Este refugo costumeiramente o reciclvel mais valioso, compreo mdio quatro a cinco vezes superior ao plstico PET, geralmente o segundo em remunerao nas bolsasde reciclveis, e cerca de dez vezes o papel branco, o quarto colocado em valor 8. Como regra, podemossentenciar que se recicla o que gera retorno financeiro e enterra-se o que no d lucro. Recicla-se o que temvalor de troca e elimina-se o que no tem (WALDMAN, 2010a:192).5Termo presente na obra do gegrafo Friedrich Ratzel (1844-1904), Raubwirtschaft tambm pode ser traduzido como economia de roubo, depilhagem, de saque ou ainda, destrutiva.6Apesar da adoo desta metodologia, sabe-se que em muitos casos a reciclagem feita via adio de matrias primas virgens s sucatas(IPEA, 2010:13).7Considere-se tambm o papel das polticas pblicas. Nos EUA e Reino Unido, economias bem mais capitalizadas, a compostagem alcanarespectivamente patamares de 12% e 28%. interessante registrar que o predomnio de formas tradicionais de agricultura contribui paraexplicar os impressionantes volumes de reciclagem de alguns pases, como na ndia, que composta 65% do lixo culinrio (CEMPRE, 2001:4).8Mdias divulgadas por CEMPRE, 2005:31, checadas de acordo com dados de preos dos reciclveis do Estado de So Paulo no 1Trimestre de 2006, constantes em CEMPRE Informa, n 86. 3. 3Retomando e aprofundando nossos comentrios sobre os RDO brasileiros, uma peculiaridade da reciclagem nopas a fraca insero dos programas oficiais de CSL na obteno de materiais reciclveis. Alis, trata-se deuma faceta que no est necessariamente clara nas pesquisas institucionais. o que acontece no ltimolevantamento divulgado pela ABRELPE (2010). Esse relatrio acusa a existncia de programas de CSL em56,6% dos 5.565 municpios brasileiros, principalmente nas regies Sul e Sudeste, onde respectivamente 76,2%e 78,7% das localidades confirmam a atuao de algum tipo de servio de CSL (2009:33 e 47, grifos nossos).Uma certeza cortante, quando se comparam estes nmeros com o ndice de 1,9% de recuperao dosreciclveis pela coleta institucional (Cf Manchetes Socioambientais, edio de 05-11-2004), que alguns tiposde CSL podem estar materializados em iniciativas meramente figurativas. A simples existncia de um programaoficial de Coleta Seletiva no sinnimo de proficincia e tampouco, de amplitude real de atendimento doservio junto populao das cidades. Esse fato recorrentemente obscurecido pelas estatsticas, que diluem aatuao da CSL por intermdio de estatsticas que enumeram os programas de CSL, mas no checam a eficciado seu atendimento. Municpios que tem coleta seletiva em 10% de seus domiclios e outros, que atendem 90%destes, so tratados conjuntamente. Alm disso, no se leva em considerao o volume de sucatas recolhidasnas ruas e revendidas diretamente a atravessadores ou empresas recicladoras (IPEA, 2010:22).Deste modo, muitos programas funcionam como pea de marketing institucional das prefeituras, em algunscasos atados a discutveis iniciativas de educao ambiental ou ento, se restringem a algumas ilhasrecicladoras cujos contineres so de tempos em tempos visitadas por caminhes coletores. justamente estavarivel que ajuda a explicar dados da ltima Pesquisa Ciclosoft (CEMPRE, 2010), que numa primeira visada,poderiam parecer incongruentes. Na sua tabulao de dados, consta por exemplo, que a porcentagem demunicipalidades brasileiras dotados de programas de CSL cresceu em 2010, comparativamente a 2009, de 7 %para 8%. Entrementes, para o mesmo lapso de tempo, a populao atendida pelos programas de CSL diminuiude 26 para 22 milhes de pessoas.Pari passu, no incomum que os programas de CSL padeam de logstica, envolvendo a captao de certovolume de reciclveis, mas que por inexistirem circuitos de escoamento, acabam enterrados em separado. oque acontece at mesmo em cidades onde os circuitos de reaproveitamento dos reciclveis estariamrelativamente mais consolidados. Deste modo, 35% dos resduos depositados em postos de entrega voluntria(PEV) em So Paulo, terminam nos aterros por falta de fiscalizao e falhas administrativas (BARROS, 2010).Fato inegvel, os programas oficiais funcionam abaixo das expectativas, a includos os considerados bemsucedidos. Neste ltimo parecer, inclui-se Curitiba, metrpole icnica pelo seu ineditismo ambiental e por ser umexemplo nacional de CSL. De fato, a cidade ainda enterra volume portentoso de reciclveis: quase 60% dosaterros so formados por plsticos, papis, latas, vidros, etc. Outros 20% so restos compostveis (CEMPRE,2009:116).A contra-face do baixo nvel de eficincia da coleta institucional o expressivo ndice de informalidade quecaracteriza a captao de reciclveis, uma marca registrada da reciclagem brasileira. Acredita-se que um milhode catadores dedicam-se tarefa de garimpar seu sustento com a retirada de todo tipo de sucata das ruas, umcontingente que somado aos dependentes, pode significar que trs milhes de brasileiros (isto , cerca de 2% dapopulao total), sobrevivam da catao.O resultado deste trabalho, que se expande tanto pelo esforo dos catadores 9 quanto pelo ingresso de novosparticipantes no ofcio - sobejamente pela falta de oportunidades no mercado de trabalho formal - tem sustentadosucessivos recordes de obteno de materiais reciclados. Estes correspondiam em 1999 a 4% dos RSU, sendoque as porcentagens para os anos seguintes seriam: 5% em 2000, 6% em 2001, 8% em 2002, 10% em 2003,11% em 2005 e 13% em 2008. Em tonelagem isto significa: 5 milhes/t de sobras, recicladas em 2003; 5,2milhes/t em 2004, 6 milhes/t em 2005 e 7,1 milhes/t em 2008 (CEMPRE Informa, n 91, Jan./Fev. 2007:2, n92, Mar./Abr. 2007 e n 108, Nov/Dez. 2009:3).Entretanto, este pronturio no permite propagandear que a reciclagem esteja se desenvolvendo a contento.Saliente-se em primeiro lugar que os volumes recuperados no pas ainda so baixos na comparao com muitasoutras naes. Para citarmos alguns nmeros de recuperao de materiais (excluindo a compostagem), osndices seriam: Alemanha, 48%, Blgica, 35%, Sucia, 35%, Irlanda, 32%, Pases Baixos, 32% (EEA, 2008).9Pesquisas de campo revelam que a produtividade fsica dos catadores varia entre 606 kg/catador, at 1.608 kg/catador/ms (IPEA, 2010:8). 4. 4Para os EUA, campeo mundial do desperdcio, o reaproveitamento alcanaria 31% do total dos RDO (EPA,2006).Reativamente, esferas do empresariado ligados s recicladoras comearam a se movimentar visando maximizaro rendimento da catao, basicamente atravs do incentivo s cooperativas. Mais recentemente, se esboaramprogramas governamentais que visam remuner-las pelos servios ambientais urbanos prestados na gesto dosresduos, que se estendem desde o valor auferido pela recuperao dos rebotalhos, pela melhoria da limpezaurbana e diminuio da poluio, at a ampliao da vida til dos aterros, que deixam de receber milhes detoneladas de resduos graas operosidade destes trabalhadores.Nesta acepo, em vista do que a realidade expe, incentivar e organizar o trabalho dos catadores (sendo quenesta proposio a formao de cooperativas tem sido defendida com certa insistncia), termina se prontificandocomo uma considerao a ser obrigatoriamente levada em considerao (IBAM, 2007:20-27 e IPEA, 2010).Entretanto, ressalve-se que a constituio de fundos cooperativos, proposta endossada por especialistasfavorveis remunerao por servios ambientais prestados pelos catadores, enfrenta diversas limitaes.Dentre estas, o desafio de esboar um desenho institucional que permita uma gesto harmnica do fundocooperativo, que pode perfeitamente mostrar-se demasiadamente complexo para ser operacionalizado. Almdisso, existem os riscos inerentes associados atividades de financiamento e microcrdito, caracterizadas porelevadas taxas de inadimplncia e conflitos potenciais com as agncias financiadoras, cujos riscos devem seradministrados (Cf IPEA, 2010).Para arrematar, no seria despropositado registrar que o trabalho de formao de cooperativas encontra certonmero de obstculos, dentre os quais, os que se reportam ao histrico de vida de muitos dos catadores, dadoessencial para compreender a resistncia de setores da categoria em organizar-se institucionalmente. Recorde-se que muitos destes trabalhadores so ex-desempregados, sem teto e vtimas da excluso social, queenfrentaram a solido do desamparo, a falta de oportunidades e a agresso contnua das instituies. Noadmira, pois que aprenderam a agir por conta prpria, base de um empreendedorismo que alguns analistasidentificam no comportamento da categoria.Outro detalhamento correria na direo de um olhar crtico, que no se deixa contaminar com interpretaes quemascaram o contedo de dominao existente na relao dos catadores com os cartis da reciclagem. Naverdade, a conectividade que une numa ponta uma verdadeira legio de trabalhadores aceitos quando muito porconvenincia, cujo trabalho abastece setores poderosos, influentes e altamente capitalizados da indstriaposicionados na outra ponta, clarifica uma relao funcional - porm desigual e combinada - estabelecida entre oque Milton Santos categorizou como circuito superior ou moderno e um outro inferior, que atuam e interagementre si, num relacionamento que realimenta o processo de excluso do circuito inferior e reafirma a hegemoniada comunidade superior10.Nessa lgica, a catao, bem mais do que uma alternativa de renda ou prefcio de incluso social para umestigmatizado lumpenproletariado urbano11, expressa a inoperncia do Estado e a falta de opo da indstriarecicladora em obter os desejados resduos de que necessita. Fosse outra a situao econmica, os catadoresno existiriam enquanto categoria. Fosse outra a atuao do Estado, os resduos no seriam objeto de polticasde desapario. Fosse outra a conjuntura ambiental, no interessaria para a indstria reciclar o que quer que10 Os modos operacionais de espao so, portanto, influenciados por enormes disparidades geogrficas e individuais. Esta seletividadeespacial no nvel econmico, assim como no social, contm em nossa opinio, a chave para a elaborao de uma teoria espacial. Na medidaem que novos gostos so difundidos atravs do pas e coexistem com gostos tradicionais, o aparato econmico forado a se adaptar tantoaos imperativos de uma modernizao poderosa como a realidades novas e herdadas. Isso igualmente verdadeiro para o aparato daproduo e para o aparato da distribuio. Dessa forma so criados dois circuitos econmicos, responsveis no apenas pelo processoeconmico, mas tambm pelo processo que governa a organizao do espao (SANTOS, 2003:172).11 Por fim, no que seria exemplar da longa sria de preconceitos alimentados pelas elites nacionais contra seus compatriotas de baixo, acapital importncia do trabalho dos catadores encontra, apesar do seu papel econmico e ambiental, forte resistncia em muitos setores dasociedade. No h dvida alguma, trata-se de uma fora de trabalho necessria para o funcionamento da economia urbana. Mas, cujapresena visual precisa ser reduzida o mximo possvel. Uma pregao constante, por vezes apaixonada, coberta de objees ticas emorais, eventualmente apelando para um receiturio com bvias conotaes racistas, pode ser notada no discurso de muitos setores declasse mdia e alta contra os catadores. Eles perturbariam o trnsito (embora as ruas dos colgios particulares sejam um estorvo parabairros inteiros), seriam pouco asseados (ainda que retirem o lixo dos ricos das ruas) e para piorar, num pas com passado escravagista e deopresso racial, seriam negros, mestios e assemelhados (WALDMAN, 2008). 5. 5fosse. Mas, sendo a realidade econmica o que , a atuao do Estado o que tem sido e por fim, sendocrescente a ansiedade por reciclveis por parte das indstrias, toda esta rede de inflexes contraditrias far econtinuar a fazer sentido, atuando como mecanismo viabilizador da reproduo social dos catadores enquantouma categoria funcional, eternizada nas funes subalternas propostas pelo sistema.Neste prisma, necessrio admoestar quanto ao veredicto que subentende a catao como pressuposto para aincluso social. Na realidade - e a despeito de um pool de polticas sociais levadas a cabo nos ltimos anos - oscatadores constituem eptome de uma sociedade radicalmente dessimtrica, averbao que ainda mantm todasua atualidade. Nessa via de entendimento, avalizar polticas inclusivas requer um quadro de referncias bemmais amplo, substancioso e complexo, atinente aos nexos contraditrios que regem a formao scio-espacialbrasileira. Desconsiderar essa fatorao implicaria, pois em endossar um inaceitvel idealismo sociolgicoconjugado a um imprudente reducionismo poltico.Neste rol de contradies, no esto ausentes as que antagonizam um setor do empresariado com os demais.Pontuando melhor: para as recicladoras, os RDO constituem matria-prima; contudo, para o segmento fabriltradicional, a reciclagem funciona apenas como uma possibilidade de minimizar custos de produo; quantoaos que esto devotados em recuperar energia do lixo, estes entendem os rejeitos como combustvel e nocomo algo reaproveitvel; para os que gerenciam aterros e coletam lixo, o que interessa a quantidade derefugos domsticos disponveis para ser coletada, e no a sua recuperao. Por sua vez, aspectos econmicosenvolvidos na atividade no so vistos na mesma perspectiva pelos catadores avulsos ou pelas cooperativas(Vide DAGNINO, 2004).Para completar, os gestores pblicos podem discordar dos objetivos dos catadores, das propostas das empresasque atuam com o lixo ou ento, proceder como de fato procedem, solenemente ignorando a reciclagem enquantopoltica pblica efetiva. Certificando esta ltima postura, a nota oficial divulgada pelo Movimento Nacional dosCatadores de Materiais Reciclveis em 05-08-2010 lapidar. Ela informa que somente 142 municpios brasileiros(2,5% do total), mantm parceria com associaes e cooperativas de catadores (MNCR, 2010).Todavia, esse panorama podeabrigar invectivas bem maiscontundentes.Paralelamente a um legadohistrico onde a percepo dosresduos perpassada peloconhecido inconformismo diantedos lixes, com a falta de asseiona via pblica, pela ausncia deCSL ou simplesmente pela faltade inventividade dos Servios deLimpeza Urbanos(SLU),desponta um novo embate ondeo contendor o esquema dosincineradores.Isto porque o input energticoque alimenta o funcionamento detais dispositivos - sobras txteis,materiais celulsicos, plsticos devrios tipos, etc - tero que serdisputados com outros setores Protesto miditico dos catadores nos desvos da Baixada do Glicrio, em So Paulo. para que possam ser carreadospara as fornalhas.Note-se que este cenrio no seria apenas marcado por conflitos setoriais com o circuito dos sucateiros, daindstria recicladora e da catao, mas tambm habilitado a promover alteraes profundas na utilizao dosmateriais, na sua representatividade econmica e por extenso, do seu poder poltico. Pode-se reivindicar o 6. 6exemplo japons, onde uma aliana objetiva entrelaando a incinerao e o pool das indstrias de materialplstico calou expanso sem precedentes da garrafa PET, hoje praticamente indissocivel da paisagemnipnica.Mas, este mesmo caso sugere outras provocativas observaes. Isto porque a pactuao do plstico com aincinerao no nos brinda unicamente com a incmoda onipresena da matria plstica no ambiente. No finaldas contas, a queima do plstico uma potente fonte emissora de dioxinas. Essa substncia - cuja concentraoem Tquio transformou essa cidade na capital mundial dessa substncia - portadora de srias sequelas para asade humana. Sinteticamente possvel elencar sua simbiose com o cncer, disrupo endcrina, diabetes,disfunes hormonais, queda da taxa de fertilidade humana, etc, mazelas adicionais propenso dosincineradores em destruir materiais reaproveitveis e no caso do III Mundo, de liquidar com uma das poucaspossibilidades de trabalho para largo segmento da populao excluda.Para complementar, seria pertinente registrar desdobramentos que alcanaro o campo da especulaocientfica, onde uma profuso de conceitos, tais como reciclagem energtica, termovalorizadores e inclusiveincineradores sustentveis, j fazem parte de uma nova grade conceitual preocupada em legitimar atravs dofogo, a eliminao do lixo em nome da recuperao de energia. No faltam igualmente apoios institucionais quegravitam em torno da noo-chave do desenvolvimento limpo, respaldadas por programas oficiaisrepentinamente preocupados com a diminuio dos gases de efeito estufa, uma preocupao generosa edescompromissada, que recompensa os agentes econmicos com ttulos transacionveis aplicados no mercadode reduo das emisses, no caso do lixo, centrado no metano oriundo dos restos putrescveis (ESP, 2010a:43).Todavia, esta coleo de apologias apenas reifica uma essncia, que enquanto tal, no pode ser demonstrada.Vis a vis, nada mais so do que corroboraes de uma clebre ponderao de Milton SANTOS, para quem, amodernidade acentua a aplicao da ideologia na interpretao do espao, basicamente pelo fato dos objetosserem planejados e construdos com o objetivo de aparentar uma significao que realmente no tem (1978).Neste sentido, a questo do lixo pode significar muito mais do que os cdigos tcnicos difundem, o que impe oexerccio permanente de compreender as dinmicas geradoras dos rejeitos. Significa tambm observar o lixocomo ferramenta para fazer retroagir o consumo irresponsvel dos recursos naturais; implica na defesa depolticas ambientalmente menos agressivas; sumamente, nos obriga uma clara posio em favor dos catadorese de todos os trabalhadores do lixo.Ponderaes que se colocam de forma direta para a discusso referente a um projeto de futuro da sociedadebrasileira. BIBLIOGRAFIALIVROS, ARTIGOS E MATERIAIS ACADMICOSALIER, Juan Martinez. El Ecologismo de Los Pobres - Conflictos Ambientales y Lenguajes de Valoracin. Barcelona, Espanha: Icaria-Antrazyt-Flacso, 2005;BARROS, Mariana. 35% da coleta seletiva acaba no lixo comum. Jornal Folha de S.Paulo, 27/01/2010;CALVINO, talo, As cidades Invisveis. So Paulo: Companhia das Letras. 2009;DAGNINO, Ricardo de Sampaio. Um olhar geogrfico sobre a questo dos materiais reciclveis em Porto Alegre: sistemas de fluxos e a(in)formalidade, da coleta comercializao. Porto Alegre (RS): Paper. 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Acesso: 16-10-2009. 2009; PARA CITAR OU REPRODUZIR ESTE TEXTO, ACATAR A REFERNCIA BIBLIOGRFICA QUE SEGUE: WALDMAN, Maurcio. Reciclagem, Catadores e Gesto do Lixo: Dilemas e Contradies na Disputa pelo que Sobra. Paper elaborado como subsdio para a Palestra Poltica Nacional de Resduos Slidos, proferida em 19-05-2011 no Auditrio do Servio Social do Comrcio de Santos (SESC-Santos), atividade integrante do Encontro sobre Destinao dos Resduos Slidos - Reflexes e Propostas sobre o Lixo Urbano. Organizao: SESC-Santos, Frum da Cidadania de Santos e IBAMA. Apoio: Secretaria de Meio Ambiente de Santos. 19 a 12-05-2011. PUBLICAES DO MESMO AUTOR RELACIONADAS COM O TEMA LIXO: CENRIOS E DESAFIOS, CORTEZ EDITORA, 2010 Saiba mais: http://www.lojacortezeditora.com.br/lixo.htmlMEIO AMBIENTE & ANTROPOLOGIA, EDITORA SENAC, 2006Saiba mais: http://books.google.com.br/books/p/senac?id=z4ns-luC4LwC&dq=Meio+ambiente+ %26+antropologia&hl=pt-br&source=gbs_summary_s&cad=0 MAURCIO WALDMAN - INFORMAES PORMENORIZADAS Home-Page Pessoal: www.mw.pro.br Biografia Wikipedia English: http://en.wikipedia.org/wiki/Mauricio_Waldman Currculo no CNPq - Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/3749636915642474