Reconceptualização da Aprendizagem na Sociedade

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Reconceptualização da Aprendizagem na Sociedade da Informação Reconceptualization of Learning in the Information Society Antonio Bernal Guerrero Teresa N. R. Gonçalves Universidad de Sevilla, Espanha Resumo A educação deve dar respostas aos novos contextos delimitados pela sociedade da informação. No entanto, a emergência de uma nova narrativa pedagógica à altura dos tempos também dependerá decisivamente da concepção e valoração do sujeito que, por sua vez, se encontra ligada aos avanços da investigação científica, e do sentido que finalmente se atribua à aprendizagem educativa. O novo horizonte do princípio ‘educar para a vida’ exige actualmente uma alfabetização cultural mais exigente. Neste contexto, devem tomar-se em consideração os princípios e possibilismos pedagógicos que possamos vislumbrar no uso das tecnologias da informação e da comunicação. O mundo em que vivemos caracteriza-se por uma complexa trama de sistemas sociais e técnicos que exigem uma nova concepção da aprendizagem, uma noção que contemple, especialmente, que aprender, na actualidade, significa aprender a

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Palavras­chave: sociedade da informação; cultura; pós­modernidade; tecnologias da informação e da comunicação; aprendizagem. para a vida’ exige actualmente uma alfabetização cultural mais exigente. Neste que possamos vislumbrar no uso das tecnologias da informação e da comunicação. O mundo em que vivemos caracteriza­se por uma complexa trama de sistemas sociais e

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Reconceptualização da Aprendizagem na Sociedade da Informação

Reconceptualization of Learning in the Information Society

Antonio Bernal Guerrero

Teresa N. R. Gonçalves

Universidad de Sevilla, Espanha

Resumo

A educação deve dar respostas aos novos contextos delimitados pela sociedade da

informação. No entanto, a emergência de uma nova narrativa pedagógica à altura dos

tempos também dependerá decisivamente da concepção e valoração do sujeito que, por

sua vez, se encontra ligada aos avanços da investigação científica, e do sentido que

finalmente se atribua à aprendizagem educativa. O novo horizonte do princípio ‘educar

para a vida’ exige actualmente uma alfabetização cultural mais exigente. Neste

contexto, devem tomar-se em consideração os princípios e possibilismos pedagógicos

que possamos vislumbrar no uso das tecnologias da informação e da comunicação. O

mundo em que vivemos caracteriza-se por uma complexa trama de sistemas sociais e

técnicos que exigem uma nova concepção da aprendizagem, uma noção que contemple,

especialmente, que aprender, na actualidade, significa aprender a participar mais

efectivamente em processos de interdependência e de cooperação, garantindo-se através

da reciprocidade e da cooperação o desenrolar da autodeterminação possível e a busca

do próprio bem estar.

Palavras-chave: sociedade da informação; cultura; pós-modernidade; tecnologias da informação e da comunicação; aprendizagem.

Abstract

Education must give answers to the new contexts delimited by the information

society. However, the emergence of a new pedagogical narrative according to the new

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times will also decisively depend on the conception and value attributed to the subject,

which, at their turn, are connected to the scientific research findings and evolution, and

related to the sense attributed to the educative learning. The new horizon of the

principle ‘educating for life’ demands a higher cultural alphabetization. In this context,

the pedagogical principles and possibilities provided by the use of the information and

communication technologies must be considered. Our world is characterized by a

complex network of social and technical systems. This reality demands a new

perspective about learning, based on the idea that learning nowadays means to learn to

participate more effectively in processes of interdependence and cooperation,

guaranteeing, through reciprocity and cooperation, the development of the possible auto

determination and search for the personal well-being.

Key words: information society; culture; post-modernity; information and communication technologies; learning.

A cultura caracteriza os grupos e cada indivíduo dentro do grupo assimila-a,

cognitiva e emocionalmente, de um modo singular (García Carrasco, 2007). Num

mundo interrelacionado, física e simbolicamente, as práticas de integração cultural

adquirem uma renovada e renovadora importância, uma vez que constituem o gérmen e

o principal motor para a invenção e construção do mundo. Estas práticas estão a sofrer

uma mudança profunda no contexto do desenvolvimento tecnológico.

Sob a denominada sociedade da informação, encontramos tendências, processos e

factos muito diferentes relativos a diversos aspectos da cultura, da economia, da

política, do trabalho, das comunicações, das formas de vida. A confluência de todos

estes factores transforma o velho mundo num mundo globalizado, um mundo em rede,

que liga sociedades e lugares, comércio e política, indivíduos e povos, paz e violência,

miséria e contaminação ambiental. Em definitivo, um mundo globalizado cujo destino

depende inexoravelmente da sua complexa e incerta trama.

A educação deve dar respostas aos novos contextos delimitados pela globalização.

As novas orientações políticas gerais e as suas implicações para a concepção da

democracia e sua projecção pedagógica, assim como a reordenação dos sistemas

educativos, darão sentido e orientação à educação da sociedade globalizada. No entanto,

a emergência de uma nova narrativa pedagógica à altura dos tempos também dependerá

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definitivamente da concepção e valoração do sujeito que, por sua vez, está ligada aos

avanços da investigação científica e ao sentido que finalmente se atribua à

aprendizagem educativa. O novo horizonte para o princípio de “educar para a vida”

exige actualmente, como diz Gimeno Sacristán (2005, 25), “uma alfabetização cultural

mais exigente, de perspectivas muito mais amplas”. Neste contexto há que tomar em

consideração os princípios e possibilismos pedagógicos que possamos considerar no uso

das tecnologias da informação e da comunicação.

1. A Formação da Mente num Mundo Informatizado e Interligado

Quando as condições do mundo mudam substancialmente, devido ao

desenvolvimento científico e técnico e ao carácter inexorável da globalização, a

educação também deve mudar, se não se quer insistir no desenvolvimento de práticas

que resultarão obsoletas e descontextualizadas, que preparam para o ontem em vez de

serem uma preparação para os mundos possíveis do futuro.

Novas exigências são colocadas à educação pela ciência e tecnologia actuais. O

desenvolvimento de um pensamento científico torna-se mais necessário que nunca para

um cidadão que tem que desenvolver-se num mundo dominado pela informática, os

problemas ambientais, os alimentos transgénicos, as explorações sobre as células

“mãe”, ou os avanços neurocientíficos. No entanto, juntamente com o espírito

científico, dever-se-á integrar o espírito renovado da cultura das humanidades. A

mobilização da cultura científica e da cultura das humanidades ao longo do processo

educativo contribuirá para a criação da “cabeça bem organizada” (Morin, 2001, 40).

Potencia-se, deste modo, a capacidade das pessoas para dar resposta aos desafios da

globalidade e da complexidade da existência individual e social. O desenvolvimento

mental inclui, portanto, uma cabeça bem ordenada, fundada em conhecimentos

científicos e tecnológicos e, da mesma forma, numa sólida cultura humanística. Uma

mente assim ordenada estará apta para criar e inovar, algo fundamental para o

desenvolvimento individual e colectivo. No entanto, um desenvolvimento mental

completo requer o desenvolvimento de uma dimensão ética, que ajude a pessoa a viver

com autenticidade e integridade, que a capacite para a plena convivência e para a

responsabilidade cívica e planetária.

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1.1 A Compreensão da Realidade como Meta Educativa

Há que fazer todo o possível para que a autonomia de cada pessoa não seja afectada

por carecer dos modos característicos de pensamento das diversas disciplinas, pelo

menos das mais essenciais para compreender o mundo:

Se carecem desta visão disciplinar [em referência aos cidadãos do futuro] acabarão por depender de outras pessoas sempre que tentem opinar sobre a saúde, a vida política, as novas obras de arte, as perspectivas económicas, a educação das crianças ou a forma provável do futuro, entre muitas outras questões. Pior ainda, podem nem sequer conseguir determinar que informadores, fazedores de opinião ou conceitos são fidedignos e, deste modo, ser presa fácil de charlatães e demagogos. (Gardner, 2005, 32)

As investigações sobre a compreensão do mundo, por parte de cada estudante,

continuam a revelar uma alarmante limitação das necessárias transferências da

aprendizagem que possam pôr em manifesto a compreensão numa variedade de

condições. A acumulação de conhecimentos desprovidos de significado é prática

habitual nas escolas actuais; os processos de aprendizagem, de uma forma geral, não

estão encaminhados a desentranhar o valor das questões fundamentais (Vera y Esteve,

2001). Carecer de pensamento disciplinar, ainda que se possua um conhecimento factual

determinado, não diferencia substancialmente de quem não recebeu nenhuma educação.

Com esta carência, o mundo físico, biológico, artístico ou, simplesmente, humano, não

se observa a partir das formas complexas e subtis que caracterizam o pensamento

construído a partir das distintas linguagens possíveis, a sua percepção tão-pouco se

distingue de quem não recebeu formação alguma. O sentido do aprendido é

proporcionado, em última instância, pela sua compreensão, por isso não existe melhor

forma de assegurar a inquietude pelo aprender do que comprovar por diferentes vias que

algo se aprende cabalmente, isto é, compreendendo-se. Não é provável que quem

compreende bem as coisas possa vir a aceitar alguma compreensão superficial. “Tendo

mordido o fruto da árvore da compreensão, o mais provável é que volte a ela uma e

outra vez em busca de um alimento intelectual que o deixe saciado.” (Gardner, 2005,

38). A disciplina, entendida como hábitos que permitem progredir constantemente na

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formação humana, interiorizada mais que ritualista, surge do entusiasmo por querer

continuar a compreender, aprendendo para compreender melhor. Como refere Savater

(2004, 184): “Aquele que é bem educado sabe que nunca o está de todo mas que o está

o suficiente para querer sê-lo mais.”

Num curto período de tempo a quantidade de conhecimentos acumulados multiplica-

se. Todas as culturas podem padecer dramaticamente do abuso e excesso de informação,

de uma informação sem sentido, uma informação sem mecanismos de controlo. Quando

a informação se torna incontrolada e incontrolável, produz-se um colapso generalizado

do sossego psíquico e dos objectivos sociais. Ao não ter defesas, os indivíduos carecem

de formas para dar sentido às suas experiências, perdem a sua capacidade de recordar e

têm dificuldades para imaginar futuros razoáveis. Saturados de informação e sem a

posse da mesma, os sujeitos perdem os domínios das suas vidas, oscilando entre a

arrogância e a ignorância, entre a presunção e a absoluta dependência (Rodríguez Neira,

2000). Nunca como agora se necessitou tanto da capacidade de sintetizar, do valor de

realizar sínteses produtivas. Alcançar essa capacidade de síntese é uma tarefa

complicada, ainda que não impossível. A nossa espécie evoluiu para a sobrevivência em

distintos nichos ecológicos, mas não o fez para desenvolver teorias correctas ou

transferir aprendizagens de umas disciplinas para outras. Dependemos claramente do

contexto ou lugar onde adquirimos conceitos, técnicas ou comportamentos. Dentro do

contexto podemos chegar a dominar muito bem o aprendido. Mas com o passar do

tempo, custa-nos estender a sua aplicação a outros contextos, mais esforço ainda nos

implica a sua aplicação generalizada. Ainda que a mente possa conceber-se como uma

unidade complexa, a verdade é que poderíamos representá-la antes como um conjunto

de módulos relativamente independentes entre si. Como, quando e porquê se conectam

esses módulos continua a ser uma interrogação em aberto para a ciência. Obviamente, a

promoção do pensamento interdisciplinar ou da capacidade de síntese, sem mencionar a

criadora, encontra aqui sérios obstáculos.

Se queremos cultivar a mente sintética, haverá que mudar as nossas práticas

culturais. Em vez de censurar ou reduzir a capacidade metafórica dos primeiros anos de

idade, dever-se-ia celebrar a sua existência e impulsionar o seu desenvolvimento

pertinente. Em cada etapa evolutiva da criança existem possibilidades de suscitar o

pensamento sintético. A tendência mental infantil para ver e estabelecer conexões

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significa construir enlaces entre distintas redes neuronais, seguramente reutilizáveis no

futuro porque parece que perduram no cérebro. Mas a verdade é que a capacidade de

síntese não recebe demasiada atenção durante os anos escolares. Praticamente, na

aquisição de competências específicas, de carácter instrumental ou fundamental,

concentram-se quase todos os esforços e ocupa-se a maior parte do tempo destinado à

aprendizagem formal. Cultivar o pensamento sintético requer projectos pedagógicos

capazes de atender à capacidade de integração do sujeito. Será preciso aprofundar

naqueles critérios facilitadores da integração dos saberes. Dispor de diversas

representações de uma mesma ideia ou conceito sempre será melhor do que possuir uma

só representação. É mais factível realizar sínteses a partir da assumpção de diferentes

perspectivas sobre uma ideia ou realidade determinadas.

1.2 O Valor da Criatividade

Outro aspecto importante a considerar é que a maioria das inovações actuais não

teria sido possível sem o uso dos computadores, verdadeiras próteses intelectuais para

manipular grandes quantidades de dados e variáveis. Os avanços na área da inteligência

artificial e no campo da simulação por computador do funcionamento mental,

continuarão a contribuir com conhecimentos que tornarão cada vez mais factíveis todo o

tipo de criações. Em contextos onde a inovação e a criação é constante e cambiante, o

dinamismo próprio do ser humano reclama algo mais do que a mera adaptação, exige o

pôr em prática das suas potencialidades criadoras, a manifestação da ‘autopoiesis’

(Rodríguez, 1997). Quando o genial Picasso afirmou que necessitou de toda a vida para

“aprender a desenhar como uma criança” queria dizer que, depois de ter desenhado

como Rafael, isto é, depois de ter conseguido dominar magistralmente a técnica do

desenho, seguindo um estrito itinerário disciplinar, tinha alcançado o auge criativo

afastando-se desse caminho rigoroso para experimentar outras vias, outras formas, que

recordam as explorações infantis, a sua inesgotável curiosidade, o seu gosto pelo jogo e

a sua enorme capacidade imaginativa. Os cenários pós-modernos, neste sentido, são um

campo fértil. De alguma forma, o desafio educativo centra-se em manter desperta e

manifesta a mente e a sensibilidade próprias das crianças (Manen, 2004). O seguimento

muito estrito de um itinerário formativo parece ir na direcção contrária da abertura

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mental que exige a capacidade sintética e criativa do sujeito. Manter essa espontânea

abertura mental dos primeiros anos de vida depende, obviamente, do que se faz nas

instituições educativas e nos distintos âmbitos que frequentam quotidianamente as

crianças e os jovens. Precisamos de uma nova cultura organizativa capaz de reestruturar

os sistemas educativos nesta direcção. Uma adequada utilização das últimas tecnologias

pode coadjuvar notoriamente essa reorganização educativa.

Hoje aceita-se que, de alguma forma, o poder criativo está ao alcance de todos, ainda

que exista uma considerável variedade de comportamentos criativos e diferentes níveis

de criatividade. O progresso colectivo exige o cultivo e desenvolvimento da inovação,

uma vez que as sociedades empreendedoras estão mais capacitadas para planificar e

realizar projectos em ambientes submetidos a constantes mudanças. Desenvolver uma

cultura inovadora hoje não é um luxo reservado a um grupo social selecto, mas é antes

uma exigência individual e colectiva. Dela depende a criação de riqueza social. Se

considerarmos que nos contextos pós-modernos não elegemos a mudança, que ela nos

ultrapassa, desenvolver a capacidade de controlar a mudança hoje é uma aptidão

essencial (Fullan, 2002).

1.3. A Necessidade de um Enfoque Moral e Cívico

Também é necessário considerar que, indagar sobre as possibilidades de criação no

âmbito do humano implica introduzirmo-nos no terreno da ética. Toda a metamorfose

parece impossível antes que ocorra. Por isso, manifestou Edgar Morin (2006) que

podemos acolher a esperança. Morin refere-se a uma metamorfose que fizesse surgir um

mundo humano de um novo tipo, a sociedade-mundo, uma feliz saída da História, do

poder absoluto dos estados e das guerras alcançando uma era pós-histórica. Para o

pensador Francês, a esperança ética e a esperança política estão na metamorfose, isto é,

na sobrevivência, no progresso, no desenvolvimento da humanidade. Quando um

sistema é incapaz de solucionar os seus problemas vitais, ou se desintegra ou se

transforma num meta-sistema capaz de tratá-los. O nosso planeta encontra-se nessa

conjuntura, pelo que encerra todos os perigos do desastre, mas igualmente as

possibilidades da metamorfose. Quem pode negar radicalmente que as mudanças da

economia, da ciência, da técnica, da organização social que estamos a experimentar não

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constituem o embrião de uma metamorfose antropo-sociológica? Sabemos que no

mundo animal as metamorfoses são o resultado de processos inconscientes, como

também o foram as metamorfoses de sociedades arcaicas a sociedades históricas. Sem

dúvida, a possível metamorfose que se avizinha será em larga medida produto também

de processos inconscientes, ainda que unicamente possa tornar-se realidade com o

concurso e a colaboração da consciência humana e a regeneração ética. “Por essa razão

terá um importante papel que desempenhar a reforma da mente” (Morin, 2006, 203).

A comunicação com os outros, com os semelhantes, abre caminho através das novas

redes técnicas e sociais. Pessoa a pessoa, indivíduo a indivíduo, se traça planetariamente

a ilusão de um mundo melhor onde as pessoas experimentam através dos seus contactos

singulares o gozo crescente de uma cultura comum, qualquer que seja, uma vez que

qualquer projecto não é uma essência ou uma identidade acabada mas sim uma

construção em curso. No entanto, o domínio da lógica dos interesses individuais leva

muitos a lamentar o naufrágio da nossa civilização, subjugada pelo reinado do egoísmo;

mas, ao mesmo tempo e crescentemente, emergem sentimentos morais que a maioria

dos indivíduos manifestam mediante reacções de indignação (luta contra o terrorismo,

denuncia das diferentes formas de exploração humana, defesa dos direitos humanos…)

e uma diversidade de condutas altruístas ou responsáveis (solidariedade com os

deserdados, sensibilidade com os recursos naturais ou o comercio justo, proliferação do

voluntariado…). Talvez estejamos perante uma nova reorganização social da ética: “ A

verdade é que a nossa época presencia menos a desvalorização de todos os valores do

que uma recuperação da pergunta moral” (Lipovetsky, 2007, 343). Uma ética aberta à

alteridade do mundo e dos outros (Escámez y Ortega, 2006). Novos valores humanos,

expoentes da afectividade, do gozo, do diálogo, da imaginação, da beleza, da fé no

nosso destino, podem emergir e consolidar-se. Como escreveu Ernesto Sábato,

referindo-se à necessária resistência ante os males derivados da globalização, que

ameaçam com a ‘coisificação’ do homem, com a sua redução a uma máquina de

produção e de consumo:

O ser humano sabe fazer dos obstáculos novos caminhos porque à vida basta-lhe o espaço de uma brecha para renascer. Nesta tarefa, o principal é negar-se a asfixiar o quanto de vida possamos iluminar (…) Não permitir que se nos desperdice a graça dos pequenos momentos de liberdade que

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podemos gozar: uma mesa partilhada com as pessoas a quem queremos, umas criaturas às quais demos amparo, uma caminhada entre as árvores, a gratidão de um abraço. Um acto arrojado como saltar de uma casa em chamas. Estes não são factos racionais, mas não é importante que o sejam, salvar-nos-emos pelos afectos. (2007, 108).

Estreitamente relacionado com os processos configuradores da identidade pessoal

encontra-se o uso das novas tecnologias no âmbito educativo. Ora, este uso implica uma

perspectiva pedagógica nova, afastada de qualquer enfoque instrutivista que ainda hoje

parece predominar na utilização formativa das tecnologias. As crianças e os jovens terão

que formar-se para desenvolver a sua actividade em marcos tecnológicos de alta fluidez,

mas sobretudo para criar um critério próprio, permanentemente renovado, que lhes

permita procurar, analisar, comparar, contrastar, ordenar e criticar a ingente quantidade

de informação que aumenta e se difunde incessantemente. Os processos educativos,

neste sentido, terão que enfatizar a simulação, a criação e a interacção. Trata-se de

potenciar os processos de aprendizagem, de produção e de expressão. As tecnologias da

informação e da comunicação podem contribuir para esta potenciação como

organizadores semânticos (mapas conceptuais, bases de dados, hipertextos

representacionais), como dinâmica de sistemas (simuladores, sistemas especialistas,

micromundos), como instrumentos interpretativos (de busca, de articulação da

informação), como instrumentos de construção (design de webs, design de produtos

multimédia), veículos de conversação (aprendizagem sincrónica e asincrónica, correio

electrónico, fóruns, chats, etc.). (Jonassen y Land, 2000).

2.1. A Simulação e a Revalorização das Práticas Formativas

As práticas dos distintos âmbitos do saber transformam-se com as novas tecnologias

da informação e da comunicação. Não é possível conceber a aprendizagem que exigem

os novos contextos pós-modernos à margem das novas tecnologias. Inclusivamente

podemos suspeitar, sem demasiada surpresa, que a tecnologia informática origina uma

estrutura mental fundamentalmente nova, como assinalou Stephen Wolfram (2002), que

constatou que certas experiências baseadas no computador produzem uma grande

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complexidade a partir de programas relativamente simples. Numa sociedade em que a

nossa realidade se configura entre o mundo físico e o virtual, é preciso que a nova

narrativa pedagógica contemple privilegiadamente uma nova dimensão vinculada ao

desenvolvimento da capacidade de poder transferir modelos mentais para modelos

físicos no computador, o qual propiciará a dinâmica impulsionadora da reunificação

sempre provisória da compreensão do mundo e de si mesmo. Haverá que cuidar

especialmente o conjunto das práticas formativas para tratar de assegurar-nos de que os

estudantes mantêm aberta a possibilidade de realizar conexões mentais e considerar a

multiplicidade dos vínculos pertinentes. A arquitectura mental e identitária do sujeito

depende, à posteriori, da provisória articulação (desarticulação, re-articulação) fecunda

entre a inteligência do mundo e de si mesmo que seja capaz de desenvolver e aquelas

práticas culturais que coadjuvam a formação de tal inteligência e que são, ainda assim,

influenciadas por ela.

2.2. As Possibilidades Criadoras Mediadas pelas Tecnologias Actuais

Os novos avanços tecnológicos sugerem-nos novas práticas epistémicas. A

necessidade de investigar, indagar, está vinculada à afeição, ao desejo de saber, de

conhecer. Recordando Damásio (2005), a prática consistente em interessar-se

continuadamente por um objecto, por investigar acerca do mesmo, depende

estruturalmente do desejo de quem conhece. A criação de espaços para a indagação,

para a investigação, assim como para a investigação da investigação, aproveitando o

poder das práticas culturais dominantes vinculadas ao uso das tecnologias informáticas

e da comunicação, pode incidir favoravelmente na área sentimental do sujeito,

estimulando o seu interesse pelo conhecimento da realidade. Neste sentido, as novas

tecnologias (Touriñán, 2005), entendidas numa perspectiva sistémica e complexa,

oferecem possibilidades formativas ainda não vislumbradas.

2.3. A Interacção Humana nos Contextos Hipertecnológicos

Na ‘sociedade-rede’, submetido a poderosas transacções culturais, o sujeito transita

entre redes humanas e técnicas, passando, sem solução de continuidade, de um cenário

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social a outro, onde de algum modo sempre existe, presencial ou virtualmente, o outro

ou os outros. De facto, paradoxalmente, o sujeito para sê-lo, como classicamente

manifestara Ortega y Gasset nas suas Meditaciones del Quijote, precisa dos outros.

Nesta paisagem de novas práticas culturais, a aprendizagem está a desescolarizar-se

rapidamente. E há que fugir de uma falsa tentação, quando se adoptam certas posições

de resistência fundadas em velhas práticas recordadas com nostalgia, tão inverosímil

como impraticável: pretender fazer da escola o núcleo único da aprendizagem (1). Antes

do que se trata é de aprofundar nos potenciais educativos que podem vislumbrar-se nos

distintos espaços de aprendizagem e de buscar interacções fecundas entre eles.

O mundo em que vivemos caracteriza-se por uma complexa trama de sistemas

sociais e técnicos (Lash, 2002) que reclamam uma nova concepção da aprendizagem,

uma noção que contemple, especialmente, que aprender, na actualidade, significa

aprender a participar mais efectivamente em processos de interdependência e de

cooperação, garantindo-se na reciprocidade e na cooperação (Román, 2004); o

desencadear-se da autodeterminação possível e a busca do próprio bem-estar (Bernal,

2005; Sen, 1999). Uma situação fluida e desconcertante, como a presente, requer, como

disse Richard Bernstein recentemente (2), “questionar o uso incorrecto dos absolutos,

denunciar as reivindicações falsas e erróneas de certeza moral, e alegar que não

podemos lidar com a complexidade das questões às que devemos enfrentar apelando a

dicotomias simplistas, ou impondo-os” (2006, 205).

A expansão das tecnologias da informação e da comunicação está a favorecer o

surgimento e desenvolvimento de uma sociedade globalizada, caracterizada pelas redes,

na qual a produtividade depende da criação de conhecimento, como proverbialmente

mostrou Castells (1996, 1997, 1998) na sua conhecida trilogia sobre a era da

informação. No seio de uma sociedade aberta e complexa (Soros, 2000), na qual as

estratégias metodológicas científicas não são únicas e universais (Knorr Cetina, 2001) e

na qual a perfeição se nos apresenta longe do nosso alcance, parece que a educação deve

contribuir primordialmente para a preparação para a vida humana, para humanizar a

vida, nos novos contextos definidos pela complexidade do conhecimento em oceanos

incessantemente crescentes de informação e pelas redes humanas e técnicas. Neste

sentido, é preciso criar ambientes, contextos de aprendizagem que estimulem a

participação dos sujeitos em comunidades humanas e virtuais, onde seja possível a

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articulação entre os distintos cenários de aprendizagem (García Carrasco y García

Peñalvo, 2002). A aprendizagem social cooperativa hoje (Greeno, Collins y Resnick,

1996), sem prejudicar o desenvolvimento autónomo possível do sujeito, parece adquirir

especial relevância, considerando a complexidade da nossa condição humana e a capital

importância que apresentam as redes informáticas no nosso mundo.

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Notas

(1) Possivelmente, nunca se tinha percebido com tanta clareza como agora a

vinculação curricular com a configuração das identidades e desta com a cultura mundial

(Pinar, 1998), implicando-se a capacidade de trabalhar presencial e virtualmente com

pessoas e instituições. Na sociedade contemporânea, necessitamos de uma nova cultura

escolar capaz de abrir-se aos fluxos culturais e de encarar a possibilidade da interacção

com o meio social através da reconsideração das práticas culturais que acabam por lhe

dar sentido.

(2) Ainda que se tenha referido principalmente à política e à religião, nestes inícios

do século XXI marcados pela “Guerra contra o Terror”, as suas palavras ecoam com

força se pensarmos na acção educativa.

Nota sobre os autores

Antonio Bernal Guerrero é professor catedrático do Departamento de Teoría y

Historia de la Educación y Pedagogía Social da Universidad de Sevilla, director do

Grupo de Investigación Pedagógica de la Persona e Doutor em Ciências da Educação

pela Universidad Nacional de Educación a Distancia (Madrid). Endereços para

contacto: Facultad de Psicología y Ciencias de la Educación, Departamento de Teoría y

Historia de la Educación y Pedagogía Social, C/ Camilo José Cela, s / n, 41018, Sevilla;

[email protected]

Teresa N. R. Gonçalves é Investigadora do Grupo de Investigación Pedagógica de la

Persona da Universidad de Sevilla e Doutora em Ciências da Educação (Teoria da

Educação) pela Universidad de Sevilla. Endereços para contacto: Facultad de Psicología

y Ciencias de la Educación, Departamento de Teoría y Historia de la Educación y

Pedagogía Social, C/ Camilo José Cela, s / n, 41018 Sevilla; [email protected]