Rede 1 Janeiro 2005 Clemerson Cleve

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Investigação Criminal e Ministério Público.

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  • Nmero 1 janeiro/fevereiro/maro de 2005 Salvador Bahia Brasil

    INVESTIGAO CRIMINAL E MINISTRIO PBLICO1

    Prof. Clmerson Merlin Clve Professor Titular das Faculdades de Direito UniBrasil e da UFPR.

    Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Ps-Graduado pela Universit Catholique de Louvain (Blgica). Professor nos cursos de Mestrado e

    Doutorado da UFPR. Procurador do Estado e Advogado.

    No devemos parar de explorar e o fim de toda nossa

    explorao ser chegar ao ponto de partida e conhecer o lugar pela primeira vez.

    T. S. Eliot

    1. Introduo

    Est em pauta a discusso a propsito da legitimidade do exerccio, por membros do Ministrio Pblico, de atividades de investigao dirigidas apurao de infraes criminais. 2

    1 Agradeo advogada Alessandra Ferreira Martins, responsvel pelo Departamento de

    Pesquisa do Escritrio Clmerson Merlin Clve Advogados Associados, pela preciosa colaborao no processo de elaborao do presente texto.

    2 Cf. BARROSO, Lus Roberto. Investigao pelo Ministrio Pblico. Argumentos contrrios e a favor. A sntese possvel e necessria. Parecer disponvel na Internet em: . Acesso em: 23/08/2004; STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Crime e Constituio: a legitimidade da funo investigatria do Ministrio Pblico. Rio de Janeiro: Forense, 2003; LOPES JR, Aury. Sistemas de investigao preliminar no processo penal, 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; GUIMARES, Rodrigo Rgnier Chemim. Controle externo da atividade policial pelo Ministrio Pblico. Curitiba: Juru Editora, 2004; ROXIN, Claus. Posicin jurdica y tareas futuras del ministerio publico In MAIER, Julio B. J. El Ministerio Pblico en el Processo Penal. Buenos Aires: Ad hoc s.r.l., 2000, p. 37-57; MESQUITA, Paulo D. Notas sobre inqurito penal, polcias e Estado de Direito Democrtico (suscitadas por uma proposta de lei dita de organizao de

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    Deciso paradigmtica sobre o tema est para ser tomada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de ao direta de inconstitucionalidade aforada contra dispositivos da Lei Federal n. 8625 de 12 de fevereiro de 1993 e da Lei Complementar n. 75 de 20 de maio de 1993, que contemplam, entre as atribuies do Ministrio Pblico, a realizao de diligncias investigatrias. H outros feitos, igualmente tramitando perante a Excelsa Corte, que envolvem deliberao sobre a matria.

    A polmica que ora se estabeleceu nos meios de comunicao de massa j era observada na seara jurdica. Tomando-se apenas julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justia, temos que neste a posio dominante sobre a competncia investigatria do Ministrio Pblico manifesta-se em sentido positivo3, enquanto naquele caminha em sentido distinto4, tratando-se,

    investigao criminal). Revista do Ministrio Pblico, Lisboa, abr./jun. 2000, p. 137-149; CHOUKR, Fauzi Hassan. O relacionamento entre o Ministrio Pblico e a polcia judiciria no processo penal acusatrio. Disponvel na Internet em: www.mundojuridico.adv.br; MOREIRA, Rmulo de Andrade. Ministrio Pblico e poder investigatrio criminal. Disponvel na Internet em: www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=1055. Acesso em 23/08/2004.

    3 RECURSO ESPECIAL n. 331.903-DF (2001/00844503) Rel. Min. JORGE SCARTEZZINI. Julgado em 25 de maio de 2004. Ementa: RESP - PENAL E PROCESSO PENAL - PODER INVESTIGATIVO DO MINISTRIO PBLICO - PROVAS ILCITAS - INOCORRNCIA - TRANCAMENTO DA AO PENAL - IMPOSSIBILIDADE. - A questo acerca da possibilidade do Ministrio Pblico desenvolver atividade investigatria objetivando colher elementos de prova que subsidiem a instaurao de futura ao penal, tema incontroverso perante esta e.g. Turma. Como se sabe, a Constituio Federal, em seu art. 129, I, atribui, privativamente, ao Ministrio Pblico promover a ao penal pblica. Essa atividade depende, para o seu efetivo exerccio, da colheita de elementos que demonstrem a certeza da existncia do crime e indcios de que o denunciado o seu autor. Entender-se que a investigao desses fatos atribuio exclusiva da polcia judiciria, seria incorrer-se em impropriedade, j que o titular da Ao o rgo Ministerial. Cabe, portanto, a este, o exame da necessidade ou no de novas colheitas de provas, uma vez que, tratando-se o inqurito de pea meramente informativa, pode o MP entend-la dispensvel na medida em que detenha informaes suficientes para a propositura da ao penal. (g. n.) Cf. RECURSO ORDINRIO EM HC n. 15.507-PR (2003/0232733-3) Rel. Min. JOS ARNALDO DA FONSECA. Julgado em 28 de abril de 2004 e RECURSO ORDINRIO EM HC n. 12.871-SP (2002/0058385-0). Rel. Min. LAURITA VAZ. Julgado em 13 de abril de 2004.

    4 RHC 81.326-DF. RELATOR : MIN. NELSON JOBIM. EMENTA: RECURSO ORDINRIO EM HABEAS CORPUS. MINISTRIO PBLICO. INQURITO ADMINISTRATIVO. NCLEO DE INVESTIGAO CRIMINAL E CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL/DF. PORTARIA. PUBLICIDADE. ATOS DE INVESTIGAO. INQUIRIO. ILEGITIMIDADE. 1. PORTARIA. PUBLICIDADE .A Portaria que criou o Ncleo de Investigao Criminal e Controle Externo da Atividade Policial no mbito do Ministrio Pblico do Distrito Federal, no que tange a publicidade, no foi examinada no STJ. Enfrentar a matria neste Tribunal ensejaria supresso de instncia. Precedentes. 2. INQUIRIO DE AUTORIDADE ADMINISTRATIVA. ILEGITIMIDADE. A Constituio Federal dotou o Ministrio Pblico do poder de requisitar diligncias investigatrias e a instaurao de inqurito policial (CF, art. 129, VIII). A norma constitucional no contemplou a possibilidade do parquet realizar e presidir inqurito policial. No cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime. Mas requisitar diligncia nesse sentido autoridade policial. Precedentes. O recorrente delegado de polcia e, portanto, autoridade administrativa. Seus atos esto sujeitos aos rgos hierrquicos prprios da Corporao, Chefia de Polcia, Corregedoria. Recurso conhecido e provido. Informativo STF n. 314.

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    no obstante, de entendimento ainda no pacificado5.

    No o caso, aqui, de levantar as todas as razes, jurdicas e extra-jurdicas, que levaram determinados operadores jurdicos a questionar a legitimidade da atuao do Ministrio pblico quando suas atividades investigatrias bem sucedidas resultaram em material probatrio consistente para a provocao da jurisdio penal. Convm limitar a abordagem ao campo tcnico-jurdico, no qual a atividade investigatria do Ministrio Pblico vem sendo combatida basicamente com dois argumentos: tal atividade a) no residiria, a partir da leitura da Constituio, entre suas funes, motivo pelo qual o Parquet no ostentaria atribuio no stio investigatrio, particularmente em matria criminal (eventual atuao importando, por isso mesmo, em ofensa ao princpio do devido processo legal); b) a investigao criminal constitui funo exclusiva da polcia judiciria; por isso, o Parquet no poderia atuar nesse stio sem ofensa ao princpio da separao dos poderes. Os argumentos decorrem de um especfico modelo de interpretao constitucional que leva em conta, basicamente, a literalidade do texto normativo.

    A idia neste texto no apontar quem melhor para apurar infraes criminais, o policial ou o membro do Ministrio Pblico. No se trata, sem mais, de aderir a esta ou quela tese. Trata-se, antes, de oferecer alguns elementos para a melhor compreenso do arranjo constitucional envolvendo a competncia dos rgos dotados de dignidade constitucional, implicando isso, da sim, tomada de posio. Cumpre, ento, tecer breves comentrios sobre o ponto chave da questo, qual seja, a interpretao constitucional.

    2. Interpretao constitucional

    As relaes sociais hodiernamente travadas no raras vezes ensejam demandas complexas cuja tutela jurisdicional adequada s pode ser aventada com o manejo de tcnicas arrojadas de interpretao constitucional.

    Nota-se uma mudana no campo metodolgico que orienta a prtica constitucional na busca de um modelo hermenutico que permita conferir a dinamicidade necessria ao texto para potencializar a eficcia dos direitos e garantias fundamentais e realizar as promessas constitucionais. Neste passo, texto e norma deixam de manter uma relao unvoca e absoluta6. O texto o

    5 Cf. MS 21729 / DF (DJ 19/10/2001) Rel. Min. MARCO AURLIO; HC 75769-MG STF (DJ

    28/11/97) Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI; HC 77371-SP STF (DJ 23/10/98) Rel. Min. NELSON JOBIM; HC 80948 / ES (DJ 19/12/2001) Rel. Min. NRI DA SILVEIRA; HC 81303 / SP (DJ 23/08/2002) Rel. Min. ELLEN GRACIE.

    6 De um lado, a compreenso do significado como o contedo conceptual de um texto pressupe a existncia de um significado intrnseco que independa do uso ou da interpretao. Isso, porm, no ocorre, pois o significado no algo incorporado ao contedo das palavras, mas algo que depende precisamente de seu uso e interpretao, como comprovam as modificaes de sentidos dos termos no tempo e no espao e as controvrsias doutrinrias a respeito de qual o sentido mais adequado que se deve atribuir a um texto legal. Por outro lado, a concepo que aproxima o significado da inteno do legislador pressupe a existncia de um autor determinado e de uma vontade unvoca fundadora do texto. Isso, no entanto, tambm no sucede, pois o processo legislativo qualifica-se justamente como um processo complexo que no se submete a

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    universo sobre o qual se debrua o operador jurdico. A norma, no se confundindo com o texto, o resultado da operao hermenutica.

    Nos ltimos anos, evidenciados os limites do positivismo, seja ele de matriz exegtica, seja ele de matriz normativo-kelseniana, operou-se um deslocamento no campo das tcnicas de interpretao, de molde a, especialmente nos casos difceis, voltar o horizonte da ao a razo prtica. Agora, portanto, alm do exerccio da subsuno ou da categorizao, o intrprete haver de manejar os recursos da argumentao e da ponderao para a resoluo dos complexos problemas que se apresentam na sociedade contempornea (tecnolgica, de informao, ps-industrial, em rede, de risco, etc.) insuscetveis de enfrentamento a partir de um padro metodolgico prprio de sociedades e discursos constitucionais menos complexos.

    Superado o paradigma da conscincia, est-se, agora, a operar sob o influxo do paradigma da linguagem, exigente de um renovado papel para os operadores jurdicos:

    Como as Constituies na sociedade heterognea e pluralista, repartida em classes e grupos, cujos conflitos e lutas de interesses so os mais contraditrios possveis, no podem apresentar-se seno sob a forma de compromisso ou pacto, sendo sua estabilidade quase sempre problemtica, de convir que a metodologia clssica tinha que ser substituda ou modificada por regras interpretativas correspondentes a concepes mais dinmicas do mtodo de perquirio da realidade constitucional.7

    A fora normativa da Constituio depende grandemente da atualidade de suas normas para gerar a identidade dos diferentes grupos sociais que nela apostam suas esperanas.

    ... perde fora hermenutica qualquer interpretao que busque no desenvolvimento histrico da formao de determinado instituto a construo de uma mens legislatoris ou mens legis. Tal procedimento, de ndole marcadamente historicista, mostra-se antittico com o que contemporaneamente se entende por hermenutica. Quer-se dizer, o historicismo esbarra nos cmbios de paradigma; no caso do Direito, esse cmbio evidenciado pelo advento de uma nova Constituio.

    um autor individual, nem a uma vontade especfica. Sendo assim, a interpretao no se caracteriza como um ato de descrio de um significado previamente dado, mas como um ato de deciso que constitui a significao e os sentidos de um texto. (g. n.) VILA, Humberto. Teoria dos princpios: da definio aplicao dos princpios jurdicos. So Paulo: Malheiros, 2003, p. 23.

    7 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 14 ed., So Paulo: Malheiros, 2004, p. 494.

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    A validade do mtodo histrico, nos termos em que est colocado, poderia levar o processo hermenutico produo de decises absolutamente desconectadas da realidade.8 (g. n.)

    nesse quadro que as mais polmicas questes afetas s prescries normativas devem ser resolvidas. E o poder de investigao criminal do Ministrio Pblico a se apresenta. Cumpre lembrar que a instituio ministerial passou por profunda alterao funcional com o advento da Constituio Federal de 1988, j que no sistema anterior, apresentava-se dependente do Poder Executivo. Diante disso, determinadas concepes acerca de suas atribuies no se coadunam com o paradigma democrtico ento institudo, demandante de constante afirmao. Da porque no se deve compreender as funes ministeriais apartadas das transformaes felizmente operadas com o sistema constitucional vigente9.

    Alis, tambm a seara penal vem sofrendo mudanas necessrias para acompanhar as novas demandas sociais e refrear o avano de condutas criminosas aperfeioadas com a velocidade da modernizao tecnolgica. No crvel que o Cdigo de Processo Penal seja interpretado, ainda, sem levar em conta o processo de mutao desencadeado pela nova Constituio. preciso sintonizar a legislao processual-penal com o texto constitucional, operar a sua constitucionalizao, fazer vazar as conseqncias da filtragem constitucional, realizar, enfim, a leitura da lei com os olhos voltados para a Constituio e para o futuro.

    A aplicao da lei penal e processual penal tem por escopo oferecer soluo para as condutas desviantes, sempre tipificadas, atentatrias aos valores e bens, reconhecidos pela normatividade constitucional, que do base organizao social. Para operacionalizar a atividade do Estado no stio considerado, a Constituio cria rgos e instituies, retirando do cidado a possibilidade de manifestar ao de carter persecutrio, enfim, de fazer justia com as prprias mos. O Constituinte, portanto, confere ao Estado o monoplio de tal relevante ao. A paz social fica, indubitvel, em grande parte dependente da eficincia e eficcia dos mtodos postos em prtica pela estrutura estatal. Diante de semelhante circunstncia, natural que as instituies e os rgos pblicos incumbidos da fundamental tarefa possam contar com recursos e preparao adequados ao salutar atendimento das vtimas e persecuo, nos termos da lei, dos acusados de transgresso. A separao de funes neste campo instrumental, e assim deve ser considerada.

    8 STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Crime e Constituio: a legitimidade da funo

    investigatria do Ministrio Pblico. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 69-70. 9 de transcrever aqui apontamento particularmente feliz de Barbosa Moreira (BARBOSA

    MOREIRA, Jos Carlos. O Poder Judicirio e a efetividade da nova Constituio. Revista Forense 304/152) sobre a postura dos juristas que operam interpretao com olhos voltados para o passado. Pe-se nfase nas semelhanas, corre-se o vu sobre as diferenas e conclui-se que, luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina da matria, afinal de contas, mudou pouco, se que na verdade mudou. um tipo de interpretao em que o olhar do intrprete dirige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta menos a representao da realidade que uma sombra fantasmagrica.

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    Traado este breve panorama, possvel perceber que a questo sobre a legitimidade da apurao de infraes criminais pelo Ministrio Pblico deve ser avaliada com adequada dose de cuidado, isto para que no se reduza significao de uma disputa contaminada por eventuais interesses intra-orgnicos em tudo distante do necessrio compromisso com a realizao dos postulados do Estado Democrtico de Direito.

    As normas constitucionais que disciplinam as funes do Ministrio Pblico e tambm de outros rgos e instituies estatais formam um sistema, significando isso que sua correta compreenso envolve esforo maior do que o consistente na singela leitura (interpretao simples e literal) das disposies constitucionais pertinentes. O sistema em questo abriga disposies que orientam a evoluo dinmica de sentidos decorrente das mudanas operadas no plano da faticidade. O correto entendimento da matria, portanto, envolve operao hermenutica capaz de testar e, mais do que isso, superar o aprisionamento do territrio da pr-compreenso.

    3. Uma questo de cooperao permanente e compartilhamento eventual

    3.1. Investigao e acusao no juizado de instruo

    A importncia da devida interpretao das disposies constitucionais avulta quando se percebe entre os argumentos na linha da ilegitimidade dos procedimentos investigatrios promovidos por membros do Ministrio Pblico, a tentativa de petrificar os debates ocorridos no Congresso Constituinte em prejuzo da Constituio mesma. Como se sabe, o Constituinte, poca, recusou proposta no sentido de instituir-se, entre ns, o sistema de juizados de instruo. Este um fato. Mas da no possvel extrair como conseqncia a idia segundo a qual foi implantado, para a polcia judiciria, o monoplio das atividades investigatrias, quando na esfera criminal.

    O juizado de instruo constitui modelo de investigao processual penal adotado em alguns pases europeus no qual se manifesta rgida separao entre as funes de acusao e instruo. A separao, ensejada por razes histricas, deixa a cargo do promotor ou procurador acusar, a cargo do juiz a promoo da instruo e a cargo de outro rgo jurisdicional o julgamento. De modo que quem instrui no julga. verdade que tal modelo foi sensivelmente modificado na atualidade, mas preciso ressaltar, por outro lado, que mesmo a no se opera separao rgida entre as funes de acusao e investigao, como se poderia imaginar.

    Em alguns pases que adotam o juizado de instruo, no permitido ao membro do Ministrio Pblico realizar a instruo, j que esta funo privativa do juiz. Este, detentor de amplos poderes, pode ordenar uma srie de diligncias para garantir a segura apurao do delito, como determinar a priso preventiva, escutas telefnicas, busca e apreenso, etc.

    O Ministrio Pblico, enquanto rgo acusador, no tem poderes para promover a instruo criminal no sistema de juizados de instruo, nem no

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    sistema processual penal brasileiro. Aqui, tanto o Ministrio Pblico quanto a polcia judiciria devem (e bom que continue assim) solicitar ao juiz medidas de maior gravidade que possam afetar direitos fundamentais. Entenda-se que isso no significa que o rgo ministerial esteja proibido de investigar, mas sim de promover a instruo do processo penal.

    preciso notar, no obstante, que o juizado de instruo vem cedendo passo a outro sistema no qual o Ministrio Pblico responsvel pela investigao preliminar10. Neste sentido, afirma Aury Lopes Jr:

    A instruo preliminar a cargo do MP tem sido adotada nos pases europeus como um substituto ao modelo de instruo judicial anteriormente analisado (juizado de instruo). Neste sentido, a reforma alem de 1974 suprimiu a figura do juiz instrutor para dar lugar ao promotor investigador. A partir de ento, outros pases, com maior ou menor intensidade, foram realizando modificaes legislativas nessa mesma direo, como sucedeu, v.g, na Itlia (1988) e em Portugal (1995). Na Espanha, a Lei Orgnica (LO) 7/88 que instituiu o procedimento abreviado deu os primeiros passos nessa direo, ao outorgar ao fiscal maiores poderes na instruo preliminar.11

    Ora, o debate constituinte do qual no resultou, entre ns, a adoo do sistema do juizado de instruo no determinante para soluo da questo da constitucionalidade da atuao do Ministrio Pblico envolvendo a realizao de certas diligncias em investigao criminal. Primeiro, pela ressalva da interpretao constitucional adequada; segundo porque mesmo que tivesse sido adotado tal modelo, no se impediria a controvrsia nesta instaurada, que est cingida ao binmio acusao/investigao, e no ao binmio acusao/instruo.

    No demais lembrar, com Lenio Streck e Luciano Feldens, que

    ... a partir da superao da hermenutica clssica, que trabalha(va) com a idia de que interpretar extrair do texto o seu sentido (Auslegung), pela hermenutica de cunho filosfico, passou-se a entender que o processo interpretativo no reprodutivo, mas sim, produtivo. Interpretar , pois, dar/atribuir sentido (Sinngebung). Com isto, deixa de existir equivalncias

    10 O Comit de Ministros do Conselho da Europa aprovou e encaminhou aos Estados

    Membros a Recomendao REC (2000)19 sobre o papel do Ministrio Pblico no sistema de justia penal, que dispe: 1. O Ministrio Pblico uma autoridade pblica encarregada de zelar, em nome da sociedade e no interesse pblico, pela aplicao da lei, quando o incumprimento da mesma implicar sano penal, tendo em considerao os direitos individuais e a necessria eficcia do sistema de justia penal. 2. Em todos os sistemas de justia penal, o Ministrio Pblico: - decide se deve iniciar ou prosseguir um procedimento criminal; - exerce a ao penal; - pode recorrer de todas ou algumas decises. 3. Em determinados sistemas de justia penal, o Ministrio Pblico tambm: aplica a poltica criminal nacional, adaptando-a, quando for o caso disso, s realidades regionais e locais; - conduz , dirige ou fiscaliza o inqurito; (...)16. O Ministrio Pblico deve, em qualquer caso, estar em condies de proceder criminalmente, sem obstruo, contra agentes do estado, por crimes por estes cometidos, particularmente de corrupo, abuso de poder, violao grave dos direitos humanos e outros crimes reconhecidos pelo direito internacional. (g. n.)

    11 LOPES JR, Aury. Sistemas de investigao preliminar no processo penal, 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 85.

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    entre texto e norma e entre vigncia e validade, em face do que se denomina na fenomenologia hermenutica de diferena ontolgica.

    Desse modo, se o texto no carrega a sua norma e se a vigncia de um dispositivo no implica diretamente a sua validade, possvel afirmar que textos anteriores Constituio recebem automaticamente novas normas, atribuveis a partir do topos hermenutico que a Constituio de 1988. Sentidos jurdicos atribudos a textos legais, por exemplo, em 1963 (Projeto RO), 1941 (Cdigo de Processo Penal) e 1957 (deciso do STF da lavra de HUNGRIA) no se mantm na contemporaneidade ps-Constituio de 1988, pela profunda alterao do papel do Estado, da Constituio e, fundamentalmente, da funo a ser exercida pelo Ministrio Pblico.12

    Afasta-se, portanto, o argumento de que a frustrada tentativa de adoo do modelo de juizado de instruo possa justificar a opo de atribuir, de forma monopolizada, a funo de investigao apartada da acusao polcia judiciria. A legitimidade das diligncias investigatrias do Ministrio Pblico decorre da nova ordem constitucional e nela deve ser compreendida.

    Se das deliberaes dos Constituintes no pode ser deduzida a proibio da ao ministerial no campo investigatrio criminal, eis que tal ao decorre, naturalmente, da interpretao atualizada do texto constitucional vigente, com mais razo o mesmo ocorrer quando em questo as deliberaes do legislador ordinrio. A efetividade da Constituio no pode ficar a merc de contingentes interesses polticos, nem sempre concertados com os interesses sociais que legitimam os respectivos mandatos. Da porque, projetos de lei,e mesmo projetos de emenda constitucional eventualmente no aprovados, no constituem diretriz hermenutica sria para justificar determinada interpretao do texto ou para fechar questo sobre assunto que assume importncia vital para a sociedade. Inclusive porque, em muitos casos, antes de ostentarem natureza verdadeiramente constitutiva, apresentavam finalidade meramente explicitadora, declaratria de uma condio disputada mas, todavia, perfeitamente extravel do texto constitucional.

    De outra banda, conjuga-se ao argumento do juizado de instruo a idia de que uma separao absoluta entre as funes de acusao e investigao asseguraria a imparcialidade dos rgos respectivos. Patente equvoco por julgar, primeiramente, toda a instituio em funo de valores que s a personalidade de cada pessoa vai determinar. Em segundo lugar no h fundamento jurdico para se creditar mais imparcialidade a membros do Ministrio Pblico ou da polcia judiciria, seja qual funo exeram. Uma anlise mais detida da funo acusatria do Ministrio Pblico permite aferir que o intuito investigatrio , a partir de indcios de um fato tpico identificar e comprovar sua autoria e materialidade, seja a partir de notcia que lhe foi confiada diretamente, seja a partir de inqurito policial, seja a partir de investigao cvel prpria que apontou

    12 STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano, op. cit., p. 67.

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    emergncia tambm de ilcito criminal.13

    No h uma distncia abissal entre Ministrio Pblico e polcia judiciria no exerccio de suas respectivas atribuies, o que pode ser deduzido j da finalidade precpua de cada qual: - defesa da ordem jurdica democrtica e preservao da ordem pblica, respectivamente. Tais objetivos convergem na direo de outro maior: - a pacificao social por todos almejada, cuja efetivao demanda a conjugao de esforos.

    3.2. Investigao e acusao no sistema constitucional brasileiro

    Tem-se, ento, que no modelo brasileiro no h diviso rgida, insupervel, entre as funes de investigao e acusao, de modo que ambas podem ser exercidas com responsabilidade pelos membros do Ministrio Pblico. Isso no afasta a concepo segundo a qual aos rgos dada uma funo precpua a ser devidamente exercida. No caso da instituio ministerial, reconhece-se como precpua a funo acusatria desde que entendida, reitere-se, no contexto do Estado Democrtico de Direito (a funo acusatria no pode ser exercitada a qualquer custo, eis que o membro do Parquet , antes de tudo, o fiscal da ordem jurdica e, portanto, da Lei e da Constituio). A investigao pode ser entendida como atividade tpica da polcia judiciria, mas nem por isso exclusiva.

    evidente que a apurao de infraes penais requer uma srie de aes que podem se dar no bojo de procedimentos variados, dentre os quais o inqurito policial o mais comum. Mais comum, porque nem todos os procedimentos de investigao criminal preliminar substanciam inquritos policiais. Cumpre ter clareza quanto a isso.

    No se resolve o problema que constitui objeto do presente texto a partir da definio do titular do inqurito policial. Ora, inegvel que tal procedimento integra a esfera das atividades da polcia judiciria. A questo de fundo outra: - diz respeito legitimidade do Ministrio Pblico, atravs de seus prprios procedimentos, realizar, em determinadas circunstncias muito bem justificadas, diligncias investigatrias que venham a subsidiar a formao da convico a propsito da necessidade de provocao da jurisdio penal.

    13 A concepo de imparcialidade merece cuidados e deve afastar posies ingnuas a

    respeito da natureza humana. Neste sentido, a imparcialidade do Ministrio Pblico, e de outros rgos afins, deve ser compreendida em cotejo com a legalidade inerente s funes pblicas. Por isso, alegaes de impedimento de membros do Ministrio Pblico nas aes em que realizaram diligncias no so procedentes na jurisprudncia ptria. Do Superior Tribunal de Justia colhe-se o julgado: RHC 8106/DF (1998/0089201-0). Rel. Min. GILSON DIPP. Ementa: CRIMINAL. RHC. ABUSO DE AUTORIDADE. TRANCAMENTO DE AO PENAL. COLHEITA DE ELEMENTOS PELO MINISTRIO PBLICO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NO CONFIGURADO. LIMINAR CASSADA. RECURSO DESPROVIDO. Tem-se como vlidos os atos investigatrios realizados pelo Ministrio Pblico, que pode requisitar esclarecimentos ou diligenciar diretamente, visando instruo de seus procedimentos administrativos, para fins de oferecimento da pea acusatria. A simples participao na fase investigatria, coletando elementos para o oferecimento da denncia, no incompatibiliza o Representante do Parquet para a proposio da ao penal. (DJ 04/06/2001)

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    preciso afastar argumentos apaixonados que insistem numa equivocada pretenso do Ministrio Pblico de substituir-se polcia judiciria ou mesmo de presidir inquritos policiais, pois no disto que se trata. No h substituio dos rgos encarregados, em princpio, da investigao criminal. A polcia judiciria deve continuar responsvel pelos inquritos policiais, sendo certo que o Ministrio Pblico haver de realizar investigaes em casos excepcionais, devidamente justificados, sem que isso possa significar o esvaziamento da esfera funcional da instituio policial.

    Exercer a funo de polcia judiciria no significa exclusivamente realizar inquritos policiais, pois envolve outras atividades (apoio ao Poder Judicirio para cumprimento de decises liminares ou definitivas, promoo da segurana de magistrados e funcionrios da Justia ameaados em razo de suas funes, etc.). De outra banda, o inqurito policial uma das formas de investigao de infraes penais constitui procedimento tpico da polcia judiciria.

    Alm dos inquritos policiais, diligncias investigatrias podem ser realizadas no contexto de diversos outros procedimentos promovidos por rgos do Executivo, Legislativo ou Judicirio. o caso do procedimento fiscal da Receita Federal para investigao do delito de sonegao fiscal14, das diligncias do COAF na apurao de lavagem de dinheiro15, do inqurito judicial16 17, das

    14 Lei 8137 de 1990: Art. 1 Constitui crime contra a ordem tributria suprimir ou reduzir tributo, ou contribuio social e qualquer acessrio, mediante as seguintes condutas:

    I - omitir informao, ou prestar declarao falsa s autoridades fazendrias; (...)

    V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatrio, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestao de servio, efetivamente realizada, ou fornec-la em desacordo com a legislao. (...)

    Pargrafo nico. A falta de atendimento da exigncia da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poder ser convertido em horas em razo da maior ou menor complexidade da matria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigncia, caracteriza a infrao prevista no inciso V.

    15 Lei 9613 de 1998 : Art. 14. criado, no mbito do Ministrio da Fazenda, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, com a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrncias suspeitas de atividades ilcitas previstas nesta Lei, sem prejuzo da competncia de outros rgos e entidades. (...)

    3o O COAF poder requerer aos rgos da Administrao Pblica as informaes cadastrais bancrias e financeiras de pessoas envolvidas em atividades suspeitas.

    Art. 15. O COAF comunicar s autoridades competentes para a instaurao dos procedimentos cabveis, quando concluir pela existncia de crimes previstos nesta Lei, de fundados indcios de sua prtica, ou de qualquer outro ilcito.

    16 DL 7661 de 1945: Art. 103. Nas vinte o quatro horas seguintes ao vencimento do dobro do prazo marcado pelo juiz para os credores declararem os seus crditos (artigo 14, pargrafo nico, n V) o sndico apresentar em cartrio, em duas vias, exposio circunstanciada, na qual, considerando as causas da falncia, o procedimento do devedor, antes e depois da sentena declaratria, e outros elementos ponderveis, especificar, se houver, os atos que constituem crime falimentar, indicando os responsveis e, em relao a cada um, os dispositivos penais aplicveis.

    1 Essa exposio, instruda com o laudo do perito encarregado do exame da escriturao do falido (art. 63, n V), e quaisquer documentos, concluir, se for caso, pelo requerimento de inqurito, exames e diligncia destinados apurao de fatos ou circunstncias que possam servir de fundamento ao penal.

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    diligncias das Comisses Parlamentares de Inqurito18, da investigao de prtica de crime por magistrados realizado pelo prprio Poder Judicirio19. Portanto, as hipteses de investigao criminal preliminar no se resumem aos inquritos policiais, no constituindo, por isso mesmo, atividade exclusiva da polcia judiciria.

    Afirmar que polcia judiciria incumbe presidir o inqurito policial nada acrescenta ao debate, j que o Ministrio Pblico quando promove certas diligncias investigatrias no o faz mediante instaurao de inqurito policial. No h que se falar, portanto, em usurpao de competncia. Trata-se, antes, de cooperao entre instituies para a consecuo de objetivo comum, qual seja, diminuir a impunidade na seara mais delicada do contexto jurdico, que a criminal.

    Cooperao imperativo constitucional20 decorrente de diversas disposies constitucionais, inclusive da interpretao hodierna do princpio da separao de poderes. Sobre este ponto, leciona Konrad Hesse:

    Objeto da diviso de poderes , antes, positivamente uma ordem de colaborao humana, que constitui os poderes individuais, determina e limita suas competncias, regula sua colaborao e, desse modo, deve conduzir

    2 As primeiras vias da exposio e do laudo e os documentos formaro os autos do

    inqurito judicial e as segundas vias sero juntas aos autos da falncia. (g. n.) 17 Regimento Interno do STF: Art. 42. O Presidente responde pela polcia do Tribunal. No

    exerccio dessa atribuio pode requisitar o auxlio de outras autoridades, quando necessrio.

    Art. 43. Ocorrendo infrao lei penal na sede ou dependncia do Tribunal, o Presidente instaurar inqurito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita sua jurisdio, ou delegar esta atribuio a outro Ministro.

    Art. 44. A polcia das sesses e das audincias compete ao seu Presidente.

    Art. 45. Os inquritos administrativos sero realizados consoante as normas prprias. 18 Conferir artigo 58, 3. da Constituio Federal: As comisses parlamentares de

    inqurito, que tero poderes de investigao prprios das autoridades judiciais, alm de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, sero criadas pela Cmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um tero de seus membros, para apurao de fato determinado e por prazo certo, sendo suas concluses, se for o caso, encaminhadas ao Ministrio Pblico, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores. (g. n.)

    19 Lei Complementar 35 de 1979: Art. 33 - So prerrogativas do magistrado: (...)

    IV - no estar sujeito a notificao ou a intimao para comparecimento, salvo se expedida por autoridade judicial; (...)

    Pargrafo nico - Quando, no curso de investigao, houver indcio da prtica de crime por parte do magistrado, a autoridade policial, civil ou militar, remeter os respectivos autos ao Tribunal ou rgo especial competente para o julgamento, a fim de que prossiga na investigao.

    20 No s no Brasil, como tambm em outros pases, por exemplo, os europeus que adotaram a Recomendao REC (2000)19, que dispe: 15. A fim de favorecer a equidade e eficcia da poltica criminal, o MP deve cooperar com departamentos e instituies do Estado, na medida em que isso esteja de acordo com a lei. (...) 23. Os Estados onde a polcia independente do Ministrio Pblico devem tomar todas as medidas para garantir que haja uma cooperao adequada e eficaz entre o Ministrio Pblico e a Polcia. (g. n.)

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    unidade do poder estatal limitado. Essa tarefa requer no s um refreamento e equilbrio dos fatores de poder reais, seno ela tambm, sobretudo, uma questo de determinao e coordenao apropriada das funes, assim como das foras reais que se personificam nesses rgos.21

    Cumpre cotejar a hermenutica at aqui desenvolvida com as normas constitucionais de regncia da matria a fim de que nem mesmo aos mais apegados literalidade textual reste dvida sobre a legitimidade das investigaes realizadas pelo Ministrio Pblico.

    4. Competncia constitucional e Ministrio Pblico

    O sistema constitucional, como se sabe, comporta normas explcitas e tambm implcitas, todas dotadas de idntica hierarquia normativa. O arranjo das competncias dos rgos pblicos no escapa a esse panorama. Tanto assim que, tratando da repartio horizontal de competncias, a melhor doutrina reconhece que a Unio dispe de competncias expressas e implcitas, sendo as ltimas, em geral, vinculadas aos meios necessrios para o devido exerccio das primeiras

    Trata-se de reforar a idia de que a efetividade da Constituio est ligada, entre outros fatores, interpretao que possibilite uma compreenso do sistema constitucional apropriada ao Estado Democrtico de Direito. Significa no congelar o contedo normativo no tempo ou no espao (no texto literal dos dispositivos). Com toda propriedade, ensina Hesse:

    ... em casos, para cuja resoluo a Constituio no contm critrios unvocos, isto , porm, em todos os casos de interpretao constitucional, a Constituio ou o constituinte, na verdade, ainda no decidiram, seno somente deram pontos de apoio mais ou menos numerosos incompletos para a deciso. Onde nada de unvoco est querido, nenhuma vontade real pode ser averiguada, seno, quando muito, uma presumida ou fictcia e, sobre isso, tambm todas as frmulas de embarao como, por exemplo, aquela da obedincia pensante do intrprete no so capazes de ajudar a superar.22

    Esta construo do direito constitucional no gera controvrsia digna de ateno nas mais autorizadas doutrina e jurisprudncia. Curioso, ento, ignor-la ou confront-la para recusar ao Ministrio Pblico as competncias instrumentais indispensveis para operar, do modo mais eficiente e dentro da legalidade, as suas atribuies expressas, em particular a consistente na promoo da ao penal. Ele, afinal, o dominus litis. Ora, a delimitao da esfera de atribuies constitucionais do Ministrio Pblico no pode ser desenhada ignorando-se a particularidade, razo pela qual doutrina e jurisprudncia coerentes conferem instituio a funo de, em determinadas circunstncias, realizar investigao

    21 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da Repblica Federal da

    Alemanha. (trad. Lus Afonso Heck). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 369. 22 HESSE, Konrad; op. cit., p. 57.

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    preliminar criminal para melhor decidir acerca da necessidade de provocao da jurisdio criminal23.

    Desde outra parte, tem sido alegado em proveito da tese da ilegitimidade da investigao criminal promovida pelo Ministrio Pblico que, de acordo com o art. 144 da Constituio Federal, a apurao de infraes penais uma das atribuies exclusivas da polcia judiciria. Diante disso, restaria configurada uma indbita invaso de competncia por parte do Ministrio Pblico. Ocorre que, in casu, parte-se de premissa supervel sobre o preceito constitucional invocado.

    Transcreve-se o texto normativo:

    Art. 144. A segurana pblica, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio, atravs dos seguintes rgos:

    I polcia federal;

    II polcia rodoviria federal;

    III polcia ferroviria federal;

    IV polcias civis;

    V polcias militares e corpos de bombeiros militares.

    1. A polcia federal, instituda por lei como rgo permanente, organizado e mantido pela Unio e estruturado em carreira, destina-se a:

    I apurar infraes penais contra a ordem poltica e social ou em detrimento de bens, servios e interesses da unio ou de suas atividades

    23 Ilustra-se com o seguinte julgado do STJ:RECURSO ORDINRIO EM HABEAS

    CORPUS N 13.728 - SP (20020161350-0) Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO Julgado em 15 de abril de 2004. EMENTA: RECURSO ORDINRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PROCEDIMENTO INVESTIGATRIO. MINISTRIO PBLICO. LEGALIDADE.

    1."1. O respeito aos bens jurdicos protegidos pela norma penal , primariamente, interesse de toda a coletividade, sendo manifesta a legitimidade do Poder do Estado para a imposio da resposta penal, cuja efetividade atende a uma necessidade social.

    2. Da por que a ao penal pblica e atribuda ao Ministrio Pblico, como uma de suas causas de existncia. Deve a autoridade policial agir de ofcio. Qualquer do povo pode prender em flagrante. dever de toda e qualquer autoridade comunicar o crime de que tenha cincia no exerccio de suas funes. Dispe significativamente o artigo 144 da Constituio da Repblica que 'A segurana pblica, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para a preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio'

    3. No , portanto, da ndole do direito penal a feudalizao da investigao criminal na Polcia e a sua excluso do Ministrio Pblico.

    Tal poder investigatrio, independentemente de regra expressa especfica, manifestao da prpria natureza do direito penal, da qual no se pode dissociar a da instituio do Ministrio Pblico, titular da ao penal pblica, a quem foi instrumentalmente ordenada a Polcia na apurao das infraes penais, ambos sob o controle externo do Poder Judicirio, em obsquio do interesse social e da proteo dos direitos da pessoa humana. (g. n.)

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    autrquicas e empresas pblicas, assim como outras infraes cuja prtica tenha repercusso interestadual ou internacional e exija represso uniforme, segundo se dispuser em lei;

    II prevenir e reprimir o trfico ilcito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuzo da ao fazendria e de outros rgos pblicos nas respectivas reas de competncia;

    III exercer as funes de polcia martima, aeroporturia e de fronteiras;

    IV exercer, com exclusividade, as funes de polcia judiciria da Unio.

    [...]

    4. s polcias civis, dirigidas por delegados de polcia de carreira, incumbem, ressalvada a competncia da Unio, as funes de polcia judiciria e a apurao de infraes penais, exceto as militares. (g. n.)

    Percebe-se que h uma distino no texto, correta ou no, entre as funes de apurao de crimes e polcia judiciria. Diante disso, ressalva-se que, ao tratar da polcia federal, o Constituinte s reservou a exclusividade quanto funo de polcia judiciria, e no quanto apurao de crimes. Em relao Polcia Civil, a diferenciao tambm se manifesta, como se percebe pela leitura do 4. do art. 144 da Constituio Federal.

    Levando a cabo a interpretao do dispositivo em questo, resta assentado que Polcia Federal reservada, com exclusividade, a funo de polcia judiciria da Unio, ou seja, no h exclusividade quanto apurao de crimes e a exclusividade referida se opera em relao ao mbito de atuao das funes de polcia judiciria federal em contrapartida ao das polcias civis. Assim, no h exclusividade constitucionalmente garantida aos rgos que exercem funo de polcia judiciria para a apurao de infraes criminais.

    Por outros fundamentos tambm no se justifica uma atribuio exclusiva polcia judiciria da funo investigatria. Ilustra-se com o entendimento esposado no elucidativo julgado do recurso ordinrio em HC n. 13.728-SP de lavra do Min. Hamilton Carvalhido do Superior Tribunal de Justia, do qual se extrai o seguinte trecho:

    4. Diversamente do que se tem procurado sustentar, como resulta da letra do seu artigo 144, a Constituio da Repblica no fez da investigao criminal uma funo exclusiva da Polcia, restringindo-se, como se restringiu, to-somente a fazer exclusivo, sim, da Polcia Federal o exerccio da funo de polcia judiciria da Unio (pargrafo 1, inciso IV).

    Essa funo de polcia judiciria qual seja, a de auxiliar do Poder Judicirio , no se identifica com a funo investigatria, isto , a de apurar infraes penais, bem distinguidas no verbo constitucional, como exsurge, entre outras disposies, do preceituado no pargrafo 4 do artigo 144 da Constituio Federal, verbis:

  • 15

    ' 4 s polcias civis, dirigidas por delegados de polcia de carreira, incumbem, ressalvada a competncia da Unio, as funes de polcia judiciria e a apurao de infraes penais, exceto as militares.'

    Tal norma constitucional, por fim, define, certo, as funes das polcias civis, mas sem estabelecer qualquer clusula de exclusividade.

    5. O poder investigatrio que, pelo exposto, se deve reconhecer, por igual, prprio do Ministrio Pblico , luz da disciplina constitucional, certamente, da espcie excepcional, fundada na exigncia absoluta de demonstrado interesse pblico ou social.

    O exerccio desse poder investigatrio do Ministrio Pblico no , por bvio, estranho ao Direito, subordinando-se, falta de norma legal particular, no que couber, analogicamente, ao Cdigo de Processo Penal, sobretudo na perspectiva da proteo dos direitos fundamentais e da satisfao do interesse social, que, primeiro, impede a reproduo simultnea de investigaes; segundo, determina o ajuizamento tempestivo dos feitos inquisitoriais e, por ltimo, faz obrigatria oitiva do indiciado autor do crime e a observncia das normas legais relativas ao impedimento, suspeio, e prova e sua produo.

    6. De qualquer modo, no h confundir investigao criminal com os atos investigatrio-inquisitoriais complementares de que trata o artigo 47 do Cdigo de Processo Penal.

    7. 'A participao de membro do Ministrio Pblico na fase investigatria criminal no acarreta o seu impedimento ou suspeio para o oferecimento da denncia.' (Smula do STJ, Enunciado n 234)." (HC 24.493MG, da minha Relatoria, in DJ 17112003).

    2. Recurso improvido.

    No outra a concluso decorrente da interpretao do dispositivo constitucional seno a de que a exclusividade conferida polcia federal se d apenas em relao a outros rgos policiais24, e no em prejuzo dos demais mecanismos de apurao de infraes penais. Frise-se que no se pretende aqui restringir a interpretao constitucional tcnica gramatical, olvidando os mtodos mais festejados de otimizao dos preceitos superiores. Assim, nem

    24 Neste sentido conferir STRECK e FELDENS: Logicamente, ao referir-se

    exclusividade da polcia Federal para exercer funes de polcia judiciria da Unio, o que fez a Constituio foi, to-somente, delimitar as atribuies entre as diversas polcias (federal, rodoviria, ferroviria, civil e militar), razo pela qual reservou, para cada uma delas, um pargrafo dentro do mesmo art. 144. da porque, se alguma concluso de carter exclusivista pode-se retirar do dispositivo constitucional seria a de que no cabe Polcia Civil apurar infraes penais contra a ordem poltica e social ou em detrimento de bens, servios e interesses da Unio ou de suas entidades autrquicas e empresas pblicas (art. 144, 1, I), pois que, no espectro da polcia judiciria, tal atribuio est reservada Polcia Federal. Op. cit., p. 93.

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    mesmo a regra da exclusividade da polcia federal deve ser entendida de forma absoluta25.

    Ainda que se entenda que a separao entre as funes de polcia judiciria e de apurao de crimes decorra de censurvel tcnica legislativa o que parece ser correto e que a titularidade da primeira engloba a segunda, no se poderia concordar com a impossibilidade de qualquer outro rgo pblico exercer excepcionalmente atividades enquadradas na funo de polcia judiciria. Tanto verdade, que nem mesmo os resistentes mais empedernidos podem olvidar o que est disposto expressamente no Cdigo de Processo Penal, in verbis:

    Art. 4. A polcia judiciria ser exercida pelas autoridades policiais no territrio de suas respectivas circunscries e ter por fim a apurao das infraes penais e da sua autoria.

    Pargrafo nico. A competncia definida neste artigo no excluir a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma funo. (g. n.)

    Apenas por hiptese, ainda que o dispositivo conferisse literalmente polcia judiciria a exclusividade das investigaes criminais em quaisquer circunstncias, no feriria a harmonia da ordem constitucional a previso, explcita ou implcita, de outro rgo dotado de semelhante atribuio. A explicao simples, exigindo, apenas, compromisso com a concretizao da Constituio: - as normas constitucionais formam um sistema onde a dotao absoluta de sentidos cede passo a uma relativizao tributria da otimizao no quadro de inter-relao dinmica em que se encontram os rgos constitucionais, atravessados pelos valores, bens, interesses e objetivos (positivados) da sociedade plural.

    fato que o sistema textualmente formulado por legisladores e no por exmios tcnicos em redao jurdica, razo porque no de se estranhar que excees a prescries constitucionais apresentem-se em catlogos ou lugares normativos distintos, demandando sensibilidade e ateno do intrprete. Neste passo, no prudente afirmar que o sentido de determinada disposio isolada absoluto, ainda que nela sejam utilizados termos delicados como sempre,

    25 Lembra-se aqui os objetivos do Conselho Nacional de Segurana Pblica estabelecidos

    no Decreto 2.169 de 04 de maro de 1997:

    Art. 1 O Conselho Nacional de Segurana Pblica - CONASP, rgo colegiado de cooperao tcnica entre a Unio, os Estados e o Distrito Federal no combate criminalidade, com sede no Distrito Federal, subordinado diretamente ao Ministro da Justia, tem por finalidade:

    I - formular a Poltica Nacional de Segurana Pblica; (...)

    IV - desenvolver estudos e aes visando a aumentar a eficincia dos servios policiais e promover o intercmbio de experincias;

    V - estudar, analisar e sugerir alteraes na legislao pertinente;

    VI - promover a necessria integrao entre rgos de segurana pblica federais e estaduais. (g. n.)

  • 17

    nunca, privativo, exclusivo, etc. Exemplo disso a clara incumbncia exclusiva da ao penal pblica (art. 129, I)26 conferida ao Ministrio Pblico, pela Constituio Federal, e a previso constitucional da ao penal privada subsidiria da pblica (art. 5, LIX)27.

    Verdadeiramente, a Constituio Federal no conferiu polcia judiciria a exclusividade das investigaes criminais. Pode-se afirmar a exclusividade do inqurito policial, mas este no se apresente como o nico procedimento dirigido apurao de infraes penais.

    Neste sentido pronunciou-se a ilustre Ministra do Superior Tribunal de Justia Laurita Vaz no voto referente ao Recurso Ordinrio em HC n. 12.871-SP, de sua relatoria, julgado em 13 de abril de 2004:

    Verifica-se, pois, que a legitimidade do Ministrio Pblico para conduzir diligncias investigatrias decorre de expressa previso constitucional, oportunamente regulamentada pela Lei Complementar, mesmo porque proceder colheita de elementos de convico, a fim de elucidar a materialidade do crime e os indcios de autoria, um consectrio lgico da prpria funo do rgo ministerial de promover, com exclusividade, a ao penal pblica.

    Ademais, dispensvel dizer que a polcia judiciria no possui o monoplio da investigao criminal. De fato, o prprio Cdigo de Processo Penal claro ao dizer, no pargrafo nico do seu art. 4, que a competncia da polcia judiciria no exclui a de outras autoridades administrativas. Exemplos disso so as investigaes efetuadas pelas Comisses Parlamentares de Inqurito; o inqurito judicial presidido pelo juiz de direito da vara falimentar; o inqurito em caso de infrao penal cometida na sede ou dependncia do Supremo Tribunal Federal (RISTF, art. 43), entre inmeros outros.

    Por fim, cumpre ressaltar que, como se sabe, a atuao do Parquet no est adstrita existncia do inqurito policial, podendo este ser dispensado, na hiptese de j existirem elementos suficientes para embasar a propositura da ao penal. (g. n.)

    5. Autorizao constitucional: legitimidade do poder investigatrio do Ministrio Pblico

    de fazer o resumo da pera: - os argumentos contrrios investigao criminal preliminar providenciada pelo Ministrio Pblico convergem para a tese da ausncia de autorizao expressa na Constituio para tanto. Um olhar atento sobre as atribuies da instituio ministerial na Constituio exige enfrentar, no entanto, a clusula de abertura que dispe explicitamente que o Ministrio Pblico

    26 Art. 129. So funes institucionais do Ministrio Pblico: I promover, privativamente, a ao penal pblica, na forma da lei;

    27 Art. 5., LIX ser admitida ao privada nos crimes de ao pblica, se esta no for intentada no prazo legal;

  • 18

    poder exercer outras funes que lhe forem conferidas, desde que compatveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representao judicial e a consultoria jurdica de entidades pblicas.28

    Nem mesmo uma interpretao literal, histrica e restritiva das funes institucionais do Ministrio Pblico poderia, sem quedar em erro grosseiro, afirmar que as atribuies prescritas no art. 129 da Constituio Federal so taxativas. Claro que a clusula de abertura no ilimitada, seja do ponto de vista negativo (h restries quanto representao judicial e consultoria jurdica a entidades pblicas), seja do ponto de vista positivo (a funo que no est expressa deve ser adequada finalidade do Ministrio Pblico).

    Em decorrncia da disposio constitucional foi promulgada a Lei Complementar n. 75 de 1993 que dispe sobre as atribuies do Ministrio Pblico da Unio, contemplando expressa autorizao para a realizao de inspees e diligncias investigatrias29.

    A legitimao do poder investigatrio do Ministrio Pblico tem, portanto, sede constitucional e, no plano infraconstitucional, autoridade prpria de lei complementar. A Lei Complementar n. 75 de 1993 apenas conformou no plano infraconstitucional o que j podia ser deduzido a partir da acurada leitura da Constituio. A clusula de abertura opera um reforo na esfera de atribuies do Ministrio Pblico, que fica potencializado com a ao do legislador complementar.

    Em que pesem as mais singelas tcnicas de concretizao constitucional e a patente instrumentalidade do procedimento investigatrio para o exerccio da ao penal revelarem a constitucionalidade da legislao de regncia da matria,

    28 Artigo 129, inciso IX da Constituio Federal de 1988. 29 Art. 8 Para o exerccio de suas atribuies, o Ministrio Pblico da Unio poder, nos

    procedimentos de sua competncia:

    I - notificar testemunhas e requisitar sua conduo coercitiva, no caso de ausncia injustificada;

    II - requisitar informaes, exames, percias e documentos de autoridades da Administrao Pblica direta ou indireta;

    III - requisitar da Administrao Pblica servios temporrios de seus servidores e meios materiais necessrios para a realizao de atividades especficas;

    IV - requisitar informaes e documentos a entidades privadas;

    V - realizar inspees e diligncias investigatrias;

    VI - ter livre acesso a qualquer local pblico ou privado, respeitadas as normas constitucionais pertinentes inviolabilidade do domiclio;

    VII - expedir notificaes e intimaes necessrias aos procedimentos e inquritos que instaurar;

    VIII - ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de carter pblico ou relativo a servio de relevncia pblica;

    IX - requisitar o auxlio de fora policial.

  • 19

    importa demonstrar a compatibilidade da atividade com a finalidade do Ministrio Pblico. So os seguintes os preceitos constitucionais exigentes de ateno:

    Art. 127. O Ministrio Pblico instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individuais indisponveis.

    Art. 129. So funes institucionais do Ministrio Pblico:

    I - promover, privativamente, a ao penal pblica, na forma da lei;

    II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Pblicos e dos servios de relevncia pblica aos direitos assegurados nesta Constituio, promovendo as medidas necessrias a sua garantia;

    III - promover o inqurito civil e a ao civil pblica, para a proteo do patrimnio pblico e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

    IV - promover a ao de inconstitucionalidade ou representao para fins de interveno da Unio e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituio;

    V - defender judicialmente os direitos e interesses das populaes indgenas;

    VI - expedir notificaes nos procedimentos administrativos de sua competncia, requisitando informaes e documentos para instru-los, na forma da lei complementar respectiva;

    VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;

    VIII - requisitar diligncias investigatrias e a instaurao de inqurito policial, indicados os fundamentos jurdicos de suas manifestaes processuais;

    IX - exercer outras funes que lhe forem conferidas, desde que compatveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representao judicial e a consultoria jurdica de entidades pblicas.

    A atividade de investigao tem clara natureza preparatria para o juzo de pertinncia da ao penal, de modo que, sendo o Ministrio Pblico o titular da ao penal pblica, por ele providenciada a fim de formar sua convico de acordo com os elementos colhidos30. Sendo a investigao conduzida atravs de inqurito policial ou por outro meio, a finalidade a mesma, porm, o deslinde

    30 Se o MP o titular constitucional da ao penal pblica atividade fim -, obviamente

    deve ter ao seu alcance os meios necessrios para lograr com mais efetividade esse fim, de modo que a investigao preliminar, como atividade instrumental e de meio, dever estar ao seu mando. LOPES JR, Aury, op. cit., p. 264.

  • 20

    no, j que a qualidade da investigao determinante para a formao do juzo do titular da ao penal. Diante disso, parece lgico que, dispondo de meios apropriados e recursos adequados, a atuao do membro do Ministrio Pblico no deve ser, em todos os casos e circunstncias, limitada pela atuao da polcia judiciria. que o limite, em ltima instncia, pode significar o seqestro da possibilidade de propositura da ao penal. E nem se afirme que o controle externo da atividade policial seria suficiente para remediar a possibilidade. Necessria e acertadamente externo, o controle possui fronteiras. Pode implicar possibilidade de emergncia de censura eventual desdia, mas nunca soluo ao especfico caso que, diante da dificuldade de encaminhamento do inqurito, produziu reduzida possibilidade de xito na propositura da ao penal. Em semelhante hiptese, sequer a possibilidade de requisitar a instaurao de inqurito ou de diligncias investigatrias, no limite, pode se apresentar como soluo para o impasse, eis que o rgo ministerial, titular da ao penal, sem poder interferir diretamente na ao policial, no dispe de instrumentos, a no ser reflexos (controle externo), para garantir a qualidade das diligncias providenciadas em virtude de requisio. A autoridade policial tem, com o inqurito policial, meios para auxiliar o Parquet na promoo da ao penal, mas se, em virtude de hermenutica menos elaborada, lhe for atribuda a exclusividade da investigao preliminar criminal, ter tambm, e certamente, um meio para limitar sua funo, o que importa em risco (sendo, na sociedade de risco, ainda mais grave e incompreensvel) para o Estado Democrtico de Direito.

    O atendimento do requisito de compatibilidade com a finalidade institucional transparece, ento, j diante da primeira das funes do Ministrio Pblico prevista pela Constituio, qual seja, a promoo da ao penal de iniciativa pblica, com a qual estabelece clara vinculao31. A compatibilidade pode ser certificada, ademais, com a previso de atribuio expressa da funo investigatria ao Ministrio Pblico em diferentes diplomas normativos. Dentre as passagens encontrveis no ordenamento jurdico vigente, cite-se, entre outras, o preceituado no art. 201, VII, da Lei 8.069 de 1990 (Estatuto da Criana e do Adolescente)32 e art. 74, VI da Lei 10.741 de 2003 (Estatuto do Idoso)33 para instaurao de sindicncias, de natureza nitidamente criminal.

    31 Cf. LIMA, Marcellus Polastri, Ministrio Pblico e persecuo criminal, 3. ed., Rio de

    Janeiro: Lumen Juris, 2002; MAZZILI, Hugo Nigro, Regime Jurdico do Ministrio Pblico, 2 Ed., So Paulo: Saraiva, 1995; MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, 14. ed., So Paulo: Atlas, 2003; STRECK, Lenio Luiz; FELDENS, Luciano. Crime e Constituio: a legitimidade da funo investigatria do Ministrio Pblico. Rio de Janeiro: Forense, 2003; LOPES JR, Aury. Sistemas de investigao preliminar no processo penal, 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

    32 Art. 200. As funes do Ministrio Pblico previstas nesta Lei sero exercidas nos termos da respectiva lei orgnica.

    Art. 201. Compete ao Ministrio Pblico: (...)

    II - promover e acompanhar os procedimentos relativos s infraes atribudas a adolescentes; (...)

    VI - instaurar procedimentos administrativos e, para instru-los:

    a) expedir notificaes para colher depoimentos ou esclarecimentos e, em caso de no comparecimento injustificado, requisitar conduo coercitiva, inclusive pela polcia civil ou militar;

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    6. Investigao criminal, Ministrio Pblico e devido processo legal

    Um ltimo argumento merece ainda ser enfrentado. Trata-se da afirmao segundo a qual os procedimentos investigatrios levados a cabo pelo Ministrio Pblico so inconstitucionais porque ferem o princpio do devido processo legal e as garantias da decorrentes.

    Antes de mais nada preciso lembrar que o Constituinte conferiu aos membros do Ministrio Pblico a garantia da independncia funcional - similar dos juizes - no apenas para a atuao profissional livre de presses, mas tambm para que pudessem no acusar quando fundamento jurdico para tanto no existisse. Este aspecto da instituio ministerial representa garantia para o Estado e, principalmente, para os cidados.

    As garantias constitucionais no podem, nem devem, ser afastadas na investigao criminal realizada por membros do Ministrio Pblico tanto quanto na realizao do inqurito policial. Isso para se dizer o mnimo, j que, como sabido, o descrdito das instituies policiais (nem sempre justo, verdade!) tem pesado muito no juzo de justia do cidado comum, a ponto de conferir um plus de legitimidade ao procedimento realizado pelo Parquet34. Mas aqui, convm citar Lus Roberto Barroso35, segundo o qual as vicissitudes pelas quais passa a

    b) requisitar informaes, exames, percias e documentos de autoridades municipais,

    estaduais e federais, da administrao direta ou indireta, bem como promover inspees e diligncias investigatrias;

    c) requisitar informaes e documentos a particulares e instituies privadas;

    VII - instaurar sindicncias, requisitar diligncias investigatrias e determinar a instaurao de inqurito policial, para apurao de ilcitos ou infraes s normas de proteo infncia e juventude;

    33 Art. 74. Compete ao Ministrio Pblico: (...)

    V instaurar procedimento administrativo e, para instru-lo:

    a) expedir notificaes, colher depoimentos ou esclarecimentos e, em caso de no comparecimento injustificado da pessoa notificada, requisitar conduo coercitiva, inclusive pela Polcia Civil ou Militar;

    b) requisitar informaes, exames, percias e documentos de autoridades municipais, estaduais e federais, da administrao direta e indireta, bem como promover inspees e diligncias investigatrias;

    c) requisitar informaes e documentos particulares de instituies privadas;

    VI instaurar sindicncias, requisitar diligncias investigatrias e a instaurao de inqurito policial, para a apurao de ilcitos ou infraes s normas de proteo ao idoso;

    34 A confiana da comunidade na instituio ministerial verbalizada com a autoridade de Paulo Bonavides: Sem embargo de quantos obstculos lhe foram postos pelo Executivo ao legtimo exerccio de seu papel essencial conservao do sistema constitucional, a instituio vanguardista do combate corrupo cresceu, conforme j mostramos, na estima dos cidados, na opinio comum, na f pblica. Cresceu como nenhuma outra neste Pas. In: Os dois Ministrios Pblicos do Brasil: o da Constituio e o do Governo. Revista Latino-americana de estudos constitucionais, n. 1, jan./jun. 2003, p. 58.

    35 BARROSO, Lus Roberto. Investigao pelo Ministrio Pblico. Argumentos contrrios e a favor. A sntese possvel e necessria. Parecer disponvel na Internet em:

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    polcia devem ser tributadas menos s qualidades ostentadas pelos seus integrantes, e mais ao contexto no qual operam suas funes. Por isso, no demais imaginar que, eventualmente, um Ministrio Pblico transformado em polcia possa conduzir os seus membros a experimentarem semelhantes contingncias e demonstraes de fragilidade moral. No se fala, portanto, da qualidade intrnseca das instituies em tela ou dos seus membros, e mais do lugar, mais seguro ou mais suscetvel aos apelos da vantagem injustificvel, no qual necessariamente transitam durante o desenrolar de suas atividades. Aqui, sim, a real compreenso do problema robustece, ao contrrio de enfraquecer, a soluo defendida neste texto. Se a seduo real, e to real que as prprias foras armadas so reticentes quanto utilizao de seu corpo, no campo da segurana pblica, em vista dos riscos que tal atividade oferece integridade moral da tropa, melhor que as interferncias recprocas entre os rgos estatais, o intercruzamento de objetivos, a cooperao necessria, ajustem as condutas dos agentes pblicos e a atuao dos rgos, tudo com o fito de melhor facilitar a vida em sociedade e a proteo dos valores constitucionalmente tutelados. Sem se transformar em polcia, portanto, porque no disso que se trata, justificvel, luz de argumentos racionais deduzidos do texto constitucional, a ao investigatria do Ministrio Pblico, em particular nos casos especialssimos e mesmo naqueles nos quais, diante do material probatrio j colacionado, em face do encaminhamento por outros rgos pblicos ou de investigao de outra natureza que no criminal (v.g, improbidade administrativa ou matria ambiental ou vinculada ao direito do consumidor ou da criana e adolescente ou ao idoso, etc.) no se justifique a instaurao de inqurito policial, eis que singelas ou poucas, emboras complexas, diligncias complementares so suficientes para a formao da convico a propsito da necessidade ou no da propositura da ao penal.

    A possibilidade de desvirtuamento da competncia investigatria por membros do Ministrio Pblico e conseqente leso a direitos e garantias fundamentais no justifica a proscrio de seu exerccio pela simples razo de que falhas humanas podem acontecer e acontecem no ambiente de qualquer instituio. As distores devem ser prevenidas, corrigidas ou punidas no plano concreto, seja internamente atravs de instncias superiores ou fiscalizadoras, seja externamente atravs da atividade jurisdicional em cada caso. O excesso no manejo de competncias constitucionalmente assinaladas, expressamente ou no, um risco inerente ao exerccio das funes pblicas, cuja gravidade no justifica a irracionalidade do arranjo hermenutico limitado, perigoso e materializador do monoplio titularizado por determinado rgo. Ao contrrio, trata-se antes de, aceitando a interpretao mais condizente com os desafios projetados em nosso tempo e, por isso mesmo, ajustada com as dmarches por essa temporalidade requeridas, reclamar a satisfao dos direitos do homem no stio investigatrio. Neste ponto avulta a importncia dos Procuradores-Gerais, autoridades necessrias para, sem risco de quebra do princpio constitucional da independncia funcional, condensar os parmetros norteadores da atividade, tudo em prol da efetivao de outro princpio constitucional por vezes esquecido: - o

    . Acesso em: 23/08/2004.

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    determinante da unidade do Ministrio Pblico. A unidade, para alm do sentido clssico, neste novo momento constitucional, haver de significar tambm o delinear de parmetros mnimos necessrios para a ao ministerial, ao pautada, antes de tudo, pela obedincia aos cnones da legalidade e, tambm, da racionalidade controlvel e justificvel, tudo no contexto de uma coerncia consensual e coletivamente construda no mbito de cada carreira, a partir da provocao dos Procuradores-Gerais. A idia da independncia funcional no prescinde do sentido, das diretrizes necessrias para dotar a instituio de coerncia, ainda que consensualmente construda. O Ministrio Pblico haver de agir como orquestra e no como coletivo despido de organicidade no qual, sem regente, cada um toca a msica de sua predileo com o instrumento que bem entender. Avulta, igualmente, neste caso, o papel do legislador, que poder tambm, a partir da liberdade de conformao que lhe prpria, e comprometido com a integral realizao da Constituio, dispor sobre o assunto no momento mais oportuno. Fala-se, aqui, de meios para melhor definir os limites da investigao levada a termo pela autoridade ministerial, especialmente para ajust-los aos demais valores, regras e princpios dotados de dignidade constitucional. Est-se, aqui, todavia no campo das medidas cuja ausncia no importa, em absoluto, a supresso ou a paralisao da eficcia do conjugado normativo que, corretamente interpretado, confere ao Parquet atribuio de natureza investigatria.

    Afinal, a apurao das infraes penais, antes de constituir atribuio deste ou daquele rgo pblico, reveste-se da caracterstica inafastvel de matria de interesse coletivo que deve ser eficazmente concretizado. Isso reclama frentes de trabalho mltiplas e no a compresso, mediante este ou aquele artifcio doutrinrio, da importante atividade de combate criminalidade. Tal entendimento guarda consonncia com a diretiva constitucional da colaborao entre as entidades estatais, repise-se, razo a mais para no serem repelidas as diligncias investigatrias do Ministrio Pblico.

    Sabe-se que a investigao criminal preliminar deve servir como um filtro processual atravs do qual somente passaro para o plano jurdico-processual as condutas revestidas de evidente tipicidade. A eficcia desse filtro garantia para os cidados, que no tero contra si promovidas aes descabidas, e tambm para o sistema judicial, que no desperdiar recursos e esforo em processos natimortos. O bom funcionamento deste sistema requer amplo conhecimento, por parte dos encarregados da atividade investigatria, do ordenamento jurdico, especialmente dos princpios constitucionais, e sensibilidade quanto ao problema do abarrotamento dos rgos judiciais. Este mais um motivo para se creditar ao Ministrio Pblico a realizao direta e pontual de diligncias investigatrias.

    7. Concluso

    Confiar, em funo de uma operao hermenutica singela, o monoplio da investigao criminal preliminar a um nico rgo, no caso a polcia judiciria, equivale a colocar uma p de cal nos avanos que a cooperao e, em determinadas circunstncias, o compartilhamento de tarefas tem possibilitado. O pas tem avanado, ningum pode negar. A instituio ministerial tem acertado

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    mais do que errado. As eventuais falhas podem ser corrigidas pela ao concertada dos membros do Ministrio Pblico, ou em virtude da manifestao do legislador. O modelo, todavia, haver de ser preservado.

    A Constituio de 1988 desenha o novo Estado brasileiro a partir de um ntido perfil democrtico, desafiando, para o que aqui interessa, a correta compreenso das competncias conferidas aos rgos encarregados de sua defesa. Neste caso, o modelo adotado no mais o das atividades radicalmente apartadas, mas, antes, o da cooperao, o das interferncias, o da interpenetrao e, mesmo, em determinados casos, o do compartilhamento. Da leitura pertinente da Constituio vigente, operacionalizada por uma teoria constitucionalmente adequada ao nosso espao-tempo, infere-se, inegavelmente, a possibilidade, em hipteses justificadas, pontuais, e transparentes luz da razo pblica, das investigaes de natureza criminal, conduzidas pelo Ministrio Pblico. Afinal, o inqurito policial, este sim instrumento exclusivo da autoridade policial, no consome todas as hipteses de investigao. Trata-se, com efeito, de apenas uma delas, sendo certo que as investigaes, mesmo com repercusso criminal, podem ser desenvolvidas das mais variadas formas no contexto da normativa constitucional vigente. O direito compreendido como integridade haver de reconhecer o fato e dele extrair a inevitvel conseqncia: - sim, o Ministrio Pblico, autorizado pela Constituio Federal, pode, quando haja fundamento para tanto, conduzir investigaes criminais. A discusso que haver de ser travada, portanto, no envolve a possibilidade, mas, sim, os limites da atividade.

    Referncia Bibliogrfica deste Trabalho (ABNT: NBR-6023/2000): CLVE, Clmerson Merlin. Investigao Criminal e Ministrio Pblico. Revista Eletrnica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Pblico da Bahia, n. 1, janeiro, 2004. Disponvel na Internet: . Acesso em: xx de xxxxxxxx de xxxx Obs. Substituir x por dados da data de acesso ao site direitodoestado.com.br

    Publicao Impressa: Informao no disponvel.