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REDES DE COOPERAÇÃO NA AGRICULTURA FAMILIAR: POLÍTICAS PÚBLICAS E NOVAS DINÂMICAS DE DESENVOLVIMENTO RURAL NO LITORAL NORTE DO RIO GRANDE DO SUL - BRASIL Monique Medeiros Doutoranda em Agroecossistemas no Programa de Pós- Graduação em Agroecossistemas da Universidade Federal de Santa Catarina; Pesquisadora no Laboratório de Estudos da Multifuncionalidade Agrícola e do Território – LEMATE. [email protected] Ademir Antônio Cazella Professor e Pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Agroecossistemas da Universidade Federal de Santa Catarina; Coordenador do Laboratório de Estudos da Multifuncionalidade Agrícola e do Território – LEMATE (http://lemate.ufsc.br/equipe.html). [email protected] Resumo Este artigo analisa uma novidade emergente oriunda de situações que colocam frente a frente conhecimentos e práticas de mediadores sociais e de agricultores familiares, na construção de projetos para o desenvolvimento rural em alguns municípios do Litoral Norte do Rio Grande do Sul. À luz da abordagem conhecida como ‘Produção de Novidades’, a análise aponta que alguns agricultores familiares, apoiados por políticas públicas, executam ‘práticas desviantes’, que representam formas inovadoras nos processos agrícolas, na articulação entre atores, em sua relação com os mercados e na criação de novas organizações. Dessa forma, foi identificada a emergência de uma ‘novidade’, evidenciada pela construção de redes de cooperação no acesso ao mercado institucional e ao mercado local (feiras livres). A trajetória de emergência dessas redes de cooperação está relacionada à construção de novos e relevantes meios para a transformação de sistemas de produção e distribuição convencionais. A adoção dos preceitos da sustentabilidade, reciprocidade e valorização das especificidades territoriais representam os principais pilares dessa novidade. Em meio a limitações e superações, essas redes de cooperação que estão amplamente relacionadas com o compartilhamento de conhecimentos, territorialidade, heterogeneidade e dinamismo da ação social, parecem indicar uma alteração na dinâmica de desenvolvimento no espaço rural na região de estudo. 1 Palavras-chave: agricultura familiar; desenvolvimento rural; redes de cooperação; políticas públicas; produção de novidades. 1 Os autores agradecem a professora Flávia Charão Marques por suas valiosas contribuições nesse artigo.

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REDES DE COOPERAÇÃO NA AGRICULTURA FAMILIAR: POLÍTICAS

PÚBLICAS E NOVAS DINÂMICAS DE DESENVOLVIMENTO RURAL NO

LITORAL NORTE DO RIO GRANDE DO SUL - BRASIL

Monique Medeiros Doutoranda em Agroecossistemas no Programa de Pós-

Graduação em Agroecossistemas da Universidade Federal de Santa Catarina; Pesquisadora no Laboratório de Estudos da Multifuncionalidade Agrícola e do Território – LEMATE.

[email protected]

Ademir Antônio Cazella Professor e Pesquisador no Programa de Pós-Graduação em

Agroecossistemas da Universidade Federal de Santa Catarina; Coordenador do Laboratório de Estudos da Multifuncionalidade

Agrícola e do Território – LEMATE (http://lemate.ufsc.br/equipe.html). [email protected]

Resumo Este artigo analisa uma novidade emergente oriunda de situações que colocam frente a frente conhecimentos e práticas de mediadores sociais e de agricultores familiares, na construção de projetos para o desenvolvimento rural em alguns municípios do Litoral Norte do Rio Grande do Sul. À luz da abordagem conhecida como ‘Produção de Novidades’, a análise aponta que alguns agricultores familiares, apoiados por políticas públicas, executam ‘práticas desviantes’, que representam formas inovadoras nos processos agrícolas, na articulação entre atores, em sua relação com os mercados e na criação de novas organizações. Dessa forma, foi identificada a emergência de uma ‘novidade’, evidenciada pela construção de redes de cooperação no acesso ao mercado institucional e ao mercado local (feiras livres). A trajetória de emergência dessas redes de cooperação está relacionada à construção de novos e relevantes meios para a transformação de sistemas de produção e distribuição convencionais. A adoção dos preceitos da sustentabilidade, reciprocidade e valorização das especificidades territoriais representam os principais pilares dessa novidade. Em meio a limitações e superações, essas redes de cooperação que estão amplamente relacionadas com o compartilhamento de conhecimentos, territorialidade, heterogeneidade e dinamismo da ação social, parecem indicar uma alteração na dinâmica de desenvolvimento no espaço rural na região de estudo.1 Palavras-chave: agricultura familiar; desenvolvimento rural; redes de cooperação; políticas públicas; produção de novidades.

1 Os autores agradecem a professora Flávia Charão Marques por suas valiosas contribuições nesse artigo.

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PÚBLICAS E NOVAS DINÂMICAS DE DESENVOLVIMENTO RURAL NO

LITORAL NORTE DO RIO GRANDE DO SUL - BRASIL

Introdução

Os agricultores familiares incidem diretamente na configuração do espaço social

e material, provocando adaptações e transformações no rural que resultam em uma

gama de práticas e processos percebidos na heterogeneidade da agricultura dos dias

atuais e, ainda, nas mais variadas formas e faces do desenvolvimento rural. O cotidiano

de trabalho que propicia “situações de interface”2 entre técnicos e agricultores provoca o

estabelecimento de processos de negociações e adaptações de significados, gerando

conhecimentos diferenciados, resultantes de acomodações entre os diferentes ‘mundos’

dos atores sociais3 envolvidos. Este encontro envolve a fusão de dessemelhantes

horizontes e proporciona condições para a criação conjunta de conhecimentos, além da

interpenetração social e dos projetos de agricultores e mediadores sociais.

Ao considerar a riqueza e dinamismo destes processos, observa-se um cenário

onde estão imersas constantes transformações do espaço rural e das práticas nele

desenvolvidas. Neste cenário, é que são abertos espaços e condições sociais e técnicas

favoráveis ao processo que se compreende como “Produção de Novidades”4 na

agricultura. Este é um termo-chave proposto a partir da necessidade de particularizar ou

evidenciar fenômenos inovadores em curso nos espaços rurais, que pode ser entendido

como uma modificação ou uma quebra em rotinas existentes, assim como, pode

consistir em uma nova prática ou modo de fazer, presumivelmente com potencial para

promover melhorias nas rotinas existentes (PLOEG et al., 2004).

2 As situações de interface são definidas como pontos críticos de intersecção entre diferentes sistemas, campos ou domínios sociais, nos quais tendem a se encontrar descontinuidades segundo diferenças de valores e interesses (LONG e PLOEG, 1989). 3 Aqui o sentido atribuído a ‘atores sociais’ refere-se a individuo, ou, coletivo de indivíduos que possuem habilidades para resolver seus problemas, aprender a intervir nos fluxos de eventos sociais, observar a reação dos outros e supervisionar suas próprias ações. Dessa maneira, os atores sociais não são vistos meramente como categorias sociais, ou, recipientes passivos de intervenção, mas sim como participantes ativos que processam informações e utilizam estratégias nas suas relações com vários atores locais, assim como com instituições e pessoas externas (LONG e PLOEG, 1994). 4 Originalmente, em inglês, denominado Novelty Production.

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Tendo claro que o surgimento de novidades é, na agricultura, um processo

localizado, dependente das condições naturais e dos repertórios culturais associados, no

qual a organização do trabalho está envolvida (PLOEG et al., 2004), este artigo busca

compreender como agricultores familiares do Litoral Norte do Rio Grande do Sul,

através do conhecimento e acesso a políticas públicas dirigidas à superação de

desequilíbrios socioeconômicos e ecológicos, têm construído uma dinâmica

diferenciada de desenvolvimento rural na região. As reflexões que direcionam este

trabalho basearam-se em informações obtidas durante o desempenho de um dos autores

de sua função como extensionista rural na Associação Riograndense de

Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural/Associação Sulina de

Crédito e Assistência Rural (EMATER/ASCAR – RS), mais precisamente, no

município de Três Forquilhas5. Essas informações foram geradas, entre agosto de 2011

e agosto de 2013, por meio de ferramentas metodológicas essencialmente qualitativas

como: pesquisa documental e fotografias, e, observação participante e entrevistas

abertas e semi-estruturadas com agricultores familiares e distintos grupos de atores

sociais envolvidos com a agricultura familiar nos municípios de Três Forquilhas, Terra

de Areia, Itati, Osório, Maquiné e Dom Pedro de Alcântara, localizados no Litoral Norte

do Rio Grande do Sul (Figura 1).

5 Apesar de algumas ações atribuídas à função de extensionista rural serem localizadas e demandarem a atenção profissional para a escala municipal, outras ações, principalmente aquelas relacionadas ao incentivo à construção de dispositivos coletivos na agricultura familiar, são empreendidas regionalmente, abrangendo o Litoral Norte do Rio Grande do Sul.

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Figura 1. Localização da região do Litoral Norte do Rio Grande do Sul com destaque para os municípios de origem dos agricultores familiares envolvidos na pesquisa. Adaptada do site: http://www1.seplag.rs.gov.br/atlas. Consultado em: 12 de fev. de 2014.

Dessa forma foi possível acompanhar cerca de 100 famílias de agricultores em

atividades cotidianas, como o trabalho nas feiras livres, os encontros e reuniões entre

agricultores, as atividades nas lavouras, na produção agroindustrial, e em sua relação

com diversos mediadores sociais atuantes na região.

O artigo está dividido em quatro seções principais, além desta introdução: na

primeira realiza-se uma breve contextualização do Litoral Norte do Rio Grande do Sul,

com foco à agricultura familiar local; na segunda é apresentada uma discussão acerca da

perspectiva sobre ‘novidades’ e como ela se relaciona com a realidade analisada; na

terceira o enfoque é direcionado ao relato das experiências dos agricultores familiares

da região na construção de redes de cooperação e no acesso a políticas públicas

dirigidas à superação de desequilíbrios socioeconômicos e ecológicos; na quarta, são

evidenciadas as novas oportunidades que estão se deflagrando aos agricultores,

resultantes do processo de construção das redes de cooperação; na quinta e última seção

são trazidas algumas considerações sobre a importância das redes de cooperação na

construção de dinâmicas inovadoras de desenvolvimento rural da região.

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Litoral Norte do Rio Grande do Sul: qual agricultura familiar?

A região do litoral norte do estado do Rio Grande do Sul é composta por 20

municípios com área de 5.136.723 km² e população de 284.046 habitantes (IBGE,

2010). A população atual é resultante, inicialmente, do povoamento indígena, da

colonização açoriana, portuguesa e africana, ocorridas no século XVIII, e,

posteriormente, no século XIX, alemã, italiana, polonesa e japonesa. Usufruindo das

diferenças de relevo e microclima, os colonos realizaram na meia encosta do Litoral

Norte, após o corte e queima da mata, uma agricultura baseada principalmente na

produção de cachaça, rapadura, farinha de mandioca, dormentes para construção de

ferrovias, feijão e milho (COTRIM et al., 2007).

No final da década de 1950, com a construção da rodovia BR-101 e a

consequente retirada dos excedentes agrícolas do litoral via terrestre, substituindo a via

lacustre, a agilidade de deslocamento de pessoas e produtos transforma a dinâmica da

região. Dessa maneira, o Litoral Norte passou por um processo de expansão de suas

atividades econômicas, mas como consequência desse panorama, passou também por

uma intensificação de desmatamento, tendo em vista o tipo de agricultura praticada

pelos agricultores pautada na queimada e no cultivo fundamentalmente de milho, feijão,

cana-de-açúcar e mandioca. Assim, a região enfrentou, já no final dos anos 1950, certos

acontecimentos que auxiliaram a modificar por completo o padrão produtivo existente e,

como consequência, a vida dos seus habitantes, em especial das famílias de agricultores.

Esses acontecimentos estão intrinsecamente relacionados à introdução do modelo de

modernização, com a difusão do chamado pacote tecnológico de modernização da

agricultura (mecanização, quimificação, adubação, sementes, irrigação etc.). Pode-se

dizer que esse processo teve início primeiramente com a introdução e adoção pelos

agricultores de alguns cultivos específicos, até então praticamente inexistentes, e que

acabaram se sobressaindo, como o fumo, as olerícolas e a banana tipo prata (COTRIM

et al., 2007).

Com a modernização, determinados segmentos sociais da agricultura familiar,

em especial os que possuem diminutas áreas de terra, por vezes sem título de

propriedade, e cuja característica principal é a relação indissociável entre família, terra e

trabalho (WANDERLEY, 2001), passam a ter maiores dificuldades para a sua

reprodução social neste espaço devido às novas relações sociais de trabalho e de

produção.

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Atualmente, verifica-se que há uma forte especialização da agricultura,

principalmente nas áreas de várzeas dos vales e nas planícies, desenvolvida por alguns

agricultores com maior disponibilidade de áreas planas e, consequentemente,

favorecidos por um maior grau de acumulação de capital. Visto que apenas uma

pequena parcela dos agricultores possui grande quantidade de áreas planas disponíveis

nas suas unidades produtivas, a maioria dos agricultores teve que continuar a plantar nas

encostas, porém com rendimentos e tecnologias bem inferiores, se comparados às áreas

de várzea (COTRIM et al., 2007).

As dificuldades encontradas por alguns agricultores, geradas por esse processo

de modernização que na região de estudo se intensificou, principalmente, entre os anos

1960 e 1990, excluiu boa parte da população local, formada por agricultores familiares e

comunidades locais (indígenas e afrodescendentes), que abandonou a região em busca

de oportunidades de trabalho. Como grande parte da região é ocupada por florestas de

Mata Atlântica, no início da década de 1990, quando foi crescente a implantação das

leis de preservação ambiental e a intensificação de seu controle pelos órgãos de

fiscalização, aqueles agricultores que cultivavam nas encostas passaram a enfrentar

dificuldades ao terem suas práticas agropecuárias restringidas pela legislação ambiental

(LUZ, 2012; COTRIM et al., 2007).

Em contrapartida, é exatamente dentro dessa conjuntura que se começa a

evidenciar um rico mosaico cultural e produtivo, onde prevalece uma agricultura

familiar, caracterizada pela produção de alimentos em sistemas diversificados (inclusive

o de base ecológica, uma possibilidade de continuar produzindo, respeitando as

restrições da legislação ambiental vigente), cuja renda é constituída principalmente pela

prática de uma agricultura com o uso de tecnologias autóctones e introduzidas, voltada à

comercialização de produtos, excedentes do autoconsumo, em mercados de cadeia

curta, por aposentadorias rurais e, em alguns casos, pelo programa bolsa família6.

Esses agricultores familiares, embora tenham capacidade de resistência e

adaptação aos novos contextos econômicos e sociais, não estão despidos de seus traços

camponeses. Para eles a família exerce um papel preponderante como estrutura

fundamental de organização da reprodução social, através da formulação de estratégias

6 Programa de transferência direta de renda que beneficia famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo o país. Tem como focos de atuação brasileiros com renda familiar per capita inferior a R$ 70 mensais (BRASIL, 2013).

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familiares e individuais que remetem diretamente à transmissão do patrimônio material

e cultural e à transmissão da exploração agrícola (WANDERLEI, 2001).

Em um processo dinâmico entre o resgate de tradições e a busca por superações

de novos desafios, como a dificuldade de sua inserção socioeconômica nos mercados,

esses agricultores, alicerçados em políticas públicas como o Programa de Aquisição de

Alimentos (PAA)7 e o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE)8, vêm

desenvolvendo distintas modificações em suas rotinas e construindo redes de

cooperação, compreendidas como uma ‘novidade’ na região.

Conhecendo a novidade: a dinâmica de sua emergência

Uma novidade é definida como uma maneira diferente de pensar, que incorpora

novas ideias, artefatos e/ou combinação de recursos, de procedimentos tecnológicos e

de diferentes campos do conhecimento. Envolve constelações específicas de fatores que,

presumivelmente, podem funcionar de maneira melhor como, por exemplo, um

processo de produção, uma rede, combinação de diferentes atividades, etc.

(OOSTINDIE e BROEKHUIZEN, 2008).

As novidades, frequentemente, não são compreendidas totalmente, pois são

desvios às regras que vão além das regularidades existentes, explicadas e aceitas. Por

esse motivo, uma novidade não pode ser facilmente transportada de seu contexto de

emergência para outros. Dessa maneira, vale ressaltar que, embora as novidades sejam

processos inovadores, elas diferem fundamentalmente das chamadas ‘inovações’ em seu

sentido normativo. Oostindie e Broekhuizen (2008) enfatizam que uma novidade está

associada ao conhecimento local e, por isso, é altamente vinculada a um determinado

contexto. Ao contrário, a ‘inovação’, que tem sido utilizada para designar algo novo

como expressão do conhecimento científico, é construída primeiramente em um mundo

7 Programa implementado pelo governo federal em 2004, através do qual parte dos alimentos é adquirida pelo governo diretamente dos agricultores familiares, assentados da reforma agrária, comunidades indígenas e demais povos e comunidades tradicionais, para a formação de estoques estratégicos e distribuição à população em maior vulnerabilidade social (BRASIL, 2011). 8 O Programa, implementado pelo governo federal em 2009, segue a Lei nº 11.947/2009 que determina a utilização de, no mínimo, 30% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para alimentação escolar, na compra de produtos da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando os assentamentos de reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas (FNDE, 2011).

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externo ao da produção, e o conhecimento incorporado aos artefatos e/ou processos

intrínsecos a ela podem ser transpostos de um local para outro.

O termo-chave ‘Emergência de Novidades’ é derivado de uma rica tradição de

estudos dedicados à compreensão das mudanças tecnológicas (PLOEG et al., 2004)

amparados pela Perspectiva Multinível9 (PMN). De acordo com Geels e Schot (2007),

trata-se de um modelo multidimensional de agência, que assume que os atores têm

interesses próprios, agem estrategicamente, mas são limitados pelo tempo e por distintos

tipos de regras (regulamentadoras, normativas e cognitivas), sejam elas partilhadas ou

não com os demais atores. Essas ações e estratégias são direcionadas por um

conhecimento gerado pelo acúmulo de habilidades e capacidades tecnológicas ao longo

de situações dinâmicas na linha do tempo.

Além da associação ao conhecimento local, a emergência de novidades está

relacionada à coprodução, a qual é entendida como a reconexão da sociedade, através

do desenvolvimento da agricultura, com a natureza, da interação e transformação

recíproca do social e do natural. As trajetórias associadas à emergência de novidades

podem ser consideradas como parte inerente a outros processos na agricultura familiar,

uma vez que também se referem à busca desses agricultores por autonomia que tem

como objetivo e materializa-se na criação e no desenvolvimento de uma base de

recursos auto-gerida, envolvendo tanto recursos sociais como naturais (PLOEG et al.,

2004).

O desenvolvimento agrícola não está desvinculado de distintos processos de

inovação e escolhas tecnológicas em nível local, que se acumulam de tal forma que

acabam por constituir-se como transformações tecnológicas em nível social mais geral.

Uma série de inter-relações recíprocas entre distintos níveis de ação social caracterizam

transições sociotécnicas, que acabam por transformar os regimes tecnológicos

gradativamente. Eles evoluem pela ação e estratégia de muitos e diferentes atores.

Assim, ao desenvolverem práticas e técnicas ou criarem redes que facilitam fluxos de

materiais e de conhecimento, atores sociais traçam mudanças para o desenvolvimento

rural (MARQUES, 2009).

A partir desse nível é que são percebidos ‘desvios’ construídos ao longo da

trajetória de algumas famílias de agricultores familiares da região de estudo. Na

contramão do processo modernizante da agricultura, uma parcela dos agricultores

9 Para uma discussão mais detalhada, onde são expostos elementos teórico-conceituais sobre a Perspectiva Multinível (PMN), consultar Marques (2008).

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familiares que vivem nos municípios analisados, em conjunto com mediadores sociais

de diferentes instituições atuantes nessa região, está reagindo criativamente aos desafios

aos quais se deparam e construindo, sobretudo coletivamente, uma novidade: as redes

de cooperação, as quais se referem a um “conjunto entramado de processos

organizativos” (ROVER, 2011:60), ligados à agricultura familiar, colocados em marcha

por agricultores individuais ou organizados coletivamente em cooperativas,

agroindústrias familiares, associações, grupos informais, Organizações Não-

Governamentais (ONG’s), instituições que trabalham com assistência técnica e extensão

rural, instituições de pesquisa, dentre outras. Essas redes, que foram criadas a partir da

necessidade de melhoria de condições de inserção socioeconômica dos agricultores

familiares nos mercados, atualmente estão propiciando nessa região o estabelecimento

de vínculos, fundamentalmente geradores de fluxos de conhecimento, informação e

aprendizagem, que promovem a transposição das fronteiras das unidades de produção e

da ação individual dos agricultores e de outros atores envolvidos.

A construção de redes de cooperação e o acesso a políticas públicas

A inter-relação entre os agricultores e distintos mediadores sociais é constituída

por uma série de vínculos sociais e de fluxos de conhecimento em torno da produção.

Dessa maneira, as mudanças tecnológicas englobam não somente modificações nos

padrões de produção, como também modificações nas dinâmicas sociais, nas formas

com que os agricultores reagem e adaptam-se às mudanças tecnológicas e em que

medida estas forças reconfiguram as relações locais (SABOURIN, 2009).

Ao analisarmos as transformações sociais e técnicas e a formação de redes de

cooperação que envolvem alguns municípios do Litoral Norte, podemos compreender

que essas transformações possuem como vínculos, além dos aspectos sociais e técnicos,

os aspectos econômicos, ambientais e cognitivos, criados a partir de grandes esforços

em modificar situações complexas e adversas pelas quais os agricultores familiares

enfrentam no campo.

Sendo a região tradicional produtora de hortaliças e frutíferas, como a banana e

o abacaxi, a oportunidade de comercialização para os produtos da agricultura familiar se

restringia a Central de Abastecimento do Rio Grande do Sul (CEASA/RS), de Porto

Alegre e às cidades da região litorânea no verão; A comercialização para a CEASA

dependia de muitos atravessadores que transportavam os produtos dos municípios do

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litoral até Porto Alegre, e angariavam maior parte do dinheiro conseguido com as

vendas; Já a venda no litoral, era centralizada em uma única época do ano, pois

dependia do consumo dos veranistas. Frente a esses entraves, um grupo de agricultores

familiares dos municípios de Itati, Terra de Areia e Três Forquilhas, assistidos pelos

escritórios da EMATER/ASCAR - RS (Associação Riograndense de Empreendimentos

de Assistência Técnica e Extensão Rural) desses municípios, através de um trabalho

árduo, criou, com sede em Itati, uma organização destinada a viabilizar o acesso a

diferentes mercados de comercialização para a grande parte dos produtos oriundos de

suas unidades de produção. Dessa forma, em setembro de 2006 foi inaugurada a

Cooperativa de Agricultores Familiares de Itati, Terra de Areia e Três Forquilhas

(COOMAFITT), em resposta à necessidade dos agricultores familiares, de terem uma

entidade que lhes representasse frente aos mercados e os auxiliasse na organização e

planejamento da produção.

A organização desses agricultores, bem como sua interação com a assistência

técnica local, os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs) atuantes na região e as

prefeituras locais, abriram portas para acessos ampliados a outras formas de

comercialização para seus produtos. No início de 2008 a COOMAFITT conseguiu

integrar-se ao PAA e em 2010 no PNAE. O mais relevante é que estas vias de

comercialização, em especial o PNAE, constituíram-se nos mais importantes mercados

consumidores para a venda da produção das famílias cooperadas, que hoje totalizam

aproximadamente 130 distribuídas nos três municípios.

Vale salientar que a abrangência dessas iniciativas passa pela mediação de

diversificados atores que atuam como animadores e facilitadores de processos de

construção de desenvolvimento rural. A importância desse fato está em refletir sobre as

mudanças pelas quais essa mediação, neste caso em específico, realizada por

organizações de assistência técnica, STRs, ou através de secretarias relacionadas às

prefeituras municipais, tem passado e no que essas implicam à agricultura familiar.

Questionamentos de paradigmas, conhecimentos e valores que fundamentam a própria

cultura organizacional das instituições diretamente voltadas ao trabalho com a

agricultura familiar, fazem parte desse processo de modificação. Tais transformações

conduzem essa mediação a um rompimento com um modelo pautado na difusão dos

tradicionais pacotes originários da “Revolução Verde” (STROPASOLAS, 2008), e à

ampliação de espaços para discussão, disseminação e abrangência das práticas e

conhecimentos de potencial inovador.

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Na realidade que envolve esse grupo de atores sociais do Litoral Norte, essa

mediação inicial facilitou com que a Cooperativa entrasse em contato com outras

organizações de agricultores familiares a fim de viabilizar a distribuição de seus

produtos nos distintos pontos de entregas. Com isso, através de parcerias,

especialmente, com a Cooperativa de Consumo e Comercialização dos Pequenos

Produtores Rurais do Litoral Norte (COOPVIVA), com sede no município de Osório, e

com a Cooperativa dos Citricultores Ecológicos do Vale do Caí (ECOCITRUS), com

sede no município de Montenegro, a COOMAFITT foi construindo pouco a pouco

relações que se estendiam para além dos objetivos de sanar seus problemas logísticos. O

contato entre essas organizações favoreceu a construção de laços entre os sócios das

distintas cooperativas o que fez suscitar o intuito de se realizar reuniões e visitas

técnicas entre eles. A troca de informações técnicas, administrativas e a construção de

laços de confiança propiciados por estes momentos fizeram com que a COOMAFITT

compreendesse a importância de estar aliada a mais parceiros vinculados com o

fortalecimento da agricultura familiar; Assim, as Organizações Não Governamentais

(ONGs) Associação Nascente Maquiné (ANAMA) e Centro Ecológico - Dom Pedro de

Alcântara, de distintas formas, também se conectaram à Cooperativa.

A evidência do trabalho coletivo despertou a atenção de pesquisadores, em

especial da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que possuíam vínculos com as

ONGs agora parceiras da Cooperativa. Isso levou os pesquisadores a procurar entender

de forma mais aprofundada as características socioculturais, econômicas e ambientais

da região, o que resultou na aproximação de grupos de estudo à realidade local, e

consequentemente, no desenvolvimento de pesquisas úteis à reflexão sobre os

problemas reais da região e indicações de possíveis pistas rumo a melhorias na região.

As formas de organização e processos inovadores como estes mencionados,

embora enraizados em mundos, processos de produção e trabalho locais e de

conhecimento local e socialização de aprendizagens, se encontram entrelaçadas com o

regime sociotécnico dominante. Isto significa ser necessário criar ‘espaços de manobra’

para se adaptar às condições na busca de transformá-lo. A densidade dessas novidades

é que possibilitarão ‘transições’ que de fato possam se efetivar em mudanças nos

regimes e paradigmas dominantes (MIOR et al., 2013). No Litoral Norte essa

interelação de saberes proporcionou aos 130 sócios da COOMAFITT, hoje, atender a

demanda de dois municípios da região através do PAA, Terra de Areia e Capão da

Canoa, e quatorze municípios por meio do PNAE. E aos 60 sócios da COOPVIVA,

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distribuídos entre os municípios de Osório, Maquiné, Caraá, Rolante, Santo Antônio da

Patrulha e Terra de Areia, a fornecer produtos para o PNAE em nove municípios. Essas

ações beneficiam mais de 45 mil pessoas através dos projetos de PAA e em torno de

200 mil no PNAE.

Como verificado, o reconhecimento público das iniciativas de gestão ou de

produção de bens comuns pelos grupos de agricultores abre novas perspectivas. Com

ele é possível fundar, a partir de práticas locais, mecanismos de construção conjunta,

entre ação coletiva local e poder público, de instrumentos de políticas públicas. Os

apoios públicos podem produzir um efeito alavanca sobre as dinâmicas locais, graças à

concentração dos esforços e dos recursos que fortalecem a constituição, o

funcionamento inicial e a institucionalização das dinâmicas locais ou de suas estruturas

portadoras, fazendo com que novas conexões e redes sociais sejam constituídas

(SABOURIN, 2009).

Os resultados favoráveis do acesso a essas políticas públicas estimularam os

agricultores a irem cada vez mais além. Com os laços construídos, em especial com a

ECOCITRUS, visto que essa possui somente agricultores ecologistas como sócios, a

ideia de produzir alimentos de base ecológica e comercializá-los, através da

COOMAFITT, ganhou um grande impulso entre os agricultores associados.

Como já existia, desde 2010, um grupo informal que reunia em torno de seis

famílias de agricultores ecologistas espalhadas pelos municípios de Osório, Maquiné,

Terra de Areia, Três Forquilhas e Itati, a COOMAFITT decidiu apoiar e auxiliar esse

grupo na busca por novos componentes e também na formalização deste. Dessa

maneira, aliada aos escritórios municipais da EMATER desses municípios, a

Cooperativa investiu em dias de campo, reuniões e visitas técnicas com seus sócios,

trabalho de educação ambiental em escolas da região, e, como forma de divulgação, a

participação em seminários, feiras expositivas e eventos regionais; todas essas

atividades explicando a importância, e, colocando em prática uma agricultura

diferenciada, com mais respeito ao ambiente, ao conhecimento local, e que ainda assim

que pudesse gerar renda aos agricultores familiares.

O grupo de agricultores ecologistas cresceu e envolveu agricultores, técnicos e

consumidores em sua transformação, primeiro em uma associação e posteriormente no

“OPAC Litoral Norte”, um Organismo Participativo de Avaliação da Conformidade

(OPAC), que é credenciado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento

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(MAPA) e possui a autonomia, guiada pela Lei dos Orgânicos10, de certificar como

orgânica a produção do grupo. No segundo ano de existência do grupo, com o apoio de

mais um escritório municipal da EMATER, Dom Pedro de Alcântara, mais famílias se a

ele, e este conta atualmente com o envolvimento de, aproximadamente, vinte e cinco

famílias.

É interessante mencionar que três famílias desse grupo, no início dos trabalhos

em conjunto, em 2010, já haviam iniciado os processos de certificação de sua produção

através de um outro OPAC atuante na região, a Rede Ecovida11, mas ainda assim, por

acreditarem nos ideias e proximidade do grupo e pelos vínculos de reciprocidade que

firmaram com os agricultores, decidiram acompanhar e auxiliar este grupo. De acordo

com MIOR et al. (2013) esses laços de reciprocidade que são historicamente

construídos pelos atores sociais na constituição de grupos, é um processo social esse

que contribui decisivamente para a formação dessas redes de cooperação. E de fato,

essa decisão dos agricultores foi significativamente importante ao grupo todo, visto que

por eles, por já fazerem parte de um OPAC formalizado e em funcionamento há alguns

anos, já conheciam os processos pelos quais o grupo deveria passar para seu

desenvolvimento. Esse contato entre as organizações se mostrou tão promissor que o

presidente do OPAC Litoral Norte, no ano de 2013, se tornou também vice-presidente

da COOMAFITT; hoje, aproximadamente, metade das famílias que constituem o OPAC

é associada à Cooperativa.

O OPAC, atualmente, trabalha para ter seus primeiros membros certificados

participativamente ainda neste ano de 2014 e para que possa, dentro em breve, fornecer

produtos orgânicos à alimentação escolar através da COOMAFITT. Vale ressaltar que

as duas famílias que já possuíam certificação orgânica de seus produtos hoje estão

vinculadas à Cooperativa e fornecem seus produtos certificados ao mercado

institucional.

Essas relações transpuseram ainda mais fronteiras; Com as vendas para o

mercado institucional, a COOMAFITT começou a estabelecer contatos diretos com

nutricionistas e diretores de escolas nos municípios onde fazia suas entregas. Essa 10 Lei Federal 10.831; No artigo 2º da lei apresenta-se como certificação orgânica o ato pelo qual um organismo de avaliação da conformidade credenciado dá garantia por escrito de que uma produção ou um processo claramente identificado foi metodicamente avaliado e está em conformidade com as normas de produção orgânica vigentes (BRASIL, 2007). 11 Essa Rede surgiu no fim dos anos 1990 e atualmente, abrange os estados de Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul e é formada por núcleos regionais. São atualmente 21 núcleos que reúnem em torno de 170 municípios.

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proximidade possibilitou a Cooperativa não somente entender a demanda de alimentos

solicitada pelas escolas, como também a oferecer novos produtos a nutricionistas e

diretores para compor a alimentação escolar.

E foi assim que vendo a possibilidade da inclusão de panificados nesse mercado,

a Cooperativa expandiu a rede de cooperação realizando uma parceria com a

Associação de Mulheres Agricultoras para o Desenvolvimento Comunitário de Três

Forquilhas (AMADECOM), um grupo, com sede no município de Três Forquilhas, que

trabalha conjuntamente em uma agroindústria familiar produzindo panificados e polpa

de frutas nativas. As agricultoras da AMADECOM se associaram à Cooperativa e em

2012 as primeiras entregas de pães começaram a ser feitas pela região e, mais tarde,

essas entregas chegaram às escolas de Porto Alegre; os pães elaborados com mandioca,

abóbora e polpa de juçara12 conquistaram espaço e a preferência, principalmente, das

nutricionistas envolvidas com a elaboração dos cardápios das escolas. Além dos pães, a

COOMAFITT, através do contato com outras agroindústrias familiares, conseguiu

acrescentar à suas entregas para a alimentação escolar produtos bastante atrelados às

especificidades locais da região como o melado, o açúcar mascavo e a mandioca

descascada e congelada, beneficiando assim mais famílias de agricultores familiares e

diversos alunos das escolas que, consequentemente, se alimentam com produtos mais

saudáveis.

Com essas redes de cooperação ativas, foi através de um projeto delineado pela

Prefeitura do município de Capão da Canoa que a COOMAFITT, em parceria com a

EMATER, auxiliou no desenvolvimento da Feira “Prove Capão” uma feira livre no

município de Capão da Canoa, espaço destinado à comercialização de produtos

originados da agricultura familiar. Dessa maneira, além do mercado institucional, outra

porta se abriu aos agricultores: o mercado de cadeia curta.

Essa feira de Capão da Canoa progrediu e os agricultores viram que a renda

obtida nesse mercado também era significativa. Esses agricultores, sócios da

COOMAFITT e que também faziam parte do OPAC, se uniram à EMATER e, com

apoio do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA), hoje

12 A palmeira Juçara (Euterpe edulis – Arecaceae) é uma espécie original da Mata Atlântica, que ocorre desde o estado do Rio Grande do Sul até a Bahia. Além do palmito extraído do interior do pecíolo de suas folhas, produz grande quantidade de frutos que quando amadurecem, tem sua polpa utilizada para elaboração de variados pratos, desde sucos e sorvetes até pães, pastas e molhos.

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desenvolvem um projeto de feira de agricultores ecológicos a ser inaugurada ainda este

ano no município de Porto Alegre.

Como se visualiza, é possível compreender que o acesso ao PAA e ao PNAE

viabilizou a estruturação dessas redes de cooperação que consequentemente propiciaram

uma nova dinâmica de desenvolvimento rural na região. A evolução da experiência da

COOMAFITT influenciou para que as redes se desafiassem a ampliar e diversificar sua

produção em nível das unidades produtivas, a incorporar novas famílias de produtores e

a construir novas parcerias envolvendo extensionistas rurais, pesquisadores de

universidades, técnicos de ONGs, e agentes políticos de governos municipais, estadual e

federal.

Os fundamentos dessas redes de cooperação se assentam não somente em

aspectos econômicos, mas também nas dimensões sociais, políticas e do ambiente

institucional, para os quais os atores sociais ocuparam papel de destaque na

transformação em andamento. A sua capacidade de agência permitiu a busca de novas

formas de acesso aos mercados, de novos processos produtivos e organizacionais e de

influenciar na definição de institucionalidades alternativas (MIOR et al., 2013), o que

faz dessas redes de cooperação uma novidade em emergência.

Entre diversas trajetórias e a riqueza de relações, se estabelecem múltiplas

transformações

Através das redes de cooperação ativas, no final de 2011, a COOMAFITT foi

convidada pela Prefeitura do município de Capão da Canoa para, com a assistência

técnica da EMATER, auxiliar no processo de planejamento e desenvolvimento da Feira

“Prove Capão”, uma feira livre permanente destinada à comercialização de produtos da

agricultura familiar. Dessa maneira, além do mercado institucional, outra porta se abriu

aos agricultores: o mercado de cadeia curta.

A Feira “Prove Capão” surgiu a partir de uma emenda parlamentar elaborada por

um deputado federal, e atualmente ocorre todos os sábados no município de Capão da

Canoa envolvendo aproximadamente 60 feirantes. A participação dos associados da

COOMAFITT nessa feira progrediu à medida que os agricultores constataram que a

renda obtida nesse mercado também era significativa.

Diante disso, os agricultores sócios da COOMAFITT e membros do OPAC,

novamente se uniram à EMATER e, com apoio do Ministério da Agricultura Pecuária e

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Abastecimento, participam atualmente de um projeto de feira de agricultores ecológicos

a ser inaugurada ainda neste ano no município de Porto Alegre.

Uma das chaves para o apoio ao desenvolvimento rural consiste em identificar e

qualificar diferentes sistemas de produção e abastecimento, bem como as relações

sociais envolvidas em determinados processos do trabalho agrícola. No Brasil, as feiras

locais e o mercado institucional proporcionam exemplos de mercados que produzem

vínculos sociais e mobilizam a sociedade por meio das relações diretas entre produtores

e consumidores (SABOURIN, 2009), fato que diferencia esses mercados dos mercados

conduzidos em sistemas oligopolizados e centralizados de comercialização.

A riqueza de relações e trocas que se estabeleceram durante essas trajetórias tem

relevância para além das possibilidades comerciais que se abrem, uma vez que é

perceptível a ativa circulação de informação e conhecimento que leva à tomada de

decisões e ações (PLOEG et al., 2004). É possível verificar que os fundamentos dessas

redes de cooperação se assentam nas dimensões socioeconômicas, políticas, culturais e

do ambiente institucional, para os quais os atores sociais ocuparam papel de destaque na

transformação em andamento. A capacidade de agência desses atores permitiu a busca

de ‘espaços de manobra’ que vão desde novas formas de acesso aos mercados, de novos

processos produtivos e organizacionais até a influência na definição de

institucionalidades alternativas (MIOR et al., 2013). Esse conjunto de fatores é o que

embasa a afirmação de que essas redes de cooperação na agricultura familiar são

‘novidades’ emergentes na região de estudo.

Os principais motivos que levam a considerar a construção dessas redes de

cooperação como novidade são, em primeiro lugar, o fato de que a criação dessas redes

tem deflagrado uma nova dinâmica de relacionamento com a sociedade local, já que a

produção de alimentos pela agricultura familiar no mercado institucional e em mercados

de cadeia curta implica, neste caso, em um contato mais direto na comercialização entre

agricultor e consumidor.

Em segundo lugar, essa integração de atores sociais tem feito irradiar, para além

da Região do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, a ideia e a prática de uma nova

relação da sociedade com a natureza, principalmente através da agricultura de base

ecológica, desenvolvida por um número cada vez maior de agricultores da região. Um

terceiro motivo se refere ao fato de que os atores sociais organizados nessas redes têm

ampliado processos de aprendizagem coletiva, seja porque o dispositivo facilita ações

de mediadores sociais envolvidos ou porque a dinamização de vínculos aumenta as

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possibilidades de trocas de um relevante ‘saber-fazer’, rompendo o isolamento de

muitas iniciativas semelhantes que se encontram em andamento.

Todas essas dinâmicas e relações têm sido capazes de suscitar um espaço de

discussão propícia ao fortalecimento das interações sociais e transformar a realidade de

um número significativo de famílias, desencadeando uma nova dinâmica de

desenvolvimento rural.

E para não concluir

As transformações organizacionais e produtivas, que estão em curso nas vidas de

alguns agricultores familiares dos municípios analisados, podem ser identificadas como

adaptações e reações que, fazendo parte do seu cotidiano, favorecem iniciativas que se

configuram como desvios em relação ao regime sociotécnico dominante. O regime,

profundamente enraizado nos princípios e processos da modernização da agricultura,

faz parte de um padrão de desenvolvimento entendido como puramente econômico e

tecnicista. Tais desvios levaram a novos e alternativos processos de desenvolvimento no

espaço rural, nos quais se evidenciam a valorização dos conhecimentos locais e da

diversidade socioambiental, gerando re-arranjos em relações sociais e de trabalho e a

interação entre distintos conhecimentos, constituindo processos de aprendizagem,

revitalizando vínculos de reciprocidade e confiança, além de proporcionar novas

formações de sentido e reinvenções de práticas e técnicas.

Como se tentou demonstrar é possível compreender que o acesso ao PAA e ao

PNAE viabilizou a estruturação de redes de cooperação que propiciaram

consequentemente uma nova dinâmica de desenvolvimento rural na região. A evolução

da experiência da COOMAFITT influenciou para que os integrantes das redes se

desafiassem a ampliar e diversificar sua produção em nível das unidades produtivas, a

incorporar novas famílias de agricultores, inclusive os ecologistas e as mulheres, e a

construir novas parcerias envolvendo extensionistas rurais, pesquisadores de

universidades, técnicos de ONG, e agentes políticos de governos municipais, estadual e

federal. Essa ampliação parece estar criando novos processos de desenvolvimento rural,

mais territorializados e adaptados às especificidades locais, com incorporação da

dimensão ambiental. É importante notar que o protagonismo dos atores envolvidos com

a emergência dessa novidade está relacionado ao rompimento das regras estabelecidas

pelo padrão ‘modernizante’ de agricultura e está inserido em processos mais amplos,

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que ocorrem em um nível da ação social que extrapola a escala local. A experiência

acumulada pelas diferentes organizações, hoje articuladas em redes de cooperação e nas

iniciativas concretas de acesso ao mercado institucional, é ingrediente fundamental para

que as compras governamentais possam se consolidar, de fato, como uma ferramenta

capaz de potencializar formas sustentáveis de produção e consumo de alimentos na

região. Essas novas formas de mercado e de relação com o Estado, que apenas começam

a ser empreendidas, provocam novos desdobramentos, abrindo espaços para outras

emergências, como é o caso do desenvolvimento de agroindústrias familiares, que

surgem como estabelecimento de formas organizacionais autônomas de trabalho,

capazes de agregar valor à produção primária, e das OPAC, grupos consolidados pelos

laços de reciprocidade que parecem motivar diversas famílias a iniciar, desenvolver e

permanecer na prática da agricultura de base ecológica.

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